proteção do conhecimento e movimento open access discussões no Âmbito da organização mundial...

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 348 Liinc em Revista, v.8, n.2, setembro, 2012, Rio de Janeiro, p. 348-364 http://www.ibict.br/liinc  Proteção do conhecimento e movimento Open Access: Discussões no âmbito da Organização Mundial da Propriedade Intelectual Alyssa Cecilia Baracat *  Camila Carneiro Dias Rigolin **  Resumo O objetivo deste artigo consiste em investigar o diálogo que se estabelece entre a legitimação do Movimento Open Access e a Agenda para o Desenvolvimento da Organização Mundial da Propriedade Intelectual. Em vista da configuração da Sociedade da Informação  baseada na econom ia do conhecimento, os direitos autorais representam assuntos estratégicos no âmbito das negociações internacionais. Entretanto, o contexto da comunicação científica apresenta uma contradição no modelo de regulação dos direitos autorais: a apropriação versus a socialização do conhecimento. O movimento Open Access pode representar um caminho para equilibrar as funções dos direitos autorais, principalmente, nos países em desenvolvimento. Palavras-chave comunicaçã o científica; direitos autorais; OMPI; Open Access. Knowledge protection and open access movement: discussions in the scope of the World Intellectual Property Organization Abstract The purpose of this paper is to investigate the dialogue established between the legitimation of the Open Access Movement and the Development Agenda of World Intellectual Property Organization. In view of the setting of the Information Society based on the knowledge economy, copyrights represent strategic issues in international negotiations. However, the context of scientific communication shows a contradiction in the model of regulation of copyrights: ownership and the socialization of knowledge. The Open Access movement may represent a way to balance the roles of copyright, especially in developing countries. Keywords scientific communication; copyright; WIPO; Open Access. *  Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade (UFSCAR). Bacharel em Relações Internacionais (UNESP-Franca). Rua Padre Almeida, 451, apt. 61, Cambuí, 13025-251 - Campinas/SP.Tel: (19) 2511-3669 / (19) 8823-5633. E-mail:  [email protected] / [email protected] **  Doutora em Política Científica e Tecnológica (UNICAMP). Instituição: PPGCTS/UFSCar. Universidade Federal de São Carlos - Centro de Educação e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade - Rodovia Washington Luis, Km 235 - Caixa Postal 676    São Carlos - 13.565-905 - São Paulo    Brasil. Tel: (16) 3351.9594.E-mail: [email protected] / [email protected] 

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O objetivo deste artigo consiste em investigar o diálogo que se estabelece entre alegitimação do Movimento Open Access e a Agenda para o Desenvolvimento da OrganizaçãoMundial da Propriedade Intelectual. Em vista da configuração da Sociedade da Informaçãobaseada na economia do conhecimento, os direitos autorais representam assuntos estratégicos noâmbito das negociações internacionais. Entretanto, o contexto da comunicação científicaapresenta uma contradição no modelo de regulação dos direitos autorais: a apropriação versus asocialização do conhecimento. O movimento Open Access pode representar um caminho

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    Liinc em Revista, v.8, n.2, setembro, 2012, Rio de Janeiro, p. 348-364 http://www.ibict.br/liinc

    Proteo do conhecimento e movimento Open Access: Discusses no mbito da Organizao Mundial da Propriedade Intelectual

    Alyssa Cecilia Baracat*

    Camila Carneiro Dias Rigolin**

    Resumo O objetivo deste artigo consiste em investigar o dilogo que se estabelece entre a

    legitimao do Movimento Open Access e a Agenda para o Desenvolvimento da Organizao

    Mundial da Propriedade Intelectual. Em vista da configurao da Sociedade da Informao

    baseada na economia do conhecimento, os direitos autorais representam assuntos estratgicos no

    mbito das negociaes internacionais. Entretanto, o contexto da comunicao cientfica

    apresenta uma contradio no modelo de regulao dos direitos autorais: a apropriao versus a

    socializao do conhecimento. O movimento Open Access pode representar um caminho para

    equilibrar as funes dos direitos autorais, principalmente, nos pases em desenvolvimento.

    Palavras-chave comunicao cientfica; direitos autorais; OMPI; Open Access.

    Knowledge protection and open access movement: discussions in the scope of the World Intellectual Property Organization

    Abstract The purpose of this paper is to investigate the dialogue established between the

    legitimation of the Open Access Movement and the Development Agenda of World Intellectual

    Property Organization. In view of the setting of the Information Society based on the knowledge

    economy, copyrights represent strategic issues in international negotiations. However, the

    context of scientific communication shows a contradiction in the model of regulation of

    copyrights: ownership and the socialization of knowledge. The Open Access movement may

    represent a way to balance the roles of copyright, especially in developing countries.

    Keywords scientific communication; copyright; WIPO; Open Access.

    * Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Cincia, Tecnologia e Sociedade (UFSCAR). Bacharel em Relaes

    Internacionais (UNESP-Franca). Rua Padre Almeida, 451, apt. 61, Cambu, 13025-251 - Campinas/SP.Tel: (19)

    2511-3669 / (19) 8823-5633. E-mail: [email protected] / [email protected] **

    Doutora em Poltica Cientfica e Tecnolgica (UNICAMP). Instituio: PPGCTS/UFSCar. Universidade Federal

    de So Carlos - Centro de Educao e Cincias Humanas Programa de Ps-Graduao em Cincia, Tecnologia e

    Sociedade - Rodovia Washington Luis, Km 235 - Caixa Postal 676 So Carlos - 13.565-905 - So Paulo Brasil. Tel: (16) 3351.9594.E-mail: [email protected] / [email protected]

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    Introduo1

    O presente trabalho tem o objetivo de analisar os conflitos referentes proteo e ao acesso ao

    conhecimento no contexto da produo e comunicao cientficas e seus reflexos nas atuais

    discusses sobre o movimento Open Access no mbito da Organizao Mundial da Propriedade

    Intelectual (OMPI). Neste sentido, apresenta-se uma reviso de literatura guiada pelas seguintes

    questes: qual o dilogo que se estabelece entre as prticas, os problemas e as necessidades do

    campo cientfico e a OMPI? Este dilogo representa um caminho para a legitimao do

    movimento Open Access?

