projeto pesquisa detalhamento 2010 final revisado

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  • UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS

    Unidade Acadmica de Pesquisa e Ps-Graduao

    DETALHAMENTO DO PROJETO DE PESQUISADETALHAMENTO DO PROJETO DE PESQUISA

    I - Identificao da Pesquisa

    Nmero do Projeto de Pesquisa: PP 0000003137

    Ttulo do Projeto

    Tecnocincia, tica e poder

    Perodo de execuo do projeto

    De 01 de fevereiro de 2010 at 31 de janeiro de 2013

    II - Identificao do pesquisador responsvel (coordenador)

    Nome

    Celso Candido de Azambuja

    PPG/Curso ao qual o projeto se vincula

    Filosofia

    III - Vinculaes do Projeto de Pesquisa

    rea de conhecimento do CNPq

    Filosofia

    Linha de Pesquisa

    Filosofia social e poltica

    IV - Participantes da Pesquisa

    Pesquisadores docentes da InstituioA serem contatados e convidados.

    Pesquisadores de outras InstituiesA serem contatados e convidados.

    Doutorandos/Mestrandos/Iniciao CientficaGrupo a ser formado

    V - Projeto de PesquisaV - Em qualquer formato, o Projeto deve contemplar, obrigatoriamente, os itens a seguir.

    Smula (mximo de 20 linhas)Texto com a descrio sucinta do objeto de pesquisa. Inclui informaes sobre a natureza e a importncia do problema, razes que levaram realizao da investigao, suas limitaes e seu objetivo. Deve esclarecer se o trabalho se constitui numa confirmao de observaes de outros autores ou se contm elementos novos, com realce para a fundamentao terica. Em se tratando de

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    trabalho experimental ou de argumentao, a hiptese pode ser includa, precedendo a descrio da metodologia a ser utilizada no decorrer da investigao. Os resultados pretendidos, parciais e finais devem ser informados, bem como a relevncia para a rea e a Instituio.

    Este estudo realiza uma pesquisa terico-exploratria das relaes conceituais entre poder, tica e tecnocincia, cujo problema central e articulador consiste em se perguntar se a atual sociedade tecnocientfica global, com seus aparelhos e aparatos tcnicos e suas novas formas de manipulao, produo, comunicao e criao, tem como efeito o empoderamento civil e de que tipo. O conjunto das atividades humanas no planeta encontra-se associado ao desenvolvimento tecnocientfico sem nenhuma possibilidade de retorno. A humanidade est condenada a viver um destino tecnocientfico. Isto diz respeito no apenas a nossa atual sociabilidade, mas condio humana em suas dimenses fundamentais. As vastas implicaes e a enorme importncia da tecnocincia na vida social, profissional, econmica, cultural e subjetiva, e os efeitos e impactos da tecnologia na sociedade atual, muitas vezes espetaculares e profundamente transformadores dos modos de produo e de vida tradicionais, abrem campos de reflexo inusitados, infinitos e complexos. A anlise aqui proposta, entretanto, delimitar os desdobramentos conceituais no horizonte da tica e da poltica, tendo como pano de fundo a elaborao de uma antropologia filosfica. Procura-se pensar as cruciais implicaes tico-polticas da tecnocincia e a partir da refletir as implicaes conceituais no mbito da tica e da filosofia social e poltica contempornea. Para tanto, discute-se as posies de autores como Jonas, Simondon; Heidegger, McLuhan e Aristteles, e, privilegiando o referencial terico contemporneo, a partir das posies de Hottois, Galimberti, Engelhardt, Latour, Lvy, Castells e Lenoir; buscando formular uma concepo prpria e original de trabalho. A hiptese levantada aqui a de que a sociedade tecnocientfica alarga a base do poder civil. A metodologia, situada em uma perspectiva transdisciplinar, inclui reviso bibliogrfica, debates em seminrios, grupo de estudos, produo de textos e desenvolvimento de um ambiente interativo e multimda na Web. Os principais resultados esperados so: elaborar a construo de um conceito de tecnocincia articulado com o da phronesis, em busca de uma sabedoria tecnocientfica. A relevncia deste trabalho consiste, para a filosofia, em ajudar a criar e organizar um campo conceitual de investigao ainda pouco explorado e, para a instituio, em ajudar a construir a competncia terica especfica de referncia acadmica em seu trabalho de ensino e pesquisa nas reas das cincias tecnolgicas e humanas, bem como em sua interlocuo social.

    Objeto/marco conceitual e justificativa

    Tecnocincia, tica e poder

    A aventura da tecnologia impe, com seus riscos extremos, o risco da reflexo extrema.A tecnologia assume um significado tico por causa do lugar central que ela agora ocupa subjetivamente nos fins da vida

    humana.Hans Jonas

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    INTRODUO

    Este trabalho coloca em discusso o tema articulado: tecnocincia, tica e poder. Trata-se de uma pesquisa terico-exploratria das relaes conceituais fundamentais entre tcnica, tica e polticaO que a tcnica? O que a tica e a poltica? O que uma civilizao tecnolgica? Em que se transforma a tica e a poltica nesta civilizao? Em que se transforma o prprio homem?O projeto pergunta-se pelos efeitos de poder e impactos da tecnocincia no conjunto da vida prtica dos homens e suas relaes interpessoais e polticas. Ele coloca em questo o problema da relao entre o capital tecnolgico global e o poder civil. Pretende analisar as e refletir acerca das articulaes e contradies contidas nesta complexa e tensa relao epocal. Em suma, o problema terico central deste trabalho consiste em se perguntar se a atual sociedade tecnocientfica global, com seus aparelhos e aparatos tcnicos, com suas novas formas de manipulao, produo, comunicao e criao, tm como desdobramento prtico o empoderamento civil ou no? Neste sentido, um dos objetivos centrais deste projeto consiste realizar um trabalho de esclarecimento e criao conceitual para entender esta nova situao epocal. As emergentes e complexas relaes humanas e no-humanas no novo espao pblico compartilhado exigem diferentes e renovados arcabouos conceituais, pois as categorias da Filosofia Prtica herdadas da antiguidade e da modernidade clssicas no podem mais oferecer os instrumentos conceituais que permitiriam compreender a situao poltica atual e pensar seus devires reais, suas possibilidades polticas efetivas.

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    A tecnocincia hegemonizou o conjunto das foras produtivas e tornou-se a principal ferramenta de base do atual modo de produo. Ela determina o padro e a cadncia da maioria dos processos produtivos, da fabricao industrial em massa aos laboratrios de manipulao gentica. Determina tambm grande parte dos procedimentos de distribuio e consumo de todos os bens materiais e imateriais. Determina a maior parte do registro de todos os procedimentos comerciais, de administrao, de fiscalizao, de jurisdio. No h um nico setor social que no esteja atravessado direta ou indiretamente por alguma forma de tecnologia ou cincia. A tecnocincia hegemonizou tambm o conjunto dos processos de subjetivao contemporneos de tal modo que no nos reconheceramos mais para aqum ou alm de nossas mquinas. Nas grandes capitais globais do planeta cada vez mais perdem-se os laos ligados s tradies orais e territoriais e avanam as redes neuro-sociais interculturais, tecnoculturais e transdisciplinares desterritorializadas, subjetiva e geograficamente, em horizontes de sentido cada vez mais complexos. As tecnologias e a cincia ocupam assim um lugar central no cenrio poltico atual e tudo, em grande medida, depender de seus desdobramentos. Por sua vez, a condio humana parece nunca ter sido to dramtica quanto a de hoje. Nunca as questes tico-polticas foram to radicais, complexas e angustiantes. No apenas os problemas de injustia social, mas os de preservao ambiental se agravam exponencialmente e evidenciam a incapacidade dos sistemas poltico-econmicos atuais de apresentarem solues com alguma chance de xito a curto ou mdio prazos. No so apenas um bilho de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza que correm o risco de sucumbirem no prximo dia, mas todos e tudo. Nada houve comparvel a este fantasma epocal. Na situao poltica atual, portanto, seguem colocados os mesmos problemas polticos de sempre: os da justia e da liberdade, agravados com o aumento da pobreza e todas as consequncias de violncia e terror que isto implica, em especial naqueles pases emergentes ou simplesmente excludos da riqueza mundial. Agora, porm, devemos acrescentar a estes dois problemas polticos centrais o problema ecolgico e a crise ambiental e tudo que isto significa para todos os pases e talvez principalmente para os includos que gozam, ou gozavam, de privilgios sem fim. Estas questes remetem tambm aos sistemas de valores que orientam as condutas dos indivduos nas sociedades globais e que obviamente condicionam e so por sua vez condicionados pelos sistemas poltico-econmicos globais. Neste contexto, aparentemente no temos destino, no encontraremos salvao, o que quer que isto queira dizer realmente, seja para nossos males sociais, seja para os ambientais, seno no horizonte da tecnocincia.

    O tremendo impacto da tecnocincia nos destinos humanos abre campos de reflexo inusitados, infinitos e complexos que se estende globalidade da vida humana em praticamente todas as direes. A anlise aqui proposta, entretanto, focar os desdobramentos conceituais no horizonte da tica e da poltica tendo como plano de fundo o problema da elaborao de uma antropologia filosfica no contexto das sociedades tecnocientficas.Mesmo assim delimitada, a tarefa ainda se apresenta gigantesca. Talvez, deste modo, a contribuio principal deste trabalho consista em ajudar a criar e organizar um campo de investigao, favorecendo a abertura de perspectivas para novas vias de reflexo, inclusive transdisciplinares, nos grupos de pesquisa e desenvolvimento presentes nas instituies pblicas e privadas.A estratgia de abordagem dos principais problemas discutidos neste trabalho desenvolveu-se em mais sete sees alm desta introduo. O foco das primeiras sees o trabalho de elucidao conceitual em torno do problema da tcnica, da tica, da poltica e da tecnocincia. As sees seguintes exploram, primeiramente, as questes implicadas na elaborao de uma filosofia da tecnologia, para em seguida discutir as cruciais questes tico-polticas da nova tecnopolis global.Nesta estratgia sero exploradas as seguintes hipteses de trabalho: No mais possvel pensar as questes filosficas da vida humana prtica de forma a desconhecer ou subestimar a realidade tecnocientfica. O agir humano, tico e poltico, tornou-se essencialmente tcnico ou mediado pela tcnica. A sabedoria prtica foi contaminada pela sabedoria tecnocientfica. No mais possvel, alm disto, entender a tcnica como mero instrumento ao dispor humano. A tcnica soberana, impe-se em todas as horas e em todo lugar. Determina formas de ser e viver. Ela tambm instrumentaliza. Mas tambm no mais possvel compreender a tcnica descontaminada dos problemas morais e polticos que ela mesma faz colocar em questo. No mais possvel defender a idia, muito comum ainda hoje, de que a mquina, a tcnica seja algo outro do humano, opondo de forma maniquesta mquinas e humanos irredutivelmente. Se a tcnica no somente um instrumento, ela tambm no neutra. Ela produz efeitos reais e profundos na ordem da biosfera, das sociedades e das subjetividades. A tecnocincia contempornea, diferentemente da tcnica moderna, no apenas manipuladora, nem simplesmente extratora dos recursos naturais. Ela tambm criadora de novos eidos. A tecnocincia contempornea tem como meta arquetpica fundamental criar novas formas de vida, quer humanas, quer artificiais, quer ambientais, a partir da manipulao dos dados bsicos da natureza, da sociedade e da subjetividade. A presena da tecnologia em praticamente todos os assuntos humanos atualmente, nos traz a possibilidade de um reconhecimento e uma auto-compreenso filosfica de nosso prprio tempo e de nossa prpria condio humana; cuja uma das determinaes essenciais seria precisamente sua capacidade criadora tcnica. A tcnica se apresentando ento, no como algo outro do humano, mas como extenso propriamente humana, como qualidade e distintivo da condio humana. A tcnica como condio essencial da existncia humana. E por fim a hiptese central e articuladora deste trabalho, segundo a qual as condies materiais e sociais da tecnopolis global constituiriam o conjunto das foras produtivas e tecnolgicas materiais fundamentais que tornariam possveis o desenvolvimento de uma vida poltica republicana. Atravs dos processos de automao, desmaterializao e molecularizao

