projeto wikileaks: uma análise dos vazamentos que questionaram os meios de se fazer jornalismo

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL, COM HABILITAÇÃO EM JORNALISMO AMANDA LOPES DEMETRIO DA SILVA PROJETO WIKILEAKS: UMA ANÁLISE DOS VAZAMENTOS QUE QUESTIONARAM OS MEIOS DE SE FAZER JORNALISMO SÃO PAULO, 2011

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Trabalho de conclusão de curso de Amanda Demetrio, apresentado na Universidade de São Paulo in 2011.

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Page 1: Projeto Wikileaks: Uma análise dos vazamentos que questionaram os meios de se fazer jornalismo

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL, COM HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

AMANDA LOPES DEMETRIO DA SILVA

PROJETO WIKILEAKS:UMA ANÁLISE DOS VAZAMENTOS QUE QUESTIONARAM OS MEIOS DE SE

FAZER JORNALISMO

SÃO PAULO, 2011

Page 2: Projeto Wikileaks: Uma análise dos vazamentos que questionaram os meios de se fazer jornalismo

AMANDA LOPES DEMETRIO DA SILVA

PROJETO WIKILEAKS:UMA ANÁLISE DOS VAZAMENTOS QUE QUESTIONARAM OS MEIOS DE SE

FAZER JORNALISMO

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de Comunicação Social, com

habilitação em jornalismo, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de

São Paulo, como requisito para a conclusão do curso de graduação.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Elisabeth Saad Corrêa

SÃO PAULO, 2011

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AMANDA LOPES DEMETRIO DA SILVA

PROJETO WIKILEAKS:UMA ANÁLISE DOS VAZAMENTOS QUE QUESTIONARAM OS MEIOS DE SE

FAZER JORNALISMO

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de Comunicação Social, com

habilitação em jornalismo, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de

São Paulo, como requisito para a conclusão do curso de graduação.

COMISSÃO EXAMINADORA

_________________________________________

Prof.ª Dr.ª Elisabeth Saad Corrêa

_________________________________________

André Deak

Jornalista, autor e cofundador da Casa de Cultura Digital

_________________________________________

Fabiano Angélico,

Jornalista e coordenador de projetos da Transparência Brasil

Page 4: Projeto Wikileaks: Uma análise dos vazamentos que questionaram os meios de se fazer jornalismo

Aos meus pais. Por todos os sacrifícios que sei que fizeram para que eu pudesse

estar hoje apresentando um trabalho de conclusão de curso na USP. Por tudo de

que abriram mão para colocarem eu e meu irmão em primeiro lugar. Espero um dia

poder ter agradecido o suficiente.

Ao meu irmão, Eduardo, e ao meu namorado, Caio.

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AGRADECIMENTOS

À professora Beth Saad, minha orientadora

Aos jornalistas Nelson de Sá, Alec Duarte e Caio Túlio Costa.

À Escola de Comunicações e Artes e a todas as pessoas que conheci aqui

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RESUMO

O Projeto Wikileaks é uma reportagem que busca analisar do impacto dos vazamentos de documentos feitos pela organização Wikileaks entre o final de 2010 e o início de 2011. Inicialmente, a organização e seus vazamentos são apresentados. Depois, é feito um exercício de jornalismo comparado, colocando lado a lado a cobertura dos principais jornais sobre o assunto –aqui, é possível identificar uma tendência ligada à nova fase do jornalismo digital, a da produção de matérias a partir de grandes bancos de dados. Em seguida, a discussão ganha um cunho ético e são colocados no centro da reflexão fatores como o relacionamento entre repórter e fonte, a definição de uma organização jornalística, a questão ética por trás da publicação de documentos secretos e o tratamento dado pelas grandes publicações a Julian Assange, principal porta-voz do Wikileaks, e Bradley Manning, principal suspeito dos vazamentos. A terceira parte do trabalho questiona se a publicação dos documentos afetou o poder dos grandes jornais e revistas, e traça um retrato da fragilidade dessas publicações nos Estados Unidos. Por fim, é feita uma análise sobre como a organização dos usuários em rede, acentuada pela internet e pelas redes sociais, afetou o período posterior à publicação dos documentos secretos.

Palavras-chave: Wikileaks. Jornalismo. New York Times. The Guardian. Der Spiegel. Jornal. Revista. Banco de dados. Ética. Poder. Rede social.

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ABSTRACT

The Wikileaks Project is a story that seeks to analyze the impact of the leaks of documents made by the organization Wikileaks between late 2010 and early 2011. Initially, the organization and the leaks are presented. After that, I make a comparative journalism exercise, placing side by side the cover of major newspapers on the subject. Here, you can identify a trend linked to a new phase of digital journalism, the production of stories from large databases. Then, the discussion gets an ethical nature and the relationship between reporter and source, the definition of a news organization, the ethical question behind the publication of secret documents and the treatment that major publications gave to Julian Assange, chief spokesman of Wikileaks, and to Bradley Manning, prime suspect of leaks are placed in the center of the discussion. The third part of the projects seeks to ask whether the publication of the leaks affected the power of major newspapers and magazines, and paints a portrait of the fragility of these publications in the United States. The final part examines how the organization of users in networks, accentuated by the internet and social networks websites, affected the period following the publication of the secret documents.

Key-words: Wikileaks. Journalism. New York Times. The Guardian. Der Spiegel. Newspaper. Magazine. Database. Ethics. Power. Social Networks.

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SUMÁRIO

1. EDITORIAL ............................................................................................................ 82. O WIKILEAKS ........................................................................................................ 92.1 O que é o Wikileaks? ............................................................................................ 9

2.1.1 Vazamentos ....................................................................................................... 9

2.2 A cobertura fora do Brasil ................................................................................... 12

2.2.1 Afeganistão ...................................................................................................... 14

2.2.2 Iraque .............................................................................................................. 21

2.2.3 Documentos diplomáticos ............................................................................... 27

2.2.4 Guantánamo .................................................................................................... 32

2.2.5 Bases de dados ............................................................................................... 35

3. A ÉTICA ................................................................................................................ 373.1 A fonte ................................................................................................................. 37

3.2 Organização jornalística? ................................................................................... 41

3.3 A decisão da publicação: Público Vs. Privado .................................................... 43

3.4 O personagem criado para Assange .................................................................. 45

3.5 O tratamento com o soldado Manning ............................................................... 48

4. O PODER ............................................................................................................. 504.1 Fragilidade econômica ....................................................................................... 51

4.2 Visibilidade e escolha ......................................................................................... 52

5. A REDE ................................................................................................................ 545.1 Cultura hacker e Wikileaks ................................................................................. 55

5.2 O grupo Anonymous ........................................................................................... 57

5.3 Ser anônimo na era 2.0 ...................................................................................... 59

6. BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 62

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1. EDITORIAL

O Projeto Wikileaks foi uma ideia que surgiu no final de 2010, no auge das

revelações feitas pela organização liderada por Julian Assange. Nos textos dispostos

aqui, tentei explorar a questão de acordo com quatro grandes temas, buscando

respostas para perguntas que ficaram depois que baixou a poeira em torno do caso.

A primeira parte do trabalho busca definir o que é o Wikileaks e fazer uma

espécie de análise comparada do que foi publicado no “Guardian”, no “New York

Times” e na “Der Spiegel”. Escolhi não incluir os jornais nacionais que cobriram o

caso por trabalhar em um deles –e ter feito parte da cobertura diária sobre o

assunto. Não sinto que sou uma pessoa isenta para avaliar um trabalho que ajudei a

fazer.

Não inclui todas as publicações que fecharam parceria como o Wikileaks ao

longo dos vazamentos por causa do volume de notícias e do tempo que tinha para

concluir esse trabalho. Ponderei que perder o foco poderia prejudicar o resultado

final do trabalho.

O mesmo trabalho disponibilizado aqui pode ser encontrado em formato digital e sob

a licença Creative Commons em projetowikileaks.com.br –o site pode ser melhor

visualizado em monitores de 15 polegadas.

Desejo uma boa leitura a todos que quiserem enfrentar os textos aqui

dispostos. Tenham a mente aberta e procurem os links associados às frases, para

ter acesso ao outro lado do que escrevo aqui.

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2. O WIKILEAKS

Entenda como foi o vazamento de documentos que deu contornos reais a

duas guerras e escancarou a visão norte-americana sobre os outros países do

mundo. Veja como cada publicação internacional –Guardian, New York Times, Der

Spiegel– escolheu uma abordagem diferente.

2.1 O que é o Wikileaks?Se cada funcionário de um órgão governamental ou de uma grande empresa

tivesse um lugar para publicar documentos secretos e fazer denúncias, sem deixar

de lado o anonimato, a transparência das instituições atingiria um novo nível. Foi

nesse conceito que se baseou o Wikileaks, em sua criação.

Nascido no final de 2006, a ideia inicial era que o site fosse uma plataforma

segura, em que poderiam ser depositados documentos. Apostando no poder dos

usuários organizados em rede, a checagem ficaria a cargo de uma equipe

multidisciplinar, colaborativa e espalhada pelo mundo. Mas isso era no começo.

Para o “Financial Times”, o Wikileaks nasceu como uma espécie de ‘ser

híbrido’, formado pela junção da tradição hacker com a cultura jornalística. É a

mistura do Wiki –tecnologia que permite a colaboração coletiva, usada na

Wikipédia– com o relacionamento com as fontes e a necessidade de verificação das

informações.

Quatro grandes levas de vazamento depois, o site perdeu seu serviço de

hospedagem inicial e tem que se virar com sites-espelho espalhados pelo mundo. O

principal porta-voz do grupo, Julian Assange, encara uma acusação grave na Suécia

–oficialmente, não relacionada ao vazamento em si. Ex-integrantes do grupo já

montam uma nova iniciativa parecida. Hollywood já monta filmes sobre o assunto.

2.1.1 VazamentosEm abril de 2010, um vídeo1 mostrando soldados norte-americanos matando

civis, incluindo dois repórteres da agência Reuters, marcou a primeira grande

aparição do Wikileaks na grande mídia –desde 2007, o site já era bloqueado na

1 Ver http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=5rXPrfnU3G0

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China.

Mas, foi em julho do mesmo ano, que veio a primeira grande avalanche. O

primeiro grande vazamento2 traz relatórios de inteligência, registros internos de

incidentes, descrições de ataques a inimigos e de reuniões com políticos locais

produzidos entre 2004 e 2009. São cerca de 90 mil documentos relacionados ao

posicionamento dos Estados Unidos na Guerra do Afeganistão.

Para publicar os documentos, o site firmou parceria com três grandes

publicações: “The Guardian”, do Reino Unido, “Der Spiegel”, da Alemanha, e “New

York Times”, dos Estados Unidos. Os documentos eram enviados com antecedência

aos jornais, para que pudessem ser produzidas matérias sobre o assunto. Mas os

arquivos também eram publicados no próprio site do Wikileaks.

Conhecidos como “War Logs”, os documentos sobre as guerras do

Afeganistão ganharam interpretações diferentes em cada veículo em que eram

publicados. Por onde passou, o Wikileaks basicamente expôs o que estava sendo

varrido para baixo do tapete pela inteligência dos Estados Unidos.

Nos jornais, o Wikileaks é apontado como aquele que mostrou a “guerra de

verdade”3. São relatadas as mortes de civis acobertadas, a ausência de julgamentos

para líderes do Taleban, casos de espionagem no Paquistão e relatos sobre

caçadores secretos, cujos erros chegavam a matar crianças. Surgem grandes

discrepâncias entre o que o governo norte-americano dizia e o que efetivamente

acontecia nas trincheiras.

De todos os lados, ficaram evidentes falhas da operação norte-americana na

guerra do Afeganistão. A Casa Branca reagiu e disse que os vazamentos colocam

vidas em risco. O analista de inteligência do exército norte-americano Bradley

Manning foi preso por suspeita de envolvimento nos vazamentos.

Segundo a “Folha de S. Paulo”, a primeira leva de vazamentos trouxe

informações relacionadas ao Brasil, mas nada que pudesse ser considerado

bombástico. Eram apenas análises feitas pela biblioteca do Congresso norte-

americano envolvendo temas como o posicionamento econômico e político do Brasil

na América Latina.

O segundo grande vazamento também veio dos campos de batalha

2 A divisão dos vazamentos está sendo feita para facilitar os estudos neste projeto3 Ver http://www.guardian.co.uk/world/2010/jul/25/afghanistan-war-logs-military-leaks

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ocupados por soldados norte-americanos. Eram relatórios feitos pelo exército norte-

americano em suas missões no Iraque. Os mais de 390 mil documentos são

referentes ao intervalo de duração da guerra.

Os relatórios secretos mostraram que o número de iraquianos civis mortos

na guerra era superior ao divulgado pela administração Bush. Também foram dados

detalhes e pequenas nuances aos abusos praticados contra os prisioneiros de

guerra. Dessa vez, também foi incluído no acordo de publicação o jornal francês “Le

Monde”, segundo relata o “New York Times”4.

O terceiro grande vazamento de documentos saiu das trincheiras para

desvendar parte do alto escalão norte-americano. São cerca de 250 mil documentos

confidenciais do Departamento de Estado dos Estados Unidos. O vazamento foi

formado, principalmente, por telegramas trocados com as embaixadas norte-

americanas espalhadas pelo mundo. Os dados são referentes ao período de

dezembro de 1966 a fevereiro de 2011.

Entre os assuntos abordados estão política externa, assuntos internos de

cada governo, direitos humanos, economia, terrorismo a uma boa dose de

comentários e análises pessoais feitas pelos diplomadas.

Os governos reagiram com força depois da gafe diplomática. O Reino Unido

emitiu uma notificação pedindo para revisar todo o material sobre o tema, antes da

publicação. Os Estados Unidos pressionaram a Amazon Web Services a interromper

o serviço que oferecia de hospedagem ao Wikileaks. O site chegou a ficar fora do ar

por algumas horas, mas transferiu sua hospedagem para a Suécia. Em dezembro de

2010, já surgiram notícias de um remanejamento estratégico de diplomatas por parte

dos Estados Unidos.

Mas o cerco em torno da organização e de seu principal líder não acabou. O

Wikileaks buscou outros lugares para se hospedar e foram criados os ‘mirrors’,

espelhos do site espalhados por todo o mundo para impedir que o conteúdo seja

perdido pelas vontades de uma única empresa.

