psicodiagnã³stico v - jurema alcides cunha

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PSICODIAGNÓSTICO- V

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  1. 1. PSICODIAGNSTICO-V
  2. 2. P974 Psicodiagnstico-V [recurso eletrnico] / Jurema Alcides Cunha ... [et al.]. 5. ed. rev. e ampl. Dados eletrnicos. Porto Alegre : Artmed, 2007. Editado tambm como livro impresso em 2003. ISBN 978-85-363-0778-7 1. Psicodiagnstico. I. Cunha, Jurema Alcides. CDU 159.9 Catalogao na publicao: Jlia Angst Coelho CRB 10/1712
  3. 3. PSICODIAGNSTICO-V 5a edio revisada e ampliada 2007 Jurema Alcides Cunha Livre-docente em Psicologia Clnica. Doutora em Filosofia. Professora aposentada dos Cursos de Ps-Graduao em Psicologia da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Pesquisadora associada ao Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. e Colaboradores 3a Reimpresso Verso impressa desta obra: 2003
  4. 4. Artmed Editora S.A., 2000 Capa: Joaquim da Fonseca Preparao de originais: Renato Deitos Superviso editorial: Letcia Bispo Editorao eletrnica: AGE Assessoria Grfica e Editorial Ltda. Reservados todos os direitos de publicao, em lngua portuguesa, ARTMED EDITORA S.A. Av. Jernimo de Ornelas, 670 - Santana 90040-340 Porto Alegre RS Fone (51) 3027-7000 Fax (51) 3027-7070 proibida a duplicao ou reproduo deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrnico, mecnico, gravao, fotocpia, distribuio na Web e outros), sem permisso expressa da Editora. SO PAULO Av. Anglica, 1091 - Higienpolis 01227-100 So Paulo SP Fone (11) 3665-1100 Fax (11) 3667-1333 SAC 0800 703-3444 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL
  5. 5. Aidyl L.M. de Queiroz Prez-Ramos Doutora em Psi- cologia Clnica pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, com Especializao e Ps-Doutorado nos Estados Unidos e na Frana. Professora Titular do Pro- grama de Ps-Graduao em Psicologia da Universida- de de So Paulo e Docente do Programa de Ps-Gra- duao da Universidade La Laguna, Espanha. Perito de diversos programas nacionais e internacionais (ONU, OEA e UNESCO), na rea de Educao Especial. Titular da Ca- deira Paula Souza, no 30, da Academia Paulista de Psico- logia e Active Member da New York Academy of Science. Andr Jacquemin Doutor e Livre-Docente em Psi- cologia pela Universidade de So Paulo. Professor Ti- tular Aposentado da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de So Paulo. Ex-coordenador do Cur- so de Psicologia da Universidade de Ribeiro Preto, So Paulo. Anna Elisa de Villemor Amaral Psicloga. Doutora em Distrbios da Comunicao pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de So Paulo. Profes- sora no Curso de Graduao em Psicologia da Pontif- cia Universidade Catlica de So Paulo. Professora nos Cursos de Graduao e Ps-Graduao em Psicologia da Universidade So Francisco, de Itatiba, SP. Membro da Comisso de Coordenao do Mestrado em Avalia- o na Universidade de Itatiba, SP. Blanca Guevara Werlang Mestre em Psicologia So- cial e da Personalidade pela Pontifcia Universidade Ca- tlica do Rio Grande do Sul. Doutora do Curso de Ps- Graduao em Cincias Mdicas, rea de Sade Men- tal, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora dos Cursos de Graduao e Ps-Graduao da Faculdade de Psicologia da Ponti- fcia Universidade Catlica do Rio Grande Sul. Candida H. Pires de Camargo Psicloga. Coordena- dora e Supervisora do Programa de Especializao e Aprimoramento de Psicologia e Neuropsicologia do Ins- tituto de Psiquiatria do Hospital das Clnicas. Coorde- nadora do Servio de Psicologia do Instituto de Psiquia- tria do Hospital das Clnicas FMUSP. Supervisora de Neuropsicologia do PROTER do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clnicas FMUSP. Ccero Emidio Vaz Psiclogo. Doutor em Psicologia e Livre-Docente em Tcnicas Psicolgicas da Faculdade de Psicologia da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, com Ps-Doutorado na Universidade da Califrnia, em Berkeley, Estados Unidos. Professor Titu- lar de Tcnicas Projetivas dos Cursos de Graduao e Ps-Graduao da Faculdade de Psicologia da Pontif- cia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Claudio Simon Hutz Ph.D em Psicologia pela Univer- sidade de Iowa, Estados Unidos. Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenador do Curso de Psicologia Clnica da UFRGS. Denise Ruschel Bandeira Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade Fe- deral do Rio Grande do Sul. Chefe do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade da UFRGS. Coordenadora do Curso de Especializao em Avaliao Psicolgica do Instituto de Psicologia da UFRGS. Elizabeth do Nascimento Mestre em Psicologia So- cial pela Universidade Federal de Minas Gerais. Douto- ra em Psicologia pela Universidade de Braslia. Profes- sora Assistente do Departamento de Psicologia da Uni- versidade Federal de Minas Gerais. Irani I. L. Argimon Mestre em Educao pela Pontif- cia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Douto- ra em Psicologia Clnica pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Professora no Curso de Graduao em Psicologia na Pontifcia Universidade Ca- tlica do Rio Grande do Sul. Supervisora de Psicologia Hospitalar no Hospital So Lucas da PUCRS. Superviso- ra de Psicologia Clnica na Unidade de Dependncia Qu- mica no Hospital Me de Deus, Porto Alegre. Jandyra M.G. Fachel Ph.D em Estatstica pela Uni- versidade de Londres. Mestre em Estatstica pela Uni- Colaboradores
  6. 6. versidade de So Paulo. Professora Titular do Departa- mento de Estatstica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Curso de Ps-Graduao em Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Fe- deral do Rio Grande do Sul. Leila S.L.P. Cury Tardivo Doutora em Psicologia Clni- ca pela Universidade de So Paulo. Professora de Cur- sos de Graduao e Ps-Graduao do Instituto de Psi- cologia da Universidade de So Paulo. Orientadora do Programa de Mestrado do Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo. Marcelo Tavares Doutor em Psicologia Clnica pela United States International University. Professor do Departamento de Psicologia Clnica do Instituto de Psi- cologia da Universidade de Braslia. Coordenador do Laboratrio de Psicoterapia e Psicodiagnstico da Uni- versidade de Braslia. Maria da Graa B. Raymundo Mestre em Psicologia Clnica pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Professora Titular dos Cursos de Gra- duo e Ps-Graduao em Psicologia da Faculdade de Psicologia da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande Sul. Margareth da Silva Oliveira Psicloga. Mestre em Psicologia Clnica pela Pontificia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Doutora da Universidade Federal de So Paulo (Escola Paulista de Medicina). Professora dos Cursos de Graduao e Ps-Graduao da Pontif- cia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Neli Klix Freitas Psicloga. Doutora em Psicologia pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Regina Sonia Gattas F. do Nascimento Doutora em Psicologia pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, com formao em psicanlise. Professora no Curso de Graduao em Psicologia da Pontifcia Uni- versidade Catlica de So Paulo. Coordenadora do La- boratrio de Estudos em Psicodiagnstico (LEPSI) da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Profes- sora do curso de Rorschach da Sociedade Brasileira de Rorschach (SBRo), So Paulo. Silvio A. Ern Mdico Especialista em Psiquiatria pela Associao Brasileira de Psiquiatria (filiada Associa- o Mdica Brasileira). Especialista em Psiquiatria Fo- rense pela Associao Mdica Brasileira. Mdico de Pe- rcia e Anlise do Estado do Rio Grande do Sul Secre- taria da Justia e Segurana Pblica, disposio da Assemblia Legislativa do Estado. Mdico Perito do Poder Executivo Federal Ministrio da Sade Funda- o Nacional de Sade do RS. Consultor Tcnico-Fo- rense do Hospital Moinhos de Vento na rea de Geren- ciamento de Risco. Sonia Rovinski Mestre em Psicologia Social e da Per- sonalidade pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Doutoranda em Psicologia Clnica e da Sade pela Universidade de Santiago de Compostela, Espanha, em convnio com a Universidade Luterana do Brasil. Psicloga Judiciria do Tribunal de Justia do Estado do Rio Grande do Sul. Suzi Camey Mestre em Matemtica pela Universida- de Federal do Rio Grande do Sul. Doutoranda em Esta- tstica pela Universidade de So Paulo. Professora do Departamento de Estatstica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vera L.M. Figueiredo Mestre em Psicologia Social e da Personalidade pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Doutora do Curso de Psicologia da Universidade de Braslia (DF). Professora do Curso de Graduao e Ps-Graduao da Escola de Psicologia da Universidade Catlica de Pelotas (RS). Walter Trinca Doutor em Cincias, Livre-Docente e ex-Professor Titular do Instituto de Psicologia da Uni- versidade de So Paulo, onde coordenou o programa de Ps-Graduao em Psicologia Clnica. Psicanalista e mem- bro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanlise de So Paulo e da International Psychoanalytical Association. VI JUREMA ALCIDES CUNHA
  7. 7. com extrema satisfao que estou, aqui de novo, para apresentar o Psicodiagnstico, desta vez, em sua quinta edio revisada o Psicodiagnstico-V. Esta reflete certas inova- es surgidas na rea, bem como algumas mu- danas minhas quanto ao modo de ver as coi- sas. Mas, de forma mais importante, decorre do estmulo, apoio e reconhecimento que a obra tem tido por parte de todos vocs, alu- nos, colegas, amigos, assistentes, bolsistas e colaboradores, principais responsveis por este empreendimento que, s assim, tornou-se vi- vel em poucos meses. Recebam, pois, toda a minha gratido, j que a merecem. Os que conheceram as outras edies vo perceber que a estrutura bsica da obra conti- nua a mesma, embora pouca coisa permanea exatamente igual, com a maioria dos captulos reescritos, sendo outros introduzidos, de for- ma a ser possvel absorver novos enfoques e idias. Desse modo, tenho o imenso orgulho de assinalar e agradecer a colaborao dos dou- tores Aidyl Q. Prez-Ramos, Andr Jacquemin, Anna Elisa Amaral, Blanca Guevara Werlang, Ccero Vaz, Cludio Hutz, Denise Bandeira, Eli- zabeth do Nascimento, Irani Argimon, Jandyra Fachel, Leila Tardivo, Marcelo Tavares, Marga- reth Oliveira, Neli Freitas, Regina do Nascimen- to, Vera Figueiredo e Walter Trinca; das douto- randas Sonia Rovinski e Suzi Camey, bem como de registrar, igualmente, a ajuda da mestra Maria da Graa Raymundo e dos especialistas Sil- vio Ern e Candida Pires de Camargo. Quando foi lanada a primeira edio, h quase quinze anos, isso aconteceu pela cora- gem e apoio essencial com que a Editora Artes Mdicas recebeu nossas primeiras idias (mi- nhas, da professora Neli e da professora Maria da Graa) de, ambiciosamente, querer preen- cher uma lacuna no que se refere a fontes bi- bliogrficas no campo do psicodiagnstico, ati- tude que a Editora mantm at hoje. As edi- es subseqentes ocorreram pela acolhida que a obra teve em quase todo o pas e que espero que continue. Nesta quinta edio, entretanto, desejo, alm de externar meu reconhecimento aos vin- te e dois colaboradores, agradecer imensamen- te Blanca Guevara Werlang, que auxiliou, de forma eficiente, na reviso final, e, de maneira especial, Nilza Cidade Cardarelli, pois, sem seu inestimvel trabalho de secretaria, este li- vro no seria possvel. Jurema Alcides Cunha Prefcio