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    das foras produtivas, da profunda transformao lingustica comunicativa e cultural e do espetacular avano tecnocientfico da civilizao se operando em escala planetria, ainda que de forma desigual e combinada alargam-se drasticamente a base do poder civil na sociedade tecnocientfica globalizada.As esferas econmica, cultural, comunicativa e poltica ainda esto para encontrar a auto-expresso poltica adequada as suas foras produtivas. Hoje as formas dominantes de representao e governana poltica representam ainda as antigas formas institucionais e materiais da era pr-tecnocientfica.Rigorosamente, a questo tico-poltica a implicada ser: esta nova base de poder, uma vez encontrando sua forma poltica e de governana prpria autoconsciente, tender a abrir ainda mais o foo que separa includos e excludos, seres humanos e no-humanos, ou se, uma nova sensibilidade, uma nova inteligncia, ser capaz de reinventar a relao entre humanos e no-humanos em novas formas de vida? - Eis a questo tico-poltica radical, fundamental de nosso tempo.

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    O CONCEITO DE TCNICA

    Esta seo oferece um conjunto de notas e referncias introdutrias ao conceito de tcnica. No contexto dos problemas que este trabalho se coloca a elaborao do conceito de tcnica fundamental, pois est presente em todas as principais definies e problemas que pretende discutir. Como veremos sua complexidade enorme e a filosofia atual est longe de esgot-la. Para tanto discutiremos a partir dos referenciais de Aristteles, Heidegger, McLuhan e Galimberti.

    Techne como virtude intelectual

    Techne o termo pelo qual Aristteles definia uma das cinco virtudes intelectuais do humano. Techne propriamente tratava de um reto saber fazer, enquanto a Phronesis de um saber agir. Alm destas, existiam tambm a Sophia, a Episteme e o Nous. Um estudo um pouco mais detalhado destas virtudes intelectuais nos revela em que consiste essencialmente cada uma das chamadas disposies da alma que tm relao com a verdade e como elas se relacionam entre si. (ARISTTELES, 1973, p. 33) Techne, a produo que envolve o reto raciocnio. Episteme, o conhecimento cientfico imutvel e demonstrvel. Phronesis, a sabedoria prtica que envolve deliberao para agir com relao as coisas boas ou ms. uma virtude prtica. Sophia, a sabedoria filosfica que uma disposio da alma que envolve o Nous, a razo intuitiva, ou a inteligncia, e a episteme, o conhecimento cientfico. Nous, a inteligncia, ou razo intuitiva que apreende os primeiros princpios do conhecimento cientfico. (ARISTTELES, 1973, p. 33)Segundo Aristteles, a Techne no est relacionada com a "capacidade raciocinada de agir", mas sim com a "capacidade raciocinada de produzir". Toda Techne, arquitetura, por exemplo, uma "capacidade de produzir que envolve o reto raciocnio". A sua origem "est no que produz, e no no que produzido". A Techne "no se ocupa nem com as coisas que so ou que se geram por necessidade, nem com as que o fazem de acordo com a natureza (pois essas tm sua origem em si mesmas)". A Techne "deve ser uma questo de produzir e no de agir." (ARISTTELES, 1973, p. 34)Techne: ofcio, arte, capacidade, habilidade, cincia, para produzir um artifcio, algo outro, novo, ainda que seja uma obra de imitao da natureza.Ento, originariamente, o conceito de tcnica envolve uma habilidade intelectual, uma sabedoria produtiva. Seria um pouco mais ou menos quando nos referimos, por exemplo, a um jogador ou atleta de talento, dizemos ele tem tcnica, capacidade, criatividade. Portanto, o fazer tcnico no sentido aristotlico no em absoluto um mero fazer mecnico, destitudo de virtude.Para Lecourt, na mesma perspectiva, a tcnica, essa dimenso maior da existncia humana, sobre o imemorvel valor humano que ela representa. O pensamento tcnico tem sua prpria especificidade e testemunha uma forma particular da engenhosidade humana. (LECOURT, 2003, p. 41) A tcnica assim originalmente uma virtude intelectual, uma capacidade de fazer bem feito, de produzir corretamente, uma habilidade no apenas manual, mas tambm intelectual. O tocador de lira para bem tocar no deve apenas saber manusear o instrumento com as mos, mas saber tocar tambm com a alma.

    A pergunta pela essncia da tcnica

    Em seu principal texto sobre a tcnica, Heidegger desloca a discusso da tcnica do objeto tcnico ele mesmo. Segundo ele: Die Technik ist nicht das gleiche wie das Wesen der Technik. No a tcnica mesma enquanto objeto, instrumento, meio, que colocada em questo, mas a sua essncia. A pergunta principal , ento, pelo sentido da tcnica, em especial, pelo sentido da tcnica moderna.Heidegger evidentemente no considera o destino humano como dado, como fatalidade, mas como algo a ser manipulvel, determinvel pelo prprio humano. Assim, o nosso destino compartilhado com a tcnica no est dado, no est definitivamente condicionado pela tcnica moderna instrumental, extrativista. Obviamente ela representa o perigo extremo, mas tambm nossa salvao.

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    No entanto, o mais importante da viso heideggeriana, talvez seja este desejo de um retorno a um fazer tcnico tal como aquele vivido pelos gregos. Da que a salvao viria exatamente deste resgate primordial da Techne como arte, dentro do jogo esttico.Isto talvez no tornasse a tcnica necessariamente mais produtiva ou mais espetacular, mas tornaria ela elemento do jogo da vida, do gozo da vida. No mais destrutiva, como a tcnica da guerra, no mais extrativista, exploradora, como as diversas tcnicas industriais da sociedade do consumo. Mas principalmente fruitiva. Uma tcnica potica.

    A tcnica no neutra nem instrumental

    Segundo, Galimberti: Para nos orientar, precisamos antes de tudo acabar com as falsas inocncias, com a fbula da tcnica neutra, que s oferece os meios, cabendo depois aos homens empreg-los para o bem ou para o mal. A tcnica no neutra, porque cria um mundo com determinadas caractersticas com as quais no podemos deixar de conviver e, vivendo com elas, contrair hbitos que nos transformam obrigatoriamente (p. 8)Este mito da neutralidade da tcnica foi tambm o grande alvo da crtica de McLuhan. McLuhan argumenta pela importncia de se compreender a mensagem do meio enquanto tal, independentemente dos contedos transmitidos. O meio a mensagem diz ele. Fundamental compreender os efeitos e as mudanas que a tecnologia determina no seio da subjetividade e das instituies. Para McLuhan, Os efeitos da tecnologia no ocorrem aos nveis das opinies e dos conceitos: eles se manifestam nas relaes entre os sentidos e nas estruturas da percepo, num passo firme e sem qualquer resistncia. (MCLUHAN, 1964, p. 34) Pois, segundo ele, A anlise de programas e contedos no oferece pistas para a magia desses meios ou sua carga subliminar. (MCLUHAN, 1964, p. 35). A perspectiva de Galimberti vai na mesma direo. Na medida em que vivemos em ...um mundo em que todas as suas partes esto tecnicamente organizadas, a tcnica no mais objeto de uma escolha nossa, pois o nosso ambiente, onde fins e meios, escopos e idealizaes, condutas, aes e paixes, inclusive sonhos e desejos, esto tecnicamente articulados e precisam da tcnica para se expressar. (p. 8)Neste sentido, para Galimberti, vivemos a tcnica irremediavelmente, sem possibilidade de escolha. Esse o nosso destino como ocidentais avanados. (p. 8)A tcnica no sendo neutra, no tampouco simples instrumental nas mos dos homens. De acordo com o mesmo autor, se aceitamos a tese de que a tcnica a essncia do homem, ento o primeiro critrio de legibilidade que deve ser modificado na idade da tcnica aquele tradicional que v o homem como sujeito e a tcnica como instrumento sua disposio. Isso podia ser verdadeiro no mundo antigo, onde a tcnica era exercida dentro dos muros da cidade, era um encrave dentro da natureza, cuja lei inquestionvel regulava por inteiro a vida do homem. (p.11)Hoje, entretanto, a terra no mais o limite. A cidade estendeu-se at os confins da Terra, e a natureza reduziu-se a um encrave, a um retalho circundado pelos muros da cidade. Ento a tcnica, de instrumento nas mos do homem para dominar a natureza, se torna o ambiente do homem, aquilo que o rodeia e o constitui... (p. 11)A tcnica atualmente se agigantou de tal modo que inverteu-se a relao que na antiguidade ela tinha com a natureza. Segundo Galimberti, ...enquanto a instrumentao tcnica disponvel era apenas suficiente para aqueles fins nos quais se expressava a satisfao das necessidades humanas, a tcnica era um simples meio, cujo significado era inteiramente absorvido pelo fim; mas, quando a tcnica aumenta quantitativamente a ponto de se tornar disponvel para a realizao de qualquer fim, ento muda qualitativamente o cenrio, porque no mais o fim que condiciona a representao, a pesquisa, a aquisio dos meios tcnicos, mas ser a ampliada disponibilidade dos meios tcnicos que desvela o leque dos fins que, por meio deles, podem ser alcanados. Assim, a tcnica se transforma de meio em fim, no porque a tcnica se proponha algo, mas porque todos os objetivos e fins que os homens se propem no podem ser atingidos, a no ser pela mediao tcnica. (p. 12)A tcnica deixa de ser mero instrumento nas mos dos homens. Seu crescimento transforma agora o homem em instrumento da prpria tcnica. Definitivamente a representao instrumental da tcnica no corresponde mais a sua essncia. assim que a tcnica para Heidegger pode ser compreendida apenas parcialmente como instrumento. La representacin corriente de la tcnica, segn la cual ella es un medio y un hacer del hombre, puede llamarse, por tanto, la definicin instrumental y antropolgica de la tcnica. (...) Sigue siendo correcto que tambin la tcnica moderna es un medio para fines. De ah que la representacin instrumental de la tcnica determine todos los esfuerzos por colocar al hombre en el respecto correcto para con la tcnica. Todo est en manejar de un modo adecuado la tcnica como medio. Lo que queremos, como se suele decir, es tener la tcnica en nuestras manos. Queremos dominarla. El querer dominarla se hace tanto ms urgente cuanto mayor es la amenaza de la tcnica de escapar al dominio del hombre. (...) De ah que lo meramente correcto no sea todava lo verdadero. Slo esto nos lleva a una relacin libre con aquello que, desde su esencia, nos concierne. En consecuencia, la correcta definicin instrumental de la tcnica, que es correcta, no nos muestra todava la esencia de sta. (HEIDEGGER, 2008a) Assim, se queremos entender verdadeiramente a tcnica, precisamos nos perguntar para alm de seu carter meramente instrumental, ao mesmo tempo em que precisamos compreender que ela no neutra. As tecnologias produzem efeitos enquanto tais, maiores ou menores, melhores ou piores. Elas so criaes, extenses e objetificaes, da vontade de poder e da imaginao humanas. A tcnica representa antes de tudo o meio atravs do qual a humanidade, do princpio ao fim, encontra sua possibilidade como espcie, definindo deste modo a prpria essncia humana.

