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PSICOLOGIA, EDUCAÇÃO E SAÚDE: TEMAS CONTEMPORÂNEOS

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  • PSICOLOGIA, EDUCAO E SADE:TEMAS CONTEMPORNEOS

  • Centro Universitrio La Salle - UnilasalleReitor: Paulo Fossatti

    Vice-Reitor: Cledes Antonio CasagrandePr-Reitora Acadmica: Vera Lcia Ramirez

    Pr-Reitor de Desenvolvimento: Luiz Carlos Danesi

    Editora Unilasalle

    Conselho Editorial: Csar Fernando Meurer, Cristina Vargas Cademartori, Evaldo Luis Pauly, Rafael Kunst, Tamra Ceclia

    Karawejszyk, Vera Lcia Ramirez, Zil Bernd, Ricardo Figueiredo Neujahr (Secretrio).

    Produo: Editora UnilasallePreparao dos originais: Prisla Calvetti e Denise Quaresma

    Capa: Fernanda B. Guimares e Ricardo F. NeujahrProjeto grfico: Fernanda B. Guimares e Ricardo F. Neujahr

    Diagramao: Fernanda B. Guimares e Ricardo F. Neujahr

    Prisla cker Calvetti

    Denise Quaresma da Silva

    (Organizadoras)

    Editora Unilasalle

    Av. Victor Barreto, 2288 | Centro | Canoas | RS | [email protected]

    51 3476.8603 / 3476.8626

    mailto:editora%40unilasalle.edu.br?subject=Editora%20Universit%C3%A1ria
  • Prisla cker Calvetti

    Denise Quaresma da SilvaOrganizadoras

    PSICOLOGIA, EDUCAO E SADE:TEMAS CONTEMPORNEOS

    Canoas, 2014

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    Sumrio

    Apresentao / 7

    Parte I Interfases do desenvolvimento humano

    Fatores de risco e de proteo ao desenvolvimento infantil / 13Andrea Rapoport, Sabrina Boeira da Silva

    A pele e o toque no desenvolvimento humano: da preveno em sade aos aspectos biopsicossociais implicados no adoecimento / 27

    Prisla cker Calvetti

    Gnero, psicologia e educao: notas sobre a subjetivao/construo da sexualidade normal/anormal / 41

    Denise Quaresma da Silva

    Parte II Das teorias s prticas

    Reproduo assistida: revelar ou no revelar aos filhos? / 57Gisleine Verlang Loureno, Daniela Knauth, Jos Roberto Goldim, Luiz Eduardo T. Albuquerque, Ana Rosa Detlio Monaco, Maria Lucia Tiellet Nunes, Eduardo Pandolfi Passos

    Violncia na infncia: um olhar a partir da prtica clnica / 69Lcia Belina Rech Godinho

    Uso de drogas na contemporaneidade: perspectivas de compreenso e prticas de interveno / 87

    Luciane Raupp

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    Parte III Olhares contemporneos

    Contribuies de Freud psicoterapia / 103Julio Cesar Walz

    Donald Winnicott: para pensar sade e educao / 117Cleber Gibbon Ratto

    Autores / 139

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    Apresentao

    O sc. XXI estava prestes a engatar e j se encontrava delineado certo sen-timento de que a psicologia repensava os processos humanos na contemporanei-dade. Nessa assertiva, profissionais da Psicologia apresentam nesta obra questes pertinentes a este repensar e lanam mltiplos olhares sobre a interlocuo com a sade e a educao, dialogando desde as interfaces do desenvolvimento huma-no s teorias e prticas, culminando esta proposta acadmica com a exposio de alguns olhares contemporneos.

    Ao elencarmos as interfaces do desenvolvimento humano como ponto de partida deste livro, propomos o entendimento da infncia apresentando sub-sdios par a compreenso dos fatores de risco e de proteo no desenvolvimento infantil, bem como na preveno em sade e os aspectos biopsicossociais impli-cados no adoecimento do beb humano, reiterando a importncia do toque na pele para seu desenvolvimento sadio. Sabemos que essa no uma equao sim-ples para predizer resultados, ou seja, considerando-se vrios aspectos podemos falar em probabilidades e que as influncias sobre o desenvolvimento provm tanto da hereditariedade quanto do ambiente. Neste sentido, assinalamos que a escolarizao tem papel fundamental na vida de uma criana, no apenas por todo potencial que a educao ter na sua vida, mas tambm porque na escola muitas crianas em situao de vulnerabilidade social, desestruturao familiar, pobreza e maus-tratos esto em contato com profissionais que podem intervir em seu desenvolvimento servindo como fatores de proteo e que, muitas vezes, so capazes de redirecionar os caminhos destas crianas.

    A educao tambm ponto de reflexo na continuidade, quando pro-pomos olhares sobre a interlocuo entre Gnero, Psicologia e Educao: notas sobre a subjetivao/construo da sexualidade normal/ anormal. Cada pessoa fala a partir de um lugar que expressa o cruzamento de caractersticas especficas de gnero, raa/etnia, classe social, religio, orientao sexual, localizao, ge-rao etc. Referindo-se ao gnero, essas caractersticas remetem s construes sobre o papel de homem e de mulher em nossa sociedade que se relacionam com determinadas normas, regras e papis sociais.

    A Psicologia, enquanto campo de pesquisa, formao e atuao relacio-nada ao ser humano tem muito a contribuir no que se refere desconstruo das

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    desigualdades sociais e de gnero. Para tanto, esse estudo tem que ser efetivado em um terreno transversal, pois estudar gnero no mbito da Psicologia perpas-sa o entendimento de que categorias transversais de gnero, raa/etnia, classe social, orientao sexual e gerao se cruzam construindo sujeitos com certas especificidades que precisam ser observadas.

    Os estudos de gnero tm confirmado que existem padres ou ideais de masculinidades e feminidades hegemnicas e que esses padres que se instituem como normas e expectativas so, de maneira acentuada, os mais valorizados e aceitos socialmente, sendo os demais comportamentos considerados anormais.

    Na continuidade, seguimos indagando questes pertinentes a contem-poraneidade ao problematizar: reproduo assistida: revelar ou no revelar aos filhos? Apontamos que estima-se que a cada ano 3.5 milhes de crianas nascem atravs de processos de reproduo assistida, o que torna a temtica relevante e atual. Mergulhando nas famlias atuais, propomos para alm da problemtica sugerida que possamos pensar nas violncias vivenciadas na infncia. A expe-rincia clnica leva o profissional a se deparar com realidades que vo de um extremo a outro completamente oposto quando se trata da educao de crianas e justamente nestes extremos que dialogamos sobre as violncias praticadas, se-jam fsicas, psicolgicas, negligncias, violncia sexual, Sndrome de Mnchau-sen por procurao ou Sndrome do beb sacudido. Propomos entendimentos e discusses sobre seus efeitos na e para a infncia.

    Todas estas problemticas relevantes nos levam a pensar no mal estar social vigente e por isso, nossas reflexes dirigem-se ao uso de drogas na contem-poraneidade, discutindo perspectivas de compreenso e prticas de interveno, pensando sobre a questo do uso de substncias psicoativas na atualidade sob uma perspectiva histrico social, destacando a forma de compreenso das Cin-cias Humanas e Sociais acerca da relao dos seres humanos com as drogas, as-sim como as transformaes nas prticas de uso e prejuzos a elas associados. Em um segundo momento, articula-se essa perspectiva com as modalidades de compreenso e interveno sobre os problemas decorrentes do abuso de drogas, destacando as concepes que orientam as polticas pblicas que regulam o setor.

    Finalizamos nossa tarefa acadmica entregando para os/as leitores/as subsdios tericos advindos de Donald Winnicott para pensar sade e educao e da teoria freudiana, com as contribuies de Freud psicoterapia, onde pos-

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    tula-se que a psicoterapia foi um passo importante na histria da humanidade. Formula o autor: trata-se de uma chance real de podermos nos tornar mais hu-manos, sem dvida nenhuma, pois a neurose o oposto disso, ela uma obtura-o completa da capacidade de aprender com a experincia da vida como ela .

    Tomamos emprestadas essas palavras para sintetizar nosso pensamento ao finalizarmos esta apresentao: falar, discutir, aproximar a Psicologia da Sa-de e da Educao, trata-se de uma chance muito importante de tornarmos a vida mais humana, mais saudvel e com muito mais potncia de vida.

    As Organizadoras

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    Parte I Interfases do Desenvolvimento Humano

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    Captulo 1

    FATORES DE RISCO E DE PROTEO AO DESENVOLVIMENTO INFANTIL

    Andrea Rapoport

    Sabrina Boeira da Silva

    Ao se abordar o tema sobre fatores de risco e de proteo ao desenvolvi-mento infantil torna-se importante explicar que esta no uma equao simples para predizer resultados, ou seja, considerando-se vrios aspectos podemos fa-lar em probabilidades. Segundo Papalia, Olds e Feldman (2006) durante muito tempo se discutiu o que influenciaria o desenvolvimento humano, se os aspectos do ambiente, a maturao ou os fatores hereditrios. Embora tenham existido explicaes ambientalistas que sugeriam que as pessoas seriam resultado de suas experincias ou as inatistas que explicavam as caractersticas de uma pessoa a partir da hereditariedade, hoje praticamente consenso que estes no podem ser separados embora ainda se discuta o peso que cada um tem. Dessa forma, as influncias sobre o desenvolvimento provm tanto da hereditariedade quanto do ambiente.

    Buscando-se prevenir e tambm reduzir riscos, assim como intervir de forma adequada nos casos de crianas j afetadas por fatores que possam preju-dicar o seu desenvolvimento torna-se importante o conhecimento de quais so os fatores que podem afet-las negativamente e quais, de forma contrria, podem servir de proteo. Este conhecimento no deve restringir-se aos profissionais da rea da sade, mas deve ser realizado um trabalho de formao constante com aqueles que em seu cotidiano trabalham com as crianas que esto frequentando as escolas, embora saibamos que muitas ainda esto fora delas.