    Contemporaneamente, os direitos de propriedade intelectual so considerados parte dos amplos

    direitos de propriedade, que podem ser definidos como um poder legalmente aplicvel capaz de

    excluir outros do uso de certos recursos, o que no obriga o detentor dos direitos a firmar

    contratos ou despender esforos para inibir potenciais usurios (LANDES; POSNER, 2003).

    Constituem uma categoria de propriedade de bens intangveis, que podem ser reivindicados por

    indivduos, empresas ou outras entidades. A caracterstica mais relevante deste tipo de

    propriedade relaciona-se ao fato de que tais bens intangveis so peas de informao ou corpos

    de conhecimento que podem estar consubstanciados em objetos tangveis. Em sntese, os direitos

    de propriedade intelectual podem ser entendidos como os direitos de explorao da informao e

    referem-se a um conjunto de instrumentos legais que fornecem proteo para as criaes do

    engenho humano cuja caracterstica principal apresentar a natureza de um bem incorpreo

    (BARBOSA, 2003).

    A propriedade intelectual , portanto, uma modalidade especfica de propriedade privada,

    gestada no contexto do desenvolvimento econmico-social em que existe o domnio do

    conhecimento. Segundo Del Nero (1998, p. 37):

    Propriedade intelectual refere-se a idias, construto, que so, essencialmente, criaes intelectualmente construdas a partir de formas de pensamento que se originam em um contexto

    lgico, ou socialmente aplicvel ao conhecimento tcnico-cientfico, desencadeando ou

    resultando em inovao. Trata-se de um processo intelectual. A partir do esprito especulativo e

    criativo, desafiado geralmente por necessidades ou demandas sociais, econmicas etc., as idias

    desenvolvem-se em projetos, podendo, geralmente, dar origem a invenes.

    Na comunidade cientfica, a discusso relativa regulao do acesso produo cientfica e os

    limites de sua proteo pelo dispositivo da propriedade intelectual evidenciam uma controvrsia

    debatida h tempos no campo dos Estudos Sociais da Cincia e da Tecnologia: o conflito entre

    apropriao e socializao do conhecimento. Esta discusso remete ao debate da reconfigurao

    do ethos cientfico no contexto das transformaes referentes aos modos de produo e

    circulao do conhecimento cientfico.

    Para Robert Merton, autor clssico da Sociologia da Cincia, um dos imperativos das prticas

    cientficas o comunalismo ou comunismo que visa tornar pblicas as descobertas e avanos cientficos: o comunismo do ethos cientfico incompatvel com a definio da tecnologia como propriedade privada numa economia capitalista (MERTON, 1979, p. 48-49). Desta forma, pode-se observar um grande conflito estabelecido na prtica entre a forma como a

    1 Agradeo Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) pelo fomento pesquisa, por meio

    da concesso de bolsa de mestrado

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    produo do conhecimento protegida, principalmente para fins econmicos, e a necessidade

    social e cultural do acesso a este conhecimento.

    Merton aponta este conflito de dimenso tica e pessoal existente entre o pblico (necessidade de

    publicar e informar) e o privado (propriedade intelectual exclusivista). Ele descreve o conflito no

    interior do ethos da cincia caracterizado por normas institucionalizadas que supostamente

    conduzem as prticas cientficas: O ethos da cincia esse complexo de valores e normas efetivamente tonalizado, que se considera como constituindo uma obrigao moral para o

    cientista. (MERTON, 1979, p.39)

    No entanto, os conflitos existentes ultrapassam a dimenso pessoal e tica quando se observa o

    campo cientfico como um todo, incluindo no apenas os cientistas e as instituies que os

    abrigam, como tambm a indstria da publicao que se consolida nos princpios ticos e nos

    valores do ethos da cincia. Estas contradies de mbito social, econmico e cultural so pontos

    centrais nas discusses sobre propriedade intelectual, pois a lei de proteo da propriedade

    intelectual que regula a produo, a circulao e o acesso ao conhecimento.

    A propriedade intelectual refere-se forma de proteo das criaes do intelecto humano e

    abrange desde invenes industriais at obras literrias e artsticas (OMPI). Embora a acepo

    tcnica do conceito de propriedade intelectual apresentada pela Organizao Mundial da

    Propriedade Intelectual (OMPI) esteja bem delimitada, a propriedade intelectual vem sofrendo

    crise de significado no mbito da sociedade da informao, que vem exigindo reformas

    profundas neste sistema de proteo. Esta mesma organizao est sendo estimulada a encarar

    questes antigas ainda no resolvidas como as questes colocadas por Merton e novos desafios referentes proteo do conhecimento no contexto das novas tecnologias da informao

    e comunicao (TIC).

    Estas novas tecnologias compreendem um conjunto de aplicaes, cujo ncleo central consiste

    no desenvolvimento de uma capacidade cada vez maior de tratamento da informao - incluindo

    seu processamento, manipulao, armazenamento e transmisso bem como de sua aplicao direta no processo produtivo. Ainda que tenha surgido motivada por um conjunto de

    transformaes na base tcnico-cientfica, esta realidade investe-se de um significado bem mais

    abrangente e acompanhada por inovaes organizacionais, sociais e legais. Esta transformao

    j foi exaustivamente descrita na literatura de diversas correntes e filiaes tericas, destacando-

    se, entre as mais difundidas, as abordagens de inspirao neo-schumpeteriana de Freeman

    (2000), a respeito da nova economia; os conceitos de capitalismo cognitivo, sociedade do conhecimento ou era da informao (CASTELLS, 1996); a concepo de economia do conhecimento (JOHNSON; LUNDVALL, 2000).

