psiquiatria no hospital geral: histórico e tendências · internações psiquiátricas do estado...

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UNIDADES DE PSIQUIATRIA NO HOSPITAL GERAL O hospital da Idade Média tinha um sentido muito diferente do atual, constituindo, até a metade do século XVII, um instrumento misto de exclusão, caridade e assistência es- piritual; não sendo uma instituição médica, não era concebido para curar. Apenas em meados do século XVIII passou a incorporar a ciência médica. 1,2 Em 1728, Thomas Guy, em Londres, organizou o que teria sido a primeira uni- dade psiquiátrica de hospital geral (UPHG), a Lunatic House, no Hospital St.Thomas, a qual não deveria receber mais do que 20 pa- cientes por vez. Outras unidades semelhan- tes surgiram em diversos hospitais ingleses, não sobrevivendo, porém, além da metade do século XIX. 2 Assim, a psiquiatria aden- trou o século XX marcada por um modelo assistencial asilar. O início das modernas UPHGs (ou seja, com planejamento terapêutico, inte- gração à medicina geral, internações breves e rápido retorno à comunidade de origem, serviços de interconsulta e de emergência) deu-se em 1902, no Albany Medical Center, em Nova York. Outras unidades foram sur- gindo pouco a pouco ao longo das décadas de 1920 e 1930. 1 Após a Segunda Guerra Mundial, observou-se um grande crescimento no nú- mero de UPHGs, sobretudo na América do Norte. As principais razões para tal cresci- mento foram: 3 n A adoção, por diversos países do hemis- fério Norte, de uma política de bem-estar social (welfare state), a partir da qual o Es- tado passou a ter um papel fundamental na regulação social, incluindo-se a área de assistência e proteção aos doentes. n A experiência de pequenas enfermarias psiquiátricas em hospitais militares ge- 1 Psiquiatria no hospital geral: histórico e tendências Neury José Botega Dois marcos se destacam no surgimento e no desenvolvimento da prática psiquiátrica no hospital geral: um organizacional, outro teórico. A instalação de unidades de inter‑ nação psiquiátrica e de serviços de interconsulta deram à psiquiatria um arcabouço organizacional no âmbito do hospital geral. O movimento psicossomático foi seu refe‑ rencial teórico inicial e é até hoje inspirador na compreensão do humano.

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UNIDADES DE PSIqUIATRIA

NO HOSPITAL GERAL

O hospital da Idade Média tinha um sentido muito diferente do atual, constituindo, até a metade do século XVII, um instrumento misto de exclusão, caridade e assistência es-piritual; não sendo uma instituição médica, não era concebido para curar. Apenas em meados do século XVIII passou a incorporar a ciência médica.1,2

Em 1728, Thomas Guy, em Londres, organizou o que teria sido a primeira uni-dade psiquiátrica de hospital geral (UPHG), a Lunatic House, no Hospital St.Thomas, a qual não deveria receber mais do que 20 pa-cientes por vez. Outras unidades semelhan-tes surgiram em diversos hospitais ingleses, não sobrevivendo, porém, além da metade do século XIX.2 Assim, a psiquiatria aden-trou o século XX marcada por um modelo assistencial asilar.

O início das modernas UPHGs (ou seja, com planejamento terapêutico, inte-gração à medicina geral, internações breves e rápido retorno à comunidade de origem, serviços de interconsulta e de emergência) deu -se em 1902, no Albany Medical Center, em Nova York. Outras unidades foram sur-gindo pouco a pouco ao longo das décadas de 1920 e 1930.1

Após a Segunda Guerra Mundial, observou -se um grande crescimento no nú-mero de UPHGs, sobretudo na América do Norte. As principais razões para tal cresci-mento foram:3

n A adoção, por diversos países do hemis-fério Norte, de uma política de bem -estar social (welfare state), a partir da qual o Es-tado passou a ter um papel fundamental na regulação social, incluindo -se a área de assistência e proteção aos doentes.

n A experiência de pequenas enfermarias psiquiátricas em hospitais militares ge-

1Psiquiatria no hospital geral:

histórico e tendênciasNeury José Botega

Dois marcos se destacam no surgimento e no desenvolvimento da prática psiquiátrica no hospital geral: um organizacional, outro teórico. A instalação de unidades de inter‑nação psiquiátrica e de serviços de interconsulta deram à psiquiatria um arcabouço organizacional no âmbito do hospital geral. O movimento psicossomático foi seu refe‑rencial teórico inicial e é até hoje inspirador na compreensão do humano.

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rais mostrou concretamente a médicos, pessoal técnico e administrativo a pos-sibilidade de tratar de maneira eficaz doentes mentais em hospitais gerais.

n A crítica aos grandes hospitais psiquiá-tricos denunciou sua dimensão segre-gadora, estigmatizante e produtora de anomia. O fantasma dos campos de con-centração da Segunda Guerra também contribuiu para a condenação de qual-quer macroinstituição destinada a “desa-daptados sociais”.

n As propostas de saúde pública e comuni-tária e o planejamento em saúde e reabi-litação.

n A ideia de que a internação psiquiátrica não deveria mais ser vista como centro da assistência psiquiátrica, devendo ser integrada a estruturas assistenciais ex-tramurais (ambulatórios e centros de saúde regionalizados), buscando-se ao máximo a continuidade terapêutica.

n O desenvolvimento de abordagens tera-pêuticas que viabilizaram e agilizaram o tratamento de quadros psiquiátricos graves, em especial a convulsoterapia e a psicofarmacoterapia.

n O desenvolvimento de abordagens psico-terapêuticas (uso da psicanálise em ins-tituições, técnicas grupais, psicoterapia breve, etc.) e socioterapêuticas (terapia ocupacional, laborterapia, comunidade terapêutica).

n O reconhecimento crescente da impor-tância do ensino de psiquiatria no cur-so de graduação médica, ressaltando a importância da unidade psiquiátrica em hospitais gerais de ensino.