Julian Assange também ficou em maus lençóis. Um processo contra ele pelo

suposto envolvimento no abuso de duas mulheres foi reaberto e ele passou a ser

procurado pela polícia. Entre a polícia do Reino Unido e da Suécia, ele hoje luta para

4 Ver http://www.nytimes.com/2010/10/23/world/middleeast/23intro.html

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conseguir provar que as alegações têm caráter político. Assange alega ter uma série

de documentos bombásticos guardados em segurança, para que sejam soltos se

algo acontecer com ele.

No final de abril de 2011, houve um quarto grande vazamento, com mais de

700 documentos relativos à situação dos presos em Guantánamo e trouxe o

Wikileaks novamente à tona. Foram vazadas informações sobre prisões de

inocentes e sobre a situação de saúde de alguns dos prisioneiros.

Hoje o Wikileaks vive de doações. Alguns de seus ex-membros criaram uma

iniciativa parecida, o Openleaks. A ideia seria retomar a pretensão inicial do projeto,

sem a personalidade centralizadora e controversa de Assange, como alegam os ex-

colegas do líder.

2.2 A cobertura fora do BrasilPara chegar mais longe, o Wikileaks resolveu fazer uma mudança no jeito

como publicava os documentos vazados. Passou a fechar parcerias com jornais e

adiantar o material para que jornalistas pudessem realizar seus procedimentos

padrão de apuração. Era preciso omitir o nome dos que corriam perigo, ouvir os que

estavam sendo acusados… Enfim, checar tudo o que os documentos prometiam

revelar. Um rápido estudo de jornalismo comparado nos ajuda a entender o papel

que cada publicação tomou durante o vazamento dos documentos.

A primeira informação publicada no site do Wikileaks que causou impacto na

mídia internacional5 foi um vídeo gravado em julho de 2007, que mostrava soldados

norte-americanos dentro de um helicóptero atirando na direção de civis. Um fator

agravante chamou a tenção da mídia: entre os mortos, estavam um jornalista da

agência de notícias Reuters e seu motorista. O vazamento ocorreu em abril de

20106.

A cobertura internacional alternou seu foco entre o diálogo travado pelos

soldados norte-americanos enquanto atiravam sobre o que diziam acreditar ser um

grupo de insurgentes e o vazamento em si, feito por um site relativamente

desconhecido até então.

5 Para facilitar os estudos, serão analisadas apenas as publicações “Guardian”, “New York Times” e “Der Spiegel”. Elas serão tomadas como representantes do que foi feito na mídia fora do país

6 Veja mais em collateralmurder.com

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O “Guardian”7 focou seus esforços em relatar o diálogo entre os soldados:

”Uma filmagem secreta de uma equipe norte-americana falsamente alegando ter

encontrado um tiroteio em Badgá e depois rindo diante dos mortos foi revelada pelo

Wikileaks hoje. O ataque matou uma dúzia de pessoas, incluindo dois iraquianos

que trabalhavam para a agência ‘Reuters’”, diz a matéria do jornal britânico.

O parágrafo inicial do “Guardian” é único por assumir, logo de cara, que o

tiroteio não existia e citar a postura desrespeitosa dos soldados diante da situação.

O jornal também não sente a necessidade de explicar do que se trata o Wikileaks –

não o define como “um site” ou “uma ONG”, como estavam fazendo os outros

veículos na época. Tal familiaridade com o assunto talvez possa ser explicada pela

proximidade entre Julian Assange, o fundador e principal porta-voz do Wikileaks, e

os repórteres do jornal.

O “Guardian” segue seu texto dizendo que o Departamento de Defesa norte-

americano ficou “envergonhado” com a publicação dos vídeos. Depois de

contextualizar o leitor, volta a mostrar os abusos: as risadas dos soldados, a espera

de que o ferido ‘apenas pegue em um arma’ para obter permissão para atirar.

O “New York Times” dá mais destaque ao fato de funcionários da Reuters

estarem entre os mortos. Ao longo dos primeiros parágrafos,8 discorre sobre a

dificuldade que a agência de notícias teve em obter as imagens antes do

vazamento. Assim como o “Guardian”, o Times declara que “o vídeo demonstra que

não houve atitudes hostis [por parte dos iraquianos que foram atacados]“. Também

se fala sobre os diálogos grotescos travados pelos soldados dentro do helicóptero.

A “BBC” dá o seu primeiro parágrafo9 para o vazamento em si, e segue: “Os

organizadores do site [como a "BBC" faz referência ao Wikileaks] dizem que

receberam as filmes, que alegam ter vindo das câmeras de helicópteros Apache dos

Estados Unidos.” A rede britânica ainda fala sobre a missão do Wikileaks, antes de

passar efetivamente para o conteúdo das filmagens.

Entre os veículos analisados para este projeto, a abordagem inicial mais

curiosa veio da Al Jazeera10. Logo de início, o Wikileaks é colocados como “uma das

maiores fontes da internet sobre informações secretas de governo”. Enquanto uns

7 Ver http://www.guardian.co.uk/world/2010/apr/05/wikileaks-us-army-iraq-attack8 Ver http://www.nytimes.com/2010/04/06/world/middleeast/06baghdad.html9 Ver http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/8603938.stm10 Ver http://english.aljazeera.net/news/americas/2010/04/201045123449200569.html

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ainda estavam chamando a organização de “site”, a Al Jazeera parecia já ter uma

definição mais apurada do que era efetivamente o Wikileaks.

Nesse início, fala-se sobre o que o Wikileaks define como sua missão e

sobre o fato de ser um repositório de documentos vazados, mas não define a

instituição como fonte do jornal ou como organização não governamental.

2.2.1 AfeganistãoOs documentos relacionados à Guerra do Afeganistão tiraram a grossa

camada de poeira que se formou sobre a guerra travada no país ao serem

publicados no final de julho de 2010. “A névoa da guerra é inesperadamente densa

no Afeganistão”, diz o “Guardian”, em seu editorial sobre o assunto. No geral, os

mais de 90 mil documentos mostraram os traços de uma guerra que eram

escondidos entre comunicados oficiais –se é que se era informado. São relatos

produzidos no campo de confronto, informações táticas e relatos de inteligência.

MAPA DO AFEGANISTÃO

Foram mostrados mais de 150 ‘incidentes’ que geraram mortes ou

ferimentos em civis, mas que nem sempre foram oficialmente relatados. Um grupo

de caçadores secretos cujos erros geravam mortes de crianças ganhou contorno.

Antigos aliados foram relatados como inimigos –Afeganistão e Paquistão são mais

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amigos do que os Estados Unidos gostaria, por exemplo.

No “Guardian”, a cobertura foca bastante as mortes de inocentes, mostrando

quase que uma “negligência casual” em relação às vidas de inocentes. “Os

documentos nos mostram como, ao ir atrás de um lutador estrangeiro, as tropas

acabaram matando sete crianças. As crianças não foram prioridade imediata”, conta

o editorial do jornal sobre o assunto11.

No mesmo texto, o “Guardian” tenta deixar claro sua abordagem e apuração

jornalística ao assunto: “Nós removemos qualquer material que pode ameaçar a

segurança das tropas, informantes locais e outros colaboradores”, diz o texto.

Na cobertura do jornal britânico, parece surgir uma grande simpatia em

relação à figura de Julian Assange, o principal representante do Wikileaks. Ele

parece ser tratado como fonte e parceiro, ao mesmo tempo. As notícias do

“Guardian” incluem um vídeo de Assange12, dizendo que os documentos mostraram

“natureza real desta guerra”.

No vídeo, Assange compara o vazamento dos mais de 90 mil documentos

com os chamados “Papéis do Pentágono”.

Cabe aqui um parênteses para colocar lado a lado os dois vazamentos. O

Papéis do Pentágono foi um vazamento de documentos de um estudo estratégico

relacionados à Guerra do Vietnã, ocorrido em 1971. Na época, ficou claro que o

governo manipulava informações e tomava decisões precipitadas, antes mesmo de

ter a autorização do Congresso norte-americano. Eram 14 mil páginas, que foram

publicadas no “New York Times”. O vazamento não teve as dimensões, nem a

possibilidade de interação que a internet possibilitou ao Wikileaks, anos depois.

O “Guardian” também publicou o posicionamento da Casa Branca, diante

dos vazamentos. Foi o início de uma série de declarações com o mesmo tom: a

publicação dos documentos estaria colocando em risco as vidas dos norte-

americanos e de seus parceiros, diziam os representantes norte-americanos. Em

relação ao Afeganistão, o posicionamento da instituição também foi de atribuir os

relatos ao governo anterior, para tentar tirar um pouco a pressão de Barack Obama.

Um fator importante de localização jornalística também aparece nos relatos

do “Guardian”. Em sua cobertura, o jornal também tenta dar a dimensão do papel

11 Ver http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/jul/25/afghanistan-war-logs-guardian-editorial12 Ver http://www.guardian.co.uk/world/video/2010/jul/25/julian-assange-wikileaks-interview-warlogs

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das tropas britânicas na guerra13: “Os compiladores dos Estados Unidos mostram

um conjunto de quatro tiroteios britânicos em Cabul, no espaço de apenas um mês,

em 2007, culminando com a morte do filho de um general afegão.”

Um dos grandes destaques da cobertura do “Guardian” foi uma espécie de

mapa interativo registrando onde e como ocorreram alguns dos relatos obtidos pelo

Wikileaks, tudo organizado de maneira cronológica. Os milhares de número vazados

pelo Wikileaks ganharam uma forma tangível e organizada aos leitores.

MAPA INTERATIVO CRIADO PELO "GUARDIAN"14

O “New York Times” se mostra mais contido ao abordar a Guerra do

Afeganistão do ponto de vista dos vazamentos do Wikileaks. O foco principal inicial

do jornal foi em relação à “amizade” não autorizada entre Paquistão e as tropas

insurgentes no Afeganistão. Apesar de receber dinheiro dos Estados Unidos, o

Paquistão estaria com uma “mão invisível” apoiando grupos como a Al Qaeda,

13 Ver http://www.guardian.co.uk/world/2010/jul/25/afghanistan-war-logs-military-leaks14 Ver http://www.guardian.co.uk/world/datablog/interactive/2010/jul/26/ied-afghanistan-war-logs

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segundo dizem os relatos do Wikileaks publicados pelo “Times”.

O jornal norte-americano parece duvidar mais do que está sendo publicado:

“Boa parte da informação não pode ser verificada e, provavelmente, vem de fontes

aliadas da inteligência do Afeganistão, que consideram os paquistaneses como

inimigos”, diz a matéria do jornal15. O Wikileaks é apontado como uma “organização”

e não um lugar onde desembocam denúncias, como aparece no “Guardian”.

Apesar disso, o “New York Times” deixa claro o contraste entre os relatos

oficiais dos Estados Unidos sobre o Paquistão e o que aparecia no calor de batalha,

no Afeganistão. “Por trás das cortinas, oficiais tanto a administração Bush, quanto da

Obama e comandantes norte-americanos confrontaram miliares paquistaneses

sobre a cumplicidade em ataques no Afeganistão.”

Aqui, o governo norte-americano parece ter sua versão mais ouvida do que

no “Guardian”. Surgem relatos de oficiais que pediram informações sobre o real

papel dos Paquistaneses, são mostradas brigas no alto comando dos dois países.

Outro ponto focal da cobertura do “New York Times” trata do fortalecimento

do Taleban, durante os anos de guerra. “Os documentos ilustram o porquê de,

depois de os Estados Unidos terem gastado mais de US$ 300 bilhões na guerra do

Afeganistão, o Taleban estar mais forte do que nunca”, diz a reportagem16.

O jornal também traz o lado do governo norte-americano: “No geral, os

documentos não contradizem as contas oficiais da guerra. Mas, em alguns casos, os

documentos mostram como o exército norte-americano fez declarações públicas

ilusórias –atribuindo a queda de um helicóptero a armas convencionais ao invés de

mísseis.”

O “New York Times” também descreve os documentos como um arquivo

“incompleto da guerra”. Destaca que faltam referências em relação a importantes

períodos da guerra, bem como relatos do ano de 2010.

Forma-se um retrato interessante das forças do Taleban. São exibidos

relatos sobre como eles tentam manipular as forças norte-americanas, se vestindo

como pessoas do governo e usando informantes. Conta-se a história de um

15 Ver http://www.nytimes.com/2010/07/26/world/asia/26isi.html16 Ver http://www.nytimes.com/2010/07/26/world/asia/26warlogs.html

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comandante Taleban que usou a “emoção da multidão” que estava presente no

funeral de um “insurgente”.

Aqui, vemos uma construção bastante parecida com a força atribuída à

Guerra do Iraque por Noam Chomsky em seu “Estados Fracassados”. O

pesquisador mostra como o governo Bush formou no Iraque uma massa de novos

terroristas e trouxe à população local a simpatia em relação a causas extremistas. A

guerra acabou gerando a formação de um exército de práticas extremistas apoiado

pela população, segundo o pesquisador.

Os relatos escolhidos pelo “Times” também nos mostram como os

investimentos do governo norte-americano na polícia local têm tido consequências

inesperadas. Segundo o jornal, existem relatos de brutalidade, corrupção e estupro

da polícia local. “Alguns oficias de polícia saem para se juntar ao Taleban”, diz o

jornal.

O “New York Times” também dedica um texto inteiro17 às razões dadas pelo

Wikileaks à publicação dos documentos. Aqui, coloca uma frase dita por Assange

em uma entrevista: “[O vazamento] nos mostra não só os incidentes, mas a miséria

da guerra, da morte individual de crianças a grandes operações que mataram

centenas.”

O jornal também publica um editorial sobre o assunto, uma espécie de nota

aos leitores18. No texto, surge um posicionamento do “Times” em relação ao

Wikileaks, que determinaria o futuro da relação entre as duas instituições. Quando

cita a fonte do material obtido, o jornal deixa claro que o Wikileaks não se envolveu

na “pesquisa, reportagem, análise e escrita das notícias”. Existe aqui uma escolha

pelo afastamento entre “Times” e Wikileaks.

A razão dada pelo jornal norte-americano por ter decidido ir em frente com a

publicação dos documentos, a priori sigilosos, também parece bem diferente da

apresentada pelo “Guardian”. Enquanto o britânico quer tirar a “névoa” da guerra e

mostrar as mortes de civis, o “Times” diz que os documentos “iluminam a dificuldade

extraordinária que os Estados Unidos e seus aliados têm enfrentado.”

