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História e Memória do MP

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  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao CIP

    U45m Unes, Wolney; Pond, Roberta (Org.). Memria do Ministrio Pblico em Gois / Wolney Unes, Roberta Pond (Org.). Goinia : Instituto Centro-Brasileiro de Cultura, 2008.

    200 p. : il.

    ISBN: 85-98762-34-2

    1. Ministrio Pblico - Gois histria. I. Ttulo.

    CDU: 347.921.5(817.3)(091)

    Copyright 2008 by: Instituto Casa Brasil de Cultura

    Direitos reservados: proibida a reproduo total ou parcial da obra, de qual-quer forma ou por qualquer meio sem a autorizao prvia e por escrito do autor.

    A violao dos Direitos Autorais (Lei n. 9610/98) crime estabelecido pelo artigo 48 do Cdigo Penal.

  • Coordenao geralRoberta Pond Amorim de Almeida

    Coordenao editorialWolney Unes

    Pesquisa Idelmar de Paiva

    TextoIdelmar de PaivaCarolina Brando Piva

    Projeto grficoGenilda Alexandria

    DiagramaoMarcus Lisita Rotoli

    FotografiasArquivo da Associao Goiana do Ministrio PblicoArquivo do jornal O PopularArquivo da Construtora BiapAcervo pessoal de Ado Bonfim, Regina Helena Viana e Aristides JunqueiraJoo Srgio ArajoWolney Unes

    Assistente de pesquisa e seleo de imagensMilena BastosYasmine Jernimo Mota

    ApoioAna Cristina ArrudaLilian BraudesAdriana Rodrigues

    RevisoAna Carolina Neves

    ImpressoOff-Set Digital Grfica Ltda.

  • A concretizao desse projeto no seria possvel sem a dedicao e contribuio de muitos.

    Em especial, o Ministrio Pblico agradece s seguintes pessoas e entidades que, de forma expressiva, auxiliaram na recuperao da memria do Ministrio Pblico:

    Associao Goiana do Ministrio Pblico (AGMP)

    Organizao Jaime Cmara: Jornal O Popular e TV Anhangera

    Antnio Araldo Ferraz dal Pozzo, ex-presidente da CONAMP (binios 1987-1989 e 1989-1990)

    Aristides Junqueira Alvarenga, ex-procurador-geral da Repblica (1989-1985)

    Salma Saddi Waress de Paiva, titular da 14 Superin ten-dncia Regional do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN)

    Walter Paulo Sabella, ex-secretrio geral da CONAMP e ex-presidente da Associao Paulista do Ministrio Pblico (binio 1992-1994)

    E aos membros do Ministrio Pblico do Estado de Gois entrevistados:

    Ado Bonfim BezerraAmaury de Sena AyresAntnia de Paula RochaBenedito Torres NetoCacildo Martins FerreiraDecil de S AbreuDemostenes Lzaro Xavier TorresDivino Fernandes dos ReisGeraldo Batista de SiqueiraHaroldo Rates PereiraHermano dos SantosIvana Farina Navarrete PenaJos Alves PereiraJos Joaquim da Silva BarraJos Leite Vieira NetoJos Lenar de Melo BandeiraJoo NederJos Scrates Gomes PintoJuracy Batista CordeiroLaura Maria Ferreira BuenoMarly Rodrigues de AtadesMauro de Freitas CorraMozart Brum SilvaMyrthes de Almeida Guerra MarquesNilma Maria Naves Dias do CarmoRegina Helena VianaRodolfo Pereira Lima JniorRoldo Izael CassimiroSaulo de Castro BezerraYara Alves Ferreira e SilvaWilson Brando Curado

  • Apresentao

    Resgatar o passado para entender melhor o presente e construir o futuro em bases sli-das. Foi esse o objetivo latente por trs da idia de estruturar o Projeto Memria do Minist-rio Pblico de Gois. A inexistncia de dados formalizados e consolidados sobre a histria da instituio j instigava e desafiava h algum tempo a concretizao de uma proposta nesse sentido. Uma urgncia advinha do decorrer do tempo que trazia o risco de essa memria at ento presente apenas nas lembranas disper-sas e transitrias dos homens e mulheres que construram o MP perder-se, como fios de um tecido antigo que se esgara quando no bem cuidado.

    O que era somente esboo comeou a tomar forma a partir das experincias desen-volvidas em outros Estados, com destaque especial para a iniciativa executada pelo MP do Rio Grande do Sul. Visitas quela instituio possibilitaram conhecer melhor o contedo do memorial gacho e inspiraram a concepo do nosso projeto.

    Decidiu-se, ento, pela estruturao de um Projeto Memria de natureza permanente, mas que se consolidaria, numa primeira etapa, na produo de um material impresso e em vdeo que resgatasse e desse voz ao passado, ainda cheio de brumas, de uma instituio cen-tenria. J a segunda parte est focada na con-tinuidade da preservao dessa memria, com aes voltadas para o registro histrico a partir de uma pgina exclusiva no portal eletrnico do MP.

    Para viabilizar esse plano, foi contra-tada a consultoria especializada do Instituto Casa Brasil de Cultura, que ajudou na sua formatao e execuo. Este livro materializa em letras e imagens uma cuidadosa pesquisa histrica, que remonta s bases documentais do perodo colonial, preservados na cidade de Gois, e tambm ao material guardado pelo prprio Ministrio Pblico e pela Associao Goiana do Ministrio Pblico, ainda que dis-perso. Aqui, traada a trajetria institucional dentro do contexto geral do MP no Brasil.

  • Primordial para resgatar a histria que se conhecer nesta obra foram as entrevistas, tanto com membros do MP quanto com tercei-ros que a ela estiveram vinculados, de alguma forma, em momentos que definiram seu per-curso. Trechos dessas entrevistas, registradas em vdeo, foram aproveitados tanto no material impresso quanto no audiovisual que tambm integra a proposta.

    Ao reconstruir as lutas travadas ao longo de anos para construir o Ministrio Pblico goiano e seu slido patrimnio moral, alicerce e apoio de sua ampla credibilidade; ao recuperar as idias e os sonhos que levaram transforma-o institucional, contra todos os percalos exis-tentes no caminho, o Projeto Memria finca as razes necessrias para ambicionar o Ministrio Pblico do futuro: apto ao alcance da efetividade

    de suas aes. Porque, somente sabendo de onde se vem, possvel redirecionar para onde se vai.

    Na corrente do tempo, os destinos dos homens e mulheres aqui registrados se entre-laaram e se fundiram para insculpir na hist-ria, em tinta e papel, as belas pginas que des-crevem a trajetria da instituio. Nas chamas clidas e perenes dessa memria viva forjaram-se as vitrias e as derrotas, as conquistas e as perdas, as angstias e as esperanas, entalhando em bronze flexvel o Ministrio Pblico do pre-sente, consolidado como esteio indissolvel da cidadania, mas capaz de se dobrar, inquebran-tvel, aos ventos do amanh, para se renovar na viglia incansvel em busca da justia e paz social.

    Eduardo Abdon Moura Procurador-Geral de Justia

  • Sumrio

    AntecedentesO sentimento de justia e a origem do direito

    O Ministrio Pblico no Brasil:a instituio e sua trajetriaOs primeiros anos do Brasil: a Justia sem leiA criao dos primeiros Tribunais de RelaoA chegada de d. Joo VI e a instituio dos Tribunais de Justia no Imprio BrasileiroA Constituio de 1891 e o Ministrio Pblico Federal

    O Ministrio Pblico em GoisA Primeira Repblica e a justia dos coronisA dcada de 1930 e a Marcha para o OesteA Constituio de 1946 e a criao da carreira permanente do MP-GOA Revoluo de 1964 e o surgimento da Associao Goiana do Ministrio PblicoA Constituio de 1969: novos marcos institucionaisA Lei Complementar n 40/81 e o Ministrio Pblico nos EstadosA Constituio de 1988: um novo Ministrio Pblico consolidadoA autonomia administrativa do Ministrio Pblico de Gois

    Galeria de Procuradores-GeraisCronologia do Ministrio Pblico em GoisBibliografia

    11

    25293443

    49596466758396

    102

    117127137

  • Antecedentes

    O sentimento de justia e a origem do direito

    Infraes, delitos, crimes hediondos, leis, cdigos, prises, juzes, promotores e advoga-dos, defesa e acusao, jri, peties, recursos, primeira e segunda instncias, sentenas tran-sitadas em julgado: eis o que nos remete hoje, ainda que empiricamente, Justia. impos-svel, nos dias atuais, imaginarmos uma nao desprovida de tribunais, funcionrios e rgos reguladores, tampouco sem normas de organi-zao e controle da vida em sociedade. Isso verdade sobretudo quando levamos em conta nosso mundo repleto de desigualdades, arbitra-riedades, crimes menos ou mais atrozes desde a negao de um direito trabalhista, ao furto, invaso de privacidade, compra de votos, ao peculato, ao latrocnio, ao homicdio doloso, explorao sexual, pedofilia, ao seqestro, e mais uma lista infindvel de prticas ilegais que precisam ser devidamente controladas e punidas.

    Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo, na histria da humanidade, em que os conflitos sociais no se resolviam a partir da atuao de agentes ou rgos reguladores da Justia. No se formulavam leis, decretos, regulamentos, estatutos, e o que os indivduos reconheciam como palavra de ordem, capaz de guiar-lhes a vida e a de seus semelhantes, resumia-se ao respeito e obedincia a valores encerrados pela famlia e pela coletividade.

    Na Antiguidade, foram vrios os proces-sos de instituio de Justia, mas entre todos sobressaem-se dois. Recorreu-se a divindades, mantenedoras da ordem, atribuindo aos homens direitos e deveres, traando-lhes os destinos ou neles interferindo to logo se fizesse necess-rio; outorgou-se o poder sobre vida e morte a um homem, imperador ou rei, que tratava de ajustar s necessidades de seus domnios as normas sociais de conduta daqueles que esta-vam sob sua tutela. Os efeitos igualmente eram vrios: povos longnquos ameaavam extorquir as riquezas de determinada comunidade, seus membros se organizavam em exrcitos e res-pondiam; desrespeitavam-se os valores sagra-

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    dos da famlia, e eram condenados morte ou clausura aqueles que negavam os laos de sangue que uniam os homens; contrariava-se uma lei dos deuses, e o castigo vinha sorrateiro, impondo-se no destino daquele transgressor como fatalidade a ser experimentada.

    Registros histricos desta poca remota poucos so hoje os que conseguimos conser-var. Mas relatos dos grandes poetas, aqueles que representavam por meio da narrativa, do lirismo ou da encenao dramtica o que trans-corria e se manifestava em seu tempo, destes, sem dvida, chegaram-nos mais notcias. Nas artes literrias e dramticas que temos hoje o maior acervo documental de histrias orais, epopias, poesias, peas teatrais, dilogos entre mestres e aprendizes, retratos, enfim, de um perodo em que prevalecia um forte sentimento de totalidade e um sentido positivo de virtude para que os homens no perdessem de vista as condies de seus destinos.

    Basta, por exemplo, recorrermos a Homero, poeta-narrador dos feitos hericos da Grcia Antiga, para acompanharmos a histria da Guerra de Tria, relatada em sua Ilada: e eis que o conflito, desencadeado por Pris, que des-respeitara a famlia do rei Menelau raptando-lhe a bela Helena, era j uma pujante demons-trao de sentimento de injustia, respondido pelos gregos com a organizao de um exr-

    cito de heris que trataria de devolver ao rei a esposa e tambm massacraria impiedosamente os troianos. Mesmo em episdios menos gran-diosos, que no se referiam a guerras, a noo de Justia se manifestava e era praticada.

    Tomemos ainda a Odissia, do mesmo Homero, que traz cena as peripcias de Ulis-ses, rei de taca, durante os dez anos em que esteve vagando pelos mares estrangeiros, quando retornava em nau grega com os heris sobreviventes da Guerra de Tria, preso a uma maldio do deus Posidon. Ao chegar terra natal e tomar conhecimento de que muitos eram os candidatos a substitu-lo como rei, junto ao seu povo e sua mulher Penlope, que at ento lhe havia permanecido fiel, Ulisses, astuto que era, esperou o momento exato para contra-atacar: aniqui-lou os traidores e reassumiu o reino.

    Em resumo, aps as ini-ciativas pioneiras de Hamu-rbi na Babilnia, com seu pioneiro cdigo de leis (sc. 18 a.C.), na Antiguidade o conceito de Justia em vrias ocasies sem regu-lamentao em leis formais era percebido e praticado pelos homens, cada qual

    Ulisses

  • MP13

    sua maneira e respeitando o seu modo peculiar de organizao social. Nesse perodo, e estamos falando aproximadamente do sculo VIII a.C., em especial, da civilizao grega modelo de cultura e sociedade para os povos ocidentais , mesmo sem tribunais, juzes, promotores ou advogados nos termos em que os concebemos atualmente, nem por isso, o direito deixaria de aos poucos estabelecer seus primeiros fun-damentos, ancorados neste senso de Justia comum aos gregos: ao final de um longo per-odo denominado a Idade de Ulisses, a realeza homrica comeava a dar os primeiros sinais de crise, cedendo lugar a uma classe que progres-sivamente foi-se apropriando das prerrogativas de poder a aristocracia.

    E eis que a histria no poderia ser dife-rente: do sculo VIII ao sculo V a.C. prevale-ceu na Grcia o que o historiador Louis Gernet denominou Pr-Direito: orientada por Tmis, a deusa da Justia, concentrava-se na figura daqueles que governavam na Terra em nome dos deuses, por direito ou tradio, a autoridade para estabelecer e fazer valerem as normas de conduta que organizavam a vida coletiva. A justia era, pois, abalizada pela realeza aristo-crtica, mas j nessa poca praticada por todos, sobretudo quando se reuniam em praa pblica para decidir os destinos de suas localidades e de seus habitantes. Com o passar dos anos, apesar

    de ainda no formalizada em leis documentais, a noo de Justia para os gregos dava largos passos rumo a uma transio importante: com o estabelecimento da polis, que no se asseme-lhava a uma cidade propriamente e era muito

    Thmis, a deusa grega da Justia

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    mais do que um Estado tal qual conhecemos hoje, definia-se toda a estrutura poltica, social e econmica a partir da qual se governariam os povos e onde os homens podiam concretizar as suas capacidades morais, espirituais e intelec-tuais. Nesse contexto, era comum aos gregos o desejo de justia, sempre manifestado na e para a polis. Como diz o autor ingls Kitto: os indi-vduos no tm lei, mas a polis tomar sua conta que as injustias sejam reparadas. Mas no atravs de uma complicada mquina judi-cial do Estado, porque tal mquina no podia ser manejada, a no ser por indivduos que podem ser to injustos como o original delinqente. A parte ofendida ter a certeza de obter justia, somente se puder declarar os seus agravos a toda a polis. Numa palavra: a todo o povo.

    Nessa transio entre a monarquia e a nascente polis, comeou a surgir o conceito de que o poder das cidades-Estado deveriam sujeitar-se ao interesse pblico, e este pblico (a comunidade-cidad) deveria exerc-lo por si mesmo, sem que houvesse necessidade de atribuir a uma autoridade real poderes ilimita-dos. E, ento, uma vez mais a histria se refa-zia: outrora centralizada, a justia, o direito dos homens, passaria a pblica que o poder (a arch) para organizar as normas coletivas estava em vias de ser convertido em funo pblica, para a qual seriam escolhidos, por elei-o, aqueles indivduos da comunidade aptos a

    exercerem os cargos de mediadores da justia, por tempo determinado. Assim apareceriam as primeiras noes de democracia e cidadania, mais adiante demarcadas pela criao de alguns cdigos de conduta caros aos gregos: chegava o momento de estabelecer um princpio regula-dor do mundo, de justia universal.

    Segundo o historiador Jean-Pierre Ver-nant, foi na polis que surgiram os primeiros esboos da aplicao da lei entre os gregos. Para manter a justia, organizavam-se os tri-bunais populares, cujos membros os heliastas eram escolhidos anualmente por sorteio. Em dcadas seguintes do mesmo sculo V a.C., sur-giram os tesmtetas magistrados sorteados pela Assemblia, a quem seria conferido poder de julgamento. Dessa forma, havia aqueles que votavam (os heliastas), tomando partido nas decises, e aqueles que detinham o poder de jul-gamento (os tesmtetas). De acordo com esse sistema, aos poucos houve a necessidade de ins-tituir outra figura importante: o loggrafo, um orador que era contratado, tanto para a defesa quanto para a acusao, dependendo do caso, e cujos discursos tornavam os julgamentos mais primorosos do ponto de vista da lgica jurdica ento conhecida, alm de contriburem decisi-vamente para os encaminhamentos finais.

    Ora, bem se nota que ali se esboavam preliminarmente os papis dos atuais aplica-dores da lei: juzes, promotores e advogados.

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    Embora o direito e as instituies judicirias fossem nessa poca apenas incipientes, o direito moderno , em larga medida, ancorado nesse sentido de universalidade da justia criado pelos gregos foi nessa civilizao antiga que pri-meiro se desenvolveu a noo de direito como algo pblico, estabelecido e articulado pelo conjunto da comunidade, que participava das instncias de julgamento de seus semelhantes.