No hospital geral, o processo de in-tegração e de interação mútua entre a psi-quiatria e outras especialidades foi gradual e realizado de três maneiras: deslocamento de pacientes psiquiátricos para enfermarias de psiquiatria, realização de interconsultas e maior participação dos psiquiatras em co-missões hospitalares.4 Esse processo não foi simples, nem fácil, tendo que superar, até hoje, muitas resistências.

Atualmente, os hospitais gerais de vá-rios países abrigam a maioria das interna-ções psiquiátricas. Em 2005, segundo dados fornecidos por 180 países ao Atlas da Saúde Mental, 21% do total de leitos psiquiátricos disponíveis eram oferecidos por hospitais gerais.5

América do Sul e Brasil

Na América colonial, era costume encami-nhar os “alienados” para as chamadas “lo-querias” dos hospitais religiosos. No Brasil, a exemplo do que ocorria nos territórios espanhóis, o destino dos doentes mentais dependia do estrato social a que perten-ciam. Os mais pobres eram encaminhados a prisões ou Santas Casas, onde geralmente havia, nos porões, celas nas quais os doentes mentais permaneciam confinados.6

Inspirada no modelo da Casa -mãe de Lisboa, a Irmandade de Misericórdia chegou ao Brasil em 1543, com a fundação da Santa Casa de Santos. Mais tarde, com a criação de novos hospitais, tornou -se a base assistencial hospitalar da colônia. Muitos desses hospitais reservavam um espaço (“casinha de doudos”) para a acomodação de doentes mentais.7,8

Os grandes hospícios começaram a se proliferar a partir do século XIX.9 Assim, até a década de 1970, a assistência mental ficou a cargo dos grandes hospitais psiquiátricos, em localizações afastadas dos grandes cen-tros urbanos. Além disso, as políticas de saú-de na maioria dos países estavam voltadas para as doenças infectocontagiosas, para a atenção materno -infantil e para as carências alimentares, com pouca atenção para a saú-de mental.

No início da década de 1980, no en-tanto, surgiram os movimentos em defesa dos direitos civis e a introdução de novas ideias a respeito da atenção psiquiátrica, advindas de experiências realizadas em ou-tros países (sobretudo Itália, Inglaterra e Es-tados Unidos). Na América do Sul, a maioria dos programas nacionais de saúde mental

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foi implementada nessa década e na seguin-te.10 Ao longo da década de 1990, porém, houve decréscimo no número total de leitos psiquiá tricos e abertura de leitos psiquiátri-cos em hospitais gerais (Tabelas 1.1 e 1.2).

Entretanto, as primeiras enfermarias de psiquiatria em hospital geral surgiram, em nosso País, na década de 1950. Em 1954, foi criada a primeira UPHG, no Hospital das Clínicas da Universidade da Bahia, coorde-nada pelo professor Nelson Pires. Contava com seis leitos para mulheres e com um ambulatório de psiquiatria, localizado na mesma instituição. Ainda em 1954, foi orga-nizada outra UPHG, no Hospital dos Comer-ciários de São Paulo, pelo Dr. Laertes Ferrão. Em 1957, no Hospital Pedro II, da Universi-dade Federal de Pernambuco, estabeleceu--se outra UPHG, com 20 leitos.11,12

As UPHGs cresceram em quantidade na década de 1980 e na primeira metade da década de 1990. Em 1987, havia no País 68 UPHGs, com um total de 2.190 leitos, se-gundo informação fornecida pelo Ministério da Saúde.13 Em 1997, um estudo censitário

independente avaliou 63 UPHGs brasilei-ras e constatou que um terço delas havia sido instalado na primeira metade daquela década (Fig. 1.1). A maioria encontrava -se nas regiões Sudeste (43%) e Sul (32%), as quais se localizavam em instituições públicas (59%), filantrópicas (33%) e particulares conveniadas (8%) e contavam, em média, com 20 leitos. No entanto, apenas 32% dos hospitais pesquisados dispunham de um con-junto de quatro serviços psiquiátricos (enfer-maria, interconsulta, ambulatório e pronto--socorro psiquiátrico), e, em geral, tratava -se de instituições públicas e universitárias.14

Atualmente, o Ministério da Saúde não sabe, ao certo, quantos leitos em UPHG existem no País, nem quantos são os leitos psiquiátricos que se encontram ativos em enfermarias de clínica médica. Fala -se em 2.568 leitos, o que corresponderia a 7,2% do total de 35.426 leitos psiquiátricos disponí-veis (Tabela 1.3).15 No entanto, o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, de onde a informação é retirada, contém regis-tro de dezenas de hospitais gerais com um

