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PSIQUIATRIA TRANSCULTURAL: ALGUNS CONCEITOS

CLOVIS MARTINS Docente Livre de Clínica Psiquiátrica, Faculdade de Medicina da Universi­dade de São Paulo

A Psiquiatria está sendo atingida, de certo modo tardiamente, pelas profundas modificações operadas nas idéias e interpretações do comporta­mento humano baseadas apenas no indivíduo isolado de seu grupo.

As raízes metafísicas da psicopatologia muito contribuiram para re­tardar a evolução que hoje se processa, colocando a ciência do comporta­mento em flagrante atraso em relação às outras ciências do homem. A abertura freudiana inegavelmente representou rotura de certos tabus, liber¬ tando-nos de entraves incômodos nessa investigação. Entretanto, dogmatis­mo sectário determinou nova estagnação num campo que se prenunciava auspicioso para conquistas cientificamente bem fundamentadas e contribuiu para retardar a influência do enfoque social sobre a concepção do homem e de seu papel. É que, apenas aparentemente, o psiquiatra vienense teria levado em conta os fatores sociais nas suas concepções sobre o comportamento humano: a evolução do libido e o complexo de Édipo envolvem a constela­ção familiar, núcleo social por excelência. Também noutros trabalhos, mui­to ousados, por um processo de extrapolação de concepções ideadas para o indivíduo, Freud levou a conseqüências extremas a análise de fenômenos antropológico-culturais e religiosos, de nível social portanto, numa imper­doável falta de perspectiva filosófica o que, aliás, lhe custou justas e seve­ras críticas. Assim, o espírito da obra freudiana é eminentemente indivi­dualista e o dogmatismo de que se reveste decorre precisamente de inter­pretação do mundo anímico do adulto, isolado do resto do universo e sujeito a leis e esquemas que já não mais sofrem as influências do mundo externo. Uma vez processada a marcha do indivíduo do nascimento aos 5 anos de idade, todo seu destino está traçado e o resto de sua vida é inteira e fatal­mente sujeito às injunções que esses primeiros anos predeterminaram. O ego, mera instância de compromisso, é escravo do id, cujo poder desmesurado acabará por esmagá-lo nos casos de desobediência extrema. E o superego, forjado naquela fase pretérita, apesar de representar a introjeção de valo­res culturais, não vai pautar-se pelas normas atuais impostas pela existên­cia, mas sim pelo que do passado trouxe.

Nos trabalhos em que analisa fenômenos sociais, o criador da psicaná­lise tomou às avessas o caso, e o comportamento grupai, mais complexo, foi por ele interpretado apenas como dimensão maior do fenômeno indivi­dual, psicológico. Os fatos sociais seriam, à luz da doutrina psicanalítica,

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inteiramente dependentes dos fatos psicológicos e suas características, a reprodução coletiva daquilo que se passa na intimidade dos indivíduos iso­lados.

De há muito, as manifestações do psiquismo humano, incompreensíveis dentre da bitola de tais concepções, passaram a exigir o concurso de outras esperas do conhecimento, como caminho único para a solução de certos problemas. A bioquímica e a neuropsicofisiologia, nos últimos vinte anos, trouxeram contribuição inegável para a saída do impasse; por outro lado, os antropologistas e sociólogos, dentro das respectivas áreas de investigação, abriram perspectivas muito valiosas para a melhor compreensão do compor­tamento humano, tanto normal como patológico. A utilização de métodos especiais e a inclusão na pauta de cogitações do cientista moderno, de problemas cuja solução urgente é exigida como imperativo de sobrevivência acabaram por mostrar serem muito precários os instrumentos de que se valia a Psiquiatria clássica para desvendar suas causas e propor soluções.

Conflitos políticos e raciais, a violência como manifestação social, a persistência de conflitos sócio-culturais 2, o comportamento sexual, os movi­mentos místicos e religiosos, as grandes migrações, o incremento da urba­nização e da tecnologia, o índice de sobrevida humana cada vez mais alto, os choques entre as gerações, são alguns exemplos inquietantes de proble­mas abertos, no mundo atual e que tornam pueris as interpretações fincadas apenas no homem do divã.