17 Ver http://www.nytimes.com/2010/07/26/world/26wiki.html18 Ver http://www.nytimes.com/2010/07/26/world/26editors-note.html

Page 20: Projeto Wikileaks: Uma análise dos vazamentos que questionaram os meios de se fazer jornalismo

19

A terceira publicação que teve acesso

adiantado aos documentos vazados pelo Wikileaks foi

a revista semanal alemã “Der Spiegel”, cuja cobertura

se aproxima mais, editorialmente, do que foi feito pelo

“Guardian”.

Logo de cara, a revista nos conta19 que os

documentos mostram a “escala real” do

desenvolvimento do ocidente nos campos de batalha. Aqui, a revista fala sobre

como os documentos possibilitam a comparação entre o que realmente ocorreu nos

campos de batalha com o que é propagado pela máquina de publicidade norte-

americana e a formação de um retrato real da Guerra do Afeganistão.

Ao mesmo tempo, vemos a “Der Spiegel” tentando trazer os documentos

para perto da realidade do povo alemão a todo momento –”Eles [os documentos]

mostram que a área ao norte do Afeganistão, onde estão as tropas alemãs, está se

tornando cada vez mais perigosa.”

Uma das histórias mais impressionantes contadas pela “Der Spiegel” é sobre

a Task Force 37320, uma espécie de força militar (até então) secreta que é designada

para caçar e matar ou prender líderes do Taleban e de outros grupos de insurgentes.

O esquema lembra um pouco o “velho oeste”, como diz a revista, já que não existem

julgamentos ou evidências. A Task Force 373 é pintada como algo secreto até para

os outros soldados norte-americanos. Também são mostrados eventos em que as

atividades do grupo colocam inocentes em risco.

A importância de tal força para o governo alemão fica evidente quando a

revista nos conta que parte dos soldados que estão nessa força especial ficaram

localizados em uma base alemã no Afeganistão –fica claro que formou-se um ar de

constrangimento pela presença do grupo21. Diz-se que a presença da força no local

tornou-se uma espécie de tabu para as autoridades alemãs. A situação também se

complicou para o governo alemão pelo fato de os documentos mostrarem que há

muito mais da guerra do que está sendo dito ao parlamento local.

19 Ver http://www.spiegel.de/international/world/0,1518,708314,00.html20 Ver http://www.spiegel.de/international/world/0,1518,708559,00.html21 Ver http://www.spiegel.de/international/germany/0,1518,708407,00.html

CAPA DA DER SPIEGEL SOBRE A TASK FORCE 373

Page 21: Projeto Wikileaks: Uma análise dos vazamentos que questionaram os meios de se fazer jornalismo

20

Há outra crítica ao governo alemão quando se fala no papel das tropas

alemãs na guerra. “Eles [os documentos] mostram o quão pouco preparados

estavam a Alemanha e seu exército quando entraram na guerra –e porque,

provavelmente, sua missão não será cumprida no final”, diz a revista.” O exército

alemão é descrito como “sem noção” e “inocente” ao entrar na guerra. Também é

citado que a situação no local está pior do que a chanceler Angela Merkel estava

relatando.

Os documentos obtidos pela revista22 também falam da presença de

estrangeiros do Afeganistão, já que, em 2006, a população se recusava a entrar no

meio do conflito. Pessoas vindas de países como Chechenia e das Arábias tiveram

um papel importante no início da guerra, segundo mostram os documentos.

Também existem relatos

de ameaças às equipes de

reconstrução alemã localizadas

na área de Kunduz (veja no

mapa ao lado). “Os relatos

mostram emboscadas e

dispositivos explosivos

improvisados, mas eles também

incluíam alertas sobre possíveis

sequestros”, conta a reportagem

da revista. Entre os alvos

estariam funcionários de uma

agência alemã, que tinham a

função de reconstruir o local.

A antes pacata região de Kunduz ganhou traços de cidade de guerra já em

2007, segundo diz a “Der Spiegel”. Os relatos vazados pelo Wikileaks contam três

ataques suicidas com bombas em maio de 2007.

O que ocorreu, de acordo com a revista, foi uma mudança de

posicionamento por parte dos insurgentes. Eles deixaram de evitar envolver os civis

22 Ver http://www.spiegel.de/international/germany/0,1518,708393,00.html

ÁREA DE KUNDUZ, LOCALIZADA NO AFEGANISTÃO (PONTO A)

Page 22: Projeto Wikileaks: Uma análise dos vazamentos que questionaram os meios de se fazer jornalismo

21

e passaram a intimidar a população e desencorajá-la para que não cooperasse com

as tropas aliadas dos Estados Unidos. A situação teria piorado ainda mais em 2009.

A “Spiegel” também fez um levantamento da cobertura alemã23 em relação

aos vazamentos. Ele conta que, no geral, a opinião da mídia local é que os

documentos não trouxeram muitas surpresas, mas mostraram que a esperança de

que os Estados Unidos e seus aliados algum dia cheguem a ganhar a guerra está

diminuindo.

2.2.2 Iraque

Muito do que ocorreu no Iraque desde a invasão dos Estados Unidos ficou

de fora dos informes oficiais. Essa é a impressão que fica depois de ler a cobertura

relacionada aos documentos da guerra, que vazaram para a imprensa por meio do

Wikileaks em outubro de 2010².

O volume foi maior que o vazamento anterior: de quase 92 mil documentos

sobre o Afeganistão, passou-se para 400 mil no Iraque. São relatórios secretos

sobre as missões realizadas pelos Estados Unidos e seus aliados no Iraque –datam

de 1º de janeiro de 2004 a 31 de dezembro de 2009. Ali, ficam expostos detalhes de

práticas de tortura, execuções primárias e crimes de guerra. Além, é claro, dos

danos colaterais presentes em cada morte de um civil.

MAPA DO IRAQUE, COM DESTAQUE PARA A CAPITAL BAGDÁ

23 Ver http://www.spiegel.de/international/world/0,1518,708665,00.html

Page 23: Projeto Wikileaks: Uma análise dos vazamentos que questionaram os meios de se fazer jornalismo

22

No vazamento de documentos relacionados à Guerra do Iraque, o

“Guardian” parece focar seus esforços na contagem de corpos, já que, até então, as

informações oficiais eram de que não havia um relatório geral de mortos. Contou-se

o número de civis, aliados e até de insurgentes, que estavam se rendendo, mas

acabaram mortos. Segundo os dados obtidos pelo jornal, foram mais de 100 mil

mortes violentas desde a invasão do Iraque24 e cerca de 66 mil delas são estimados

como de civis. O jornal reforça que até 2002, a posição do governo norte-americano

era: “Nós não contamos corpos”.

Mas a realidade não era bem assim. Nos campos de batalha, os soldados

faziam relatórios das mortes que ocorriam em cada operação. Não que os dados

ofereçam um retrato exato da situação. O jornal britânico compara os dados de

outras organizações relacionadas à guerra com os obtidos pelo Wikileaks e mostra

que nem sempre os relatos dos soldados são compatíveis com o que as entidades

defendem. Também é preciso ressaltar que não estão ali contabilizadas as mortes

do ano de 2003, logo em seguida da invasão norte-americana. O “Guardian” montou

um mapa interativo com as mortes registradas ao longo dos anos de guerra25.

As mortes também ocorreram por conta de fogo amigo. “O catálogo de

mortos e de feridos nos mostra o quão séria é a decisão errada de um homem jovem

com uma arma mortal na mão em uma situação de estresse, confusão e burocracia”,

relata o jornal em sua matéria26.

O

“Guardian”

afirma que as

tropas norte-

americanas

mataram ao

menos sete e

feriram 34

compatriotas em

ataques envolvendo fogo amigo. Dos quais, poucos chegaram aos ouvidos da

24 Ver http://www.guardian.co.uk/world/2010/oct/22/true-civilian-body-count-iraq25 Ver http://www.guardian.co.uk/news/datablog/2010/oct/23/wikileaks-iraq-data-journalism26 Ver http://www.guardian.co.uk/world/2010/oct/22/american-troops-friendly-fire-iraq

SARGENTO DAVID HART, QUE MORREU EM CIRCUNSTÂNCIAS DUVIDOSAS NO IRAQUE

Page 24: Projeto Wikileaks: Uma análise dos vazamentos que questionaram os meios de se fazer jornalismo

23

população. O jornal cita apenas alguns casos em que as famílias foram informadas

de que as circunstâncias das mortes estavam sendo investigadas.

São contadas diversas histórias como as do Sargento David Hart e dos

soldados Ivan Merlo e Phillip Pannier. Os três acabaram mortos em circunstâncias

confusas, com suspeita de fogo amigo. Um dos relatos vazados pelo Wikileaks

mostra a equipe de um helicóptero norte-americano se defendendo da acusação de

que suas armas teriam matado os soldados, segundo conta o “Guardian”.

Para trazer o cenário mais para perto da realidade de seu público, o jornal

britânico também conta que, ao menos onze vezes, as tropas britânicas foram

atacadas pelos Estados Unidos ou seus aliados.

Outro relato interessante é feito pelo “Guardian” na forma de uma espécie de

“diário de guerra”. O jornal compila cronologicamente, no decorrer de um dia, todos

os ataques e mortes registrados no Iraque. “Iraque: um dia, 146 mortes”27 é como foi

intitulada a matéria que mostra uma fina fatia da rotina de guerra.

Uma das declarações mais fortes do “Guardian” em relação ao

posicionamento das tropas norte-americanas foi feito em uma matéria que relata

batalhas na fronteira entre Iraque e Síria. As tropas estavam tentando impedir a

entrada de estrangeiros, que estariam ajudando os insurgentes iraquianos.

Diz o jornal28: “Em releases lançados para a imprensa e outras declarações

públicas sobre sua maior ofensiva no Iraque, os oficiais dos Estados Unidos jogaram

para baixo de maneira consistente o número de civis mortos –ou negaram tê-los

matado.” Segue, então, o relato da missão que ocorreu na fronteira da Síria. Em

uma rara exceção, relata o “Guardian”, desta vez houve contagem de civis mortos.

Ao menos 25 civis não sobreviveram à passada das tropas pela região.

Outro foco importante da cobertura do “Guardian” em relação a esse

vazamento foi quanto à tolerância das tropas dos Estados Unidos e seus aliados aos

casos de tortur29a. “As autoridades norte-americanas falharam ao investigar

centenas de denúncias de abuso, tortura, estupro e até estupro da polícia iraquiana,

cuja conduta parece ser sistematicamente não punida.”

27 Ver http://www.guardian.co.uk/world/2010/oct/23/iraq-war-logs-october-17-2006128 Ver http://www.guardian.co.uk/world/2010/oct/24/steel-curtain-air-strikes-husaybah29 Ver http://www.guardian.co.uk/world/2010/oct/22/iraq-war-logs-military-leaks

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24

A política da coalizão é de “ignorar as alegações” de abuso cometidas pelas

forças iraquianas. “Ele registram como ‘não é necessário investigar’ e passam os

registros para a mesma polícia a quem é implicada a violência,” diz o jornal. Apesar

disso, ele deixa claro que “todas as alegações envolvendo as forças de coalizão são

submetidas à julgamentos formais.”

Para o “New York Times”, as revelações do Wikileaks relacionadas ao Iraque

não são reveladoras, mas retratam uma espécie de sabor amargo da guerra. “Eles

oferecem um insight, dão textura e contexto, do ponto de vista dos que estão lutando

nessa guerra,” diz o jornal, em sua reportagem30.

O jornal destaca algumas revelações principais dos documentos do Iraque:

– A guerra no Iraque gerou uma dependência das empresas privadas maior

do que era prevista. No início, mostram os documentos31, as companhias foram

contratadas porque “não havia homens suficientes para fazer o trabalho”. Depois

de alguns anos, ficou claro o quão difícil de administrar se tornou a situação.

– As mortes dos civis iraquianos, que seriam em maior número do que foi

tornado público pelos Estados Unidos durante a administração Bush. O “New

York Times” cita o mês de dezembro de 2006 como o pior mês da guerra, com

3.800 civis mortos32. O jornal ressalta que a maioria das fatalidades foram por

culpa das forças iraquianas, mas diz que as mortes de civis iraquianos pelas

mãos dos norte-americanos fez com que a população local se voltasse contra a

presença dos Estados Unidos no local.

– Os abusos por parte dos iraquianos aliados dos Estados Unidos em

relação a seus prisioneiros; e como os Estados Unidos ignoraram as práticas.

“Espancamentos, queimaduras e amarrações [de prisioneiros] aparecem em

centenas de relatos, dando a impressão de que tal tratamento não era uma

exceção”, diz a reportagem33.

– A participação do exército do Irã, fortalecendo os insurgentes xiitas

Aqui, o jornal norte-americano toma um posicionamento que incomodaria

Julian Assange. O “New York Times” informa aos seus leitores que informou ao

Pentágono quais documentos específicos planejava publicar e como eles seriam

30 Ver http://www.nytimes.com/2010/10/23/world/middleeast/23intro.html?_r=131 Ver http://www.nytimes.com/2010/10/24/world/middleeast/24contractors.html32 Ver http://www.nytimes.com/2010/10/23/world/middleeast/23casualties.html33 Ver http://www.nytimes.com/2010/10/23/world/middleeast/23detainees.html

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25

editados. “O Pentágono disse que teria preferido que o ‘Times’ não publicasse o

material secreto, mas não propôs nenhum corte.”

A esta altura, o Wikileaks já estava sob forte pressão do governo norte-

americano, já que alguns documentos relacionados à guerra do Afeganistão foram

publicados sem a omissão de nomes, revela o “New York Times”. Os argumentos do

governo se voltam à segurança das tropas e dos aliados dos norte-americanos nos

campos de batalha.

O “New York Times” publicou uma extensa resposta do Departamento de

Defesa aos vazamentos relacionados ao Iraque. O discurso segue o padrão do

vazamento anterior, dizendo que as tropas estariam mais vulneráveis com os

vazamentos, e é adicionada a informação de que entidades terroristas estariam

usando os dados vazados do Afeganistão para tomar ações contra os norte-

americanos e seus aliados.

Além disso, a cobertura do jornal veio acompanhada de um editorial34 muito

similar ao publicado durante à revelação dos documentos relacionados à Guerra do

Afeganistão. Fala-se que o Wikileaks não teve participação na apuração das

matérias e que o “New York Times” pesou o “custo-benefício” de se publicar

documentos considerados confidenciais.