    As TICs impulsionam os debates acerca da proteo do conhecimento e fomentam as discusses

    sociais heterogneos sobre propriedade intelectual a partir das perspectivas e interesses de atores

    sociais heterogneos:

    [...] a intensificao dos fluxos informacionais, causa e consequncia de um

    novo paradigma tecnolgico, alterou profundamente no somente as relaes

    entre os agentes sociais, mas de uma forma mais ampla, as prprias relaes

    econmicas e as especificidades dos mercados consumidores (ALMEIDA;

    GANZERT, 2008, p.44).

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    Portanto, possvel observar as inmeras questes que se relacionam de forma direta com o

    tema propriedade intelectual: questes de direito pblico e privado, econmicas, comerciais e

    socioculturais. Desta forma, necessrio que a propriedade intelectual seja discutida dentro de

    uma perspectiva interdisciplinar.

    A proteo do conhecimento tem uma longa trajetria histrica que revela importantes dados,

    valores e caractersticas das sociedades de cada poca. Isto ocorre porque o conhecimento, bem

    como sua organizao e o valor a ele atribudo so reflexo de um longo processo aberto e no conclusivo que passa pelas antigas sociedades e chega at a atual sociedade, cuja convivncia entre os valores modernos e as desconstrues de valores ps-modernas pode ser observada de

    forma clara nas discusses sobre proteo e acesso ao conhecimento.

    Analisar os atuais debates sobre proteo do conhecimento compreender a atual sociedade que

    definida por diferentes autores de distintos campos do conhecimento pela informao. E como ela pode ser definida pela informao? Segundo Burke (2003, p.136) uma das razes para se afirmar que vivemos em uma sociedade da informao que a produo e venda de

    informaes contribui de maneira considervel para as economias mais desenvolvidas. Nesta citao de Burke fica clara a aproximao existente entre conhecimento e desenvolvimento

    econmico. O desenvolvimento econmico, por conseguinte, tambm tem influncia na

    configurao da poltica internacional. Este fato chama ateno para os Estados que buscam este

    desenvolvimento e a proteo da propriedade intelectual um fator essencial nesta busca:

    A interface Propriedade Intelectual-Comrcio-Desenvolvimento surge como tema

    interdisciplinar e como proposta de reflexo para a construo de novos modelos de regulao

    normativa que reconciliem tanto o desenvolvimento material quanto o humano, sobretudo no

    mundo em desenvolvimento (RODRIGUES JR; POLIDO, 2007, p.1).

    Segundo Castells (1999) podemos definir a atual sociedade em termos de conhecimento, pois as

    novas tecnologias de informao e comunicao so as razes das novas fontes de produtividade,

    de novas formas de organizao e da formao da economia global.

    Portanto, economia, tecnologia, globalizao e conhecimento so os elementos fundamentais que

    compe os debates acerca do atual sistema de proteo da propriedade intelectual que se torna

    objeto central dos interesses de diferentes atores polticos e sociais.

    O pensamento liberal, a mercantilizao do conhecimento, e a criao dos direitos autorais

    Os direitos autorais representam um conjunto de valores do pensamento moderno. Eles fazem

    parte do universo da propriedade intelectual2 e tem o objetivo de regular a proteo da produo

    artstica e literria. Observa-se que, como obras literrias, tambm podem ser consideradas as

    publicaes tcnicas e cientficas.

    2A propriedade intelectual subdividida em duas categorias: a propriedade artstica e literria protegida pelos

    direitos autorais e conexos e a propriedade industrial protegida pelas leis de patentes, desenhos industriais, marcas e

    indicaes geogrficas.

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    Estudar a criao dos direitos autorais compreender como ocorreu o processo de relao entre a

    comercializao da informao e a tecnologia. A partir do final da Idade Mdia possvel

    verificar a nfase crescente do conhecimento para o ganho e a necessidade de proteger os

    segredos de ofcio (BURKE, 2003).

    No entanto, na Idade Mdia existia uma viso predominante de proteo, diferente da concepo

    moderna. Burke (2003) define a viso medieval como coletivista, significando que um texto era visto como propriedade comum, porque cada novo produto derivava de uma tradio comum

    de um determinado grupo.

    Com o desenvolvimento do pensamento liberal, a formao dos Estados nacionais e o incio do

    mercantilismo impulsionado pelas novas invenes, descobertas cientficas e aperfeioamentos

    tcnicos, o sentido individualista da proteo das criaes da mente humana ganhou fora. Une-

    se ao sentido individualista a acesso da propriedade como direito supremo dos homens:

    Embora a Terra e todas as criaturas inferiores sejam comum a todos os homens, cada homem tem

    uma propriedade em sua prpria pessoa. A esta ningum tem direito algum alm dele mesmo. O

    trabalho de seu corpo e a obra de suas mos, pode-se dizer, so propriamente dele (LOCKE,

    1998, p.407).

    A primeira lei consolidada a respeito da proteo de obras intelectuais, em especial das obras

    literrias, foi em 1710, na Inglaterra. O Copyright Act foi criado por ato da Rainha Ana com o

    objetivo de incentivar a produo cultural da poca. Este ato previa a remunerao de autores

    que eram explorados pelos editores detentores dos meios tcnicos de reproduo e de privilgios

    de publicao das obras.

    A inveno da imprensa tipogrfica fez com que os editores adquirissem maior domnio sobre a

    produo de conhecimento, j que possuam o meio de reproduo e divulgao das obras. A

    esses editores eram concedidos privilgios reais que consistiam em uma espcie de monoplio de

    utilizao econmica da reproduo de uma determinada obra literria, conferida por um

    determinado nmero de anos (BITTAR, 2003).

    Na Frana tambm comearam a surgir direitos de remunerao de autores. No entanto, houve

    uma expanso na concepo destes direitos, influenciada diretamente pelo pensamento liberal e

    pelos valores promulgados pelos Direitos dos Homens:

    A Revoluo Francesa, de 1789, com sua exacerbao dos direitos individuais, adicionou ao

    conceito ingls a primazia do autor sobre a obra. O droit dauteur enfoca tambm os aspectos morais, o direito que o autor tem ao ineditismo, paternidade e integridade de sua obra, que

    no pode ser modificada sem o seu expresso consentimento (GANDELMAN, H., 2001, p.23).