  8. 8. Trabalhando h vrios anos em cursos de ps- graduao em psicologia clnica, freqen- tados por psiclogos de vrias partes do Bra- sil, muitas vezes tivemos oportunidade de cons- tatar, e os prprios alunos tambm, que eles deveriam ter tido uma preparao melhor e mais extensiva em psicodiagnstico. Todavia, tornava-se muito claro que o problema no poderia ser explicado apenas em termos de deficincias de cursos, mas tambm pela fal- ta de mais livros de texto e material biblio- grfico em geral. Vrias vezes, ento, nos foi solicitado que escrevssemos um livro sobre psicodiagnstico. bem verdade que nem todos os alunos de cursos de Psicologia e nem todos os psic- logos clnicos se mostram vidos por aprender mais a respeito de psicodiagnstico. Como Weiner comenta, a emergncia, na segunda metade do sculo, de abordagens humansti- cas de certa maneira levantou juzos moralsti- cos a respeito do uso de instrumentos para a classificao diagnstica. A influncia de Mas- low e Rogers levou muitos profissionais a con- siderarem que o que verdadeiro sobre as pessoas somente como experienciam a si mesmas e no qualquer coisa demonstrada por qualquer avaliao externa e, por outro lado, que as tentativas de classificao, sejam de acordo com traos de personalidade ou di- menses do comportamento, so procedimen- tos desumanizantes, que despem as pessoas de sua liberdade e dignidade (Weiner, 1983, p.450). A nfase na individualidade de cada pes- soa levou muitos profissionais a adotarem uma Prefcio da primeira edio posio contra a utilizao de processos psi- codiagnsticos ou, embora aceitando a sua utilidade, a demonstrarem um temor de clas- sificar as pessoas. A dificuldade chegou a tal ponto que alguns profissionais recebiam o en- caminhamento de uma criana, por problema emocional, e, aps a utilizao de todo um processo, incluindo uma extensiva bateria de testes, acabavam por concluir que a criana apresentava um problema emocional. Felizmente, aps os recentes avanos no campo do psicodiagnstico, a maioria dos psi- clogos acabou por reconhecer que se, em ca- sos especficos, a avaliao psicolgica pode ter levado a classificaes errneas ou discri- minatrias, como lembra Weiner, isto no re- flete quaisquer caractersticas inerentemente desumanizantes dos instrumentos de psico- diagnstico (op.cit., p.453). O psicodiagnstico uma tarefa do psic- logo clnico e a nica que lhe privativa. , pois, de fundamental importncia que consi- ga exerc-la e exerc-la bem. Por outro lado, medida que as pesquisas vm demonstrando a importncia etiolgica de fatores emocionais em muitas doenas, tradi- cionalmente tidas como da exclusividade do campo da medicina fsica, mais os profissio- nais vm considerando a relevncia de refinar seus recursos de avaliao, porque podem as- sumir as funes de um expert. Assim, cada vez menos casos so encaminhados para um exame psicolgico e cada vez mais os psic- logos se dedicam a resolver importantes ques- tes diagnsticas. Desse modo, na medida em que o psicodiagnstico vai contribuindo subs-
  9. 9. tancialmente para a tomada de decises vitais na vida dos indivduos e, em especial, os psi- clogos vo conseguindo assessorar, de forma fundamental, profissionais de outras reas, cresce a importncia da boa formao e espe- cializao neste campo. Foi dessa maneira que surgiu o plano deste livro, com uma ambiciosa perspectiva de aten- der necessidades e interesses de alunos e pro- fissionais. Aos alunos, oferecemos toda uma viso do processo psicodiagnstico, mais um punhado de informaes sobre tcnicas, ter- minando por sugestes para o material bsico de um gabinete para psicodiagnstico. Aos psiclogos, pelo menos parte dessas informa- es pode interessar, alm de termos procura- do apresentar alternativas no manejo de v- rias tcnicas, bem como dados recentes sobre o uso de vrios instrumentos. Na primeira parte do livro, discutimos as- pectos conceituais e operacionais do psicodiag- nstico, introduzimos questes bsicas, enfo- camos o problema do encaminhamento e a dinmica da interao clnica, para, ento, pas- sarmos a examinar todo o processo do psico- diagnstico, desde a entrevista inicial, atravs de seus vrios passos, at a comunicao dos resultados. Os captulos iniciais, at a coloca- o de questes bsicas, ficaram sob a nossa responsabilidade, passando a professora Ma- ria da Graa B. Raymundo a escrever sobre o contato com o paciente e a dinmica da inte- rao clnica. No Captulo 4, houve a colabora- o ativa das trs autoras, cabendo profes- sora Neli Klix Freitas, em especial, o desenvol- vimento dos itens relativos entrevista, e pro- fessora Maria da Graa, a maior parte da res- ponsabilidade pelos textos sobre os passos do processo. Foi de fundamental importncia a contribuio dessas profissionais, nessa altura do livro, pelo seu contato constante com alu- nos da graduao e o seu conhecimento sobre suas necessidades. Na segunda parte do livro, procuramos exa- minar os recursos de avaliao, partindo de suas implicaes tericas, referindo, a seguir, pontos importantes em vrias reas, para che- gar abordagem de questes eminentemente prticas, tais como sugestes sobre o material bsico de um consultrio de psicodiagnstico e a apresentao de uma espcie de catlogo de tcnicas, oferecendo informaes sucintas, mas bsicas, para o profissional ter acesso f- cil a algumas alternativas na escolha de instru- mentos para uma bateria de testes. Aqui, no- vamente, a autora snior introduziu o exame de recursos para a avaliao, ficando ainda a seu cargo a discusso de recursos na rea inte- lectual. A professora Neli e a professora Maria da Graa assumiram, respectivamente, as duas reas seguintes, enquanto o ltimo item foi de- senvolvido em comum pela professora Neli e por ns. No Catlogo de tcnicas teis, a maior par- te dos instrumentos ficou sob a nossa responsa- bilidade, colaborando as demais autoras confor- me as experincias profissionais de cada uma. A terceira parte do livro foi acrescentada ao plano inicial, por parecer necessria a inclu- so de alguns manejos clnicos de tcnicas de uso comum e que haviam constado no mate- rial bsico para um gabinete de psicodiag- nstico. Um fator que tambm pesou bastan- te na escolha de tcnicas foi a sua importn- cia. Assim, num levantamento recente, reali- zado nos Estados Unidos, em 221 servios cl- nicos, o WAIS ficou classificado em primeiro lugar, cabendo o segundo lugar ao MMPI, que superou inclusive o Rorschach, que, por mui- tos e muitos anos, havia ocupado o primeiro posto em termos de tcnicas de personalida- de. Todavia, este, o Bender, Complemento de Sentenas e outros ficaram entre os instrumen- tos mais utilizados pelos psiclogos clnicos da- quele pas (Weiner, 1983). Dessa maneira, deci- dimos dar um destaque especial s escalas Wechsler, ao MMPI, ao Bender e ao Rorschach, que foram tcnicas que ficaram a nosso cargo, alm do Complemento de Sentenas. A profes- sora Neli ficou responsvel pelo CAT, Famlia, Garatujas e TAT, enquanto a professora Maria da Graa desenvolveu o captulo sobre a Figura Huma- na. O captulo sobre o HTP foi em parte escrito pela professora Neli e, em parte, por ns. Nesta parte do livro, cada autora desenvolveu seu assunto como achou melhor, seja do ponto de vista di- dtico, seja quanto sua experincia pessoal. Cabe aqui uma meno especial ao traba- lho da equipe. Desde que ns esboamos o X JUREMA ALCIDES CUNHA
  10. 10. rascunho inicial sobre o plano do livro, em abril em 1985, e convidamos as duas professoras, colegas e amigas, a participarem do projeto, temos tido reunies praticamente mensais para a discusso de sugestes, no sentido de que a obra viesse a atender realmente as necessida- des e os interesses de seu possvel leitor. Du- rante esse perodo, foram examinadas muitas questes e introduzidas modificaes, de ma- neira que o trabalho pudesse refletir o que as trs autoras consideraram mais importante, vlido e adequado. H muito, tnhamos em mente escrever este livro. Todavia, foi muito importante a colaborao das duas co-autoras para que fosse desencadeado o processo de sua elaborao e levado at o fim. Esperamos, agora, ter correspondido ex- pectativa daqueles alunos e colegas que, h anos, nos solicitam tal empreendimento e aos quais agradecemos o estmulo, a confiana e o reconhecimento. Jurema Alcides Cunha PSICODIAGNSTICO V XI
  11. 11. Sumrio PARTE I PSICODIAGNSTICO MDULO I Fundamentos ............................................................................................................ 19 1 Estratgias de avaliao: perspectivas em psicologia clnica ............................................ 19 Jurema Alcides Cunha 2 Fundamentos do psicodiagnstico ........................................................................................ 23 Jurema Alcides Cunha MDULO II Questes Bsicas.................................................................................................... 32 3 O problema.............................................................................................................................. 32 Jurema Alcides Cunha 4 O contato com o paciente ..................................................................................................... 38 Maria da Graa B. Raymundo MDULO III Recursos Bsicos para o Diagnstico ................................................................ 45 5 A entrevista clnica .................................................................................................................. 45 Marcelo Tavares 6 A histria do examinando ...................................................................................................... 57 Jurema Alcides Cunha 7 O exame do estado mental do paciente .............................................................................. 67 Silvio A. Ern MDULO IV Estratgias Especficas em Entrevista ............................................................... 75 8 A entrevista estruturada para o DSM-IV ............................................................................. 75 Marcelo Tavares 9 Entrevista motivacional .......................................................................................................... 88 Margareth da Silva Oliveira 10 Entrevista ldica ...................................................................................................................... 96 Blanca Guevara Werlang
  12. 12. MDULO V Operacionalizao do Processo ........................................................................ 105 11 Passos do processo psicodiagnstico .................................................................................. 105 Jurema Alcides Cunha PARTE II AVALIAO, MTODOS E TCNICAS MDULO VI Alguns Tipos Especficos de Avaliao .......................................................... 141 12 Avaliao inter e transgeracional da famlia ..................................................................... 141 Blanca Guevara Werlang 13 Avaliao prospectiva: o exame precoce da criana ........................................................ 151 Aidyl L.M. de Queiroz Prez-Ramos 14 Avaliao psicomtrica: a qualidade das medidas e o entendimento dos dados ........ 158 Jandyra M.G. Fachel, Suzi Camey 15 O ABC da avaliao neuropsicolgica ................................................................................. 171 Jurema Alcides Cunha 16 Avaliao de sintomas demenciais em idosos: questes essenciais ................................ 177 Irani I.L. Argimon, Candida H. Pires de Camargo 17 Percia psicolgica na rea forense .................................................................................... 183 Sonia Rovinski 18 Avaliao retrospectiva: autpsia psicolgica para casos de suicdio ............................ 196 Blanca Guevara Werlang MDULO VII Catlogo de Tcnicas teis.............................................................................. 202 PARTE III MANEJO CLNICO DE TCNICAS MDULO VIII Bender ................................................................................................................ 293 19 Bender na criana e no adolescente ................................................................................... 295 Jurema Alcides Cunha 20 Bender no adulto .................................................................................................................. 317 Jurema Alcides Cunha MDULO IX Tcnicas de Manchas de Tinta ......................................................................... 340 21 Rorschach tradicional: noes de Klopfer ...................................................................... 341 Jurema Alcides Cunha XIV JUREMA ALCIDES CUNHA