    Mas tambm na poro oriental do mundo antigo, outrora distante e inimiga dos helenos, encontramos as singularidades de um mesmo sentimento, que alis j ecoava entre os persas (donos de um precioso cdigo moral) e os egp-cios (reconhecidos pela sabedoria): nas Mil e uma noites, contos rabes que remontam a mil-nios de existncia oral, podemos ver, munida de extremo senso de justia para com o seu povo, a corajosa Xerazade empreendendo todos os esforos para pr fim s arbitrariedades do sul-to Xariar, que havia decidido casar-se a cada noite com uma nova mulher e, ao amanhecer, assassin-la cruelmente, pretendendo com isso vingar-se pela traio de sua primeira mulher.

    Lendas e mitos parte, que nos condu-zem instituio da ordem coletiva entre os povos, se voltarmos os olhos para a histria antiga da humanidade, chegaremos a muitos episdios em que a justia, ainda que no insti-tucionalizada, estabelece-se no centro das anti-

    gas civilizaes. No Egito Antigo, igualmente, onde tambm no havia formalmente tribunais, rgos ou funcionrios reguladores da lei, era o fara quem organizava a vida em sociedade. Para ajud-lo em tal tarefa, nem sempre fcil, instituiu-se a figura do magiai, funcionrio a quem cabia detectar e reprimir atos violen-tos, castigar os rebeldes, proteger os cidados pacficos e acolher os pedidos dos homens jus-tos, tratando de pr em prtica uma espcie de ouvidoria no reino faranico, na qual os cida-dos anunciavam os delitos sofridos e tinham atendidos os seus anseios de justia em todas as instncias sociais e assim se apuravam as acusaes, apontando-se as cominaes legais aplicveis.

    Diferente orientao para a justia no poderia prevalecer no Imprio Romano. Desde os seus preldios, o imperador no atuava sozi-nho em favor da manuteno da ordem: era comum ele nomear um tipo de funcionrio para atuar juridicamente em seu nome o defensor civitatis, a quem competia a defesa das classes inferiores contra possveis abusos de poder e autoridade. Dessa forma, o imperador se asse-gurava de que a ordem seria mantida, ao menos nos principais domnios de seus reinos. O importante, neste caso, compreendermos que, mesmo nessa poca remota em que as socieda-des romanas no se organizavam em torno do

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  • MP17

    preceito da cidadania, havia um apreo inesti-mvel pela justia, e era ancorado nisso que o imperador ditava e cuidava para que se cum-prissem as normas.

    De incio, ainda que no regulamentada em leis, a justia do Imprio Romano vigorou como um conjunto de princpios que regeram a sociedade em diversas pocas de sua existncia, desde sua origem, passando pela morte de Jus-tiniano, em 565 d.C, e mesmo at o ano de 1493, com a queda de Constantinopla e a dissoluo definitiva do Imprio. O certo que, a partir da fundao de Roma, no sculo VII a.C., in-meras foram as medidas e prticas dos gover-nantes para assegurar a justia entre os povos romanos, e todos esses momentos converter-se-iam, mais adiante, em um cdigo de conduta social em que se fundamentaria propriamente a elaborao do direito romano, principal e ine-quvoca referncia ao direito brasileiro.

    Com incio no Perodo Rgio em Roma (de 754 a.C a 510 a.C), prevaleceu uma fase imperial fundamentada na administrao dos reis. A sociedade vivia basicamente da cultura do solo e da criao de animais e era, portanto, ancorada no regime familiar, coletivo, comuni-trio, sempre chefiado por um pater familias, que cuidava da organizao e distribuio dos gne-ros agrcolas cultivados. difcil imaginar que, a essa poca, houvesse transgressores, delitos

    ou crimes hediondos, mas, ainda assim, era pre-ciso impor regras de conduta para que nenhum romano se esquecesse de manter a lei do bem comum. Se ao pater familias cabia a manu-teno da ordem comunitria, era ao rei que competia a tarefa de juiz, de assegurar a ordem em instncia suprema. Para tanto, contava ele com um conselho de ancios, justamente aque-les que cuidavam das pequenas comunidades. E assim, mantinha-se, sumariamente, a justia entre os romanos.

    Mais tarde, no Perodo Republicano, ini-ciado em 510 a.C. com a deposio do impe-rador Tarqunio, Roma experimentaria uma importante transformao: comeavam a sur-gir momentos preciosos de elaborao e apli-cao de leis e, ainda, funes pblicas essen-ciais manuteno da ordem entre os romanos. Foi nesse perodo que pela primeira vez os romanos conheceram leis escritas, formaliza-das em uma legislao intitulada Lei das Doze Tbuas (Lex Duodecim Tabularum ou simples-mente Duodecim Tabulae). Segundo atestam os historiadores, antes da Repblica, as leis eram guardadas em segredo pelos pontfices e outros representantes da classe dos patrcios, a elite romana, sendo executadas com notria severi-dade contra os plebeus. Mas, por volta de 462 a.C, um plebeu de nome Terentilius props a compilao e a publicao de um cdigo oficial

  • MP19

    no mais apenas verbal e sigiloso, mas escrito. Embora inicialmente se opusessem a tal soli-citao, os patrcios, dez anos mais tarde, deci-diram organizar um decenvirato (conselho de dez homens) para a elaborao do projeto do cdigo. E eis que, ainda em 451 a.C, os dez pri-meiros cdigos foram concludos, ficando para o ano seguinte a finalizao dos dois restantes, consagrando a primeira manifestao formal do direito na civilizao romana. Foram ento promulgadas as Doze Tbuas, inscritas em doze tabletes de madeira afixados no Frum romano, de modo que todos pudessem l-las e conhec-las.

    Nos dois perodos seguintes, o do Prin-cipado e da Monarquia Absoluta, os romanos aprimoraram as Leis das Doze Tbuas e pros-seguiram com a criao de leis, mas dessa vez a diferena era que o poder jurdico retornava centralizado nas mos do monarca, que desti-tua aos poucos o Senado da funo de legis-lar. E esse foi tambm um perodo de crescente

    burocratizao dos cargos e funes da justia, que seguiam a passos largos rumo institucio-nalizao do direito.

    inegvel que, ao pesquisarmos sobre as origens do direito brasileiro, invoquemos sempre as origens do direito romano. Afinal, os Estados de direito ocidentais, como o nosso,

    Vista de Roma

    O contedo das Duodecim Tabulae (Doze Tbuas):

    Tbuas I e II Organizao e Procedimento Judicial;

    Tbua III Normas contra os Inadimplentes;

    Tbua IV Ptrio Poder;

    Tbua V Sucesses e Tutela;

    Tbua VI Propriedade;

    Tbua VIII Dos Delitos;

    Tbua IX Direito Pblico;

    Tbua X Direito Sagrado;

    Tbuas XI e XII Normas Complementares

  • 20

    devem muito aos preldios de organizao judiciria instituda pelos romanos. A prpria instituio do direito europeu, na Idade Mdia, tem razes manifestas no direito romano: nesse perodo histrico, a justia se manifestava em leis e cdigos, havia tambm funes institu-cionais dos reguladores da lei, e tudo isso se exercia com base no cdigo romano, traduzido do latim para as lnguas vernculas dos princi-pais pases da Europa.

    Mas havia ainda um outro fator impor-tante: a Idade Mdia destacou-se pela forte influ-ncia religiosa na vida dos povos, e a instituio de um direito pblico europeu no se fez alheio aos preceitos eclesisticos. Os cdigos eram, pois, respaldados pela lei divina, assim como tambm havia ocorrido em Roma, em estreita obedincia s leis de Deus. E, dessa forma, a par do direito romano e influenciados por preceitos religiosos, foram-se sistematizando as legisla-es, dentre as quais merecem destaque as leis de Lbeck (Alemanha) e de Teruel e de Cuenca (Espanha), todas do sculo XII.

    Quando se iniciou a Idade Moderna, cujo marco foi a queda de Constantinopla em 1493, o direito europeu avanou amplamente: as prer-rogativas do novo Estado absolutista no in-cio, centralizador dos poderes nas mos de um monarca conferiram justia novos papis. E eis que passava a prevalecer, de maneira pujante, o direito divino dos reis.

    Foi assim na Frana, sobretudo com o rei Lus XIV: todas as leis eram respaldadas pelo poder absoluto conferido por Deus ao monarca, para legislar e aplicar a lei em favor das normas divinas, condenando clausura, a trabalhos for-ados ou morte os homens que descumpris-sem os mandamentos da justia. Na Inglaterra, o principal lema dos reis condizia com o fato de se considerarem vigrios (deputies, represen-tantes) de Deus na Terra.