Tabela 1.1Número de leitos psiquiátricos em países da América do Sul e variação entre 1990 e 2000

Países* Leitos em Variação Leitos Variação Proporção hospitais entre 1990 psiquiátricos entre 1990 de leitos em psiquiátricos e 2000 (%) em UPHG e 2000 (%) UPHG (%)

Bolívia 760 +5 20 – 2,5

Brasil 60.000 ‑30 1.800 +75 3

Chile 1.881 ‑36 301 +10 14

Colômbia 2.100 ‑8 2.000 sv 49

Equador 1.217 0 – sv –

Paraguai 360 ‑40 8 – 2

Peru 918 ‑32 – +50 –

Uruguai 1.657 ‑40 210 +20 11

Venezuela 3.000 ‑10 1.100 +12 27

* Dados globais da Argentina não estão disponíveis por falta de um sistema nacional que integralize dados das províncias; (sv) = sem variação, ( – ) = sem dados, UPHG = unidade de psiquiatria em hospital geral.Fonte: Larrobla e Botega.10

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Tabela 1.2Número de hospitais gerais por país e porcentagem dos que contam com uma unidade de internação psiquiátrica

Países Hospitais gerais Unidades de psiquiatria (%)

Brasil 6.169 84 (1,3%)

Chile 183 26 (14%)

Colômbia 250 20 (8%)

Equador 175 18 (10%)

Paraguai 30 1 (3%)

Uruguai 21 14 (66%)

Fonte: Larrobla e Botega.10

Figura 1.1 Crescimento no número de UPHGs.Fonte: Botega e Schechtman.14

total

pública

Filantrópica

privada

uphg

70

60

50

40

30

20

10

01964 1965-1969 1970-1974 1975-1979 1980-1984 1985-1989 1990-1994

Ano

ou dois “leitos psiquiátricos cadastrados”, o que não significa que estejam ativos. Assim, ao considerar apenas as instituições que re-gistram mais do que seis leitos psiquiátricos, chega -se a um total de 2.102 leitos psiquiá-tricos em hospitais gerais.

A importância estratégica da UPHG em uma rede de serviços de saúde mental tem sido reconhecida em documentos oficiais, mas não na prática. O número de leitos de psiquiatria em hospital geral, com exceção do Rio Grande do Sul, encontra -se estagna-

do há pelo menos 20 anos. O Governo Fe-deral optou pelo incentivo à instalação de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e de residências terapêuticas e não investiu em enfermarias de psiquiatria em hospitais ge-rais.16 Além disso, em alguns documentos da coordenação de saúde mental do Ministério da Saúde, não há diferenciação entre inter-nações que se dão em um CAPS com pernoite (CAPS III), em leitos de assistência integral (para usuários de substâncias psicoa tivas), em leitos psiquiátricos em enfermaria de clí-

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nica médica ou em uma UPHG. No entanto, são serviços bem diferentes. As três primei-ras modalidades de serviços não dão conta das graves emergências psiquiátricas, nem de casos cuja complexidade clínica exige a atenção especializada de uma enfermaria de psiquiatria.

O Estado do Rio Grande do Sul, por sua vez, já havia sido, em 1992, a primei-ra unidade da federação a aprovar uma lei de reforma da atenção em saúde mental,17 antecedendo a tardia lei federal de 2001,18 com teor semelhante. Em 2004, 43% das internações psiquiátricas do Estado já se en-

Tabela 1.3Leitos psiquiátricos em hospitais gerais

Número de hospitais gerais Número de leitos psiquiátricos disponibilizados UF com leitos psiquiátricos pelo SUS em hospitais gerais

AC 16 16

AL Ø Ø

AM Ø Ø

AP 1 16

BA 6 106

CE 8 31

DF 2 34

ES 5 28

GO 8 73

MA Ø Ø

MG 25 183

MS 20 98

MT 2 2

PA 3 54

PB 2 3

PE 3 52

PI 2 19

PR 11 152

RJ 60 172

RN 2 4

RO 1 35

RR Ø Ø

RS 129 637

SC 51 330

SE 2 24

SP 51 402

TO 5 17

Total 415 2.568

Fonte: Brasil.15

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contravam em hospitais gerais.19 Em 2008, o governo gaúcho estabeleceu critérios para a distribuição de incentivos financeiros a hospitais que já contassem com UPHGs, bem como para a abertura de novos leitos, em hospitais gerais, voltados a internação psiquiátrica e atenção a usuários de álcool e outras drogas. Espera -se, com isso, que tais medidas consigam acabar com o déficit es-timado em 30 a 40% de leitos psiquiátricos em hospitais gerais no Estado.20

Leitos psiquiátricos em

enfermarias de clínica médica

A instalação de enfermarias psiquiátricas em pequenos hospitais filantrópicos e a admissão de pacientes psiquiátricos em en-fermarias de clínica médica são fenômenos característicos dos últimos tempos, observa-dos, sobretudo, em Santa Catarina, Paraná, Minas Gerais e São Paulo.21-23

