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PROTEÇÃO PATRIMONIAL DOS ADQUIRENTES NAS INCORPORAÇÕES IMOBILIÁRIAS Revista do consumidor, 2007. I A proteção contratual dos adquirentes e consumidores – Em 1964 a Lei das Incorporações Imobiliárias (Lei 4.591/64) introduziu no direito positivo um avançado sistema de proteção contratual dos adquirentes de imóveis em construção, fundado nos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato. Mais tarde, a Lei n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), orientada por esses mesmos princípios, dispôs sobre a proteção contratual nas relações de consumo, aplicável, também, aos contratos de construção e de venda de imóveis. Entretanto, apesar de tratarem da proteção contratual , nenhuma dessas duas leis cuidou da proteção patrimonial , deixando os adquirentes de imóveis em construção sob risco de perda das quantias que pagaram, como bem ilustram casos de desequilíbrio econômico-financeiro de empresas incorporadoras, de que é exemplo o caso Encol. Só recentemente, em 2004, veio a ser instituído um regime especial de proteção patrimonial dos credores das empresas incorporadoras, notadamente os adquirentes dos imóveis integrantes dos empreendimentos, por força da Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004, que permite a segregação patrimonial de determinadas incorporações. Por esse regime, os adquirentes são investidos de poderes de controle sobre o empreendimento e o exclui dos efeitos de eventual falência da empresa incorporadora, autorizando os adquirentes a vender as unidades do “estoque” da empresa, mediante leilão extrajudicial, e prosseguir a obra diretamente, sem

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PROTEÇÃO PATRIMONIAL DOS ADQUIRENTES

NAS INCORPORAÇÕES IMOBILIÁRIAS

Revista do consumidor, 2007.

I

A proteção contratual dos adquirentes e consumidores – Em 1964 a

Lei das Incorporações Imobiliárias (Lei 4.591/64) introduziu no direito positivo

um avançado sistema de proteção contratual dos adquirentes de imóveis em

construção, fundado nos princípios da boa-fé objetiva e da função social do

contrato.

Mais tarde, a Lei n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), orientada

por esses mesmos princípios, dispôs sobre a proteção contratual nas relações

de consumo, aplicável, também, aos contratos de construção e de venda de

imóveis.

Entretanto, apesar de tratarem da proteção contratual, nenhuma dessas duas

leis cuidou da proteção patrimonial, deixando os adquirentes de imóveis em

construção sob risco de perda das quantias que pagaram, como bem ilustram

casos de desequilíbrio econômico-financeiro de empresas incorporadoras, de

que é exemplo o caso Encol.

Só recentemente, em 2004, veio a ser instituído um regime especial de

proteção patrimonial dos credores das empresas incorporadoras,

notadamente os adquirentes dos imóveis integrantes dos empreendimentos,

por força da Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004, que permite a

segregação patrimonial de determinadas incorporações. Por esse regime, os

adquirentes são investidos de poderes de controle sobre o empreendimento e

o exclui dos efeitos de eventual falência da empresa incorporadora,

autorizando os adquirentes a vender as unidades do “estoque” da empresa,

mediante leilão extrajudicial, e prosseguir a obra diretamente, sem

intervenção judicial. Trata-se, igualmente, de um regime de vinculação de

receitas, pelo qual se conserva o quantum necessário à conclusão das obras e

entrega das unidades aos adquirentes.

O contrato de incorporação imobiliária – A Lei n° 4.591, de 1964,

regulamenta a atividade empresarial de incorporação imobiliária, tipifica o

contrato de incorporação, que, basicamente, corresponde à alienação de

imóveis durante a construção, e estabelece um sistema de proteção dos

adquirentes contra os riscos inerentes à construção. Essa lei, nos seus arts.

28 e seguintes, diz respeito aos mecanismos e procedimentos contratuais

pertinentes exclusivamente à fase da construção.

Traço característico do negócio é a “venda antecipada de apartamentos de

um edifício a construir”, visando a captação de recursos que “consiste em

obter o capital necessário à construção do edifício, mediante venda, por

antecipação, dos apartamentos de que se constituirá.”1 Dada essa noção, fica

claro que a venda de apartamento já pronto e averbado no Registro de

Imóveis não se caracteriza como contrato de incorporação.

É o contrato pelo qual o incorporador se obriga a transmitir, a título oneroso,

unidades imobiliárias em construção, integrantes de edificação coletiva, e,

bem assim, a promover, por si ou por terceiros, a construção e averbação dos

apartamentos no Registro de Imóveis, visando a instituição da propriedade

condominial especial de que tratam os arts. 1.331 e seguintes do Código Civil

(Lei 4.591/64, parágrafo único do art. 28 e art. 44).

É contrato bilateral, típico, consensual, oneroso, comutativo, solene e de

execução continuada, para cuja formalização são utilizadas espécies de

contrato já tipificadas no ordenamento, entre elas a compra e venda ou a

promessa de compra e venda da unidade imobiliária, como coisa futura, a

1 GOMES, Orlando, Direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 14. ed., 1999, p. 227, e DINIZ, Maria Helena, Curso de direito civil brasileiro. Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. São Paulo: Saraiva, 11. ed., 1996, p. 493.

compra e venda ou a promessa de venda da fração ideal de terreno

conjugada com contrato de construção e a compra e venda com pacto adjeto

de alienação fiduciária ou com pacto adjeto de hipoteca.

O objeto do contrato de incorporação contempla elementos de natureza

obrigacional e de natureza real. O primeiro é o objeto imediato do contrato;

trata-se de obrigação de fazer e de dar, ou seja, de uma parte, a obrigação

do incorporador de promover a construção, por si ou por terceiros, e de

entregar as unidades aos adquirentes, transmitindo-lhes a propriedade.2

Na forma da promessa de compra e venda, o elemento de natureza

obrigacional do contrato de incorporação consiste no compromisso que as

partes assumem “de contratar a transferência do domínio, logo que se

complete o pagamento do preço.”3

O elemento de natureza real é seu objeto mediato, ou seja, a atribuição, ao

adquirente, da propriedade do imóvel cuja construção está sendo promovida

pelo incorporador.

