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Marco Aurélio Rosa Marco Aurélio Rosa Inicialmente, os psicanalistas se mantiveram afastados do trata- mento das patologias graves, as neuroses narcísicas, que engloba- vam o narcisismo patológico, e as psicoses. Os parâmetros teóricos iniciais afirmavam que, se nas neu- roses narcísicas não ocorria o vín- culo transferencial, elas seriam ina- cessíveis à Psicanálise. Contudo, o interesse de Freud e dos primeiros psicanalistas por essas patologias era grande; significava um verda- deiro desafio. O trabalho sobre Schreber, de 1911, atesta este fato. O interesse em enfrentar essas difi- culdades envolveu, cada vez mais, os psicanalistas na pesquisa e trata- mento das patologias graves. Vou abordar um vértice desta

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Marco Aurélio Rosa

Inicialmente, os psicanalistas

se mantiveram afastados do trata-

mento das patologias graves, as

neuroses narcísicas, que engloba-

vam o narcisismo patológico, e as

psicoses. Os parâmetros teóricos

iniciais afirmavam que, se nas neu-

roses narcísicas não ocorria o vín-

culo transferencial, elas seriam ina-

cessíveis à Psicanálise. Contudo, o

interesse de Freud e dos primeiros

psicanalistas por essas patologias

era grande; significava um verda-

deiro desafio. O trabalho sobre

Schreber, de 1911, atesta este fato.

O interesse em enfrentar essas difi-

culdades envolveu, cada vez mais,

os psicanalistas na pesquisa e trata-

mento das patologias graves.

Vou abordar um vértice desta

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questão, o que Freud chamou de fusão e desfusão pulsional. Uma perturba-

ção na economia pulsional, que provoca um desequilíbrio nos componen-

tes de Eros e Tanatos e altera os critérios de operatividade das forças de

autoconservação.

Em seu “Vocabulário da Psicanálise” (1970), Laplanche e Pontalis

afirmam:

“fusão e desfusão são termos usados por Freud, no quadro de

sua última teoria das pulsões, para descrever as relações das pulsões

de vida e das pulsões de morte, tais como se traduzem nesta ou naque-

la manifestação concreta. A fusão é uma verdadeira mistura em que

cada um dos dois componentes pode entrar em proporções variáveis,

e a desfusão designa um processo cujo limite redundaria em um fun-

cionamento separado das duas espécies de pulsões, em que cada uma

procuraria atingir o seu próprio alvo de forma independente”

(p.266). “Desfusão designa o fato de a agressividade ter quebrado os

laços com Eros” (p.267). Mais adiante, afirmam os autores: “a

desfusão poderia definir-se como o resultado de um processo que for-

neceria a cada uma das pulsões a autonomia de seu alvo” (p.268).

Em 1920, em “Além do Princípio do Prazer”, Freud antecipou o con-

ceito de fusão pulsional em termos de “mitigação” e mescla de pulsões de

Eros e Destrutividade. A teoria biológica das pulsões inclui a noção de que

as duas pulsões estão inerentemente fusionadas. O Ego faz uso da libido e

a energia agressiva neutralizada também é usada pelo Ego em suas funções

(Hartmann, 1948; 1955).

Em 1923, em “O Ego e o Id”, Freud afirmava:

“uma vez que tenhamos admitido a idéia de uma fusão das duas

classes de pulsões, uma com a outra, a possibilidade de uma desfusão

– mais ou menos completa – se impõe a nós. O componente sádico da

pulsão sexual seria o exemplo clássico de uma fusão pulsional útil, e

o sadismo que se tornou independente como perversão seria típico de

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uma desfusão, embora não conduzida a extremos... e viemos a com-

preender que a desfusão pulsional e o surgimento pronunciado da

pulsão de morte exigem consideração específica entre os efeitos de

algumas neuroses graves” (p.56-7).

Em 1933, Freud retomou a discussão, afirmando que:

“as fusões podem desfazer-se, e podemos supor que o funciona-

mento será afetado de forma muito grave por desfusões desta espécie.

