projeto pedagógico xavante - tensões e rupturas na intensidade da construção curricular

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338 Cad. Cedes, Campinas, v. 23, n. 61, p. 338-366, dezembro 2003 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> PROJETO PEDAGÓGICO XAVANTE: TENSÕES E RUPTURAS NA INTENSIDADE DA CONSTRUÇÃO CURRICULAR DULCE MARIA POMPÊO DE CAMARGO * JUDITE GONÇALVES DE ALBUQUERQUE ** A visita dos monitores às escolas nas aldeias era uma prática recorrente no desenvolvimento do Projeto Tucum – Curso de Formação para Professores Indígenas do Mato Grosso – mas não se fazia sem dificuldades: longas distâncias, estradas ruins, falta de apoio logístico por parte das prefeituras, con- dições de estada nem sempre muito confortáveis para jovens professoras inexperientes e urbanas. E, acima de tudo, sem- pre o imprevisível. A monitora havia se preparado bem para a visita à aldeia: dia e hora marcados para chegar, atividades previstas, longos contatos com o professor, via rádio. Dessa vez, pensava ela, eu não perco a minha viagem e consigo acompanhar as aulas do professor. Mas não foi ainda dessa vez que ela viu sua programação dar certo. Ao chegar, a primeira surpresa: a aldeia estava vazia. Desolada, saiu procurando uma explicação. Não era possível, se não houvesse marcado tudo com tanto cuidado! De repen- te, surge alguém, meio que rindo do seu desespero: – Tem ninguém, não, professora. Foi todo mundo pescar. – Não acredito que o professor fez isso comigo. Marcamos tudo, combinamos tudo certinho... – Se preocupe, não, professora. Eles levaram o quadro negro. * Professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-CAMPINAS). E-mail: [email protected] ** Professora aposentada da Universidade Estadual de Mato Grosso.

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Projeto pedagógico Xavante - Tensões e rupturas na intensidade da construção curricular.

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    Projeto pedaggico Xavante: tenses e rupturas...

    PROJETO PEDAGGICO XAVANTE:TENSES E RUPTURAS NA INTENSIDADE DA

    CONSTRUO CURRICULAR

    DULCE MARIA POMPO DE CAMARGO*

    JUDITE GONALVES DE ALBUQUERQUE**

    A visita dos monitores s escolas nas aldeias era uma prticarecorrente no desenvolvimento do Projeto Tucum Cursode Formao para Professores Indgenas do Mato Grosso mas no se fazia sem dificuldades: longas distncias, estradasruins, falta de apoio logstico por parte das prefeituras, con-dies de estada nem sempre muito confortveis para jovensprofessoras inexperientes e urbanas. E, acima de tudo, sem-pre o imprevisvel.

    A monitora havia se preparado bem para a visita aldeia: diae hora marcados para chegar, atividades previstas, longoscontatos com o professor, via rdio. Dessa vez, pensava ela,eu no perco a minha viagem e consigo acompanhar as aulasdo professor.

    Mas no foi ainda dessa vez que ela viu sua programao darcerto. Ao chegar, a primeira surpresa: a aldeia estava vazia.Desolada, saiu procurando uma explicao. No era possvel,se no houvesse marcado tudo com tanto cuidado! De repen-te, surge algum, meio que rindo do seu desespero:

    Tem ningum, no, professora. Foi todo mundo pescar.

    No acredito que o professor fez isso comigo. Marcamostudo, combinamos tudo certinho...

    Se preocupe, no, professora. Eles levaram o quadro negro.

    * Professora da Pontifcia Universidade Catlica de Campinas (PUC-CAMPINAS).E-mail: [email protected]

    ** Professora aposentada da Universidade Estadual de Mato Grosso.

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    Dulce Maria Pompo de Camargo & Judite Gonalves de Albuquerque

    RESUMO: Este artigo traz reflexes acerca da contribuio do Proje-to Tucum formao de professores ndios no exerccio do magist-rio para a construo de um currculo diferenciado que vem dan-do sustentao aos Projetos Poltico-Pedaggicos das Escolas Indge-nas Xavante de Mato Grosso. A partir do enfoque das polticas ofici-ais de educao e da importncia da resistncia dos movimentos or-ganizados, no sentido de provocar mudanas significativas na im-plantao e no desenvolvimento da educao escolar indgena, ana-lisamos a experincia dos Xavante e do processo de construo quevm travando por uma escola especfica e diferenciada. So aes eelaboraes novas, intensas e significativas que revelam as tenses cul-turais vivenciadas nas escolas e nas comunidades.

    Palavras-chave: Educao indgena. Escola indgena. Currculo. Pro-jeto Poltico-Pedaggico. Polticas indigenistas.

    THE XAVANTE PEDAGOGICAL PROJECT:TENSIONS AND RUPTURES IN THE INTENSITY OF THE CURRICULUM

    BUILDING

    ABSTRACT: This paper offers a series of reflections about the TucumProject training Native teachers to the practice of teaching thataims at building a new, differentiated curriculum, and is the basis ofthe Political-Pedagogic Projects of the Xavante Native Schools, in theState of Mato Grosso. Focusing on the official education policies, andon the importance of the organized movement resistances, which ledto significant changes in both the implementation and developmentof native school education, it analyses the Xavante experience and itsbuilding process, which is fighting for a differentiated, specific school.These new, intense and significant actions and elaborations reveal thecultural tensions experienced within schools and the communities.

    Key words: Native education. Native school. Curriculum. Political-pedagogic project. Nativist policies.

    ste artigo pretende refletir sobre o papel do currculo na sustenta-o de Projetos Poltico-Pedaggicos de Escolas Indgenas. Emque condies o currculo pode significar a garantia de constru-

    o de uma escola indgena diferenciada, especfica, intercultural e bi-lnge, conforme preconiza o Parecer 14/99/CNE?

    Para melhor contextualizar o problema faremos, inicialmente, umabreve retrospectiva histrica acerca das polticas indigenistas na base dasrelaes Estado brasileiro/sociedades indgenas, enfocando as polticas

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    oficiais de educao e o papel da resistncia dos movimentos organiza-dos, no sentido de provocar mudanas significativas na implantao eno desenvolvimento da educao escolar indgena.

    Tomaremos como referncia, para estas reflexes, o Projeto Tucum Programa de Formao de Professores Indgenas para o Magistrio que se desenvolveu no Mato Grosso, no perodo de 1996-2000.1

    Das 13 etnias participantes, distribudas em quatro plos, emdiferentes regies do estado, os Xavante, cuja histria da educao es-colar teve incio em 1957, por meio dos projetos educativos dossalesianos (Silva, 1997, p. 40), tm se destacado, mais recentemente,por reivindicarem, como cidados, um currculo diferenciado, a orga-nizao etria das crianas segundo as tradies de seu povo, calend-rio prprio, aposentadoria para os professores ndios e construo detextos didticos referentes cultura material que lhes d identidade.Ao final do Projeto, os Xavante buscaram construir coletivamente umaconcepo de currculo que pudesse contribuir para a elaborao dosProjetos Poltico-Pedaggicos de suas escolas com a participao dacomunidade.

    Polticas indigenistas

    A imagem que os colonizadores tinham a respeito das populaesaborgines encontradas na Amrica, por ocasio da expanso martima,determinou o modo de se relacionar com elas, ou seja, determinou adefinio das polticas indigenistas que vigoraram durante sculos e vi-goraram at h bem pouco tempo. Ou vigoram, ainda, sob novas formasde colonizao.

    Desde 1454 Portugal j tinha em mos uma bula papal2 que lhedava o direito de conquistar novas terras de brbaros e infiis e desubmeter seus povos escravido, por meio da guerra. Em 1529, parano deixar nenhuma dvida, outro Papa confirma a mesma autorizaomediante uma nova bula.3 A primeira idia que movia os portugueses,portanto, captura de ndios para os trabalhos forados era a de que eleseram seus escravos por direito. Assim, as guerras contra as bravas tribosnativas, os aprisionamentos, a catequese, a educao oferecida nos inter-natos, o esbulho de suas terras, os realocamentos, eram aes justas,quando no louvveis, at pelo menos o Diretrio de Pombal (1737),

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    que, levando adiante uma idia de modernizao da metrpole, decla-rou-se contra toda espcie de servido.