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    UM ANIMAL TECNOLGICO

    Esta seo discute o conceito de tcnica desde uma perspectiva antropolgica. Para tanto orienta-se inicialmente pela tese de Galimberti, apoiando-se posteriormente na mitologia arquetpica grega e na literatura e no cinema de fico cientfica. Esta discusso como seo parte justifica-se pela elaborao do conceito de ser humano e pela necessidade de melhor compreender esta originria, tensa, desejante e conflitante relao entre humanos e mquinas.

    A tcnica como condio humana

    O ser humano diziam os antigos, entre eles Aristteles e Plato, um animal social e poltico. Ele principalmente um animal racional, assim rezou o projeto iluminista de Scrates a Kant. O ser humano, entretanto, segundo certos modernos, tambm um animal de paixes, imaginao, desejos, instintos, conforme Freud, Nietzsche e Hobbes, para quem a razo no seria nada mais que um "instrumento dos desejos.Galimberti nos prope a imagem antropolgica segundo a qual o homem um animal essencialmente tcnico. a tcnica que permite ao homem ser homem. A tcnica ser a sntese das razes e das necessidades humanas. Ser, por assim dizer, o rgo dos instintos de que originariamente o homem carente. nesta mesma direo que Heidegger identifica a tcnica moderna vontade humana de domnio sobre a terra. As cincias da natureza inanimada e animada, tanto quanto as cincias da histria e das obras histricas, sempre se constrem inequivocamente como um modo e uma maneira de o homem moderno dominar, sob forma e esclarecimento, a natureza, a histria, o 'mundo' e a 'Terra', de forma a tornar planejveis e utilizveis esses campos esclarecidos, segundo cada preciso e com vistas a assegurar a vontade de ser senhor da totalidade do mundo, no modo do ordenamento. O fundamento e o mbito essencial da tcnica moderna essa vontade, que em toda inteno e apreenso, em tudo o que se quer e alcana, sempre quer somente a si mesma, e a si mesma armada com a possibilidade de sempre crescente de poder-querer-a-si. A tcnica a organizao e o rgo da vontade de vontade. (HEIDEGGER, 1998, p. 205) Assim, segundo Galimberti, ... a tcnica nasceu, no como expresso do esprito humano, mas como 'remdio' sua insuficincia biolgica(p. 9)Nesse sentido, possvel dizer que a tcnica a essncia do homem, no s porque, em razo da sua insuficiente dotao instintiva, o homem, sem a tcnica no teria sobrevivido, mas tambm porque, explorando essa plasticidade de adaptao que deriva da generalidade e no-rigidez dos seus instintos, pde alcanar 'culturalmente', por meio de procedimentos tcnicos de seleo e estabilizao, aquela seletividade estabilidade que o animal possui 'por natureza'. (p. 9)A tcnica ser o ...pacto original entre homem e mundo (p. 10) que permitir ao homem superar os obstculos biolgicos e naturais.De acordo com Galimberti: De fato, a tcnica no o homem. Nascida como condio da existncia humana e, portanto, como expresso da sua essncia, hoje, pelas dimenses alcanadas e pela autonomia adquirida, a tcnica expressa a abstrao e a combinao das idealizaes e das aes humanas num nvel de artificialidade tal que nenhum homem, nenhum grupo humano () capaz de control-la em sua totalidade. (p. 17)Segue Galimberti: ...na idade da tcnica, no h mais nem senhores nem servos, mas s as exigncias dessa rgida racionalidade a que todos devem se subordinar. O nico verdadeiro sujeito o aparato tcnico em relao ao qual os indivduos so simplesmente predicados. (p. 18)Finalmente, Galimberti prope a pergunta fundamental: o que o homem se torna dentro do horizonte da experimentao ilimitada e da manipulao infinita desvelada pela tcnica? Para responder necessrio superar a certeza ingnua segundo a qual a natureza humana algo estvel, que no se contamina e permanece intacto, no importando o que o homem faa. (p. 23)

    Mitologia e fico cientfica

    A alma humana labirinto muito difcil de ser penetrado. A mitologia de um lado e a fico cientfica de outro nos oferecem recursos valiosos para explorar e compreender esta complexidade.

    Prometeu e Hefesto

    A mitologia grega, proposta aqui como recurso para a compreenso arquetpica do homo technologicus, ilustra esta dimenso que representa a tcnica na vida humana.Aqui apenas esboamos as principais caractersticas dos mitos de Hefesto e Prometeu como imagens primordiais que ilustram em nvel subjetivo o encontro humano com a tcnica. Representam o sentido simblico e a significao imaginria central de nossa poca.

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    Prometeu, o tit sacrificado por Zeus, por ter ousado proteger os humanos, roubando dos deuses e dando a eles o fogo, smbolo de todas as artes e tcnicas de que os seres humanos, por natureza, foram desprovidos.Prometeu representa a prospeco, anteviso, previso, e, portanto, manipulao do tempo. Representa a insero do homem em uma nova dimenso do tempo, projetiva e no mais cclica, conforme demonstra Galimberti, na qual esto contidos e limitados todos os seres da natureza. Assim, os bens humanos so ddivas de Prometeu, o previdente, o que projeta, o que prospecta o inventor, o doador das tcnicas aos homens. Com o fogo, a tcnica, ele muda o percurso da histria tornando possvel a existncia humana. Ao passo que todos os males humanos vem de seu irmo Epimeteu, o imprevidente, cujo arqutipo representa a impreviso, a estultice do momento, a subordinao natureza, ao tempo cclico do eterno retorno.Uma palavra sobre a imagem mtica de Hefesto. Hefesto o deus manco; o nico que no vive junto aos deuses no Olimpo. Vive junto terra, em uma ilha, na qual em sua Oficina cria e produz os mais diversos artefatos. Hefesto representa a imagem do humano como um ser falho. Um ser que manca. Imperfeito, portanto. um ser cuja caracterstica fundamental a da incompletude. Pois, ele precisa de uma polis para perseverar, ele precisa de uma tcnica que supra esta incompletude radical. O humano precisa, pois, ser completado. Hefesto representa a necessidade humana radical da tcnica como supresso e compensao de um limite constitucional originrio.

    A fico cientfica: literatura e cinema

    O cinema e a literatura de fico cientfica certamente podem nos ajudar a pensar aquilo que se transforma ou se transformou o homem na idade da tcnica.Abordaremos brevemente as vises da literatura e do cinema de Dick, Scott, Gibson. E s obras de Orwell, Huxley e Shelley faremos apenas uma meno.

    Em 1984, de Orwell e em Admirvel mundo novo, de Huxley, podemos dizer que a tecnologia aparece como aparato de controle e dominao, seja atravs da tecnologia panptica do Grande Irmo, seja atravs da droga soma que o Estado obrigava todos os cidados a tomarem. Com seu Frankenstein, Mary Shelley ridiculariza a pretenso da cincia moderna em tentar ir alm dos limites da natureza de vida e morte. Poderamos dizer ento que estas representaes simbolizam um certo niilismo da tcnica?

    Philip Dick e a fria mquina homemDick, faz atravs de sua obra de fico Blade Runner, uma crtica ao homem-mquina, ao homem coisa, a uma subjetividade reificada, do inumano do humano. A crtica essencial que anima o livro, como ele mesmo diz, quelas pessoas que representam uma humanidade insensvel, utilitria, fria. O livro era um manifesto contra a falta de candura, de sensibilidade, de bondade, de empatia das pessoas que conhecera um dia. A imagem subjacente da mquina aqui a de uma engrenagem fria, calculista.

    Ridley Scott e a mquina humanizadaScott, recria uma nova histria em seu filme. No faz apenas recortes, mas reinterpreta luz de seu tempo da engenharia gentica e da ciberntica nascentes. Faz, nesta obra, um elogio da mquina humanizada. A mquina como sntese do bermensch, o super-homem, ou seja, daquele que diz sim vida. Porque, ao fim, quem salvar o homem a sua criatura, a mquina.

    William Gibson e o nascimento do transumanoA obra cinematogrfica Matrix foi longe na tentativa de compreenso do ciberespao. Mas talvez no tenho ido to longe e de forma to inquietante quanto Gibson, cujo romance de fico Neuromancer fornece os elementos essenciais de entrada na era do chamado ps-humano, ou transumano. Dick e Scott nas obras aqui referidas ainda operam uma distino clara e distinta seguramente bem mais atenuada no segundo entre a mquina e o humano. Ora, a frieza da mquina representa a frieza humana, como em Dick. Ora, os sentimentos humanos esto presentes na prpria mquina, como em Scott. o que podemos ver, como exemplo, na cena apotetica final de Blade Runner, no confronto final entre o caador Deckardt e o andride Roy, quando este, na chuva, antes de morrer, diz: I've seen things you people wouldn't believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhauser gate. All those moments will be lost in time like tears in rain.Nestas duas vises ainda manifestam-se uma diviso radical entre o humano e a mquina, so ainda tomados, essencialmente como antteses. Mas j a sntese est em movimento, porque, as mquinas j tm elas mesmas formas e modos humanos. J tm elas inteligncia humana artificial e memrias humanas artificiais j habitam as memrias robticas.Entretanto, em seu Neuromancer, Gibson hibridiza, integra humano e mquina de modo tal que quase no se pode mais distinguir o que propriamente um e outro. O universo humano j aparece desde sempre tecnolgico. Nada mais, portanto, distingue o humano da mquina e a mquina do humano. Nasce assim a idia de uma nova figura antropolgica: o transumano. Sendo este portanto o conceito fundamental para a construo de uma antropologia filosfica contempornea.