No entanto, leitos de psiquiatria em uma enfermaria de clínica médica implicam pelo menos três problemas: o difícil mane-jo de pacientes psicóticos agudos, às vezes agitados; a atitude dos outros pacientes e de seus familiares em relação ao doente men-tal; e a oposição da administração e do cor-po clínico do hospital em relação à admissão de doentes mentais. Um levantamento que realizamos em hospitais filantrópicos que haviam aberto leitos psiquiátricos recente-mente mostrou que essas instituições, ao aceitarem algumas internações psiquiátri-cas, procuram dar conta de demandas locais emergenciais, em geral pacientes dependen-tes de álcool que requerem internação por curto período de tempo.23

Não sabemos, porém, se esses hospi-tais estão mais inclinados a desenvolverem plenamente os serviços de psiquiatria, al-cançando o status do que se considera uma UPHG. De qualquer forma, aí se encontra outra porta de entrada (além da intercon-sulta) para os serviços de psiquiatria no hospital geral, o que significa o início de

um atendimento de qualidade para pacien-tes dependentes de álcool internados para “desintoxicação”.22,24 Todavia, esses novos serviços terão que suplantar dois tipos de obstáculos: preconceito e escassez de recur-sos financeiros.22,24

Outro ponto importante a ser destaca-do é o valor reembolsado pelo Governo Fe-deral para uma internação psiquiátrica em hospital geral, bem como a forma de remu-nerar (em diárias), o que deveria ser revisto. Quando um paciente psiquiátrico necessita passar por procedimentos de alto custo, dis-poníveis no hospital geral, esse valor não é ressarcido, impondo prejuízos a instituições de saúde e, como consequência, a pacientes, que passam a ser rechaçados pelo hospital geral. Estima -se que o valor pago pelo Sis-tema Único de Saúde (SUS) para a diária de uma internação em UPHG seja cerca de seis vezes menor do que o custo real de um paciente -dia.25

A reestruturação da assistência em saúde mental conseguiu direcionar maior proporção de recursos financeiros para os serviços comunitários, invertendo a ordem tradicional, hospitalocêntrica, que vigorou até a década de 1980 (Fig. 1.2). Em 2005, por exemplo, 49,3% dos recursos pagaram internações, 15% dirigiram -se a serviços comunitários, 15,5%, a medicamentos (so-bretudo antipsicóticos de segunda geração) e 20,2%, a outros tipos de tratamentos. No entanto, o montante de recursos dirigido à assistência em saúde mental diminuiu em relação aos gastos totais do Ministério da Saúde: de 5,8% em 1995 para 2,3% em 2005 (ou, de outra forma, de US$ 2,66 para 1,95).26

É importante destacar que os recursos comunitários já implantados concentram -se em algumas regiões do País e que, mesmo nessas áreas, são insuficientes. Pacientes com transtornos mentais agudos e graves, por exemplo, não encontram vagas para in-ternação em grandes centros urbanos. Casos como esses, que não conseguem ser “acolhi-dos” pelos CAPS, necessitam de tratamento efetivo em uma UPHG, ou seja, enfermaria

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especificamente de psiquiatria, em espaço delimitado, com equipe treinada e processos terapêuticos dinâmicos.

Vantagens e desvantagens

de uma UPHG

Algumas das vantagens de uma UPHG são:

n Diminuição do estigma da doença men-tal. O doente mental no hospital geral

passaria a ser visto como um doente se-melhante aos outros.

n Proximidade e acesso. Os hospitais ge-rais costumam estar mais próximos e aces síveis às populações atendidas. Essa maior proximidade favorece a regiona-lização e a continuidade da assistência, bem como o tratamento mais precoce dos transtornos mentais, diminuindo, pelo menos em parte, o estado crônico.

n Maior transparência da prática psiquiá-trica. Não sendo tão isolados, os hospi-tais gerais permitem melhor visibilidade

Figura 1.2 Proporção de gastos públicos em saúde mental.Fonte: Brasil,15 Andreoli e colaboradores.16

100%

80%

60%

40%

20%

0%

1. hospital psiquiátrico

2. serviços comunitários

3. medicação

4. outros

1

43

2

1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005

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e mesmo fiscalização contra possíveis abusos e maus -tratos a pacientes.

n Melhor atenção à saúde física. Há maior disponibilidade de médicos de diversas especialidades e recursos diagnósticos, facilitando o reconhecimento e o tra-tamento de doenças e intercorrências clínicas somáticas (estudos epidemioló-gicos têm demonstrado exaustivamente que doentes mentais têm prevalência aumentada de distúrbios e doenças so-máticas).

n Maior intercâmbio interdisciplinar com outras especialidades médicas, favore-cendo a assistência, a pesquisa e a for-mação dos profissionais da saúde.

Entretanto, algumas desvantagens das UPHGs também têm sido apontadas:

n Limitação e inadequação do espaço fí-sico. A maioria dos hospitais gerais não conta com pátios para exposição solar, áreas verdes, hortas, áreas para esportes, salão de festas e demais estruturas.

n Devido a uma excessiva adesão ao mode-lo médico, o tratamento é centrado em terapêuticas somáticas (farmacoterapia, eletroconvulsoterapia).

n A ênfase em tratamentos sintomatológi-cos pode inibir a atenção à subjetividade dos pacientes, havendo, assim, o perigo de uma “cultura manicomial” dentro de uma UPHG.

n As internações em hospitais gerais cos-tumam ser breves. Altas precoces, sem adequado acompanhamento dos pacien-tes em serviços ambulatoriais, implicam maior número de reinternações e dificul-dade na reabilitação.