    A escolarizao tem papel fundamental na vida de uma criana, no ape-nas por todo potencial que a educao ter na sua vida, mas tambm porque na escola muitas crianas em situao de vulnerabilidade social, desestruturao

    Currculo Lattes

    http://lattes.cnpq.br/0900474597349858http://lattes.cnpq.br/0900474597349858
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    familiar, pobreza e maus-tratos esto em contato com profissionais que podem intervir em seu desenvolvimento servindo como fatores de proteo e que, mui-tas vezes, so capazes de redirecionar os caminhos destas crianas.

    Vulnerabilidade social

    O termo vulnerabilidade social tem recebido diversas definies, assim como tem sido empregadas outras denominaes para o mesmo tema, como famlias em situao de risco, famlias pobres, famlias de baixa renda, famlias de camadas populares entre outros para denotar o mesmo sentido (Prati, Couto e Koller, 2009). O estudo desses termos apontou para um nico foco: trata-se de famlias que se apresentam vulnerveis por estarem fragilizadas e suscetveis a fatores de risco. A vulnerabilidade social pode ser identificada em uma nica fa-mlia ou em uma comunidade inteira, o que mais comum e definida por Prati e colaboradores (2009, p. 404) da seguinte forma:

    Vulnerabilidade social uma denominao usada para caracterizar fam-lias expostas a fatores de risco, sejam de natureza pessoal, social ou ambiental, que coadjuvam ou incrementam a probabilidade de seus membros virem a pade-cer de perturbaes psicolgicas.

    A pobreza extrema seguidamente acompanha a vulnerabilidade, no en-tanto no o que a define. Vulnerabilidade caracteriza-se tambm pela impossi-bilidade de modificar a condio atual em que se encontra (Kaztman apud Silva, 2007). Geralmente estas pessoas ou grupos sobrevivem em condies precrias no que se refere alimentao, higiene, educao e sade, sem acesso a melhores oportunidades de emprego.

    Fatores de risco ao desenvolvimento infantil

    O impacto no desenvolvimento das experincias vivenciadas pelas crian-as, em situao de vulnerabilidade social ou no, ser influenciado pelo que chamamos de fatores de risco e de proteo.

    Fatores de risco so todas as adversidades que podem interferir no desen-volvimento humano, seja na infncia, na adolescncia ou qualquer outra fase da vida (Sapienza & Pedromnico, 2005). A possibilidade de danos agravada pelo o que Sapienza e Pedremnico chamaram de riscos cumulativos e tambm da

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    associao de vrios fatores de risco. Coll et al., 2004) referem uma diversidade de fatores que incluem fatores da criana, do microssistema familiar, do micros-sistema de iguais, da escola, a conexo entre estes sistemas e por fim fatores do macrossistema. Ou seja, esta criana que tem suas prprias caractersticas como sexo, idade, tipo de temperamento, ausncia presena de problemas evolutivos est inserida em uma famlia que tambm tem sua forma de funcionamento e especificidades, a criana est numa escola ou no, tem um determinado tipo de relaes com outras crianas e est inserida num contexto socioeconmico e cul-tural. Esta gama de fatores tem polos positivos (fatores de proteo) e negativos (fatores de risco).

    Grande parte dos fatores de risco encontra-se no prprio lar da criana e na comunidade em que esta habita. Alguns destes so identificados como po-breza extrema, violncia fsica e/ou psicolgica, desestruturao familiar, vul-nerabilidade social, maus-tratos, negligncia (Amparo et al., 2008), assim como criminalidade, drogas ilcitas, lcool, desemprego e baixa escolaridade (Siqueira & Dellaglio, 2010).

    Algumas situaes vivenciadas no prprio lar da criana caracterizam-se como fatores de risco comuns em comunidades em situao de vulnerabilidade social, por exemplo, os maus-tratos fsicos e/ou psicolgicos. Segundo Sapienza e Pedromnico (2005, p. 210) aquelas crianas com dificuldades socioeconmi-cas cujas mes sejam tambm jovens, solteiras e pobres ou que tenham vindo de famlias desorganizadas, ou ainda crianas que tenham pais com desordens afe-tivas [...] so vulnerveis a eventos estressores. Entre as modalidades de maus-tratos, as que apresentam maior ocorrncia nas comunidades vulnerveis so o abuso fsico, o abuso sexual, a negligncia e a violncia psicolgica.

    O abuso fsico envolve maus-tratos corporais e est presente principal-mente no ambiente familiar ou em seu entorno, sendo geralmente praticado por pessoas que possuem laos afetivos ou sanguneos. Utilizando castigos fsicos, coercivos e prticas violentas para a educao dos filhos, pais/responsveis que apresentam um modelo familiar com relaes agressivas, adotam o discurso de estarem educando, porm no percebem que a violncia por eles praticada contra seus filhos poder causar srios danos ao desenvolvimento desta criana (Ferreira & Marturano, 2002).

    Em estudo realizado com professoras que possuam em sua sala de aula crianas vtimas de abuso fsico e violncia familiar, verificou-se que o desempe-

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    nho escolar dessas crianas inferior ao dos outros alunos, assim como foram observados comportamentos agressivos e indisciplina (Pereira e Williams, 2008). Esses problemas de comportamento causados pelo abuso fsico trazem danos ao desenvolvimento psicolgico tambm em outras fases da vida, pois o compor-tamento da criana com caractersticas antissociais que repercute nas relaes na escola e no desempenho possivelmente conduzir o jovem a um grupo de amigos de risco e a uma posterior delinquncia (Bee, 1997). Dessa forma, muitas vezes, a famlia, que deveria ser a primeira a proteger de agresses e situaes de conflito e violncia, acaba sendo a responsvel por uma futura delinquncia que poder decorrer da vivncia e da violncia sofrida quando criana.

    Segundo Maia e Williams (2005) a negligncia refere-se ao fato de privar a criana de algo que ela necessita, quando isto fundamental para um desen-volvimento sadio. Por exemplo, alimentao, vesturio, segurana, estudo, afeto, etc. Esta pode ser decorrncia de fatores que fogem vontade da famlia, mas que se relacionam a falhas do Estado em lhes prover condies que so direito como cidados. Por outro lado, podem estar diretamente ligadas a falhas na atuao da famlia como cuidadora e protetora da criana, responsvel por seu desenvolvi-mento fsico, emocional, cognitivo e social (Brgamo & Faleiros, 2010).

    A violncia psicolgica refere-se tanto s ameaas e humilhaes como tambm privao emocional. O Conselho Americano de Pediatria (Maia & Williams, 2005, p. 94) elenca prejuzos em vrias reas decorrentes deste tipo de violncia:

    Pensamentos intrapessoais (medo, baixa autoestima, sintomas de ansiedade, depresso, pensamentos suicidas, etc.), sade emocional (instabilidade emocional, problemas em controlar impulso e raiva, transtorno alimentar e abuso de substncias), habilidades sociais (comportamento antissocial, problemas de apego, baixa simpatia e empatia pelos outros, delinquncia e criminalidade), aprendizado (baixa realizao acadmica, prejuzo moral), e sade fsica (queixa somtica, falha no desenvolvimento, alta mortalidade).

    J o abuso sexual, uma das modalidades que implica mais seriamente no desenvolvimento da criana, refere-se ao fato de um ou mais adultos buscarem prazer sexual utilizando a criana. H uma relao de poder da pessoa agresso-ra, geralmente mais velha, de quem a vtima depende intelectual, emocional ou economicamente. De acordo com Williams (apud Meira & Williams, 2005, p. 95) a criana vtima de abuso sexual pode manifestar comportamento sexualizado, ansiedade, depresso, queixas somticas, agresso, regresso no seu desenvolvi-

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    mento, autoagresso, problemas na escola, entre outras manifestaes a curto prazo. Os prejuzos no so apenas a curto prazo, a longo prazo podem ocorrer depresso, ansiedade, prostituio, problemas de relacionamento sexual, pro-miscuidade, abuso de substncias, ideao suicida entre outros.

    Por outro lado, algumas vezes a criana vitimizada pode apresentar ma-nifestaes minimamente perceptveis (Inoue & Ristum, 2008). De acordo com Inoue e Ristu (2008), estudos demonstram que a escola tem papel significativo para a descoberta de casos de abuso infantil, j que l que a criana passa boa parte do dia. As professoras so mencionadas como quem mais identifica a vio-lncia sexual, seja atravs da verbalizao das crianas ou comportamentos que indiquem o abuso, e por isso seria importante oferecer a estas uma formao para que a abordagem e encaminhamento sejam feitos de forma correta e no prejudiquem ainda mais a criana.

    V-se a importncia de abordar tambm a questo do trabalho infantil como fator de risco, pois esta realidade est fortemente presente no cotidiano das comunidades que apresentam situao de vulnerabilidade social. Gomes (1998) trata o trabalho infantil como um adoecimento da famlia e no s da criana, referindo que no se pode querer culpar somente os pais pela situao, j que estes so tambm vtimas muitas vezes de um sistema que os deixa sem opo ou sem conhecimento dos danos que esto causando ao desenvolvimento dos filhos, j que esta prtica pode ser vista como natural por estes pais.

    Muitas vezes pobreza extrema faz com que o grupo familiar se mobilize, todos em prol da sobrevivncia, para prover o seu sustento (Gomes, 1998). No entanto, existe ainda a explorao do trabalho infantil, que se diferencia pelo carter nocivo sade fsica e psicolgica da criana e do adolescente, e tambm por estar relacionado ao benefcio de um sobre o outro, no caso da explorao do trabalho infantil, do adulto sobre a criana, no intuito de obter vantagem ou lucro. Diferindo do trabalho em prol do ncleo familiar, a explorao pode estar explcita em casos onde pais que no trabalham exploram seus filhos para que estes promovam o sustento do lar (Gomes, 1998). A explorao do trabalho in-fantil, segundo escolarizao regular, to imprescindvel preparao deles para a cidadania plena.