    As ordens religiosas e o Estado, embora aliados nos objetivos co-muns de trazer os ndios para dentro do sistema colonial, engalfinhavam-se na repartio de ndios descidos ou resgatados e no se entendiam nadefinio do ndio livre ou legitimamente escravizado.

    Outra concepo a respeito da natureza do ndio, que guiava osportugueses em suas polticas, era a de seres primitivos, incapazes, in-compatveis com o progresso e a civilizao. O Imprio consolidou umaidia do ndio incapaz mental e juridicamente, declarando, por decreto(1845), o seu carter de orfandade, o que lhes dava o direito de tirargrande parte de suas terras e justificava uma poltica paternalista que ostratava como crianas. Mesmo pessoas bem-intencionadas e amigas dosndios, como Couto de Magalhes, achavam que essa era a maneira corretade tratar os ndios: como crianas, guiando-os em sua vontade, admo-estando-os e punindo-os no seu erro, e procurando o melhor para eles,pelo trabalho, a obedincia e a religio (Gomes, 1991, p. 81).

    Foi nessa poca, sculo XIX, que se firmou a idia de que as na-es indgenas estavam condenadas ao extermnio. Dos milhes, da po-ca do descobrimento, restavam agora 300 mil. Na Repblica, a situaono foi diferente. A Constituio de 1891 ignorou a existncia de ndiosno pas. Apenas um decreto transfere aos estados a responsabilidade deadministrar as terras devolutas, entre elas algumas terras indgenas ain-da no demarcadas. No final do sculo, com a chegada dos imigranteseuropeus ao sul do pas, a situao dos ndios tornou-se mais delicada ea imprensa veiculava a idia de que o progresso era incompatvel com apresena dos ndios. Crescia a disputa pelas terras indgenas. O cientistaHermann Von Ihering chegou a argumentar publicamente em favor doextermnio dos ndios, em artigo publicado na Revista do Museu Paulista,em 1907 (Gomes, 1991, p. 84).

    Denncias de uma poltica de extermnio circularam em forosinternacionais e obrigaram o governo criao do Servio de Proteo aondio (SPI), de inspirao positivista, sob a responsabilidade do marechalCndido Rondon. Foram notveis a determinao e a liderana deRondon frente do SPI, o que atraiu muita gente dedicada causa ind-gena, entre eles os antroplogos Darcy Ribeiro, Eduardo Galvo, RobertoCardoso de Oliveira e Carlos Moreira Neto, que introduziram novas

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    prticas e formas de aproximao do ndio. O SPI sem dvida desenvol-veu uma poltica de respeito ao ndio, marcada pela responsabilidadepor parte da nao pelos destinos dos povos indgenas que habitam oterritrio nacional. A Comisso Rondon, que j estivera no Mato Grossoantes do SPI, baseava-se no princpio de que, mesmo sendo uma comis-so de pacificao, era sempre uma invaso em terra indgena, e que osndios tinham todo o direito de se defender. Por isso o lema de Rondon:Morrer se preciso for, matar nunca! O que j era um grande avano. Opositivismo baseava-se no evolucionismo de Comte, para quem todoobjeto natural tem uma alma, um esprito, a anima. Os ndios estariamnesse primeiro passo da evoluo, ainda no capazes do pensamentoracional, porque no conheciam o princpio da causalidade. Mas pode-riam evoluir e passar de um estgio a outro por meio da educao. Erapreciso, portanto, dar-lhes condies para que, o mais rpido possvel,pudessem se integrar Nao brasileira (Gomes, 1991, p. 122).

    O SPI no foi capaz de impedir o avano do latifndio nas terrasindgenas, tampouco evitar novos ataques armados por parte dos serin-galistas e castanheiros, no Amazonas. E ainda teve que se aliar com ospadres salesianos (AM, MT) e com igrejas inglesas e norte-americanas,4 oque trouxe conseqncias muito negativas, uma vez que a religio sem-pre procurou apagar as formas de representao da cultura indgena noconfronto com a nossa cultura.5

    Os resultados da atuao do SPI foram muito aqum do esperado,uma demonstrao da pouca fora poltica dos aliados histricos dosndios diante das foras antiindgenas dominantes (Gomes, 1991, p.88). O SPI terminou melancolicamente, no regime militar, sob acusaesde corrupo e maus-tratos aos ndios. Foi substitudo pela FundaoNacional do ndio (FUNAI), em 1967, com muito alarde e com o objetivode resolver a questo indgena de uma vez por todas (...): transformar osndios em brasileiros, integr-los nao e assimil-los culturalmente aoseu povo. A ideologia que domina a do desenvolvimento com segu-rana.

    Na dcada de 1970, poca do milagre brasileiro, do investi-mento em infra-estrutura, e da explorao mineral, estradas cortam opas em nome do progresso e da integrao nacional. Tratores rasgam asflorestas e os ndios so afastados das estradas e das suas terras. Ironica-mente, inverte-se uma realidade vivida no sculo XVIII, quando, para

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    garantir a posse territorial da capitania, a Coroa Portuguesa mandavaordens expressas de proteo e transformao das populaes indgenasem vassalos da Coroa, tratando os ndios como se brancos fossem, como intuito claro de adensar o contingente demogrfico da capitania, transfor-mando os ndios em Guardies das Fronteiras e Muralhas dos Sertes. Es-ses mesmos ndios que, no sculo XVIII, haviam sido seduzidos paragarantir as fronteiras brasileiras, agora so um perigo para a segurananacional (Cunha, 1998, p. 17).

    Sem autonomia para agir, colocada em mos de polticos que poucoou nada sabem sobre ndios, a FUNAI, geralmente, tem se prestado maisaos interesses antiindgenas que ao cumprimento de sua funo prioritria,o reconhecimento e a demarcao das terras indgenas.6 Na FUNAI, a po-ltica indigenista continua atrelada ao Estado e s suas prioridades. Opaternalismo continua sendo uma de suas marcas, coerente com umaviso filosfica que continua considerando o ndio uma criana, relativa-mente incapaz.

    No final dos anos e 1970 e incio dos anos de 1980 multiplicam-se as organizaes governamentais e no-governamentais de apoio aosndios. Nasce tambm a primeira organizao indgena de mbito naci-onal, a (UNI), a partir da qual se formam outras organizaes regionais outnicas. So freqentes os Encontros de Educao Indgena. Foramescritos muitos documentos desses encontros, com reivindicaes porescolas diferenciadas e Declaraes de Princpios.7

    O longo processo de mobilizaes sociais e polticas, de estudo e dereflexes crticas, no apenas por parte da sociedade civil organizada, mas,e sobretudo, dos povos indgenas e de suas organizaes, a presena forte emarcante das lideranas indgenas nos cenrios nacionais e internacionais,tudo isso fez com que a Constituio Brasileira de 1988 traasse, pelaprimeira vez, um quadro jurdico que regulamentasse as relaes do Esta-do com as sociedades indgenas contemporneas, reconhecendo-lhes osdireitos s suas organizaes sociais prprias, a suas lnguas, costumes,crenas, tradies e o direito s terras que tradicionalmente ocupam.

    A experincia mostra que, ao contrrio do que a FUNAI pretendeu,integrar os ndios sociedade nacional, apesar do inevitvel contato epor causa dele, os ndios que sobreviveram o fizeram exatamente porterem mantido a sua diferena cultural e no terem se diludo no caldei-ro da sociedade nacional.

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    Hoje certo afirmar que o Brasil possui uma Constituio dasmais avanadas com relao aos direitos indgenas. Este realmente ummarco diferencial com relao s polticas integracionistas que vigora-ram at quase o final dos anos de 1980.