Ao tipificar o contrato de incorporação, a Lei n° 4.591/64 dita os parâmetros

do seu conteúdo, fixa balizamentos e limitações para evitar práticas abusivas,

estabelece deveres de conduta que corporificam o princípio da boa-fé objetiva

e atendem à exigência do equilíbrio das relações obrigacionais, submetendo a

controle a manifestação de vontade para ajustá-la às atuais exigências sociais

e econômicas e, assim, assegurar o cumprimento da função social do

contrato.

Para controle da atividade empresarial do incorporador, a lei determina o

conteúdo do contrato (seja de compra e venda, de promessa, de empreitada,

2 CHALHUB, Melhim Namem, Da incorporação imobiliária. 2. Ed., 2005, Rio de Janeiro: Renovar, p. 146. 3ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira, Da compra e venda promessa e reserva de domínio. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1960, p. 193.

de alienação fiduciária etc), tudo visando assegurar a consecução da função

social do contrato, mediante realização de sua finalidade econômica, o que se

alcança mediante completa construção da edificação e entrega das unidades

imobiliárias aos adquirentes, nas condições pactuadas.

Nesse sentido, a Lei 4.591/64 estabelece requisitos mínimos e regulamenta

toda a evolução do processo contratual, desde a fase pré-contratual, na qual

está presente a obrigatoriedade de prévia exibição dos elementos essenciais

do contrato, por meio do Memorial de Incorporação arquivado no Registro de

Imóveis, passando por todo o curso da execução do contrato e seguindo até

a fase da extinção do contrato, em razão da responsabilidade civil do

incorporador.

Em termos concretos, é útil voltar a atenção para alguns dos aspectos mais

importantes da regulamentação do contrato de incorporação:

a) o incorporador só pode colocar à venda as frações ideais e acessões

depois de divulgar os elementos essenciais do contrato, mediante registro

do memorial de incorporação no Registro de Imóveis, contendo as

informações sobre toda a história do imóvel, a situação jurídica e

patrimonial do incorporador, as condições peculiares pelas quais o

incorporador negociou o terreno (se pagou à vista, se parceladamente, se

obteve a titularidade por permuta, quais as condições da permuta, se for o

caso, etc), a situação jurídica do incorporador (se é mesmo o titular da

incorporação ou se é procurador do incorporador), os ônus fiscais e os

ônus reais que pesam sobre o terreno, a cópia do projeto de construção

aprovado pelas autoridades competentes, o orçamento da obra, a

específica situação do incorporador perante a Previdência Social, a

discriminação das frações ideais em que ficará dividido o terreno, que

constituirão propriedade individual dos futuros adquirentes etc.

b) são estabelecidas sanções civis e penais contra o incorporador que, por

ação ou omissão, frustrar a segurança jurídica propiciada pelo sistema do

Registro de Imóveis, estando tipificados como crimes contra a economia

popular a promoção de incorporação em que se fizer afirmação falsa

quanto à constituição do condomínio, à alienação das frações ideais ou à

construção do edifício e, ainda, como contravenções penais os seguintes

fatos (1) negociar frações ideais sem prévio registro do memorial no

Registro de Imóveis competente; (2) omitir a existência de algum ônus real

sobre o terreno; (3) deixar de outorgar o contrato de aquisição aos

adquirentes; (4) deixar de mencionar no contrato o orçamento da obra; (5)

paralisar a obra por mais de 30 dias ou retardar seu andamento sem justa

causa (art. 65 da Lei 4.591/64);

c) Mesmo que o incorporador se recuse a outorgar o contrato ao adquirente,

ou interponha obstáculos a essa outorga, a lei assegura ao adquirente o

direito de registrar o contrato preliminar de aquisição da unidade ou, se

não houver contrato, autoriza-o a registrar qualquer documento que o

incorporador lhe tenha outorgado, até mesmo um instrumento de ajuste

preliminar, registro esse que confere ao adquirente direito real oponível a

terceiros, com o consequente direito à obtenção compulsória do contrato

correspondente (art. 35, § 4°);

d) se o incorporador, sem justa causa, paralisar a obra por mais de 30 dias

ou retardar seu andamento, poderá ser notificado para que a reinicie ou a

recoloque em andamento normal, sendo certo que, não atendida a

notificação em 30 dias, os adquirentes poderão substituir o incorporador e

assumir a administração da obra (art. 43, VI);

e) em caso de falência do incorporador, e tendo sido outorgadas por ele

promessas de venda aos adquirentes, aplicar-se-á a legislação respectiva

(art. 43, VI, do Decreto-lei n° 7661, de 1945 - Lei de Falências); a

legislação respectiva, no caso das promessas registradas no Registro de

Imóveis competente, são o Decreto-lei n° 58, de 1937 (art. 22 - promessas

em geral), a Lei n° 6.766, de 1979 (promessas de lotes de terreno) e a Lei

n° 4.591, de 1964 (art. 35, § 4° - promessa ou instrumento preliminar de

ajuste nas incorporações), todas elas dispondo que a promessa registrada

no Registro de Imóveis competente confere ao promissário comprador

direito real, oponível a terceiros, com direito a adjudicação compulsória;

f) ainda em caso de falência do incorporador, ou de atraso injustificado da

obra, bem como no caso de paralisação da obra por mais de 30 dias, os

adquirentes poderão assumir a incorporação e prosseguir a obra com os

recursos do seu orçamento próprio, só respondendo pelas dívidas e

obrigações vinculadas à sua incorporação.

No contexto desse conjunto de medidas, o legislador dispensou atenção

especial à segurança do adquirente na contratação da aquisição da unidade,

cuidando de dar atributo de direito real não só à promessa de compra e

venda, mas, também, ao instrumento de ajuste preliminar que tenha sido

outorgado pelo incorporador.

Com efeito, ao registrar seu contrato de promessa de compra ou, mesmo, o

ajuste preliminar, que tenha firmado por instrumento particular, o adquirente

tornar-se-á titular de direito de real sobre a futura unidade imobiliária, direito

esse que será válido e eficaz contra terceiros (art. 35, § 4°).