As UPHGs têm se adequado, com mais frequência, aos pacientes psicóticos agudos e aos acometidos por transtornos do humor. A internação de pacientes neuróticos graves em UPHGs também é proporcionalmente maior do que em hospitais psiquiátricos.27 No entanto, falta de segurança e de pessoal

tem dificultado o atendimento de pacientes agressivos e de idosos dependentes de cui-dados de enfermagem. Além disso, a inter-nação do dependente de álcool ou de dro-gas é preterida ou reduzida a um mínimo de tempo. A exceção fica por conta das poucas instituições que se especializaram nesse tipo de atendimento.28

INTERCONSULTA PSIqUIÁTRICA

Conceitos

A denominação interconsulta inclui, no sen-tido em que é utilizada no Brasil, a consul-toria psiquiátrica e a psiquiatria de liga-ção. Consultoria se refere à atuação de um profissional da saúde mental que avalia e indica um tratamento para pacientes que estão sob os cuidados de outros especialis-tas. A presença do psiquiatra no serviço é episódica, responde a uma solicitação espe-cífica. Já a ligação implica um contato, de forma contínua, com serviços do hospital geral, como uma enfermaria ou unidades especializadas em hemodiálise, transplan-tes, oncologia, etc. O profissional da saúde mental, nesse caso, passa a ser um membro efetivo da equipe médica, participando de reuniões clínicas, atendendo aos pacientes e lidando com aspectos da relação estabe-lecida entre equipe assistencial, paciente e instituição.29,30

A expressão interconsulta médico ‑psi‑cológica, também comum entre nós, foi utilizada por Luchina para designar a ação preferencial na relação médico -paciente a partir de um diagnóstico situacional. De acordo com o pensamento desse autor, a interconsulta emerge de um conflito na relação entre médico e paciente, na qual interferem aspectos pessoais, familiares, culturais e institucionais. O manejo desse conflito a partir de um referencial psicana-lítico é a essência da interconsulta médico--psicológica.31,32

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A influência da psicossomática

Os grandes triunfos conquistados no século XIX nos campos da anatomia patológica, da microbiologia e da bioquímica resultaram em uma orientação organicista da medicina, aproximando -a das ciências naturais. Isso aumentou seu grau de especialização e di-minuiu a preocupação com aspectos psicos-sociais do doente. A medicina foi se tornan-do cada vez mais biomédica, e a psiquiatria, se restringindo aos grandes manicômios.

As descobertas de Freud, de Pavlov e de Cannon no início do século XX conduziram ao retorno de uma abordagem psicológica na prática e na pesquisa médicas. Desven-dando o sentido inconsciente dos sintomas, ou medindo a importância das emoções no funcionamento corporal, viu -se o desenvol-vimento de um modelo psicológico e neuro-fisiológico de unidade do homem. Assim, o termo “psicossomático” foi criado, em 1918, por Heinroth, para referir -se às influências da mente no corpo.33

Nascido na Alemanha e na Áustria, o movimento psicossomático logo floresceu nos Estados Unidos, com vasta produção teórica em torno das relações entre o psíqui-co, o social e o biológico na determinação da saúde e da doença. Foi um movimento reformista contra a visão reducionista do sé-culo XIX, que explicava a saúde e a doença sem considerar os atributos que tornam o homem humano. O movimento psicossomá-tico teve um profundo impacto na prática médica, favorecendo a entrada da psiquia-tria no hospital geral.30

Franz Alexander elaborou a teoria da especificidade dos conflitos, postulando que certos transtornos orgânicos eram a resposta a determinadas situações confli-tivas. Além disso, Francis Dunbar trouxe a teoria dos perfis psicossomáticos, associan-do doenças a perfis humanos, destacando, assim, o papel da personalidade. Com isso, popularizou -se a expressão “doença psicos-somática” – conceito hoje superado –, que englobava, a princípio, úlcera péptica, asma

brônquica, hipertensão arterial e enxaque-ca, entre outras afecções nitidamente as-sociadas a fatores emocionais.33

Após grande entusiasmo inicial, perdeu -se a esperança de encontrar uma formulação apenas psicológica para a etiolo-gia e o tratamento de muitas das então cha-madas doenças psicossomáticas. De fato, os “modelos psicossomáticos” não foram testa-dos com a metodologia de pesquisa mais re-cente. Houve, então, um declínio gradativo de seu impacto na literatura médica, em de-trimento da contribuição de conhecimentos da neurobiologia e de outras modalidades terapêuticas.

O foco da psicossomática mudou, as-sim, da observação clínica para a pesquisa básica, em especial sobre os mecanismos neuroendócrinos envolvidos na regulação visceral e, mais recentemente, sobre os mo-delos cognitivos de compreensão e trata-mento. Com isso, a interpretação mais geral para os achados da psicossomática é que eventos estressantes provocam alterações fi-siológicas, como aumento de catecolaminas e imunossupressão, que, de forma direta ou indireta, aumentam a vulnerabilidade do in-divíduo às doenças.