    Alm da Constituio Federal, existe um conjunto de decretos,leis e normas que estabelece procedimentos administrativos e discipli-nadores de reconhecimento e proteo dos direitos indgenas, a que sed comumente o nome de Legislao Indigenista. Essa legislao estbaseada, sobretudo, na lei n. 6.001, de 1973, tambm conhecida comoEstatuto do ndio. O Estatuto do ndio est em reviso no CongressoNacional desde 1991, quando a Cmara dos Deputados, depois de trsanos de discusses, aprovou o projeto intitulado Estatuto das Socieda-des Indgenas. Este documento inova porque, em obedincia Consti-tuio de 1988, revoga a disposio do Cdigo Civil, que estabelece arelativa capacidade civil dos ndios, e, por conseguinte, supera o institutojurdico da tutela, em vigor. Por este Estatuto, os ndios deixam de serindivduos relativamente incapazes que devem ter a proteo do Esta-do at que se integrem comunho nacional, para assumir a condiode membros de sociedades distintas e diferenciadas que possuem direi-tos especiais, os quais devem ser protegidos nas relaes com o Estado ecom a sociedade brasileira (Ldia Luz, Comisso Pr-ndio de So Pau-lo). timo! S que esse documento est, h mais de uma dcada, paraser aprovado no Senado e sancionado pelo presidente!

    Polticas de educao

    A educao escolar indgena teve incio desde os primeiros mo-mentos da colonizao e surgiu da necessidade do contato dos coloniza-dores com as sociedades indgenas, com expressiva tendncia de domi-nao. Somente no sculo XIX, com o aparecimento de uma nova cincia,a antropologia, cuja preocupao principal a diferena cultural, queum novo momento comea a se desenhar nas relaes do Estado com asnaes indgenas, podendo-se afirmar com Mrcio Silva e Marta Azeve-do que, desde o sculo XVI, buscou-se a submisso poltica das naesindgenas por meio de prticas que sempre aliaram algum tipo de atividadeescolar civilizatria. O colonialismo, a educao para os ndios, oproselitismo religioso, no Brasil, sempre andaram juntos (Silva & Aze-vedo, apud Silva & Grupioni, 1995, p. 149-161).

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    Hoje, depois da Constituio de 1988, a LDB/96 e o RCNEI (1998)propem uma educao escolar diferenciada, respeitando o universosociocultural das etnias. O desafio hoje no so as leis, mas a constru-o da escola indgena pelos ndios, autnoma, levando em conta osprojetos e os destinos dos seus povos: onde quer que exista escola, eladeve ser parte de um projeto que a transcende. um longo caminho que,a julgar pelo movimento indgena organizado, os ndios esto dispos-tos a percorrer.

    As leis mudaram pela fora dos movimentos organizados. Osgovernantes continuam oferecendo o mnimo, mudando apenas o dis-curso, quando j no mais possvel escamotear a m vontade em aten-der s reivindicaes das naes indgenas e das organizaes parceirasdo movimento. Veja-se o exemplo do Mato Grosso: quando as primeirasturmas terminaram o curso de magistrio, pelo Projeto Tucum, estavatudo preparado para a continuidade da formao dos professores cursistas,naquele momento em nvel de terceiro grau. Foram anos de debate, depreparao, de discusses, de negociaes. Quando tudo j estava pron-to para comear, assim se expressou, em um artigo no Jornal Folha de S.Paulo (Tendncias e Debates/19/1/2000), o ento governador Dante deOliveira: Estamos dando oportunidade para que as crianas ndias sejamformadas por professores de suas prprias etnias.

    Depois de anunciar os trs cursos de licenciatura, o governadorexplica quais foram as aes que os precederam:

    Essa iniciativa representa um segundo passo. O primeiro foi o ProjetoTucum (...). A essncia da proposta do Projeto Tucum est sustentada notrip terra, lngua e cultura. uma experincia nova para romper adualidade que separa a educao da prtica cultural. No sentido inverso, ocontedo das disciplinas diferenciado, especfico, intercultural e biln-ge. Essa opo evita, entre outras coisas, que o ensino exclusivamente emportugus leve ao desaparecimento das lnguas indgenas, como demons-tram vrios casos.

    Em seguida, acrescenta que o prximo passo ser a criao de umauniversidade indgena: Quando tivermos uma universidade indgena,ela se transformar num espao de perenizao e fortalecimento do imensoacervo cultural das dezenas de etnias espalhadas pelo pas. (...) um espa-o dos prprios ndios, democrtico, onde podero, eles prprios, defi-nir o destino de suas futuras geraes.

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    Projeto pedaggico Xavante: tenses e rupturas...

    O que levaria o governador do estado a vir a pblico, num dosjornais de grande circulao, declarar-se por uma nova poltica de edu-cao indgena, to diferente daquelas polticas integracionistas (catequese,SPI, FUNAI...) a que foram submetidos os ndios do Brasil durante sculos,no esforo de, em nome da igualdade, faz-los desaparecer como nao ecomo identidades individuais, na medida em que os processos de educa-o lhes surrupiavam a lngua, a religio, os costumes, a cultura? Quaisos efeitos que essa poltica de assimilao do ndio sociedade nacionalproduziu nas naes indgenas, e em especial na nao Xavante, duranteos sculos de colonizao?8 Quais os processos de educao que estohoje significando para o ndio e de que lugar significam? Como resisti-ram os ndios aos processos de educao oficial e como resistem aindahoje? Quais as polticas do governo do Mato Grosso com relao ques-to indgena, hoje? Como se posicionaram os Xavante neste processo?

    No sendo a linguagem transparente, utilizamos os procedimen-tos que o corpo terico da anlise do discurso disponibiliza; dessa ma-neira, pela anlise, ser possvel nos situarmos melhor diante de seuspossveis equvocos, contradies, incompletudes e, sobretudo, percebero lugar histrico, social, poltico e ideolgico de onde fala o governador,que o que, ao final, determina a produo dos sentidos. O lugar deonde se enuncia diz respeito aos sujeitos e situao: o que dizer e comodizer no surgem diretamente de uma viso de mundo ou da predomi-nncia de interesses deste ou daquele sujeito-que-fala, mas da correlaoe coexistncia entre enunciados; daquilo que no /no pode ser dito deoutra maneira, quando se diz alguma coisa (Foucault, 1996).

    Tomemos, para anlise, em contrapartida ao discurso do governa-dor do MT, o Documento Final da Conferncia dos Povos e Organiza-es Indgenas do Brasil, realizada em Porto Seguro-BA, por ocasio dacelebrao dos 500 Anos do Descobrimento, e onde se pode perceberuma outra concepo de cultura e identidade: ali os ndios retomamcom fora o propsito de resistir s polticas de assimilao que tmlevado ao desaparecimento centenas de naes indgenas: Ns, povos in-dgenas, percorremos j um longo caminho de reconstruo dos nossosterritrios e das nossas comunidades. Com essa9 histria firmemente agar-rada por nossas mos coletivas, temos a certeza de que rompemos com otriste passado e nos lanamos com confiana em direo ao futuro.

    Retomemos novamente, para comparar, o anncio do governadora respeito da implantao da universidade indgena:

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    (...) a implantao, em Mato Grosso, de uma universidade indgena (...) ser,certamente, o grande passo em defesa da cultura indgena (...) um espaodos prprios ndios, democrtico, onde podero, eles prprios, definir o des-tino de suas futuras geraes. No Brasil (...) os povos indgenas vm sendovtimas de um preconceito arraigado, como se fossem cidados de segundacategoria, condenados estagnao cultural e excluso. Os nmeros nodeixam dvidas. Num levantamento de 1996, em todo o Brasil, apenas 62ndios tinham curso superior. E temos mais de 300 mil ndios. O restantevive numa espcie de gueto cultural. (Loc. cit.)

    As palavras do governador so quase as mesmas do documento dosndios, mas o sentido no o mesmo. Entre os ndios, o que se nota umaidia de identidade e de cultura em movimento: rompe-se com o passado,mas no se rompe com a histria para se lanar num futuro, no definido,num passe de mgica, como quer o governador, mas sonhado, diferente,possvel de ser construdo. O governador liga a idia de cultura de co-nhecimento e de que, sem a cultura dos no-ndios, sem o curso superiorque o Mato Grosso est preocupado em oferecer aos ndios, eles esto exclu-dos, condenados estagnao cultural, a viver num gueto cultural. Ou seja,a soluo para os problemas dos ndios vir via conhecimento universit-rio; a nica sada para o ndio integrar-se sociedade nacional. Quediferena faz esta poltica atual do Estado de Mato Grosso e as polticasintegracionistas de antes da Constituio de 1988?