    Consolidou-se, portanto, a valorizao da personalidade do autor j que a obra era considerada

    produto do esprito humano e da criatividade que emana do prprio autor, e ligava-se

    naturalmente ao seu criador (STAUT, 2006). Esta mesma concepo individualista e exclusivista

    tornou-se base para a formao do sistema tradicional de proteo dos direitos autorais em

    mbito internacional. Da porque os direitos autorais refletem noes de direito natural

    (HUGENHOLTZ, 2007)

    A partir do momento em que a produo criativa foi considerada um objeto de propriedade, as

    discusses a respeito da propriedade intelectual ficaram concentradas, exclusivamente, em

    normas e regras para regular a ampla circulao do conhecimento, possibilitada pelas novas

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    tecnologias da poca, e assim, acabou por se restringir a uma discusso sobre mercado (GANDELMAN, M., 2004).

    A histria da criao dos direitos autorais descrita, portanto, tendo incio na evoluo da

    propriedade literria na Europa, partindo do direito dos editores para os direitos dos autores

    (HUGENHOLTZ, 2007). Seu plano de fundo compreende a concepo de mercantilizao da

    informao possibilitada pelas invenes e tcnicas de transporte e navegao e, assim, passa

    tambm a ser assunto de extrema importncia para a poltica internacional, configurando um

    sistema internacional de proteo dos direitos autorais, como veremos a seguir.

    O sistema internacional de proteo dos direitos autorais

    O sistema internacional de proteo dos direitos autorais pode ser analisado a partir de dois

    modelos: o histrico ou tradicional, que teve incio no final do sculo XIX com a criao da

    Conveno de Berna e o atual, que teve incio com a criao da OMPI em 1967 (BASSO, 2000).

    A compreenso do modelo tradicional de proteo dos direitos autorais necessria para o

    entendimento das condies sociais que influenciaram a construo do modelo atual, bem como

    ilustra alguns problemas importantes relativos ao conflito entre as posies objetivas e subjetivas

    de proteo dos direitos autorais.

    O modelo histrico de proteo dos direitos autorais

    Foi a partir da preocupao com a circulao internacional de obras artsticas e literrias que o

    sistema regulatrio internacional da propriedade intelectual foi concebido. Durante o sculo XIX

    os Estados voltavam-se para a internacionalizao dos direitos num esforo coletivo:

    Em 1865, um primeiro congresso reunindo especialistas em direito comercial, estuda, em

    Sheffield, as possibilidades de unificao de certas partes do direito martimo. Em 1877 a

    International Law Association concretiza uma primeira unificao clebre em matria de direito

    martimo, pelas regras de York e Anvers sobre as avarias comuns. A esta unificao puramente

    privada sucederam, sem tardar, as convenes oficiais de unificao: de Berna, para o direito

    autoral (1886) e para o transporte terrestre de mercadorias (1890); de Bruxelas, ainda em matria

    de direito martimo, no que diz respeito abordagem (ANCEL, 1980, p.90).

    A Conveno de Berna para a Proteo da Propriedade Artstica e Literria, criada em 1986,

    representa um importante marco tanto para o direito internacional, quanto para a formao da

    comunidade internacional. Alm de ser um dos primeiros documentos oficiais de unificao dos

    direitos dos Estados, ela tambm proporcionou que a ordem jurdica internacional se voltasse

    para o direito dos indivduos, e no apenas dos interesses de ordem poltica ou militar (BASSO,

    2000).

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    Entretanto, a Conveno de Berna foi baseada em apenas um dos sistemas legislativos sobre

    direitos autorais existentes na poca. Este era o sistema francs de carter subjetivo, dirigido

    proteo do autor tanto em termos de direitos patrimoniais quanto de direitos morais e que previa a independncia de registro da obra ou de outra formalidade (BITTAR, 2003). Ou seja,

    um importante princpio deste sistema o da proteo automtica que confere proteo ao

    criador da obra no momento em que ela criada. Este princpio, assim como outros princpios do

    sistema legislativo europeu, foi repassado para a Conveno de Berna de maneira que todos os

    pases que assinassem a Conveno deveriam adequar suas respectivas legislaes sobre direitos

    autorais de acordo com as normas bsicas estipuladas pela Conveno. importante notar que o

    Brasil aderiu ao sistema continental e adotou a Conveno de Berna.

    O outro sistema predominante era o do copyright. Este sistema comercial foi desenvolvido na

    Inglaterra e nos Estados Unidos (pases do Common Law) e relaciona-se com a proteo da

    cultura e do conhecimento do pas de forma que: se volta para a obra em si, em posio objetiva. O copyright concedido ao titular, mas para efeito de expanso da cultura e da cincia,

    exigindo-se formalidades para o gozo da exclusividade (BITTAR, 2003, p.9). Alm dessa diferena o sistema do copyright tambm previa o fair use (uso justo) que colocava algumas

    limitaes aos direitos dos reprodutores. Por este motivo, por muitos anos os Estados Unidos no

    aderiram a Conveno de Berna:

    No sculo XVIII os Estados Unidos, ao contrrio da Frana, optaram por no aceitar a filosofia

    do autor absoluto, isto , do autor que exerce a plenitude de seus direitos morais que no se separa da obra, j que ela extenso de sua personalidade , porque acreditavam na necessidade da troca e do intercmbio de ideias para a promoo de uma sociedade melhor (GANDELMAN,

    M., 2004, p.76).