    Tribunais j existiam nessa poca; era possvel recorrer a funcionrios que intervi-nham nas questes da lei em nome dos reis; afora isso, leis, decretos, estatutos e cdigos especficos tambm j eram comuns. Haviam-se, pois, definido de maneira mais abrangente as principais funes jurdicas nas sociedades europias: juzes, promotores e advogados j atuavam em favor da justia.

    Mas seria na primeira metade do sculo XVIII, na Frana, que pela primeira vez se ouviria a expresso Ministrio Pblico: que os procuradores e advogados do rei, ao se refe-rirem ao prprio ofcio, utilizavam costumeira-mente esta expresso, que passou a ser esten-dida a todas as disposies legislativas da poca. Embora ainda no referenciado plenamente nas funes tais quais hoje conhecemos, o Minist-rio Pblico representava a atuao da justia em favor da correta aplicao da lei, cabendo ao promotor eleito pelo povo o encargo de susten-

  • MP21

    tar a acusao perante os tribunais. Mais tarde, com a Revoluo Francesa, os promotores pas-saram a desempenhar cada vez mais um impor-tante papel, mas a instituio ganhou maior organicidade apenas com os textos napoleni-cos e, em especial, com o Cdigo de Instruo Criminal de 20 de abril de 1810.

    J estamos, ento, no sculo XIX, perodo em que o Ministrio Pblico j se havia firmado como imprescindvel no sistema judicial, encar-regado da defesa da legalidade e dos interesses que a lei determinasse. A ao desta instituio foi-se desenvolvendo e ganhando centralidade na vida pblica das naes e, a partir de ento, passou a se responsabilizar por inmeras ativi-dades, perante julgados e julgadores.

    Falar, portanto, da atuao do Ministrio Pblico no Estado de Gois, tarefa maior desta publicao, recorrer a uma intrincada rede de histrias sobre a justia brasileira, que, como vimos, respalda-se nas origens da justia de outros povos de que somos tributrios, como os gregos e os romanos. Mas, sobretudo, repen-sar a justia brasileira, acertar com ela as con-tas, acompanhar sua longa trajetria, desde os primrdios de nossa organizao em sociedade, com a chegada dos portugueses poca da con-quista europia do pas, at os dias atuais, em que a atuao do Ministrio Pblico faz-se cen-

    tral no sistema judicirio em qualquer um dos Estados e territrios nacionais.

    , em suma, uma tarefa que se impe to minuciosa quanto prazerosa. Afinal, resgatar as memrias de uma instituio to importante

  • 22

    para a histria do nosso pas, procurando nela perceber a centralidade das memrias conser-vadas por nosso Estado que, alm de enre-dos imprescritveis, contemplam-nos com fases de seu esplendor e desenvolvimento , mais do que necessrio: faz-se premente, visto que parte indissocivel da memria e da identidade de nosso povo.

    Detalhe do antigo edifcio-sede do MP na cidade de Gois

  • MP23

  • 24

  • Ministrio Pblico no Brasil:a instituio e sua trajetria

    Boa ventura, boa ventura, muitos rubis, muitas esmeraldas, muitas graas deveis de dar

    a Deus: porque vos trouxe terra onde h toda a especiaria, pedraria e toda a riqueza do mundo.

    Ferno Lopez de Castanheda. Histria do descobrimento e conquista das ndias

    Os primeiros anos do Brasil: a Justia sem lei

    Em fins do sculo XV, esgotadas as reservas europias de matrias-primas, metais preciosos e pedrarias, voltavam-se os povos do Ocidente para as terras dalm-mar. Paulo Prado, em Retrato do Brasil, escreve: Era por toda a parte a mesma fascinao diante das riquezas reais ou fabulosas que prometiam as novas terras. Era a preocupao, confessada ou disfarada, da auri mortifera fames, de que falava Pedro Mrtir. Ouro. Ouro. Ouro.

    E nessa atmosfera de aventura herica e impaciente ambio, chegavam ao Brasil, em 22 de abril de 1500, treze caravelas lideradas por Pedro lvares Cabral. Em tintas vivas e frescas, o que se mostrava aos portugueses era um pai-nel primitivo: estava fundado o encantamento com o maravilhoso achado que surgia aos nave-gantes aps a longa e contingente travessia.

    As maravilhas do clima tropical, as rique-zas de fauna e flora, a abundncia de gua e a seduo das ndias, em sua nudez lasciva, eram inenarrveis. As madeiras preciosas, em refina-mento e qualidade, a pujana da floresta vasta e densa, os pssaros das mais vistosas plumagens, tatus, tamandus e preguias, as delcias de um ar at ento irrespirado pelo homem branco, tudo isso anunciava as futuras expedies rumo descoberta e explorao do novo mundo.

    A expresso auri mortifera fames em latim significa fome mortfera de ouro. uma variao de auri sacra fames (fome maldita de ouro), versos da Eneida, de Virglio, em que o poeta latino falava da ganncia humana sem limites.

    A impresso do paraso, cara a todos os cronistas e aventureiros que, aos pou-cos, iam desembarcando no Brasil, no podia ser outra, conforme observara Pero de Magalhes Gndavo, autor da primeira Histria do Brasil, publicada em 1576: Toda est vestida de mui alto e espesso arvoredo, regada com guas de muitas e mui preciosas ribeiras de que abundantemente participa toda a terra: onde permanece sempre a verdura com aquela temperana da primavera que c nos oferece Abril e Maio. (Histria da provncia de Santa Cruz, que vulgarmente chamamos Brasil)

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    Somado a este encantamento preliminar, viria um outro, mais avassalador, que traria da longnqua Europa uma infinidade de gen-tes: descoberta ao acaso e por muito tempo deixada ao acaso pelos portugueses por causa das dificuldades de penetrao na virgem mata, anos mais tarde, no desbravamento do inte-rior, a terra idlica mostrar-se-ia assaz fecunda em metais preciosos. Em busca das pedrarias, aqui desembarcavam aventureiros, degredados, nufragos, todos abandonando suas cidades de origem para fixarem morada na terra pro-missora. Paulo Prado continua: Para homens que vinham da Europa policiada, o ardor dos temperamentos, a amoralidade dos costumes, a ausncia do pudor civilizado [e toda a esperana do ouro] eram um convite vida solta e infrene [e grandiosa promessa do enriquecimento].

    E eis que tudo, a partir de ento, passaria a ter os contornos do colonizador europeu. Vie-ram para c os jesutas: pretendiam catequizar e civilizar os ndios; desembarcando aos milha-res nos portos improvisados do litoral, aqui chegavam os portugueses, prontos a construir morada, fundar vilarejos, iniciar a explorao do territrio; e o mpeto bandeirante, desbrava-dor das matas intrincadas, estava inaugurado: o Brasil seria colonizado extrair-lhe-iam as riquezas e estas seriam, durante sculos, trans-feridas para a Corte portuguesa, que tratou de organizar a espoliao, enviando colonos, fun-dando capitanias, concedendo aos seus poderes de governana.

    Mas como administrar to gigantesco territrio? Conceder permisses para a explo-rao das riquezas, dividir as terras, impor regras de conduta, penalizar possveis infrato-res? A essa poca, ainda em meados do sculo XVI, a Corte portuguesa administrava, com extremada dificuldade, o Brasil. Aqui no havia ordenamentos jurdicos, e a justia era apenas uma formalidade. At o ano de 1609, funcio-nava no recm-descoberto territrio de ndios, portugueses e mestios a justia de primeira instncia, a cargo dos colonos. No havia ainda tribunais, magistrados, advogados, tampouco rgos de controle estabelecidos como, por exemplo, o Ministrio Pblico, que a essa

    Pedro Peres. Elevao da cruz, 1879

  • MP27

    altura na Europa j era responsvel pela tutela dos interesses estatais. Os processos criminais eram iniciados por um particular, ou ex-officio, e julgados por um juiz, nomeado provisoria-

    mente e ad hoc por decreto do rei portugus. Se houvesse recurso cabvel, mais uma complica-o: os processos eram remetidos, interpostos e julgados nos tribunais portugueses.