    Em contrapartida, o Documento dos Povos Indgenas continua:Apesar do peso da velha histria, inscrita nas classes dominantes destepas, na sua cultura, nas suas prticas polticas e econmicas e nas institui-es de Estado, j lanamos o nosso grito de guerra e fundamos o incio deuma nova histria, a grande histria dos Outros 500 (em Coroa Verme-lha-BA, 21 de abril de 2000).10

    O evento dos 500 Anos do Descobrimento, em Porto Seguro,pode ser considerado um marco fundador da resistncia indgena aosprocessos de assujeitamento a que foram expostos nos anos da coloniza-o. A grande Marcha em direo Coroa Vermelha, na aldeia dos pataxs,que cruzou o pas em todas as direes, mobilizou no s as comunida-des indgenas, mas outros setores da sociedade nacional; emocionou osmoradores das cidades por onde passou, recebeu o apoio e a solidarieda-de ao longo dos caminhos, dando visibilidade a uma histria de resis-tncia e ao desejo de realizar uma aliana maior, na construo dos Ou-tros 500!

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    H uma forte contradio na fala dos ndios com as posies dogoverno; como se eles respondessem: No temos nada a ver com essavelha histria de dominao e sua cultura, sua poltica, suas institui-es.... H uma ruptura em movimento, expressa em: () j lana-mos o nosso grito de guerra e fundamos o incio de uma nova histria, agrande histria dos Outros 500. H um grito de guerra dos povosindgenas em Porto Seguro, convocando para a construo de uma novahistria: nos lanamos com confiana em direo ao futuro.

    Retomamos, agora, esses dois momentos para concluir, analisan-do o conceito de identidade. Ns, povos indgenas, percorremos j umlongo caminho de reconstruo dos nossos territrios e das nossas co-munidades. Com essa histria firmemente agarrada por nossas moscoletivas, temos a certeza de que rompemos com o triste passado e noslanamos com confiana em direo ao futuro.

    No evento dos 500 Anos, fica claro que os ndios, ao fazerem estepronunciamento, assumem uma identidade mais ampla com o objetivode conseguir uma visibilidade maior no cenrio nacional, importantecomo afirmao, como algo vital para quem busca um espao social epoltico prprio. Sylvia Caiuby Novaes acredita que este ns coletivo,esta identidade ampla invocada sempre que um grupo reivindica umamaior visibilidade social face ao apagamento a que foi, historicamente, sub-metido (1993, p. 25). Ao analisar o evento do Primeiro Encontro dosPovos Indgenas no Brasil, em 1982, a mesma autora observa, citandoEni Orlandi, como h a incorporao e a apropriao do discurso dooutro, do no-ndio, no caso a categoria ndio genrico, os ndios, umacategoria criada no Ocidente para anular as diferenas entre as naes.Utilizada pelos prprios ndios, por meio deste ns coletivo no tem oobjetivo de apagar as diferenas entre as diversas etnias, mas a maneiraencontrada de se organizarem e apresentarem as suas reivindicaes aogoverno e sociedade de um modo geral (idem, ibid., p. 67). naqualidade de ndios que eles conseguem se articular e enfrentar o po-der poltico to fortemente manifestado nas celebraes dos 500 Anosdo Descobrimento.

    Poder e resistncia coexistem e algumas lideranas indgenas socriativas em achar sadas para situaes de opresso, at mesmo o gestode imitar o no-ndio, de apropriar-se do seu discurso, vestir-se dendio quando isso no mais significa para eles, ou no significa da mes-

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    Dulce Maria Pompo de Camargo & Judite Gonalves de Albuquerque

    ma maneira como quando isso ocorre em um ritual, em suas sociedades;todos esses gestos podem ser puramente estratgias de afirmar-se emsuas diferenas.11 Utilizados como estratgia de resistncia, manifesta-o de diferenas, os gestos (tangas, danas, colares, cocares...) no afetama fora vital, a criatividade, o humor dos ndios.

    H um claro deslocamento de sentidos no discurso do Estado:uma maneira poltica de negar a poltica (Pcheux, 1982, p. 11). Ao seincluir no sujeito (ns estamos dando oportunidade... Quando tiver-mos uma universidade indgena...), o governador tenta romper as fron-teiras reais existentes entre ndios/Estado, como se investisse na tentati-va de fazer desaparecer a diferena e estabelecer uma nova ordem natural,sem lugar para o conflito, para as contradies. E se, no Brasil, (...) ospovos indgenas vm sendo vtimas de um preconceito arraigado, comose fossem cidados de segunda categoria, no Mato Grosso, dir, dife-rente: No Mato Grosso (...) o poder pblico preocupa-se em ofereceraos ndios o mesmo direito j desfrutado pelo homem branco.

    O discurso do governador no isolado: nesse mesmo ano, nascomemoraes oficiais do Dia do ndio, em Cuiab-MT, foi a vez de osecretrio de Educao, em seu discurso, afirmar textualmente: Estamosdando a oportunidade de dar aos ndios aquilo que os professores bran-cos j tm.

    Como se pode observar, um enunciado parfrase do outro, alis, tambm o mesmo discurso do Ministrio da Educao que reconheceaos ndios o direito prtica de suas formas culturais prprias, assegu-rando uma educao escolar diferenciada e de qualidade, intercultural ebilnge (RCNEI, 1998, p. 31). MEC e governo confirmam, com estediscurso, aquilo a que Pcheux (1982) denomina o inexistente consti-tutivo, isto , apagam-se as diferenas que separam os dois mundos,Estado/ndios (diferenas asseguradas por disjunes visveis como ter-ras no demarcadas, sade e escolas precrias, Estatuto das SociedadesIndgenas engavetado no Congresso...), pela referncia a um outro mundoque anula essa separao: a ideologia do Estado bonzinho e competenteque est dando aos ndios as mesmas oportunidades que o branco j tem;que est vencendo um preconceito arraigado contra os ndios; que estoferecendo uma educao que prioriza a pesquisa, a afirmao tnica, avalorizao de costumes, lnguas e tradies, a utilizao das lnguasmaternas no trabalho docente e na produo do conhecimento; as crian-

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    Projeto pedaggico Xavante: tenses e rupturas...

    as sendo formadas por professores de suas prprias etnias etc. Se antesas relaes foram equivocadas, se existe o preconceito contra o ndio, noBrasil, hoje no Mato Grosso ser diferente. Os eventos comemorativos,o Projeto Tucum e, sobretudo, a universidade indgena, tudo isso escon-de uma desigualdade real. Surge uma nova frase democrtica, umalinguagem dupla, o ns, tentando romper as barreiras, eliminar asfronteiras, introduzindo uma barreira poltica invisvel. Ento, j noh como distinguir entre o que o governo proclama, as suas promessas,e o que ele realmente faz: uma maneira poltica de negar a poltica(Pcheux, 1982, p. 11).

    Em face dos seus adversrios, o Estado no joga com qualquercoisa, mas vai nos pontos mais sensveis; no caso dos ndios, no MatoGrosso pega a educao: Sempre disposto a colonizar tudo, a serializartudo, inclusive os projetos alternativos (Guattari & Rolnik, 1999, p.100), o Estado assume um discurso que no tem a origem nele mesmo,mas ao qual o Estado no pode no se referir. Porm o articulista omitea histria que deu origem a esses e outros projetos de educao no MatoGrosso; uma longa histria de resistncia criativa no processo da educa-o pblica, a partir do Projeto Inaj no Mdio Araguaia.12

    No movimento dos sentidos,13 o silncio significa e est relacionadocom o carter de incompletude da linguagem; o no-dizer se liga histriae ideologia, o cerne fundamental do funcionamento da linguagem eno uma dimenso acidental. No confronto do poltico e do simblico,o discurso do Estado sobre a educao indgena apaga a histria dupla-mente, pelo silncio: por um lado, apaga a histria das polticas integra-cionistas que, durante quase cinco longos sculos, tentaram o exterm-nio das naes indgenas, investindo na sua assimilao sociedadenacional ou consentindo/incentivando a violncia explcita que marcoua ocupao e a colonizao do pas. E, por outro lado, apaga tambm aigualmente longa histria de luta e de resistncia dos prprios ndiosque nunca aceitaram a escravido e o assujeitamento, como vimos noincio deste artigo.