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    TICA, POLTICA E TCNICA

    Esta seo explora o confronto e a articulao conceitual da relao entre tica, poltica e tcnica. Entre a sabedoria prtica e a sabedoria tcnica: o bem agir e o bem fazer. As relaes entre elas nem sempre foram equilibradas, estveis ou mesmo equivalentes. As notas que seguem exploram o problema a partir das leituras de Hottois e, principalmente, de Galimberti que argumenta pela inverso desta relao e emancipao da tcnica. Galimberti faz um estudo monumental da tecnologia em nossa poca em Psiche e techne o homem na idade da tcnica. Ele realiza uma anlise profunda, pertinente, perspicaz. Fundamental para se estudar o fenmeno da tcnica e suas mltiplas e universais implicaes e interdeterminaes. Avana questes em questes fundamentais de natureza antropolgica, poltica, tica, entre outras. Tem em mira a fundao de uma nova psicologia: a psicologia da ao, na qual a tcnica ocupa posio fundamental. Por isto aqui e no conjunto deste trabalho ele aparece como uma das referncias principais.

    Sabedoria prtica versus tcnica

    Uma das questes determinantes de nossa poca, sem dvida, de natureza tica. Por duas razes principais. Primeiramente, trata-se do inegvel fato de que o indivduo esclarecido emancipou-se. Ele no quer ser mais tutelado por nenhum tipo de autoridade. Quer dizer, do ponto de vista de sua ao concreta, o individuo tem de fato muito maior responsabilidade, ou seja, seu poder de ao como indivduo seja na sociedade seja sobre a natureza do que aquela que tinha o indivduo concebido nas ticas clssicas. Isto tem a ver por sua vez no apenas com a natureza da vontade de poder humana e suas sempre crescentes exigncias, mas tambm com o poder que a tcnica e a cincia deram ao indivduo de nossa poca. Assim, em primeiro lugar, cada indivduo tem contemporaneamente um poder e uma responsabilidade sensivelmente maior do que jamais teve antes. Em segundo lugar, um problema to ou mais crucial que consiste em reconhecer que o saber fazer tcnico no necessariamente acompanhado ou subordinado ao saber agir tico e poltico ou sabedoria em si mesma. Na medida, portanto, em que os indivduos que dominam a tcnica, que esto no centro da operao tcnica e seus efeitos na sociedade, necessria a inveno de uma tica da tcnica. Esta concerne basicamente a estes operadores do conjunto de nossa vida social. Mas estende-se tambm ao conjunto dos indivduos que, atravs da tcnica, constroem e organizam suas vidas na atual tecnopolis global. Deste modo, sem dvida, a elaborao de uma tica da tecnocincia torna-se uma questo crucial de nosso tempo. deste modo que segundo Gilbert Hottois a questo da tica tornou-se a questo central de uma filosofia da tcnica. Segundo ele, La philosophie de la technique part du constat que la technique est le fait ou l'un des faits dominant de notre poque, et que ce fait interpelle la philosophie non seulement dans toutes ses parties mais encore comme telle : dans un univers technicien o la certitude est rpandue qu'il n'y a pas de question ni de problme auxquels il serait impossible de trouver une solucion technique, le philosophe est somm de s'interroger sur la nature et le sens de son activit, du moins s'il ne veut pas rester entirement em marge du monde o il vit. Rencontre-t-il pour autant immdiatement le problme thique? Nous pensons que oui. Nous pensons que la problmatique thique, avec tout ce qui la soustend, constitue l'enjeu focal de la philosophie de la technique. (HOTTOIS, 1988, p. 9/10)Mas evidentemente o problema da tecnologia no apenas de natureza tica e moral. Ele convoca tambm a uma elaborao de uma filosofia poltica da tcnica, pois as operaes tecnolgicas e os efeitos da tcnica remetem a inmeras questes de nossa vida em comum. No apenas em nossa comunidade local, mas na atual comunidade global, integrada social e mundialmente. Uma tica da tcnica seria suficiente se a condio humana no fosse de natureza social e colaborativa. Se a vida coletiva humana fosse a simples reunio de indivduos vivendo no presente e para o presente, sem memria passada, sem prospeco futura. Se cada coletividade sem complexidade vivesse apenas para o instante de sua prpria existncia. Se cada coletividade no tivesse tambm que coexistir com outras coletividades sem complexidade e autonomia prpria. Se os indivduos no fossem eles tambm possuidores de desejos, de dominao, de submisso; se no houvessem lutas sociais. Assim, uma filosofia poltica da tcnica busca pensar os efeitos scio-econmicos das aes tcnicas dos grupos e indivduos nas coletividades e no sistema ambiental local e global. A vida humana compartilhada mais que a simples soma dos indivduos existentes. Ela convoca o passado, o presente e o futuro. Diz portanto respeito a vida humana contigua s geraes precedentes e s geraes futuras. Ela convoca o imaginrio social, o inconsciente coletivo e a criatividade de grupo. Assim, as categorias da filosofia poltica se impem como essenciais para a compreenso de nosso presente e a prospeco dos futuros possveis e dos desejveis, porque nunca a humanidade em sua multiplicidade esteve to interconectada como atualmente; nunca compartilhou tanto este novo e mesmo espao de sempre que o Planeta, e as mltiplas produes culturais dos povos e naes que o ocupam.Deste modo, o espao pblico se v dotado de uma nova racionalidade, de uma nova diversidade, de um novo mbito, global, incluindo aqui no apenas as naes e seus territrios mas o gerenciamento transnacional do espao areo e martimo, ou seja do conjunto da biosfera terrestre e mesmo do espao interplanetrio.Encontram-se assim transformadas as dimenses, a complexidade, a organicidade, as responsabilidades ticas e polticas desta e nesta nova tecnopolis global.

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    tica e tcnica: a inverso de uma tradio

    Para Galimberti, a tica hoje impotente para impedir que a tcnica faa o que capaz de fazer. (p. 519) O agir como escolha de fins cede lugar ao fazer como produo de resultados. Nesse sentido, a tcnica celebra a impotncia da tica, a definitiva subordinao do agir ao fazer. (p. 520)Enquanto situadas no horizonte dos limites da natureza, tica e tcnica puderam manter uma relao estvel. A natureza ela mesma oferece os modelos e regras de produo e de ao. Mas, na medida em que Criando um mundo cada vez menos natural e cada vez mais artificial, a tcnica obriga a tica a perseguir a paisagem que a tcnica produz e no cessa de transformar. Hoje o homem no pode pensar em conter a tcnica com a tica que a tradio filosfica lhe consignou. O fazer superou em muito o agir, e essa a razo pela qual a tica, que domina o agir, no capaz de regular a tcnica, da qual procede o fazer. (p. 523/524)Deste modo, o mundo torna-se a imagem e semelhana da tcnica e a tica deixa cada vez mais de experimentar-se no horizonte do estvel. Segundo Galimberti ento, A idade da tcnica cortou sem hesitao as razes que afundavam a tica no terreno estvel do eterno, e sucessivamente naquele menos estvel, embora mais responsvel, da previso futura. () Ao homem no restou nada mais que o destino de viandante. (p. 532)Sem metas e sem pontos de partida e de chegada, a no ser os ocasionais, a tica do viandante, que que no conhece seu futuro, () no pode se referir s ticas antigas, cuja normatividade olhava para o futuro como para um retomada do passado, porque o tempo estava inscrito na estabilidade da ordem natural. (p. 533)Na idade da tcnica, segue Galimberti: ...a nica tica possvel aquela que se carrega da pura processualidade, que, como o percurso do viandante, no tem em vista uma meta. O imperativo tico no pode ser deduzido de uma normatividade ideal () mas dessa incessante e sempre renovada factualidade, que so os efeitos do fazer tcnico. a tica que deve perseguir a tcnica e ter de se defrontar com a prpria impotncia prescritiva. (p. 537)Deste modo, ainda de acordo Galimberti, A relao homem-mquina pode inverter-se e, nessa inverso, dissolver o pressuposto humanista, porque l onde a tcnica, com sua autonomia, no se limita a contrapor-se ao homem, mas capaz de integrar o homem no aparato tcnico, o que se vem a criar um sistema homem-mquina, e onde os segmentos do comportamento humano podem ser reduzidos ao nvel de partes de mquinas reguladas. Na medida em que se reduz a distino entre problemas prticos e problemas tcnicos, e quanto mais se afirma o princpio da traduzibilidade dos primeiros nos segundos, a tica se dissolve, e com ela a histria como teatro da prxis, em favor de um tempo no mais ritmado pelas aes dos homens, mas pelo ritmo da evoluo tcnica que a ao do homem tenta governar. (p. 538\539)

    Poltica e tcnica: o governo como aparelho tcnico

    A filosofia poltica clssica de Plato e Aristteles, seguida de grande parte da moderna de Rousseau, Marx, Locke, partia do pressuposto de que a poltica era a cincia maior, em razo da qual todas as demais cincias prticas deveriam estar subordinadas, seja a tica, a economia, a estratgia militar. Entretanto, segundo Galimberti, este ideal poltico parece definitivamente superado em nossa poca, onde o fazer, regulado pela razo instrumental que garante a correspondncia dos meios aos fins, subordinou a si o agir. (p. 493)Seguimos a argumentao do mesmo autor na tentativa de entender esta transformao da relao entre sabedoria poltica e tcnica.Para Galimberti a idia de poltico indicava originalmente, um adjetivo que qualificava a condio desse animal (zon) que, incapaz de ser suficiente a si mesmo, s pode sobreviver agrupando-se aos seus semelhantes, dando lugar a essa formao comunitria, a plis (...) conjunto de pessoas que tm a mesma constituio (politia), que Aristteles assim define: 'forma de vida do Estado' (...) o homem por natureza um animal poltico (...) o Estado existe por natureza. (p. 494)A poltica define, pois, um trao especfico da essncia do homem, a sua diferena em relao aos animais e aos deuses. Desse modo, Aristteles, na determinao do poltico, evidencia essa conexo entre poltica e vida (...) permanecer, at a idade da tcnica, como um horizonte insuperado. O nexo entre poltica e vida no articulado pelo fazer tcnico. (...) felicidade; ela, de fato, o fim. (p. 495)O problema se coloca quando a fora do fazer tal que condiciona a possibilidade de temperar ou de governar o agir. (p. 496)Galimberti tentar desenvolver e a tese de que a tcnica se torna a cincia mestra, subordinando a lgica poltica sua prpria lgica. A tcnica emancipou-se da poltica e agora a condiciona. O autor tenta compreender esta transformao analisando o percurso desta relao que vai antiguidade at a modernidade. Aqui reproduzimos as principais ideas a este respeito:A natureza humana, que para Aristteles e Toms de Aquino era naturalmente poltica, aparece como aquele mal radical que Hobbes vislumbra na condio do homo homini lupus, para salvar-se da qual preciso construir uma poltica capaz de corrigir a condio natural. A poltica no mais expresso da natureza humana, mas artifcio construdo cientificamente para a correo da natureza. (p. 502)A poltica deixa ser ento a busca pelo bem comum para tornar-se uma administrao do mal menor. 'Tornando cientfica' a poltica e subtraindo-a da prxis, onde est a livre circulao das idias e das aes dos indivduos, Hobbes faz da poltica um sistema artificial. (p. 506)Neste sentido, a poltica torna-se cada vez mais um problema tecno-administrativo. Segundo Galimberti foi Max Weber quem melhor compreendeu esta mudana segundo a qual: Uma vez que a poltica se afasta do mundo da vida, para se limitar a buscar