    Uma das srias consequncias trazidas pelo trabalho infantil , ento, a evaso escolar, pois a criana abandona a escola para dedicar-se somente ati-vidade remunerada. Para contrapor essa necessidade, os programas que buscam

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    erradicar o trabalho infantil e incentivar a frequncia escolar so de fundamental importncia. Entretanto, Kassouf (2007) analisa que os programas governamen-tais de auxlio financeiro para que as crianas frequentem a escola no inibem o trabalho das crianas, pois no garantem que no turno inverso escola estas crianas deixaro de trabalhar.

    Fatores de proteo ao desenvolvimento infantil

    Ao pensar em casos de crianas que passaram por maus-tratos e vivem em situao de vulnerabilidade social nem todas so igualmente afetadas por estas situaes. Como uma possvel resposta a esse questionamento se apresen-tam os fatores de proteo, que se caracterizam das mais diversas formas, contri-buindo para o desenvolvimento e para a reduo dos traumas sofridos. Segundo Branden (apud Amparo et al., 2008, p. 167) se dividem em trs categorias:

    (1) Fatores individuais, tais como autoestima positiva, autocontro-le, autonomia, caractersticas de temperamento afetuoso e flexvel; (2) fatores familiares, como coeso, estabilidade, respeito mtuo, apoio/suporte; (3) e, fatores relacionados ao apoio do meio ambien-te, como bom relacionamento com amigos, professores ou pessoas significativas que assumam papel de referncia segura criana e a faa sentir querida e amada.

    De acordo com o autor, esto envolvidos nos fatores de proteo carac-tersticas pessoais, influenciadores familiares e sociais. A criana poder buscar no somente em si, mas principalmente na famlia e na escola apoio para de-senvolver-se adequadamente. Os fatores de proteo pessoais esto diretamente relacionados forma como se d o desenvolvimento da criana. Por exemplo, quando ela desenvolve relaes seguras de apego com os pais ou cuidadores, principalmente no primeiro ano de vida, estar mais fortalecida para enfrentar as adversidades, tornando a criana menos suscetvel a danos decorrentes do meio social (Bee, 1997). Segundo Sapienza e Pedromnico (2005) o bom rela-cionamento dos pais com os filhos pode ser considerado importante fator de proteo, talvez o mais relevante, pois influenciar diretamente a criana.

    Por constituir-se em um importante fator de proteo para a criana, de-rivado das relaes familiares, mas que depois se transforma numa caracterstica que acompanhar o indivduo pelo resto de sua vida, entendemos ser importante explicar sobre a teoria do apego.

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    Bowlby (1989) ao abordar a teoria do apego refere a importncia dos primeiros trs anos de vida, mas em especial do primeiro, para o desenvolvi-mento de uma pessoa segura, tendo um desenvolvimento emocional saudvel e estando mais apta para enfrentar as adversidades da vida. Para o autor, o beb e a criana pequena precisam contar com cuidados adequados, que respondam s suas necessidades afetivas, de proteo, assim como as necessidades bsicas, transmitindo-lhes que tm com quem contar quando necessitam e que o mundo bom e confivel.

    O autor descreveu em sua obra trs tipos de apego e relacionou-os s con-dies familiares vivenciadas pela criana. Segundo Bowlby (1989) os tipos de apego so: apego seguro e inseguro ansioso ou inseguro com evitao. No apego seguro, a criana tem confiana de que os pais estaro disponveis, oferecendo ajuda em caso de situao adversa ou amedrontadora. promovido por um dos pais, especialmente a me, que nos primeiros anos se mostra disponvel, sensvel aos sinais da criana e com respostas amveis quando esta busca conforto e/ou proteo. O apego inseguro e ansioso caracteriza-se pela incerteza da criana na disponibilidade dos pais para ajud-la caso necessite. Devido a isto, ela tende a ficar grudada, demonstrar ansiedade de separao e dificuldade de explorar o mundo. promovido por pais que se mostram instavelmente disponveis e pres-tativos, por separaes e ameaas de abandono usadas como forma de controle. J o apego inseguro com evitao ocorre quando a criana no tem nenhuma confiana de que se procurar ajuda e cuidado ir receb-lo, esperando ser rejeita-da. Este modelo promovido por uma me que rejeita constantemente a criana, sempre que ela a busca para conforto e proteo. Por fim, o apego desorganizado, descrito posteriormente por Main e colegas foi observado em crianas que sofre-ram abuso fsico ou foram completamente negligenciadas pelos pais.

    Resilincia

    Mesmo passando por situaes mltiplas de adversidades algumas pes-soas permanecem resistentes e so pouco afetadas de forma negativa em seu desenvolvimento. Esse tipo de fenmeno passou a ser estudado, uma vez que desperta, no mnimo, estranheza o fato de alguns indivduos serem capazes de superar os traumas e outros no. A resilincia configura-se pela capacidade que um indivduo ou um grupo possui de se recuperar psicologicamente aps viven-ciar situaes extremas (Amparo et al., 2008). Segundo Sapienza e Pedromnico

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    (2005) a resilincia configura-se como um fator de proteo para a adaptao do indivduo s demandas cotidianas, estando relacionada autoestima e ao auto-conceito de cada um, pois depender da forma como este recebe e interpreta as situaes de risco. O indivduo resiliente passa por situaes adversas, porm com perspectivas otimistas, apresentando estratgias de enfrentamento eficazes que os tornam capazes de superar e progredir apesar dos obstculos que lhes so postos.

    Silva, Elsen e Lacharit (2003) citam uma pesquisa longitudinal realizada por Werner (1995) em que foram acompanhadas durante trinta e dois anos 698 crianas nascidas na ilha de Kauai-Hawaii. Os resultados desta pesquisa mostra-ram que as crianas que se desenvolveram adequadamente contaram com fatores de proteo como laos afetivos positivos dentro da famlia com pelo menos um cuidador, especialmente durante o primeiro ano de vida e encontraram suporte emocional fora de casa, geralmente de um professor na escola, de amigos ou outra pessoa que as apoiavam, principalmente nos perodos de maior estresse. A pesquisa confirma a importncia dos laos familiares e redes de apoio, sejam elas na escola, amigos ou qualquer outra pessoa ou instituio que acolha esta criana em momentos de conflito. Est explicitado ainda que o apego desenvolvido no primeiro ano de vida torna o indivduo mais confiante e seguro, capaz de enfren-tar situaes adversas e desenvolver resilincia.

    O estudo sobre resilincia traz ainda questes relativas s possibilidades de reverso do quadro social em que o resiliente est inserido, pois nega o con-ceito de que uma criana que se desenvolve em uma comunidade vulnervel, em uma famlia desestruturada ou passa por qualquer outra adversidade estar destinada a viver tal como foi criada e reproduzir a violncia que sofreu (Silva, Elsen, & Lacharit, 2003). Entretanto, no se pode desprezar o fato da pobreza extrema ser identificada como um fator de risco capaz de reduzir a possibilidade de a criana ser resiliente, pois acarreta diversos outros fatores adversos j am-plamente citados acima.

    A famlia, a escola e a criana em situao de vulnerabilidade social

    Sabe-se que grande parte das escolas, onde existem as queixas em relao ao desempenho dos alunos, encontram-se situadas em comunidades carentes e vulnerveis e, segundo Ferreira e Marturano (2002), neste contexto as crianas tendem a apresentar mais problemas de desempenho escolar e de comportamen-

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    to. Talvez, devido ao fato de muitos dos pais ou responsveis por essas crianas apresentarem baixa escolaridade e no reconhecerem na escola uma oportuni-dade de ascenso social (Pereira, Santos, & Williams, 2009). Em um estudo rea-lizado foi constatado que mes com mais anos de estudo se envolvem mais com a escolaridade de seus filhos, e que esse maior envolvimento est associado a um melhor desempenho da criana (Stevenson & Backer, apud Davila-bacarji, Marturano & Elias, 2005).

    O incentivo dos pais e a importncia que estes direcionam escola so fatores que contribuiro para o comprometimento da criana com a educao de forma que pais que acompanham seus filhos, que se preocupam com seu desem-penho e disponibilizam algum tempo para verificar as atividades da escola junto com as crianas aumentam as chances de seus filhos obterem um bom desempe-nho (Marturano, apud Davila-bacarji, Marturano, & Elias, 2005). O bom relacio-namento com os pais ou cuidadores tambm pode ser um fator importante no interesse e na preocupao da criana em realizar as tarefas da escola, observam Davila-Bacarji, Marturano e Elias (2005).

    Existem ainda outros fatores que dependem da famlia e que podero in-fluenciar no desempenho escolar das crianas. Crianas cujos pais no possuem hbitos de leitura, no costumam ler ou contar histrias a seus filhos, podem influenciar seu interesse. O fato de muitas crianas estarem distantes de formas de estimulao intelectual, que poderiam lhes despertar interesse e curiosidade, pode acarretar altas taxas de problemas e de fracasso escolar, principalmente em bairros pobres (Bee, 1997).

    Na vida de uma criana a escola desempenha funes imprescindveis. Neste ambiente sero proporcionadas vivncias que faro parte do desenvolvi-mento e contribuiro para a aprendizagem, podendo significar ainda local de proteo, onde a criana se sentir acolhida. Os laos formados com professores e colegas serviro para que a criana sinta-se inserida em um grupo onde ela po-der aprender a reelaborar seus sentimentos de medo, agressividade, frustrao, bem como seus colegas e professores (Sampaio, 2004).