  13. 13. 22 Novas tendncias: introduo ao Sistema Compreensivo de Exner................................ 368 Regina Sonia Gattas F. do Nascimento Anna Elisa de Villemor A. Gntert 23 Rorschach Temtico: um complemento significativo ao Rorschach Tradicional .............. 378 Andr Jacquemin 24 A tcnica de Zulliger no processo de avaliao da personalidade ................................. 386 Ccero Emidio Vaz MDULO X Tcnicas de Contar Histrias ............................................................................. 399 25 TAT Teste de Apercepo Temtica, conforme o modelo interpretativo de Murray .. 399 Neli Klix Freitas 26 TAT, conforme o modelo de Bellak ..................................................................................... 409 Blanca Guevara Werlang 27 CAT e sua interpretao dinmica ...................................................................................... 416 Neli Klix Freitas 28 Teste das Fbulas: novas perspectivas ................................................................................ 421 Jurema Alcides Cunha, Blanca Guevara Werlang, Irani I.L. Argimon 29 Desenvolvimentos do Procedimento de Desenhos-Estrias (D-E) .................................... 428 Walter Trinca, Leila S.L.P. Cury Tardivo MDULO XI Inventrio Multifsico Minnesota de Personalidade ................................... 439 30 Administrao e orientao geral para o manejo do MMPI ............................................ 439 Jurema Alcides Cunha 31 MMPI: Escalas de validade e escalas clnicas ..................................................................... 454 Jurema Alcides Cunha 32 Cdigos de dois pontos e outras abordagens do MMPI .................................................. 480 Jurema Alcides Cunha MDULO XII Tcnicas de Fazer Desenhos ........................................................................... 507 33 Desenho da Figura Humana ................................................................................................. 507 Claudio Simon Hutz, Denise Ruschel Bandeira 34 Desenho da Famlia ............................................................................................................... 513 Neli Klix Freitas, Jurema Alcides Cunha 35 Desenho da Casa, rvore e Pessoa (HTP) ........................................................................... 519 Neli Klix Freitas, Jurema Alcides Cunha MDULO XIII Wechsler Intelligence Scales (WIS) ............................................................... 528 36 Escalas Wechsler .................................................................................................................... 529 Jurema Alcides Cunha 37 WISC-III .................................................................................................................................. 603 Vera L.M. Figueiredo PSICODIAGNSTICO V XV
  14. 14. 38 WAIS-III ................................................................................................................................... 615 Elizabeth do Nascimento Anexo A ........................................................................................................................................... 628 Anexo B ........................................................................................................................................... 630 PASSOS BSICOS DO DESENVOLVIMENTO DA CRIANA (PBDC) Aidyl L. M. de Queiroz Prez-Ramos Anexo C ........................................................................................................................................... 634 Anexo D ........................................................................................................................................... 637 Anexo E ........................................................................................................................................... 639 Referncias Bibliogrficas ............................................................................................................. 643 ndice Onomstico ......................................................................................................................... 662 ndice ............................................................................................................................................... 668 XVI JUREMA ALCIDES CUNHA
  15. 15. PARTE I PSICODIAGNSTICO
  16. 16. PSICODIAGNSTICO V 19 MDULO I Fundamentos 1Estratgias de avaliao: perspectivas em psicologia clnica Jurema Alcides Cunha As sementes da avaliao psicolgica, que hoje constitui uma das funes do psic- logo, foram lanadas numa fase que abrangeu o fim do sculo XIX e o incio do sculo XX, poca que marcou a inaugurao do uso dos testes psicolgicos. Historicamente, portanto, justifica-se a imagem que o leigo formou do psiclogo, como um profissional que usa tes- tes, j que principalmente testlogo o que ele foi, na primeira metade do sculo XX (Gro- th-Marnat, 1999). Atualmente, o psiclogo uti- liza estratgias de avaliao psicolgica, com objetivos bem definidos, para encontrar res- postas a questes propostas com vistas solu- o de problemas. A testagem pode ser um passo importante do processo, mas constitui apenas um dos recursos de avaliao possveis. Psicodiagnstico uma avaliao psicolgica, feita com propsitos clnicos; portanto, no abarca todos os modelos de avaliao psicol- gica de diferenas individuais (Cunha et alii, 1993; Cunha, 1996). Estratgias de avaliao psicolgica, como expresso cada vez mais utilizada na literatura especfica, aplicam-se a uma variedade de abor- dagens e recursos disposio do psiclogo no processo de avaliao. Em primeiro lugar, estratgia de avaliao pode-se referir ao enfoque terico adotado pelo psiclogo. A avaliao psicolgica foi fun- damentalmente influenciada, durante o scu- lo XX, pelas principais correntes de pensamen- to que salientaram, cada uma, a primazia do comportamento, do afeto e da cognio, na organizao e no funcionamento do psiquis- mo humano. Na primeira metade do sculo XX, predo- minaram conceituaes comportamentais e psicanalticas, enquanto a segunda metade foi assinalada pela chamada revoluo cogniti- va (Mahoney, 1993, p.8). A tais linhas de pensamento corresponde- ram, originariamente, estratgias de avaliao especficas, isto , mtodos e instrumentos t- picos. Mas, j nas ltimas dcadas, foi toman- do corpo uma tendncia para a integrao, que j vinha se esboando h algum tempo. Desse modo, a estratgia da avaliao comportamen- tal foi abdicando da simples identificao de comportamentos-alvo, perfeitamente distin- guveis e observveis, mas numa abordagem muito idiossincrsica, para comear a incorpo- rar modalidades cognitivas e, mesmo, afetivas, apesar das fortes objees iniciais. Por outro lado, at psiclogos da mais tradicional orien- tao dinmica tm, muitas vezes, recorrido a estratgias de outra orientao conceitual, devido a razes prticas ou cientficas, neste caso, por vezes, pressionados por membros da comunidade acadmica para serem mais efi-
  17. 17. 20 JUREMA ALCIDES CUNHA cientes, com menos tempo e custo. Tambm, profissionais com referencial cognitivo passa- ram a lanar mo de tcnicas projetivas para entendimento de motivaes pessoais e de outros aspectos idiossincrsicos (Piotrowski & Keller, 1984) e igualmente incorporaram avan- os do campo da neurocincia (Mahoney, 1993). Tal tendncia a mesclar estratgias de dife- rentes abordagens tericas pode ser conside- rada positiva como um recurso cientfico de nos aproximarmos de nosso objeto de estudo, para explicar aspectos clinicamente relevantes. Po- rm, como salienta Gabbard (1998), para al- guns clnicos, o desvio de uma perspectiva te- rica para outra, dependendo das necessida- des do paciente, pode ser embaraoso e difcil de manejar, e, a propsito, lembra que Wal- lerstein, em 1988, assinalou que possvel para os clnicos prestarem ateno ao fenme- no clnico descrito atravs de cada perspectiva terica, sem adotar o modelo metapsicolgico completo. Ainda comenta que Cooper, em 1977, propugnou por maior flexibilidade te- rica, afirmando que diferentes pacientes e categorias diagnsticas sugerem diferentes modelos tericos (p.57). Outro emprego da expresso estratgia de avaliao se refere metodologia adotada pelo psiclogo. Numa avaliao com propsitos cl- nicos, por exemplo, possvel usar mtodos mais individualizados ou qualitativos ou, ain- da, mtodos psicomtricos, em que o manejo se fundamenta em normas de grupos. A tais mtodos, pode-se acrescentar a entrevista, que tem precedncia histrica sobre os demais (Goldstein & Hersen, 1990), bem como a ob- servao sistemtica de comportamentos, da linha comportamental. Tambm no que se refere metodologia, observa-se que o psiclogo no costuma se- guir uma orientao puramente nomottica ou idiogrfica. Por outro lado, a prpria opo quanto a mtodos sofre a influncia de even- tos e avanos que ocorrem nesta e noutras reas da psicologia, bem como de outras cin- cias afins. Nota-se ascenso e declnio de al- guns mtodos e vice-versa, como numa espi- ral histrica, com vrios nveis deixados de lado e retomados em diferentes nveis (p.4). Goldstein e Hersen (1990) apresentam a en- trevista como um exemplo caracterstico desse tipo de movimento. Historicamente, como o mtodo mais antigo, individualizado e, portan- to, no-estruturado, utilizado por psiclogos, psiquiatras e por seus predecessores, foi con- siderado no-fidedigno, j em 1967, por Zu- bin, ao analisar a concordncia entre avaliado- res em entrevistas psiquitricas. No obstan- te, sob a influncia de tendncias cientficas, que incentivavam o uso de critrios mais obje- tivos, a entrevista voltou a ganhar seu status na psiquiatria, num formato estruturado, com propriedades psicomtricas bem estabelecidas e refletindo avanos recentes. Assim, no momento em que a cincia e o mercado tornaram acessveis vrios tipos de en- trevistas estruturadas, no campo da psiquia- tria, tal estratgia pareceu sobrepor-se, quan- to sua utilidade, em relao a qualquer m- todo da psicologia, objetivo ou projetivo. As consideraes levantadas, em princpio, foram absolutamente lgicas, pois, se pensarmos que, uma vez que a entrevista psiquitrica tem sido utilizada como critrio externo para a valida- o de testes, claro que a entrevista ter prio- ridade, quando se pode usar igualmente, de preferncia o prprio critrio de medida do que o teste (Goldstein & Hersen, 1990, p.5). Po- rm, embora a entrevista estruturada tenha boas caractersticas psicomtricas, a questo diagnstica, ainda que em situao melhor, permanece mais complexa do que seria dese- jvel (Kendall & Clarkin, 1992, p.833). J na psicologia, a entrevista estruturada no teve to grande aceitao, uma vez que, na avaliao com propsitos clnicos, o psic- logo, em princpio, no se limita a um nico mtodo (como a entrevista), mas tende a aliar enfoques quantitativos e qualitativos e, assim, consegue testar, at certo ponto, a consistn- cia e a fidelidade dos subsdios que suas estra- tgias lhe fornecem, para chegar a inferncias com grau razovel de certeza. Por outro lado, mesmo considerando a qualidade psicomtrica da entrevista estruturada, faltam-lhe elementos importantes de rapport, riqueza idiogrfica e a flexibilidade que caracteriza interaes menos estruturadas (Groth-Marnat, 1999, p.7).