    A histria de resistncia das sociedades indgenas teve seus mo-mentos mais fortes e visveis a partir dos anos de 1970, com grandesmobilizaes que culminaram com a ativa participao das organizaesindgenas e indigenistas no processo da Constituinte, e que resultou noreconhecimento do ndio como pessoa, como cidado brasileiro com

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    direitos coletivos e especiais. Mas essa histria que deu origem a essasmudanas no s no mencionada no discurso oficial como deturpa-da pela reiterada afirmao ns estamos dando....

    Ao se incluir no sujeito: Quando tivermos uma universidade indge-na... deixa claro, sob a mscara da democracia, o autoritarismo. como seele (o governador) dissesse: Sempre foi assim. Vocs dependem de ns.A tutela sobre os ndios est longe de acabar, mas tem seus disfarces...

    Projeto Tucum: a construo do currculo pelos Xavante

    A nao Xavante, da etnia j, conhecida pela sua fora corporal eespiritual e por serem guerreiros e caadores, que se dedicam tambm agricultura. A partir de meados do sculo XIX, sua histria foi freqen-temente marcada por confrontos e guerras com outros povos indgenas, epela migrao constante em busca de um territrio permanente. Somentea partir do incio do sculo XX que eles se fixaram na regio sudeste doestado de Mato Grosso (Silva, 1998).

    O povo Xavante tem, desde o sculo XVIII, uma histria decontato com o no-ndio marcada pela violncia, pelo sofrimento e pelaluta pela terra, em que se misturam ingenuidade e resistncia hericacontra os avanos da sociedade nacional por sobre o seu territrio e seudestino. Apesar de, nas trs primeiras dcadas do sculo XX, os Xavanteterem sido pouco molestados, a partir de meados dos anos de 1940,com os projetos governamentais para a ocupao do serto de Mato Gros-so, as aes para a sua pacificao foram mais agressivas.

    A rendio de uma primeira aldeia, margem do rio das Mortes, celebradacomo a pacificao dos Xavante: a regio estava aberta, afinal, coloniza-o e ao progresso; os selvagens destemidos, afinal, amansados. Abre-se ocampo de batalha: a dcada de 50 divulga notcias de expedies punitivas,dos massacres, das transferncias de territrio, das epidemias que dizimarammais da metade da populao Xavante, segundo as estimativas possveis. (Sil-va, 1998, p. 358)

    A histria deste povo, portanto, tem como eixo principal, de umlado, as migraes contnuas em busca de refgio nos campos cerradose, de outro, o convvio com o no-ndio, pelo menos a partir do sculoXVIII, apesar de terem continuamente se negado ao contato, especial-mente no sculo XIX (Silva, 1998, p. 357).

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    A interferncia em sua histria vai ter uma ao mais decisiva em1977, quando iniciada pelo governo, por intermdio da FundaoNacional do ndio (FUNAI), a implantao do Plano de Desenvolvimen-to da Nao Xavante, cujo resultado foi exatamente o inverso daqueleprometido aos ndios. Alm de se tornarem muito dependentes do go-verno federal, os Xavante desapareceram, naquele momento, do cenriode reivindicaes dos povos indgenas, cujo movimento crescia e se tor-nava cada vez mais organizado (idem, ibid., p. 358-360). A forma decontato entre o no-ndio e os Xavante pode ser claramente percebidano processo de discusso da escola que esto construindo.

    Atualmente a populao Xavante constituda por cerca de 10mil pessoas, distribudas em 99 aldeias espalhadas em 6 grandes reasterritoriais que, por sua vez, esto alocadas em 6 municpios da regiosudeste de Mato Grosso. Tais territrios possuem 70 escolas que aten-dem por volta de 300 alunos na educao infantil e 1.650 no ensinofundamental. Dos cerca de 150 professores Xavante, 61 foram cursistasdo Projeto Tucum.

    No processo de luta pela escola diferenciada indgena, o ProjetoTucum, entre avanos e recuos, sem dvida trouxe muitas contribuiespara a reflexo e a construo da escola do povo Xavante. Ao assumirmoscomo consultoras e docentes14 a disciplina de cincias sociais para os Xavante Plo II , um de nossos objetivos foi justamente o de subsidiar o traba-lho a ser realizado pelos professores ndios em suas escolas e com a comu-nidade. Por meio do material produzido por eles, no decorrer do Projeto, possvel perceber o trilhar de novos caminhos e possibilidades que per-mitem ampliar a dimenso da anlise e interpretao referente s reflexesproduzidas por eles acerca da escola e do currculo que desejam.

    Para melhor exemplificar, selecionamos alguns depoimentos deum texto elaborado pelos professores Xavante Contribuies para ocurrculo (Jornal Projeto Tucum, Plo II, 16/8/1997):

    Ns, o povo Xavante, queremos que a Escola ensine a nossa Cultura, Ln-gua e Tradies, que seja bem diferenciada e ao mesmo tempo tambmaprender a Lngua Portuguesa.Ser reconhecida, registrada oficialmente, diferenciando o calendrio escolar,horrio escolar e a grade curricular.Queremos ter os recursos mandados pelo MEC diretamente na Escola Ind-gena.

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    Para melhorar a Escola Indgena deve existir a direo da Escola dentro daComunidade (Aldeia).Que a Escola Indgena se fortalea com a tradio Xavante. importanteaprender a ler e escrever para ter conhecimentos e defender todos os povosXavante.Ns queremos a Escola para ensinar as crianas para defender a nossa Co-munidade, no queremos acabar com a nossa Cultura.

    As experincias que vivenciamos no Tucum trazem, certamente,nova compreenso e interrogaes a um tema to especial e to emer-gente. Nossa atuao no apenas como mediadoras, mas principalmentecomo co-participantes de um processo de construo de conhecimento,permitiu a abertura de um mundo novo, que se abriu especialmente noque diz respeito a concepo de escola, currculo escolar e formao do-cente, o que implicou tambm ensinar, aprender, criar, intuir com paci-ncia e humildade.

    Tais experincias tiveram como referencial a perspectiva tnica,uma vez que esta permitiu considerar o ensino e a aprendizagem no seioda comunidade de pertena, e a busca do desenvolvimento do espritocrtico inventivo, de modo que novas vises e outras formas de saberpuderam ser inseridas no processo de construo desse conhecimento.

    A partir da experincia vivenciada no Tucum, sentimos, no cotidi-ano da sala de aula, a dificuldade de os Xavante romperem com ahegemonia do conhecimento nico, universal e permanente, ao mesmotempo que, contraditoriamente, de uma forma ou outra, procuravamrefletir sobre a possibilidade de construrem um novo caminho e umanova lgica. Segundo um professor que se destaca por sua liderana:

    Tudo depende do dilogo e da experincia. Temos que experimentar. Notem modelo pronto. O importante discutir, refletir e tentar mudar. Cons-truir uma escola em benefcio do povo. No adianta falar. Temos que mos-trar mudanas, o exemplo. Muitas vezes preciso acalmar os pais. O professortem que ser um elemento de escuta tambm. (Professor Xavante)

    Os Xavante tm clareza de que, para melhorar a escola, devem seorganizar melhor, ter uma maior articulao entre eles, devem selecionaros contedos de forma que se contemple a cultura Xavante e, conseqen-temente, sejam fornecidos subsdios para a construo de um Projeto Po-ltico-Pedaggico que envolva a comunidade e contemple os seus anseios.