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    as condies de vivncia, a poltica torna-se tcnica, portanto arte neutra (...) cada vez mais administrao e cada vez menos deciso, cada vez mais competncia tcnico-cientfica e cada vez menos prxis poltica. (p. 507)De acordo com o autor, para Weber a deciso poltica aparece cada vez mais dependente da competncia especializada. Como Weber previa, de que a relao de dependncia do tcnico em relao ao poltico se inverta, e a poltica se torne simplesmente o rgo executivo da inteligncia tecnolgica. (p. 507)Deste modo, impe-se o primado da deciso tcnica sobre a deciso poltica. Agora a tcnica decide sobre as decises transformando o primado do fim sobre os meios que atribua poltica o primado sobre a tcnica. O incremento do aparato tcnico tornou evidente, no s que no se podem estabelecer fins sem levar em conta os meios, mas at que necessrio escolher os fins partindo da disponibilidade dos meios. (p. 516)

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    TECNOCINCIA: NOTAS INTRODUTRIAS

    Nesta seo procuramos apresentar algumas notas que ajudam a problematizar o conceito de tecnocincia. Trabalharemos principalmente com a perspectiva de Hottois, nos apoiando ainda nas anlises de Heidegger e Galimberti.

    Primeiras aproximaes ao problema

    No simples definir o termo tecnocincia. Um olhar s origens gregas da palavra poderia comear a nos ajudar a entend-la. Como vimos antes, conforme Aristteles, techne aquela virtude intelectual cuja funo bem fazer, tratando-se de uma habilidade tcnica, um saber fazer qualquer: uma prtica desportiva, artstica, cientfica, moral, poltica. Existem, ento, os bons e maus praticantes desta ou daquela arte.J Plato, observa Galimberti, usa o termo techne no sentido de ser dono da prpria mente, que pode ser entendido tambm como ser dono de si, estar acima, controlar, mediar, os apetites e os instintos. Sentido que Foucault explora em seu tratado sobre a histria da sexualidade, destacando o problema das tcnicas de si, de autodomnio e autocontrole, digno, honrado, no culpado, dos desejos e apetites humanos. Percebemos aqui uma certa inter-determinao nas relaes entre o bem fazer tcnico e o bem agir tico. A tica aparece como uma tcnica de si. Em todo caso, no aparece aqui nenhuma questo tica diante da tcnica relevante, tal como faz a filosofia moderna. Trata-se mais da tcnica da tica, de uma arte da conduta e do cuidado de si, de um mtodo, um modo de vida, um estilo de existncia.No existe uma questo de fundo que envolva um princpio valorativo do tipo: a tcnica ela boa ou m? Antes, o que se coloca o problema do saber ou no fazer, se o que se faz, se faz bem ou mal. O juzo no moral, mas operativo e esttico. Ele toca bem o instrumento, ele conta bem uma histria, ou a histria foi bem contada, o instrumento foi bem tocado, a jogada foi bem feita. Envolve ao mesmo tempo um critrio tcnico e esttico. Trata-se de uma verdade produtiva, operativa, um saber fazer. Originalmente, parece que o termo techne envolve algo mais do que a instrumentalidade moderna. Ao menos para os Gregos, e tambm para os ps-modernos, a tcnica tambm uma arte, um bem e belo fazer. Entre instrumento e arte este o horizonte amplo da tcnica. Assim, enquanto verdade operativa, a techne se diferencia de uma outra virtude intelectual: a episteme. A cincia ou o conhecimento cientfico: objetivo, imutvel, segundo Aristteles. Eterno, segundo Plato. So as verdades eternas e imutveis. O conhecimento cientfico trata pois de um outro tipo de verdade, a das coisas como elas mesmas so. No est em questo aqui um saber fazer, nem um saber agir, ainda que a episteme implique um certo saber fazer e agir. No se colocam problemas de natureza operacional ou valorativa. A realidade tal qual ela . O que importa saber o que as coisas so, como elas so: o que est em questo ser e no o fazer ou o agir. O que importa conhecer o ser, a natureza, a essncia, o devir, o sentido. O saber tcnico e tico so subjetivos; o saber cientfico objetivo, ele independente dos sujeitos. Para Plato ele independente das prprias coisas que refere. absoluto. A modernidade com Maquiavel e Descartes situam-se na mesma tradio. O problema de O prncipe no ser um problema moral, mas tecnopoltico: como conquistar e manter os principados. O cogito por sua vez d uma certeza absoluta ao sujeito que pode, por sua vez, conhecer a realidade objetiva e independente. E junto a Bacon a natureza deve ser descoberta, objetivamente descoberta para melhor ser utilizada. Desde ento a cincia no parou de evoluir para um estgio cada vez mais instrumental. A instrumentalizao cientfica da tcnica moderna parte deste processo de compreenso da cincia e tcnica modernas. Hottois que prope o termo tecnocincia, mas Heidegger j percebia a inseparabilidade da cincia e da tcnica, na medida em que elas se tornaram indispensveis uma outra: "Diz-se que a tcnica moderna algo totalmente incomparvel com todas as outras tcnicas anteriores, porque ela repousa sobre a moderna cincia exata da natureza. Entretanto, reconheceu-se com mais clareza que tambm o inverso vlido: a fsica moderna, como algo que experimental, depende de aparelhos tcnicos e do progresso da construo de aparelhos."Vamos tentar aprofundar um pouco esta discusso tentando compreender os diferentes modos de ser da tcnica nas pocas antiga, moderna e contempornea.

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    Os modos de ser epocais da tecnologia

    A tcnica antiga era essencialmente imitativa. Era tambm de tipo colaborativo. A natureza era vista como fonte de energia, parceira na produo de energia. Os remos se apiam na fora da gua, o moinho na do vento, a charrua na dos cavalos, a espada no ferro e ao moldados. Diferentemente da tcnica moderna, segundo Galimbert, a tcnica antiga no era inquietante, porque no era capaz de ultrapassar a ordem da natureza, que o pensamento mtico e filosfico colocava sob o selo da Necessidade. (p. 31).A techne antiga convivia com a natureza, tirava-lhe o melhor sem a expoliar. H convvio, aumento de energia, transformao de matria. Mas mantinha os limites de sua atuao nos limites da naturezaA techne antiga indicava um tipo de produo sem efetiva interveno extraidora na natureza; servindo esta mais como inspirao a imitar, como fonte de energia a ser modificada; ao contrrio, a tcnica moderna, associada cincia moderna, tem como objetivo fundamental extrair da natureza e transformar as energias necessrias para a expanso do domnio humano sobre o planeta.A relao com a natureza operada pela tecnologia moderna se d pela extrao e transformao das fontes de energia existentes; a natureza aparece como fonte aparentemente inesgotvel de energia e recursos. Tal foi, por exemplo, o sentido que conduziu toda a produo industrial de massas moderna.A tecnologia moderna interventora. Ela penetra nos mistrios da natureza para lhe extrair os segredos, outrora inacessveis para a tcnica antiga. Ela manipula a natureza para lhe extrair energia. Extrao, explorao eis o sentido real da tcnica moderna.Para Heidegger, O desabrigar que domina a tcnica moderna, no entanto, no se desdobra num levar frente no sentido da poisis. O desabrigar imperante na tcnica moderna um desafiar que estabelece, para a natureza, a exigncia de fornecer energia suscetvel de ser extrada e armazenada enquanto tal." (HEIDEGGER, 2008b, p. 381)Ainda, segundo, Heidegger, "a verdade que o homem da era da tcnica desafiado de um modo especialmente claro para dentro do desabrigar. Tal fato se refere, primeiramente, natureza como um depsito caseiro de reservas de energias. Correspondendo a isso, a postura requerente do homem mostra-se, em primeiro lugar, no surgimento da moderna e exata cincia da natureza." (HEIDEGGER, 2008b, p. 386)A relao operada com a natureza pela tecnocincia contempornea de uma essncia totalmente outra: trata-se agora de manipular os dados da natureza em suas formas mais bsicas: nanotecnologia, biotecnologia, neurocincia; criando e recriando novas formas de vidas. A natureza agora no mais uma coisa, um objeto exterior ao prprio humano simplesmente a ser explorado; mas algo a ser criado e recriado. A prpria vida, inclusive a vida humana, transformou-se em objeto da curiosidade e ousadia tecnocientfica. A natureza a matria na qual a tcnica penetra e transforma, no apenas para extrair energia e recursos necessrios expanso humana, mas tambm e principalmente para criar novas formas de vida. A tecnocincia atual intervm na prpria gnese e nos processos criativos da natureza. A tecnocincia contempornea essencialmente co-criativa.