    Fica clara a inteno que o sistema do copyright abriga. Tal inteno no contrria ao sistema

    consolidado pela Conveno de Berna. Ambos tm a finalidade de estimular os processos

    criativos. Entretanto a evidente contradio entre as posies subjetivas (sistema continental) e

    objetivas (copyright) implicam uma diferena prtica, principalmente no trato que cada pas

    confere comercializao da propriedade intelectual e s limitaes. Neste caso, a posio

    objetiva agrega vantagens e privilegia a proteo da propriedade intelectual em termos de

    comrcio. Estes termos fundamentaro a transio do modelo tradicional para o modelo atual de

    proteo da propriedade intelectual.

    A Organizao Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e o modelo atual de proteo da propriedade intelectual

    O modelo atual de proteo da propriedade artstica e literria tem seu ponto de partida na

    reviso de Estocolmo de 1967 promovida pelas Unies de Berna e de Paris. As Unies de Paris e

    de Berna foram entidades internacionais criadas no final do sculo XIX com a finalidade de

    administrar as Convenes de Berna e de Paris para a Propriedade Industrial (1883). A elas

    competia realizar revises peridicas das Convenes, a fim de melhor adapt-las s novas

    realidades. Alm da necessidade de adaptao s mudanas tecnolgicas, a principal finalidade

    da reviso de Estocolmo era a de atender s necessidades dos pases em desenvolvimento e dos

    pases africanos e asiticos que haviam acabado de conquistar sua independncia aps a Segunda

    Guerra Mundial (GANDELMAN, M., 2004).

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    A criao da OMPI em 1967 nas reunies de Estocolmo insere a propriedade intelectual na nova

    ordem poltica internacional introduzida a partir do fim da Segunda Guerra Mundial com a

    criao da Organizao das Naes Unidas (ONU).

    Entretanto, o modelo atual no constitudo apenas pela OMPI. A Organizao Mundial do

    Comrcio (OMC), criada em 1994, tambm administra questes de propriedade intelectual

    atravs do TRIPS (Acordo sobre Aspectos Comerciais Relacionados Propriedade Intelectual).

    Este acordo estabeleceu definitivamente a relao entre propriedade intelectual e comrcio

    internacional (BASSO, 2000). Mas o que levou consolidao desse quadro regulatrio

    internacional to preocupado com os aspectos comerciais?

    Podemos enumerar quatro importantes fatores de influncia para esta mudana: a) a

    intensificao do processo de globalizao; b) a evoluo das tecnologias aps as duas guerras

    mundiais; c) a interdependncia entre os pases e d) a adeso dos Estados Unidos Conveno

    de Berna em 1989.

    O crescimento da indstria cultural norte-americana possibilitada pelo processo de globalizao

    e pelas tecnologias facilitadoras do transporte e da comunicao elevou a preocupao dos

    Estados Unidos em relao proteo de sua produo cultural e cientfica. Os Estados Unidos

    estavam dispostos a liderar a mudana no sistema internacional de proteo da propriedade

    intelectual a fim de atender aos seus interesses, interesses esses alinhados aos das grandes

    corporaes proprietrias dos bens intelectuais (GANDELMAN, M., 2004)

    Nota-se que as negociaes para uma a criao de uma organizao sobre comrcio internacional

    iniciou-se com o GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comrcio) que foi criado em 1947. Este

    processo de negociaes lanou as bases para a criao da OMC no incio dos anos 90 voltando

    o regime de proteo da propriedade intelectual para o comrcio internacional. Podemos

    observar, novamente, que a discusso sobre a proteo dos direitos autorais fica restrita ao

    mercado, principalmente no mbito da poltica econmica internacional.

    As negociaes no mbito do comrcio internacional tambm colocaram de lado uma das

    preocupaes iniciais durante a transio entre modelos: as necessidades dos pases recm-

    independentes e em desenvolvimento. O regime internacional dos direitos autorais aderiu viso

    de crescimento econmico defendida pelos pases desenvolvidos. Depois de tentativas frustradas

    de incluir as perspectivas desenvolvimentistas no mbito da OMC, os pases em

    desenvolvimento liderados pelo Brasil retomaram em 2004 essas discusses, agora na OMPI, e

    propuseram a Agenda para o Desenvolvimento, que ser analisada mais adiante.

    A desconstruo do significado dos direitos autorais e o movimento open access

    Nas sees anteriores, descreveu-se de forma breve como ocorreu a construo dos direitos

    autorais. Foram identificados elementos fundamentais que condicionaram este processo tais

    como o pensamento liberal, o mercantilismo, o aprimoramento das tcnicas de transporte e

    navegao e a inveno da imprensa tipogrfica. Todos esses elementos, de certa forma, ainda

    esto ligados ao conceito de Direitos Autorais, uma vez que esses direitos esto relacionados,

    atualmente, com conceitos de capitalismo cognitivo e tecnologias de informao e comunicao.

    No entanto, os direitos autorais passam por um processo de desconstruo.

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    A crise de significado atribuda aos Direitos Autorais est diretamente associada consolidao

    da Sociedade da Informao, pois a partir dela emerge a economia do conhecimento:

    Os tericos da sociedade da informao sustentam que ela gera mudanas no nvel mais

    fundamental da sociedade, a ponto de dar fundamento a um novo modo de produo. Muda a

    prpria fonte de criao de riqueza; muda os fatores determinantes da produo. O trabalho e o

    capital, que constituem o centro da sociedade industrial, passariam a ser substitudos pela

    informao e pelo conhecimento (OLIVO, 2004, p.71).

    No incio das discusses sobre a crise dos Direitos Autorais, dizia-se que eles deixariam de

    existir. No entanto, o que presenciamos a contradio entre os interesses, primordialmente

    econmicos, ligados propriedade intelectual no contexto do novo modo de produo baseado

    no capital cognitivo e as necessidades de mudanas nas leis de Direitos Autorais para atender sua

    funo social. Observamos que as novas tecnologias da informao e comunicao podem

    representar ferramentas de livre acesso ao conhecimento, ao mesmo passo em que aumentam a

    competio no contexto do capitalismo cognitivo que podem levar ao enrijecimento dos aspectos

    exclusivistas e monopolistas das leis de Direitos Autorais.