    A essa altura, todas as nossas referncias jurdicas partiam de Portugal, onde desde os preldios do sculo XVI vigoravam duas prin-cipais Ordenaes: as Manuelinas, de 1521, e as Filipinas, de 1603. Nas primeiras, a atuao do promotor de justia j estava prevista: compe-tia a este rgo a fiscalizao do cumprimento da lei e sua execuo. As Ordenaes Manueli-nas, no Ttulo XII de em seu Livro Primeiro, Do Promotor da Justia da Casa da Suplica-

    A suscetibilidade a ataques de naes estrangeiras levou Por-tugal a rever a poltica de dominao no Brasil, levando-o a adotar o sistema de capitanias hereditrias. No mbito de cada capitania hereditria, o donatrio, alm de ser o responsvel pela explorao econmica das vastas reas territoriais, exer-cia poder judicante em relao a aladas cveis e criminais, exercidas por um ouvidor e outros oficiais nomeados pelos respectivos donatrios. Quanto aos fidalgos, contudo, tal po-der se limitava. Das decises proferidas, cabia apelos Casa de Suplicao (em Lisboa), instituda desde 1392 e composta por vinte desembargadores. Vale lembrar, ainda, a existncia concorrente do Tribunal Especial do Santo Ofcio (imagem), remanescente da Inquisio, que subsistiu por 285 anos em Portugal. Este colegiado tinha competncia genrica para as questes de mbito moral.

    Pela nova organizao judiciria da Colnia, estabelecida des-de 1548, nos aglomerados urbanos com entre vinte e cinqenta moradores, escolhia-se entre eles um Juiz de Vintena, atravs da Cmara de Vereadores. No termo (a subdiviso de uma co-marca), nomeava-se o Juiz Ordinrio, tambm eleito pela C-mara Municipal. Em regra, tais juzes no tinham formao ju-rdica. Afora isso, como cada capitania era dividida em comar-cas; em cada uma delas havia um ouvidor, a quem competia o conhecimento de todas as apelaes na rea criminal, depois, naturalmente, de passar pelo juiz ordinrio. Integravam ainda o sistema, no que se refere aos servios auxiliares, os escri-ves, os tabelies (garantidores da validade dos documentos) e meirinhos (encarregados de priso de suspeitos e de coad-juvar os trabalhos dos superiores). Os ouvidores extraordin-rios do rei tinham livre trnsito de posto, cidade e comarca, de modo a efetuarem a fiscalizao dos atos da justia, nessas primeiras dcadas de Brasil.

    Cristiano Banti. Galileu frente ao Tribunal da Inquisio, 1857

  • o, definia o responsvel por esta tarefa: O prometor da Justia deve seer letrado, e bem entendido pera saber espertar, e aleguar as cau-sas, e razoes que pera lume, e clareza da Justica, e pra inteira conservaam della convem....

    Antes das Ordenaes Manuelinas, a jus-tia portuguesa adquiria carter provisrio e os crimes eram julgados por particulares. Como lembra Antnio Magalhes Gomes Filho, em seu livro Ministrio Pblico e Acusao Penal no sistema brasileiro: Tratando-se de crimes pblicos, a formao da acusao competia aos escrives dos juzos criminais, na falta de acu-sadores; [e s mais tarde] essa funo, que era meramente supletiva da inrcia do particular, transmitiu-se aos promotores pblicos.

    No que se refere ao promotor de justia, o texto das Ordena-es Filipinas aperfeioava o que j versavam as Ordenaes Manuelinas: definia-se o seu papel de fiscalizar o andamento dos processos e devassas, estabelecendo, para tanto, as se-guintes competncias:

    pedir vistas dos processos;

    operar investigaes;

    registrar denncias;

    decretar prises;

    acusar presos frente ao Tribunal da Relao ou ainda junto Casa da Suplicao;

    visitar cadeias (no primeiro dia de cada ms);

    representar interesses dos rfos, das vivas e dos indigentes.

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    A criao dos primeiros Tribunais de Relao

    Ora, era esse mesmo quadro de ausn-cia de leis e rgos reguladores que o Brasil experimentava por volta de 1600. Apenas em 7 de maro de 1609 seria criado o primeiro Tri-bunal da Relao, na Bahia, onde pela primeira vez, e a partir do modelo portugus, definia-se a figura do promotor de justia. Alm dele, declarou-se tambm o procurador dos Feitos da Coroa, Fazenda e Fisco, a exemplo do que previam as Ordenaes Filipinas, institudas em Portugal seis anos antes. E, com isso, o promotor de justia fazia sua primeira apari-o em terras brasileiras, tendo assim definidos no regimento interno do tribunal baiano seus principais papis:

    Art. 54 O Procurador dos Feitos da Coroa e Fazenda deve ser muito diligente, e saber particu-larmente de todas as cousas que tocarem Coroa e Fazenda, para requerer nelas tudo o que fizer a bem de minha justia; para o que ser sempre presente a todas as audincias que fizer dos feitos da coroa e fazenda, por minhas Ordenaes e ex-travagantes.

    Art. 55 Servir outrossim o dito Procurador da Coroa e dos Feitos da Fazenda de Procurador do Fisco e de Promotor de Justia; e usar em todo o regimento, que por minhas Ordenaes dado ao Promotor de Justia da Casa da Suplicao e ao Procurador do Fisco. (Tribunal da Relao da Bahia, Regimento inter-no, registro de provises, livro 2. Infelizmente,

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    escassa a documentao dos primeiros anos de funcionamento deste tribunal. Com a invaso ho-landesa, em 1624, foram destrudos praticamente todos os seus registros.).

    E estava, pois, criado um dos rgos mais importantes da Justia no Brasil, respaldado inicialmente nas duas ordenaes portuguesas, anos adiante aprimorado em sua essncia e atu-ao e, atualmente, responsvel inconteste pela defesa dos interesses de seus cidados.

    Quase um sculo e meio mais tarde, em 1751, seria a vez do Rio de Janeiro: mantendo-se a mesma estrutura organizacional instituda na Bahia, fundava-se em terras cariocas o seu Tribunal de Relao. Mas, apesar de a Col-

    nia passar a contar com estas duas instituies judicirias e de j ter prevista a figura do pro-motor para defesa dos interesses estatais e dos cidados, a justia aqui continuava irregular e falha, entregue a interesses pessoais e ainda extremamente arbitrria. Soma-se a isso o fato de apenas os dois Tribunais da Relao o da Bahia e o do Rio de Janeiro no darem conta de fazer valer a justia em todo o gigante ter-ritrio. As dificuldades de acesso a estes tri-bunais eram notrias, e isso levou criao da primeira Junta de Justia do Par, em 1758. Composto pelo governador da provncia, pelo ouvidor, por um intendente, por um juiz de fora e trs vereadores, a Junta do Par tinha jurisdi-o inclusive sobre Minas Gerais e as capitanias do Sul do Brasil, destinando-se, em princpio, a desafogar o acmulo de processos na Bahia.

    O Tribunal da Relao da Bahia era composto pelos seguintes desem-bargadores: um ouvidor-geral, um chanceler, trs desembargadores dos Agravos e Apelaes, dois desembargadores extravagantes, um juiz dos Feitos da Coroa, Fazenda e Fisco, um procurador dos Feitos da Coroa, Fazenda e Fisco, que tambm exercia a funo de Promotor P-blico, e um Provedor dos Defuntos e Resduos. Era um rgo sobretudo consultivo para assuntos polticos e administrativos, e o governador tinha o poder de interveno na Relao.

    A criao da Relao da Bahia, em 1609, implantou, assim, o exerc-cio das funes do Ministrio Pblico em terras brasileiras, ainda que tenha fundido o procurador da Coroa e Fazenda com o promotor de justia. Gnter Axt. O Ministrio Pblico no Rio Grande do Sul: evoluo histrica, 2001, p. 27

    O cargo de juiz de fora, figura tradicional no direito pblico lusi-tano, foi introduzido no Brasil inicialmente em Salvador, Olinda e Rio de Janeiro, a partir de 1696. Tais magistrados, lotados nas comarcas, tinham por funo limitar a alada de poder das cmaras municipais e ainda controlar os juzes ordinrios, elei-tos por elas, numa ntida confuso entre atividades executivas e judicirias.Os juzes de fora eram como que interventores: oriundos de fora da comarca para a qual eram nomeados, eram suposta-mente isentos e imparciais. O cargo no podia ser exercido no local de origem nem de residncia do magistrado. Tambm no eram permitidos ao juiz de fora quaisquer vnculos com a populao local, tampouco laos de amizade.

    Mapa do mundo, de 1502, desenhado por Cantinus. V-se ao centro o Meridiano de Tordesilhas

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    Consta dos registros historiogrficos que em 1763, frente ao incontrolvel avano econmico advindo das atividades mineradoras no Sudeste, sobretudo nas inesgotveis Minas Gerais, o Marqus de Pombal transferiu a sede da colnia portuguesa de Salvador para o Rio de Janeiro. A partir de ento, era o Tribunal da Relao desta provncia, que em 1808 se transformaria em Casa de Suplicao do Bra-sil, a quem caberia julgar todos os recursos de decises impetradas no Tribunal da Bahia, tornando-se o tribunal brasileiro supremo. E, ento, era tambm ali que os cargos de promo-

    tor e procurador dos Feitos da Coroa passavam a ser ocupados por dois titulares.

