projeto_doutorado
DESCRIPTION
VitorTRANSCRIPT
-
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIROINSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS SOCIAIS PROJETO DE TESE DE DOUTORADO
TTULO: ARTE, LINGUAGEM E PERCEPO: CONSIDERAES ACERCA DA ARTE CONTEMPORNEAAUTOR: VICTOR GALDINO ALVES DE SOUZA
Em seu livro A transfigurao do lugar-comum1, Arthur Danto props um
experimento mental que consistia na descrio de uma exposio imaginria com os seguintes
itens (sendo os tipos de pintura indicados entre parnteses de acordo com a classificao do
prprio filsofo):
- O quadro descrito pelo filsofo Kierkegaard como figurao de seu estado espiritual, que
consistia em um quadrado vermelho representando a fuga dos hebreus escravizados pelo Mar;
Vermelho, depois que eles j haviam atravessado o mar (pintura histrica);
- Uma obra intitulada O estado de esprito de Kierkegaard (retrato psicolgico);
- Uma representao da Praa Vermelha de Moscou intitulada Praa Vermelha (paisagem);
- Um quadro minimalista chamado Quadrado vermelho (abstrao geomtrica);
- Nirvana, uma obra baseada no entendimento do artista de que as ordens do Nirvana e do
Samsara so idnticas e de que o mundo do Samsara chamado pelos que o menosprezam de
Poeira Vermelha (arte religiosas);
- Um quadro intitulado Toalha de mesa vermelha (natureza-morta);
- Uma tela preparada por Giorgione com base de zarco, na qual seria pintada sua obra-prima
que nunca foi realizada: Sacra conversazione;
- uma superfcie pintada com zarco, mas que no uma tela.
Destes itens, apenas seis consistem em obras acabadas, sendo os dois ltimos objetos comuns
os quais no colocaramos usualmente na classe das obras de arte. Por outro lado, todos eles
so idnticos do ponto de vista fsico (se desconsiderarmos detalhes como a propriedade de
estar localizado em determinado lugar em determinado tempo). Sem os ttulos das obras
mencionadas, por exemplo, sequer saberamos qual a diferena que poderia haver entre elas.
Embora a tela de Giorgione estivesse destinada a se tornar uma pintura em futuro que
no foi realizado na linha temporal do experimento, permanece junto com a superfcie (que
1 DANTO, Arthur. A transfigurao do lugar-comum: Uma filosofia da arte. Traduo de Vera Pereira. So Paulo: Cosac Naify, 2010.2010, p. 33-7.
-
no uma tela) com um status de mera coisa na exposio descrita, mesmo sem se distinguir
fisicamente dos outros itens classificados como obras de arte. Esse tipo de situao leva J, um
personagem do experimento de Danto, a produzir uma obra que consiste em mais um
quadrado vermelho e exigir que ela seja colocada junto s outras obras como forma de
provocao, pois no haveria razo para que seu quadrado, assim como uma simples
superfcie pintada com zarco, no fosse tambm elevado ao status de obra de arte dado o fato
de que tratam-se todos de quadrados igualmente vermelhos. Ora, a situao embaraosa que J
tenta criar decorre do problema em decidir como uns quadrados vermelhos podem ser
considerados obras de arte enquanto outros continuam sendo meros quadrados vermelhos. Os
seis primeiros itens, mesmo sendo idnticos enquanto superfcies vermelhas, foram
carregados de sentidos completamente distintos por seus criadores. A produo de cada um foi
guiada por intenes e pensamentos diferentes, embora o resultado, de ponto de vista fsico,
tenha sido o mesmo. No entanto, eles geralmente no so percebidos da mesma forma. Nossa
reao ao Nirvana no a mesma que temos ao Quadrado vermelho. Isso no seria possvel
se no adotssemos um ponto de vista diferente quando estamos em contato com supostas
obras de arte. Nossa percepo de todos esses quadrados vermelhos guiada pelo contexto
artstico no qual nos encontramos, e isso contribui para que vejamos os mesmos de formas
diferentes. Se os quadrados fossem retirados da parede da exposio e jogados fora
desprovidos de seus respectivos ttulos, certamente passariam como vrias instncias do
mesmo tipo de coisa para qualquer um que os achasse.
Mesmo a produo de J, propositadamente desprovida de qualquer significado,
sendo intitulada Sem ttulo como maneira de expressar essa inteno, ainda se distingue das
coisas ordinrias; uma coisa comum (como a superfcie vermelha) no possui ttulo, e Sem
ttulo pode ser considerado um ttulo como qualquer outro (pelo menos no caso em questo).