Assim como o “Guardian”, o “New York Times” mostrou as mortes da cidade

de Bagdá durante a guerra em um mapa interativo35. Os destaque fica para os anos

de 2006 e 2007, quando pipocaram pontos vermelhos no mapa da cidade.

A revista alemã “Der Spiegel” declarou que os documentos adicionam “novas

dimensões à guerra” –eles a comparam à Segunda Guerra Mundial, que teve um

papel importante na história alemã. A série de documentos é colocada como um

diário dos soldados norte-americanos no campo de batalha: “As centenas de

análises, relatórios de ataque e de prisões permitem uma reconstrução muito precisa

da escala da batalha entre xiitas e sunitas, como ela brutalizou a sociedade

iraquiana e como sequestros, execuções e tortura de prisioneiros se tornaram

práticas de rotina”, diz a revista36.

34 Ver http://www.nytimes.com/2010/10/23/world/middleeast/23box.html35 Ver http://www.nytimes.com/interactive/2010/10/24/world/1024-surge-graphic.html36 Ver http://www.spiegel.de/international/world/0,1518,724845,00.html

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26

Ao mesmo tempo, ela se mostra cautelosa em relação aos documentos.

“Eles não são do maior nível secreto possível –estão marcados como ‘secreto’ e não

‘muito secreto’. Além disso, muitas dos mais expressivos eventos da Guerra do

Iraque não fazem aparições, incluindo o escândalo de tortura em Abu Ghraib.

Existem outros pontos fracos: eles representam apenas a visão de um lado e são

subjetivos, não são verificáveis e, em muitos casos, foram produzidos nos campos

de batalha –facilitando a ocorrência de erros.” Mas a precisão com a qual os relatos

pintam a guerra é sempre ressaltada pelas publicações, como argumento máximo

usado na publicação dos documentos.

Em certa ocasião37, a “Der Spiegel” chama a Guerra do Iraque de “guerra

burra” e levanta a questão: “Valeu a pena?”. A revista defende que a invasão norte-

americana livrou a população iraquiana de um grande tirano, mas destriu centenas

de vidas, como pode ser visto nos documentos liberados pelo Wikileaks: “Para fazer

essa guerra, os Estados Unidos violaram leis internacionais, denegriram aliados e

zombaram as Nações Unidas”, diz a publicação.

Assim como o “Guardian” e o “New York Times”, a revista alemã tenta trazer

os números dos documentos para a realidade do leitor. Montou-se quase que uma

narrativa de um dia de guerra, como fizeram as duas outras publicações -”É um dia

típico de trabalho [para o soldado norte-americano]. A rotina diária brutal desta

guerra.” O dia (23 de novembro de 2006) teve ao menos 300 mortos e 300 feridos.

Ganha destaque a grande quantidade de bombas improvisadas e caseiras nos

combates do Iraque.

Em um texto inusitado38, a “Der Spiegel” aproxima os interesse de duas

forças que, à aquela altura, eram consideradas de lados opostos. A revista defende

que o exército norte-americano e o Wikileaks têm uma visão parecida: ambos

consideram os documentos como uma olhada para dentro da guerra –”a visão mais

precisa, detalhada e compreensível em relação à verdade sanguínea, já mostrada.”

Os problemas internos do Wikileaks voltam a aparecer. “Os oficiais de

imigração suecos negaram o pedido de Assange para visto de residência e trabalho

no país. Isso significa que ele não pode se registrar como um jornalista do Wikileaks

37 Ver http://www.spiegel.de/international/world/0,1518,725090,00.html38 Ver http://www.spiegel.de/international/world/0,1518,724855,00.html

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27

lá, como ele pretendia fazer para fazer uso das leis locais [...] Além disso, vários

trabalhadores cortaram laços com o fundador e deixaram a organização.”

2.2.3 Documentos diplomáticosO Wikileaks já havia vazado documentos que deram gosto, cheiro e textura

a duas grandes guerras quando ocorreu o vazamento que mais impactou o mundo,

diplomaticamente falando. Não se tratava de dados importantes sobre uma guerra,

eram documentos que descreviam –às vezes, com crueldade– o mundo, pelos

olhos dos diplomatas norte-americanos.

Foram cerca de 250 mil papéis diplomáticos do Departamento de Estado dos

Estados Unidos. Neles, é possível ver como os embaixadores de cada país

descreviam os líderes locais e os ecos da economia e cultura norte-americana no

resto do mundo.

Os documentos foram revelados no final de novembro de 2010 e faziam

referência à troca de informações de mais de 270 embaixadas norte-americanas

espalhadas pelo mundo. Os registros começam em 1966 e tratam de política

externa, assuntos internos de cada governo, direitos humanos, condições

econômicas e do Conselho de segurança da ONU, entre outros assuntos.

De acordo com a “Folha de S. Paulo”, o Iraque é o país mais citado, com

15.354 telegramas. Essa leva de documentos teve mais impacto em terras

brasileiras, já que existiam correspondências da embaixada brasileira. A jornalista

independente Natália Viana foi chamada pela organização para catalogar os

documentos e decidir qual seria o seu melhor destino no Brasil. No país, ”Folha” e

“O Globo” passaram a fazer parte do grupo de publicações que fecharam parcerias

com o Wikileaks. O suspeito do vazamento foi, mais uma vez, o soldado Bradley

Manning, 22.

Esse vazamento também teve uma reação mais forte dos Estados Unidos e

do Reino Unido.

Segundo artigo publicado pelo próprio Assange na “Folha” o Reino Unido

emitiu uma notificação para a imprensa chamada DA-Notice. Uma espécie de

“pedido oficial” para que todo o material sobre o tema passasse por uma

“verificação” antes de ser publicado.

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28

O governo dos Estados Unidos foi ainda mais duro. Depois de quatro dias do

início do vazamento, a Amazon Web Services, que mantinha o Wikileaks, foi

pressionada a interromper o serviço de hospedagem ao site. O site da organização

chegou a ficar fora do ar por cerca de cinco horas, mas as operações foram

transferidas para outros países.

Foi neste momento que surgiram os mirrors, espécie de sites-espelho com o

mesmo conteúdo do site “original” da organização espalhados por diversos

servidores no mundo. A estratégia foi: se um cair, outros estarão de pé.

Foi também depois de alguns dias do vazamento que a Interpol emitiu um

alerta internacional informando que Assange estava em sua lista de mais

procurados. Não pelo vazamento em si, mas pela suspeita de ter abusado de duas

mulheres na Suécia –caso que, afirma-se, estava arquivado antes dos vazamentos.

Neste caso, a

maneira como

ocorreu o

vazamento foi

tão notícia

quanto o

conteúdo dos

documentos

vazados –isso já

ocorreu nos

vazamentos

anteriores, mas

aqui ganhou maiores proporções. Ficou famoso o suposto CD da Lady Gaga que

teria sido usado para fazer o transporte dos documentos. “Eu [o suposto autor do

vazamento, o soldado Bradley Manning] entrava na sala com um CD regravável com

alguma etiqueta como ‘Lady Gaga’, apagava as músicas e gravava os arquivos por

cima. Ninguém suspeitava”, teria dito o soldado a um amigo hacker, segundo

publicou o “Guardian”.

“A Hilary Clinton e seus diplomatas ao redor do mundo terão um ataque do

coração quando acordarem um dia pela manhã e descobrirem que todo o repositório

RECORRÊNCIA DAS PALAVRAS EM ALGUNS DOS TELEGRAMAS; GRÁFICO MONTADO PELO "GUARDIAN"

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29

de política externa está disponível ao público… Em todos os lugares que existe um

posto norte-americano, existe um escândalo a ser revelado. Uma anarquia mundial

no formato CSV [formato de arquivos em que foram vazados os documentos]… É

lindo, e assutador”, teria dito Manning ao homem que o denúnciou, segundo o

“Guardian”.

No texto “Como 350 mil telegramas das embaixadas dos Estados Unidos

foram vazados”39, o jornal conta como recebeu os documentos: “Um cartão de

memória de aparência inofensiva chegou às mãos de um repórter do ‘Guardian’ há

uns meses. O dispositivo é tão pequeno, que pode ser pendurado em um chaveiro,

mas seu conteúdo irá enviar ondas de choque pelas embaixadas do mundo.”

Mais uma vez, o jornal britânico apostou na visualização gráfica dos dados

vazados por meio do Wikileaks. Montou-se um mapa por meio do qual é possível

pesquisar os telegramas a partir dos países aos quais se faz referência:

MAPA MONTADO PELO "GUARDIAN"40

Já o “New York Times” listou as principais revelações trazidas pelo

vazamento41. Entre eles:

39 Ver http://www.guardian.co.uk/world/2010/nov/28/how-us-embassy-cables-leaked40 Ver http://www.guardian.co.uk/world/interactive/2010/nov/28/us-embassy-cables-wikileaks41 Ver http://www.nytimes.com/2010/11/29/world/29cables.html

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30

– O fato de Estados Unidos e Coreia do Sul já terem colocado em pauta a

questão de uma Coreia unificada, caso o regime do norte entre em colapso.

Também se comentou sobre o medo da China de “viver com uma Coreia

unificada”.

– Uma espécie de “barganha” para que outros países aceitem prisioneiros

de Guantánamo. Teriam sido oferecidos um encontro com Obama e uma boa

quantia em dinheiro aos países, para que aceitassem os detentos.

– Um contato chinês teria dito à embaixada chinesa que o governo

comandou o ataque aos sistemas do Google

– Quase uma década depois de 11 de setembro, o terrorismo ainda reina

nas relações dos Estados Unidos com o resto do mundo

Em seu texto, o “New York Times” deixa claro que consultou o Departamento

de Estado dos Estados Unidos na hora da publicação. Posicionamento não tolerado

por Assange, e que azedou as relações entre a organização e o jornal norte-

americano.

No geral, a maioria dos jornais revela que a importância dos telegramas é

dar detalhes sobre os fatos, nem sempre revelando-os. “Mesmo os eventos que já

são conhecidos ganham ótima quantidade de detalhes com o vazamento”, conta o

jornal norte-americano.

Outro ponto interessante revelado pelos telegramas, segundo o “Times”, é

que os Estados Unidos expandiram os papéis de seus diplomatas na direção da

espionagem.

“Reveladas nos documentos do Departamento de Estado, as ordens,

parecem misturar os limites entre diplomatas e espiões”, diz o jornal. Entre as

informações que os diplomatas deveriam captar nos países estavam “números de

cartão de crédito”, além de “outras informações biograficamente relevantes”. Um

telegrama assinado pela própria Hillary Clinton solicitava que os diplomatas

captassem “informações biográficas e biométricas dos diplomatas da Coreia do

Norte”.

O jornal publica a resposta do governo dizendo que “os nossos [dos Estados

Unidos] diplomatas são só isso, diplomatas”.

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31

No caso dos papéis diplomáticos, o editorial do jornal norte-americano42 se

diferenciou bastante dos que haviam sido publicados diante dos vazamentos

anteriores. Aqui, já sem contato direto com o Wikileaks, o jornal conta que recebeu o

material de uma fonte que “insistiu em se manter anônima”. Apesar disso, o “New

York Times” deixa claro que o material foi obtido originalmente pelo Wikileaks.

Repetiu-se um posicionamento-padrão dos jornais neste caso: todos eles

buscam deixar claro que excluíram nomes e referências que podem colocar pessoas

em risco. O jornal chegou a alfinetar o Wikileaks: “Os textos editados do ‘Times’

foram compartilhados com outras organizações de notícia e enviadas ao Wikileaks,

na esperança de que eles fizessem uma edição similar dos documentos antes de

publicá-los online”, diz o editorial.

O “New York Times” também conta que enviou os telegramas editados para

a administração Obama para ver se eles achavam que havia sobrado alguma

informação que colocasse pessoas em risco. “O ‘Times’ concordou com algumas

[das mudanças propostas], mas não todas”, relata o jornal.

Para o jornal, a maior razão para a publicação dos telegramas é que eles

mostram “a história real de como o governo toma suas maiores decisões”.

A “Der Spiegel” definiu o vazamento dos telegramas como “nada menos que

um desastre político”, já que muitos dos documentos questionavam o

posicionamento da chanceler Angela Merkel, comandante do país. “Nos olhos da

diplomacia norte-americana, cada ator é rapidamente categorizado como um amigo

ou um adversário”, diz a revista43.

O texto continua: “Nunca antes na história, uma superpotência perdeu

controle de tanta quantidade de informações tão sensíveis –dados que ajudam a

pintar um quadro da fundação sobre a qual a política externa dos Estados Unidos é

construída.”

A revista traz um caso em que um popular político não tem vergonha de

criticar severamente um colega a um membro da diplomacia norte-americana. A

questão de traz o texto para mais perto do povo alemão está presente em toda a

cobertura da “Der Spiegel”. O texto também mostra que a revista aceitou mudanças

propostas pelo Departamento de Estado norte-americano.

42 Ver http://www.nytimes.com/2010/11/29/world/29editornote.html43 Ver http://www.spiegel.de/international/world/0,1518,731580,00.html

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32

A “Der Spiegel” dedica uma boa parte do seu texto para falar do gosto dos

diplomatas norte-americanos em publicar “fofocas” dos países onde estavam

situados. “A maioria dos documentos foi enviada com uma certeza de que eles não

seriam tornados publicados ao menos por 25 anos. Isso pode explicar porque os

embaixadores e os emissários de Washington estavam tão dispostos a reportar

fofocas ao Departamento de Estado”, diz a reportagem. É contado um caso de um

telegrama sobre a mulher do líder do Azerbaijão que teria feito tantas cirurgias

plásticas que estaria parecendo uma de suas filhas, mas que não conseguiria mexer

seu rosto direito.

A crítica dos documentos a alguns líderes, em particular, fez com que a

revista compilasse a reação de líderes como o primeiro-ministro italiano Silvio

Berlusconi, que é descreditado como líder e ganha contornos de “festeiro” nos

telegramas. Segundo os informantes, o líder teria dado uma “boa risada” com tudo o

que foi publicado. Ângela Merkel também teria ganhado adjetivos nos documentos:

“raramente criativa”.

À esta altura, a classificação da organização formada pelo Wikileaks

também se torna relevante, principalmente para o governo dos Estados Unidos. Um

republicano do Congresso norte-americano teria pedido que a administração de

Obama determinasse se o Wikileaks pode ser considerado como uma “organização

terrorista”, como relata a revista.