Foi assim que a Psiquiatria Transcultural emergiu como ramo definido em meio às preocupações da moderna Psiquiatria. O homem que a sistema­tizou, Wit tkower 4 , que hoje dirige o Departamento de Psiquiatria Trancul¬ tural da Universidade Mac Gill (Allan Memorial Hospital — Montreal, Canadá), fornece conceitos fundamentais para estruturar e disciplinar a. pesquisa no novo campo. Eis algumas de suas concepções: 1. Cultura é o conjunto das formas de existir que distingue uma sociedade de outra; é o o esquema de comportamento, de pensamento, de sentimento, que se oferece ao filho do homem; produto da história, é transmitida relativamente inalte­rada de uma geração à outra; 2) Psiquiatria Cultural é o ramo da Psi­quiatria Social que se ocupa da doença mental em relação ao ambiente, dentro dos limites de uma dada unidade cultural; 3) Psiquiatria Transcul­tural consiste na aplicação e conceitos colhidos no estudo precedente, de uma cultura para outra.

Outros autores não são tão específicos na conceituação de fenômenos que preferem incluir no âmbito mais amplo da Psiquiatria Social. Alexan­der Leighton 1 discute de forma muito pertinente alguns dos problemas cruciais situados na encruzilhada de todos esses caminhos.

A formação da personalidade, por exemplo, naquilo que os inglêses chamam de "self", é profundamente determinada pela integração do pro­cesso social e do desenvolvimento biológico. Há esquemas recurrentes que tornam típicos certos instantes críticos no arco da nossa curva biológica, quaido colocados numa moldura cultural que lhes dê colorido, como sejam os problemas fundamentais de diferentes períodos do ciclo vital (Infância,

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Adolescência, Maturidade Velhice) que variam de cultura para cultura. Não é a mesma coisa ser adolescente em 1968 e em 1920, nem viver e envelhecer aqui ou numa aldeia chinesa ou da Lapônia.

O "Eu Ideal" (White, Murray) é profundamente "social" na sua ori­gem e no seu contexto. Resulta de um conjunto de padrões internalisados, refletidos da realidade social e da sub-cultura onde o indivíduo está situado. "O médico ideal" dos dias que correm, perseguido pelo vestibulando do CESCEM será o mesmo idealizado pela turma de Vieira de Carvalho? "O médico do interior", "operador" e "parteiro", será figura aceita pelas novas gerações aculturadas na época dos transplantes? Estes são exemplos superficiais da enorme importância dos fatores culturais na formação da personalidade e na motivação de conduta, e que têm de ser levados em conta na interpretação conveniente de seu destino.

A escala de valores, resultante de combinações de sentimentos especial­mente importantes e profundamente internalisados, os quais exigem fideli­dade congruente e que têm caráter indefectível de retidão e cordura, repre­senta outro elemento de valor na esfera intrapsíquica, como repercussão dos padrões culturais a que se submete a personalidade.

O Papel Social (Rol) e a Organização do Grupo também podem ser vistos como resultantes de constelações de sentimentos, os quais configu­ram determinado esquema só bem compreendido como impostação do psi¬ quismo dentro de moldes tipicamente culturais. Assim os papéis de MÃE, de IRMÃO, de professor, estão profundamente impregnados do contexto social e dele dependem. "O Papel é o ponto crítico da interrelação entre o individual e o esquema social e é, por isso, um indicador muito sensível de conflito". A figura do LÍDER e a aglutinação que em torno dele se processa, não compõe toda uma corrente de fenômenos interligados, os quais escapam, na sua compreensão, da singela visualização do indivíduo.