    Acredita-se que, principalmente em comunidades vulnerveis, a escola assume funes que vo alm do ensino. A carncia afetiva e social das crianas obriga o corpo docente a oferecer mais do que a legislao delega escola (Sam-paio, 2004). Segundo a autora, a escola acaba assumindo funes que antes eram ocupadas pela famlia, mas que com a desestruturao que nos dias de hoje

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    quase comum maioria dos alunos, recaem sobre a instituio escolar.

    necessrio considerar ainda a qualidade do trabalho e o comprometimento investido na escola por aqueles que a compe. Sabe-se que o modo como o ensino conduzido, a estrutura da escola, a metodologia usada pelo professor e o investimento destes em relao aos alunos sero fatores determinantes na aprendizagem das crianas que l estudam. Mais do que recursos financeiros e boa estrutura, para a escola funcionar bem so necessrios tambm profissionais motivados, preocupados com a formao de seus alunos. Dessa forma, quando o foco do ensino a qualidade que se oferece ao aluno, mesmo com poucos recursos torna-se possvel a escola proporcionar um ambiente favorvel ao de-senvolvimento e aprendizagem.

    Quando a escola encontra-se situada em um bairro onde a vulnerabi-lidade social faz parte da vida das famlias, o professor tem pela frente ainda mais um desafio que se caracteriza pelas dificuldades em lecionar em uma classe que une especificidades em um nico ncleo. Nessas comunidades podem ser encontrados em uma mesma sala de aula alunos que passaram por experincias extremas, muitos deles com privaes e dficits que se colocam como empeci-lhos ao desenvolvimento e aprendizagem. Entretanto, o professor que se dispe a trabalhar com este perfil precisa ter o cuidado de no determinar a capacidade de seus alunos pela situao em que estes vivem. Silva (2011, p. 69) refere que muitos professores criam rtulos da capacidade intelectual segundo a classe so-cial dos alunos. A partir disso, os professores seguindo uma viso determinista deixam de investir nesta criana e a poder se perder um grande talento, uma possibilidade de sucesso e superao. Por outro lado, um professor que atua em uma comunidade vulnervel possui nas mos a possibilidade desenvolver um trabalho diferenciado com estes alunos, que certamente privado de muitas ou-tras possibilidades.

    Consideraes finais

    So muitos os fatores que interferem no desenvolvimento de uma crian-a, principalmente quando esta vivencia situaes traumticas e permanece em situao de vulnerabilidade social. Conhecer esses fatores e compreender a for-ma como influenciam no seu desenvolvimento fundamental para aqueles pro-fissionais que atuam com estas crianas. Embora no tenha-se abordado, no pre-

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    sente artigo, fatores de risco como negligncia e maus-tratos fsicos, psicolgicos e abuso sexual no so exclusivos de comunidades que vivem em situao de vulnerabilidade social, embora sejam mais prevalentes pelo acmulo de fatores de risco ao qual esto submetidas. Neste espao tambm no foi possvel enfati-zar todos os fatores de risco e de proteo, pois uma temtica bastante ampla. Por exemplo, a idade em que a criana submetida a um evento adverso, carac-tersticas de seu temperamento, condies de sade incluindo deficincias fsicas e psicopatologias so alguns fatores que deixaram de ser abordados podendo constitui-se em uma limitao do presente estudo, mas tambm em um convite para outras leituras.

    Outro aspecto que merece ateno o trabalho de preveno que pode ser feito no apenas na escola, mas tambm na esfera da sade pblica atravs de aes de preveno primria em sade mental intervindo diretamente com as famlias e fortalecendo os laos afetivos e orientando para prticas parentais que promotoras de um desenvolvimento saudvel.

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    http://www.cchla.ufrn.br/rmnatal/artigo/artigo16.pdfhttp://www.cchla.ufrn.br/rmnatal/artigo/artigo16.pdf
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    lizados: Desempenho escolar, satisfao de vida e rede de apoio social. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26(3), pp. 407-415.

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    Captulo 2

    A PELE E O TOQUE NO DESENVOLVIMENTO HUMANO: DA PREVENO EM SADE AOS ASPECTOS

    BIOPSICOSSOCIAIS IMPLICADOS NO ADOECIMENTO

    Prisla cker Calvetti

    A pele o maior rgo de percepo no momento do nascimento, sendo um rgo de comunicao visvel e se tornando meio de contato fsico e para a transmisso de sensaes fsicas e emoes (Mller, Cenci, Hoffmann, Boschetti, Kim, Redivo, & Ludwig, 2001). o espelho do funcionamento do organismo: sua cor, textura, umidade, secura, e cada um de seus demais aspectos refletem nosso estado de ser, psicolgico e tambm fisiolgico (Montagu, 1988; Gascon, 2012).

    rgo sensorial primrio, a pele divide-se entre a epiderme, constituda de tecido epitelial, formada por clulas mortas na camada mais externa. A derme, formada por tecido fibrilar que proporciona a sua elasticidade e o hipo-derme, tecido celular subcutneo, tambm chamado panculo adiposo. Origina-se da mais extensa das trs camadas embrinicas, a ectoderme de onde derivam tambm a epiderme e os sistemas nervosos perifricos e central.

    Conforme Caminha, Soares e Kreitchmann (2011) a pele humana com-posta de diferentes classes de receptores que so sensveis a fatores como calor, presso, temperatura e movimento (entre outros), mas cujas respostas so pro-cessadas e depois unificadas para criar a sensao do toque. A pele como um sistema de abrigo de nossa individualidade, atuando como limite dentro-fora, eu e o outro, eu e o mundo. Ao mesmo tempo em que nos protege, a fachada que nos expe (Strauss, 1989, p. 1221).

    Toque e desenvolvimento humano saudvel

    importante salientar que a pele tem origem embrionria, desde a

    Currculo Lattes

    http://lattes.cnpq.br/4536354617246701http://lattes.cnpq.br/4536354617246701
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    gestao a ectoderme formada interligada ao sistema nervoso, mostrando a relao entre este rgo e o psiquismo. Em relao ao desenvolvimento humano o toque tem importante papel na promoo da sade desde o incio da vida at o envelhecimento. Na gestao o toque da me na barriga proporciona fortale-cimento do vnculo com seu beb. Desde ento, o toque promotor de sade. A amamentao posteriormente ao nascimento, alm de proporcionar nutrientes necessrios para o desenvolvimento da criana, importante para melhorar as funes respiratrias e a oxigenao do sangue, alm de receber o toque carinho-so da me. O sistema imunolgico do beb fortalecido.

    Efeitos fisiolgicos do toque tambm so manifestos em relao a sexua-lidade. O tato a verdadeira linguagem do sexo. A presena ou ausncia apre-senta-se relacionada a experincias prvias ligadas ao tato. A privao cutnea no incio da vida nas relaes podem estar implicadas na dificuldade de casais ao contato fsico e afetivo. O toque est diretamente relacionado a experincias de prazer, elemento de intimidade.

    Ainda discorrendo sobre o desenvolvimento humano, o tato uma das experincias mais negligenciadas ao envelhecer, em especial na terceira idade. Sabe-se que o contato fsico inclusive preventivo de depresso, em especial nes-ta etapa do ciclo da vida.

    Portanto, pode-se observar que a presena ou ausncia do toque desde o incio da vida tem suas repercusses na sade e na doena. A seguir apresento os aspectos biopsicossociais implicados no desenvolvimento humano quando a pele acometida pelo adoecimento.

    A pele e o adoecimento

    De acordo com Gupta e Gupta (1996), estimado que pelo menos um tero dos pacientes com doena dermatolgica apresenta aspectos emocionais associados. Os prejuzos em suas vidas so evidentes, incluindo sofrimento ps-quico, como referido no estudo de Taborda, Weber e Freitas (2005), em que fo-ram avaliados pacientes dermatolgicos do espectro psicocutneo atravs do Self Reported Questionnaire (SRQ-20), instrumento de triagem de doena mental. Verificou-se presena de sofrimento psquico em 25% da amostra. O estudo de Ludwig (2007) tambm encontrou sofrimento psicolgico em pacientes der-matolgicos. Avaliando 205 pacientes com diferentes dermatoses, os resultados

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    demonstraram que 65,9% apresentavam sintomas de estresse. A maioria dos pa-cientes estava na fase de resistncia (50,7%) e apresentava predominantemente sintomas psicolgicos (46,8%) se comparados aos fsicos (10,2%).

    Sabe-se que o estresse um fator que est relacionado com o surgimento e desenvolvimento de doenas, desde os estudos de Selye em 1936. Muitos pes-quisadores tm buscado aprofundar os conhecimentos sobre a relao entre o es-tresse e as doenas de pele. Rodrguez, Celis e Sosa (2002) referem que extensos estudos indicam que o estresse emocional pode exacerbar alguns eventos, como na psorase, por exemplo. A questo psicossomtica est implicada no adoeci-mento da pele, j que o estresse uma varivel psicolgica importante, influen-ciando tanto no surgimento, quanto no desenvolvimento de uma manifestao orgnica, neste caso a doena de pele.

    A constante relao entre mente e corpo nas doenas, neste caso as der-matolgicas, tem suscitado interesse de mdicos internacionalmente. Panconesi (Grimalt & Cotterill, 2002), dermatologista italiano, menciona a importncia de uma relao estreita entre mdico e paciente, de forma que o primeiro se coloque disposio do segundo, podendo escut-lo e verificar os fatores de estresse e as questes emocionais envolvidas. Refere tambm que certas doenas, dentre elas as de pele, so influenciadas, desencadeadas ou causadas por fatores que pertencem esfera psquica, podendo ser genericamente definidos como fatores emocionais.

    Os dermatologistas Azulay e Azulay (1992) falam que a necessidade de resolver conflitos psquicos pode transformar-se em doenas e manifestaes psicossomticas onde o papel do psiquismo torna-se bastante mais complexo.

    No Brasil, existem produes de dermatologistas que abrangem os as-pectos emocionais envolvidos. Azambuja (2000) discorre sobre a Dermatologia Integrativa como a psiconeuroimunologia aplicada a atentar aos aspectos fsico, mental e emocional do indivduo, podendo reduzir o estresse e aumentar a efi-cincia dos tratamentos atravs de recursos complementares. O mesmo autor refere que impossvel fragmentar o ser humano e cuidar s de seu corpo ou apenas de sua mente, porque um aspecto depende do outro, um influencia o outro o tempo todo, e ambos compem uma unidade (Azambuja, 2001). Uma de suas consideraes de que medicina e psicologia devero buscar juntas as origens mais remotas das doenas para no s delas tratar, mas para primordial-mente expandir a sade.