Estas concepções, porém, ainda são demasiado novas; ninguém ain-

da tentou aplicá-las em nosso trabalho” (p.131).

Em 1937, em “Análise Terminável e Interminável”, Freud discutia a

formação do conflito psíquico e indagava se não se deve, a partir de um

novo ângulo, compreender a questão em termos de um elemento de

agressividade livre (p.278).

Em 1938, no “Esboço da Psicanálise”, Freud discorria:

“o poder do Id expressa o verdadeiro propósito da vida do orga-

nismo do indivíduo. Isto consiste na satisfação de suas necessidades

inatas. Nenhum intuito tal como o de manter-se vivo ou de proteger-se

dos perigos por meio da ansiedade pode ser atribuído ao Id. Essa é

tarefa do Ego, cuja missão é também descobrir o método mais favorá-

vel e menos perigoso de obter satisfação levando em conta o mundo

externo” (p.173). Mais adiante, no mesmo trabalho: “Existem alguns

neuróticos em quem, a julgar por todas as suas reações, a pulsão de

autopreservação na realidade foi invertida. Eles parecem visar a nada

mais que a auto-lesão e a auto-destruição. É possível também que as

pessoas que, de fato, terminam por cometer suicídio pertençam a este

grupo. É de se presumir que, em tais pessoas, efetuaram-se desfusões

de pulsões de grandes conseqüências, em razão do que houve uma

liberação de quantidades excessivas de pulsão destrutiva, voltada

para dentro” (p.208).

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O Ego investido de tensões destrutivas pela desfusão pulsional torna-

se inapto para proteger a vida. As forças de autoconservação, derivadas de

Eros, são prejudicadas ou anuladas em sua função primordial.

O Superego tem três funções: auto-observação, consciência moral e

formação de ideais. Estas três funções podem ter uma conotação sádica ou

protetora, dependendo de como tratam o Ego. A ação sádica se deriva, de

modo importante, da agressão voltada para o interior, investindo a

estruturação do Superego.

A inversão da força de autoconservação, descrita por Freud, se obser-

va no suicida, melancólico, em pacientes que desenvolvem severos qua-

dros de reação terapêutica negativa. Maldavsky sugere que estes proble-

mas não ocorrem só por sentimentos inconscientes de culpa, mas por in-

versão da pulsão de autoconservação. Também, em sua opinião, quanto

mais o corpo é envolvido (graves perturbações psicossomáticas, adição a

drogas pesadas, acidentes repetidos por condutas de risco), mais se deve

pensar em algo além da interferência do Superego.

Quando a pulsão de morte, representada pela destrutividade, apresen-

ta-se livre e se volta contra o sujeito, investindo o Ego e Superego, corrom-

pe as forças de autoconservação. A resistência do Superego assim investi-

do e o funcionamento degradado das forças de autoconservação decidem,

então, a gravidade e o prognóstico do paciente.

Rosenfeld (1971) lembra que a pulsão de morte não pode ser observa-

da em sua forma original, mas ela se torna manifesta como tendências

destrutivas contra os objetos e o Self e afirma que estes processos parecem

operar, em sua mais virulenta forma, nas severas perturbações narcisistas.

Ele também afirma que:

“o bebê tem de desenvolver um Self ou um Ego, o meio para lidar

com os impulsos e as necessidades oriundas das pulsões de vida e de

morte e arranjar um modo de se relacionar com objetos e de expres-

sar amor e ódio. Neste contexto, a teoria formulada por Freud a res-

peito da fusão e desfusão parece crucial (...). Ao analisar sintomas

clínicos, tais como desejo de morrer ou de recolher-se a um estado de

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vazio ou apatia, que à primeira vista poderiam ser considerados ma-

nifestações da pulsão de morte definida por Freud como uma pulsão

primária para a morte, descobri, realizando uma investigação mais

detalhada, que geralmente há uma destrutividade ativa envolvida, a

qual foi dirigida pelo Self não apenas contra objetos, mas contra par-

tes do próprio Self” (Rosenfeld, 1987, p.142-3).