Quanto às promessas de compra e venda em geral, importa notar que, já em

1937, o art. 22 do Decreto-lei n° 58, assegurava direito real ao adquirente,

desde que registrado o contrato.4

É relevante o fato de que a eventualidade de falência do incorporador não

altera a natureza do direito do adquirente, que, titular de direito real, oponível

contra todos, tem assegurada a obtenção da adjudicação compulsória, desde

que complementado o pagamento do preço; uma vez quitada a promessa,

4 Decreto-lei n° 58, de 1937: “Art. 22. Os contratos, sem cláusula de arrependimento, de compromisso de compra e venda e cessão de direito de imóveis não loteados, cujo preço tenha sido pago no ato de sua constituição ou deva sê-lo em uma ou mais prestações, desde que inscritos a qualquer tempo, atribuem aos compromissários direito real oponível a terceiros, e lhes conferem o direito de adjudicação compulsória nos termos dos arts. 16 desta lei, 640 e 641 do Código de Processo Civil.”

tem o promissário direito à obtenção da adjudicação contra a massa,

assegurada que está, a prevalência das regras da legislação específica

relativas a essa modalidade de contrato quanto aos negócios celebrados pelo

falido.

A par das normas de proteção dos adquirentes contidas na Lei das

Incorporações e em outras dispersas no ordenamento, o Código de Defesa do

Consumidor – CDC inclui essa modalidade de contrato entre as relações de

consumo, seja porque, em regra, o adquirente encontra-se em posição de

desvantagem técnica e econômica ante a empresa incorporadora, seja porque

classifica o bem imóvel como produto para efeito das relações jurídicas de

consumo, bem como porque considera a construção e a comercialização de

imóveis como atividades caracterizadoras da figura de fornecedor (Lei

8.078/90, art. 3°).

Esses mecanismos de proteção, entretanto, não se mostram suficientes para

salvaguardar os direitos dos adquirentes em caso de desequilíbrio econômico

e financeiro do incorporador, ou, pior, em caso de eventual insolvência do

incorporador, hipóteses em que os direitos dos adquirentes haveriam de ser

contaminados por efeito de outras dívidas do incorporador, que, mesmo

tendo origem em outros negócios não vinculados à incorporação, poderiam

comprometer o terreno e as acessões, levando muitas vezes os adquirentes a

perder todas as economias que tiverem entregue ao incorporador.

De fato, embora cada incorporação tenha seu traço característico e seu

orçamento específico, e muito embora suas receitas próprias possam ser

suficientes para levar a cabo a incorporação independente da atividade geral

da empresa incorporadora, o certo é que elementos estranhos podem

interferir na estruturação e no desenvolvimento físico e financeiro de cada um

dos empreendimentos do incorporador, podendo levá-los ao desequilíbrio e à

frustração da finalidade social e econômica do contrato.

Na ausência de mecanismos especiais de proteção patrimonial, os riscos dos

credores da incorporação, notadamente o risco dos adquirentes, são

incalculáveis.

Com efeito, o acervo de cada uma das incorporações imobiliárias

empreendidas por determinado incorporador integra seu patrimônio geral e,

assim sendo, os bens e direitos que o integram constituem garantia geral dos

credores, podendo, portanto, ser submetidos a constrição por qualquer

credor, para pagamento de quaisquer débitos do incorporador, haja ou não

vinculação entre o débito e o empreendimento. Disso resulta que, a despeito

de o memorial fixar os limites orçamentários de cada incorporação, a verdade

é que, não havendo afetação patrimonial de cada um desses acervos, os bens

e direitos integrantes de cada um deles podem ser excutidos para satisfação

de créditos em geral, contra o incorporador, ou para cumprimento de

obrigações estranhas à incorporação respectiva; é que esses bens, direitos e

obrigações encontram-se agregados num único patrimônio sem qualquer

destaque ou afetação e, portanto, podem vir a responder por obrigações

vinculadas a qualquer das incorporações de que seja titular a empresa

incorporadora.

Além disso, em caso de falência da incorporadora, os bens que integram o

acervo de todas as suas incorporações devem ser arrecadados à massa, daí

surgindo dúvidas e incertezas quanto à plena eficácia das disposições dos

incisos III e VI do art. 43 da Lei 4.591/64.

De fato, o inciso III do art. 43 prevê que, em caso de falência do

incorporador, os adquirentes serão considerados credores privilegiados da

massa, enquanto que o inciso VI admite a substituição do incorporador, em

caso de atraso ou paralisação da obra.

Se a incorporação tiver sido pactuada mediante compra e venda da fração

ideal do terreno (pela qual cada adquirente se torne proprietário das frações

ideais, mediante escritura de compra e venda registrada) e celebração de

contrato de construção do edifício, a solução, caso sobrevenha a falência do

incorporador, há de ser relativamente simples, pois o terreno já não estará

integrando o patrimônio deste e, portanto, não será arrecadado, enquanto

que, no que tange à obra, o contrato de construção poderá ser distratado,

nos termos do art. 43 da Lei de Falências, que permite ao síndico prosseguir

ou não a execução dos contratos em curso, conforme seja conveniente para a

massa ou não.

Essa forma jurídica de contratação da incorporação, entretanto, é rara, sendo

mais comum a contratação de promessa de compra e venda de unidade

imobiliária (fração ideal + acessões) como “coisa futura”. Nesse caso, o

incorporador é titular do domínio sobre o imóvel e, em contrapartida, é

sujeito passivo de obrigação de construir e entregar a unidade, bem como da

obrigação de outorgar o contrato definitivo de compra e venda. Muito embora

aqui, também, se aplique a regra do art. 43 da Lei de Falências, pela qual o

Síndico da Massa dirá da conveniência ou não do cumprimento desse contrato

de promessa de compra e venda, será necessária autorização judicial para

transmissão do domínio para o adquirente. Nesses casos, é comum

apresentarem-se duas situações: a primeira, contemplando contratos de

promessa de venda registrados no Registro de Imóveis e a segunda

contemplando contratos de promessa sem registro. No primeiro caso,

estando os contratos registrados, a autorização poderá ser deferida à vista de

documento comprobatório do registro e da comprovação do pagamento do

preço; em regra, esses pedidos de autorização não encontram obstáculos,

desde que comprovados o pagamento e o registro do contrato e, bem assim,

desde que atendidos os requisitos e procedimentos estabelecidos pela Lei de

Falências para proteção da comunidade dos credores, em geral, notadamente

no que tange à precedência dos registros imobiliários. Entretanto, poderão

ocorrer dificuldades nos casos em que os adquirentes tenham deixado de

registrar seus contratos de aquisição de unidades, pois, enquanto na primeira

hipótese (contrato registrado no Registro de Imóveis) o adquirente é

investido de direito real sobre o imóvel, na outra hipótese (contrato não

registrado no Registro de Imóveis), o direito do adquirente tem natureza

meramente obrigacional, e é na configuração de direito de crédito que deve

ser habilitado no Juízo onde se processa a falência, ali passando a concorrer

com os demais créditos, de acordo com o regime de preferências estabelecido

em lei.5 Qualquer que seja a situação, entretanto, cada caso deverá ser

examinado de per si, circunstância que poderá postergar a solução e,

obviamente, levar os adquirentes a sofrer prejuízos elevados e irreparáveis.