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    Na aldeia, fazemos planejamento noite, no centro da aldeia, com toda a co-munidade (a responsabilidade no fica s na pessoa do professor). O prdiono o nico espao, no serve nem para um ritual. O planejamento servepara sistematizar o trabalho, para pensar e refletir. Quero garantir para a mi-nha aldeia outra forma de escola, no sou conteudista. s vezes fico confusoporque contedo para ns um conjunto mais amplo, nunca solto. (Pro-fessor Xavante)

    No dilogo entre culturas, nos pareceu-nos que o maior problemaenfrentado dizia respeito a como dar sentido, significado cincia, porquem tem outro olhar, outra viso de mundo. importante registrarque, em diferentes ocasies, percebemos concretamente um esforo desntese e ressignificao daquilo que foi estudado.

    Registramos um desses momentos quando, a partir do conte-do trabalhado na rea de cincias sociais, solicitamos, ao final do cur-so, que eles elaborassem um conceito para cada uma das disciplinastrabalhadas. Para a elaborao da concepo de histria houve, entreeles, uma negociao corpo a corpo das palavras a serem utilizadas. Aconcepo inicial construda coletivamente dizia o seguinte: A hist-ria uma cincia que estuda os acontecimentos passados e presen-tes.... Aps ler e reler o que haviam elaborado, um pequeno gruposolicitou a reviso do texto, criando um impasse no que se referia questo temporal. Somente quando todos se sentiram contempladosderam por concluda a tarefa: A histria uma cincia que estuda osacontecimentos do passado e do presente que tambm fazem parte dastransformaes futuras da humanidade, utilizando-se para isso de di-ferentes fontes.

    No foi fcil! No desenrolar do trabalho e diante das dificuldadesque enfrentvamos, as produes, os depoimentos, as dvidas sinaliza-vam o impacto do contedo e apontavam, para ns, caminhos para acontinuidade das aulas. Diferentes tipos de texto e de vises, e outrostipos de linguagem que no s a escrita: desenhos, expresso corporal,cantos, auxiliavam nesse processo.

    Ao longo do tempo fomos percebendo que, para a soluo demuitos impasses criados no decorrer das aulas e do curso, como umtodo, tnhamos um grande aliado: o War, reunio diria que os homenstradicionalmente realizavam noite, nas etapas letivas intensivas. Aorefletirem acerca do conhecimento cientfico trabalhado, estabeleciam,

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    muitas vezes, o dilogo com o seu prprio conhecimento, e pensavam napossibilidade de assumirem novos posicionamentos em sala de aula.

    O curso no parava aqui, mas continuava nas reunies noite... Ns temostambm discutido com a comunidade, reinterpretando conforme a nossa re-alidade. Agora temos um suporte para argumentar. (Professor Xavante)

    Ao mesmo tempo que essas reunies apontavam solues para osproblemas vivenciados, traziam tambm, tona, dificuldades decorren-tes das experincias escolares vivenciadas anteriormente por eles. A mai-oria dos pais dos alunos do Tucum estudou na escola da misso salesianaque fica dentro da terra Xavante. Naquela poca, ainda pequenos, osalunos moravam na escola e ficavam longe dos pais. No filme DamRowaihuudz Para todo mundo ficar sabendo, elaborado em 2000 pelaAssociao Xavante War, h um contundente depoimento:

    Nossos pais, os avs de vocs, choravam muito, diziam que os brancos ti-nham nos levado e nos roubado. A meu irmo mais velho veio nos avisarque nossos pais estavam com muita saudade; tinham ficado doentes de tan-ta saudade e que era para a gente no ir na fala dos padres.

    So marcas que tm um forte impacto nas decises e opes dasaldeias, uma vez que as experincias vivenciadas por meio da educaoescolar foram muito diferentes entre eles. Essas diferenas so profundase continuam perpassando a escola e os seus dilemas.

    O que ser professor indgena ainda est confuso. As discusses no grupoesto difceis porque aquele sistema antigo est no ntimo da gente. (Profes-sor Xavante)

    De todo modo, as freqentes reunies em grupo ajudaram aminimizar um problema que o Projeto no conseguiu resolver o acom-panhamento mais de perto, durante as etapas intermedirias, quando osprofessores se encontravam em suas salas de aula.

    Parecia-nos claro que, apesar das inmeras dificuldades, especial-mente as relacionadas s enormes diferenas entre eles prprios, sem odesenvolvimento de um trabalho coletivo entre os professores Xavante,dificilmente conseguiramos avanar no trabalho com a construo docurrculo e, conseqentemente, com a elaborao do Projeto Poltico-Pedaggico para as diferentes comunidades Xavante, que tm uma enor-

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    me preocupao em saber para onde o Projeto vai levar o professor, ecomo este poder corresponder s suas expectativas.

    Este um aspecto que no pode ser subestimado, porque a expe-rincia mostrou que a maior fragilidade de projetos anteriores com po-vos indgenas foi justamente a falta de envolvimento da comunidade.

    Como decorrncia dos encontros e desencontros houve semprea preocupao de no desconsiderarmos o contexto vivenciado pelos pro-fessores Xavante, bem como o tempo de durao do Projeto (cerca detrs anos e meio entre etapas intensivas e intermedirias). Os contedostrabalhados e as reflexes propostas (tempos, espaos e relaes sociaismltiplas) foram sempre sendo selecionados no decorrer do processo,conforme a necessidade, tendo como ponto de partida eixos temticosque permitiam o dilogo entre a cultura Xavante e o conhecimento ci-entfico.

    Vivenciamos concretamente, no decorrer do Tucum, as diferenasfundamentais entre o conhecimento cientfico e o do ndio. Ficou maisclaro aquilo que j sabamos a partir da teoria. Que a cincia precisauniversalizar, abstrair, para dominar. Enquanto este saber resiste ao tem-po e ao espao, porque isso lhe permite agir a distncia (Chrtien,1994, p. 155 e 239-243), os Xavante no pem em ao uma lgicadescontextualizada. Seu saber visa especialmente adaptao ao meioambiente, ao seu microcosmo.

    Hoje estamos cercados. Em volta do nosso territrio esto fazendas, cidades,estradas e quase nada do cerrado original (...). Nossos avs comearam a fi-car preocupados de morrer sem ter tempo de contar as histrias de seu povopara seus filhos e seus netos. Por isso esto falando tanto sobre a escola na al-deia. Por isso discutem tanto o jeito que a escola deve ser. Por essa razo nos-sos pais dizem que a escola deve ficar dentro da aldeia, onde nossos avs po-dem contar suas histrias e onde depois podemos desenhar e escrever sobreelas. (Trecho extrado do filme Dam Rowaihuudz Para todo mundo fi-car sabendo, 2000)

    Para eles, de imediato, a abstrao e a generalizao no tm valor.Da as dificuldades no dilogo entre as culturas: as lgicas e as necessi-dades so diferentes. Em contrapartida, aprendemos tambm que o en-cantamento pelo saber do outro mtuo. Tanto ns como os ndiosdemonstramos, muitas vezes, um fascnio diante do conhecimento dife-rente, que nos impulsiona ao dilogo e ressignificao. Um exemplo

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    interessante ocorreu a partir de uma discusso sobre demarcao de ter-ras indgenas, quando trabalhamos com os Xavante a noo de escala.Com o auxlio de barbante propusemo-nos a medir e reduzir parte doespao utilizado pelo Projeto Tucum em gua Boa-MT, sede do Plo II.

    Aps o desenvolvimento da atividade, que gerou diferentes excla-maes e interrogaes, foi a hora da surpresa. Os Xavante entusiasma-ram-se por terem entendido a proposta de trabalho, inicialmente todifcil, e no conseguiram esconder o entusiasmo pelo contedo apren-dido. Um cacique Xavante, tambm professor, acompanhou-nos por umtempo, de um lado para outro, e de repente falou:

    Professora, o conhecimento do branco incrvel. Eu quero levar depois esseconhecimento para o meu povo. Mas, agora, eu gostaria de cortar a cabeado branco e colocar no corpo do Xavante.

    Uma breve interpretao desta metfora nos leva a pensar que,com esta fala, o ndio, naquele momento, procurou unir o que lhe pare-cia mais precioso das duas culturas: a fora do Xavante e o conhecimen-to do branco.