    A sabedoria tecnocientfica e o futuro da humanidade

    A sabedoria tecnocientfica instituir novos eidos, novos modos de ser, sentir e viver o mundo no sentido de uma ecosofia? Responder ela aos imperativos e anseios de preservao ambiental, justia social e qualidade de vida de nossa poca? De respeito aos diferentes jogos de linguagem e dilogo entre comunidades e indivduos to diversos quanto possvel forma humana?Parece que estamos falando de alguma utopia? No pelo menos este o objetivo que anima este estudo. Ao contrrio, aqui fala-se principalmente de heterotopia, de heterognese do social e do ambiental. Tentamos algo diferente de uma utopia futura; antes, tentamos fazer uma genealogia da tcnica, entender sua essncia, entender seu mecanismo arquetpico, e talvez tambm desmitificar, desapologizar, desconstruir. Trata-se de tentar entender a forma como a tcnica instituiu-se, determinou-se, determinou e foi determinada; como a tcnica transformou a paisagem do mundo humano e da vida na terra. Pensar o futuro, prospectar inevitvel e necessrio. Trata-se de mostrar os potenciais e os riscos. Mas certamente no se trata mais de inventar mais uma utopia final e salvacionista.O fato que preciso descobrir, inventar uma sabedoria tecnocientfica como condio de permanncia neste planeta dos seres vivos humanos e no-humanos. Muitos indcios nos indicam que esta sabedoria j nasceu e continua a expandir-se. Falta a ela talvez encontrar seus meios prprios de expresso, organizao e hegemonia poltica e cultural. O poder da tecnocincia indizvel. Para podermos intuir este poder extraordinrio, seria interessante nos colocarmos do ponto de vista da genealogia da tcnica ou da fico cientfica.

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    TRS GRANDES PERSPECTIVAS

    Esta seo apresenta um conjunto de notas indicando uma primeira grande sistematizao do pensamento filosfico face tecnocincia. So explorados trs autores centrais, Hans Jonas, Simondon e Engelhardt e suas posies a partir da perspectiva elaborada por Gilbert Hottois.

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    Tecnofobia e tecnofilia: humanismo e evolucionismo

    Hottois identifica trs grandes perspectivas filosficas hoje diante da tecnocincia. Ele as define como tecnofobia humanista, a tecnofilia humanista e a tecnofilia evolucionista. (HOTTOIS, 2008, p.618-622)A tecnofobia humanista metafsica. Ela evoca os perigos de transgredir a natureza e seus limites. A idia de base que a condio humana, caracterizada pela finitude, no pode ser superada. O limite , ao mesmo tempo, uma impossibilidade e uma interdio. (p. 618).A tecnofobia est estreitamente associada com a prpria instituio da filosofia, na medida em que esta se considera idealista. O mundo imaginado como algo estvel, eterno, necessrio. Esse mundo no material o verdadeiro mundo e a verdade ptria da humanidade. Esta por sua vez no deve se preocupar com a modificao de sua condio material, cujos limites so, por outro lado, fixados igualmente de modo imutvel. Desse modo, o que importa certa forma de vida que privilegia a simbolizao, a atividade introvertida (o discurso interior) e o desinvestimento do mundo. Para os tecnfobos esta a nica forma de vida digna do ser humano. (p. 619)O humanismo tecnfilo, por sua vez, expressa uma apreciao positiva em relao tcnica (p. 619), na medida em que esta poderia realizar os ideais humanistas no mundo da vida. Sua forma geral um instrumentalismo antropocentrado, quer dizer, a tcnica entendida como meio a servio da humanidade, suas aspiraes e desejos. (p. 620)O humanismo tecnfilo alimenta uma confiana otimista na natureza humana (). O progresso das cincias e das tcnicas coincide com o da humanidade e o desenvolvimento de uma 'cultura tecnocientfica' universal. Esse progresso escatolgico, pois tem uma finalidade que coincide com o fim da histria, a utopia realizada. Embora no possamos antecip-lo com preciso, esse fim ser um estado de equilbrio e de reconciliao: do homem com a natureza, dos seres humanos entre si, de cada um consigo mesmo. (p. 620)O humanismo tecnfilo no exige nenhuma refundio essencial da natureza humana; ele cr em seu desabrochamento feliz. O homem permanece fundamentalmente o animal racional que vai poder, graas organizao tcnica de sua condio material e social, fruir feliz e completamente sua essncia: viver a vida do esprito, a vida simblica, mas sobre a Terra e pela durao limitada de sua existncia. O humanismo tecnfilo considera possvel uma finitude feliz, universalmente reconciliada e desprovida de qualquer nostalgia dos supramundos. (p. 260) Este humanismo tecnfilo de tipo materialista considera a humanidade como algo perfectvel, mas no como modificvel e a ser modificada essencialmente. Este humanismo no considera realmente o processo de evoluo biocsmica, no decorrer do qual o homo sapiens apareceu. (p. 621)Por fim, a tecnofilia evolucionista, leva em conta a temporalidade biocsmica (p. 621). Situando a humanidade neste contexto, ela no absolutiza a presena, nem a eterniza. A forma humana vista dentro do processo evolutivo e, portanto, essa forma de vida no imutvel nem no-modificvel, principalmente naquilo que se refere a todas as limitaes que ela apresenta. (p. 621) Para a perspectiva evolucionista, o futuro reservado forma de vida humana depende dos seres humanos e de sua capacidade e vontade de interveno no universo. (p. 621)Estas trs perspectivas, segundo Hottois, estariam posicionadas a partir de trs autores principais: A tecnofobia humanista, teria como representante Hans Jonas (1903-1993); A tecnofilia humanista, Gilbert Simondon (1924-1989); E a tecnofilia evolucionista, seria representada por Hugo Tristam Engelhart (1941-).Ainda, segundo Hottois: Hans Jonas reage aos problemas suscitados pela PDTC e mentalidade utpica que o acompanha voltando-se para o passado: a tradio metafsica e religiosa, a filosofia pr-crtica. Com resposta a uma problemtica contempornea, ele quer reanimar uma atitude pr-moderna. (p. 624)Por sua vez, Simondon, ...perpetua, em grande parte, a posio tpica da modernidade. Ele pe as tecnocincias sob o signo do progresso, que tambm o da humanidade em um sentido universal. Os problemas suscitados pelas tecnocincias so solveis, principalmente co mo auxlio de uma educao, de uma aculturao e de uma informao apropriadas. (p. 624)Tristam Engelhardt, por sua vez, ...no cr nas respostas pr-modernas ou modernas como remdios para problemas colocados pela civilizao politica e tecnocientfica. preciso aceitar a irredutvel diversidade simblica (cultural) da humanidade e admitir que indivduos e coletividades exploram, em direes diferentes, os possveis tecnocientficos. O desafio consiste em gerar essa complexidade da maneira mais pacfica e menos desagradvel possvel. (p. 624)

    Hans Jonas e o princpio responsabilidade

    Tentando desenvolver um pouco mais estas trs distintas posies, Hottois observa que na perspectiva de Jonas, dois problemas importantes se colocam: o da destruio ambiental e da transformao da essncia da humanidade, na medida em que os meios tcnicos ameaam a biosfera global de um lado, e de outro, ameaam modificar, manipular e transformar a realidade biofsica do ser humano: da concepo morte, do corpo ao crebro, do indivduo espcie. (p. 627)Tal o imperativo do princpio de responsabilidade de Jonas: Age de tal modo que as consequncias de tua ao sejam compatveis com a permanncia de uma vida autenticamente humana sobre a terra. (p. 632)A heurstica [processo de descoberta] do medo , ao mesmo tempo, mtodo de descoberta axiolgica e fonte de sabedoria. Ela deve governar a tica e a poltica, confrontadas com os riscos conjugados da PDTC e do niilismo, a fim de preveni-los.(...) Ser responsvel exige que cultivemos o medo a propsito do futuro que poeramos produzir, a fim de nos inspirar uma grande prudncia em nossa aes presentes.

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    Praticamente, a heurstica do medo leva a deter todo empreendimento da PDTC do qual imaginarmos que possa ter conseqncias contra-a-natureza. () Ela basicamente desconfiada em relao dinmica de progresso e de evoluo que no , com efeito, de modo nenhum desprovida de riscos. (p. 633)Segundo Hottois, para Jonas, a humanidade deve aceitar a condio biofsica que a natureza (ou Deus) lhe concedeu. Ela deve fugir do desejo utpico de modificar ou de ultrapassar concretamente essa condio. (p. 636) Destacamos aqui algumas idias fundamentais do primeiro captulo da obra Princpio Responsabilidade de Hans Jonas para apresentar um pouco mais sua posio. Segundo Jonas: A tese de partida deste livro que a promessa da tecnologia moderna se converteu em ameaa, ou esta se associou quela de forma indissolvel. (JONAS, 2006, p. 21) A tecnologia tranformou-se no problema principal de nossa poca, reconfigurando o conjunto das prticas humanas sobre o planeta. preciso pois a construo de uma filosofia prtica nova para dar conta do novo problema."O novo continente da prxis coletiva que adentramos com a alta tecnologia ainda constitui, para a teoria tica, uma terra de ningum". (JONAS, 2006, p. 21)Hans Jonas procura construir uma tica para alm do humano em sua auto-referncia. Outrora era possvel uma tica estritamente humana, cujos efeitos de sua ao no transcendiam os limites do prprio humano. A cidade estava circunscrita nos limites da natureza, quer dizer, ocupava um lugar na natureza. Hoje a situao totalmente outra. A cidade domina a natureza, utiliza-a, expolia-a, transforma-a para o viver humano. A tecnopolis global incorporou a natureza aos seus desgnios. Isto chegou a um limite evidente e, apenas uma tica da responsabilidade poderia nos salvar de nossa prpria auto-destruio, pois a destruio da natureza tambm a destruio do prprio homem.Esta a situao dramtica e paradoxal de nosso tempo: aquilo que iria nos salvar, que iria nos emancipar, o mesmo que nos escraviza, nos destri. E no apenas a ns mesmos, situao totalmente nova no horizonte da tica, mas ao conjunto da Natureza. Hans Jonas elabora uma sntese monumental deste novo estado de coisas indizvel e imprevisto. Ele compreende o novo desafio colocado para a tica e a poltica contempornea a partir do reconhecimento de uma transformao essencial da natureza da ao humana. A tcnica dotou as aes humanas de tal poder que seu horizonte ultrapassou os limites prprios da sociabilidade humana. As aes humanas no contexto da sociedade tecnolgica devem ser repensadas e fundamentadas a partir dos impactos destas aes no conjunto da natureza. Trata-se da incorporao da natureza nos assuntos e prticas humanas. Isto implica uma insero da tica no horizonte temporal futuro. O futuro deve, a partir desta natureza transformada das aes humanas sobre o planeta, fazer parte dos clculos. Qual o efeito desta ao de agora sobre as condies de vida do futuro, das geraes futuras? Por isto o novo imperativo prope: age de tal modo que os efeitos de tua ao possam garantir a existncia do mundo futuro. o conjunto da natureza, sua permanncia no tempo futuro e que condio de possibilidade de toda existncia e portanto de toda ao que est em questo tambm. No apenas no faas mal ao teu prximo, no apenas faas o bem a quem puderes; mas tambm no faas mal ao teu prximo futuro. Faas o bem natureza, favoreas a vida, a afirmao da vida natural.