O que é certo é que, em regra, sobrevindo a falência do incorporador, o

terreno e as acessões, quando integrantes do patrimônio do incorporador,

sem qualquer destaque, poderão ser arrecadadas, e os adquirentes só

haverão de satisfazer seus direitos após a liquidação do ativo da massa, no

final do processamento da falência, que se prolonga por muitos anos, ou

mediante alvará nas hipóteses cabíveis.

A inclusão dos direitos creditórios dos adquirentes na categoria dos créditos

“privilegiados”, como consta do art. 43 da Lei nº 4.591/64, não chega a

produzir resultado na prática, pois as preferências dos créditos trabalhistas e

fiscais, entre outros, deslocam os créditos dos adquirentes (de privilégio

geral) para os últimos lugares na ordem legal de preferências.

Em suma, embora a construção seja, em regra, erigida parcialmente com

recursos aportados pelos adquirentes, estes não têm nenhuma preferência

sobre o acervo da incorporação, nem mesmo um eventual direito de

indenização ou retenção por benfeitorias. Ou seja, os adquirentes contribuem

para a construção de um ativo que, em caso de falência, será apropriado

preferencialmente por outros credores, muitos dos quais não deram nenhuma

contribuição para a construção daquelas acessões; os adquirentes só poderão

5 A solução é coerente com a lógica do sistema, mas outras soluções podem ser encontradas, à vista das peculiaridades de cada caso concreto, em atenção ao princípio da boa-fé e considerando a densidade social do contrato de incorporação.

apropriar-se da sobra, depois de satisfeitos os credores preferenciais, mesmo

estranhos à obra.

Risco idêntico sofre o financiador da incorporação, pois os recursos que tiver

aportado para a obra, convertidos em pedra e cal, acabarão sendo

submetidos a concurso, para rateio entre todos os credores cujas preferências

antecederem à do financiador, mesmo aqueles credores que não tenham

contribuído para a execução das acessões levantadas no terreno.

Em síntese, em ambos os casos, outros credores, não vinculados à obra, mas

que têm preferência sobre os direitos dos adquirentes, se apropriarão da

construção realizada em parte com recursos destes últimos e do financiador

da obra, deixando-lhes a sobra, se houver.

Essas modalidades de risco, além de inúmeros outros riscos próprios da

atividade da incorporação, surgem com freqüência em razão do aumento dos

riscos a que está sujeita a atividade empresarial em geral.

Efetivamente, não obstante o sistema de proteção instituído pela Lei das

Incorporações e acrescidas pelo Código de Defesa do Consumidor,

notadamente o sistema de proteção contratual, o ordenamento não oferecia

aos adquirentes mecanismos que evitassem ou delimitassem seus riscos

patrimoniais.

De fato, a execução de um edifício de grande porte prolonga-se por dois, três

anos ou mais, e nesse período os adquirentes sujeitam-se a riscos

patrimoniais, sejam decorrentes de inadequada aplicação dos recursos que

tiverem entregue ao incorporador, sejam decorrentes de eventual

desequilíbrio do patrimônio geral do incorporador.

A omissão do sistema legislativo, como observa Caio Mário da Silva Pereira,

poderia dar causa a “mau emprego dos recursos de um prédio em outro”,

causando grandes prejuízos por causa de “mau emprego das verbas, quando

o dinheiro dos adquirentes de unidades em um edifício é desviado para outro

construído pelo mesmo profissional e, quando se informam aqueles, lá se

foram os recursos e vem a falta de numerário.”6

Tal é a complexidade da atividade e tais os riscos dos “parceiros” do

incorporador, que o Professor Caio Mário da Silva Pereira, em 1960, ao tratar

do assunto em seu Propriedade Horizontal, no qual apresentara anteprojeto

que veio a ser convertido na Lei n° 4.591/64, já advertia que a lei deveria

prever o credenciamento de um órgão fiscalizador encarregado de

acompanhar a execução das incorporações e velar pelo cumprimento dos

encargos imputáveis ao incorporador; nesse mister, seu anteprojeto

contemplava um registro obrigatório dos incorporadores e um sistema

fiscalizador 7

A proposição, de fato, contribuiria para melhor controle dessa atividade

empresarial, com reflexos benéficos para os adquirentes de modo geral,

embora não afastasse os riscos patrimoniais dos adquirentes, nem

contornasse os efeitos de eventual insolvência do incorporador.

Dada essa realidade, é possível perceber que, a despeito do sistema de

proteção contratual da Lei das Incorporações e do Código de Defesa do

Consumidor, os riscos patrimoniais do adquirente de unidade imobiliária em

construção são de difícil dimensionamento, dada a complexidade própria do

negócio e considerando as dificuldades do adquirente para acompanhar,

controlar e avaliar o desempenho do incorporador e do construtor na

implementação dos serviços da construção. 6 Caio Mário da Silva Pereira, Condomínio e incorporações, Forense, Rio, 3a ed., 1976, p. 319. 7 “Em nosso livro da Propriedade Horizontal já tratáramos do assunto, e sugerimos então que se incumbissem as autoridades administrativas locais desse mister, bem como aos Conselhos Regionais de Engenharia e Arquitetura, dada a proximidade patente entre a atividade do incorporador e a do construtor (às vezes reunidas na mesma pessoa), e ainda pelo fato notório da eficiência e elevação com que se conduzem esses Conselhos. No Anteprojeto que redigimos tivemos a mesma cautela, mas parece que na tramitação legislativa faltou quem tivesse conhecimento especializado da matéria, para imprimir sistema a este ponto tão importante. A Lei n° 4.591, de 16 de dezembro de 1964, não cria um órgão específico de fiscalização.” Condomínio e incorporações, cit., p. 257.