No dia 6 de dezembro, a “Folha de S. Paulo” noticiou que o governo dos

Estados Unidos haviam começado a remanejar o seu pessoal diplomático, depois do

constrangimento dos vazamentos. No mesmo dia, o Wikileaks divulgou uma lista

secreta do governo norte-americano com cerca de 300 estruturas, em vários países,

consideradas estratégicas e que devem ser protegidas de atentados terroristas –são

gasodutos, linhas de comunicação, depósitos minerais, indústrias e fábricas de

equipamento militar.

Dois dias depois, a organização anônima de hackers Annonymous instaurou

a Operação Payback, atacando virtualmente as empresas que retaliassem o

Wikileaks.

2.2.4 Guantánamo

Page 34: Projeto Wikileaks: Uma análise dos vazamentos que questionaram os meios de se fazer jornalismo

33

No final de abril, um novo vazamento trouxe luz aos eventos que cercam à

prisão de Guantánamo, criada pelos Estados Unidos em Cuba no ano de 2002.

Dessa vez, houve uma lista de parceiros: “'Washington Post', dos EUA, o 'El Pais',

da Espanha, o 'Telegraph', do Reino Unido, a revista 'Der Spiegel', da Alemanha, o

francês 'Le Monde', o 'Aftonbladet', da Suécia e o italiano ''La Repubblica”, segundo

a agência de jornalismo investigativo Publica44.

São 779 arquivos referentes ao período entre 2002 e 2008. Segundo a

Publica, são memorandos que descrevem informações sobre os presos –estados de

saúde, graus de periculosidade, fotos e dados sobre os que foram detidos por

engano.

A própria Publica, que tem em sua organização Natália Viana, que tem

contato direto com Assange, conta o imbróglio da publicação nos jornais: “Apesar de

não estarem entre os parceiros oficiais, os jornais ‘New York Times’, dos Estados

Unidos, e ‘Guardian’, do Reino Unido, publicaram ontem reportagens baseadas nos

mesmos documentos secretos, entregues por uma outra fonte, que preferiu

permanecer anônima. Segundo a Pública apurou, por causa disso, o vazamento foi

adiantado porque os dois jornais pretendiam ‘furar’ o Wikileaks.”

O “New York Times” trouxe um texto com o título “Arquivos secretos trazem

nova luz aos presos [de Guantánamo]”45, e o jornal obteve os papéis por outra

“fonte”. O “Times” fala especialmente sobre os perfis traçados para alguns dos

presos, como Khalid Shaikh Mohammed, a quem o jornal atribui o planejamento dos

ataques de 11 de setembro.

“Os dossiês também mostram os esforços de inteligência nas zonas de

guerra que levaram à detenção de inocentes durante anos, em caso de erro de

identidade ou simples azar”, diz o “New York Times”. O jornal também traz o

posicionamento do governo norte-americano que, como nos outros casos, se diz

contra a publicação dos documentos. O governo tenta novamente se desassociar do

posicionamento da gestão anterior (a administração Bush): “Eles disseram que os

documentos publicados pelo ‘Times’ não representam a visão atual do governo para

os presos de Guantánamo.

44 Ver http://apublica.org45 Ver http://www.nytimes.com/2011/04/25/world/guantanamo-files-lives-in-an-american-limbo.html?_r=1

Page 35: Projeto Wikileaks: Uma análise dos vazamentos que questionaram os meios de se fazer jornalismo

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A publicação norte-americana também trouxe um acompanhamento

interessante da história: mesmo após os vazamentos, os advogados dos prisioneiros

não poderiam ter acesso legítimo aos documentos, diz o “Times”46. O jornal também

montou um infográfico interativo com os dados obtidos:

INFOGRÁFICO DO "NEW YORK TIMES"47

O “Guardian” optou pelo destaque aos inocentes que sofreram com a

“controversa” prisão de Guantánamo. “Os arquivos mostram um sistema

frequentemente mais focado em extrair inteligência do que conter terroristas ou

inimigos. Entre os presos que se provaram inocentes está um afegão de 89 anos e

um menino de 14″, diz o jornal48.

46 Ver http://www.nytimes.com/2011/04/27/world/guantanamo-files-detainees-lawyers-restricted-leaked-documents.html?_r=1&scp=5&sq=wikileaks%20guantanamo&st=cse

47 Ver http://projects.nytimes.com/guantanamo?ref=world48 Ver http://www.guardian.co.uk/world/2011/apr/25/guantanamo-files-lift-lid-prison

Page 36: Projeto Wikileaks: Uma análise dos vazamentos que questionaram os meios de se fazer jornalismo

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A publicação também fala de como os britânicos foram afetados pela prisão:

“Alguns britânicos também foram detidos por anos [em Guantánamo], mesmo com

as autoridades norte-americanas conscientes de que eles não eram membros do

Taleban ou da Al Qaeda. Um britânico, Jamal al-Harith, foi rendido apenas por ter

sido detido em uma prisão do Taleban e ter supostamente conhecimento sobre as

técnicas de interrogação deles.”

A revista “Der Spiegel” trouxe a realidade de Guantánamo para mais perto

de seus leitores contando a história de um alemão que, mesmo inocente, ficou preso

por quase cinco anos49: “Os americanos construíram Guantánamo para segurar os

terroristas mais perigosos, mas os arquivos secretos mostram que suas informações

em suspeitos era frequentemente baseada em rumores e suspeitas. O arquivo sobre

o prisioneiro Murat Kurnaz, nascido em Bremen (Alemanha), mostra as histórias de

um homem inocente preso por quase cinco anos.”

2.2.5 Bases de dadosO Wikileaks exacerbou uma tendência do jornalismo digital, a reportagem

que trabalha com bancos de dados. Trata-se, segundo definição da professora

Suzana Barbosa, da terceira fase do jornalismo digital: “A caracterização desse

estágio pressupõe base tecnológica ampliada, acesso expandido por meio de

conexões banda larga, proliferação de plataformas móveis, redação descentralizada

e adoção de sistemas que permitam a participação do usuário”, diz Suzana, em seu

“Jornalismo Digital e base de dados: mapeando conceitos e funcionalidades”.

É uma tendência vista desde o ano de 2005 e que possibilita criações de

infográficos como os vistos nos exemplos citados acima. São produtos

“originalmente criados para veiculação no ciberespaço”, segundo Barbosa. É um

novo tipo de organização de informação. As bases de dados, aliadas à tecnologia,

permitem uma nova estruturação das informações, permitem que vejamos a

quantidade e localização dos mortos na Guerra do Iraque, as informações

individuais e coletivas dos presos de Guantánamo, etc.

Barbosa também afirma que a bases de dados trazem à forma de

apresentação das notícias uma certa flexibilidade. As bases de dados podem

49 Ver http://www.spiegel.de/international/germany/0,1518,759343,00.html

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36

responder às clássicas perguntas do jornalismo –o que? quando? onde? por que?–

de uma maneira diferente.

Outra função importante atribuída às bases de dados no jornalismo digital é

a da memória e do arquivamento dos conteúdos. Como Barbosa nos mostra, as

notícias publicadas online vão ganhando significado à medida em que são aliadas

ao texto inicial entrevistas e novas apurações. Apesar disso, devido ao contexto

multitemporal da internet, não é possível afirmar que o leitor irá seguir uma linha

determinada para adquirir conhecimento sobre determinado assunto. Está ai a

importância da base de dados, que tem em sua matriz a vocação de organizar a

“história” de um determinado assunto.

As bases de dados digitais também são vistas como meios de agregar

significado à uma determinada notícia. “As correlações entre as notícias inseridas

numa base de dados, considerando a classificação por meio de diversos campos,

bem como as possibilidades combinatórias entre elas permitirá produzir, extrair

novas informações, novos dados, que vão gerar mais conhecimento, mais contexto,

sobre os eventos”, diz o texto de Barbosa.

Page 38: Projeto Wikileaks: Uma análise dos vazamentos que questionaram os meios de se fazer jornalismo

37

3. A ÉTICA

Os editores dos jornais que fecharam parceria com um tal de Julian Assange

no meio 2009 não sabiam o que estava por vir. Eles teriam que se posicionar em

diversos embates éticos, ligados à publicação dos documentos e às atitudes do

próprio Assange. Como tratariam Assange, uma fonte ou uma organização parceira?

Como decidiram que informações seriam retiradas de cada documento? Quais

documentos deveriam mesmo continuar secretos?

Antes de se posicionar, é preciso definir a palavra base de toda a discussão:

ética. Uma boa definição foi colocada pela professora Mayra Rodrigues Gomes em

seu livro “Ética e jornalismo: uma cartografia de valores”. Para ela, ética –ou

“filosofia moral”– é o “nome dado à ciência ou reflexão sobre os costumes, os

valores morais e seus fundamentos”. Cabe, então, dizer que a ética não é algo

definitivo, ou um posicionamento padrão, e sim uma análise, algo em constante

estudo. Talvez por isso, a publicação dos documentos não tenha sido fácil.

Antes de tudo porque, segundo os editores dos grandes jornais, o

australiano Julian Assange complicou a vida deles. Nesse caso, a relacionamento

com a fonte foi um problema extra. Quando o “New York Times” resolveu adiantar os

documentos para o governo norte-americano e escrever um perfil pouco simpático à

Assange, o principal representante da entidade não perdoou e cortou a entrega de

vazamentos ao jornal norte-americano. Ele não queria ser tratado como uma

“simples” fonte.

3.1 A fonte“O projeto envolvia uma fonte que se esquivava, era manipuladora e volátil –

além de abertamente hostil ao ‘Guardian’ e ao ‘Times’”. Foi assim que Bill Keller,

editor-executivo do “New York Times”, descreveu Julian Assange um texto

dedicado50 a tratar do relacionamento do jornal com o porta-voz do Wikileaks.

Ele conta que o jornalista especializado em documentos militares Eric

Schmitt foi o primeiro membro do jornal a entrar em contato com Assange. Já na

primeira ligação para a redação, ele teria tido que era preciso manter uma distância

50 Ver http://www.nytimes.com/2011/01/30/magazine/30Wikileaks-t.html?_r=1

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em relação à Assange. “Nós consideramos o Assange como uma fonte, e não um

parceiro, mas ele tinha sua própria agenda”, diz Keller.

Assange é descrito como um excêntrico, abertamente “desdenhoso” ao

governo norte-americano e com uma leve síndrome de perseguição. “Uma fonte que

age de como um fugitivo, mudando de e-mail e celulares frequentemente”, diz o

editor do “Times”.

A fonte também fazia exigências. Segundo Keller, a condição para o acesso

aos documentos era que nada fosse publicado antes da data em que o Wikileaks

planejava tornar os documentos públicos pela internet. Mas como esse tipo de

embargo é uma prática jornalística comum foi aceito, diz o jornalista.

Já na publicação dos documentos relacionados à Guerra do Iraque, a

relação com Assange torno-se “hostil”, de acordo com o texto do “Times”. O porta-

voz estaria bravo com o fato de o ‘New York Times’ não ter colocado links para o site

da organização em sua coberta –”nós ficamos com medo de que os documentos

publicados lá iam trazer nomes de informantes de baixo-nível e torná-los alvos do

Taleban”, justifica Keller.

Assange também teria ficado bravo com o perfil feito pelo jornal sobre o

soldado Bradley Manning, principal suspeito dos vazamentos. Mas a gota d’água

para a relação entre o jornal e o porta-voz foi um perfil feito sobre o próprio Assange,

publicado em outubro de 2010, segundo relata o jornalista. “O artigo trazia fraturas

de dentro do Wikileaks, atribuídas ao gerenciamento de Assange.” Para Keller,

tornar-se uma celebridade transformou Assange.

O posicionamento final do editor do “Times” de Nova York é que o

tratamento dado à Assange foi como de uma fonte, apesar de não ser uma “pura e

simples fonte”. “A relação com uma fonte é simples: você não precisa,

necessariamente, defender a sua agenda, ecoar a sua retórica, aplaudir seus

métodos ou, mais importante, permitir que eles moldem ou censurem o seu

jornalismo”, relata o editor.

O relacionamento do “Guardian” com Assange também azedou com o

tempo. O que fez Assange querer distância do jornal britânico foi a publicação de

documentos do processo contra ele que circula na Suécia, segundo diz o próprio

jornal. “O Assange decidiu que o ‘Guardian’ o estava perseguindo”, diz um texto de

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Ian Katz, do “Guardian”51.

O primeiro dilema do caso surgiu porque quem estava sendo encarado como

fonte queria ser mais do que um simples informante, dizem os editores. Assange

tinha suas exigências e seus objetivos com a publicação. A relação azedou quando

isso não foi respeitado.

“O próprio Assange tratou sua relação com os jornais como parceria, tanto

que estabeleceu uma série de regras. Isso é estranhíssimo, porque fontes jamais

deveriam ser parceiras”, opina Alec Duarte, que dá aulas na Fundação Armando

Álvares Penteado (a Faap) e mantém o Webmanário52. Para ele, o Wikileaks é uma

fonte – “um meio para se conseguir material potencialmente jornalístico, mas que,

sem o tratamento jornalístico, é muito próximo de lixo.”

A visão de Assange sobre o embate ficou bem clara em um painel realizado

na Berkeley University em abril53: “O governo dos Estados Unidos está dizendo que

qualquer forma de colaboração entre fonte e jornalistas investigativos é espionagem.

É por isso que o ‘New York Times’ está dizendo que eles não colaboraram conosco,

que somos apenas uma fonte. Mas a verdade é que foi uma colaboração”.

A jornalista Natalia Viana, que é responsável pela publicação dos

documentos do Wikileaks relacionados ao Brasil, defende que a aproximação

aconteceu dos jornais à Assange, e não o contrário. “Ele nunca tinha se relacionado

com a empresa”, diz. A estratégia de se aliar a vários veículos em diversos países foi

feita com o intuito de descentralizar as informações, segundo ela.

A relação entre repórteres e fontes é um assunto complicado, já que os

interesses dos dois lados devem ser pesados antes da decisão de levar a pauta

adianta. No caso do Wikileaks, os termos da relação fonte-repórter parecem não ter

ficado claros para as partes, desde o início, ou ter mudado de acordo com a

gravidade das publicações. Não é possível saber qual das duas opções se encaixa

melhor.