    Gilbert Simondon e o tecnohumanismo

    Na perspectiva do humanismo tecnfilo de Simondon, segundo Hottois, o fundamental seria a construo de uma cultura tecnocientfica, de uma clivagem entre cincias-tcnicas e culturas tradicionais na medida em que esta se tornou o problema fundamental de nossa civilizao. (p. 639) No h, para Simondon, oposio essencial entre tecnocincia e cultura. O que existe uma defasagem entre a cultura dominante em relao ao meio real e atual. (p. 640) Segundo Simondon, L'opposition dresse entre la culture et la technique, entre l'homme et la machine, est fausse et sans fondement; elle ne recoubre qu'ignorance ou ressentiment. (1989, p. 9)Nesta desfasagem de bloqueamento e de dissociao, a tecnocincia diabolizada, porque a cultura disponvel no permite simboliz-la de modo apropriado. (p. 640) Seria portanto necessrio desfazer esta dissociao se quisermos ser contemporneos de nosso prprio tempo.A tecnocientofilia de Simondon, sua insistncia sobre os ideais de universalidade e de emancipao, seu otimismo e sua esperana progressista e humanista, a ateno que ele concede aculturao e educao indubitavelmente fazem dele um herdeiro maior da modernidade. Essa modernidade de Simondon muito atual, na medida em que leva em considerao focal nossa civilizao tecnocientfica e os problemas concretos que ela suscita. (p. 646)O homem essa liberdade inapreensvel em ao no mundo material e que se serve da tcnica para se emancipar sempre mais dos limites que lhe impe o mundo fsico, do qual seu corpo, com todos os seus rgos, parte. (p. 646)

    Engelhardt e a diversidade evolucionista

    De acordo com Hottois, a perspectiva evolucionista situa-se no horizonte da chamada ps-modernidade. Engelhardt reflete a partir da realidade social existente no mundo ocidental, mas igualmente perceptvel em escala planetria: a de sociedades multiculturais, pluralistas, politnicas, 'politeistas'. (p. 650)Engelhardt no reconhece mais a resposta racionalista: a evocao de uma Razo universal, suscetvel de esclarecer de modo determinado deveres e interditos, to-somente um mito, o mito da modernidade. (p. 651)Podemos ouvir aqui a prpria voz de Engelhardt, na Introduo dm sua obra The foundations of bioethics, como testemunho deste posicionamento tecnfilo ps-moderno evolucionista:Moral diversity is real. It is real in fact and in principle. Bioethics and health care policy have yet to take this diversity seriously. This failure to recognize the depth of the moral diversity that characterizes our context is understandable. (p. 3)

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    This has been the modern philosophical moral project: to secure the moral substance and authority that had been promised by the Western Middle Ages through a synergy of grace and reason, but now through rational argument. This hope has proved false. Philosophy has shown itself to be many competing philosophies and philosophical ethics. Has fragmented into a polytheism of perspectives with its chaos of moral diversity and its cacophony of numerous competing moral narratives. (p. 5)A canonical, content-full secular morality cannot be discovered. The recognition of this failure marks the postmodern philosophical predicament. It is a circumstance difficult to accept, given our intellectual history and its exaggerated expectations for reason. Rational argument does not quiet moral controversies when one encounters moral strangers, people of different moral visions. (p. 8)Esta parece ser a perspectiva mais promissora no horizonte da filosofia da tcnica hoje. Aquela que oferece as condies tericas mais adequadas para enfrentar a complexidade dos problemas ticos e polticos na sociedade tecnolgica.

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    A TECNOPOLIS GLOBAL

    Esta seo traz algumas notas para uma teorizao mais focada na atualidade econmica e poltica, no contexto da sociedade globalizada. Apresenta tambm uma abordagem introdutria do principal problema colocado neste trabalho.

    Globalizao tecnolgica

    A globalizao um fato irreversvel se a entendemos para alm dos tradicionais preconceitos liberais ou socialistas. Ela aponta para uma humanidade unificada em sua mais alta diversidade. Esta diversidade, por certo, sempre existiu. Estava porm oculta pelos simples horizontes nacionais ou nacionalismos exagerados e pela falta dos meios que permitissem reconhec-la. Mas ela tambm se tornou ainda mais complexa na medida em que acelerou-se o intercmbio de todos os povos e culturas do planeta. E trouxe ao mundo um colorido todo especial.A globalizao caracterizada pela emergncia de novos mercados de bens e capitais mundiais, atravs de uma intensa e complexa interconexo planetria constituda por redes, vias e meios de transporte e comunicao. A globalizao tambm resultado da expanso dos capitais tecnolgicos que hegemonizam e determinam o conjunto das relaes sociais de produo e intercmbio mundiais, de um lado e da incorporao da subjetividade no centro deste processo, de outro. A globalizao assim o processo de mundializao molecular do capital tecnolgico. De fato, as geraes nascentes de hoje j podem ser considerados cidados do mundo, interconectados e interdependentes da grande rede global. Transitamos por pontes areas cada vez mais velozes, eficientes e acessveis s pessoas comuns; nos comunicamos desde nossas casas, computadores e celulares com todas as partes do mundo que se encontra conectado s redes cibernticas de comunicao, atravs de fibras ticas, cabos e satlites que envolvem o conjunto do planeta.Ao mesmo tempo, os fabulosos desenvolvimentos tecnocientficos dos ltimos cem anos tornaram possvel uma imensa e incomparvel produo de bens e riquezas, materiais e imateriais. Nunca foram to abundantes os produtos da terra humana demasiada humana. Nunca tambm parecem to mal distribudos. Vivemos indubitavelmente, ainda que desigualmente, em uma era de abundncia global.Todavia, nunca foi to grande tambm o perigo. O que nos liberta tambm o que nos aprisiona, o que nos salva nos condena a tcnica.Seja como for, para o nosso bem ou nosso mal, os destinos humanos encontram-se na dependncia quase absoluta da pesquisa e do desenvolvimento tecnocientfico cada vez mais determinante nos processos de produo e organizao sociopoltica global. Assim, de certa forma, tudo depender no somente do estgio propriamente tecnocientfico da tecnocincia, mas tambm dos aspectos ticos e polticos, subjetivos e jurdicos implicados na pesquisa e no desenvolvimento tecnocientfico, porque seus poderes parecem infinitos e o que outrora imaginou-se como possibilidade humana apenas nas mais ousadas fices aparecem como as mais admirveis criaes reais.O que surpreende, no somente o infinito poder da tecnologia atual, mas precisamente a incapacidade das instituies sociopolticas dominantes em gerar solues efetivas para problemas-limite, tais como os da degradao ambiental e das injustias e calamidades sociais que se alastram por todas as partes do globo em nveis que se tornaram insuportveis h bastante tempo.No h dvidas de que uma tica e uma poltica de natureza tecnocientfica esteja colocada na ordem do dia. E como poderamos falar de uma tica e uma poltica tecnocientfica sem cair nos tradicionais chaves, nas velhas palavras de ordem desgastadas, inventadas em situaes culturais e polticas outras e que hoje se apresentam bastante modificadas?Primeiramente, j o agir humano hoje tecnocientfico em grande parte. E quanto mais tecnocientfico, maior seu poder de ao. Depois, como vimos, a tcnica no um mero instrumento a partir do qual se possa instalar uma tica e uma poltica desde fora para dar a direo certa ao simples fazer instrumental da tcnica. A tcnica ela mesma impe suas condies. Ela mesma determina sua maior ou menor grandeza e poder. Ao humano no mais possvel escolher usar ou no a tcnica, pois ela tornou-se condio essencial de sua existncia.

    Tecnopoder civil global

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    Deste modo, assistimos emergncia de uma tecnopolis mundial altamente dinmica e complexa, em grande parte, como resultado do desenvolvimento dos novos capitais tecnolgicos globais. Entretanto, ao mesmo tempo, estes mesmos capitais globais encontram-se cada vez mais desconcentrados, se molecularizando no seio do ambiente social e gerando novas formas de produo, distribuio, organizao, participao e subjetivao dos cidados, grupos e instituies.Neste horizonte, gostaria-se de colocar em questo o problema principal deste trabalho: cuja tarefa consiste em analisar e refletir acerca das articulaes e contradies contidas nesta complexa e tensa relao de foras entre o capital tecnolgico global e o poder civil molecular. Quais so efeitos e o impacto da tecnologia em geral e das tecnologias moleculares de comunicao e produo no mbito das relaes sociais e de poder? No contexto da sociedade global, a tecnocincia e suas tecnologias moleculares de produo e comunicao tm como efeito o empoderamento ou esvaziam uma vez mais o poder dos cidados? Duas respostas em cada extremidade do basto aparecem de imediato. A primeira e aparentemente hegemnica aquela segundo a qual as novas tecnologias, excluem do poder os cidados, jogando-os a uma alienao ainda maior, a uma situao de impotncia absoluta. A segunda aquela que pretende que tais tecnologias apontam para uma apropriao poltica pelos indivduos no sentido de uma participao poltica e social efetiva, constituindo uma nova e indita forma de cidadania participativa global. Alienao ou participao, o recurso imagem do basto no seno didtico. Precisamos avanar no debate para alm desta oposio ainda maniquesta. Verificar as controvrsias de ambas as teses e argumentos, desdicotomizando-os, para, talvez, deste modo, avanar na compreenso dos efeitos de poder e contra-poder civil emergentes no contexto da sociedade tecnolgica global.