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    Rocha (2003) menciona a validao de aspectos fisiolgicos, comporta-mentais, cognitivos, afetivos, sistmicos e ecolgicos, presentes na abordagem integrativa em relao ao paciente, tendo como objetivo alcanar a excelncia no relacionamento mdico/paciente, no s na dermatologia, mas em toda a medicina. A autora refere ainda a importncia da precauo de se cuidar emo-cionalmente bem como de verificar suas prprias questes pessoais antes de abordar estes aspectos no paciente. Tambm conforme depoimento verbal, esta dermatologista, Tnia Rocha, a avaliao do estresse feita na primeira consulta.

    Considerando o sofrimento psquico envolvido, Hoffmann, Zogbi, Fleck e Mller (2005) mencionam estar o vitiligo associado a fatores psicolgicos, visto que, em estudo da ltima autora, o aparecimento da doena se deu aps situao de estresse emocional. Neste estudo, comparou-se dois grupos de pacientes com vitiligo, um recebendo tratamento mdico por 6 meses, e o outro, tratamento mdico e psicolgico durante o mesmo perodo. Os resultados demonstraram que o grupo que obteve os dois tratamentos teve melhoras bem mais representa-tivas do que o outro.

    Os temas de ansiedade e depresso tambm esto sendo estudados na sua relao com as doenas de pele por diversos autores. Amorim-Gaudencio, Roustan e Sirgo (2004), numa pesquisa sobre a evoluo da ansiedade nas der-matoses crnicas, avaliando diferenas entre os sexos, encontraram relao entre o impacto psicolgico produzido pelo problema de pele e sua condio crnica com o alto nvel de ansiedade nesses pacientes.

    Oleary, Creamer, Higgins e Weinman (2004) estudaram as causas atribu-das pelos pacientes psoriticos sua doena, verificando a relao entre estresse percebido, qualidade de vida, bem estar psicolgico e severidade da psorase. Os resultados demonstraram que do total da amostra, 61% acredita no estresse e em atributos psicolgicos como fatores causais da psorase, e esta crena foi signifi-cativamente associada a altos nveis de ansiedade, depresso e estresse percebido.

    As pessoas tm formas diferentes de interpretar as situaes de vida, assim como distintas formas de lidar com elas, como estudado por Silva, Mller e Bonamigo (2006), avaliando estratgias de coping e nveis de estresse em pa-cientes com psorase. Desta forma, aponta-se necessidade de conhecer as estra-tgias utilizadas pelos pacientes para enfrentar a sua doena de pele, sendo pos-svel, atravs disto, ensinar maneiras mais adequadas e que possam benefici-lo.

    Qualidade de Vida (QV) um dos construtos que diz respeito a elemen-

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    tos do sentir-se bem; pode ser definida como a harmonizao de diferentes mo-dos de viver e dos nveis: fsico, mental, social, cultural, ambiental e espiritual (Fleck, Borges, Bolognesi, & Rocha, 2003). compreendida como sendo a per-cepo do indivduo de sua posio na vida, no contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive em relao aos seus objetivos, expectativas, padres e preocupaes (Fleck, Louzada, Xavier, Chachamovich, Vieira, Santos, & Pin-zon, 2000). A preocupao com a QV se refere a um movimento nas cincias hu-manas e biolgicas destinado a valorizar parmetros mais amplos que o controle de sintomas, a diminuio da mortalidade ou aumento da expectativa de vida.

    A importncia de novos estudos, principalmente no Brasil, que busquem avaliar a influncia dos aspectos biopsicossociais presentes em pacientes com doenas de pele so relevantes devido a escassos estudos na rea a fim de elabo-rao de propostas para a melhora da qualidade de vida desta populao. Mello filho (2002) menciona que toda doena humana psicossomtica, j que incide em um ser provido de soma e psique, inseparveis, anatmica e funcionalmente.

    Dermatoses na infncia e suas implicaes no desenvolvimento hu-mano

    A pele pode ser compreendida como espelho das emoes, e como tal pode estar implicado nela manifestaes de conflitos que aparecem por meio de alguma dermatose. possvel encontrar conexes entre as relaes iniciais me--beb e a pele, uma vez que os primeiros modelos de vinculao com o mundo externo comeam a ser impressos no corpo, e a partir disso, no psiquismo da criana. Desta forma, as dificuldades experienciadas pela dade podem ter di-ferentes vias de manifestao, sendo a doena de pele uma delas. A dermatose pode representar, de alguma forma, a no existncia de um limite claro entre eu e no-eu, tanto pelo excesso quanto pela falta de estmulo (Jorge, Muller, Ferreira, & Cassal, 2004).

    A Dermatite Atpica (DA), ou eczema, uma doena crnica de pele que acomete entre 10 a 20% da populao infantil mundial. Caracteriza-se pela presena de episdios cclicos de prurido, com alteraes imunolgicas cutneas que causam inflamao. Ocorre com mais frequncia em famlias em que h rinite alrgica, asma e alergia alimentar, e em pases industrializados (Alvaren-ga & Caldeira, 2009; Ricci, Dondi, & Patrizi, 2009; Myssior, Fontes, Ferreira, &

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    Marques, 2008). Sua etiopatogenia no est completamente esclarecida, entre-tanto, observa-se que h uma complexa inter-relao envolvendo fatores imu-nitrios, genticos, infecciosos, ambientais, alimentares e psicossomticos. Ferreira, Mller e Jorge (2006) acreditam que a DA est associada com o aumen-to do nvel de ansiedade, assim como os prprios sintomas da dermatose geram ansiedade e causam um grande impacto na qualidade de vida.

    Aps o surgimento dos sintomas de DA, as famlias precisam se reor-ganizar, e a vida familiar gira em torno desta doena de pele, de modo que esta instituio passa a evitar situaes que possam desencadear crises. As origens das crises provm de diferentes fatores, como mudanas climticas, ingesto de alimentos, exposio alrgenos e situaes emocionais (Ferreira, Mller, & Jorge, 2006).

    A DA, devido a sua cronicidade, ao intenso prurido, a perturbaes no sono e nas atividades dirias e pela associao potencial com doenas respira-trias, pode ser considerada como uma dermatose social e psicologicamente relevante, pois alm de acometer o prprio paciente, todo o ambiente familiar e profissional afetado. relatado, tambm, um impacto financeiro, social e emocional na famlia do acometido por esta doena de pele. Pais com crianas portadoras de DA possuem dificuldade na disciplina e no cuidado delas, espe-cialmente devido exausto, privao do sono, a dificuldades no custo e na administrao da medicao tpica e sistmica. No obstante, esta sobrecarga gerada pelos cuidados das crianas com DA gera conflitos entre o casal e entre os irmos saudveis, alterando a estrutura familiar (Alvarenga & Caldeira, 2009; Ferreira et al., 2006).

    Os pacientes crianas com DA sofrem com o prurido, enquanto a me sente-se culpada por relutar em tocar o beb, afastando-o de si. Quando a famlia apresenta altos escores de independncia e organizao, a rea corporal acometi-da por DA significativamente mais baixa (Ferreira et al., 2006).

    Torna-se necessrio compreender o significado da pele para um melhor entendimento da dermatose. Jorge, Muller, Ferreira e Cassal (2004) corroboram com esta afirmao ao crer que a doena de pele pode ser reflexo das relaes iniciais da criana. Isso denota a importncia tanto da pele quanto do contato inicial com o outro para a constituio psquica da criana. As relaes iniciais entre a me e seu bebtm grande importncia para o desenvolvimento emocio-nal deste, visto que a partir da atitude emocional da genitora e de seu afeto, ela

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    orienta a criana, cujo aparelho perceptivo e discriminao sensorial se encontra imaturo. No obstante, a formao das primeiras relaes entre esta dupla serve como modelo para as futuras relaes sociais do infante (Thomaz, Lima, Tavares, & Oliveira, 2005).

    Muitos sintomas fsicos infantis, tais como clica, eczema, hostilidade materna, manipulao fecal, entre outros, so advindos da relao me-beb, como forma patolgica decorrente das relaes objetais. Pode-se dizer que a criana fica contaminada pelo clima afetivo materno, e, quando a me depressiva se afasta, a criana fica impossibilitada de completar a fuso, necessria nesta eta-pa do ciclo vital, e, se estiver no perodo de formao do psiquismo, estes distr-bios deixam cicatrizes tanto na estrutura quanto no funcionamento do aparelho psquico (Pio, 2007).

    Piccinini, Marin, Alvarenga, Lopes e Tudge (2007) acrescentam ser crti-co o primeiro ano de vida para o desenvolvimento afetivo, cognitivo e social da criana. Desta forma, imprescindvel que os pais respondam com afeto e sen-sibilidade ao comportamento do filho, a fim de favorecer a formao do apego e seu desenvolvimento scio-emocional. O apego representa a propenso de os se-res humanos construrem fortes vnculos afetivos com outros e de explicarem as diferentes formas de consternao emocional que ocorrem quando da separao ou perda involuntrias do outro, construdo a partir do processo de interao entre o beb e o crculo maternante (Piccinini, Moura, Ribas, Bosa, Oliveira, Pinto, Schermann, & Chahon, 2001).

    Do ponto de vista evolucionista, o sistema de apego aumenta as chances de sobrevivncia do beb, por permitir ao crebro imaturo da criana a utilizao do funcionamento maduro de seus pais, a fim de atender suas necessidades vi-tais. O vnculo materno adequado crucial para o surgimento do apego seguro, o qual necessitar da retro-alimentao do comportamento do beb (Motta et al., 2005; Pio, 2007).