  18. 18. PSICODIAGNSTICO V 21 Aqui, o momento de lembrar o outro sen- tido em que pode ser empregada a expresso estratgias de avaliao, agora com referncia especfica s medidas do psiclogo. Embora, como no caso da entrevista, elas tenham sido algo desacreditadas, durante certo perodo, em vrios pases, esto numa fase de ascenso, no s por apresentarem, cada vez mais, melhor qualidade metodolgica, mas porque, especial- mente do ponto de vista clnico, tornaram-se mais necessrias para resolver questes diag- nsticas, mormente aps a valorizao cien- tfica dos quadros de co-morbidade psiqui- trica. Tais casos somente passaram a se consti- tuir em objeto de investigao por parte da co- munidade cientfica a partir de 1987, porque antes disso, nas classificaes nosolgicas, ha- via regras de excluso hierrquica, que leva- ram a uma considervel perda de informaes clnicas (Di Nardo & Barlow, 1990). Um dos problemas observados teve relao com transtornos de ansiedade que, apesar da incidncia mais tarde verificada, ocupavam uma posio hierarquicamente inferior ao transtorno de depresso maior, no DSM-III (APA, 1980), e, ento, mesmo preenchendo critrios diagnsticos de um ou outro trans- torno de ansiedade especfico, eram excludos como diagnstico adicional. Ora, como a con- dio de co-morbidade desses transtornos com o episdio de depresso maior, hoje, reco- nhecidamente muito comum, possvel ima- ginar os reflexos de tal excluso, como de ou- tras, no s para a compreenso do caso clni- co e de sua etiologia, como, tambm, para a determinao de focos de interveno clnica. Entretanto, as mudanas que ocorreram nas classificaes, apesar de resolverem uma srie de dificuldades, trouxeram complexas implica- es no s para questes diagnsticas e tera- puticas, como tambm tiveram profundos re- flexos em modelos tericos (Boulenger & La- valle, 1993; Cloninger, 1990; Cunha & Streb, 1998; Hiller, Zandig & Bose; 1989; Lydiard, 1991; Mineka, Watson & Clark, 1998). Dessa maneira, pode-se afirmar que, com o decorrer do tempo, houve, indiscutivelmen- te, refinamentos nos sistemas de classificao, como, da mesma forma, ficou mais abrangen- te o conceito de co-morbidade, com conse- qente melhoria das estratgias de avaliao. Mas estas sofrem, tambm, reflexos de ques- tes pendentes, tanto no que se refere in- tensidade de sintomatologia, clinicamente im- portante para definir a situao de co-morbi- dade (Boulenger & Lavalle, 1993), como na caracterizao de sndromes e na formulao diagnstica. Por exemplo, se, por um lado, a classificao do transtorno misto de ansieda- de e depresso foi proposta aparentemente para resolver um problema diagnstico rela- cionado com co-morbidade, por outro lado, carrega consigo o nus dessa situao, isto , confronta a questo de se determinar que ca- ractersticas distinguem tal categoria nosol- gica, que sintomas se superpem e em que medida (Cunha, Streb & Serralta, 1997b, p.237). Em pesquisa, tal problemtica pode ser fasci- nante, mas, na avaliao psicolgica do caso individual, pode resultar em dvidas cruciais, se est em jogo uma formulao diagnstica. Por outro lado, o psiclogo, muitas vezes, identifica sintomas subclnicos ou no, reco- nhecendo a necessidade de definir nveis de psi- copatologia, uma vez que estes costumam di- ferir se o examinando um caso que est em tratamento psiquitrico na comunidade, um sujeito que recorre a centros de ateno mdi- ca primria ou um paciente de uma unidade psiquitrica (Katon & Roy-Byrne, 1991). Consi- derando a importncia de definir tais nveis de psicopatologia, vem se observando um cres- cente interesse por um modelo dimensional, relacionado com instrumentos psicomtricos, na avaliao de pacientes, que provavelmente ter reflexos no formato do DSM-V (Brown & Barlow, 1992). Tais estratgias de avaliao incluem instru- mentos de auto-relato e podem ser considera- das como medidas de sintomas ou de sndro- mes (Clark & Watson, 1991). Um exemplo do primeiro caso o Inventrio de Depresso de Beck, que uma escala sintomtica, e do se- gundo caso, um dos instrumentos mais usa- dos no mundo, o MMPI. Outras estratgias desse tipo podem diferir conforme a orienta- o terica do examinador, de acordo com as
  19. 19. 22 JUREMA ALCIDES CUNHA caractersticas do examinando e a questo pro- posta. Com tais perspectivas do ponto de vista cl- nico, salienta-se a importncia do psiclogo bem se instrumentalizar, principalmente no que se refere a recursos psicomtricos, j que a ne- cessidade principal, em nvel de contribuio para o diagnstico, tem sido definida como di- mensional (Brown & Barlow, 1992). Escalas, in- ventrios e check-lists esto na ordem do dia. As escalas Wechsler e muitos outros instrumen- tos vm sendo constantemente revisados, re- normatizados ou reapresentados (Hutz & Ban- deira, 1993), e intensificam-se os esforos para adaptaes no Brasil. As chamadas WIS (We- chsler Intelligence Scales), cada vez menos empregadas para a determinao de nvel in- telectual, constituem-se em importantes ins- trumentos para atender necessidades muito es- pecficas no diagnstico de psicopatologias e na avaliao neuropsicolgica, e so um bom exemplo de tais esforos. Quanto s tcnicas projetivas, tambm po- dem ser consideradas estratgias de avaliao. Historicamente caracterizadas por seu estilo de avaliao impressionista (Cronbach, 1996), que causa pruridos em acadmicos mais compro- metidos com uma posio cientfica sofistica- da, tiveram um declnio de seu uso em pesqui- sa, apesar de continuarem populares. A maio- ria dos autores que defendem o seu uso o faz visando explorao de aspectos dinmicos da personalidade, que adquirem significado sob a tica de um referencial terico ao qual h difcil acesso via psicomtrica (Cunha & Nu- nes, 1996, p.341). Isso significa que no se pode simplesmente transformar uma tcnica projetiva num teste psicomtrico, embora mui- tas delas suportem o uso de procedimentos que permitem avaliar sua qualidade como medida. As razes pelas quais conservam sua popu- laridade so variadas. Hutz e Bandeira (1993) acham que, dentre as tcnicas projetivas, se mantm aquelas que receberam refinamen- tos em seus sistemas de avaliao e interpre- tao (p.98). J Dana (1984) comentava, com certo senso comum, que tambm se mantm os instrumentos que aprendemos a usar em nossos cursos de graduao. difcil substitu- los por instrumentos mais sofisticados e, as- sim, permanecem como herana acadmica de professor a aluno. As substituies, em seu modo de ver, ocorreriam por razes pragmti- cas ou ticas. De nossa parte, acreditamos que um dos mais importantes fatores para a inova- o e renovao, na rea de testes, a partici- pao em encontros ou em congressos de psi- clogos. De alguma forma, pode-se pensar que as tcnicas projetivas ambicionam medir o que Herman van Praag (1992) chamou de psico- patologia subjetiva, que, embora considere, por definio, mensurvel, verificvel e ex- tremamente importante para o diagnstico, ao mesmo tempo, acha que tais recursos virtual- mente inexistem (p.255). Na realidade, ainda que as tcnicas projeti- vas no tenham justificado todo o entusiasmo com que foram recebidas por muitos psiclo- gos, nem meream se constituir como meros estmulos para interpretaes subjetivas, bas- tante literrias, e sejam suficientemente com- plexas para serem manejadas apenas numa base quantitativa, cientificamente muitas de- las possuem o seu status indiscutvel como re- cursos importantes de avaliao psicolgica e, segundo Gabbard (1998), especialmente, na avaliao psicodinmica. Estratgias de avaliao , pois, uma expres- so com uma abrangncia semntica muito ampla e flexvel, ainda que possa ser usada de maneira muito especfica. Psiclogos lanam mo de estratgias quando realizam avaliaes. Numa perspectiva clnica, a avaliao que fei- ta comumente chamada de psicodiagnsti- co, porque procura avaliar foras e fraquezas no funcionamento psicolgico, com um foco na existncia ou no de psicopatologia.