Além da contribuição da psicanálise, as visões da dimensão social e cultural, das relações do doente com a família e com o meio e, por fim, do significado e do sentido das doenças contribuíram para a moderna concepção de que toda doença é psicossomá‑tica. Julio de Mello Filho, que poderia ser considerado o patrono da interconsulta no Brasil, conseguiu, a partir de um profícuo trabalho no hospital geral, inspirar toda uma geração de psiquiatras.34

Observando o foco de atenção das unidades de medicina psicossomática da década de 1940 e comparando -o com o dos serviços de interconsulta atuais, encontra -se um grande contraste. Naquela época, úlce-ra duodenal, hipertensão, colite ulcerativa, artrite, hipertireoidismo, neurodermatite e asma, as assim denominadas Chicago seven, estavam entre as entidades nosológicas mais

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estudadas, particularmente com o enfoque da causalidade psíquica das manifestações somáticas.33 O interconsultor da atualidade, no entanto, passou a estudar a depressão, as tentativas de suicídio, os défictis cognitivos leves e o delirium, entre outras manifesta-ções psicopatológicas. Seu enfoque inclui características psicopatológicas, critérios para o diagnóstico, fisiopatologia, fatores de risco, prognóstico, impacto psicossocial da doença, terapêutica farmacológica e psi-coterapia de crise. O interconsultor passou também a desenvolver instrumental pró-prio, distinguindo -se do psiquiatra geral e aproximando -se do modelo médico.

Enriquecida por importantes contri-buições da psicanálise e das ciências sociais e do comportamento, a psiquiatria passou a atuar de modo operativo em uma vasta gama de serviços no hospital geral. Além das unidades de internação, os profissionais da saúde mental se estabeleceram nos prontos-socorros, nos serviços de interconsulta, nos ambulatórios e nas unidades de atendi-mento integrado. Além disso, a provisão de assistência tem se estendido às equipes de saúde e ao paciente que busca o hospital ge-ral apresentando comorbidade psiquiátrica ou transtornos de comportamento que re-querem atenção específica.

A instalação de serviços de saúde men-tal no hospital geral também tem sido re-

conhecida como importante recurso na for-mação e na prática de vários profissionais da saúde, propiciando -lhes conhecimento interdisciplinar e capacitação para lidar com problemas psicossociais de pacientes clíni-cos e cirúrgicos.35,36

Além disso, a formação em inter-consulta não prepara o profissional para trabalhar tão somente no âmbito do hos-pital geral. Profissionais de várias áreas do conhecimento relacionadas à saúde, treinados a princípio em hospitais gerais, passaram a trabalhar na atenção primária em postos de saúde ou em programas de medicina de família. O próprio perfil de pa-cientes aten didos na atenção médica geral, com uma parcela considerável acometida por transtornos psiquiátricos, vem incenti-vando o desenvolvimento da interconsulta (Quadro 1.1).

PSIqUIATRIA DE

CONSULTORIA E LIGAçãO

A psiquiatria praticada no hospital geral liga -se a uma especialidade denominada consultation ‑liaison psychiatry, ou, como passou a ser chamada mais recentemente nos Estados Unidos, psychosomatic medicine. Já em Portugal, fala -se em psiquiatria consi-

qUADRO 1.1Realidade sanitária e importância da interconsulta

n Elevada morbidade psiquiátrica em pacientes internados na atenção primária e em hospitais gerais.

n Aumento da população idosa, com elevação da prevalência de transtornos mentais.n Aumento da prevalência de doenças crônicas (câncer, aids, hemodiálise, etc.) e de dis‑

túrbios psicossociais e psiquiátricos associados.n Aumento do custo financeiro e social devido à comorbidade.n Associação entre estilo de vida e determinadas doenças.n Movimento de “humanização” dos hospitais.n Valorização da qualidade de vida e da adesão dos pacientes ao tratamento.n Aspectos emocionais e éticos envolvidos em situações clínicas dilemáticas.

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liar (consiliar, de consílio = conselho) e de ligação.

Billings, o criador do termo con sul‑tation ‑liaison psychiatry, há mais de 50 anos, já externava a convicção de que o objetivo último do trabalho do psiquiatra no hospital geral era melhorar a qualidade da atenção ao paciente, auxiliando na provisão de cui-dados a todos os aspectos envolvidos na si-tuação de estar doente e hospitalizado.37,38

A psiquiatria de consultoria e de li-gação se desenvolveu, sobretudo, nos Es-tados Unidos a partir da década de 1930, à medida que unidades psiquiátricas foram se estabelecendo em hospitais gerais. Cres-ceu muito no pós -guerra, quando os hospi-tais norte -americanos passaram a abrigar muitos ex -combatentes com transtornos psiquiátricos.1,4

Em 1929, George Henry publicou o primeiro artigo sobre as diretrizes gerais que deveriam nortear o trabalho de consul-toria psiquiátrica no hospital geral. Alguns anos depois, em 1934, Helen Dunbar, uma das pioneiras do movimento psicossomático e criadora da teoria dos perfis psicossomá-ticos, previa que, em um futuro próximo, psiquiatras seriam requisitados para todas as enfermarias clínicas e cirúrgicas nos hos-pitais gerais.39

Em 1974, então, o National Institute of Mental Health priorizou a formação de psi-quiatras especializados em interconsultas. O estágio nessa atividade durante a residência médica tornou -se obrigatório.40 A American Psychiatric Association, em 1992, reconhe-ceu a interconsulta como uma subespeciali-dade, e, em 2003, a American Board of Spe-cialties reconheceu a subespecialidade sob a denominação de psychosomatic medicine.