    Filhos de mes mais sensveis e responsivas tendem a ter um apego se-guro, caracterizado pela confiana na disponibilidade emocional e responsivida-de materna, bem como na promoo de uma orientao positiva e confiante da criana em relao me, ao mundo e a si mesma. Entretanto, quando o beb recebe cuidados com pouca sensibilidade e baixa responsividade materna, ele tende a desenvolver um apego inseguro, o qual representa uma falta de confian-a na disponibilidade emocional da me e acarreta em uma atitude negativa e

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    pouco confiante em relao genitora, ao mundo e a si mesmo (Piccinini et al., 2007; Motta et al., 2005). necessrio salientar que a responsividade corresponde a um domnio, o qual consiste de um complexo de construtos e variveis relacionadas, tais como empatia, sensibilidade a pistas sociais, no-intrusividade, capacidade de previso, disponibilidade emocional e envolvimento positivo (Piccinini et al., 2007).

    Deve-se valorizar elementos saudveis referentes aos padres de paren-talidade, tais como cuidados fsicos, promoo de experincias iniciais, favore-cimento do desenvolvimento fsico e psquico, defesa da vida e da sade, entre outros. Entretanto, necessrio identificar, tambm, os aspectos de omisso, depreciao, rejeio, descontinuidade, abandono, os quais correspondem pa-rentalidade patognica, que conduz a desajustes e a sintomas psicofuncionais na criana, ou, ainda, psicopatologias mais graves (Piccinini et al., 2001).

    As configuraes familiares que, alm da me, contam com a presena e auxlio de outros adultos favorecem a maternidade e o desenvolvimento infantil, especialmente quando o pai a figura presente, pois este tambm compartilha com a esposa a responsabilidade da criao, incluindo xitos e fracassos. Estudos realizados constataram a existncia de uma relao positiva entre a presena do pai e o cuidado maior da me pelo filho, favorecendo o desenvolvimento infan-til saudvel. Em pesquisa realizada por Piccinini et al. (2007) verificou-se que mes casadas demonstram maior responsividade, principalmente nas questes referentes ao desconforto ou aflio de seus bebs do que mes solteiras. Assim, inferiu-se que o apoio da figura paterna e a relao desta com a genitora pode favorecer o aumento da disponibilidade da me para atender, de forma sensvel e contingente, os desconfortos do filho.

    Outro fator de grande relevncia a questo de haver menor impacto de depresso materna quando no h outros fatores de risco associados, tais como baixo apoio marital ou familiar e baixo status socioeconmico (Motta et al., 2005). Esses achados s reforam a importncia de a me poder contar com uma rede de apoio no cuidado com o filho, pois, desta forma, ela poder exercer sua maternagem de forma mais adequada (Rapoport & Piccinini, 2006). ne-cessrio ressaltar que alm da me, a criana est cercada de outras pessoas que a influenciam emocionalmente, como irmos, parentes, amigos, podendo ou no ter algum significado emocional (Pio, 2007).

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    A partir do explanado, percebe-se a importncia de uma relao familiar para a sade da pele e do desenvolvimento da criana. Dentro disso, cabem as prticas educativas parentais, as quais podem ser compreendidas como conjun-tos de condutas dos pais no processo de educao e socializao dos filhos. Essas prticas esto associadas a vrios indicadores de desenvolvimento psicossocial e comportamental, tais como a autoestima, a depresso, a ansiedade, psicopa-tologia, desempenho escolar, entre outros (Teixeira, Oliveira, & Wottrich, 2006; Teixeira & Lopes, 2005; Cecconello, De Antoni, & Koller, 2003).

    Teixeira e Lopes (2005) salientam que os estilos parentais referem-se a metas ou valores considerados importantes pelos genitores tanto em suas vidas quanto na educao de seus filhos. Os pais que conseguem ser mais amorosos, acolhedores, encorajadores e aceitadores das perspectivas singulares de cada indivduo e de seus desejos, satisfazem as necessidades psicolgicas da pessoa, como autonomia e relaes interpessoais, aumentando a probabilidade de que esta possa se expressar e sentir mais confiante.

    Por outro lado, quando o ambiente de desenvolvimento frio, controla-dor e rejeitador, o sujeito procura aprovao e segurana por meio do estmulo externo, pois h maior dificuldade de relacionamento interpessoal e de autono-mia, especialmente se os genitores exercem excessivo controle, sem apoio emo-cional, de forma a prejudicar a internalizao, isto , as metas e os valores so buscados a partir de uma autoridade externa, valorizando mais a opinio alheia do que a sua prpria (Teixeira & Lopes, 2005).

    Quando a pele adoece em qualquer etapa do desenvolvimento humano a pessoa e famlia se depara com as repercusses que este rgo reflete na vida. Se uma criana desencadeia a dermatite atpica esta doena impacta alm dos pais, a famlia. Inclusive dermatologistas que atuam na perspectiva interdisciplinar da compreenso da relao entre pele e psiquismo recomendam que a me da criana ao aplicar a medicao tpica (na pele) faa carcias na mesma. Desta forma, a criana sente o contato mais prazeroso. Este aspecto tende a auxiliar na recuperao da sade integral da pessoa, alm do fortalecimento imunolgico e vnculo.

    Consideraes finais

    A pele sendo o maior rgo do corpo, reflete nela o mundo interno e

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    externo. Emoes so manifestadas na pele desde o nascimento e durante todo o ciclo vital. A cada etapa do desenvolvimento, o toque repercute na promoo do fortalecimento do sistema imunolgico e das relaes interpessoais.

    Destaca-se que so escassas as pesquisas sobre a relao entre Psicologia e Dermatologia no Brasil, sendo necessrio o avano de novos estudos sobre esta inter-relao entre pele e aspectos psicolgico no desenvolvimento humano. Novas pesquisas permitem o dilogo entre pesquisadores brasileiros com outros internacionais para a produo de conhecimentos sobre o processo sade-doen-a implicado na sade da pele. O desenvolvimento de novas pesquisas poder contribuir para a preveno e tratamento de dermatoses e promoo da qualida-de de vida do nascimento ao envelhecimento no mbito da sade da pele.

    Nesse sentido, destaca-se a necessidade de aprofundamento de estudos no que diz respeito s questes de intervenes teraputicas relacionadas as der-matoses. Alm disso, a importncia dos profissionais da rea da sade trabalha-rem de forma interdisciplinar, como promover um melhor resultado no trata-mento das doenas de pele crnicas. Cumpre salientar que existe uma ligao muito forte entre a pele e os fatores psicolgicos, os quais acabam desencadean-do o surgimento ou agravamento das dermatoses.

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  • 41

    Captulo 3

    GNERO, PSICOLOGIA E EDUCAO: NOTAS SOBRE A SUBJETIVAO/CONSTRUO

    DA SEXUALIDADE NORMAL/ANORMAL

    Denise Quaresma da Silva

    A proposta deste captulo trazer a discusso da temtica de gnero para o campo da Psicologia, discorrendo sobre a conceitualizao do termo, o seu carter relacional, o estudo junto a outros campos do conhecimento humano e implicando a Psicologia nessas discusses, mais especificamente propondo uma articulao com o campo da Educao, onde centro minhas pesquisas.

    Cada pessoa fala a partir de um lugar que expressa o cruzamento de ca-ractersticas especficas de gnero, raa/etnia, classe social, religio, orientao sexual, localizao, gerao, etc. No que se refere ao gnero, essas caractersticas remetem s construes sobre o papel de homem e de mulher em nossa socieda-de que se relacionam com determinadas normas, regras e papis sociais.

    O termo gnero foi conceitualizado numa perspectiva feminista em fins da dcada de 1970 (Sardenberg, 2004). Inicialmente, era uma palavra usada ape-nas em oposio a sexo, como construo social das identidades sexuais, descre-vendo o que socialmente construdo. J nas dcadas de 70 e 80, de acordo com Sorj (1992), os estudos de gnero passaram a envolver duas dimenses: a ideia de que o gnero seria um atributo social institucionalizado e a noo de que o po-der estaria distribudo de modo desigual entre os sexos, subordinando a mulher. Com o avano nas discusses, o termo gnero passou a ser considerado como ca-tegoria mltipla e relacional que abarca cdigos lingusticos institucionalizados e representaes polticas e culturais (Butler, 2003).

    Scott (1995) conceitua o gnero como uma categoria de anlise histrica que implica em quatro elementos: 1) smbolos culturais disponveis (da tradio crist ocidental) que evocam representaes mltiplas e contraditrias, por

    Currculo Lattes

    http://lattes.cnpq.br/9874159368391364http://lattes.cnpq.br/9874159368391364
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    exemplo, Eva e Maria como smbolos de mulher; 2) conceitos normativos que colocam em evidncia interpretaes do sentido dos smbolos, limitando e con-tendo suas possibilidades metafricas; 3) incluso da noo do poltico como referncia s instituies e organizaes sociais; e 4) identidade subjetiva re-ferenciada pela psicanlise lacaniana que concebe a formao da identidade de gnero a partir das relaes objetais estabelecidas com o Complexo de dipo, nas primeiras etapas do desenvolvimento humano.

    Ampliando o conceito, De Lauretis (1994) prope pensar o gnero como produto de tecnologias sociais, discursos, epistemologias e de prticas institucio-nalizadas que o sustentam dentro de um aparato social e representacional absor-vido subjetivamente por cada pessoa. A autora tambm traz quatro proposies sobre o gnero: 1) o gnero uma representao; 2) a representao do gnero a sua construo; 3) a construo do gnero vem se efetuando hoje nos apare-lhos ideolgicos do Estado; e 4) a construo do gnero se faz por meio de sua desconstruo.