Uma relação de transparência em relação à fonte é defendida como um dos

princípios jornalísticos pelos autores do livro “Os elementos do jornalismo”.

51 Ver http://www.guardian.co.uk/media/2011/feb/05/wikileaks-collaboration-distrust-legal-threats52 Ver http://webmanario.wordpress.com/ 53 Ver http://www.pbs.org/mediashift/2011/04/wikileaks-julian-assange-ny-times-feud-at-logan-

symposium099.html?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+pbs%2Fmediashift-blog+%28mediashift-blog%29&utm_content=Google+Reader

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“Obviamente, eles [os repórteres] não devem mentir nem enganar suas fontes no

processo de tentar contar a verdade ao público. (…) Embora à primeira vista a

sinceridade possa atrapalhar o trabalho dos repórteres, na maioria dos casos isso

não acontece”, diz o livro.

No caso do Wikileaks, ficou para o público a imagem de que houve uma

confusão entre o que Assange e o que os jornais queriam. O “Guardian” não queria

deixar de publicar informações sobre o processo de Assange, só porque havia sido

firmado um relacionamento entre o jornal e o porta-voz, por exemplo, segundo

relatou o jornal.

Já o “New York Times” pareceu não querer ter sua imagem associada à de

Assange e à do Wikileaks, mas também não pretendia perder a chance de publicar o

que os documentos vazados revelavam. Esse distanciamento pode ser atribuído à

várias possibilidades, como a chance de Assange e o Wikileaks poderem ser

julgados por crimes graves por causa do vazamento.

Fica a imagem de que Assange achou que era casamento, mas os jornais

não deixaram claro que aquela relação era só um caso.

Um diagnóstico mais apurado do que ocorreu aqui pode ser feito a partir da

teoria de Paul Grice, explicitava em um artigo de Nilson Lage, professor da

Universidade Federal de Santa Catarina. Segundo ele, Grice ensina que “toda

conversação depende do que um dos envolvidos imagina que o outro pretende. Se

ambos admitem boa fé, procurarão atender às máximas e esperarão que o

interlocutor faça o mesmo. Nenhum deles será: lacônico, deliberadamente falso,

excessivamente minucioso ou ambíguo.”

De início, relatos dos repórteres do “New York Times” ao editor Bill Keller

davam a entender que Assange não via o “Guardian” e o “New York Times” com

bons olhos. “O resultado de uma consulta à fonte depende, assim, basicamente, da

intenção que essa fonte atribui ao repórter. Se acha que o repórter é uma ameaça,

será parcimoniosa nas respostas; se vê na conversa uma oportunidade de defender

seus direitos, enfatizará reivindicações e reclamações”, diz Lage. Como as intenções

vistas por Assange nos jornais já eram, de início, questionáveis, do seu ponto de

vista, parece lógico que a relação tenha degringolado como ocorreu.

No último vazamento feito por intermédio do Wikileaks no final de abril,

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apenas a revista alemã “Der Spiegel” era parceira que resistia ao lado da

organização desde o vazamento inicial. Agora, o “New York Times” foi substituído

pelo “Washington Post” e o “Guardian” deu lugar ao “Telegraph”. Também fecharam

parceria com o Wikileaks, o “El País”, o “Le Monde”, o “Aftonbladet” e “La

Repubblica”.

3.2 Organização jornalística?A decisão de considerar, ou não, o Wikileaks como uma organização

jornalística pode ser um fator de influência no julgamento da maneira de se lidar com

uma fonte. Uma organização jornalística, talvez, poderia ter se tornado mais que

uma fonte. Apesar disso, julgar o que o Wikileaks faz como jornalismo não parece

ser consenso dos especialistas.

“Eles não são uma organização jornalística. Eles são uma espécie de grupo

de defesa. Você pode chamá-los de grupo de vigilância”, disse Bill Keller, em debate

promovido pela George Washington University54.

Alec Duarte concorda que não se trata de jornalismo. “Simplesmente vazar

documentos, sem tratamento editorial, não significa absolutamente nada, além de

vazar. Nem sequer estamos diante de uma revolução: muito antes da web (a internet

já existia), o Garganta Profunda entregou o presidente Nixon”, conta. O caso dos

Papéis do Pentágono –o vazamento de milhares de páginas secretas sobre a

Guerra do Vietnã– também pode ser citado como um caso parecido.

Para Holger Stark, do “Der Spiegel”, o Wikileaks “se aproximou” cada vez

mais de se tornar uma organização jornalística ao longo dos vazamentos. “Eles

publicavam tudo o que encontravam na internet. No verão passado, ele queria

postar todos os documentos da Guerra do Afeganistão online, mas nós o

convencemos de que seria irresponsável. Hoje, o Wikileaks é muito mais uma

organização jornalística do que era antes”, defendeu o repórter, em um painel de

discussão sobre o assunto55. Stark ainda trabalha com Assange, ao contrário dos

repórteres do “Guardian” e do “New York Times”.

Natália Viana, colaboradora do Wikileaks, conta uma história diferente vista

54 Ver http://www.gwu.edu/~kalb/2011/All_The_News/full.html55 Ver http://www.pbs.org/mediashift/2011/04/wikileaks-julian-assange-ny-times-feud-at-logan-

symposium099.html?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+pbs%2Fmediashift-blog+%28mediashift-blog%29&utm_content=Google+Reader

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de dentro. “Dizer que o Assange não é um jornalista é um absurdo”, diz. Segundo

ela, existe uma equipe multidisciplinar e colaborativa dentro do Wikileaks que apura

a veracidade dos documentos e faz edições para que os vazamentos não façam

vítimas inocentes. “O que ocorreu com o primeiro vazamento sobre a Guerra do

Afeganistão [os documentos foram publicados sem censura nos nomes de quem

poderia correr risco de vida] foi um erro. “Todos os documentos têm que ser

revisados e são retirados os nomes das pessoas que podem correr risco. Todos os

nossos parceiros são obrigados a fazer isso por contrato”, revela.

Para ela, trata-se de uma organização jornalística com uma lógica diferente.

“É a lógica da colaboração, que representa muito o momento que estamos vivendo.

Estamos espalhados pelo mundo e temos especialidades diferentes”, explica.

O professor de jornalismo da New York University, Jay Rosen, vai mais

longe. Ele diz que o Wikileaks é, na verdade, uma organização de notícias sem

Estado –uma associação que não está submetida às leis e cultura de uma

determinada nação. “O Wikileaks pertence à internet. Ele não obedece às leis de

nenhum pais”, conta. Para ele, trata-se de um tipo de organização jamais visto

antes. “É um conceito que fica entre a fonte e a organização de mídia tradicional”.

A confusão é justificada, já que a proposta do Wikileaks foge do que

consideramos como uma “redação jornalística” atualmente. Mas, mesmo antes de se

associar a grandes publicações, o Wikileaks já trazia algumas das características de

uma organização jornalística listadas no livro “Os elementos do jornalismo”, de Bill

Kovach e Tom Rosentiel. São elas:

– Construir um sentido de comunidade, de cidadania e de democracia

– Oferecer voz aos esquecidos

– Contar a verdade, para que as pessoas possam ter informações

suficiente para terem sua independência

– Dar ao público o que ele precisa para encontrar por si próprio a verdade,

a longo prazo

Enquanto vemos essas características claras no ato de publicação de

documentos secretos vazados por meio do site, o erro ocorrido na publicação dos

documentos não censurados da Guerra do Afeganistão pode prejudicar a tese de

que o Wikileaks é uma organização jornalística, já que um jornalista é mais do que

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um vazador de informações. ”O jornalista ajuda o público a colocar em ordem as

coisas. Isso não significa simplesmente acrescentar interpretação ou análise a uma

reportagem. A primeira tarefa dessa mistura de jornalista e ‘explicador’ é checar se a

informação é confiável e ordená-la de forma que o leitor possa entendê-la.” Apesar

de se guiar por grandes preceitos jornalísticos, o Wikileaks em seu estágio primário

falhou em alguns aspectos.

Por outro lado, a organização tomou um passo á frente na questão do

acesso do público às informações, no ato de “dar ao público o que ele precisa para

encontrar por si próprio a verdade”, segundo diz o “Elementos do jornalismo”. E o

Wikileaks não errou novamente –não que se tenha notícia. Além disso, procurou os

jornais para ter mais mãos para analisar e editar os documentos.

3.3 A decisão de publicação: Público Vs. PrivadoTodos os jornais que decidiram publicar os documentos do Wikileaks

publicaram um longo editorial, explicando que pesaram os benefícios e malefícios da

publicação antes de tomar uma atitude. Mas aonde está o limite entre o bem e o mal

neste caso?

A ideia de bem comum é explicitada pela professora Mayra Rodrigues no

seu “Ética e jornalismo”: “Ora, o bem comum joga-se no jogo de interesses e de

forças entre o individual e coletivo, sob a compreensão de que se privilegiarmos um

pólo ou outro o equilíbrio da equação se desfaz.” Ela defende que o jornalismo

nasce como uma espécie de guardião do equilíbrio entre essas relações.

A questão da publicação do que é considerado de âmbito privado também é

explicada pela professora. “O âmbito privado só merece exploração e é sujeito a

julgamento público, sob o ponto de vista moral, quando justamente cruzar-se com

questões de interesse público.” É neste momento que documentos inicialmente

secretos podem ser considerados para a publicação pelos jornais: o privado interfere

no público.

No artigo em que Bill Keller, editor do “New York Times”, fala sobre seu

relacionamento com Assange, surgem diversos traços relacionados ao debate ético

sobre publicar documentos secretos. Segundo ele, a principal função do repórter que

teve o primeiro contato com Assange era descobrir se o material era genuíno e se

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era de “interesse público”. As possíveis questões privadas que estivessem exibidas

nos documentos também seriam retiradas, segundo ele. “Desde o início, nós

decidimos que nos nossos artigos ou documentos que publicássemos do arquivos

secretos não haveria material que pudesse colocar vidas em risco.”

Keller conta que foram deletados dos documentos nomes de civis, oficiais

locais, ativistas, acadêmicos e outros que tivessem tido contato com soldados norte-

americanos ou diplomatas. Também foram cortados detalhes que pudessem revelar

operações de inteligência ou militares que estivessem em andamento e material que

pudesse ajudar terroristas a construir armas.

Além disso, foi questionado o valor real dos documentos a serem

publicados: “O valor dos documentos –que acredito ser enorme– não é expôr

alguma política desconhecida, e sim dar textura, nuances e drama às histórias”,

justificou o editor.

Do outro lado, o jornalista Dean Baquet, condenou o jornal norte-americano

pela publicação. “O ‘New York Times’ se tornou alguém que possibilitou a publicação

de várias histórias baseadas nos documentos vazados pelo Wikileaks. E, quando eu

uso o verbo ‘possibilitar’, eu não estou usando de uma maneira positiva”, disse o

jornalista56.

A publicação dos documentos do Wikileaks também pode ser vista como

parte do processo da busca pela verdade, um dos grandes princípios a serem

seguidos pelos jornalistas segundo o “Os elementos do jornalismo”. “Nós podemos

buscar a exatidão, a equidade e a verdade, e essa busca nunca termina”, segundo

declaração de Patty Calhoun reproduzida no livro. Ao trazer nuances, texturas e

quantificar guerras e relações internacionais, os documentos acabam relatando algo

além do fato, a “verdade sobre o fato”, como diz o livro. “Já não é suficiente relatar o

fato de forma veraz.” De alguma maneira, a publicação dos vazamentos poderia

significar ir além.

O caso também pode ser visto como um reforço dos jornalistas enquanto

“monitores independentes do poder”, função dos repórteres defendida no “Os

elementos do jornalismo”. A cobertura oficial das guerras do Afeganistão e do Iraque,

56 Ver http://www.pbs.org/mediashift/2011/04/wikileaks-julian-assange-ny-times-feud-at-logan-symposium099.html?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+pbs%2Fmediashift-blog+%28mediashift-blog%29&utm_content=Google+Reader

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feita por meio de informações concedidas pelo governo, ganhou textura, cores e

nuance com os documentos. Práticas inaceitáveis feitas pelo governo foram

mostradas a todos, ganharam números, exemplos. A quantidade de mortes

registradas na cidade de Bagdá mostrou o impacto do conflito no país. A política

internacional, também normalmente feita a partir de relatos dos líderes e seus

representantes, ganhou contornos e constrangimentos inimagináveis sem o

vazamento de documentos.

3.4 O personagem criado para AssangeAo contar uma história, o jornalista frequentemente busca falar com

personagens envolvidos para tornar a reportagem mais viva e humana. Vez ou

outra, destaca-se uma pessoa que tenha dito envolvimento de destaque no evento e

conta-se sua história. “O jornalismo também ajuda a identificar os objetivos da

comunidade, seus heróis e vilões”, diz o livro “Os elementos do jornalismo”. Com

Julian Assange, a construção do herói/vilão atingiu um novo nível: ele virou

celebridade internacional, cultuado por uns, inimigo número um de outros.

Ele é descrito como um “geek” profissional, que procura uma tomada para

seu notebook imediatamente ao entrar em uma sala, antes mesmo de cumprimentar

os presentes –segundo a “Der Spiegel”57, única publicação do grupo inicial de jornais

que ainda tem uma relação amigável com Assange. Os outros jornais foram mais

cruéis, afinal foram horas e horas de reuniões entre Assange e os jornalistas para a

divisão do material vazado, dando aos repórteres a chance conviver por horas com

seu personagem principal –puderam cheirar, ouvir e observar atentos aos hábitos do

personagem principal da história.

O perfil feito pelo “New York Times” de Assange58 foi a gota final na

decadência da relação entre a organização e o jornal. Entre outros, ele é descrito

como um cara com estilo de vida de um fugitivo, que nem sempre tem dinheiro e se

tornou ditatorial com a fama que conseguiu após os vazamentos do Wikileaks.

“Ele exige que seus advogados usem caros celulares encriptados e troca o

seu próprio como outros trocam de camiseta. Ele entra em hotéis usando nomes

falsos, pinta o cabelo, dorme em sofás ou até mesmo no chão. Ele usa dinheiro ao

57 Ver http://www.spiegel.de/international/world/0,1518,708632,00.html58 Ver http://www.nytimes.com/2010/10/24/world/24assange.html

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invés de cartões de crédito, frequentemente emprestado dos amigos”, diz o texto. O

“New York Times” conta que o porta-voz muito mudou desde o ano de 2006, quando

o australiano usou anos de conhecimento de computação e seu QI quase genial

para criar o Wikileaks.