  20. 20. PSICODIAGNSTICO V 23 J disseram e repetimos que, enquanto os psi- clogos em geral realizam avaliaes, os psi- clogos clnicos, entre outras tarefas, realizam psicodiagnsticos. Pode-se dizer que avaliao psicolgica um conceito muito amplo. Psico- diagnstico uma avaliao psicolgica, feita com propsitos clnicos e, portanto, no abran- ge todos os modelos de avaliao psicolgica de diferenas individuais. um processo que visa a identificar foras e fraquezas no funcio- namento psicolgico, com um foco na existn- cia ou no de psicopatologia. Isso no signifi- ca que a classificao psiquitrica seja um ob- jetivo precpuo do psicodiagnstico, mas sim que, para medir foras e fraquezas no funcio- namento psicolgico, devem ser considerados como parmetros os limites da variabilidade normal (Yager & Gitlin, 1999). esta aborda- gem que confere a perspectiva clnica a esse tipo de avaliao de diferenas individuais. O psicodiagnstico derivou da psicologia clnica, introduzida por Lighter Witmer, em 1896, e criada sob a tradio da psicologia aca- dmica e da tradio mdica. Consta que nem ao fundador da psicologia clnica agradou a designao clnica, adotada apenas por fal- ta de melhor alternativa (Garfield, 1965). No obstante, tudo indica que essa tradio mdi- ca, associada psicologia clnica, teria efeitos marcantes na formao da identidade profis- sional do psiclogo clnico, oferecendo-lhe, por um lado, modelos de identificao e, por ou- tro, acentuando as suas dificuldades nas rela- es interprofissionais. Aquele fim de sculo e o comeo do seguin- te foram marcantes pelos trabalhos de Galton, que introduziu o estudo das diferenas indivi- duais, de Cattell, a quem se devem as primei- ras provas, designadas como testes mentais, e de Binet, que props a utilizao do exame psicolgico (por meio de medidas intelectuais) como coadjuvante da avaliao pedaggica. Por tais razes, a esses trs autores atribuda a paternidade do psicodiagnstico (Fernndez- Ballesteros, 1986). A nossa tradio psicomtrica, assim alicer- ada, ficou melhor sedimentada pela difuso das escalas Binet, seguidas pela criao dos testes do exrcito americano, Alfa e Beta. Se a contribuio da psicometria foi e essencial- mente importante para garantir a cientificida- de dos instrumentos do psiclogo, torna-se importante, conforme salienta Groth-Marnat (1999), estabelecer a diferena que existe en- tre o psicometrista e o psiclogo clnico. O pri- meiro tende a valorizar os aspectos tcnicos da testagem, enquanto, no psicodiagnstico, h a utilizao de testes e de outras estrat- gias, para avaliar um sujeito de forma sistem- tica, cientfica, orientada para a resoluo de 2Fundamentos do psicodiagnstico Jurema Alcides Cunha
  21. 21. 24 JUREMA ALCIDES CUNHA problemas. O psicometrista utiliza testes para obter dados, e, em sua abordagem, o pro- duto final muitas vezes uma srie de traos ou descries de capacidades. Mas impor- tante lembrar que essas descries tipicamen- te no esto relacionadas com o contexto to- tal da pessoa e nem se voltam para os proble- mas singulares que ela possa estar enfrentan- do (p.3). Por outro lado, ainda no sculo passado, a comunidade cientfica foi muito marcada pe- las descobertas ocorridas no campo da biolo- gia, com incio na verificao da correlao de sndromes clnicas com modificaes mor- folgicas observadas na autpsia (Klerman, 1990, p.15) e continuada por outra srie de descobertas, como pelas tentativas feitas para correlacionar sndromes mentais com achados de autpsia e dados bacteriolgicos (p.16). A base cientfica fornecida medicina pela bio- logia levava psiquiatras a buscarem as causas da doena mental no organismo e, em espe- cial, no sistema nervoso central. Em conseqn- cia, os pacientes psiquitricos, no mais con- siderados lunticos, se tornaram nervosos (...) ou neurticos (Wolman, 1965, p.1121). Dessa poca data a diviso dicotmica dos transtornos psiquitricos em orgnicos e funcionais. Foi nessa escola pr-dinmica da psiquiatria que surgiu Kraepelin, que se nota- bilizou por seu sistema de classificao dos transtornos mentais e, especialmente, por seus estudos diferenciais entre esquizofrenia e psi- cose manaco-depressiva. Em conseqncia, as classificaes nosolgicas e o diagnstico di- ferencial ganharam nfase. No obstante, mesmo no perodo entre as duas grandes guerras, a classificao das doen- as mentais pressupunha uma hierarquia, con- forme o modelo mdico, em grandes classes: transtornos mentais orgnicos, psicoses, neu- roses, transtornos de personalidade e estados reativos/transitrios. Quando se evidenciava uma condio orgnica, esta tomava prece- dncia sobre todos os outros diagnsticos (Klerman, 1990, p.18). Neste cenrio, tiveram especial importncia as obras de Freud e Krae- pelin, caracterizando bem a diferena entre estados neurticos e psicticos, dentre os trans- tornos classificados como funcionais (no-or- gnicos). Tal distino foi considerada muito ade- quada porque parecia combinar cinco aspectos da psicopatologia, simultaneamente: 1) sintomas descritivos; 2) causao presumida; 3) psicodi- nmica; 4) justificao para hospitalizao; 5) recomendao sobre tratamento (p.18-19). Deste modo, Freud, que provinha da me- lhor tradio neurofisiolgica, representou o primeiro elo de uma corrente de contedo di- nmico, logo seguido pelo aparecimento do teste de associao de palavras, de Jung, em 1906, e fornecendo lastro para o lanamento, mais tarde, das tcnicas projetivas. Nesse cenrio, Rorschach publicou sua mo- nografia, em 1921, que teve maior divulgao na dcada seguinte. O teste passou a ser utili- zado como um passo essencial (e, s vezes, nico) do processo de diagnstico. A grande popularidade alcanada nas dcadas de qua- renta e cinqenta atribuda ao fato de que os dados gerados pelo mtodo eram compa- tveis com os princpios bsicos da teoria psi- canaltica (Vane & Guarnaccia, 1989, p.7). Esse foi o perodo ureo das tcnicas de personalidade. Embora o Rorschach e o TAT fossem os instrumentos mais conhecidos, co- mearam a se multiplicar rapidamente as tc- nicas projetivas, como o teste da figura huma- na, o Szondi, o MPAS e tantos outros. O entusiasmo que cercou o advento das tcnicas projetivas pode ser, em grande parte, explicado por dois fatores de peso: 1) o fato de que os testes, to valorizados na poca an- terior, principalmente na rea militar e da in- dstria, j no pareciam to teis na avalia- o de problemas da vida (neurose, psicose, etc.) (Groth-Marnat, 1999, p.4), e 2) a valori- zao atribuda pela comunidade psiquitrica ao entendimento dinmico. Entretanto, a partir de ento, as tcnicas projetivas comearam a apresentar certo de- clnio em seu uso, por problemas metodolgi- cos, pelo incremento de pesquisas com instru- mentos alternativos, como o MMPI e outros inventrios de personalidade, por sua associa- o com alguma perspectiva terica, notavel- mente a psicanaltica (Goldstein & Hersen, 1990), e pela nfase na interpretao intuitiva
  22. 22. PSICODIAGNSTICO V 25 apesar dos esforos para o desenvolvimento de sistemas de escore (Vane & Guarnaccia, 1989). Apesar disso, essas tcnicas ainda so bastante utilizadas, embora com objees, por parte dos psiclogos que propugnam por avalia- es de orientao comportamental e biolgica. Atualmente, h indiscutvel nfase no uso de instrumentos mais objetivos, interesse por entrevistas diagnsticas mais estruturadas, notadamente com o incremento no desenvol- vimento de avaliaes computadorizadas de per- sonalidade, que vm oferecendo novas estrat- gias neste campo (Butcher, Keller & Bacon, 1985). Tambm, as necessidades de manter um embasamento cientfico para oferecer respos- tas adequadas e compatveis com os progres- sos de outros ramos da cincia, especialmente em termos de questes diagnsticas, criadas por modificaes introduzidas nas classifica- es oficiais, tm levado reviso, renormatiza- o e criao de novas estratgias de avaliao. Alis, Zacker, j em 1989, afirmava que o reconhecimento da qualidade do psicodiag- nstico tem que ver, em primeiro lugar, com um refinamento dos instrumentos e, em segun- do lugar, com estratgias de marketing de que o psiclogo deve lanar mo para aumentar a utilizao dos servios de avaliao pelos re- ceptores de laudos. Na mesma dcada, Groth- Marnat (1984) salientava a importncia do pro- fissional se familiarizar com as reais necessida- des do usurio, observando que, muitas vezes, psiclogos competentes acabam por fornecer uma grande quantidade de informaes in- teis para as fontes de encaminhamento (p.20) por falta de uma compreenso adequada das verdadeiras razes que motivaram o encami- nhamento ou, em outras palavras, por desco- nhecimento das decises que devem ser toma- das com base nos resultados do psicodiag- nstico. Recentemente (1999), insistiu na mes- ma idia, afirmando que o psiclogo clnico deve entender o vocabulrio, o modelo con- ceitual, a dinmica e as expectativas da fonte de encaminhamento* (p.31). As sugestes apontadas, de conhecer as necessidades do mercado e de desenvolver es- tratgias de conquista desse mercado, pare- cem se fundamentar na pressuposio de que o psiclogo, sobrecarregado com suas tarefas, no est avaliando a adequabilidade de seus dados em relao ao pblico usurio. Mas que pblico esse? Que servios ou profissionais podem ter necessidade de solici- tar psicodiagnsticos? Primeiramente, vejamos onde costuma trabalhar um psiclogo que lida com psicodiagnstico. Segundo Groth-Marnat (1999), o psiclogo clnico mais freqentemen- te exerce suas funes numa instituio que presta servios psiquitricos ou de medicina geral, num contexto legal ou educacional, bem como em clnicas psicolgicas. Em termos de Brasil, embora cada vez mais se encontrem pro- fissionais da psicologia trabalhando nesses ambientes, especialmente em instituies de cuidados com a sade, muito comum que o psicodiagnstico se realize em clnicas ou em consultrios psicolgicos, em que ele recebe encaminhamento principalmente de mdicos psiquiatras ou de outra especialidade (pedia- tras, neurologistas, etc.), da comunidade es- colar, de juzes ou de advogados, ou atende casos que procuram espontaneamente um exa- me, ou so recomendados a faz-lo por algum familiar ou amigo. A questo bsica com que se defronta o psiclogo que, embora um encaminhamen- to seja feito, porque a pessoa necessita de sub- sdios para basear uma deciso para resolver um problema, muitas vezes ela no sabe clara- mente que perguntas levantar ou, por razes de sigilo profissional, faz um encaminhamen- to vago para uma avaliao psicolgica. Em conseqncia, uma das falhas comuns do psi- clogo a aceitao tcita de tal encaminha- mento, com a realizao de um psicodiag- nstico, cujos resultados no so pertinentes s necessidades da fonte de solicitao. , pois, responsabilidade do clnico manter canais de comunicao com os diferentes ti- pos de contextos profissionais para os quais trabalha, familiarizando-se com a variabilida- de de problemas com que se defrontam e co- nhecendo as diversas decises que os mesmos *N. da A. Em ingls, referral setting, para o que difcil encontrar equivalncia precisa em portugus.