    Certo que a prpria estrutura organi-zacional destes tribunais empecia a eficcia do julgamento dos recursos cabveis aos processos criminais, e por isso eram necessrias novas medidas. Aos poucos, a Justia, mais especifi-camente a magistratura, ia adquirindo identi-dade especfica, operada por uma elite letrada que, em regra, era reconhecida pelo prprio monarca atravs de privilgios diversos como status, poder e fortuna.

    Com relao a Gois, a histria do Minis-trio Pblico comeava a estabelecer-se nessa poca, em que pouco havia de ordenamento jurdico no Brasil. Em fins do sculo XVII, quando existia apenas o Tribunal da Relao da Bahia, as Minas dos Goiazes (parte das quais formaria o atual Estado de Gois) eram territ-rio especial, com acesso controlado, vinculado capitania de So Paulo. Apenas meio sculo mais tarde, em 1748, que se efetuaria a sepa-rao, passando Gois condio de capitania. J em 1751, quando foi institudo o Tribunal da Relao do Rio de Janeiro, por alvar de 13 de outubro, que se definiram melhor os rumos judicirios da capitania dos Goiazes, que fica-ria, juntamente a doze outras, sob a jurisdio deste Tribunal. O desembargador goiano Cle-non de Barros Loyola quem nos informa do

    Dos dez desembargadores inicialmente integrantes da Relao do Rio de Janeiro, cinco eram destinados aos agravos; um era ouvidor geral do cri-me; outro, ouvidor geral do cvel; um era juiz da Coroa; um era procurador da Coroa, da fazenda e promotoria; e por fim havia tambm um chanceler. Por ocasio da vinda da famlia real, em 1808, esse tribunal foi elevado categoria de Casa de Suplicao do Brasil, passando a funcionar como instncia recursal de terceiro nvel. Neste mesmo ano, acentuou-se a se-parao entre os interesses do Estado e do soberano, atravs do novo Cdigo de Instruo Criminal, e estabeleceu-se tambm a diferenciao dos papis do procurador da Coroa e do promotor de justia.

    Como curiosidade, vale ressaltar que no Brasil Colnia o Estado no cus-teava a manuteno dos presos. Era famlia, ao patro ou aos amigos que cabia tal incumbncia. Na ausncia destes, em muitos casos era con-cedido aos prprios presos, para no morrerem de fome, o direito de es-molar porta das cadeias, aguilhoado a longas correntes.

  • episdio, no texto Centenrio da Relao de Gois, publicado no n 5 da Revista Goiana de Jurisprudncia:

    Em 1748, poca em que Gois passou a Capita-nia, separada de So Paulo, a Colnia ainda pos-sua aquele nico Tribunal, pois s em 1751 se instalou a segunda Relao, na cidade de So Se-bastio do Rio de Janeiro, criada por alvar (...), de d. Jos I, atendendo representao dos povos da parte sul do Estado do Brasil, que, por ficar em tanta distncia a Relao da Bahia, no podem seguir nela as suas causas e requerimentos, sem padecer grandes demoras, despesas e perigos.

    No Regimento do Segundo Tribunal, fixou-se em dez o nmero de seus desembargadores, estabele-cendo-se que a Relao tinha por distrito todo o territrio, que fica ao Sul do Estado do Brasil em que se compreendem treze comarcas, a saber, Rio de Janeiro, So Paulo, Ouro Preto, Rio das Mor-tes, Sabar, Rio das Velhas, Serro do Frio, Coyab [Cuiab], Goiazes [Gois], Pernagu [Para-nagu], Esprito Santo, Itacazes [Campos dos Goytacazes] e Ilha de Santa Catarina, incluindo todas as judicaturas, ouvidorias e capitanias, que se houverem criado, ou de novo se criarem no re-ferido mbito.

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    Mas um acontecimento inusitado seria responsvel pela reestruturao de todo o sis-tema judicirio do pas: em maro de 1808, a chegada de d. Joo VI ao Rio de Janeiro, acom-panhado de toda a famlia real, traria novos rumos para justia brasileira, com a criao de leis, decretos, regimentos e, sobretudo, a ins-tituio de Tribunais de Justia. Antes disso, sequer havia legislao prpria no Brasil: apli-cava-se, no incio, a lei de bordo dos capites de navios e dos lderes militares (expedies exploratrias) e, mais tarde, nos Tribunais de Relao, a de uma elite administrativa, que tra-tava de convencer os magistrados de suas cau-sas mais nobres.

    A chegada de d. Joo VI e a instituio dos Tribunais de Justia no Imprio brasileiro

    Com a chegada da famlia real, em 1808, logo se processariam importantes mudanas no destino da Justia brasileira. Organizou-se melhor a administrao do gigantesco territ-rio, tratou-se de suprir o pas com instituies promotoras da ordem, da educao, da cultura e das artes e, nessa toada, promulgaram-se as primeiras leis.

    Em 25 de maro de 1824, iniciando-se o perodo imperial, o rei outorgava a primeira Constituio do Brasil. Com a Carta Magna, foram criados o Supremo Tribunal de Justia e outros Tribunais de Relao em cujo interior foram nomeados desembargadores e procura-dores da Coroa, que a essa poca atuariam como promotores pblicos. Conforme consta no Art. 48 da Constituio de 1824, assim se definia a funo dos procuradores: No juzo dos cri-mes, cuja acusao no pertence Cmara dos Deputados, acusar o Procurador da Coroa. No se mencionava, dessa forma, propriamente o Ministrio Pblico: apenas oito anos mais tarde, j em 29 de novembro de 1932, que o Cdigo de Processo Penal atribuiria tratamento sistemtico a este rgo da Justia. Tal cdigo institua em definitivo a figura do promotor de

    D. Joo VI

  • MP35

    justia como defensor da sociedade e titular da ao penal pblica.

    Ora, durante os dois primeiros anos da Regncia, o padre Diogo Feij respondeu pelo Ministrio da Justia, exercendo notvel ascen-dncia sobre os assuntos judicirios em todo o pas. Pela Lei de 6 de junho de 1831, atribu-am-se prerrogativas aos juzes de paz, demis-sveis ad nutum pelo governo central, dentre as quais a competncia para tomarem conheci-mento ex officio dos crimes policiais nos muni-cpios e para nomearem, em seus distritos, os delegados de quarteiro tais juzes, portanto, supervisionariam as chamadas milcias civis provisrias. Essa descentralizao reforou-se com o advento do Cdigo de 1832 que, como vimos, restaurava a inviolabilidade do juiz de paz, o qual outrora acumulava funes policiais e judiciais, ofuscando ainda mais a chamada justia togada.

    Nesse contexto, assim fun-cionava a Justia no Brasil: os juzes de paz eram designados para os distritos. J em relao aos termos, cabia ao juiz muni-cipal comandar as atividades jurisdicionais, valendo-se do concurso do promotor, do con-selho de jurados, do escrivo das execues e demais oficiais. oca-

    sio, foram extintas as ouvidorias, os juzes de fora e os juzes ordinrios. Quanto aos tribu-nais eclesisticos, ficaram relegados s mat-rias puramente espirituais. O papel do promo-tor pblico era, ento, exercido precipuamente nos termos (municpios). S eram passveis de desempenhar tais atividades aqueles cida-dos eleitores do sexo masculino acima de 21 anos, com renda anual superior a determinado limite, emancipados e desde que no perten-cessem a ordens religiosas. Recaindo a escolha sobre a comunidade, atravs da Cmara Muni-cipal, a nomeao era privativa do governo da

    Corte, delegvel aos presidentes das provncias.

    Quanto s funes institu-cionais, o Aviso Imperial de 20 de

    outubro de 1836 trataria de incumbir os promotores

    de novas atribuies, como a de visitar pri-ses uma vez por ms, dar andamento nos processos e dili-genciar a soltura dos rus. Dois anos mais tarde, outro

    Aviso Imperial, de 16

    Padre Diogo Feij

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    de janeiro de 1838: e ficava estabelecido que os promotores seriam tambm os fiscais da lei.

    Uma sucesso de avisos, leis e decretos foram sendo promulgados no Brasil a partir de ento, nos quais sempre se ampliavam ou aper-feioavam as atribuies dos promotores. A Lei n 261, de 3 de dezembro de 1841, reformadora do Cdigo de Processo Criminal, assim abor-dava os promotores pblicos:

    Art. 22 Os Promotores Pblicos sero nome-ados e demitidos pelo Imperador, ou pelos presi-dentes das provncias, preferindo sempre os ba-charis formados, que forem idneos, e serviro pelo tempo que convier. Na falta ou impedimento sero nomeados interinamente pelos Juzes de Direito.