    Essa contradio do campo normativo reflexo da mudana que as tecnologias da informao e

    comunicao estabeleceram nas prticas sociais, principalmente no que se refere circulao e

    reproduo de obras da cultura e do conhecimento. As tecnologias da informao e comunicao

    possibilitam que a sociedade perceba a cultura e o conhecimento de uma nova forma:

    Ao longo do tempo em que eu fui tateando o ciberespao, um grande dilema, sem soluo se

    manteve na raiz de quase todos os abusos jurdicos, ticos, governamentais e sociais encontrados

    no mundo virtual. Refiro-me ao problema dos bens digitalizados. O enigma este: Se a nossa

    propriedade pode ser infinitamente reproduzida e instantaneamente distribuda em todo o

    planeta, sem custo, sem nosso conhecimento, sem que mesmo deixando a nossa posse, como

    podemos proteg-lo? (BARLOW, 1993, traduo nossa).

    Portanto, estas discusses revelam no apenas uma crise no significado dos Direitos Autorais,

    mas tambm um movimento de contestao e desconstruo social deste conceito jurdico que

    precisa ser adaptado aos novos moldes econmicos, tecnolgicos, sociais e culturais. Desta

    forma, as relaes jurdicas passam a ser percebidas a partir de outros aspectos normativos das

    relaes entre a sociedade e produtores das obras intelectuais (STAUT, 2006).

    No campo da comunicao cientfica essa nova percepo est em plena evidncia, revelando

    contradies nos campos cientficos. Bourdieu descreve o campo cientfico como buscando

    autonomia, ou seja, um campo que procura estabelecer a sua prpria ordem em um longo e lento

    processo de autonomizao (BOURDIEU, 1996, p.245), inclusive econmica:

    [...] o campo, isto , mais precisamente a economia antieconmica e a

    concorrncia regulada da qual ele o lugar, produz essa forma particular de

    illusio que o interesse cientfico, ou seja, um interesse que com elao s

    formas de interesse concorrentes na existncia cotidiana (em particular no

    campo econmico) aparece como desinteressada, gratuita. Mas,

    simultaneamente, o interesse puro, desinteressado um interesse pelo desinteresse, forma de interesse que convm a todas as economias de bens

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    simblicos, economias antieconmicas, nas quais, de alguma maneira, o

    desinteresse que compensa (BOURDIEU, 2004, p.31).

    Para Bourdieu (1989), o sistema de produo dos bens simblicos constitui realidades com dupla

    face, uma da mercadoria e outra da significao, cujo valor propriamente cultural e o valor

    mercantil subsistem relativamente independentes. Os conceitos de Bourdieu referem-se aos de

    Merton no sentido de caracterizar o tipo de interesse existente no campo cientfico. Isso significa

    dizer que os autores, no campo cientfico, so recompensados ao tornarem pblicas suas

    pesquisas, e por isso o fazem, no porque so desinteressados. Existe, portanto, uma hierarquia

    no campo cientfico, analisada por vrios autores como Merton, Kuhn, Bourdieu, Latour e

    Ziman, na qual se pode observar uma elite de poucos membros que detm a autoridade, ancorada em prestgio individual, conquistada por mrito reconhecido pelos demais, geralmente

    ao longo de uma carreira (MUELLER, 2006, p.30)

    necessrio, entretanto, incorporar outros atores anlise do campo cientfico, atores estes que

    representam os meios pelos quais os pesquisadores so recompensados e conquistam prestgio.

    Dessa forma, possvel verificar que as regras da economia e da comercializao esto

    infiltradas no ethos cientfico. E assim nasce a indstria das publicaes cientficas, que

    sobrevive da comercializao do conhecimento indicando tambm a solidificao do capitalismo

    cognitivo que configura a atual Sociedade da Informao. Essa indstria consolidou-se como

    modelo de comunicao e estabeleceu mudanas dentro das prticas cientficas:

    Dentro dessa concepo de mudana, a "difuso do conhecimento", um valor tradicional

    arraigado ao comportamento acadmico, passa a apresentar uma relao de compatibilidade com

    o conceito da "capitalizao do conhecimento". Dessa forma, a norma da cincia que

    tradicionalmente condena a motivao do pesquisador pelo resultado financeiro - a norma do

    desinteresse proposta por Merton (1970) est sendo modificada de forma a permitir o

    desenvolvimento de um tipo de cincia empreendedora. Essa transio estaria ocorrendo a partir

    de oportunidades cognitivas, de rearranjos institucionais e de uma mudana normativa que, por

    sua vez, tem efeitos cognitivos sobre a agenda de pesquisa futura (OLIVEIRA; VELHO, 2009).

    Na histria do conhecimento, tambm podemos verificar esse conflito aparentemente novo.

    Segundo Burke (2003, p.137) contradio semelhante ao que presenciamos hoje no campo

    cientfico existiu na chamada Revoluo Cientfica:

    No que diz respeito propriedade intelectual, o movimento hoje conhecido como revoluo cientfica revela no s ambiguidade, mas ambivalncia. De um lado, o ideal de tornar pblico o conhecimento para o bem geral da humanidade era levado muito a srio. De outro,

    impossvel ignorar a realidade das speras disputas sobre prioridades em descobertas que iam do

    telescpio ao clculo.

    A prpria lei dos droits dauteur, na Frana, foi criada em ambiente de contradio. Segundo Marisa Gandelman (2004) existiam duas posies distintas em relao proteo dos direitos

    dos autores: uma favorecia o direito propriedade exclusiva e a outra estava preocupada com o

    acesso produo do conhecimento pela sociedade. A primeira sobrepujou a segunda.