  23. 23. 26 JUREMA ALCIDES CUNHA pressupem. Mais do que isso: deve determi- nar e esclarecer o que dele se espera, no caso individual. Esta uma estratgia de aproxima- o, que lhe permitir adequar seus dados s necessidades das fontes de encaminhamento, de forma que seus resultados tenham o im- pacto que merecem e o psicodiagnstico rece- ba o crdito a que faz jus. CARACTERIZAO DO PROCESSO Definio Psicodiagnstico um processo cientfico, li- mitado no tempo, que utiliza tcnicas e testes psicolgicos (input), em nvel individual ou no, seja para entender problemas luz de pressu- postos tericos, identificar e avaliar aspectos especficos, seja para classificar o caso e pre- ver seu curso possvel, comunicando os resul- tados (output), na base dos quais so propos- tas solues, se for o caso. Caracterizamos o psicodiagnstico como um processo cientfico, porque deve partir de um levantamento prvio de hipteses que se- ro confirmadas ou infirmadas atravs de pas- sos predeterminados e com objetivos precisos. Tal processo limitado no tempo, baseado num contrato de trabalho entre paciente ou respon- svel e o psiclogo, to logo os dados iniciais permitam estabelecer um plano de avaliao e, portanto, uma estimativa do tempo neces- srio (nmero aproximado de sesses de exa- me). O plano de avaliao estabelecido com base nas perguntas ou hipteses iniciais, defi- nindo-se no s quais os instrumentos neces- srios, mas como e quando utiliz-los. Pressu- pe-se, naturalmente, que o psiclogo saiba que instrumentos so eficazes quanto a requi- sitos metodolgicos. Portanto, a questo, aqui, o quanto certos instrumentos podem ser efi- cientes, se aplicados com um propsito espe- cfico, para fornecer respostas a determinadas perguntas ou testar certas hipteses. Selecionada e administrada uma bateria de testes, obtm-se dados que devem ser inter- relacionados com as informaes da histria clnica, da histria pessoal ou com outras, a partir do elenco das hipteses iniciais, para permitir uma seleo e uma integrao, norte- ada pelos objetivos do psicodiagnstico, que determinam o nvel de inferncias que deve ser alcanado. Tais resultados so comunicados a quem de direito, podendo oferecer subsdios para deci- ses ou recomendaes. Objetivos O processo do psicodiagnstico pode ter um ou vrios objetivos, dependendo dos motivos alegados ou reais do encaminhamento e/ou da consulta, que norteiam o elenco de hipteses inicialmente formuladas, e delimitam o esco- po da avaliao. Portanto, relacionam-se essen- cialmente com as questes propostas e com as necessidades da fonte de solicitao e de- terminam o nvel de inferncias que deve ser alcanado na comunicao com o receptor (Cunha, 1996, p.50). Resumidamente, os objetivos mais comuns so apresentados no Quadro 2.1. Como se pode pressupor, dependendo da simplicidade ou da complexidade das questes propostas, variam os objetivos. As perguntas mais elementares que podem ser formuladas, em relao a uma capacidade, um trao, um estado emocional, seriam: Quanto? ou Qual?. Um exemplo comum de exame com tal objetivo seria o de avaliao do nvel intelectual, que permitiria uma classi- ficao simples. O examinando submetido a testes, adequados a sua idade e nvel de esco- laridade. So levantados escores, consultadas tabelas, e os resultados so fornecidos em da- dos quantitativos, classificados sumariamente. Estritamente, se o examinador se restringe a tal objetivo, sua tarefa seria caracterizada mais como a de um psicometrista do que a de um psiclogo clnico. Todavia, o psiclogo cl- nico, que no perde a referncia da pessoa do examinando, dificilmente iria se restringir a tal objetivo, porque analisaria escores dos subtes- tes (se tivesse usado um instrumento WIS), bem como diferenas inter e intratestes, que so
  24. 24. PSICODIAGNSTICO V 27 suscetveis de interpretao. Ento, teria con- dies de identificar foras e fraquezas no fun- cionamento intelectual. No caso, o objetivo do exame seria de descrio. Mas, se se detivesse a examinar certos erros e desvios, poderia le- vantar pistas que servissem de base para hip- teses sobre a presena de dficits cognitivos. O objetivo ainda seria o de descrio, mas o processo seria mais complexo. Tambm seria descritivo o exame do esta- do mental do paciente ou o exame das fun- es do ego, freqentemente realizados sem a administrao de testes, pelo que no so de competncia exclusiva do psiclogo. O exame do estado mental do paciente, por exemplo, um tipo de recurso diagnstico que envolve a explorao da presena de sinais e sintomas, eventualmente utilizando provas muito sim- ples, no-padronizadas, para uma estimati- va sumria de algumas funes, como aten- o e memria. Este constitui um exame sub- jetivo de rotina em clnicas psiquitricas, muitas vezes complementado por um exame objetivo. Freqentemente, dados resultantes desse exame, da histria clnica e da histria pessoal permitem atender ao objetivo de classificao nosolgica. Essa avaliao com tal objetivo realizada pelo psiquiatra e, tambm, pelo psi- clogo, quando o paciente no testvel. Nes- se caso especfico, pode-se dizer que ambos usam preferencialmente um modelo categri- co para analisar a psicopatologia, isto , de- vem fazer um julgamento clnico sobre a pre- sena ou no de uma configurao de sinto- mas significativos (Dobson & Cheung, 1990). Dessa maneira, estariam verificando o que o paciente tem de similar com outros pacientes na mesma categoria diagnstica. Se o traba- lho se restringisse a chegar a um cdigo classi- QUADRO 2.1 Objetivos de uma avaliao psicolgica clnica Objetivos Especificao Classificao O exame compara a amostra do comportamento do examinando com os resultados de outros simples sujeitos da populao geral ou de grupos especficos, com condies demogrficas equivalen- tes; esses resultados so fornecidos em dados quantitativos, classificados sumariamente, como em uma avaliao de nvel intelectual. Descrio Ultrapassa a classificao simples, interpretando diferenas de escores, identificando foras e fraquezas e descrevendo o desempenho do paciente, como em uma avaliao de dficits neu- ropsicolgicos. Classificao Hipteses iniciais so testadas, tomando como referncia critrios diagnsticos. nosolgica Diagnstico So investigadas irregularidades ou inconsistncias do quadro sintomtico, para diferenciar diferencial alternativas diagnsticas, nveis de funcionamento ou a natureza da patologia. Avaliao determinado o nvel de funcionamento da personalidade, so examinadas as funes do ego, compreensiva em especial a de insight, condies do sistema de defesas, para facilitar a indicao de recur- sos teraputicos e prever a possvel resposta aos mesmos. Entendimento Ultrapassa o objetivo anterior, por pressupor um nvel mais elevado de inferncia clnica, ha- dinmico vendo uma integrao de dados com base terica. Permite chegar a explicaes de aspectos comportamentais nem sempre acessveis na entrevista, antecipao de fontes de dificulda- des na terapia e definio de focos teraputicos, etc. Preveno Procura identificar problemas precocemente, avaliar riscos, fazer uma estimativa de foras e fraquezas do ego, de sua capacidade para enfrentar situaes novas, difceis, estressantes. Prognstico Determina o curso provvel do caso. Percia forense Fornece subsdios para questes relacionadas com insanidade, competncia para o exerccio das funes de cidado, avaliao de incapacidades ou patologias que podem se associar com infraes da lei, etc. Fonte: Cunha, in Taborda, Prado-Lima & Busnello, 1996, p.51 (reproduzido com autorizao da Editora).
  25. 25. 28 JUREMA ALCIDES CUNHA ficatrio, no caberia a sua qualificao como psicodiagnstico propriamente dito. No obstante, quando o paciente apresen- ta condies para testagem, possvel se de- senvolver um psicodiagnstico em estrito sen- so: o psiclogo organiza seu plano de avalia- o e lana mo de uma bateria de testes, para verificar cientificamente suas hipteses, ou, ainda, para levantar outras a serem analisadas, conforme a histria e o contexto de vida do paciente. A classificao nosolgica, alm de facilitar a comunicao entre profissionais, con- tribui para o levantamento de dados epidemio- lgicos de uma comunidade. Assim, deve ser usada, mas, num psicodiagnstico, a tarefa no se restringe a conferir quais os critrios diag- nsticos que so preenchidos pelo caso. Outro objetivo praticamente associado a esse o de diagnstico diferencial. O psiclo- go investiga irregularidades e inconsistncias do quadro sintomtico e/ou dos resultados dos testes para diferenciar categorias nosolgicas, nveis de funcionamento, etc. Naturalmente, para trabalhar com tal objetivo, o psiclogo, alm de experincia e de sensibilidade clnica, deve ter conhecimentos avanados de psico- patologia e de tcnicas sofisticadas de diag- nstico. O objetivo de avaliao compreensiva con- sidera o caso numa perspectiva mais global, determinando o nvel de funcionamento da personalidade, examinando funes do ego, em especial quanto a insight, para indicao teraputica ou, ainda, para estimativa de pro- gressos ou resultados de tratamento. No che- ga necessariamente classificao nosolgica, embora esta possa ocorrer subsidiariamente, uma vez que o exame pode revelar alteraes psicopatolgicas. Mas, de qualquer forma, envolve algum tipo de classificao, j que a determinao do nvel de funcionamento especialmente importante para a indicao te- raputica, definindo limites da responsabilida- de profissional. Assim, um paciente em surto poderia requerer hospitalizao e prescrio farmacolgica sob os cuidados de um psiquia- tra. Um paciente que enfrenta uma crise vital pode se beneficiar com uma terapia breve com um psicoterapeuta. Pressupe-se que certas funes do ego estejam relativamente intac- tas para que haja uma resposta teraputica adequada para determinados tipos de trata- mento. Basicamente, podem no ser utilizados tes- tes. Esse um objetivo explcito ou implcito nos contatos iniciais do paciente com psiquia- tras, psicanalistas e psiclogos de diferentes linhas de orientao teraputica. Entretanto, se o objetivo atingido por meio de um psico- diagnstico, obtm-se evidncias mais objeti- vas e precisas, que podem, inclusive, servir de parmetro para avaliar resultados teraputicos, mais tarde, atravs de um reteste. O objetivo de entendimento dinmico, em sentido lato, pode ser considerado como uma forma de avaliao compreensiva, j que enfo- ca a personalidade de maneira global, mas pressupe um nvel mais elevado de inferncia clnica. Atravs do exame, procura-se enten- der a problemtica de um sujeito, com uma dimenso mais profunda, na perspectiva his- trica do desenvolvimento, investigando fato- res psicodinmicos, identificando conflitos e chegando a uma compreenso do caso com base num referencial terico. Um exame desse tipo requer entrevistas muito bem conduzidas, cujos dados nem sem- pre so consubstanciados pelos passos espec- ficos de um psicodiagnstico, no sendo, por- tanto, um recurso privativo do psiclogo clni- co. Freqentemente, combina-se com os obje- tivos de classificao nosolgica e de diagns- tico diferencial. Porm, quando um objetivo do psicodiagnstico, leva no s a uma abor- dagem diferenciada das entrevistas e do ma- terial de testagem, como a uma integrao dos dados com base em pressupostos psicodin- micos. Um psicodiagnstico tambm pode ter um objetivo de preveno. Tal exame visa a identi- ficar problemas precocemente, avaliar riscos, fazer uma estimativa de foras e fraquezas do ego, bem como da capacidade para enfrentar situaes novas, difceis, conflitivas ou ansio- gncias. Em sentido lato, pode ser realizado por outros profissionais de uma equipe de sa- de pblica. Muitas vezes, levado a efeito uti- lizando recursos de triagem, procurando atin-