Além disso eventuais litígios decorrentes de financiamento da construção do

edifício poderiam colocar em risco a participação dos adquirentes no negócio.

A adequação do negócio incorporativo à teoria da afetação8

A atividade da incorporação imobiliária é naturalmente vocacionada para a

afetação patrimonial, seja em razão da relativa autonomia de cada

empreendimento, considerado de per si, seja por força da antecipação parcial

de pagamento por parte dos adquirentes.

Observe-se a estrutura do negócio incorporativo, traçada a partir do art. 28

da Lei nº 4.591/64.

O dossiê que forma o Memorial define por completo o objeto de cada negócio

incorporativo e seu programa financeiro, atribuindo identidade a cada um

desses negócios; o Memorial distingue cada incorporação dos demais

empreendimentos, tornando-a única, inconfundível. Ao determinar a fixação

dessa estrutura, pela reunião de elementos de identificação específica de

cada empreendimento, a Lei n° 4.591/64 já conferia condições de autonomia

material a cada incorporação, circunstância que atrai naturalmente a

incorporação para a órbita da teoria da afetação, pois o conteúdo do negócio

incorporativo que o Memorial de Incorporação exprime já terá estabelecido a

caracterização e os limites do patrimônio a afetar, observada a destinação

própria da atividade da incorporação, que é a construção e a entrega das

unidades aos respectivos adquirentes. Efetivamente, o Memorial contém cópia

do projeto de construção e planilhas que descrevem e caracterizam a futura

edificação e as futuras unidades imobiliárias autônomas, bem como

discriminam as frações ideais do terreno a que as unidades haverão de se

vincular; além disso, contém o orçamento, que quantifica o custo total da

obra e discrimina o custo de cada unidade imobiliária, bem como outras peças

8 Dessa matéria cuidamos em nosso trabalho Trust (Renovar, Rio de Janeiro, 2001, pp. 119 e segs).

enumeradas pelo art. 32, tudo isso compondo um conjunto que dá

caracterização própria a cada negócio de incorporação. Cada incorporação

tem potencial de receita própria, decorrente dos créditos oriundos da

alienação das unidades do empreendimento ou, eventualmente, de recursos

provenientes de financiamento específico para a obra, e essas fontes, em

princípio, são suficientes para conferir autonomia financeira a cada negócio

incorporativo, pois o volume potencial das receitas é, naturalmente, superior

ao custo da obra.

A incorporação, assim, tem estrutura econômico-financeira capaz de propiciar

a realização do negócio com suas próprias forças, ou seja, com recursos

financeiros gerados por si mesma, independente de outras fontes de receita.

Ora, de acordo com a teoria da afetação, admite-se a segregação patrimonial

ou a qualificação de determinado patrimônio segundo encargos que se

impõem a certos bens para efeito de vinculá-los a determinada finalidade.

Segundo essa teoria, é possível a existência de várias massas patrimoniais

sob titularidade de um mesmo sujeito, constituídas com a precípua finalidade

de se alcançar determinados fins jurídicos ou para viabilizar determinada

exploração econômica. Para esse fim, não é necessário que o bem objeto da

afetação seja retirado do patrimônio do titular, mas, sim, que seja destacado

para atender a determinada finalidade, sempre mediante expressa

autorização legal, estando compreendidos nessa teoria o bem de família, o

dote, as rendas vitalícias, as substituições etc. Implica a afetação que os

credores vinculados ao patrimônio especial têm ação somente sobre bens

dele integrantes, com exclusão dos outros bens do patrimônio do devedor, ou

significa que esses credores têm preferência sobre os bens afetados.

Patrimônios de afetação são incomunicáveis por natureza. A

incomunicabilidade é seu traço característico fundamental, sua razão de

existir, pois, para cumprir sua finalidade de proteção de um bem socialmente

relevante ou para assegurar a consecução de determinada atividade

econômica, é indispensável que os bens afetados fiquem afastados dos

efeitos de negócios estranhos ao objeto da afetação. Sem a

incomunicabilidade não é possível a realização da finalidade social e

econômica definida para o bem. É o caso, por exemplo, do imóvel destinado a

moradia da família, que só responde pelas dívidas e obrigações vinculadas ao

imóvel, entre elas o imposto predial, as quotas de condomínio, os salários dos

empregados da casa e as contribuições previdenciárias relativos a esses

empregados, entre outras.

Não obstante a incomunicabilidade, a constituição desses patrimônios

especiais não resulta em desmembramento do patrimônio geral: este

permanece uno, abrangendo todo o conjunto de direitos e obrigações do

sujeito, pois, como assinala Caio Mário da Silva Pereira, “ainda que se procure

destacar mais de um acervo ativo-passivo de valores jurídicos, sempre há de

exprimir a noção de patrimônio a idéia de conjunto, de reunião, e esta,

segundo a própria razão natural, é una.” Assim, não obstante haja casos em

que a origem ou a destinação de determinados bens e direitos justifique a

criação de acervos especiais, ainda assim não se tem pluralidade ou

divisibilidade de patrimônio, e “não obstante a separação de tais acervos ou

massas, o patrimônio do indivíduo há de ser tratado como unidade, em razão

da unidade subjetiva das relações jurídicas.” Vinculado a um fim especial, o

acervo afetado é alvo de tratamento destacado no patrimônio geral, sem que

se crie uma personalidade: “Os bens, objeto da afetação, a nosso ver, acham-

se, sem dúvida, vinculados ao fim, encontram-se gravados de encargo, ou

são objeto de restrição. Assim entendendo, aprovamos a disposição contida

no Projeto de novo Código Civil, que autoriza separar do patrimônio da

pessoa um conjunto de bens ou direitos vinculados a um fim determinado,

seja por mandamento legal, seja por destinação do titular. Separados do

patrimônio, e afetados a um fim, são tratados como bens independentes do

patrimônio geral do indivíduo. A afetação, porém, implicará composição de

um patrimônio sem se verificar a criação de uma personalidade, como se dá

com as fundações. Caso contrário, eles se prendem ao fim, porém continuam

encravados no patrimônio do sujeito. Não há, pois, razão para romper com a

concepção tradicional da unidade do patrimônio, com a qual se concilia a

idéia de poderem existir, no patrimônio, massas de bens objetivamente

considerados: bens dotais, bens de ausentes, bens da herança etc.” 9

O patrimônio de afetação é, assim, uma universalidade de direitos e

obrigações destinada ao cumprimento de determinada função, que opera

integrada ao patrimônio geral.