O jornal descreve a infância de Assange como “perturbada”: “[Sua infância]

na Austrália como um desajustado social que quase foi preso pela condenação por

25 acusações de invasão de computadores em 1995.” Depois dos grandes

vazamentos das guerras do Afeganistão e do Iraque, muitos dos colegas de

organização resolveram deixar Assange. Um dos motivos da ruptura foi o fato de

Assange ter publicado parte dos documentos da guerra do Afeganistão sem editar

os nomes de pessoas que poderiam correr risco de vida com os relatórios tornados

públicos, segundo relataram os jornais.

Para o Wikileaks, Assange se diz “indispensável”, segundo o “New York

Times”. “Eu sou o coração e a alma dessa organização, sou seu fundador, seu

filósofo, seu porta-voz, seu organizador, seu financiador e todo o resto”, teria dito

Assange, de acordo com o jornal.

O perfil criado pela revista “New Yorker”59 para o porta-voz do Wikileaks foi

mais completo, porém anterior ao grande vazamento de documentos das guerras do

Afeganistão e Iraque. O repórter acompanha Assange e sua equipe momentos antes

da publicação do vídeo que mostraria a morte dos funcionários da Reuters –também

teve voz a mãe do próprio Assange.

“Ele consegue se concentrar intensamente, mas ele é o tipo de pessoa que

esquece de reservar uma passagem de avião, ou reserva a passagem e esquece de

pagá-la, ou paga a passagem e esquece de ir ao aeroporto. As pessoas ao redor

dele parecem querer cuidar dele; eles se certificam de que ele está onde precisa

estar, e de que ele não deixou suas roupas na secadora antes de mudar de lugar

novamente. Em alguns momentos, ele pode parecer inocente diante da influência

que adquiriu”, diz o texto.

Fica a imagem de um Assange paranóico, que espalha o medo para os que

o cercam. “Eu fui para a Suíça e me hospedei na casa de uma garota que era a

editora de um jornal estrangeiro lá, e ela ficou tão paranoica que a CIA estava me

59 Ver http://www.newyorker.com/reporting/2010/06/07/100607fa_fact_khatchadourian?currentPage=1

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47

procurando que ela saiu de casa e me abandonou”, teria dito Assange, segundo a

“New Yorker”.

Para o professor Alec Duarte, faltou um equilíbrio na hora de criar um retrato

jornalístico para Assange. “Acho que no Brasil ele foi apresentado como um herói

injustiçado, enquanto no exterior, como um pária. Faltou, portanto, equilíbrio.

Certamente ele não é nem uma coisa nem outra”, explica.

Mas o fato pessoal que mais interessou a imprensa foi a investigação que

conecta o fundador do Wikileaks a acusações de estupro e abuso envolvendo duas

mulheres suecas. Assange nega, e diz que o sexo foi consensual. Formou-se um

escândalo.

Tornar a vida pessoal e privada de um personagem em notícia é um debate

tão complicado quanto o de decidir pela publicação de documentos secretos. É

preciso saber o que do âmbito privado interfere o suficiente na vida pública para que

mereça publicação, como ensina a professora Mayra em seu “Ética e jornalismo”. No

caso de Assange, mais uma vez, as complicações foram muitas. Ele próprio defende

que o processo vai além das acusações descritas pelas autoridades. Assange tenta

relacionar a vontade de vingança dos Estados Unidos pelo vazamento com a

abertura do processo e as tentativas de que ele seja extraditado para a Suécia.

Talvez, se o argumento público principal do caso fosse somente o abuso

sexual, a validação da publicação da notícia fosse questionável. Mas, como o

próprio acusado envolve as intenções de um país e se diz perseguido, o escândalo

ganha contornos de notícia revelante para o público geral, interessado no

posicionamento dos países diante de um homem que publicou segredos de Estado.

Assange pensa diferente. Em entrevista à revista brasileira “Trip”, ele

declarou que “transparência é para as empresas e não para as pessoas”.

Os cuidados de higiene do fundador do Wikileaks também são colocados à

prova em alguns textos, contando detalhes de Assange talvez desnecessários para

a cobertura. O repórter da “New Yorker” conta a história de uma repórter que surgiu

no centro de operações do grupo com uma camiseta para que Assange trocasse de

roupa. “Você precisa se trocar”, teria dito ela. O porta-voz respondeu colocando a

camiseta de lado e continuando a trabalhar, segundo o texto. O próprio editor do

“New York Times”, que se tornou inimigo público de Assange, chegou a dizer que ele

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48

fedia como alguém que não toma banho há dias.

Aqui, o interesse público levado em conta na hora da publicação não se

torna tão claro. Talvez, a anedota pudesse dar ao leitor uma dimensão extra da

personalidade de Assange, mas a notícia não parece ter tanto valor para o bem

público.

3.5 O tratamento com o soldado ManningBradley Manning tem

apenas 23 anos, mas carrega

nas costas graves acusações:

ele é suspeito de vazar os

documentos das guerras do

Iraque e do Afeganistão, além

dos telegramas diplomáticos

para o Wikileaks. Teria sido ele

a fonte que acreditou que

poderia colocar o conteúdo na

caixa segura fornecida pelo

Wikileaks. Apesar disso, ele

também teria falado sobre o

vazamento para um colega, que

o teria denunciado.

Ele também ganhou perfis longos dos grandes jornais. O “New York Times” o

descreve60 como um menino que sofreu bullying na infância por ser gay e geek ainda

em agosto de 2010. O menino teria entrado no exército em 2007 onde convivia com

a política “não pergunte, não diga”, relacionado aos gays que não podem se revelar

dentro do exército norte-americano. Ele é descrito como um homem problemático,

apenas tentando encontrar alguma forma de aceitação.

“Na escola, Bradley Manning era claramente diferente da maioria dos seus

colegas. Ele preferia hackear jogos de computador, ao invés de jogá-los, dizem seus

antigos vizinhos”, diz o “New York Times”. O soldado é descrito como bastante

60 Ver http://www.nytimes.com/2010/08/09/us/09manning.html

BRADLEY MANNING

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49

combativo quando o assunto era religião. O jornal conta que ele se recusava a fazer

deveres de casa relacionados ao assunto. A frase “eu não me importaria de ser

sentenciado à prisão perpétua ou ser executado” também é atribuída a ele.

O jornal também publicou um editorial sobre o caso de Manning, meses

depois de ele ter sido preso e depois das denúncias de que o soldado seria vítima

de maus tratos. Em um texto publicado em março de 2011, o “New York Times” diz:

“O exército têm tratado dele com abusos, de um jeito que nos traz memórias

assustadoras de como a administração Bush ameaçava suspeitos de terrorismo.”

No final de maio, Julian Assange descreveu a cobertura midiática sobre o

caso de Manning como “apavorante”. Em entrevista ao Huffington Post61, ele disse:

“Têm surgido alguns jornalistas bons, que estão começando a ir além disso. Eu vejo

que o ‘Washington Post’ tem melhorado sua cobertura. O Glenn Greenwald, do

Salon, sempre discutiu esse assunto, lidando com ele de um jeito compreensivo.”

Manning ficou na prisão de Quantico por meses e e foi transferido para Fort

Leavenworth, no Estado norte-americano do Kansas. O Pentágono alega que agora

ele não está mais em uma célula solitária. O tratamento que ele estava recebendo

anteriormente foi condenado por diversas entidades ligadas aos direitos humanos

incluindo a Anistia Internacional.

Para o professor Alec Duarte, a história de Manning foi subvalorizada.

“Colocou-se Assange tão à frente que até hoje nem sequer sabemos realmente qual

o real tamanho da ligação de Manning com o caso.”

Hoje, as pessoas que apoiam Manning mantém o

www.bradleymanning.org, um site que ajuda quem quiser dar apoio ao caso do

soldado.

61 Ver http://www.huffingtonpost.com/2011/05/25/wikileaks-julian-assange-bradley-manning_n_866980.html

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50

4. O PODER

A ideia inicial da organização Wikileaks era a seguinte: as pessoas poderiam

vazar documentos secretos por meio de uma espécie de caixa preta em que o

remetente não poderia ser identificado. Os dados seriam analisados por

especialistas da organização que editariam seu conteúdo, e decidiriam se a

publicação valeria a pena. Os documentos seriam então disponibilizados na web.

Seria uma espécie de banco de dados de documentos, algo essencialmente

colaborativo. Feito nos moldes de algo que nasce nos porões da internet.

Mas, diante de um vazamento da inteligência norte-americana de tamanho

sem precedentes, Julian Assange e seu grupo decidiram ir em outra direção. Em prol

de um maior impacto da mensagem que queriam passar, se associaram aos jornais.

Os documentos foram adiantados às publicações parceiras da organização, que

produziam notícias por meio de seus tradicionais padrões jornalísticos profissionais.

Assim, em uma decisão, a mensagem parece ter prevalecido sobre a vontade de

mudar o meio.

“Foi uma demonstração do prestígio da velha mídia. Julian Assange

procurou os jornalões para que o material recebido fosse decupado, editado e,

principalmente, publicado em fontes consideradas fidedignas. Sem mediação

profissional, o material distribuído pelo site faria pouco sentido”, conta o professor da

FAAP, Alec Duarte. “Os documentos secretos só repercutiram realmente na

sociedade quando divulgados pelo “New York Times”, “Guardian”, “El Pais”, “Le

Monde” e “Der Spiegel”, os veículos com os quais o Wikileaks estabeleceu acordos

iniciais”, explica Duarte. O professor da PUC-SP e da ECA-USP Caio Túlio Costa

concorda com a visão de Duarte.

Para entender a mudança de posicionamento de Assange, é importante

lembrar conceitos relacionados a fatos e relatos jornalísticos propostos pelo

professor Eugênio Bucci, em sua introdução ao livro de Mayra Rodrigues Gomes, o

“Poder no jornalismo”. O fato de Assange ter entregue os papeis a jornais

consagrados já é um fato/relato que merece atenção. Apesar de apostar totalmente

no poder dos usuários organizados em rede por meio da internet, Assange entregou

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51

os documentos à mídia tradicional, fato que já representa um ato discursivo

específico, um posicionamento.

Sobre fatos que são relatos, o professor Bucci dá o exemplo dos militantes

antiglobalização que atiram pedras em lojas do McDonalds. “Seus atos são atos de

fala. (…) Assim, alcançam visibilidade –e a condição de notícia”. Aqui, é possível

dizer que o ato de Assange (de adiantar os documentos para os jornais) são atos de

fala. Por outro lado, o vazamento para os jornais foi importante para a mensagem

que a organização gostaria de passar. Fora dos porões da internet, a mensagem

conseguiria mais visibilidade, condição de notícia e todas as repercussões obtidas

por uma notícia publicada em um grande jornal.

Natalia Viana, colaboradora do Wikileaks no Brasil, mostra um outro lado

dessa discussão. De dentro da organização, ela defende que a publicação dos

documentos, mesmo quando aliada aos grandes jornais, questionou os modos de

operação tradicionais dos jornais. “Vazar documentos para os jornais sempre existiu,

mas Assange possibilitou uma conexão encriptada, em que a pessoa não seria

identificada. Além disso, o Wikileaks começou a disponibilizar os documentos

originais online, para que as pessoas pudessem ler e tirar suas próprias opiniões”,

diz a jornalista.

Segundo ela, a associação aos jornais fez parte de uma estratégia de

descentralização da informação. “Hoje em dia, são pelo menos 80 jornais parceiros,

e eles estão tentando aumentar esse número para ter representantes em todos os

países do mundo. Não são apenas os grandes jornais dos países centrais que têm

acesso a esses documentos. Acredito na importância de que essas mensagens

cheguem às pessoas”, disse.

Para Natália, o Wikileaks possibilitou que as pessoas pudessem ler

diferentes interpretações de um mesmo documentos, feitas das diferentes redações

para onde os arquivos foram enviados. “Nós mudamos um pouco o jeito como as

coisas foram feitas dentro dos jornais e possibilitamos uma descentralização das

informações”, conta.

4.1 Fragilidade econômica

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52

Houve quem analisasse a ascensão do Wikileaks como algo ocorrido em um

momento oportuno, de certa fragilidade da mídia tradicional fora do país –em tempos

de redução de custos e adaptação aos novos limites traçados pela internet.

Nesse contexto, o professor Caio Túlio vê essa fragilidade como algo de

cunho econômico, e projetado para o futuro. “Ela [a imprensa tradicional] não está

fragilizada. A imprensa de qualidade, apesar de ter perdido audiência, está bem

economicamente. Os jornais estão ganhando circulação em todo o mundo,

principalmente nas democracias emergentes. E estão se organizando para o mundo

digital”, conta.

A fragilidade econômica da mídia tradicional norte-americana foi

escancarada no dia 23 de julho de 2008, dia que ficou conhecido como a “quarta-

feira negra” para os jornais dos EUA. Naquele dia, o Atlanta Journal demitiu 200 e o

Wall Street Journal perdeu 50 postos na redação (o jornal já havia cortado os

revisores). No final da tarde, o presidente da Newsweek renunciou. Foi também em

julho de 2008 que o Los Angeles Times anunciou a demissão de 250 funcionários

(17:% da área de jornalismo) e uma redução semanal das páginas da publicação.

Dados do Recovering Journalist62 mostram que, em 2008, foram mais de 6

mil jornalistas demitidos nos Estados Unidos. Além disso, dois terços dos veículos

de comunicação reduziram suas folhas de pagamento.

Com as redações mais magras, sobrou espaço para investigação de fora

dos jornais. Mas Assange fez o caminho de volta, quando fez acordos com as

grandes publicação.

4.2 Visibilidade e escolhaA escolha do Wikileaks de levar a mensagem para ser publicada nos

grandes jornais é justificada por um dos grandes poderes das mídias: trazer a

visibilidade a um fato –não que um blog ou um tuíte não tenham o mesmo efeito,

mas as proporções ainda são diferentes, podendo ser catalizadas com a

organização dos usuários em rede.

Como a professora Mayra explica em “Poder no jornalismo”, a mídia mostra

o “mundo do ponto em que ele deve ser visto e esse ponto, por si mesmo, já é

62 Ver http://recoveringjournalist.typepad.com/

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53

disciplinar: a educação da visão pela determinação do visível”. Em palavras mais

simples, os jornais trazem os fatos à tona e, assim, determinam quais partes serão

(ou não) vistas pela massa de leitores.