    Art. 23 Haver pelo menos em cada comarca um Promotor, que acompanhar o Juiz de Direito; quando, porm, as circunstncias exigirem, pode-ro ser nomeados mais de um (...).

    O promotor podia, ento, denunciar cri-mes perante juzes de primeira instncia, Rela-es (segunda instncia) e o Supremo (instncia mxima). Nas provncias, caso houvesse impe-dimento do promotor, o cargo seria preenchido por um juiz municipal nomeado interinamente pelo presidente da provncia. Isso, entre outros dispositivos, confundia o papel do promotor com o do juiz municipal. Ademais, notria era a escassez de cidados que bem pudessem desem-penhar as funes de promotor.

    Se pensarmos nessa atuao no Estado de Gois a essa poca, teremos necessariamente de recorrer a duas publicaes extradas do

    A Constituio do Imprio, promulgada em 1824, separou a justia dos demais poderes, criou o Supremo Tribunal de Jus-tia e tribunais de segunda instncia nas prprias provncias. Trs anos depois, a criao do cargo de juiz de paz e o ordena-mento das funes judiciais e policiais nos termos e distritos foram os principais temas da Lei de 13 de outubro de 1827. No ano seguinte, finalmente, por intermdio da lei de 1 de outu-bro de 1828, as Cmaras Municipais perderam suas funes judicantes, e o Cdigo Criminal da dcada de 1830 trataria de formalizar a atuao do promotor de justia. Segundo Antnio Cludio Costa Machado, ficavam assim defini-das as atribuies do promotor:

    Dispunha o Art. 36 (do estatuto criminal de 1832) que podiam ser promotores aquelas pessoas que pudessem ser jurados; dentre estes, preferencialmente, os que fossem instrudos em leis. Uma vez escolhidos, haviam de ser nomeados pelo governo da Corte ou pelo presidente das provncias. J o Art. 37 afirmava pertencer ao promotor as seguintes atribuies: denunciar os crimes pblicos, e policiais, o crime de reduo escravido de pessoas livres, crcere privado, homicdio ou tentativa, ferimentos com qualifica-es, roubos, calnias, injrias contra pessoas vrias, bem como acusar os delinqentes perante os jurados; solicitar a priso e punio dos criminosos e promover a execuo das sentenas e mandados judiciais ( 2); dar parte s autoridades competentes das negligncias e prevaricaes dos empregados na administra-o da Justia ( 3). No Art. 38, previa-se a nomeao interina no caso de impedimento ou falta do promotor (...). Posteriormen-te, pelo Art. 217 do Regulamento 120, de 31.1.1842, passaram os promotores a servir enquanto conviesse ao servio pblico, podendo ser demitidos ad nutum pelo Imperador ou pelos presi-dentes das provncias. O Decreto n 4.824, de 22.11.1871, em seu artigo 1, por sua vez, criou o cargo de Adjunto do Promotor para substitu-lo em suas faltas ou impedimentos. A interveno do Ministrio Pblico no processo civil, 1989

  • jornal Matutina meiapontense. A primeira delas refere-se ata da sesso da Cmara Municipal da Cidade de Goyaz ocorrida em 24 de abril de 1833. A propsito do assunto lia-se na edio do jornal de 22 de fevereiro de 1834:

    Fez-se a leitura dos ofcios de respostas do Rev. Marianno Pereira Pedrozo e Padre Antnio Ma-rianno de Castro, este excuzando-se de ser nome-ado Promotor, e aquele, com maior patriotismo, amor da Ptria, e o bem Pblico aceitou.

    A segunda notcia, publicada em 12 de fevereiro do mesmo ano, registra como ficariam divididas as atividades de represso aos crimes, j sobre a gide do Cdigo de Processo Crimi-nal de 1832. Trata-se de um decreto de autoria do ento ministro e secretrio do Estado dos Negcios da Justia, ainda durante o perodo da Regncia.

    A Regncia Permanente, em Nome do Imperado o Sr. d. Pedro II, tendo em vista o disposto no C-digo do Processo Criminal, e querendo regular as attribuies do Chefe da Polcia, decreta:

    Art. 1 O Juiz de Direito, que for Chefe da Pol-cia, ter a seu cargo:

    1 - Vigiar sobre tudo, que pertence preveno de delitos, e manuteno da segurana, tranqili-dade, sade e comodidade pblica.

    2 - Inspecionar todas as autoridades policiaes do seu Termo e seos subalternos, os quaes lhes sero todos subordinados.

    3 - Ter todo o cuidado em saber se as referidas authoridades cumprem seos Regimentos e cum-prem e desempenho seus deveres no que toca Polcia. (...)

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    Art. 4. O mesmo Chefe da Polcia visitar no prin-cpio de cada mez as prises e cadas, acompanha-do do Promotor Pblico do Termo, o qual dever requerer o que convier a bem do adiantamento dos processos dos prazos, e da observncia das Leis, lavrando-se de tudo os competentes termos. (...)

    Quase uma dcada mais tarde, j no incio de 1840, importantes novidades foram imple-mentadas quanto carreira no Ministrio Pblico. Por ocasio da reforma no Cdigo de Processo Criminal, outorgada pela Lei no 261, de 3 de dezembro de 1841, o promotor pblico passaria a perceber remunerao e sua escolha no mais dependeria de referendo da Cmara Municipal. Quanto remunerao, justificava poca o ministro Paulino Jos Soares de Souza, o Visconde de Uruguai: O interesse da sociedade exige que esses lugares sejam servidos por homens com a necessria instru-o e capacidade para lutarem contra a defesa [numa palavra, contra o advogado, o defensor do ru] (Coelho Vaz, Memria do Poder Judi-cirio de Gois).

    Dois anos mais tarde, em 1843, estabe-leciam-se novos papis para os membros do Ministrio Pblico, aos quais tambm passaria a competir: a fiscalizao de livros de registro civil elaborados pelos escrives de paz e secre-trios das Cmaras Municipais; a reviso do alistamento para o Exrcito e a Armada; e a

    requisio de nulidade do casamento realizado sombra do direito cannico.

    Nesse contexto, novos decretos eram promulgados na capital do Imprio, e de novo apareciam novas montas ao promotor pblico. No Decreto de n 120, de 21 de janeiro de 1843, que regulamentou a Lei n 261, tratou-se de reiterar as novas condies de investidura ao cargo de promotor: devia ele ser designado a exclusivo critrio do imperador ou do presi-dente da provncia. Sob esta perspectiva, conti-nuava o promotor pblico a ser tratado apenas como funcionrio da ordem administrativa, a servio do Imprio, e no da Justia.

    No caso do serto goiano, assim como em outras regies brasileiras marcadas pelo isola-mento e pela precariedade de condies de vida, havia tambm dificuldades de outra ordem: a principal delas era a ausncia de pessoas letra-das que pudessem assumir a administrao da Justia na provncia. Clamava-se por juzes de direito para atuarem nos julgados (comarcas), e no havia meios de encontr-los; sequer exis-tiam aqui bacharis com idoneidade para repre-sentar os interesses da provncia e de seus cida-dos; os jris, em sua maioria, eram presididos por leigos, que mal sabiam ler e escrever; eram tambm freqentes e impunveis as inmeras represlias e vinganas praticadas contra as tes-temunhas, o corpo de jurados, o promotor e o

  • MP39

    juiz, e tudo isso implicava srios prejuzos para a manuteno da ordem e a aplicao da lei.

    O que dizer da atuao do Ministrio Pblico da provncia de Gois nesse perodo? Faltavam, sobretudo, profissionais habilitados, tanto ao cargo de juiz como ao de promotor, e, para compensar tal lacuna, nomeavam-se homens considerados honrados que, mesmo sem o devido estudo e compreenso das leis, tra-tariam de representar a Justia. Afora isso, uma outra sada era procurar e admitir autodidatas minimamente competentes, poca conhecidos como rbulas, para atuar como operadores do Direito. Mesmo no sendo togados, bastaria que estudassem as Ordenaes Manuelinas e Filipinas principal fundamento das leis brasi-leiras de ento para, em seguida, requererem, tanto na capital como nas distantes comarcas do interior, o chamado provisionamento, sua autorizao para advogar.

    Mas esse quadro oscilante seria trans-formado anos mais tarde. Em Gois, no ano de 1851, por iniciativa do presidente da provncia, Antnio Joaquim da Silva Gomes, houve medi-das importantes para atrair possveis bacharis em Direito. A principal delas foi a fixao de considervel remunerao para promotores pblicos e juzes que viessem atuar nos termos goianos: os primeiros perceberiam remunera-o de quinhentos mil ris e, os segundos, de um conto de ris.