    No entanto, a preocupao com o acesso ao publico ainda est presente. As novas tecnologias da

    informao e comunicao do incio dos anos 1990 possibilitaram a criao de novas formas de

    divulgao cientfica como o caso das publicaes eletrnicas e assim como os utopistas da

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    Renascena, alguns sonharam com um novo sistema de comunicao, no qual todo acesso ao

    conhecimento cientfico se tornaria universal e sem barreiras (MUELLER, 2006, p.27). O movimento Open Access fruto dessa extensa discusso e desse projeto de socializao do

    conhecimento que j viu alguns sculos.

    Esse movimento teve incio nas universidades norte-americanas e nos centros de pesquisa a

    partir do momento em que suas bibliotecas encontravam dificuldade em manter os peridicos

    devido aos altos custos.

    A fora desse movimento nos Estados Unidos devido ao fato de haver um forte senso de

    proteo das indstrias detentoras dos bens intelectuais como foi possvel verificar na anlise sobre a transio entre modelos de proteo da propriedade intelectual. Alm disso, a adeso dos

    Estados Unidos Conveno de Berna no final dos anos 1980 reacendeu as discusses sobre o

    copyright, inclusive sobre as noes do fair use adotado neste sistema de proteo.

    importante observar que os direitos autorais no campo cientfico tm a importante funo de

    preservar a integridade dos textos e de proteger os autores contra prticas ilcitas, como o plgio,

    que prejudicam a prpria produo do conhecimento e o sistema de recompensas. Quanto a estas

    questes no existem conflitos: Note-se, ainda, que, via de regra, o conflito no envolve os direitos do autor versus os direitos sociais de toda uma coletividade; mas, sim, o conflito entre os

    direitos de explorao comercial (por vezes abusiva) e os direitos sociais da coletividade (PIOVESAN, 2007, p.36). No entanto, as editoras comerciais utilizam esse discurso de proteo

    para manter seu controle sobre os bens intelectuais to importantes no contexto do capitalismo

    cognitivo:

    [...] tais editoras so empresas poderosas, no s financeiramente, mas tambm

    politicamente, pois na medida em que so donas dos peridicos e detentoras dos

    copyrights dos trabalhos que esses peridicos publicam, controlam de fato o

    sistema de comunicao cientfica. Alm disso, as editoras mais conceituadas

    derivam poder justamente desse prestgio que lhes atribudo pela comunidade

    (MUELLER, 2006, p.34).

    Apesar das vantagens apresentadas pelo movimento Open Access, e da possibilidade que ele

    confere para a prtica das funes sociais dos direitos autorais, existem problemas de

    legitimao do movimento que advm da conceituao e do prestgio atribudos s editoras

    tradicionais. Os autores cientficos foram os primeiros a se adaptarem internet

    (HUGENHOLTZ, 2007). Entretanto, ainda existe um desequilbrio entre acesso e proteo:

    Certamente a Internet rapidamente se tornou o meio dominante de comunicao entre os

    cientistas. Artigos e minutas esto sendo distribudos por meio de listas de discusses, postadas em sites universitrios ou privados, ou ainda por meio de repositrios cientficos de

    livre acesso. [...] Em contrapartida, verses referncias so publicadas formalmente por editores, muitos meses depois, para serem arquivadas em bibliotecas e em outros repositrios.

    (HUGENHOLTZ, 2007, p.242).

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    A alocao dessas problemticas sobre acesso ao conhecimento nas discusses sobre as

    necessidades dos pases em desenvolvimento pode representar um caminho para a legitimao

    do movimento do acesso livre:

    Para pases em desenvolvimento, como o Brasil, a questo do acesso ao que publicado nas

    melhores revistas, mesmo quando o autor brasileiro e membro de uma universidade local,

    especialmente difcil e preservada. Aqui, como na maioria daqueles pases, o Estado que

    financia a educao dos novos cientistas, desde seu incio at a obteno dos graus mais altos,

    seja em instituio nacional ou estrangeira. [...] Ao publicar em uma revista estrangeira, hbito o autor ceder s editoras o direito autoral sobre o artigo. Uma vez publicada, entra em

    cena de novo o Estado, financiando as bibliotecas para sua compra. (MUELLER, 2006, p.33).

    O movimento Open Access e a Agenda para o Desenvolvimento da OMPI

    A Agenda para o Desenvolvimento foi uma proposta encaminhada pelo Brasil e pela Argentina

    OMPI aps as tentativas fracassadas de discutir uma agenda para o desenvolvimento na Rodada

    Doha de negociao da OMC. A proposta central da Agenda consiste na necessidade de

    considerar a proteo da propriedade intelectual dentro de um equilbrio de custos e benefcios para todos os pases (MENESCAL, 2007, p.476).

    Vale a pena destacar a oposio dos Estados Unidos proposta central da Agenda, uma vez que

    defendiam outro modelo de desenvolvimento econmico. Este modelo apresenta uma concepo

    de linearidade fundada na ideia de que todos os Estados devem passar pelas mesmas etapas para

    alcanar o desenvolvimento voltado estritamente para o desenvolvimento econmico (RIBEIRO,

    2011).

    As propostas da Agenda sobre a matria de direitos autorais esto voltadas, em grande parte,

    para questes de educao, domnio pblico e acesso ao conhecimento. Focaremos a ltima

    questo.

    Dentre as 45 recomendaes adotadas pela Agenda para o Desenvolvimento3 esto previstas as

    discusses sobre transferncia de tecnologia, tecnologias de informao e comunicao e acesso

    ao conhecimento.

    Na nona sesso do Comit para o Desenvolvimento e a Propriedade Intelectual, realizada em

    maio de 2012, um dos temas da agenda foi o uso dos direitos autorais para promover acesso

    informao e ao contedo criativo. Na reunio, o comit promoveu uma discusso sobre o

    Movimento Open Access e promoo de acesso educao e pesquisa, inclusive realizando

    estudos de caso das bibliotecas eletrnicas cientficas como a SciELO no Brasil e em pases da

    frica.