    Aps um perodo relativamente grande de trocas e de tenses viven-ciadas, percebemos um respeito maior para com as diferenas entre eles ens, entre eles e os monitores do Projeto. Os momentos de estranhamentoeram freqentes. Foi difcil para uma das monitoras, conforme relata aepgrafe deste trabalho, entender a escola como um laboratrio vivencial(expresso de Ubirat DAmbrsio).

    Ao chegar, a primeira surpresa: a aldeia estava vazia. Desolada, saiu procuran-do uma explicao. No era possvel, se no houvesse marcado tudo comtanto cuidado! De repente, surge algum, meio que rindo do seu desespero: Tem ningum, no, professora. Foi todo mundo pescar. No acredito que o professor fez isso comigo. Marcamos tudo, combina-mos tudo certinho... Se preocupe, no, professora. Eles levaram o quadro negro.

    Tambm entre os prprios ndios Xavante havia muitos proble-mas de preconceitos surgidos, geralmente, a partir de srios conflitos dedisputa de poder entre diferentes aldeias. Pareceu-nos, ao final da expe-rincia, que o Projeto possibilitou atitudes de maior tolerncia e solida-riedade que ajudaram a equacionar os problemas.

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    As dificuldades foram enormes, mas aos poucos a convivnciatornou-se mais respeitosa entre ndio/monitor; ndio/docente, ndio/ndio, monitor/docente. Contudo as permanentes tenses nunca de-sapareceram, nem poderiam. Em alguns momentos, em decorrnciadas diferenas entre eles, e entre eles e ns, o impacto dos contedostrabalhados nas vrias comunidades ou o posicionamento assumidoperante um conhecimento novo trazido por ns acabavam por desen-cadear novas competies e rixas internas.

    Um dos momentos mais difceis decorreu de um trabalho ligado importncia do cerrado. Aps um exaustivo trabalho terico-prtico,entremeado de cantos tradicionais pedindo inspirao aos espritos paraque entendessem o contedo que estava sendo trabalhado, muitos de-les perceberam que o desmatamento comprometia profundamente apreservao do cerrado e, conseqentemente, a prpria sobrevivnciado povo Xavante. Os nossos avs contam que o Xavante depende docerrado e o cerrado depende do Xavante... (Trecho extrado do filmeDam Rowaihuudz Para todo mundo ficar sabendo, 2000). Foi ocaos! As discusses inflamadas, na lngua materna, duraram mais dehora e meia. No cenrio os partidrios da preservao do cerrado con-tra os partidrios do lucro proveniente da madeira. At hoje no sabe-mos o final da histria...

    Havia, portanto, a necessidade constante de buscarmos desco-brir e construir a sistematizao do conhecimento possvel dentro damultiplicidade de manifestaes culturais e do emaranhado de rela-es existentes no espao da sala de aula. Para isso, no havia receitapronta, apenas pistas, para que pudssemos contribuir para a constru-o de um novo caminho curricular que contasse com a participaoda comunidade.

    Os desafios a serem enfrentados pelos professores Xavante noeram e ainda no so de fcil soluo. Algumas escolas no consegui-ram romper com a forte influncia dos salesianos, que idealiza umpadro de escola centrado nos referenciais da cultura branca, folclorizaa cultura e a religio tradicionais e silencia perante as manifestaesdiscriminatrias presentes em seu prprio meio.

    Essas tenses tm tido um forte impacto no processo de cons-truo da educao escolar Xavante, gerando tanto confuso nos pa-pis e espaos a serem desempenhados e ocupados pelos professores

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    ndios como desencontros entre o que o Projeto prope para a educa-o escolar e o que a comunidade esperava.

    Mas, tambm no Tucum, muitas vezes foi esquecido que a escola uma das referncias da comunidade com o conhecimento do no-n-dio e que quem deve estabelecer os limites entre a educao indgena e aeducao escolar o professor ndio, junto com a comunidade.

    A escola deve ser apenas mais um lugar para a comunidade aprender. Apren-der a entender o que o outro tem a me dizer. Temos que ter o especfico e di-ferenciado dentro de ns. Quanto mais penso e enxergo mais aumenta omeu compromisso. (Professora Xavante)

    A elaborao de um Referencial Curricular Nacional para as EscolasIndgenas (RCNEI) especfico para a escola indgena por professores no-ndios um exemplo do que estamos falando. Em depoimentos coletadosdurante o Tucum, os Xavante afirmaram que o RCNEI no contemplava arealidade de muitos dos povos indgenas e que, por ter sido escrito porno-ndios, a forma e a linguagem utilizadas no correspondiam aos seusanseios. Registraram, ainda, que, em decorrncia disso, sentiam dificulda-de em conseguir a participao das comunidades e dos demais professoresque no cursavam o Tucum, no processo de construo curricular de suasescolas. Alm de no entenderem a escrita do no-ndio, no seu sentidooriginal, argumentaram que algumas palavras que expressavam questesimportantes de sua cultura no tm traduo, no sendo possvel, porisso, contempl-las no Referencial elaborado pelo MEC.

    A existncia de um RCNEI, as dificuldades em romper com os rgi-dos calendrios escolares do no-ndio, com o material didtico elabora-do sob forte influncia no-ndia so alguns aspectos que podem serdestacados perante as dificuldades em trabalhar com um ensino diferen-ciado, por meio de processos pedaggicos especficos.

    Alm do mais, as ambivalncias decorrentes da insero da escolatanto no espao da educao tradicional dos prprios Xavante, as quaisem algumas escolas eram permeadas pelos valores dos salesianos, comotambm no espao pblico estatal geraram dificuldades difceis de se-rem trabalhadas.

    Quando o currculo e sua insero no Projeto Poltico-Pedaggicoda escola indgena no esto claros para os prprios professores e para ascomunidades, os conflitos internos so de toda ordem. Ou seja, como a

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    educao tradicional Xavante continua a existir para este povo, o quemuda o papel atribudo educao escolar, que deve ser, portanto,especfica e diferenciada em cada uma das escolas, ainda que estas este-jam situadas na mesma aldeia.

    Como a relao que estabelecida por meio da ao e do significa-do assumido pelo processo de troca entre culturas apresenta uma grandecomplexidade, tivemos, freqentemente, que nos posicionar como aqueleque ensina e aprende. E, para no trabalharmos com eles um contedodescontextualizado, procuramos ouvi-los, incorporar suas idias, respei-tar sua autonomia, rever continuamente nossos procedimentos, evitan-do fazer a mesma coisa que criticamos.

    Nesta perspectiva que acompanhamos o processo de reflexo dosXavante, os quais, apesar de todas as dificuldades, tm conseguidorevitalizar a sua cultura. Depoimentos de professores demonstram a pre-ocupao que tm com a questo da construo da escola que querem, eda difcil luta que empreendem, especialmente por causa das diferenasentre eles e da falta, em geral, de formao terica acerca do conheci-mento do no-ndio. Ao mesmo tempo, percebe-se que eles no acredi-tam apenas na transmisso do conhecimento do no-ndio e que, porisso, resistem forma convencional de ensinar.

    Ainda h muito de tradicional no ensino das crianas indgenas. Quero dara volta para descobrir nosso prprio sistema, para no nos deixar dominar efortalecer e enriquecer a cultura. Reconheo a importncia do nosso papel naluta pela preservao da cultura Xavante e ao mesmo tempo manter a pro-posta e a filosofia do Projeto. (Professor Xavante)

    Por meio da experincia vivenciada com os Xavante, acreditamosque, ao mesmo tempo que a diversidade e a incluso da dimenso subjetivada cultura enriquece este povo, dificulta o trabalho objetivo de sntesecoletiva. Percebemos que, para esses professores, no basta ter reconheci-da e garantida a diferena, se os prprios ndios no construrem, naescola, um referencial etnocultural com o qual possam identificar-se egarantir a permanncia de bens materiais e de capital cultural, conside-rados imprescindveis para uma relao de igualdade e liberdade.