  26. 26. PSICODIAGNSTICO V 29 gir o maior nmero de casos no menor espao de tempo, portanto, no pressupondo maior profundidade no levantamento de certos ind- cios de possvel patologia, apenas para dar fun- damentao ao desenvolvimento de programas preventivos, com grupos maiores. No obstan- te, num exame individual, que pode requerer uma dimenso mais profunda, especialmente envolvendo uma estimativa de condies do ego frente a certos riscos ou no enfrentamen- to de situaes difceis, seria indicado um psi- codiagnstico. Outro objetivo o de prognstico, que de- pende fundamentalmente da classificao no- solgica, e, neste sentido, no privativo do psiclogo. Em muitos casos, todavia, este pode dar uma contribuio importante, na medida em que, por meio do psicodiagnstico, pode avaliar condies que, de alguma forma, pos- sam ter influncia no curso do transtorno. En- tretanto, trata-se de uma rea que ainda exige muitas pesquisas tanto para a coleta de dados estatsticos sobre o curso possvel de certos transtornos quanto sobre a utilizao mais ade- quada da testagem com esse objetivo. Por ltimo, existe um objetivo de percia forense. O exame procura resolver questes relacionadas com insanidade, competncia para o exerccio de funes de cidado, avalia- o de incapacidade ou de comprometimen- tos psicopatolgicos que etiologicamente pos- sam se associar com infraes da lei, etc. Geralmente, colocada uma srie de que- sitos que o psiclogo deve responder para ins- truir um determinado processo. Suas respos- tas devem ser claras, precisas e objetivas. Por- tanto, deve haver um grau satisfatrio de cer- teza quanto aos dados dos testes, o que bas- tante complexo, porque os dados descrevem o que uma pessoa pode ou no fazer no con- texto da testagem, mas o psiclogo deve ain- da inferir o que ele acredita que ela poderia ou no fazer na vida cotidiana (Groth-Marnat, 1984, p.25). As respostas fornecem subsdios para instruir decises de carter vital para o indivduo. Conseqentemente, a necessidade de chegar a inferncias que tenham tais impli- caes pode se tornar at certo ponto ansio- gnica para o psiclogo. Na realidade, comumente o psiquiatra no- meado como perito e solicita o exame psicol- gico para fundamentar o seu parecer. No obstante, muitas vezes, o psiclogo cha- mado para colaborar com a justia, de for- ma independente. Responsabilidade O diagnstico psicolgico pode ser realizado: a) pelo psiclogo, pelo psiquiatra (e, even- tualmente, pelo neurologista ou psicanalista), com vrios objetivos (exceto o de classificao simples), desde que seja utilizado o modelo mdico apenas, no exame de funes, identifi- cao de patologias, sem uso de testes e tcni- cas privativas do psiclogo clnico; b) pelo psiclogo clnico exclusivamente, para a consecuo de qualquer ou vrios dos objetivos, quando utilizado o modelo psico- lgico (psicodiagnstico), incluindo tcnicas e testes privativos desse profissional; c) por equipe multiprofissional (psiclogo, psiquiatra, neurologista, orientador educacio- nal, assistente social ou outro), para a conse- cuo dos objetivos citados e, eventualmente, de outros, desde que cada profissional utilize o seu modelo prprio, em avaliao mais com- plexa e inclusiva, em que necessrio integrar dados muito interdependentes (de natureza psicolgica, mdica, social, etc.). Na prtica, o encaminhamento de casos, com vistas a um diagnstico, para o psiclogo clnico ou para o psiquiatra, tende a obedecer critrios no completamente explcitos que provavelmente tm uma raiz histrica. O psicodiagnstico surgiu como conseqn- cia do advento da psicanlise, que ofereceu novo enfoque para o entendimento e a classi- ficao dos transtornos mentais. Anteriormen- te, o modelo para o estudo das doenas mentais remontava ao trabalho de Kraepelin e outros e s suas tentativas para estabelecer critrios de diagnstico diferencial para a esquizofrenia. No perodo anterior a Freud, o enfoque do transtorno mental era nitidamente mdico. Os pacientes de interesse para a cincia mdica apresentavam quadros graves, estavam hospi-
  27. 27. 30 JUREMA ALCIDES CUNHA talizados, e eram identificados sinais e sinto- mas que compunham as sndromes. No perodo freudiano, a abordagem mu- dou. Os pacientes atendidos no apresentavam quadros to severos, no estavam internados, e, embora fossem levados em conta os seus sintomas, estes eram percebidos de maneira compreensiva e dinmica. Esta tendncia de considerar os pacientes em termos de duas grandes categorias de trans- tornos de certa forma persiste. Os pacientes que apresentam transtornos mais graves e que podem precisar de hospitalizao tendem a ser encaminhados para psiquiatras, enquanto os casos menos graves costumam ser encaminha- dos para psiclogos ou psiquiatras, de acordo com o conceito de transtorno mental e da ava- liao da gravidade dos sintomas pela pessoa que identifica o problema e faz o encaminha- mento. Na realidade, a atribuio da respon- sabilidade pelo diagnstico tradicionalmente vem se baseando numa avaliao sumria do caso e numa expectativa do tipo de tratamen- to necessrio. Mas essa posio vem tenden- do a mudar pela considerao do tipo de exa- me que o caso individual requer. Atualmente, com possvel exceo das urgncias psiquitri- cas, os encaminhamentos comeam a ser fei- tos tendo em vista a complexidade do caso e no a sua gravidade, e, conseqentemente, a necessidade de que o diagnstico seja feito por meio de um exame mais ou menos sofisticado. A definio mais explcita dos casos, cujo diagnstico deve ser da responsabilidade do psiclogo, pelos membros da sociedade em geral, vai depender essencialmente da atua- o profissional do psiclogo e da adequabi- lidade das respostas que puder dar s necessida- des reais do mercado. Sua identidade se associa, portanto, qualidade do seu desempenho. OPERACIONALIZAO Em termos de operacionalizao, devem ser considerados os comportamentos especficos do psiclogo e os passos para a realizao do diagnstico com um modelo psicolgico de natureza clnica. Comportamentos especficos Os comportamentos especficos do psiclogo podem ser assim relacionados, embora possam variar na sua especificidade e na sua seriao, conforme os objetivos do psicodiagnstico: a) determinar motivos do encaminhamen- to, queixas e outros problemas iniciais; b) levantar dados de natureza psicolgica, social, mdica, profissional e/ou escolar, etc. sobre o sujeito e pessoas significativas, solici- tando eventualmente informaes de fontes complementares; c) colher dados sobre a histria clnica e his- tria pessoal, procurando reconhecer denomi- nadores comuns com a situao atual, do pon- to de vista psicopatolgico e dinmico; d) realizar o exame do estado mental do paciente (exame subjetivo), eventualmente complementado por outras fontes (exame ob- jetivo); e) levantar hipteses iniciais e definir os objetivos do exame; f) estabelecer um plano de avaliao; g) estabelecer um contrato de trabalho com o sujeito ou responsvel; h) administrar testes e outros instrumentos psicolgicos; i) levantar dados quantitativos e qualitati- vos; j) selecionar, organizar e integrar todos os dados significativos para os objetivos do exa- me, conforme o nvel de inferncia previsto, com os dados da histria e caractersticas das circunstncias atuais de vida do examinan- do; l) comunicar resultados (entrevista devolu- tiva, relatrio, laudo, parecer e outros infor- mes), propondo solues, se for o caso, em be- nefcio do examinando; m) encerrar o processo. Passos do diagnstico (modelo psicolgico de natureza clnica) De forma bastante resumida, os passos do diag- nstico, utilizando um modelo psicolgico de natureza clnica, so os seguintes:
  28. 28. PSICODIAGNSTICO V 31 a) levantamento de perguntas relacionadas com os motivos da consulta e definio das hipteses iniciais e dos objetivos do exame; b) planejamento, seleo e utilizao de instrumentos de exame psicolgico; c) levantamento quantitativo e qualitativo dos dados; d) integrao de dados e informaes e for- mulao de inferncias pela integrao dos dados, tendo como pontos de referncia as hipteses iniciais e os objetivos do exame; e) comunicao de resultados, orientao sobre o caso e encerramento do processo.
  29. 29. 32 JUREMA ALCIDES CUNHA MDULO II Questes Bsicas 3O problema Jurema Alcides Cunha Opsicodiagnstico um processo, desen- cadeado quase sempre em vista de um en- caminhamento, que tem incio numa consul- ta, a partir da qual se delineiam os passos do exame, que constitui uma das rotinas do psi- clogo clnico. Entretanto, tal tipo de avalia- o decorre da existncia de um problema pr- vio, que o psiclogo deve identificar e avaliar, para poder chegar a um diagnstico. No obstante, entre a emergncia de sinais ou sintomas precoces e incipientes, nem sem- pre fceis de detectar ou de identificar, e a che- gada primeira consulta, podem surgir mui- tas dvidas, fantasias e busca de explicaes, que retardam a ajuda, podem agravar o pro- blema e, eventualmente, interferem na objeti- vidade do relato do caso. Dizem que os sintomas esto presentes quando os limites da variabilidade normal so ultrapassados (Yager & Gitlin, 1999, p.694). Ento, se considerarmos a aparente continui- dade entre ajustamentos que as mudanas de rotina impem, os estados emocionais asso- ciados a acontecimentos da vida diria, as rea- es a situaes estressantes freqentes e os sintomas iniciais de um transtorno mental, evi- dencia-se a dificuldade de julgar quando se configura um problema que necessita de uma avaliao clnica. E tal dificuldade tanto pode ser sentida pelo sujeito como pelas pessoas que convivem com o paciente, inclusive por aque- las que podem ser classificadas como agentes de sade mental (como professores, orienta- dores, padres, mdicos, etc.). J em 1970, Shaw e Lucas lembravam que muitos pais hesitam em considerar certo com- portamento do filho como motivo de preocu- pao, alegando que muitas crianas podem apresent-lo, no que muitas vezes tm razo. Freqentemente, a falta de distino entre desajustes ocasionais e prolongados que faz com que as pessoas confiem no tempo para que desapaream. s vezes, h certa tolern- cia quanto a comportamentos que devem ser superados, seja porque deixaram de ser pro- porcionais s suas causas, porque uma deter- minada idade foi ultrapassada, por normas mais flexveis do ambiente ou, ainda, porque algum da famlia apresentava os mesmos sin- tomas na infncia. Quando o problema ocorre com um adul- to, pode-se verificar uma tendncia a enfren- t-lo sem ajuda, ou uma tentativa de explic- lo em termos de fatores circunstanciais e, as- sim, talvez resolv-lo atravs de mudanas ex- ternas. De qualquer maneira, desde o surgi- mento do problema e at a consulta, a natu- reza e a expresso dos sinais e sintomas psi- quitricos so profundamente alteradas pelos recursos pessoais, capacidades de enfrenta-