Estes são apenas alguns aspectos, no campo de psicologia normal, de variáveis em que a influência dos fatores sócio-culturais na orientação da conduta, não sofrem contestação. É claro que as preocupações dos estudio­sos não podem perder de vista o campo biológico nas suas cogitações sobre as bases do psiquismo humano. A dúvida inglesa proposta pelo dilema "nature or muture" está sendo substituída pela certeza do "natureza e am­biente", à custa das perspectivas abertas pelo conhecimento dos fatos sócio-culturais e as reações do indivíduo no grupo. O que falta é estabelecer, nas diferentes situações, até onde chega um para ceder lugar ao outro. É precisamente este o objetivo da Psiquiatria Transcultural, no estudo da psicopatologia. Valendo-se da metodologia atual, em que o subjetivismo ca­racterístico do pensamento psiquiátrico procura ser anulado, investiga esta­tisticamente e epidemiológicamente a incidência e as características clínicas das doenças mentais em diferentes culturas.

Em recente trabalho apresentado no Simpósio Internacional de Psiquia­tria Transcultural (Salvador, BA) Wíttkower 3 alinha os problemas que têm sido investigados no novo campo. São eles: 1) em que extensão, dife­renças na escala de valores em culturas contrastantes, no que tange à es­t rutura familiar, ao papel e ao "status" da mulher, afetam a normalidade

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mental? 2) no que desordens mentais diferem quantitativa e qualitativa­mente entre nativos de populações estabilizadas através de muitas gerações e os migrantes recentes?; 3) em que medida mudanças políticas e cultu­rais — rotura das tradições familiares ou de outras instituições sociais, a industrialização e a urbanização — afetam negativamente a saúde mental?; 4) em que extensão diferenças de crença influem no conteúdo de manifes­tações psico-patológicas?; 5) haverá síndromes relativas de natureza cul­tura l? ; 6) em que medida e de que forma fatores culturais influem sobre o conteúdo de manifestações psicológicas?; 7) porque certas técnicas de tratamento do doente mental são mais aceitas numa cultura que em outra?; 8) qual é a eficácia dos métodos do "curandeiro" tradicional, no tratamento do doente mental, nos países em desenvolvimento?; 9) a evolução para a cura espontânea é diferente em países diferentes?; 10) quais os métodos psicoterápicos ocidentais aplicáveis às populações nativas nos países em de¬

senvolvimento?; 11) haverá diferenças culturais na resposta aos psico¬ trópicos?; 12) diferenças nas atitudes da comunidade diante do doente mental terão influência no quadro clínico, bem como na evolução das desor­dens mentais, em diferentes culturas?

Ciência incipiente, em que pese o crescente interesse que desperta entre os psiquiatras, muito terá que fazer ainda, porque muitos são os problemas a serem resolvidos, o menor dos quais não será por certo o de derrubar os preconceitos, as idéias falsas, a pseudo-ciência com que se procura disfarçar nossa enorme ignorância sobre o psiquismo do homem.

R E F E R Ê N C I A S

1 . L E I G H T O N , A. H. — Some Key I s sues in Social P s y c h i a t r y . In E x p l o r a t i o n s in Social P s y c h i a t r y . A. H . L e i g h t o n , J . A. C lausen & R. Wilson, ed i to res . Bas ic Books Inc. , N e w York, 1957

2 . MARTINS, C. — P o v e r t y a n d m e n t a l h e a l t h . E m pub l i cação , C a n a d . Ps i ch i a t . Assoc. J. ( O t t a w a , C a n a d á ) .

3 . W I T T K O W E R , E. D. — Pe r spec t i ve s of t r a n s c u l t u r a l P s y c h i a t r y . Rev . b ras i l . P s i q u i a t . 2:61-78, 1968.

4 . W I T T K O W E R , E. D. & RIN, H. — R e c e n t D e v e l o p m e n t in T r a n s c u l t u r a l Psy­c h i a t r y . In T r a n s c u l t u r a l P s y c h i a t r y . A. V. S. De R e u c h & R. Po r t e r , ed i to ­r e s . L i t t l e & Brown , Bos ton , 1965.