    Postulo que as/os diversos profissionais e a sociedade como um todo pre-cisam refletir sobre os impactos nas produes de subjetividade para homens e mulheres que se entrecruzam com relaes de poder. A Psicologia, enquanto campo de pesquisa, formao e atuao relacionada ao ser humano tem muito a contribuir no que se refere desconstruo das desigualdades sociais e de g-nero. Para tanto, esse estudo tem que ser efetivado em um terreno transversal, pois estudar gnero no mbito da Psicologia, perpassa o entendimento de que categorias transversais de gnero, raa/etnia, classe social, orientao sexual e gerao se cruzam construindo sujeitos com certas especificidades que precisam ser observadas. Ocupo-me da articulao da Psicologia com a Educao, a partir de pesquisas no campo da Educao sexual.

    Os temas da sexualidade, da educao sexual e das diversidades de gne-ro esto ocupando crescentemente diversos espaos da mdia, da poltica, acad-micos e da sociedade civil brasileira. A amostra mais evidente da extenso des-tes temas pode ser a atual polmica dentro e fora do Congresso Nacional sobre a pertinncia de uma proposta do Ministrio da Educao para incluir temas de homofobia e a respeito da diversidade da instruo da educao sexual nas instituies escolares. A articulao deste debate e seus desenlaces confirmam a consolidao da educao sexual como um campo de interesses e lutas, onde diferentes discursos participam de uma disputa poltica de gnero e sexualidade

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    que envolve relaes desiguais de poder por legitimar ou estigmatizar algumas identificaes e prticas (Furlani, 2008).

    Estes enfrentamentos destacam um acentuado interesse pela educao sexual que transcende a preocupao pela higiene do corpo, a preveno do HIV/AIDS, o aumento da gravidez na adolescncia e o incio cada vez mais cedo das relaes sexuais; falam de um acentuado interesse por produzir- ou no- corpos e subjetividades ajustados aos ideais sexuais e de gnero predominantes.

    Minhas indagaes vm se fundamentando ultimamente dentro desta perspectiva da anlise e tem seu incio a partir de um estudo com adolescentes grvidas em situao de risco social que revelou as limitaes das famlias para dialogar sobre sexualidade (Quaresma da Silva, 2007).

    Na sequncia, desenvolvi uma pesquisa institucional onde entrevistei professores e estudantes das escolas pblicas municipais de ensino fundamental da cidade de Novo Hamburgo/RS, objetivando analisar as prticas de educao sexual e a sua transversalidade no currculo escolar.

    Nesta direo, examinar as prticas de educao sexual com uma pers-pectiva de gnero nas instituies escolares de nvel fundamental em Novo Hamburgo/RS significa revelar as pedagogias de gnero que ali so articuladas, descrever o que elas ensinam sobre como ser homens e mulheres, analisar os discursos de gnero que circulam nestas prticas, verificar como so significadas, representadas, valorizadas e ordenadas diversas identidades e quais homens e mulheres so legitimados, estigmatizados e marginalizados.

    Conclu, atravs das anlises das entrevistas, que quando as/os professo-ras/es explicam a importncia e a finalidade da educao sexual, destacam preo-cupaes e propsitos que no tem a ver somente com a preveno das doenas e da preveno da gravidez adolescentes. Em suas explanaes se evidenciam que nas prticas de educao sexual se ensina muito mais que rgos e partes do corpo, muito mais do que como colocar um preservativo, muito mais que infec-es de transmisso sexual. Acompanhando estes temas, circulam discursos e representaes sobre gnero e sexualidade que indicam como devem ser homens e mulheres e quais comportamentos, atitudes, gestos e prticas sexuais so ade-quadas para cada um (Quaresma da Silva, 2011).

    As reflexes que apresento neste texto, podem ser teis para justificar aes dirigidas a sensibilizar e implicar a todos/as no questionamento das suas

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    prticas cotidianas sobre como nos posicionamos frente questo da sexualida-de humana, na anlise dos efeitos de incluso-excluso, aceitao-discriminao, legitimao-desaprovao e normalidade-aberrao que elas nossas posturas produzem.

    Entendo a subjetividade como o encontro do social e do individual, for-mando a teia que constitui o sujeito e se manifesta nas suas relaes, na prxis. Reitero a importncia de (re)conhecer como se institucionalizam as prticas so-ciais, visto que estas so responsveis pela transmisso de valores, incorporados nas subjetividades.

    No podemos pensar em relaes que se efetivem entre sujeitos que no estejam inseridas em determinado contexto, e que no sofram influncia deste. Neste sentido, as subjetividades, so compostas de determinantes estruturais e singularidades. Minha concepo de que aquilo que se traduz nas interaes entre sujeitos o reflexo de valores culturais internalizados no processo de socia-lizao, embora nas relaes se expressem de forma nica. Desta forma, assumo a posio de que o gnero, na construo das subjetividades se efetiva nas inte-raes singulares, no mbito social, cada caso se configurando de forma nica, mas tendo como pano de fundo, as prticas histrico/culturais onde os sujeitos se constituem.

    Postulo que toda educao sexual e que a educao sexual constitui um espao onde circulam identidades de gnero valorizadas e desacreditadas e para este propsito, so ativadas diversas tticas regulamentares para registrar nos corpos caractersticas de gnero e sexualidade legitimadas e dominantes na lgica heteronormativa.

    Louro (2010, p. 15) afirma:O ato de nomear o corpo acontece no interior da lgica que supe o sexo como um dado anterior cultura e lhe atribui um carter imutvel, a-histrico e binrio. Tal lgica implica que esse dado sexo vai determinar o gnero e induzir a uma nica forma de desejo.

    Neste sentido, Roudinesco (2003, p. 117) destaca que quando se con-sidera que o sexo anatmico prevalece sobre o gnero, a unidade se esfacela e a humanidade dividida em duas categorias imutveis: os homens e as mulheres. As outras diferenas so ento desprezadas ou abolidas.

    Diversas instncias (escola, famlia, lei, igreja, mdia, cincia, cinema, organizaes) participam ativamente e suportam esta lgica para produzir os

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    corpos e as subjetividades acordes norma que privilegia a heterossexua-lidade. Nessas instncias podem ser desconstrudos processos articulados que privilegiam identidades e prticas hegemnicas enquanto negam, desvalorizam e marginam outras identidades e prticas. Louro (2010) descreve este fazer os corpos como um trabalho pedaggico ininterrupto, reiterado e ilimitado que desenvolvido para inscrever nos corpos o gnero e a sexualidade legtimos.

    Refiro as pedagogias culturais que nos ensinam hbitos, formas de com-portamentos e valores atravs de diferentes artefatos como os filmes, a moda, as revistas, os programas de televiso, a literatura, a publicidade e a msica. Atravs das pedagogias de gnero se ensinam quais comportamentos se devem valorizar, quais atitudes e gestos so adequados para cada gnero, bem como se deve ser e fazer (Louro, 2008).

    Quando falamos destas identificaes ensinadas, valorizadas, permitidas e estimuladas, impossvel no ter em conta a participao da mdia nesse pro-cesso, e especificamente das revistas como mdia impressa. As revistas, segundo Bassanizi (1996, p. 16):

    [...] tentam corresponder demanda do pblico leitor, consideran-do seu modo de agir e pensar, ao mesmo tempo em que procu-ram disciplin-lo e enquadr-lo nas relaes de poder existentes, funcionando como um ponto de referncia, oferecendo receitas de vida, impingindo regras de comportamento, dizendo o que deve e principalmente o que no deve ser feito.

    Ou seja, as revistas, transmitem conselhos e recomendaes que indicam caminhos, atitudes, comportamentos a serem seguidos pelos homens e pelas mulheres, algumas vezes na lgica heteronormativa, outras vezes na direo da legitimao da diversidade. Isso confirma a convergncia de diversas representa-es sobre como devem ser homens e mulheres. Por isto, as/os pesquisadoras/es envolvidas/os neste campo buscam apontar:

    [...] os modos pelos quais caractersticas femininas e masculinas so representadas como mais ou menos valorizadas, as formas pe-las quais se re-conhece e se distingue feminino de masculino, aqui-lo que se torna possvel pensar e dizer sobre mulheres e homens que vai constituir, efetivamente, o que passa a ser definido e vivido como masculinidade e feminilidade, em uma dada cultura, em um determinado momento histrico (Meyer, 2003, p. 14).

    Nesse sentido, torna-se um imperativo com altas implicaes polticas a problematizao da constituio cultural e o governo das identidades de gnero

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    atravs das revistas, buscando desconstruir tais representaes para desestabili-zar ou interpelar as verdades sobre gnero, que ali so veiculadas.

    Para Foucault (2003), a sexualidade um dispositivo histrico muito concreto de poder. O dispositivo de sexualidade uma criao social e inscre-vem-se nas mais variadas relaes de poder existentes na sociedade, do pai para o filho, do homem para a mulher, do professor para o aluno, do mdico para o paciente, do governo para a populao, etc. Este autor descreve um conjunto de tcnicas e tticas com a finalidade de produzir corpos dceis e teis para o sistema onde eles se encontram inseridos, configurando-se, segundo ele, uma anatomia poltica do detalhe.

    assim como meninos e meninas vo apropriando se de um conjunto de mandamentos sobre como devem ser homens e mulheres para ser aceitos, respeitados e valorizados. Atravs do discurso, as crianas e jovens aprendem quais comportamentos devem valorizar, quais as atitudes e gestos adequados a cada um dos gneros, bem como o que podem e devem fazer cada um deles. Esse processo complementa-se com o reconhecimento dos sujeitos em uma identidade frente s constantes interpelaes confrontadas no cotidiano. O reconhecimento implica sempre a identificao e a negao do seu oposto desde uma posio social determinada, o que condiciona ordenamentos e hierarquias.

    Isto confirma que as masculinidades e as feminilidades so construdas e produzidas nas relaes de poder de uma sociedade e esto marcadas pelas par-ticularidades do contexto histrico cultural onde elas emergem. Elas no existem como uma essncia constante e universal, em todo caso, elas so um conjunto de significados e comportamentos atravessados por outras marcas de identidade.