Observa-se, nestes casos, como já acentuei em trabalho anterior (Rosa,

1983), seguindo uma linha de pensamento de Meltzer, uma verdadeira sub-

missão à tirania interna, aos aspectos destrutivos do Self, que aprisionam o

paciente e impedem os laços amorosos que possam gerar confiança e acei-

tação de vínculos e entre estes, especificamente, os de ligação ao analista,

com possíveis sentimentos de dependência a ele. Configura-se uma manei-

ra de viver, uma verdadeira adição à tirania.

Kernberg (1975) fala em “autodestrutividade primitiva” como uma

síndrome de pacientes fronteiriços (p.19). São pacientes que apresentam

uma descarga indiscriminada de agressão contra o mundo externo ou con-

tra seu próprio corpo ou sua mente. Pessoas com marcada

autodestrutividade, sem um Superego bem integrado. São aqueles pacien-

tes que conseguem certo alívio de sua ansiedade e culpa ferindo-se,

acidentando-se com facilidade ou vivendo em situações de grande perigo,

físico ou moral. Kernberg afirma que, sob o ponto de vista dinâmico, pre-

valecem nesses pacientes conflitos pré-edípicos, com fusão e desfusão bas-

tante primitivas das pulsões agressivas e libidinais.

Podemos pensar as patologias graves como inseridas nessa linha de

pensamento. São os pacientes que se nos apresentam como casos

desesperadores, em que nossa empatia e nosso senso psicanalítico de aju-

dar podem ficar prejudicados. Pessoas que se apresentam em constante

namoro com o sofrimento intenso ou com a morte. São os casos mais gra-

ves que nos chegam ao consultório, que vivem fora de hospitais. Constitu-

em os pacientes narcisistas severos, borderline esquizoparanóides, melan-

cólicos, perversos e psicossomáticos graves. Deixo de lado propositalmen-

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te os psicopatas transgressores, porque esses comparecem para tratamento

com extrema raridade.

Que fazer? A psicanálise pode curá-los? Ou somente ajudá-los em

resoluções, evitando que se destruam? Sem uma postura pessimista, esta é

a nossa dúvida frente às patologias graves.

Todos os psicanalistas que se dedicam a tratar esses pacientes sabem

que vale a pena. Não há saída, a psicanálise é o recurso heróico.

Vou apresentar um exemplo clínico que ilustra esta abordagem. João é

um paciente de 34 anos, solteiro, profissional liberal que ocupa posição

importante na comunidade onde vive e trabalha. Procura-me por se sentir

muito infeliz, incapaz de obter satisfações em qualquer esfera de sua vida.

Sente-se dominado por raiva, que o leva a um retraimento social e descon-

fiança das pessoas. Sua conduta é desafiadoramente agressiva e perigosa

para si. Queixa-se de um pai hostil, castrador, que sempre o desprezou, e de

uma mãe que não era má, mas indiferente, porque nunca o defendeu ade-

quadamente do pai. Sua avó materna era o único objeto de amor e confian-

ça. Tem irmãos com quem sempre rivalizou e em quem não confia. Mas

tinha, no passado, uma admiração grande por uma irmã muito bonita.

Seu pai era descrito como extremamente sádico, que se comprazia em

agredir física e moralmente o filho. Aplicava-lhe surras que deixavam he-

matomas e ferimentos. Com freqüência o envergonhava frente a outras

crianças. Certa vez, por uma pequena travessura que o paciente praticou, o

pai foi tomado de uma fúria descontrolada, pegou um chicote e foi procurá-

lo. Encontrou o menino em frente da casa, em uma roda de crianças, e

começou a gritar e chicotear o chão para fazê-lo pular. Gritava, desvairado:

“canta e dança, sem-vergonha; vais aprender a não mais praticar

safadezas”. O paciente tinha, então, sete ou oito anos de idade. Cantava e

dançava sob as gargalhadas dos meninos e meninas de sua roda. A opres-

são paterna se tornou tão insuportável, segundo suas palavras, que, por

essa época, tentou fugir de casa. Saiu na companhia de um pequeno circo

que visitou sua cidade. Queria se livrar de qualquer maneira da agressão

mortífera do pai e da indiferença da mãe, fugir de um lar desprovido de

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amor e proteção (palavras suas). Foi encontrado, três dias depois, em um

acampamento do circo, à beira de uma estrada.