  30. 30. PSICODIAGNSTICO V 33 mento [coping] e defesas psicolgicas do pa- ciente (Yager & Gitlin, 1999, p.692). Esta pr-histria de um estudo de caso importante porque a percepo da dificulda- de, a gravidade maior ou menor atribuda a um ou a vrios sintomas, as dvidas sobre a existncia de patologia, a confiabilidade de quem possa ter sugerido uma avaliao psico- lgica, para no falar em atitudes preconcei- tuosas sobre a possibilidade de doena men- tal, alm de outros fatores, tudo pode influir na dinmica da interao clnica, na maior ou menor atitude de colaborao durante a tes- tagem e na seletividade das informaes pres- tadas. Conseqentemente, se a consulta foi precedida de uma fase tumultuada e crtica, com forte sobrecarga emocional, pode haver uma facilitao da ocorrncia de percepes distorcidas, de fantasias variadas e de um in- cremento de defesas dificultando a coleta de dados. Cabe, pois, ao psiclogo examinar as cir- cunstncias que precederam a consulta, ava- liar as maneiras de perceber o problema e de- limit-lo, atribuindo a sinais e sintomas sua sig- nificao adequada. Esta no uma tarefa f- cil, principalmente para o psiclogo iniciante. SINAIS E SINTOMAS Fala-se em sinais e sintomas na psicologia e na psiquiatria, mas tal terminologia oriunda da medicina. Em sentido lato, tais termos tm uma acepo comparvel nas trs reas. Em geral, referem-se a sinais, para designar comporta- mentos observveis, achados objetivos (Ka- plan & Sadock, 1999b, p.584), enquanto os sin- tomas so experincias do sujeito, so por ele sentidos. Entretanto, essa diferenciao se tor- na vaga ou praticamente inexistente no mbi- to da doena mental, porque esta envolve es- tados internos, psicopatologia subjetiva, dif- cil de descrever. E, em comparao com os transtornos mdicos salientam Yager e Git- lin (1999) os transtornos psiquitricos no podem ser entendidos sem uma completa ava- liao e compreenso do amplo contexto das queixas do paciente (p.694). Por outro lado, os medos, por exemplo, so sentidos pelo su- jeito, mas tambm podem se expressar atra- vs de comportamentos observveis. Parece que, se tomarmos num sentido am- plo, a distino torna-se uma questo de pon- to de vista. Shaw (1977), por exemplo, afirma- va que sintoma um sinal (p.8), porque se torna significativo na medida em que eviden- cia uma perturbao. Ento, considerado como um sinal de perturbao, que pode pre- cocemente servir de alerta, mesmo que no tenha sido registrada qualquer queixa explci- ta, isto , mesmo que no tenha se verificado a identificao de um sintoma. Por outro lado, na prtica, fala-se em sin- toma quando parece possvel atribuir-lhe uma significao mais clnica. Pode-se, en- to, afirmar que os sintomas esto presen- tes quando os limites da variabilidade nor- mal so ultrapassados (Yager & Gitlin, 1999, p.693). CRITRIOS USUAIS DE DEFINIO DE UM PROBLEMA Um problema identificado quando so reco- nhecidas alteraes ou mudanas nos padres de comportamento comum, que podem ser percebidas como sendo de natureza quantita- tiva ou qualitativa. Se, como observam Kaplan e Sadock (1999b), a maioria das manifestaes de trans- tornos psiquitricos representa variaes de di- ferentes graus de um continuum entre sade mental e psicopatologia, ento, na maior par- te das vezes, as mudanas percebidas so de natureza quantitativa. Pode-se falar, em primeiro lugar, em altera- es autolimitadas, que se verificariam pela presena de um exagero ou diminuio de um padro de comportamento usual, dito normal. Tais mudanas quantitativas podem ser obser- vadas em vrias dimenses, como na ativida- de (motora, da fala, do pensamento), no hu- mor (depresso vs. euforia), em outros afetos (embotamento, excitao), etc. Freqentemen- te, esse tipo de alteraes surge como respos- ta a determinados eventos da vida, e a pertur-
  31. 31. 34 JUREMA ALCIDES CUNHA bao proporcional s causas, ficando cir- cunscrita aos efeitos estressantes dos mesmos. No obstante, se sua intensidade for despro- porcional s causas e/ou tal alterao persistir alm da vigncia normal dos efeitos das mes- mas (por exemplo, no luto patolgico), j pode ter uma significao clnica. Naturalmente, deve ser considerada a possibilidade de outras variaes, quando uma alterao aparentemen- te pareceu ser autolimitada, mas reaparece sob diferentes modalidades, numa mutao sinto- mtica, ou da mesma maneira, repetitivamen- te, de forma cclica. Por certo, esses critrios de intensidade e/ ou persistncia podem ser tambm aplicados dimenso desenvolvimento, considerando os limites de variabilidade para a aprendizagem de novos padres de comportamento, para certos comportamentos imaturos serem supe- rados, em determinadas faixas etrias. Por exemplo, o controle definitivo do esfncter ve- sical deve ser alcanado, no mximo, ao redor dos trs anos. Ento, um episdio de aparente fracasso em fase posterior no teria maior sig- nificao, se fosse uma reao a uma situao estressante. Mas sua persistncia j pode re- presentar um sinal de alerta, justificando-se uma avaliao clnica. Note-se que aqui estamos utilizando um julgamento clnico. Entretanto, sobre questes de desenvolvimento, h muita coincidncia entre o senso comum e o que sancionado pela cincia. A expectativa social, porm, s vezes, no corroborada pelas normas e cos- tumes de uma ou outra famlia. Nota-se que, na prtica, as famlias podem diferir na deter- minao de quais so os limites da variabilida- de normal, por rigidez ou, pelo contrrio, por protecionismo. Isso faz com que determinado comportamento parea sintomtico num de- terminado ambiente familiar, mas no em ou- tro. Por outro lado, nem sempre os problemas que chamam a ateno da famlia so clinica- mente os mais significantes. Num estudo de 80 crianas, realizado por Kwitko (1984), hou- ve diferena quanto mdia dos sintomas in- formados e a registrada pelos tcnicos duran- te o exame. Por outro lado, as queixas de fami- liares referiam-se mais a sintomas que pertur- bavam a rotina da vida cotidiana, ignorando alguns sintomas mais graves. Quando as mudanas percebidas so de natureza qualitativa, habitualmente chamam a ateno por seu cunho estranho, bizarro, idi- ossincrsico, inapropriado ou esquisito e, en- to, mesmo o leigo tende a associ-las com dificuldades mais srias. Apesar disso, ainda que sejam geralmente tomadas como sinal de perturbao, eventualmente podero ser expli- cadas em termos culturais ou subculturais. Pode-se afirmar que um comportamento ou experincia subjetiva definidos como sintom- ticos em um contexto podem ser perfeitamen- te aceitveis e estar dentro dos limites normais em outro contexto (Yager & Gitlin, 1999, p.694). Uma manifestao inusitada, do pon- to de vista qualitativo, deve, assim, ser julgada dentro do contexto em que o indivduo est e, como sintoma, ser tanto mais grave se for compelida mais por elementos interiores do que pelo campo de estmulos da realidade, que praticamente ignorada. Entretanto, preci- so ficar bem claro que um sintoma nico no tem valor diagnstico por si, o que vale dizer que nenhum sintoma patognomnico de uma determinada sndrome ou condio reconhe- cida. Assim, todos os sintomas psiquitricos devem ser considerados como inespecficos vistos em uns poucos e, mais provavelmente, em muitos transtornos (Yager & Gitlin, 1999, p.694). Dada a relatividade dos critrios usuais na definio de um problema, a abordagem cien- tfica atual para a determinao diagnstica advoga o uso de critrios operacionais. , pois, necessrio que o paciente apresente um certo nmero de caractersticas sintomatolgicas, durante um certo perodo de tempo, para ser possvel chegar a uma deciso diagnstica. PROBLEMAS PSICOSSOCIAIS E AMBIENTAIS: ACONTECIMENTOS DA VIDA O conceito de estresse, termo cunhado no mbito da pesquisa endocrinolgica, pela me- tade do sculo XX, teve o seu sentido extrema- mente expandido para explicar, de um modo
  32. 32. PSICODIAGNSTICO V 35 geral, a relao entre o indivduo e o ambien- te e se comprovou particularmente til duran- te a Segunda Guerra Mundial (Klerman, 1990, p.34). Na realidade, pode-se dizer que a impor- tncia atribuda ao estresse, no campo da sa- de mental, de certa maneira herdada do con- ceito de crise que, originrio de investigaes com sobreviventes de desastres, por vezes de grandes propores, resultou aplicvel a uma grande variedade de situaes pessoais. Atual- mente, crise se refere mais a uma reao, as- sociada especificidade de uma situao ou fase, e envolve uma perturbao, relacionada com a dificuldade de manej-la pelos meios usuais. Pode-se afirmar que o conceito de crise extremamente til em termos de diagnsti- co, especialmente para o entendimento do fun- cionamento psicolgico do indivduo em pon- tos nodais do desenvolvimento, por exemplo. J a nfase do conceito de estresse pare- ce que est no impacto, no fato de se consti- tuir como um fator potencial para conse- qncias futuras, que podem variar em ter- mos do poder do estressor e da vulnerabili- dade do sujeito. Durante a Segunda Guerra Mundial, foram desenvolvidos extensos projetos para pesqui- sas sobre o papel do estressor como um pre- cipitador da doena mental (Klerman, 1990, p.34). A comprovao supostamente encontra- da pelas observaes de estressores em situa- es de guerra foi aplicada a estressores civis e caiu como uma luva no ambiente de insatisfa- o da comunidade psiquitrica da poca com o modelo mdico, que adotou a pressuposi- o terica de um continuum de sade men- tal-doena mental, dando ao impacto provo- cado pelo estresse a significao de um fator- chave para o desenvolvimento de transtornos mentais. Ainda no DSM-III-R (APA, 1987), que j com- portava a avaliao multiaxial, havia a orienta- o de avaliar a gravidade da ocorrncia de estresse, no ano anterior, quanto ao desen- volvimento de um novo transtorno mental, recorrncia de um transtorno mental anterior e quanto exacerbao de um transtorno mental j existente (p.18). Dado o rigor cientfico introduzido nas pes- quisas sobre estresse, poucos cientistas assu- miriam hoje em dia uma posio to extrema- da. Ainda se mantm como um conceito extre- mamente importante, no que se refere a duas categorias diagnsticas, o Transtorno de Estres- se Agudo e o Transtorno de Estresse Ps-trau- mtico. Ademais, o Eixo IV do DSM-IV (APA, 1995) ainda reservado para o relato de pro- blemas psicossociais e ambientais que podem afetar o diagnstico, tratamento e prognsti- co dos transtornos mentais, especificados nos Eixos I e II (p.30). Por exemplo, embora pesquisas salientem a existncia de uma associao entre fatores socioeconmicos e esquizofrenia, poucos te- ricos sustentam, atualmente, que um ambien- te socioeconmico fraco causa esquizofrenia, mas poucos duvidam que este tem um efeito importante sobre o seu curso (McGlashman & Hoffman, 1999, p.1035). A AVALIAO DA PSICOPATOLOGIA* Num sentido lato, psicodiagnstico consiste, sobretudo, na identificao de foras e fraque- zas no funcionamento psicolgico e se distin- gue de outros tipos de avaliao psicolgica de diferenas individuais por seu foco na exis- tncia ou no de psicopatologia. Falando em psicopatologia, bom lembrar que pesquisadores nessa rea tm destacado modelos de psicopatologia utilizados. Referem- se ao modelo categrico e ao modelo dimen- sional (Dobson & Cheung, 1990). O modelo categrico, de enfoque qualita- tivo, exemplifica-se pelo julgamento clnico sobre a presena ou no de uma configurao de sintomas significativos. J o modelo dimen- sional, de enfoque quantitativo, exemplifica- se pela medida da intensidade sintomtica. Tradicionalmente, o psiquiatra tem dado mais nfase ao modelo categrico, embora *Grande parte deste tema foi apresentado pela autora, no VIII Congresso Nacional de Avaliao Psicolgica, Porto Alegre, 1999.
  33. 33. 36 JUREMA ALCIDES CUNHA cada vez mais no ignore a importncia do modelo dimensional. J o psiclogo, na prti- ca, costuma dar nfase ao modelo dimensio- nal. Na realidade, avaliar diferenas individuais envolve algum tipo de mensurao. Alm dis- so, o enfoque quantitativo oferece fundamen- tos para inferncias com um grau razovel de certeza. Mas o psiclogo utiliza, tambm, o modelo categrico. Na maioria das vezes, po- rm, associa o enfoque quantitativo e o quali- tativo, no desenvolvimento do processo psico- diagnstico, utilizando estratgias diagnsti- cas (entrevistas, instrumentos psicomtricos, tcnicas projetivas e julgamento clnico) para chegar ao diagnstico. evidente que, conforme o objetivo, o pro- cesso diagnstico ter maior ou menor abran- gncia, adotar um enfoque mais qualitativo ou mais quantitativo, e, conseqentemente, o elenco de estratgias ficar varivel no seu nmero ou na sua especificidade. Embora o psicodiagnstico tenha um do- mnio prprio, o seu foco na existncia ou no de psicopatologia torna essencial a manuten- o de canais de comunicao com outras reas, precisando o psiclogo estar atento para questes que so fundamentais na determina- o de um diagnstico. TRANSTORNOS MENTAIS E CLASSIFICAES NOSOLGICAS Se abrirmos o Novo Dicionrio Aurlio (Ferrei- ra, 1986), na pgina 1.703, vamos encontrar que transtorno sinnimo de perturbao mental. Entende-se que se pode categorizar, como tal, uma diversidade de condies, que se situam entre o que se costuma c