    A cultura, na sua relativa autonomia, constitui um depsito de experinciasna base do qual a reflexo e a capacidade criativa dos indivduos elaboramnovas formas expressivas. Sempre que se alteram as condies histrico-

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    ambientais ou nascem novas exigncias individuais ou coletivas, a culturadeve adaptar as suas prprias interpretaes e reformular as suas prprias res-postas, fornecendo novos significados mais adequados s exigncias do mo-mento. (Crespi, 1997, p. 23)

    Como situao conflituosa, a educao diferenciada precisa sercompreendida sob uma tica do pensamento da complexidade, proces-so que envolve, conforme Morin (2001), ida e volta entre certezas eincertezas, entre o elementar e o global, entre o separvel e o inseparvel.

    Na ausncia de polticas pblicas consistentes e objetivadas emtermos de mudanas na situao marginalizadora, parece-nos que a cons-truo curricular se apresenta como um dos instrumentos importantespara as mudanas bsicas. Para garantir uma escola inovadora aos desafi-os histricos, o conjunto das diversidades deve ser contemplado e incor-porado na organizao e nas prticas escolares, por intermdio de projetospoltico-pedaggicos, construdos com vontade poltica, competncia ecompromisso dos sujeitos envolvidos.

    Desse modo, fazer com que a escola viabilize a reconstruo doBrasil para ser uma sociedade representativa de sua diversidade apresen-ta um desafio que precisa de solues mais urgentes. um problemacomplexo especialmente num mundo que desfaz fronteiras culturais,abala hegemonias culturais e possibilita a construo de novos modos dever, ser e viver o social.

    Esta idia nos permite admitir que, nos processos de socializaoXavante, h um espao propcio para um currculo diferenciado. Issoquer dizer que existe uma necessidade de trabalhar o contedo escolarde tal forma que se contemplem e integrem as diferenas culturais, asdiferentes vises do mundo e as experincias histricas que ajudam naconstruo de valores sociais. Nesta perspectiva as diferenas so enten-didas como importantes e no como ameaas.

    O currculo proposto por eles pode ser entendido como a visosobre os seus prprios processos de ensinar e aprender, e como, tambm,sobre as dimenses dadas a esses processos, envolvendo uma integraode saberes, objetivos, atividades, relaes interpessoais e modos especfi-cos de avaliar o desempenho escolar.

    Compreende-se que o quadro de excluso social no ser ultrapassa-do simplesmente pela adoo de uma nova orientao curricular na reaindgena. Seria ingenuidade um posicionamento desse tipo. Entretanto,

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    temos a convico de que a atuao dos professores Xavante traz umacontribuio relevante ao processo de mudana social, no sentido da cons-truo de uma sociedade mais justa. Apesar de todas as suas limitaes, ocurrculo construdo nas escolas das aldeias , ainda, o lugar que resta paraque esse povo busque concretizar o direito social educao.

    Em nosso trabalho em cincias sociais, procuramos no perder devista a histria e o entendimento das referncias culturais, espaciais e tem-porais do povo Xavante, buscando a sua compreenso por meio da anlisedos diferentes processos de natureza social. Partimos sempre da crena deque a continuidade da discusso permitir maior clareza das funes doprocesso de aprender desse povo e de suas formas de pensamento, apesarda difcil luta dos Xavante para garantir o ensino diferenciado entre o seuprprio povo. Ns estamos trabalhando duro para aprender outras for-mas de contar e registrar a nossa histria (Trecho extrado do filme DamRowaihuudz Para todo mundo ficar sabendo, 2000).

    Por tudo isso o currculo Xavante, apesar das contradies queapresenta internamente, no pr-formatado, nele h sempre o novo, oinesperado, o imprevisto. dinmico, com objetivos claros que no dei-xam dvidas de que a diferena supe a criao de novos espaos paradiscusso. Com certeza, os Xavante, por inverterem a nossa lgica levan-do a escola at onde est a vida deles, esto entendendo, de um modobastante peculiar, o sentido da opo pela escola que at h bem poucotempo no pertencia sua cultura.

    Fala do velho da aldeia perante uma filmadora: Bonito, bonito! Afilmadora chegou! Apesar de ser muito pequena encheu os meus olhos. Paraque a filmadora? Para vocs me filmarem enquanto eu falo. para isso. Paravocs me filmarem, no trabalho e quando eu aconselho. Assim meu pensa-mento fica guardado para as prximas geraes.

    Fala do narrador: Interessante porque (a filmadora) est totalmente fora domundo do ndio e da aldeia. Importante, porque ela vai ser til paradocumentrio, para gravar as atividades, a histria. Vai gravar a figura da pes-soa. Conforme o velho pronunciou, o que ele falou vai ser gravado para oresto da vida. Vai ser relembrado, recordado. E esses materiais podem serusados na escola, podem ser matria de estudo. (Trecho extrado do filmeDam Rowaihuudz Para todo mundo ficar sabendo, 2000)

    Recebido em agosto de 2003 e aprovado em setembro de 2003.

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    Notas

    1. Interrompido no ano de 2001, o Programa reabre-se, novamente, para novas turmas, em2004, atendendo reas e etnias que no foram contempladas nos quatro plos onde o Pro-jeto se realizou em sua primeira verso.

    2. Bula Romanus Pontifex, do Papa Nicolau V.

    3. Bula Inter Arcana, de Clemente VII.

    4. Sobre esta aliana com misses e missionrios, leia-se o artigo de Eni Orlandi Os falsosda forma, em Palavra, f e poder, de vrios autores, organizado por Eni Orlandi, Campi-nas: Pontes, 1987. Nesse artigo, a autora, fazendo uso da competncia crtica, terica e po-ltica da anlise do discurso, mostra como se pode ler a suprema ironia de um texto doSummer Institute of Linguistics (SIL): Ns s levamos a palavra de Deus. Se eles (os n-dios) se desestruturam, obra de Deus. Ns no transformamos nada. S Deus tem essacapacidade (p. 13).

    5. Sobre o embate pela linguagem ler o prefcio do livro Poltica lingstica na Amrica Lati-na, de vrios autores, organizado por Eni Orlandi, Campinas: Pontes, 1988. E o artigo,no mesmo livro, As lnguas indgenas e a Constituinte, de Aryon D. Rodrigues.

    6. Embora desnecessrio, achamos importante ressalvar aqui que a inoperncia do rgo noanula a atuao competente de indigenistas que, dentro da FUNAI, desenvolvem um traba-lho digno e responsvel.

    7. Ver a Declarao de Princpios dos Professores Indgenas do Amazonas, Roraima e Acre,publicada no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indgenas (RCNEI, 1998, p.29).

    8. Estamos chamando aqui de colonizao no apenas o perodo colonial da histria do Bra-sil (1500-1822), mas, seguindo o pensamento de muitos indigenistas, ao conjunto dasmedidas oficiais elaboradas e praticadas sobre os ndios durante os cinco sculos de con-trole militar, poltico, social e jurdico.

    9. O Documento faz referncia histria da Marcha dos Povos at Porto Seguro e tambm histria vivida pelos ndios nestes 500 anos.

    10. Editado e publicado pela Conferncia dos Povos e das Organizaes Indgenas do Brasil,pela Articulao dos Povos e Indgenas do Nordeste, Minas Gerais e Esprito Santo(APOINME), Alagoas, e pelo Conselho Indigenista Missionrio (CIMI), Braslia, em abril de2000.

    11. ainda a antroploga Sylvia Caiuby Novaes quem aborda esse assunto do simulacro comoestratgia (1993, p. 70).

    12. Para mais informaes sobre o Projeto Inaj Inaj semente, ler Dulce M.P. Camargo,Mundos entrecruzados: formao de professores leigos. Campinas: Alnea, 1997.

    13. Movimento dos sentidos o subttulo do livro As formas do silncio, de Eni Orlandi(1995), onde buscamos compreender o fora da linguagem, o que indica que o sentido doque dito pode ser outro, o silenciado.

    14. Trabalhamos, em parceria com Maynara Oliveira (Universidade Federal de Mato Grosso),como consultoras do Projeto e como docentes do Plo II rea dos Xavante.

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