No Brasil, o primeiro serviço de in-terconsulta estruturado e organizado sob a forma de um estágio de treinamento em um programa de residência médica em psi-quiatria aconteceu 1977, no Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Escola Paulista de Medicina (atual Unifesp).41

Vinte anos depois, um estudo mos trou que serviços de interconsulta en contravam-

-se disponíveis em 86% dos hospitais ge-rais que contavam com uma enfermaria de psiquiatria.14 Havia, no entanto, uma distância entre a provisão de serviços e a existência de programas de ensino bem es-truturados.42

Em muitos desses locais, houve um “processo de aproximação”, que ilustra como tem se dado a migração da psiquia-tria dos asilos para o hospital geral. A di-nâmica dessa aproximação iniciou -se com a provisão de interconsultas, geralmente conduzidas por alguns profissionais mais entusiasmados com esse tipo de trabalho. Seguiu -se, então, o estabelecimento de ou-tras modalidades de serviço: alguns leitos psiquiátricos provisoriamente instalados em uma enfermaria geral, depois uma unidade de internação, um ambulatório integrado, apoio ao pronto -socorro, entre outras ino-vações. Com o tempo, os serviços de inter-consulta e de ligação foram amadurecendo, podendo oferecer assistência de bom nível, ensino e pesquisa.43

A partir da década de 1980, houve um crescimento significativo no campo da inter-consulta no Brasil.44 Em 1984, Isaac Luchi-na veio pela primeira vez ao País – voltando várias vezes depois – para participar, na Es-cola Paulista de Medicina, de um simpósio sobre aspectos psicológicos da tarefa médi-ca, junto com Julio de Mello Filho (UERJ), Roosevelt Cassorla (Unicamp) e Ricardo Gorayeb (FMRP -USP). Em consequência, as primeiras teses acadêmicas na área foram defendidas,12,13,45 e, então, livros pioneiros foram publicados.34,46-51

É importante enfatizar, porém, que o desenvolvimento da interconsulta que pode ser inferido a partir dessas publicações, de eventos científicos e de serviços universitá-rios está longe de refletir a realidade da psi-quiatria em hospitais gerais brasileiros. Na prática, o trabalho como interconsultor em um hospital geral que não esteja vinculado ao ensino se dá mais pelo entusiasmo e pela abnegação de alguns poucos psiquiatras.

Outros dados importantes encontrados em um levantamento que realizamos junto

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a psiquiatras formados pela Unicamp e pela PUCRS foram que “ganhos financeiros” es-tão em último lugar dentre as motivações de interconsultores, e “baixa remuneração” está entre as principais dificuldades por eles citadas. “Honorários insuficientes” foi outra das razões mais citadas entre os entrevista-dos que, já tendo trabalhado em intercon-sulta, haviam desistido de fazê -lo. Não pre-vista pelo SUS, nem por vários convênios, a interconsulta é desconsiderada e obriga -nos a oferecer “amostras grátis” de nosso traba-lho, na aposta de que sejam percebidas as vantagens de sua utilização.52

Pesquisas e futuro

As pesquisas na área de interconsulta po-dem ser distribuídas, segundo o foco, em três categorias ou gerações de trabalhos.53 A primeira geração de estudos ocupou -se da descrição de serviços (processo de implan-tação, perfil epidemiológico da clientela e das clínicas que solicitam interconsulta, prevalência de transtornos psiquiátricos e de estressores psicossociais em unidades do hospital ou em grupos homogêneos de pacientes). Nessa categoria, encontra -se a grande maioria das teses e de artigos publi-cados no Brasil nas décadas de 1980 e 1990. Tais estudos são importantes, tendo em vis-ta o planejamento das ações e a necessidade de recursos humanos.

A segunda geração de pesquisas con-templa estudos baseados na orientação da tomada de decisão (manejo clínico, efici-ência do ensino, etc.). Incluem -se aqui os estudos que se ocuparam das comorbidades e das motivações para solicitações de inter-consulta psiquiátrica. Em um editorial, cuja leitura recomendamos, Kornfeld54 destaca alguns dos principais estudos realizados por interconsultores psiquiátricos nas áreas de delirium, cardiologia, oncologia e bioética que foram fundamentais para o aprimora-mento da prática médica geral.

A terceira geração de trabalhos cien-tíficos compõe -se de estudos direcionados aos resultados e à relação custo/benefício da interconsulta. A pressão para a realiza-ção de estudos desse tipo aumentou na era do gerenciamento financeiro dos gastos em saúde. Os estudos, no entanto, não foram capazes de demonstrar que a interconsulta pode reduzir custos hospitalares.55,56 Toda-via, ainda que seja difícil avaliar sua efetivi-dade, a interconsulta melhora a qualidade da assistência dispensada ao paciente.