    No documento originado a partir da reunio, a OMPI, no contexto da Agenda para o

    Desenvolvimento, tambm se props a examinar o movimento Open Access como um modelo

    de administrao dos direitos autorais para recursos em educao e pesquisa, considerando

    3 The 45 Adopted Recommendations under the WIPO Development Agenda. Disponvel em:

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    quatro parmetros: a) as questes de propriedade intelectual envolvidas; b) avaliao da

    sustentabilidade econmica e do custo/benefcio; c) os incentivos para as partes interessadas e d) efetividade.

    No entanto, algumas ressalvas foram colocadas. O Comit para o Desenvolvimento e a

    Propriedade Intelectual identificou a falta de consentimento sobre a matria no meio da

    comunidade cientfica, bem como a falta de uma padronizao e esclarecimentos quanto aos

    direitos autorais. Outra questo a necessidade de mais estudos capazes de quantificar a relao

    de custo/benefcio das publicaes no modelo Open Access, e assim, comprovar a

    sustentabilidade desse modelo.

    Contudo, o Movimento Open Access considerado um modelo promissor de comunicao

    cientfica. O documento da reunio reconhece que ainda no possvel realizar afirmaes

    conclusivas sobre a eficcia desse modelo, mas que no geral, seguro dizer que, no seu curto perodo como um modelo de gesto de direitos autorais significativa no setor de educao e

    pesquisa, o Open Access tem tido um impacto importante e tem sido eficaz em aumentar a

    disponibilidade e o acesso s informaes e ao contedo na rea da educao e pesquisa (OMPI, 2012, traduo nossa).

    Consideraes finais

    A partir da anlise aqui exposta, possvel realizar algumas concluses. Primeiramente,

    compreendemos que os direitos autorais foram criados apesar dos conflitos existentes entre a

    apropriao do conhecimento e a socializao do conhecimento. Foi possvel entender que essa

    contradio foi estabelecida a partir dos interesses econmicos e comerciais relacionados

    produo do conhecimento, interesses esses acentuados no contexto do capitalismo cognitivo

    que coloca o bem intelectual no centro do novo modo de produo. A relao entre produtores

    do conhecimento e sociedade acaba sendo mediada por questes econmicas.

    Tambm pudemos compreender que ao mesmo tempo em que as novas tecnologias da

    informao e comunicao possibilitam o acesso livre ao conhecimento, elas tambm podem

    acirrar a proteo dos direitos autorais. Essas contradies levaram ao momento de

    desconstruo no significado dos Direitos Autorais gerando uma presso social para a reforma

    do seu marco legal.

    O Movimento Open Access representa um modelo que se adqua ao ethos cientfico mertoniano,

    uma vez que permite a publicao e a visibilidade dos autores cientistas. No entanto, o modelo

    aberto de comunicao cientfica ainda no se encontra em p de igualdade com as grandes publicaes. As publicaes de maior impacto detm maiores recursos financeiros. Esses

    recursos tambm advm do controle dos direitos autorais patrimoniais cedidos pelos autores

    cientistas. O desequilbrio gera um ceticismo na comunidade cientfica acerca da legitimidade

    dos peridicos de acesso aberto, que pode prejudicar o acesso ao conhecimento e a prtica de

    uma funo social dos direitos autorais. A origem da crise de legitimao possivelmente reside

    no modelo de avaliao da produo cientfica, visto que os peridicos que desfrutam do mais

    alto fator de impacto e reputao no so aqueles hospedados nas plataformas de acesso aberto,

    mas aqueles cujo acesso controlado (e cobrado) por grandes editoras internacionais.

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    Liinc em Revista, v.8, n.2, setembro, 2012, Rio de Janeiro, p. 348-364 http://www.ibict.br/liinc

    A OMPI, no contexto da Agenda para o Desenvolvimento, pode ser um caminho para a

    legitimao do Open Access. Atravs de seu Comit para o Desenvolvimento e a Propriedade

    Intelectual a organizao realiza apontamentos sobre o movimento considerando-o como um

    modelo para a administrao dos direitos autorais para recursos em educao e pesquisa. Esse j

    um passo para o reconhecimento do Movimento Open Access como modelo legtimo de

    comunicao cientfica. A partir da anlise do documento possvel observar que o Comit

    considera quase um contrassenso o no reconhecimento da importncia do Open Access,

    principalmente nos pases em desenvolvimento. O documento recomenda a implementao de

    medidas mais efetivas que permitam a adeso da comunidade cientfica ao Movimento Open

    Access nesses pases.

    O dilogo que se estabelece entre as prticas cientficas e a OMPI importante uma vez que

    possibilita a insero da perspectiva do autor cientfico nas discusses acerca do quadro

    regulatrio internacional da proteo da propriedade intelectual. No entanto, este no um

    caminho exclusivo. fundamental que haja a conscientizao por parte das universidades e

    centros de pesquisa acerca dos direitos autorais, pois cesso de direitos no um pequeno preo

    a se pagar s grandes publicaes para receber prestgio. As iniciativas dos repositrios

    institucionais pode representar um caminho para a equidade no tratamento dos direitos autorais

    dos autores da comunidade cientfica.

    Todavia, os principais argumentos das editoras comerciais contra a legitimao do Movimento

    Open Access consistem na falta de dados que comprovem a sustentabilidade do movimento, a

    vantagem financeira gerada por ele e sua legitimidade diante da comunidade cientfica. Esses

    argumentos tambm so levados para a OMPI, que, como frum de discusso ir ouvi-los e

    poder consider-los em suas futuras decises e recomendaes.

    Por isso necessrio atentar para as ressalvas. Se a comunidade cientfica, principalmente nos

    pases desenvolvidos, afirmam se beneficiar do Movimento Open Access fundamental que as

    futuras pesquisas sobre a matria contemplem temas como a padronizao do movimento para

    uma maior aderncia na comunidade cientfica. Alm disso, necessrio realizar pesquisas

    quantitativas em profundidade que comprovem a sustentabilidade do modelo para que no haja

    questionamentos por parte da indstria tradicional de publicaes.

    Artigo recebido em 02/07/2012 e aprovado em 30/08/2012.

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