Apesar desse fato distinguir o quadrado de J da superfcie pintada com zarco, por exemplo,
isso ainda parece ser muito pouco para que tal criao seja considerada como obra de arte. No
entanto, como afirmado no desenvolvimento do experimento, J tem a opo de fazer o mesmo
que Duchamp: simplesmente declarar que seu quadrado uma obra de arte. Aqui entramos em
uma questo central para a filosofia da arte, que justamente a questo pelo que uma obra
de arte, pela natureza da arte; questo que parece se tornar ainda mais problemtica devido ao
surgimento de supostas novas formas de arte to distintas das formas tradicionais como os
readymades de Duchamp. O que exatamente impede que o trabalho de J seja considerado um
objeto artstico? De fato, nada impede que isso seja feito, assim como no caso dos
-
readymades. Mas que tal produo possa e seja efetivamente considerada uma obra de arte
por um nmero qualquer de indivduos no significa muito em termos de ontologia. Quem
pergunta pela essncia de uma classe de coisas no est interessado em saber quais coisas so
includas nessa classe por outros, mas por determinadas propriedades que possam ser
utilizadas na regra intensional que define tal classe. Seria preciso saber que propriedade
adicional encontramos em alguns dos quadrados vermelhos do experimento mental e que
servem de garantia para que diferenciemos os mesmos de meros quadrados da mesma cor.
Como afirmou o prprio Danto, Agora tudo o que est na minha coleo obra de arte, mas
nada ficou esclarecido sobre o que foi alcanado2.
No entanto, alguns filsofos j demonstraram certa desconfiana quanto
possibilidade de encontrar as propriedades essenciais da arte ou definir arte ou obra de
arte de modo satisfatrio. Como afirmou Morris Weitz, [...] apesar das diversas teorias,
parece que no estamos mais perto de nosso objetivo hoje do que estvamos na poca de
Plato3. Isso pode se dever a uma inadequao da pergunta sendo feita. Uma alternativa,
como a proposta por Nelson Goodman em um ensaio intitulado When is art?, seria focar na
questo de quando algo se torna uma obra de arte, consequentemente reconhecendo que certas
coisas podem funcionar de modos distintos em momentos distintos, podendo ser classificadas
como obras de arte em alguns momentos e como outros tipos de coisa em outros momentos.
Esse tipo de abordagem permite que consideremos a mudana de categoria ontolgica de
algo em termos de mudanas que no se do na constituio desse algo, mas no contexto no
qual ele se apresenta para ns ou na atitude que temos em relao ao mesmo. Como no caso
do experimento proposto por Danto, no uma diferena nas propriedades fsicas do objeto
que distingue objetos como a mera superfcie pintada de zarco sem nenhuma pretenso de
ser uma obra de arte, a produo de J e O estado de esprito de Kierkegaard. Dito isso, um
dos objetivos da tese aqui proposta ser investigar esse intervalo obscuro entre as meras
coisas e as obras de artes (e entre obras de artes e outros tipos de coisas), no necessariamente
com o intuito de encontrar uma definio para arte (sendo uma das hipteses a serem
trabalhadas na tese a da impossibilidade de definir tal termo) ou um conjunto de propriedades
essenciais para que algo seja realmente uma obra de arte, mas com o propsito primrio de
tentar esclarecer o que ocorre nas fronteiras entre diferentes classes de coisas.
2 DANTO, Arthur. A transfigurao do lugar-comum: Uma filosofia da arte. Traduo de Vera Pereira. So Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 37.3 WEITZ, Morris. The Role of Theory in Aesthetics. In: The Journal of Aesthetics and Art Criticism, vol. 15: 1956, p. 27, traduo do autor.
-
Para alm do mbito ontolgico, a investigao aqui proposta passar por questes de
ordem semntica e de teoria da percepo, principalmente com o intuito de apontar para uma
compreenso razovel do modo atravs do qual usamos a linguagem para falar sobre arte e de
como se constitui nossa percepo de algo enquanto objeto artstico. Isso ser feito com o
intuito de explorar questes relacionadas arte atravs de trs caminhos diferentes, ou seja: as
investigaes a serem realizadas na tese giraro em torno das questes i) sobre o que uma
obra de arte ou quando algo se torna uma obra de arte, ii) sobre a semntica de nossas
expresses relacionadas arte e a possibilidade de definio precisa desses termos, e iii) sobre
o que perceber algo como um objeto artstico. Dessa forma, pretende-se elaborar uma
pesquisa que contribua para a compreenso da arte em geral, e tambm de certos de nossos
hbitos lingusticos e de nossos atos cognitivos, principalmente com o intuito de explorar
filosoficamente alguns dos diversos modos atravs dos quais lidamos com as coisas no mbito
da arte. Isso ser feito levando-se em considerao principalmente as questes levantadas pela
arte contempornea, j que esta exerce uma presso ainda maior sobre aquele que deseja
voltar-se teoricamente sobre a arte, como vimos no caso dos readymades e da pintura de J no
experimento de Danto.