Mais recentemente, tem sido avaliada a qualidade do serviço prestado como um todo, e não apenas aspectos relacionados ao custo financeiro. Há, porém, várias dificul-dades para definir e mensurar critérios de qualidade de serviço que sejam viáveis do ponto de vista operacional.57 Em síntese, inúmeros problemas metodológicos têm li-mitado a importância dos achados relacio-nados à efetividade da interconsulta (Qua-dro 1.2).

Em termos de perspectivas para o fu-turo, o psiquiatra de consultoria e ligação tem diversas tarefas, com evidente ligação ao aprimoramento dos estudos científicos, à melhoria das estratégias de intervenção e à extensão de seu campo de ação à atenção primária além dos limites do hospital geral (Quadro 1.3).

Os riscos da integração

Ao instalar -se no hospital geral, o psiquia-tra, renovado em sua identidade, está muito mais próximo das ciências biológicas, mas traz em sua formação as contribuições da psicanálise, da psicologia social e de outras abordagens psicológicas. A introdução de práticas de saúde mental no hospital geral pode ocasionar uma relação tão frutífera quanto tensa, em que modelos assistenciais podem ser enriquecidos, mas também entrar em conflito, competindo pela hegemonia teórica e prática das ações de saúde.58,59

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Alguns questionam se é possível a inte-gração da psiquiatria à medicina geral sem que as áreas percam sua identidade. A esse respeito, é muito ilustrativa a observação irônica de Zaidhaft a respeito de uma inter-consulta que supervisionara:

Aqui, importa discutir a inusitada expres-são “apresentou perda do pai” (utilizada pelo médico residente), que chega a ferir nossos ouvidos. “Apresentar” é usado em medicina referindo -se aos sinais e aos sintomas que o paciente “oferece à vista, mostra, exibe”, por exemplo, escleróticas amarelecidas, fezes endurecidas, urina cor de Coca -cola, assim por diante. [...] O que temos aqui? Temos a utilização, por um profissional “psi”, do discurso médico para descrever acontecimentos da vida e para compreender sentimentos. [...] No entanto, não posso deixar de achar estra-nha essa possibilidade. Já pensaram? Al-gum dia será comum dizer, por exemplo, que o paciente apresenta um complexo

de Édipo ++/++++ (duas cruzes em quatro, para quem não conhece o jar-gão), ou, para um paciente moribundo, pulsão de morte ++++/++++, ou, ainda, que determinado paciente tem uma lesão da autoestima. Parece, então, que além do impacto da saúde mental nos médicos [...], há também o impacto da formação médica nos profissionais da saúde mental, qual seja, uma abolição da escuta em favor do olhar médico. Será que isso nos torna mais “científicos”? Ou será que da normatização que tal escolha acarreta resultará um empobrecimento enorme em nosso esforço de aproxima-ção do outro?60

Ao entrar no hospital geral, o psiquia-tra corre o risco de, para ser aceito pela co-munidade do hospital, ter que se moldar ao modelo médico tradicional, entendendo -se este como um modelo fortemente calcado na objetividade científica e no positivismo. Tal crítica é útil, pois mostra como certos

qUADRO 1.2Problemas metodológicos em estudos de avaliação da efetividade da interconsulta

n Razões institucionais e sociais interferem tanto na decisão de internação quanto no tempo de permanência.

n Em vários estudos, faltam variáveis de controle sobre a gravidade da doença e o número de diagnósticos concomitantes.

n Estudos se ocupam apenas da fase de internação, esquecendo ‑se da adesão ao segui‑mento, da reabilitação e das reinternações.

n Internações tendem a ser por doenças agudas e graves. Isso, aliado a pressões para alta precoce, leva a um “nivelamento por baixo” quando se mede desfecho.

n Alguns estudos focalizam somente os pacientes atendidos pela interconsulta, em geral mais complexos, com problemas mentais mais graves.

n Não há controle sobre o tempo decorrido entre internação e solicitação da interconsulta.n Dificuldades na definição, na alocação e na avaliação de casos ‑controle.n Problemas éticos impedem certos delineamentos de pesquisa.n Não se sabe até que ponto as recomendações da interconsulta são seguidas.n Estudos deveriam ser prospectivos, com controle para variáveis confundidoras e com

número suficiente de participantes.n Necessidade de novas medidas de desfecho: identificação precoce de problemas men‑

tais, exames caros e desnecessários, satisfação de pacientes, familiares e membros da equipe assistencial, persistência de disfunções, adesão ao tratamento, retorno ao tra‑balho e reinternações.

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desenvolvimentos na história da assistência psiquátrica, aceitos de forma geral como progressistas e modernizadores, têm dimen-sões políticas e ideológicas complexas,61 que devem também ser consideradas em nossos esforços de registrar e apontar tendências na psiquiatria de hospital geral.

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qUADRO 1.3Tarefas futuras para a psiquiatria de consultoria e ligação

n Estabelecer ação pró ‑ativa, com participação mais intensa na vida hospitalar.n Ter atuação precoce e local em unidades específicas.n Participar de discussões envolvendo aspectos éticos relacionados ao emprego de novas

tecnologias.n Estender cuidados além do período de internação.n Expadir a atenção primária e os programas de saúde da família.n Redefinir o papel estratégico de internações em uma UPHG.n Instituir formação extensiva a outros profissionais de saúde.n Desenvolver estudos científicos que documentem a eficácia e a validade das ações.n Obter recursos para financiar essas ações.

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