Organizado para determinado fim, esse complexo de bens, direitos e

obrigações é dotado de autonomia funcional para alcançar esse fim, pois,

como observa Messineo, o conceito de patrimônio separado “tem um certo

nexo com o conceito de universalidade e com o problema da responsabilidade

limitada (...) e sobre ele incidem direitos e obrigações autônomas.”10 Assim,

dentro do patrimônio geral do sujeito coexistiriam duas ou mais massas

patrimoniais que, embora incomunicáveis, podem estar relacionadas por laços

de interdependência, cujos limites e intensidade hão de ser determinados pela

natureza da função a que estiver destinada a massa patrimonial especial,

preservando-se sempre as condições necessárias à consecução do objetivo da

afetação.

A afetação pode corporificar-se de formas distintas, conforme a função do

acervo afetado e em atenção à espécie de negócio em que venha a ser

aplicada. No caso dos fundos de investimento, por exemplo, a sociedade

administradora adquire a propriedade dos bens e direitos que constituirão o

acervo da carteira de investimentos, mas na modalidade de “propriedade

fiduciária”, em que, embora figure como proprietária, sua titularidade é

apenas nominal, pois os subscritores das quotas do fundo é que são os

titulares do conteúdo econômico daqueles bens e direitos; a sociedade 9 Instituições de Direito Civil, Forense, Rio, 17a ed., 1995, vol. I, pp. 240 e 248. 10 Manual de derecho civil y comercial, Ediciones Jurídicas Europa-América, Buenos Aires, 1971, v. II, p. 265.

administradora torna-se proprietária desses bens e direitos apenas para

administrá-los, jamais para tirar proveito de sua exploração econômica, de

modo que o resultado positivo líquido dessa exploração é destinada aos

subscritores. Já na incorporação imobiliária o incorporador adquire o terreno

para si próprio, é o beneficiário da exploração econômica do negócio; neste

caso, a função da afetação é a consecução da incorporação, com a conclusão

da obra e entrega das unidades aos respectivos adquirentes; na medida em

que o incorporador contrate a venda de coisa futura, a “preço fechado”, sua

obrigação é de resultado e, portanto, responde pela execução da obra com

seu patrimônio geral; de outra parte, o lucro apurado no negócio da

incorporação é dele e, portanto, uma vez liquidado o patrimônio de afetação,

deve ser apropriado no patrimônio geral do incorporador; assim, caso o

produto da venda das unidades de determinada incorporação não seja

suficiente para levá-la a cabo, o incorporador terá que extrair recursos do seu

patrimônio geral e destiná-los à conclusão da incorporação e, de outra parte,

caso haja resultado positivo na incorporação, este será levado para o

patrimônio geral. Em ambos os casos – fundo de investimento e incorporação

imobiliária – sobressai com clareza o contorno da autonomia funcional do

acervo patrimonial envolvido, mas a interdependência entre as massas

patrimoniais geral e especial ressalta com toda nitidez no negócio da

incorporação imobiliária.

As lições de Caio Mário e de Messineo permitem apreender claramente a

configuração dessa espécie de patrimônio a que se atribui destinação

especial. A autonomia funcional do acervo ao qual se atribui uma destinação

específica explica a articulação entre os elementos de um mesmo patrimônio,

pois os bens que integram o patrimônio de afetação, como adverte Caio

Mário, “continuam encravados no patrimônio do sujeito”. Vale dizer: o

patrimônio de afetação não é um patrimônio dissociado do patrimônio geral

do sujeito, mas permanece a ele articulado, nele operando destacadamente, e

esse destaque é feito para que possa tal acervo cumprir determinada função,

daí porque se fala que sua autonomia é funcional, não plena. A esses

fundamentos deve-se dar redobrada atenção quando da interpretação dos

textos legislativos que disciplinam a constituição de patrimônios de afetação.

O advento da proteção patrimonial dos adquirentes – Com base nesses

pressupostos, o art. 53 da Lei n° 10.931/2004 veio suprir a importante

lacuna, assegurando aos adquirentes a proteção patrimonial que faltava.

A nova lei resulta do Projeto de Lei da Câmara n° 2.109/99, que reproduz

anteprojeto de nossa lavra aprovado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros,

tendo sido, posteriormente, incorporado ao Projeto de Lei do Executivo n°

3.065/2004, que veio a ser convertido na Lei n° 10.931/2004; o art. 53 dessa

lei acrescenta à Lei 4.591/64 os arts. 31A a 31F, dispondo sobre o modo de

constituição da afetação do acervo das incorporações, os mecanismos de

controle e os procedimentos em caso de insolvência da empresa

incorporadora.

O art. 31A estabelece a destinação do acervo de cada incorporação

imobiliária, ao permitir que tal acervo constitua um “patrimônio de afetação,

destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das

unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes.”

Dada essa qualificação, os bens, direitos e obrigações vinculados à

incorporação afetada passam a formar um núcleo patrimonial com autonomia

funcional, que só responde pelas suas próprias dívidas e obrigações. Uma

Comissão de Representantes dos adquirentes exerce controle sobre esse

patrimônio separado, inclusive mediante análise trimestral do seu balanço

específico e está legitimada para, em caso de falência ou recuperação da

empresa incorporadora, assumir a administração do empreendimento e dar

prosseguimento à obra, independente de intervenção judicial e com

autonomia em relação ao processo de falência.

Essa autonomia é ratificada pela recente Lei n° 11.101/2005, que

regulamenta a Recuperação da Sociedade Empresária e do Empresário, ao

estabelecer, no inciso IX do art. 119, que as atividades relacionadas a

patrimônios de afetação prosseguirão independente do processo de falência

até que cumpram sua finalidade.

III

O regime jurídico instituído pelos arts. 31A a 31F da Lei 4.591/64 –

De acordo com as novas normas legais, a afetação se efetiva mediante

“termo de afetação”, que será averbado no Registro de Imóveis.