Outra atitude freqüente de seu pai era atacar a imagem corporal do

filho. Pelo simples fato de ele ter algumas proeminências ósseas no tórax e

de ser muito magro, o pai o chamava de aleijado e dizia que nunca seria

igual aos outros meninos. Ou ficaria atrofiado no seu físico ou não poderia

sobreviver, morrendo precocemente. Estes são os diálogos com o pai que o

paciente mais recorda. Disse-me, várias vezes, não se lembrar de nenhuma

aproximação amigável ou amorosa do pai.

Iniciou a análise com humor irritado e tristeza. Muito intolerante, não

aceitou, de início, que eu tratasse de questões que ele ainda não admitia

debater. Por vezes, gritava nas sessões, ofendia-me, ameaçava-me, dizen-

do-se mais forte do que eu e que eu deveria temê-lo. Ficava ofendido e

raivoso quando eu interpretava ou tocava em algo que o contrariava. Reali-

zava o que Kernberg (1975) chama de exoatuações transferenciais (p.85):

em lugar de expressar verbalmente sua raiva e desconfiança, ele gritava e

acusava, ameaçava se retirar, se sentia atingido, como se a atitude do ana-

lista fosse nefasta e perseguidora. São ações diretas ao invés de

verbalizações.

Isto não se constitui em reações exclusivas dos pacientes fronteiriços,

mas os pacientes neuróticos só realizam esses quadros de descontrole em

situações especiais de intensa regressão e respondem mais prontamente ao

trabalho interpretativo. O paciente fronteiriço tende a atuar, na transferên-

cia, estas situações, sempre que o analista esteja trabalhando em pontos

que mobilizem sua angústia, o que pode desorganizar seu Ego frágil em

que predominam mecanismos dissociativos e projetivos intensos e persis-

tentes. Estas atuações transferenciais ligam-se a descargas pulsionais re-

presentadas pela agressão pré-edípica. Quando são frustrados os desejos,

ocorre como reação uma raiva acusatória, pela pequena capacidade de frus-

tração que apresentam e pela identificação do analista com os objetos sádi-

cos e frustradores do mundo interno do paciente. Além das atuações

transferenciais, o paciente psicótico, borderline ou narcisista pode atuar,

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intensa e perigosamente, fora do consultório.

Voltando ao paciente citado no início, quando sentia que suas atua-

ções na transferência não surtiam efeito, partia para ameaças contra sua

vida, um antigo hábito, em atitudes desafiadoras de alto risco. Fazia apos-

tas consigo mesmo para ver se, “naquela curva, o carro conseguiria dobrar

ou capotaria”, dirigindo em alta velocidade. (Há muitos anos, caiu em um

despenhadeiro com o carro, viu que iria morrer, sentiu-se bem, pensou

“agora acabou, vem a paz”. O carro esbarrou em uma árvore, e ele foi

resgatado pelo guincho da polícia rodoviária, sob a vista de inúmeros tran-

seuntes.)

Quando estava muito angustiado, sentia necessidade de atuar (pala-

vras suas). Começava a beber, aplacava sua crítica e seu controle e saía às

ruas, à procura de parceiros para relações homossexuais. Essas se consti-

tuíam em carícias, admiração pelo corpo dos homens jovens que buscava,

felação e relações anais. Procurava parceiros em vilas de marginais, onde

sabia que o perigo era muito grande, e, por duas vezes, quase foi morto.