“É por conta da visibilidade que as mídias tradicionais assumem um papel

crucial como disciplina e controle, portanto, como promotoras/mantenedoras das

escalas de valores, como vigilantes”, segue Mayra. Esse papel de trazer

determinadas partes do mundo à tona reforça o poder do jornalismo enquanto

vigilante da ordem social. Diante de tanto poder na formação do que é considerado

parte do mundo, a escolha pela divulgação nos meios tradicionais mostra o quão

Assange pretendia valorizar a mensagem que pretendia passar.

Page 55: Projeto Wikileaks: Uma análise dos vazamentos que questionaram os meios de se fazer jornalismo

54

5. A REDE

A publicação dos segredos guardados nos documentos secretos revelados

pelo Wikileaks mexeu com alguns poderosos norte-americanos, e houve retaliação.

Empresas como Amazon e Paypal cancelaram os serviços que prestavam à

organização. O Wikileaks foi abandonado pelas grandes corporações norte-

americanas, mas ganhou respaldo entre os usuários.

Quem atacasse a organização de alguma maneira também era retaliado, só

que na internet, por meio dos usuários organizados em rede. Os sites do Visa, do

Mastercard e de um banco suíço foram invadidos e ficaram fora do ar. Isso tudo

porque, a partir de um perfil no Twitter, um grupo de usuários comandava uma legião

para derrubar os sites.

A possibilidade de organização das pessoas em uma rede efetivamente

distribuída, acentuada pela internet e as redes sociais, facilitou o processo. O autor

Augusto de Franco explica três possibilidades de organização em rede:

REDES CENTRALIZADA, DESCENTRALIZADA E DISTRIBUÍDA

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55

A web atual pode ser vista na terceira opção acima, a rede distribuída, já que

ela nos dá mais de um meio para chegar a determinados pontos –não são vários

centros ou um grande centro. Sendo assim, as mensagens e o conhecimento são

distribuídos de maneira mais uniforme. “A distribuição cresce o número de

conexões”, diz o autor, em seu blog63.

A expansão do potencial da internet com a criação das redes sociais se

aproxima do que Sérgio Amadeu da Silveira define como esfera pública

interconectada, em seu “Redes cibernéticas e tecnologias do anonimato”. Segundo

ele, existe a esfera pública interconectada e a esfera pública controlada pelos meios

de comunicação em massa.

“As principais diferenças da esfera pública interconectada para uma esfera

pública controlada pelos mass media são os baixos custos para se tornar um falante

e sua arquitetura informacional distribuída, sem necessidade de autorizações e

controles para e dela participar”, diz Silveira. Fato é que hoje qualquer um pode criar

um blog ou publicar um vídeo no YouTube e se tornar um falante.

5.1 Cultura hacker e WikileaksA represália em rede contra a publicação dos documentos também trouxe à

tona um movimento de hackers conhecido como ciberativismo. Para definir melhor o

que aconteceu, vamos usar uma definição desse movimento proposta por Sérgio

Amadeu da Silveira, em seu “Ciberativismo, cultura hacker e o individualismo

colaborativo”. Silveira define ciberativismo como “conjunto de práticas em defesa de

causas políticas, socioambientais, sociotecnológicas e culturais, realizadas nas

redes cibernéticas, principalmente na internet.” Em poucas palavras, são as

atividades virtuais que visam defender algum ideal e, no caso do Wikileaks, a

retaliação aos que foram contra a organização ganhou um significado extra, já que o

Wikileaks representa muito do que é a cultura hacker.

A cultura dos hackers tem sua origem no movimento norte-americano da

contracultura, que teve seu auge na década de 1960. “O movimento social inspirado

pela contracultura, que pregava distribuir o poder e emancipar as pessoas pelo

acesso às informações, tem nos hackers a sua principal representação”, defende

63 Ver http://augustodefranco.locaweb.com.br/

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56

Sérgio Amadeu. Ele cita alguns dos pilares da comunidade hacker, extraídos de um

livro de Pierre Levy:

– O acesso aos computadores deve ser ilimitado e total

– Todas as informações devem ser livres

– Hackers desconfiam das autoridades e promovem a descentralização

– Hackers devem ser julgados por seus ‘hackeamentos’ e não por outro

critérios, tais como escolaridade, idade, raça ou posição social

– Você pode criar arte e beleza com um computador

– Os computadores podem mudar sua vida para o melhor

A semelhança com os ideais do Wikileaks, e do próprio Julian Assange, são

claras. A todo o tempo, Assange defende a liberação das informações, questiona as

autoridades, promove a descentralização do poder contido em informações

confidenciais e, enquanto faz isso, acredita que isso torna melhor a vida das

pessoas. A própria formação de Assange, cuja mãe não permitia que ele fosse à

escola para que não fosse limitado, mostra essa falta de preocupação com a

escolaridade e a valorização dos feitos.

Sérgio Amadeu traz ainda outras informações que permitem colocar em

paralelo a cultura hacker e os ideais da organização Wikileaks: “Na matriz do

pensamento hacker está enraizada a ideia de que as informações, inclusive o

conhecimento, não devem ser propriedade de ninguém e, mesmo se forem, a cópia

de informações não agride ninguém dada a natureza intangível dos dados.” Aqui, a

cultura hacker parece corroborar com a ação de Assange de decidir pela publicação

dos dados vazados.

Também é interessante ver como houve uma mistura entre a cultura

jornalística e a cultura hacker, com os esforços para omitir os nomes de pessoas que

correriam risco de vida com aquela informação tornada pública.

Aqui também é importante destacar a visão

deturpada sobre os ideais dos hackers, que ocorre

em alguns momentos na mídia tradicional. “Após 11

de setembro, ocorreu uma alteração no discurso [da

mídia]. Os hackers, que eram apresentados como

criminosos comuns passaram a ser conhecidos ANDROID, DO GOOGLE

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57

também como ciberterroristas”, diz Silveira. É importante lembrar que a cultura

hacker anteriormente já era retratada de uma maneira criminosa porque a “liberdade

de informação e com o compartilhamento de códigos eram vistos como negativos

para a acumulação de lucratividade nas grandes corporações.”

Hoje em dia o valor mercadológico de certos ideários hackers foi percebido

por grandes empresas. O Google é um exemplo disso, já que criou o Android, um

sistema para dispositivos móveis com código aberto. A empresa tem diversas

iniciativas em uma direção mais aberta –um sistema operacional para computadores

de código aberto, por exemplo, o Chrome OS.

Toda a gama de significados em torno da palavra hacker –e do conjunto de

costumes e ações que a cercam– ainda é bastante confusa. Sérgio Amdeu cita

palavras da antropóloga Gabriella Coleman, ao criticar as diversas acepções do

hacker: “Ora são apresentados como jovens insanos envolvidos em atividades de

intrusão em ambientes protegidos, ora são vistos como visionários tecnológicos

utópicos cujo estilo de vida teria um grande potencial de perturbar as patologias do

capitalismo e da modernidade em geral”. Dois exemplos que combinam com as

visões retratadas: Julian Assange (retratado como o “insano”) e Mark Zuckerberg (o

executivo-chefe e criador do Facebook, o “visionário”).

Amadeu conclui comparando a cultura hacker a uma nova forma de

resistência –algo bem parecido com os ideais iniciais do Wikileaks. “Os hackers

realizam um novo modo de resistência que passa pelo autoconhecimento e pela

autoformação de indivíduos autônomos colaborativos. Isso porque os hackers

exploram as falhas dos protocolos, suas propriedades e suas formas de controle”,

diz o pesquisador.

5.2 O grupo AnonymousOs ataques contra os que agrediam a organização Wikileaks de alguma

maneira foram comandados por um grupo (seria mais correto dizer uma “formação”)

conhecida na internet como Anonymous. Trata-se de um grupo sem estruturas de

comando, sem uma grande liderança, mas que consegue enfrentar grandes

empresas.

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58

O Anonymous64

tem sua origem no fórum

virtual 4chan, uma espécie

de porão da internet.

Segundo uma reportagem

do “Guardian”, ele é

formado essencialmente

por adolescentes tentando

causar um impacto com o

pouco conhecimento que

têm, mas também existem

pais, profissionais de

tecnologia da informação e pessoas que têm tempo e recursos para gastar.

O “Guardian” falou com um porta-voz do grupo que se autonomeia “Cold

Blood”. Ele disse que são pessoas que compartilham os mesmos ideais que quer ser

uma força em direção a um bem caótico. “Somos contra corporações ou governos

interferindo na internet. Acreditamos que ela deve ser aberta e livre para todos”,

disse o porta-voz. Cold Blood conta também que o Anonymous funciona como um

bando de pássaros: para identificá-los, é preciso ver-los voando todos juntos, depois

eles se separam e seguem seus caminhos.

Foram essas pessoas que tomaram para si a causa do Wikileaks e criaram a

Operation Payback. A partir de um perfil no Twitter, eles passaram a comandar os

ataques às grandes empresas que se tornavam contra a organização. Era simples,

tudo o que quem quisesse participar precisava fazer era instalar um programa em

sua máquina. Eles facilitavam a vida e espalhavam o conhecimento para aqueles

que quisessem fazer parte do movimento.

A organização criou ainda outras “operações” relacionadas ao Wikileaks.

Uma delas foi a Operation: Leakspin, na qual pedia que os usuários fizessem buscas

nos arquivos do Wikileaks a procura dos documentos que tivessem tido menos

exposição. “Publique resumos eles, junto com o documento original completo.

Encoraje seu leitor a buscar mais informações. Faça vídeos de um ou dois minutos

64 Ver http://anonops.blogspot.com/

IMAGEM DE DIVULGAÇÃO DO ANONYMOUS

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59

lendo os vazamentos e publique-os no YouTube”, diz um manifesto publicado no

blog do grupo. Também era recomendado associar as publicações à palavras-chave

que pudessem confundir quem quisesse controlar o movimento –usar Justin Bieber

no lugar de Wikileaks, por exemplo.

O Anonymous montou também uma paródia do filme “A rede social”, com o

caso Wikileaks, zombando das acusações de abuso sexual recebidas por Assange

na Suécia65.

Outra operação promovida pelo Anonymous, em defesa de Assange, foi a

Paperstorm. Nela, o grupo pedia que os usuários imprimissem diversas imagens e

manifestos relacionados ao caso de Assange e os distribuíssem em banheiros

públicos, parques infantis, postos de gasolina e outros lugares nos quais as

mensagens pudessem ser vistas. A maioria delas trazia dizeres sobre Assange,

“verdade”, “vazamento”, “liberdade de informação”, entre outros temas.

5.3 Ser anônimo na era 2.0Outra questão sobre o comportamento dos usuários na web trazida pelo

Wikileaks é sobre o anonimato do usuários, já que a organização promete

anonimato e uma rede segura aos que decidirem vazar documentos por meio do

site. No artigo “Redes cibernéticas e tecnologias do anonimato”, Sérgio Amadeu de

Silveira traz novamente um posicionamento importante sobre o assunto.

Como se sabe, a comunicação via internet como temos hoje não permite a

associação direta da identidade de um civil a um determinado endereço de IP. Para

identificar quem está usando um computador em um determinado local, é preciso

solicitar uma busca e, mesmo assim, as pessoas podem mudar o seu endereço de

IP com uma facilidade considerável –alguns programas simulam que o usuário está

até em outro país. Se, por um lado, a situação do anônimo dá maior liberdade de

navegação para o usuário, por outro, ela dá espaço para abusos e crime.

Silveira nos explica que essa noção da identidade individual de cada um

surgiu com a modernidade: “A modernidade forjou um sujeito histórico portador de

diretos e uma identidade individual. Trouxe também a comunicação em massa e

novos ideais do que seria legítimo e ilegítimo em uma interação social”.

65 Ver http://www.youtube.com/watch?v=cHtakp6iips&feature=player_embedded

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60

O pesquisador nos mostra um embate entre utilitaristas e liberais na

formação desse pensamento moderno. Enquanto os utilitários buscavam a

identificação de cada um alegando a promoção da felicidade, os liberais defendiam

que o “anonimato, como integrante da privacidade, era imprescindível à liberdade

dos modernos”.

Somados esses valores ao conceito de esfera pública interconectada citada

anteriormente, os pensadores que defendem o anonimato na rede consideram que o

direito de ser anônimo –de criar um blog, emitir opiniões polêmicas e não precisar se

identificar, por exemplo– é necessário para que o usuário tenha seu direito de

opinião respeitado.

“Você não pode ter liberdade de expressão sem a opção de continuar

anônimo. (…) Existe uma concepção enganosa de que você não pode confiar em

informações anônimas. Isso não é necessariamente verdade”, disse o hacker Ian

Clarke, segundo o texto de Silveira.

O pensamento da comunidade hacker em relação às informações

provenientes de fontes anônimas vai de encontro com a concepção inicial do

Wikileaks. “O argumento hacker sobre a verdade e a verificação dos conteúdos

anônimos passa pelos mecanismos de reputação, de denúncia colaborativa e pelas

redes de confiança, ou seja, os ‘instrumentos interativos de busca e enquete da

comunicação distribuída tornamo anônimo reputável’”, diz Silveira. Trata-se de toda

a premissa inicial do Wikileaks: receber documentos anônimos, publicá-los na web e

permitir que os usuários, em rede, verifiquem as informações.

Aqui, a questão do anonimato defendida por Assange –ele nunca confirmou

se foi o soldado Manning quem lhe passou os documentos secretos norte-

americanos– também colide com um costume vital ao exercício do jornalismo, o

direito ao sigilo da fonte. Tanto a organização quanto as grandes instituições

jornalísticas se apóiam no poder que pode ser trazido por meio das informações

anônimas. Mas, enquanto os jornalistas realizam seus processos de apuração e

checagem, o Wikileaks propõe que essa verificação seja feita pela própria rede.

Há também, claro, os argumentos contra a opção pelo anonimato. A principal

tese nesse caso, segundo Silveira, é a de que podem existem consequências

negativas quando não há quem responsabilizar por algo que foi dito.

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61

No fim, emerge uma contradição tecnológica da própria rede, já que as

mesmas ferramentas que permitem que o usuário seja anônimo, também podem ser

usadas na hora de rastreá-los, segundo colocou Fernanda Bruno, em frase citada

por Silveira.

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62

6. BIBLIOGRAFIA

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