    Por isso, um mesmo sujeito pode vivenciar situaes de identidade des-valorizada ou aceita em contextos culturais/sociais diferentes. Quando interpre-tamos as identidades como posies de sujeito, pensamos no entrecruzamento que se produz entre masculinidades e classe, raa, nacionalidade, sexualidade, profisso, religio, moradia, idade, escolaridade. O resultado uma contnua va-riao de fronteiras, reconhecimentos, interpelaes, e de possibilidades carre-gadas de contradies, ambiguidades e incoerncias (Bessa, 1998).

    Nessa perspectiva, gnero torna-se uma categoria analtica das relaes de poder, ou seja:

    [] um mecanismo heurstico com funes positivas e negativas em um programa de pesquisa. Como heurstica positiva, gnero

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    elucida uma rea de indagao, perfila um conjunto de perguntas [] identifica problemas que se devem explorar e oferece concei-tos, definies e hipteses para guiar a pesquisa, especialmente para sondar o terreno das relaes humanas. A heurstica negativa da anlise de gnero permitiria impugnar a naturalizao das diferen-as de sexo em diferentes mbitos de luta, ou para desafiar atitudes que assumem como naturais determinados comportamentos mar-cados pelo gnero (Chiarotti, 2006, p. 12).

    Distancio-me de posturas tericas que estabelecem uma sinonmia entre gnero e mulher e que, por tanto, restringem a potncia analtica da categoria gnero. Talvez porque o conceito gnero uma ferramenta de anlise que tem marcado as lutas e o pensamento feminista, tem sido difcil superar este reducio-nismo na compreenso e uso da categoria gnero, inclusive na atualidade, como apontam Corra e Vianna (2007, p. 10): na dinmica da militncia feminista ainda existe grande resistncia no que se refere a abrir mo deste patrimnio, ou seja, do capital poltico construdo ao redor da categoria mulher.

    Segundo Lamas (2000), o uso da categoria gnero foi estimulado pelo feminismo anglo-saxo nos anos setenta com a finalidade de mostrar que as mu-lheres aprendem a ser mulheres, mediante um complexo processo individual e sociocultural de carter poltico. Posteriormente, se estendeu o uso do termo para nomear os estudos de mulheres, dando um matiz mais neutro, cientfico e objetivo s pesquisas nesta rea, tal e como exigem os pressupostos positivistas (Rey, 1997).

    No obstante, reconheo que a pertinncia atual da categoria gnero, para explorar outras identidades discriminadas, tem sido resultado dos prprios avanos, contribuies e limitaes dos estudos sobre mulheres, o que possibili-tou o deslocamento do objeto de gnero, passando do objeto emprico mulheres para o objeto terico gnero (Alencar-Rodrigues, Strey, & Espinosa, 2009). Por tanto, defendo que:

    [...] no se pode apenas estudar as mulheres, pois o objeto dos es-tudos de gnero mais amplo, e, sendo assim, faz-se necessria uma anlise em todos os nveis, mbitos e tempos, das relaes mu-lher-homem, mulher-mulher, homem-homem para se alcanarem maiores resultados (Barbieri apud Medrado & Lyra, 2008, p. 819).

    Este deslocamento no deve ser interpretado como uma simples amplia-o dos sujeitos de estudo, passando agora a incluir aos homens. A transcen-dncia muito mais profunda, pois significa um salto epistemolgico para uma

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    compreenso muito mais complexa dos ordenamentos e desigualdades resultan-tes dos diversos modos como so representadas as diferenas de gnero, sem ignorar as pluralidades, contradies e ambiguidades que emergem do entre-cruzamento com outras representaes (classe, etnia, crena religiosa, profisso, sexualidade, idade, maternidade/paternidade, dentre outras).

    Nesta viso, os homens no so identificados como executores de desi-gualdades seno como parte e objeto dos mecanismos que produzem desigual-dades. Desta forma, o grande desafio dar visibilidade s desigualdades de gne-ro, sejam entre homens e mulheres, entre mulheres ou entre homens.

    O campo dos estudos de gnero no qual se localizam e transitam mi-nhas inquietaes, se distinguem por constituir um enfoque interpretativo que examina a ordem das coisas existente na histria, sociedade, cultura, poltica e na economia, desarticulando as verdades que (re)produzem, legitimam e perpe-tuam essa mesma ordem, na qual as representaes das diferenas femininas e masculinas terminam classificando sujeitos e limitando seus espaos e destinos.

    No so nossos genitais e anatomias que determinam as relativas posi-es que ocupamos nos sistemas de relaes sociais, tudo o que se diz sobre nossos genitais e anatomias o que nos constitui e articula nossos vnculos; ao mesmo tempo convertem-se em argumentos para explicar o carter hierarqui-zado destes vnculos. Em outras palavras: gnero um elemento constitutivo de relaes sociais baseadas nas diferenas percebidas entre os sexos [...] gnero uma forma primria de dar significado s relaes de poder (Scott, 1995, p. 86).

    isto precisamente o que est sendo repensado no campo dos estudos de gnero: hierarquias e desigualdades, as representaes que as fundamentam e os mecanismos que as produzem culturalmente.

    As diversas maneiras de serem homens e mulheres so construes pro-duzidas nas relaes de poder de uma sociedade, validadas por inmeras verda-des cientificas e mticas e marcadas pelas particularidades do contexto histrico cultural onde elas emergem (Beauvoir, 1990). Ou seja, as significaes de gnero configuram modos diversos de pensar, sentir e agir e determinam espaos, fun-es e destinos na sociedade. Como expressa Louro (1995, p. 106): ser do gnero feminino ou do gnero masculino leva a perceber o mundo diferentemente, a estar no mundo de modos diferentes e, em tudo isso, h diferenas quanto distribuio de poder.

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    Os significados que se constroem sobre os corpos de homens ou mulhe-res trasbordam os prprios corpos para transitar ilimitadamente por tudo, dan-do a impresso de viver em um mundo classificado em masculino e feminino. Por isso, escutamos os relatos das/dos professoras/es preocupadas/dos com o menino de gestos femininos, os comentrios da vizinha sobre a colega de traba-lho que caminha como um homem, o cliente de uma loja que no gostou de uma gravata, por entender que parece feminina, a vendedora que sugeriu um perfume com uma fragrncia masculina, a decoradora que no gostou daquela cor mas-culina, o pai decepcionado com o filho que escolheu uma profisso de mulher, o gay que muito feminino e assim por diante.

    Nesta direo, os estudos de gnero tm confirmado que existem padres ou ideais de masculinidades e feminidades e que esses padres que se instituem como normas e expectativas so, de maneira acentuada, os mais valorizados e dignos de ser exibidos.

    imprescindvel que as possibilidades de serem homens e mulheres sejam ensinadas e aprendidas. Diversos estudos, localizados na interseo de gnero e educao, revelam os contnuos processos e mecanismos de formao de homens e mulheres, segundo os padres estabelecidos em cada contexto histrico-cultural. Escola, famlia, igreja, mdia, cincia, cinema e organizaes de diversas ndoles esto ativamente envolvidos na tarefa de produzir identidades de gnero, privilegiando umas enquanto marginam outras. Louro (2004) descreve um trabalho pedaggico ininterrupto, reiterado e ilimitado que desenvolvido por cada uma de estas instncias para inscrever nos corpos os gneros e as sexuali-dades legtimas.

    Assumo uma noo no tradicional da categoria pedagogia, que permi-te pensar no pedaggico alm dos limites fsicos escolares, porque compartilho que ensina e aprende-se muito tambm fora da escola. Articulam-se pedagogias, como expem Giroux e McLaren (1995, p. 144): [...] em qualquer lugar em que existe a possibilidade de traduzir a experincia e construir verdades, mesmo que essas verdades paream irremediavelmente redundantes, superficiais e prximas ao lugar-comum.

    A partir das pedagogias de gnero, se ensinam quais aparncias corpo-rais, comportamentos, acessrios, atitudes e gestos so mais ou menos adequa-dos para cada gnero. Brincadeiras e brinquedos constituem acessos efetivos para ir conhecendo os lugares e destinos estabelecidos para homens e mulheres

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    na sociedade, na famlia e em outros mbitos. Sob constante orientao, vigia e controle, meninos e meninas escolhem como e com o qu brincar. assim que meninos e meninas se vo apropriando de um conjunto de mandamentos sobre como devem ser homens e mulheres, para obter aceitao e respeito.

    Porm, impossvel nomear e descrever o normal sem apresentar o anormal. Por isso, circulam continuamente diversas representaes sobre gne-ro, tanto representaes hegemnicas, tradicionais ou institudas quanto repre-sentaes desvalorizadas, transgressoras, emergentes ou dissidentes, resultando um universo de significados diversos, ambguos, socialmente produzidos e em conflito, mas com significativos efeitos de incluso-excluso e aceitao-discri-minao.

    Ao se falar de identidades valorizadas nas diversas instncias sociais, se abre espao para as identidades desacreditadas, indicando o que no pode ser: o punido, o proibido, mesmo que nunca seja enunciado verbalmente. Ao se igno-rar, ao se fazer de conta que no existe, se define o lugar em que so colocadas algumas identidades.

    Identidades estigmatizadas e demonizadas pelo distanciamento com os ideais hegemnicos so produtivas, teis, para evidenciar os limites entre o res-peitado e o desestimado. Toda matriz excludente [...] pela qual os sujeitos so formados exige, pois, a produo simultnea de um domnio de seres adjetos, aqueles que ainda no so sujeitos, mas que formam o exterior constitutivo relativamente ao domnio do sujeito (Butler, 2010, p. 155).

    Essa autora evidencia o carter relacional e complementar das represen-taes de identidades que circulam culturalmente: o que somos se define a partir do que no somos. Examinar as identidades de gnero sem ignorar esta particu-laridade, multiplica as possibilidades de problematizar as lutas por legitimao que se estabelecem entre as identidades. Sendo assim, representaes de femini-dades se encontram interligadas com representaes de masculinidades, repre-sentaes hegemnicas de feminidades indicam as feminidades estigmatizad