Chegou a levar um marginal para sua casa, ocasião em que foi agredido e

roubado. Sentia um prazer diferente (palavras suas) nessas condutas de

alto risco.

Nesse momento de sua análise, foi necessário um trabalho exaustivo

de interpretação sobre sua conduta autodestrutiva. Ele respondia com raiva

ou com risos debochados, dizendo que eu estava assustado. Mostrava-lhe

que procurava tornar impossível o trabalho analítico, pois, frente a qual-

quer contrariedade, ameaçava-me com uma conduta de alto risco contra

sua vida. Que pretendia que eu aceitasse na íntegra sua atitude desafiadora

de grande perigo ou não tocasse em pontos sensíveis. Compreendeu a rea-

ção esterilizante que usava contra a análise e arrefeceu as atuações

autodestrutivas.

É difícil para o analista trabalhar com o paciente, sabendo que ele

corre risco real de vida, quando as interpretações o angustiam de maneira

desorganizadora. Por isso, é preciso ir devagar nos pontos dolorosos para

ele, mostrando sempre sua reação constrangedora para o processo de análi-

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se. Com os pacientes fronteiriços, as atuações, que são toleradas nos neuró-

ticos como fazendo parte de sua evolução, tornam-se potencialmente peri-

gosas. Devem ser contidas no seu aspecto mais destrutivo, através de um

atento trabalho interpretativo, porque, se não for assim, terminam por atin-

gir o analista, que passa a se preocupar em demasia com o destino do pa-

ciente. João tem de chegar ao limite do desastre, é assim que lida com as

pulsões autodestrutivas. E sente um grande prazer e alívio nessas atitudes.

Na evolução desses pacientes, é preciso observar suas oscilações ana-

líticas e o perigo advindo disto, que se deve a atuações limítrofes em ter-

mos de periculosidade. Nesses momentos, parece que estamos diante da

falência das forças de autoconservação.

O analista trabalha no conflito primitivo, mas, com esses pacientes,

nos momentos críticos, é obrigado a operar também no plano das tendên-

cias autoconservadoras. Porque a vida é que está em risco. Então, sua

conduta interpretativa oscila de níveis.

João busca socorro, procura se analisar, faz um grande sacrifício para

isto, mas sua parte cooperadora é anulada pela parte destrutiva, dinamizada

por seu desespero, o sentimento de vazio, de ausência de esperança, segun-

do palavras suas. Procura conter seu homossexualismo, atuando em zonas

escolhidas, para evitar ser descoberto. Mas isto é só racionalização, o que

faz é para ser desmascarado e denegrido por todos. Quando não tem al-

guém para odiar (o pai, por exemplo), parte para atuações destrutivas. Eli-

mina a parte crítica preservadora do self com o álcool, as pulsões tanáticas

ficam liberadas, e a conduta assume a forma destrutiva. Suas pulsões

destrutivas se voltam contra si e o levam para a loucura ou para a morte,

segundo sua crença.

Com a desfusão pulsional, as pulsões tanáticas agem isoladamente,

desligadas da ação mitigadora de Eros. Não havendo esta ação de Eros, a

autoconservação entra em falência.

Periodicamente, tem de beber muito para “poder descarregar” (sic),

porque sente uma tensão interna enlouquecedora, que deve ser deslocada

para o exterior, mesmo que seja sob a forma de conduta de alto risco. Arris-

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ca-se loucamente para exorcizar a loucura. O que dramatiza, então, é que,

exercendo uma conduta “quase” psicótica e “quase” suicida, evita a loucu-

ra e a morte. Caminha na beira do precipício.