Uma vez afetado, o acervo da incorporação torna-se incomunicável, passando

a responder somente pelas suas próprias dívidas e obrigações.

Contabilidade separada – Cada patrimônio de afetação tem ativo e passivo

próprios. A lei exige que o incorporador mantenha contabilidade separada

para cada incorporação afetada, sem que isso implique exclusão do acervo

afetado do patrimônio geral do incorporador, nem limitação da sua

responsabilidade pela incorporação, de modo que ele é que é o responsável

pela obtenção dos recursos para conclusão da obra e entrega das unidades.

Direito subjetivo do incorporador e restrições ao exercício dos seus

poderes – A afetação não atinge o direito subjetivo do incorporador, que,

sendo titular do terreno e das acessões, continua investido dos poderes de

livre disponibilidade dos bens integrantes da incorporação. Sendo, entretanto,

um encargo que vincula esses bens a uma determinada destinação (conclusão

da obra e entrega das unidades aos adquirentes), a afetação condiciona o

exercício dos poderes do titular da incorporação, impedindo que ele perpetre

atos de desvio de destinação. Por isso mesmo, os parágrafos 3° ao 8° do art.

31A autorizam o incorporador a ceder os créditos oriundos da comercialização

das unidades, seja em termos plenos ou fiduciários, bem como a constituir

garantias reais sobre os bens e direitos da incorporação. Mas, coerentemente

com o regime de vinculação de receitas visando a consecução da

incorporação, esses dispositivos deixam claro que (i) a constituição de

garantias reais só é admitida em operação de crédito cujo produto seja

integralmente destinado à realização da incorporação, (ii) o produto da

cessão de créditos, plena ou fiduciária, passa a integrar o patrimônio de

afetação. Pode o incorporador, entretanto, apropriar-se “dos recursos

financeiros que excederem a importância necessária à conclusão da obra (art.

44), considerando-se os valores a receber até sua conclusão e, bem assim, os

recursos necessários à quitação de financiamento para a construção, se

houver” (§ 8° do art. 31A).

O incorporador tem, assim, assegurado seu direito subjetivo de titular do

negócio, mas a lei lhe impõe determinadas obrigações correspectivas, e, a

despeito de poder ceder até mesmo a totalidade dos créditos oriundos da

comercialização, ele é obrigado a “preservar os recursos necessários à

conclusão da obra”, “manter apartados os bens e direitos objeto de cada

incorporação”, manter e movimentar os recursos financeiros em conta de

depósito específica para a incorporação afetada, manter contabilidade

separada e fornecer à Comissão de Representantes, trimestralmente,

balancetes e demonstrativos do estado da obra (art. 31D).

Controle e fiscalização – O controle e a fiscalização do desenvolvimento da

incorporação afetada será feito pela Comissão de Representantes dos

adquirentes, a partir dos relatórios trimestrais que receberá do incorporador,

bem como pela instituição financiadora do empreendimento.

Extinção da afetação – Uma vez concluída a obra, entregues as unidades

aos adquirentes e paga a dívida decorrente do financiamento, se houver,

extingue-se a afetação. Dá-se também a extinção da afetação em duas outras

hipóteses, a saber: (i) em caso de denúncia da incorporação, depois de

restituídas as quantias aos adquirentes, e (ii) em caso de liquidação da

incorporação, deliberada pela assembléia geral.

Procedimentos em caso de falência – Se, no curso da construção, ocorrer

a falência ou recuperação da empresa incorporadora, os efeitos da insolvência

não atingem o patrimônio de afetação, de modo que os bens, direitos e

obrigações que o compõem não poderão ser arrecadados à massa.

Nesse caso, nos 60 dias que se seguirem à decretação da quebra da empresa

incorporadora, os adquirentes realizarão assembléia geral na qual firmarão o

instrumento de instituição do condomínio da construção e deliberarão sobre o

destino do empreendimento.

Duas opções se põem diante dos adquirentes: ou prosseguem a obra,

levando-a a cabo, ou liquidam o acervo da incorporação.

Importante salientar que a administração do negócio será exercida pela

Comissão de Representantes dos adquirentes, e não pelo Administrador da

falência ou da recuperação da empresa.

Prosseguimento da obra – Caso resolvam prosseguir a obra, a Comissão

de Representantes deve promover a venda dos apartamentos que a

incorporadora ainda não tiver vendido, mediante leilão extrajudicial; o

produto da venda deve ser destinado ao pagamento das dívidas vinculadas à

incorporação-patrimônio-de-afetação, de acordo com a ordem legal de

preferências; a eventual sobra deve ser arrecadada à massa falida. A seguir, a

comissão de representantes passará a receber as prestações devidas pelos

adquirentes, constantes dos contratos de aquisição das unidades, e a aplicar

as respectivas importâncias na construção; se a receita for superior ao

montante das obrigações do patrimônio de afetação, a diferença será

arrecadada à massa; se, entretanto, a receita for inferior e tiverem sido feitos

aportes em valor superior ao preço convencionado nos contratos de

aquisição, a diferença será habilitada como crédito dos adquirentes.

Liquidação do patrimônio – Já se a assembléia dos adquirentes deliberar

pela liquidação, a comissão de representantes promoverá a venda do acervo

da incorporação em leilão extrajudicial, pagará os créditos também segundo a

ordem legal de preferências, restituirá aos adquirentes as quantias que

tiverem pago e arrecadará o saldo, se houver, à massa; se a restituição não

for integral, o valor que faltar para completá-la será habilitado como crédito

dos adquirentes.

Outorga das escrituras “definitivas” – Além da disciplina específica da

afetação, a nova lei cuidou de simplificar procedimentos visando facilitar ao

máximo a outorga dos direitos aos adquirentes. Nesse sentido, o § 3° do art.

31F investe a Comissão de Representantes de poderes irrevogáveis para

outorgar aos adquirentes o contrato definitivo a que estiver obrigado o

incorporador, dispensando o procedimento de adjudicação compulsória e,

ainda, livrando os adquirentes do encargo de ir buscar em Juízo, no processo

de falência, alvará para obtenção da escritura “definitiva”.

IV

Nota crítica – Não obstante o grande aperfeiçoamento no sistema de

proteção do adquirente, a nova lei contém algumas distorções que prejudicam

o pleno cumprimento da sua função social.