    O que de fato est acontecendo que uma subjetividade tecnolgica emergente vai impondo-se. Atualmente, uma pessoa sem seu celular, seu automvel, seu computador sente-se como um peixe fora da gua e dificilmente ter alguma chance de sobrevivncia no mar cada vez mais difuso de nossa contemporaneidade tecnolgica sem suas mquinas e equipamentos.O intercmbio humano vai tornando-se cada vez mais complexo na medida em que os meios dinmicos de comunicao vo sendo introduzidos, gerando por sua vez efeitos de feedback maiores. A velocidade deste intercmbio aumenta exponencialmente. Essa situao cria um novo estado de coisas impensvel antes. Sejam os exemplos mais imediatos, mas nem sempre bvios primeira vista, do telefone celular ou do automvel; tais meios no so apenas mais um e outro instrumento disposio dos indivduos, cuja subjetividade j estaria constituda desde sempre e independentemente e que portanto determinaria de modo essencial o uso deste meio, numa relao de completa exterioridade. Ao contrrio, o celular e o automvel, uma vez introduzidos no intercmbio humano, vo renovar e criar situaes objetivas e subjetivas completamente novas, impensveis antes de sua insero no mundo das coisas humanas. Eles vo redesenhar a seu modo as novas formas de vida cotidianas, polticas, econmicas e culturais. Ento se pode falar com qualquer pessoa em qualquer lugar da cidade ou do planeta, conquanto elas estejam cada qual com seu celular e um sinal de satlite disponvel. A presena torna-se ubqua. Vinte ou trinta anos atrs esta imagem seria impensvel. Foi a tecnologia da comunicao celular que tornou isto possvel. Se o governo de uma cidade mandasse tirar de circulao todos os automveis, a cidade deixaria de funcionar. Da mesma forma, se os celulares dos indivduos fossem retirados, eles ficariam perdidos. No se trata mais de retribalizar nem de viver em aldeias. Trata-se, antes, de tribos e aldeias globalizadas em sua singularidade, porque os problemas sociais e ambientais so inevitavelmente mundiais para as diferentes tribos e aldeias que compartilham a mesma biosfera. Eles implicam uma cidadania e uma conduta complexa, fundada na diversidade e na multiplicidade dos modos de vida e formas de existncia, orientada de preferncia por valores ecosficos.Hoje, as noes de tempo e espao, trabalho, vida pblica e privada, esto to desconcertadas e desterritorializadas, que j no sabemos mais exatamente nem que horas nem onde comea ou termina nosso trabalho, nossa vida privada e nossa vida pblica. O espao torna-se mais mvel e complexo. O tempo cada vez mais dinmico e acelerado. A subjetividade invade a antiga cena reificada do trabalho operrio industrial. As indstrias se transformaram em zonas limpas, onde quem menos parece circular so aqueles velhos operrios sujos, engraxados e explorados. A prpria classe trabalhadora se desenvolveu em um tal grau de complexidade que os grandes conceitos e categorias herdadas da tradio moderna e industrial so insuficientes para compreender seu estado atual.As classes trabalhadores esto to estratificadas e diversificadas que, no limite, parece no fazer mais sentido falar em uma classe trabalhadora como uma entidade capaz de se unificar a partir de interesses prprios, convergentes e universais, e que seria caracterizada principalmente pela explorao de sua fora de trabalho atravs da extrao de mais-valia. No seria, pois, exagerado falar da existncia de uma luta intraclasses, tanto no interior da chamada classe trabalhadora como no da chamada classe dominante.As classes esto elas mesmas recortadas por inmeras questes sociais, polticas e subjetivas, cujas relaes as tornam s vezes irreconciliveis. O problema feminino ou de modo geral de discriminao e opresso sexual, recorta transversalmente praticamente todas as classes sociais, baixas, mdias e altas, pois remetem ao mesmo conjunto de problemas, apesar de obviamente poderem ser resolvidos de formas muito diferentes, como o caso por exemplo do aborto, cujas mulheres das camadas mais baixas da populao so certamente as maiores vtimas.Sejam mencionadas tambm as questes de ordem tnico-raciais e religiosas que atravessam as grandes esferas da economia global, ao largo de outros problemas no menos importantes e que de forma alguma estariam perto de serem mecanicamente resolvidos a partir da soluo dos problemas de renda e distribuio da riqueza. Recolocamos aqui os problemas ambientais no centro das disputas de poder da agenda poltica contempornea. Todas as classes estariam divididas e certo que certos segmentos da classe trabalhadora teriam mais afinidade com certos segmentos da classe dominante do que poderiam ter com aqueles segmentos da prpria classe trabalhadora que se articulariam pela preservao ambiental.

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    Os problemas sexuais, tnico-raciais, religiosos, entre outros de um lado e de outro, o problema ambiental acabam por colocar questes fundamentais para a liberdade e a justia, em suma, para o bem viver na polis.Em todo caso, o que parece claro na situao poltica atual, com todas as suas contradies e suas diversidades socioculturais que tornou-se impossvel falar de uma utopia, ou seja, de um futuro lugar anunciado por um metarrelato que correria todos os recantos da histria e da cultura e contaria a histria da redeno ltima ou da salvao paradisaca. O humano um ser em busca constante de sentido; ele institui sua prpria histria e constitui a cada novo nascimento um novo modo de ser, de ver, de sentir. No mais possvel para a razo esclarecida imaginar sequer o que constituiria a redeno humana. O bem ltimo? A felicidade? A justia? A liberdade? A igualdade? A diferena? A riqueza? J tambm as noes de certo e errado, justo e injusto, bem e mal no so em nada consensuais ou semelhantes. Estas noes so mveis, adaptativas, diversas. Nossa condio humana desde sempre e irreversivelmente de diversidade tnico-cultural, religiosa e moral. So por certo possveis os consensos republicanos, nos quais os diferentes atores consolidam suas prticas e leis no contexto de suas vidas em comum. Mas estes so sempre provisrios, sempre solicitando novas adeses, novas discusses, novos fundamentos. Nada definitivo, nenhuma palavra a ltima quando se trata de costumes, opes e valores.Mas se, do ponto de vista da razo esclarecedora, no mais possvel desejar uma utopia final, redentora, isso no quer dizer que no possamos desejar, em nome da mesma razo, a emergncia de inusitadas heterotopias.

    A hiptese principal deste trabalho a de que no horizonte da sociedade tecnocientfica com suas tecnologias moleculares de produo e comunicao, de fato, mas no s, empoderam os indivduos, colocando-os em uma situao de reapropriao de suas prprias narrativas, e portanto da construo de seu prprio destino. Quanto e como ela empodera o indivduo do ponto de vista de sua autonomia poltica? De sua cidadania? So questes fundamentais abertas neste debate.A emancipao poltica inseparvel de emancipao subjetiva. Isto j mostrou-o bem Benjamin Constant: no h liberdade poltica sem liberdade individual, mas tampouco haver liberdade individual sem liberdade poltica.Este processo de reapropriao da prpria subjetividade atravs das novas narrativas de si emergentes, no entanto, ao mesmo tempo, condio e resultado da molecularizao das foras produtivas e comunicativas autoprodutivas, autoinstituintes se operando em escala global.A tradio filosfica nos ensinou a pensar nossas categorias polticas a partir dos grandes sistemas territoriais do poder. O estado-nao e suas relaes sociais e polticas nosso ponto de partida e modelo conceitual essencial ainda hoje. Basicamente trata-se de um modelo no qual existem dois grandes atores. O estado e seus cidados. O espao pblico localizado. Seus territrios esto circunscritos em espaos geograficamente bem delimitados. So cidades-estado que organizam a guerra, a paz, o comrcio com outras cidades-estado e administra seus conflitos internos.Este modelo mantm-se vivo at hoje, mas apenas parcialmente. No se trata mais de um estado-nao soberano entre outros soberanos. Hoje a interdependncia global e um estado s pode constituir-se sob alguma forma de interconexo. Isolado no consegue mais se inserir na lgica das relaes de poder atuais, com mercados e problemas continentais e internacionais, com formas de comunicao e transporte altamente dinmicos e complexos e, sobretudo, com relaes altamente complexas com o meio ambiente e a biosfera.

    A tecnocidadania emergente

    preciso agora recolocar o conceito de cidado situados nesta nova tecnopolis global que tentamos at aqui problematizar e compreender. Que seria, de que tipo seria, este novo cidado no contexto desta nova polis mundialmente integrada, com seus novos e colossais desafios? certo que j nas grandes cidades industriais e modernas o indivduo ele mesmo sentia sua impotncia como cidado, conforme Constant. Muito diferente do quadro antigo no qual o estado era a universalidade dos cidados, conforme Aristteles. Ou seja, a relativa simplicidade das relaes internas e externas, o nmero comparativamente irrisrio de cidados ativos naquela Grcia monumental, permitia aos indivduos sentirem na mo o poder real de sua cidadania. Na modernidade o indivduo est subjugado, primeiro, na crescente massa de cidados que habitam a mesma polis, depois, pelo aparato pblico-administrativo annimo. Seja em dois modelos extremos e exemplares, pases de democracia liberal, como os EUA, ou de cunho totalitrio, como aparentemente a China, parecem exatamente refns deste modelo de gesto pblica. Os representantes polticos, seja pela via democrtica ou pela via do partido nico, so aqueles que, para o bem ou para o mal, decidem de fato os destinos da polis.A representao poltica, cujos idelogos encontram-se indistintamente entre liberais e socialistas, a forma poltica por excelncia da modernidade. Do ponto de vista da liberdade e da complexidade pblico-administrativa, a representao a forma poltica possvel nos grandes estados territoriais modernos, com suas multides, no qual o principal modo de aquisio de bens e intercmbio social passa pelo trabalho industrial e pelo comrcio universal. Por isto, do ponto de vista da liberdade, a nica que realmente foi e experimentada modernamente aquela possvel no mbito da democracia representativa. Este era o contexto da modernidade industrial com seus grandes estados e suas grandes indstrias, mquinas e massas de trabalhadores e consumidores. Hoje, entretanto, as relaes de produo e intercmbio social, o trabalho e a subjetividade encontram-se em um contexto bastante diferente daquele, tal como tentamos esboar at aqui.Que seria pois este tipo de cidado virtual? Este cidado mundialmente interconectado? De um mundo ambiental e social em perigo extremo? O novo cidado da tecnopolis global? Esta discusso mal est comeando. E parece que se est ainda longe de esclarec-la em toda sua extenso. Entretanto, em todo caso, podemos reconhecer alguns sinais, algumas das caractersticas principais deste novo cidado.

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    Primeiramente, trata-se de uma cidadania cuja informao circula livremente em nveis global e local, na forma de uma imensa diversidade de pontos de vista. Depois, destaca-se a experincia de multiculturalidade desta cidadania mvel e interconectada transversalmente. Observa-se ainda a emergncia de uma linguagem hipertextual cada vez mais poderosa e convergente. Ainda cabe ressaltar que aquilo que caracteriza de forma essencial a cidadania planetria tecnocientfica a imerso sem retorno em um processo e uma forma de vida intercriativa e colaborativa. Cidadania, enfim, cuja participao poltica ao mesmo local e global: questes outrora estritamente locais se transformaram em questes globais; decises aparentemente locais podem impactar o conjunto do planeta e sua biosfera. Por exemplo, o impacto das grandes capitais do mundo na biosfera, seu impacto ambiental que afeta todos os seres humanos e no humanos do planeta. A rigor as leis chinesa, americana ou europia, apesar de serem diversas entre si, deveriam ser tambm globais.Assim, este cidado operar tecnolgica e dialeticamente em escala local e global. Dever ter conscincia do seu prprio poder e do impacto de suas decises locais, sendo convocado a participar ativamente da nova concertao poltica global. Para ajudar nesta tarefa monumental, a humanidade deu-se a si mesma, inventou-se para si a tecnocincia cuja participao nesta concertao poltica global um dado maior, uma novidade imprevista e inconteste, das possibilidades ilimitadas do imaginrio humano radical.

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    OBSERVAES FINAIS

    Diante da enorme complexidade deste quadro, neste trabalho apenas esboado, pode-se observar a emergncia de pelo duas importantes questes e ta