Em uma descrição fenomenológica, observamos uma verdadeira sub-

missão a um tirano interior, que o conduz para a vergonha e o perigo, do

que vem a se arrepender depois, deprimindo-se e se acusando. Por exem-

plo, está com uma amiga num bar, bebe, fica embriagado, larga a mulher e

sai em busca de marginais. Ocorre-lhe, neste momento, esta idéia: “larga

essa mulher, canalha, e vai procurar um marginal, que é só o que conse-

gues, só a escória social pode gostar de ti”. O paciente sente como que uma

voz interior, representante do pai odiado que o oprimia. Parece-me que os

ataques sádicos do pai desorganizaram sua economia pulsional, liquidando

com seu self amoroso e liberando, em certos momentos, seu self destrutivo.

Sempre há um argumento sedutor e canalha da parte tirânica do self para

dominar a parte mais sadia. É o que ocorre com o drogado e o alcoolista:

“esta noite é a última vez, não faz mal que eu beba só mais nesta ocasião,

será a última”. É como a voz de um Superego arcaico e perseguidor que

engana o Ego, segundo Angel Garma expressa em um dos seus trabalhos.

O paciente é muito sensível a qualquer resposta de minha parte que

possa interpretar como desconsideração. Não pode acreditar em qualquer

manifestação carinhosa ou empática de parte do pai ou do analista. Disse-

me certo dia: “tu podes trabalhar em cima da seguinte idéia que meu pai

tinha de mim: ‘tu não vales nada, és lixo, não fazes falta para ninguém’ ”. A

mãe não é tão odiada, mas é uma mulher inconfiável, porque nunca se opôs

ao pai. A avó idealizada era o único objeto de amor. Mas João relata que

esta avó teve dois surtos de psicose puerperal. A mãe teve um surto

psicótico, com despersonalização e idéias delirantes de referência e perse-

guição, quando o paciente tinha 10 anos de idade. Seu destino trágico se

ligava ao fato de ser filho de um paranóico e de uma provável

esquizofrênica.

Certa vez, o paciente trouxe um diálogo entre um soldado e o médico

do quartel: “o que pensas disto?”, pergunta o médico; “eu não penso, eles

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pensam por mim”; “mas o que achas disto, de pensarem por ti?”; “nada,

eles pensam e fazem e pronto”. Esta idéia associativa surgiu vinculada à

sua conduta perturbada, a seus ódios e queixas. É um diálogo fechado, sem

saída, entre a parte tirânica destrutiva e o lado dominado, entre o pai opres-

sor e a criança indefesa. De mim sempre espera aplauso e aceitação como

única maneira de se sentir melhor. Por ele, não consegue alcançar a espe-

rança.

Nestes casos, é preciso encontrar-se acesso aos aspectos amorosos do

self, como afirma Rosenfeld (1971), resgatar o self amoroso cooperador,

capaz de formar bons vínculos e restaurar a estruturação danificada do

mundo interno. Este paciente já consegue trabalhar melhor e conter par-

cialmente sua conduta autodestrutiva, às vezes ri na sessão, mostrando ale-

gria, fato inexistente no passado. Mas é um caso de prognóstico muito re-

servado.

Conseguir vínculos com o self amoroso do paciente melhora a relação

analítica com o desenvolvimento de um grau de confiança, com conse-

qüente desinvestimento da parte agressiva do self. Começa a ocorrer uma

modificação na economia psíquica.

Os pacientes narcisistas graves sentem-se em perigo ao colaborar com

o analista. Por isso, atacam seu lado cooperador, encarando como fraqueza

“se dobrar” ao analista. O lado amoroso e cooperador é capaz de formar

vínculos, e, assim, podem ocorrer modificações. Isto põe em risco a

hegemonia do “self grandioso narcisista”, onipotente e pleno de fantasias

de poder. Rosenfeld (1971) afirma que o “self narcisista” traz uma impres-

são de segurança ao paciente. A agressividade do self narcisista se mani-

festa, francamente, com seu potencial de ódio e desprezo aos objetos e a

toda manifestação de realidade que constitua uma ameaça de ruptura da

fantasia primitiva de um Ego de prazer puro, base primordial da conjuntura

narcisista.