Uma outra questo a ser estudada no campo da semntica ser a distino entre juzos
de carter descritivo e valorativo. Sentenas como Isso uma obra de arte, por exemplo,
nem sempre possuem a funo de informar outros sobre o suposto fato de que o que est
diante de ns realmente uma obra de arte. Uma sentena desse tipo pode apresentar um
contedo a mais, como o fato de que consideramos que o objeto em questo possui
caractersticas que pensamos ser essenciais a uma obra de arte. Um defensor da ideia de que
toda arte deve ser bela, por exemplo, pode ter dificuldades em dizer que a Fonte de Duchamp
uma obra de arte, devido a ausncia no autor de qualquer preocupao esttica com relao
ao urinol apresentado. Uma hiptese a ser trabalhada na tese a de que, em alguns casos,
quando dizemos que algo no uma obra de arte, estamos apenas dizendo que no se trata de
boa arte, ou de uma obra que satisfaa um padro pessoal de qualidade, e no que o objeto em
questo no artstico. Se algum colocasse um objeto qualquer retirado das ruas em uma
exposio, por exemplo, poderamos dizer Isso no arte e a possivelmente estaramos
dizendo algo no sentido de uma ausncia de qualidades artsticas positivas. E, nesse caso,
talvez sequer faa sentido dizermos meramente que no se trata de uma obra de arte quando j
percebemos o objeto em questo no contexto artstico, pois j estaramos inclinados a julgar o
objeto em termos de nossos padres para uma boa arte, mesmo que no tenhamos conscincia
-
desses padres e que eles sejam um tanto vagos. Se no houver possibilidade de definir
definitivamente arte ou obra de arte, possvel que esse hiptese seja verdadeira para
todos os casos de enunciaes dos tipos Isso uma obra de arte, X no uma obra de
arte, etc. O sentido de tais juzos poderia ser considerado como consistindo apenas da
expresso do modo como valoramos uma obra de arte, e as diversas teorias sobre o que arte
somente fariam sentido em termos de recomendaes ou prescries destinadas ao estmulo
da produo de boa qualidade, sendo esta boa qualidade relativa a critrios subjetivos ou
intersubjetivos.
Por ltimo, e dado o foco das investigaes a serem feitas na tese na arte
contempornea, tambm ser feita uma discusso com teorias construdas para dar conta de
problemas tericos envolvendo essa mesma arte, como as teorias institucionais da arte. Apesar
de ser claro que existe uma compreenso difundida da arte em termos institucionais (pois, se
fosse isso no fosse o caso, o gesto de Duchamp sequer teria feito algum sentido), mesmo que
implcita, no claro que esse tipo de abordagem seja satisfatrio, j que parece tornar
praticamente irrelevante o contedo de uma obra de arte ou suas propriedades fsicas para ela
seja considerada enquanto tal. Por outro lado, teorias desse tipo possuem a vantagem de
apontar para fatores que at ento no pareciam ser considerados como relevantes, como as
convenes que regem o mundo da arte e o modo como o ambiente no qual se encontra a obra
tem um papel relevante na nossa compreenso de tal obra enquanto tal. Como um dos temas a
serem trabalhados na tese justamente a percepo de algo enquanto objeto artstico, o papel
de fatores externos s coisas que compreendemos como obras de arte na constituio de tal
compreenso tambm ser um dos objetos de estudo; o que no significa necessariamente
uma adeso a alguma teoria institucional da arte, mas uma ateno especial a esses fatores.
-
Bibliografia
BELTING, Hans. O fim da histria da arte Uma reviso dez anos depois. Traduo de Rodnei Nascimento, 1 edio Cosac Naify Porttil. So Paulo: Cosac Naify, 2012.
CARROL, Nol. A Philosophy of Mass Art. New York: Oxford University Press, 1998.
______. Philosophy of Art: A contemporary introduction. New York: Routledge, 1999.
CARROL, Nol (ed.). Theories of Art Today. Madison: University of Wisconsin Press, 2000.
DANTO, Arthur. Andy Warhol. Traduo de Vera Pereira. So Paulo: Cosac Naify, 2012.
______. A transfigurao do lugar-comum: Uma filosofia da arte. Traduo de Vera Pereira. So Paulo: Cosac Naify, 2010.
______. The Artworld. In: The Journal of Philosophy, Vol. 61, n. 19. New York: The Journal of Philosophy, Inc, 1964, pp. 571-584.
DICKIE, George. Defining Art. In: American Philosophical Quarterly, Vol. 6, No. 3. Champaign: University of Illinois Press, 1969, pp. 253-256.
GOMBRICH, Ernst Hans. Arte e iluso: Um estudo da psicologia da representao pictrica. Traduo de Raul de S Barbosa, 4 edio. So Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
______. The Story of Art. Pocket edition. London: Phaidon Press Limited, 2006.
GOODMAN, Nelson. Languages of Art: An Approach to a Theory of Symbols. Indianapolis: Hackett UP, 1976.
______. Ways of Worldmaking. Indianapolis: Hackett UP, 1978.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Traduo de Fausto Castilho. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.
______. The Origin of the Work of Art. In: Poetry, language, thought. New York: Harper & Row, 1975.
KIVY, Peter (ed). The Blackwell Guide to Aesthetics. Oxford: Blackwell Publishing Ltd., 2004.
WEITZ, Morris. The Role of Theory in Aesthetics. In: The Journal of Aesthetics and Art Criticism, vol. 15: 1956, p. 27-35.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaes Filosficas. Traduo de Marcos G. Montagnoli. Reviso de notas e apresentao de Emmanuel Carneiro Leo. 6 edio. Petrpolis: Vozes, 2009.
WOLLHEIM, Richard. Art and its Objects. Cambridge, New York: Cambridge University Press, 1980.