A mais grave dessas distorções é que a afetação é uma “opção” do

incorporador, e não um mecanismo compulsório de compensação da

vulnerabilidade do adquirente.

Dispõe o art. 31A: “A critério do incorporador, a incorporação poderá ser

submetida ao regime da afetação...”).

Trata-se de caso esdrúxulo, em que é o devedor quem decide se dará ou não

dará garantia do cumprimento de suas obrigações.

Necessidade de compulsoriedade da afetação – O dispositivo precisa

ser modificado para tornar compulsória a afetação patrimonial. Afinal, o que

está em jogo é a vulnerabilidade do adquirente, sobretudo pela antecipação

parcial do pagamento, e não a conveniência do incorporador.

Ora, um dos elementos da incorporação é a captação de recursos do público

e sua aplicação em determinada obra; ao realizar oferta pública de imóveis a

construir o incorporador está lidando com a economia popular; isso já é

suficiente para configurar uma situação merecedora de tutela especial, e um

dos propósitos basilares da afetação é disciplinar essa modalidade de

captação de recursos e preservar o patrimônio formado em conjunto pelo

incorporador, pelos adquirentes e demais credores. Por isso, o acervo de toda

e qualquer incorporação deve ser considerado automaticamente afetado, com

poderes de controle dos adquirentes, por força da própria lei, tal como ocorre

com a afetação da moradia definida pela Lei n° 8.009/90.

Nada justifica que a afetação seja manejada a critério do incorporador, pois a

proteção da economia popular é matéria de interesse público que, a exemplo

do que sucede no âmbito das relações de consumo, decorre do

“reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo”

(Lei n° 8.078/90, art. 4°, I), daí a necessidade de intervenção legislativa

“para compensar eventual desvantagem contratual e garantir a segurança

jurídica em favor do contratante mais fraco, impondo, para tal, regime

jurídico próprio para determinadas atividades.”

Ao deixar a afetação a critério do incorporador, a Lei 10.931/04 concede

vantagem exagerada ao incorporador, agravando ainda mais a

vulnerabilidade dos adquirentes e contrapondo-se ao fundamento axiológico

da norma, expresso na concepção original do anteprojeto do Instituto dos

Advogados Brasileiros e em quatro Projetos de Lei apresentados na Câmara

Federal nesse mesmo sentido, todos eles, unissonamente, caracterizando a

incorporação imobiliária como um patrimônio de afetação por força do

simples registro do Memorial de Incorporação.

V

Em suma, a afetação das incorporações imobiliárias constitui garantia de

incomparável eficácia em favor dos credores vinculados especificamente a

cada negócio incorporativo, beneficiando em especial os adquirentes, na

medida em que lhes assegura a preservação das suas aplicações financeiras e

lhes outorga o direito de assumir a administração do negócio e prosseguir a

obra com autonomia em relação a eventual falência da empresa

incorporadora, prerrogativa essa que veio a ser reafirmada pelo art. 119 da

Lei de Recuperação da Sociedade Empresária e do Empresário (Lei n°

11.101/2005).

Entretanto, a parte inicial do art. 31A desviou-se do fundamento axiológico

que justifica a afetação, deixando de indicá-la como elemento integrante de

toda e qualquer incorporação.

É de se admitir que essa distorção venha a ser suprida na prática do

mercado, pois, na medida em que a afetação é a única garantia que se

mostra efetivamente eficaz para o financiamento da construção, em razão do

risco de aplicação do Enunciado n° 308 da Súmula do Superior Tribunal de

Justiça,11 certamente os bancos passarão a exigir a constituição de patrimônio

de afetação como requisito para concessão de financiamento para construção

nas incorporações imobiliárias.

11 Enunciado n° 308 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.”

De outra parte, é de se admitir que, em certas circunstâncias, a

jurisprudência possa suprir a distorção, mediante aplicação dos princípios da

boa-fé objetiva e da função social do contrato e considerando o interesse

público inerente à proteção da economia popular.

Entretanto, em nome da estabilidade social, é de todo conveniente que a

correção venha por processo legislativo que torne compulsória a aplicação da

afetação a todas as incorporações, única forma de, na hipótese, assegurar a

plena realização da função social do contrato e da propriedade.

Segundo a nova legislação, o acervo relativo à incorporação (terreno e

acessões, bem como os demais bens, direitos e obrigações a ela vinculados) é

destacado do patrimônio geral do incorporador, passando a constituir um

patrimônio autônomo, destinado a satisfazer exclusivamente os direitos dos

adquirentes e dos demais credores vinculados à incorporação, ficando, assim,

cada conjunto de adquirentes imune aos efeitos de eventuais desequilíbrios

gerados por outros negócios do incorporador. A afetação cumpre função

dúplice de proteção do adquirente e de viabilização econômico-financeira da

incorporação, e nesse mister é instrumento de realização do escopo

contratual; quanto ao primeiro aspecto, põe nas mãos dos adquirentes o

controle do equilíbrio contratual, ao lhes conferir poderes para fiscalizar e

controlar toda a atividade do incorporador e, até, promover sua substituição

em caso de atraso injustificado da obra ou insolvência do incorporador; de

outra parte, a afetação propicia melhor organização da incorporação e dá

meios aos adquirentes de prosseguir a obra sem sofrer os efeitos dos

desequilíbrios do incorporador.

A afetação põe a incorporação imobiliária em sintonia com o conceito

contemporâneo do direito de propriedade, enfatizando a relativização desse

direito e dando efetividade à sua função social. A afetação não desqualifica o

direito subjetivo do proprietário-incorporador, mas define para ele uma

função social, ao vincular o acervo da incorporação à sua destinação peculiar,

que é a construção da edificação e a constituição de direito de propriedade

em nome de cada um dos adquirentes de unidades autônomas. Em busca da

realização dessa função social, a afetação atribui ao direito de propriedade do

incorporador um poder-dever, pelo qual o incorporador tem que conjugar seu

interesse de proprietário com o interesse social dos adquirentes de unidades.

Especialmente relevante como instrumento de proteção do adquirente, é a

afetação do acervo das incorporações imobiliárias, já referida, com a

específica destinação de consecução da incorporação e apropriação das

unidades por parte dos adquirentes.