A aproximação vincular analítica através das interpretações tem de

ser paulatina, porque senão o paciente se retrai ou foge. As interpretações

devem se dirigir não só aos conteúdos destrutivos, mas sempre, também, à

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parte amorosa cooperadora do self, responsável pela presença do paciente

no consultório psicanalítico. Esta dupla direção de objetivos tende a dimi-

nuir as dissociações, favorecendo a integração de um self dissociado. Mo-

difica, passo a passo, as falsas crenças (“misconceptions”, expressão de

Money-Kyrle) do paciente sobre a vida e os objetos. Uma ação

interpretativa muito intensa leva a um retraimento; o paciente teme perder

a aura protetora narcísica, sua maneira de se defender. Teme também cair

em uma dependência escravizante do analista.

A contratransferência é atingida na análise com estes pacientes. Ou

contemos certas interpretações, para não provocar situações difíceis ou

limítrofes, ou realmente somos tocados por preocupação excessiva. Então,

torna-se difícil tratar estes pacientes, não só por sua patologia grave, como

também pela contratransferência sobrecarregada.

O sentimento de vazio que João relata é a conseqüência do predomí-

nio do ódio frente ao amor. O vazio é “vazio de amor”. O velho ditado

popular “falem mal de mim, mas falem” significa: “não me esqueçam, que

exista um vínculo”.

Como regra geral, a interpretação de conteúdos angustiosos pode ser

feita sempre que o analista sinta que o vínculo analítico seja capaz de sus-

tentar reações de angústia ou agressividade resultantes da interpretação. A

interpretação mais profunda, que desperte angústias primitivas

persecutórias, deve ser preparada por intervenções interpretativas. Se for

possível, é bom que o paciente consiga chegar ao insight da situação sozi-

nho ou junto com o analista. Isto evita o impacto ao seu Ego frágil.

É necessário sempre buscar e ter em vista, na relação, o self colabora-

dor amoroso do paciente.

A entonação da voz é fundamental. Os pacientes borderline e narcisis-

tas, devido à presença de ansiedades paranóides, com facilidade levam uma

manifestação do analista para o lado de uma agressão.

São os momentos extremos do trabalho analítico, em que o analista é

mais exigido. É necessário suportar, por longo tempo, uma situação grave

que não se modifica, em que somos tratados como um simples apêndice do

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paciente. Tudo que dizemos é sentido como algo desvalorizado ou perse-

guidor. Pode nos parecer que estamos frente a uma tarefa de Sísifo.

Lentamente, quando se consegue tocar o self amoroso, vai se forman-

do um processo de insight e modificação.

Nos períodos iniciais, a angústia sobrepaira nesses vínculos analíti-

cos. Se o analista procura apressar o processo, o paciente não suporta e

abandona o tratamento.

O confronto do self destrutivo com o self amoroso, da parte psicótica

da personalidade com a realidade da vida e das relações, é, no início, frus-

trante. Parece que Tanatos sempre vence Eros. Porém, com o tempo, vão se

formando pequenos núcleos vinculares no paciente, de aceitação da análi-

se.

A cada conquista destas, por pequena que seja, o paciente sente que

avançou um pouco, e sua vida se torna mais tolerável.

Do lado do analista, a persistência e a crença no valor fundamental da

Psicanálise é um dado basilar. Para isto, é claro, o analista precisa estar

com seus núcleos residuais narcisistas bem analisados, porque, senão, ele

não suporta um longo período de riscos e frustrações, como ocorre na aná-

lise desses pacientes graves.

Mas, no fim e ao cabo, se o paciente persiste na análise, sentimos que

valeu a pena a longa e tempestuosa travessia.

O autor apresenta uma abordagem realçada por Freud em alguns trabalhospara a compreensão teórica e aproximação terapêutica de patologias graves comonarcisistas, borderline e psicóticas. Em 1920, 1923, 1933, 1937 e 1938, Freudapontou a importância de valorizar o fenômeno da fusão e desfusão pulsionalpara a compreensão de algumas patologias graves. A desfusão provoca uma alte-ração na operatividade das forças de autoconservação, nas relações internas doself e com os objetos. A inversão das forças de autoconservação se observa nosuicida, no melancólico, nos quadros de severa reação terapêutica negativa e gra-

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ves perturbações psicossomáticas. A pulsão de morte representada peladestrutividade quando desfusionada de Eros leva a atuações limítrofes. A Psica-nálise é apresentada como um recurso heróico no tratamento destas perturbações.O material clínico refere-se a um paciente gravemente enfermo, cujas atuaçõesextremas eram um verdadeiro flerte com a morte. A transferência destes pacien-tes é sempre muito perturbada e a contratransferência sobrecarregada. Uma atitu-de de tolerância, paciência, empatia e confiança no trabalho psicanalítico é funda-mental na pessoa do analista.

The author presents an approach enhanced by Freud in some works for thetheoretical understanding and therapeutic approach of serious pathologies suchas narcissistic, borderline and psychotic. In 1920, 1923, 1933, 1937 and 1938,Freud pointed to the importance of valuing the phenomenon of fusion and defusionof drives for the understanding of some serious pathologies. The defusion provokesan alteration in the operativeness of the self-preservation forces, in the internalrelations of the self and with objects. The inversion of the self-preservation forcesis observed in the suicide, in the melancholic, in the frames of severe negativetherapeutic reaction, and serious psychosomatic disturbances. When the deathdrive, represented (performed) by the destructiveness, is defused of Eros it leadsto bordering acting. The Psychoanalysis is presented as a heroic resource in thetreatment of these disturbances. The clinical material refers to a seriously ill pa-tient whose extreme actings were a true flirt with the death. The transference ofthese patients is always very disturbed and the countertransference is overburden.An attitude of tolerance, patience, empathy and trust in the psychoanalytic workis fundamental in the analyst’s person.

El autor presenta un abordaje destacado por Freud en algunos trabajos parala comprensión teórica y aproximación terapéutica de patologías graves comonarcisistas, borderline y psicóticas. En 1920, 1923, 1933, 1937 y 1938, Freudseñaló la importancia de valorar el fenómeno de fusión y defusión pulsional parala comprensión de algunas patologías graves. La defusión provoca una alteraciónen la operabilidad de las fuerzas de auto conservación, en las relaciones internasdel self y con los objetos. La inversión de las fuerzas de auto conservación esobservada en el suicida, en el melancólico, en los cuadros de severa reacciónterapéutica negativa y de graves perturbaciones psicosomáticas. La pulsión de

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muerte representada por la destructividad cuando defusionada de Eros lleva aactuaciones limítrofes. El Psicoanálisis es presentado como un recurso heroico enel tratamiento de estas perturbaciones. El material clínico se refiere a un pacientegravemente enfermo, cuyas actuaciones extremas eran un verdadero flirteo con lamuerte. La transferencia de estos pacientes es siempre muy perturbada y lacontratransferencia sobrecargada. Una actitud de tolerancia, paciencia, empatía yconfianza en el trabajo psicoanalítico es fundamental en la persona del analista.

Prazer perverso; Fusão e desfusão pulsional; Economia pulsional; Forças deautoconservação; Pulsão de morte; Autodestrutividade primitiva; Tirania interna;Atuações limítrofes; Atuações transferenciais; Self amoroso, cooperador; Selfnarcisista, destrutivo.

Perverse pleasure; Fusion and defusion of drives; Driving economy; Self-preservation forces; Pulse of death; Primitive self-destructiveness; Inner tyranny;Border acting; Transferential acting-outs; Loving, cooperating Self; Narcissistic,destructive self.

Placer perverso; Fusión y defusión pulsional; Economía pulsional; Fuerzasde auto conservación; Pulsión de muerte; Auto destructividad primitiva; Tiraníainterna; Actuaciones limítrofes; Actuaciones transferenciales; Self amoroso,cooperador; Self narcisista, destructivo.

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