    Na ocasio, havia somente um juiz letrado na provncia de Goi-s, estabelecido em sua capital Jos Assis Mascarenhas. Algum tempo depois, outro bacharel assumiria a comarca de Santa Cruz Estevam Ribeiro de Rezende. Nas outras duas co-marcas existentes, Palmas e Cavalcante, atuavam juzes muni-cipais, em substituio ao juiz de direito, e isso, de certa forma, constitua-se em obstculo para a atividade judiciante.

    A provncia de Gois, ento isolada e com absoluta ausncia de profissionais qualificados, no poderia prescindir de ur-gentes providncias para a administrao judiciria: focos de violncia demandavam aqui um nmero cada vez maior de aplicadores da lei, conforme atestava o ento presidente da provncia, Francisco Janurio da Gama Cerqueira, em relatrio entregue ao seu sucessor Antnio Manoel de Arago e Mello: Da parchia de Morrinhos apresentou-se-me a 5 de outubro o reverendo vigrio Antnio Francisco do Nascimento expondo que havia sido obrigado a retirar-se precipitadamente daquella povoao onde se dera, na noite de 25 para 26 de setembro, uma tumultuosa manifestao popular contra elle e o respecti-vo subdelegado, que tambm se evadira para a cidade de Ca-talo, receando, como o vigrio, ser vtima de algumas violn-cias. (...) Ao juiz de direito da comarca do Paranahyba autorizei transferir-se temporariamente para o districto de Morrinhos, hoje pertencente dita comarca, a fim de procurar com sua in-fluencia acalmar qualquer agitao que alli existisse, e instruir as respectivas autoridades, devendo levar consigo promotor pblico, para requerer o que fosse a bem da justia, conforme a natureza e gravidade das occorrncias alli havidas, e mandei prestar-lhe, por essa occasio, o nmero de praas que pudes-sem ser dispensadas do destacamento de Catalo.

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    J em mbito nacional, finalmente have-ria, a partir de 1864, srio empenho para o aperfeioamento do Ministrio Pblico: quanto a isso, merece destaque a atitude do magistrado Nabuco de Arajo, que levou ao Ministrio da Justia toda sua experincia como aplicador da lei, iniciando um debate assaz importante sobre as funes do Ministrio Pblico no Bra-sil. Nabuco proferiria, em sesso do Congresso do dia 15 de maio de 1866, eloqente discurso em favor de uma reforma no Judicirio. Na oca-sio, apregoou o estadista: A instituio do Ministrio Pblico, no s na parte criminal, seno tambm na parte civil, , h muito tempo, uma reclamao da opinio pblica. (...) certo que, em quase todas as organizaes judiciais, o Ministrio Pblico entra como parte essencial. (...) A defesa dos sagrados direitos, aos quais a sociedade deve proteo, como so os da mulher casada, do rfo, interditos, ausentes, escravos, estabelecimentos pios ou de pblica utilidade, completa a misso do Ministrio Pblico, como defensor e representante da sociedade. Entre-mentes, o projeto de reformas que ele propu-nha no seria aprovado.

    Apesar de o Judicirio brasileiro ir-se aperfeioando ao longo das dcadas, as trans-formaes por vezes seguiam a lentos passos. A prpria reformulao do Cdigo de Processo Criminal, por meio da Lei no 2.033, de 20 de

    setembro de 1871, ampliava consideravelmente as funes judicirias no pas, mas ainda intervi-nha timidamente no tocante s competncias e prerrogativas do Ministrio Pblico. De forma sinttica, alm das indicaes costumeiras, vie-ram tona dois pontos principais, passando a competir ao promotor: assistir a todos os julga-mentos do Tribunal do Jri, inclusive aqueles em que o acusador fosse particular, e garantir a interposio de recursos nos processos em que coubesse ao pblica. Alm disso, dois meses depois, por meio do Decreto no 4.824, de 22 de novembro, seria tambm determinada a dispo-nibilidade de um promotor-adjunto em cada termo.

    A dcada de 1870 marcaria, no Brasil, uma poca em que se iniciariam profundas transformaes sociais e no mbito das relaes de trabalho: a base estrutural da sociedade brasilei-ra, de ordem senhorial-escravocrata, apresentava, j nos trs ltimos decnios do regime imperial, desgastes expressivos. E a Justia no negligenciaria tais necessidades de mudana. Pela Lei do Ventre Livre (no 2.040, de 28 de setembro de 1871), estabeleciam-se, novamente, importantes atribuies figura do promotor de justia: a ele competiria a funo de protetor do fraco e indefeso, zelando para que os filhos dos escravos fossem devidamente registrados e, a partir de ento, pudes-sem ser tratados como sujeitos, e no mais como objetos de direito.

  • Especialmente o ano de 1874 traria importantes progressos provncia de Gois: estava marcada para o dia 1 de maio a instala-o do Tribunal da Relao de Gois e, ainda, a criao dos cargos de escrivo, secretrio, ofi-cial de justia e contnuo.

    Com a criao da Relao de Gois, foram nomeados desem-bargadores, para exercerem as altas funes do Colendo Tribunal; os juzes de direito Adriano Manoel Soares (este tambm como presidente da Relao), Luiz Jos de Medeiros, Joaquim de Azevedo Monteiro, Jos Asceno da Costa Ferreira e Elias Pinto de Carvalho (este tambm como procurador); e, como secretrio do Tribunal, Joo Nunes da Silva. De maneira geral, a sociedade goiana recebeu com grandes celebraes a notcia, reconhecendo que importantes melhoramentos sociais se processariam a partir de ento.

    Como previsto, instalou-se s 10 horas do dia 1 de maio de 1874 o Superior Tribunal da Relao da provncia de Gois. E pela primeira vez na legislao brasileira, fazia-se referncia legtima ao procura-dor como rgo do Ministrio Pblico perante a Relao, a quem competiria, inclusive, tomar providncias em face de denncias de m gesto do dinheiro pblico. Praticvel ou no, certo que essa compe-tncia estava prescrita. A propsito, um episdio curioso na vida pol-tica da provncia goiana j havia ocorrido quatro anos antes, em 1870, demandando atuao do promotor. Trata-se de uma representao endereada ao promotor da capital da Gois, Antnio Flix de Bulhes Jardim, da qual se destacam a seguir alguns principais trechos:

    Ao Dr. Promotor Pblico da Capital

    Remetto a Vme. os documentos juntos para que Vme. proceda contra o ex-inspector Antonio Honrio Ferreira pelas prevaricaes que consto desses documentos Conforme Vme. ver do documento n 1 que um officio do ex-inspector Honrio n 201 de 23 de Dezembro do anno proxi-mo passado, a thesouraria de fazenda comprou em 1867 um instrumen-tal para o 2corpo de caadores a cavallo, que pela sua organizao no tem muzica, pelo preo excessivo de 830$000 ris, tendo custado esse instrumental no Rio de Janeiro menos da metade, conforme Vme. ver da cpia authentica da conta original, documento 2.Esse instrumental foi vendido pelo tenente Jos Craveiro de S, que se-gundo informou-me despendeu com o transporte a quantia de 32$000 ris e o venderia pelo preo de principal e carreto, quando Antonio Ho-norio Ferreira esquecido dos seus deveres e continuando na pratica das prevaricaes, procurou ao mesmo tenente Craveiro e com elle insistio para que augmentasse os preos das peas do instrumental por que a thesouraria lhe pagaria o que elle pedisse.Na mesma occasio em que o tenente Jos Craveiro de S vendeu o instrumental a thesouraria de fazenda, tinha alguns animaes e Antonio Honorio Ferreira tambem se propoz a compra-los por conta da fazenda nacional e tendo o dito tenente pedido por cada um a quantia de 130$000 disse-lhe Honorio que pedisse maior preo e offereceu-lhe 150$000, ne-gocio este que foi effectuado.Estes animaes em numero de 11, foro empregados na conduco duma colleco de peixes ao professor Agassiz. (...) vista das informaes e do que consta dos documentos, evidente no s que o ex-inspector da thesouraria Antonio Honorio Ferreira lesou a fazenda nacional fazendo com que o vendedor do instrumental e de animaes augmentasse os preos vontade,como tambem houve para si esses animaes que foro comprados por conta do ministerio da agricul-tura. (...)

    Antiga sede do Tribunal da Relao de Gois. Mais tarde, o edifcio sediaria o Ministrio Pblico estadual, na cidade de Gois

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    Nesse nterim, sobrecarregadas de pro-cessos e recursos, as provncias brasileiras precisavam de mais tribunais. Como a Bahia perdera o ttulo de Relao do Brasil alguns anos antes, com o Decreto n 2.342, criavam-se ou remodelavam-se, em 6 de agosto de 1873, outros sete Tribunais de Relao:

    Criados esses tribunais, afora as juntas e juzes j existentes nesse perodo, promulgados decretos, leis e cdigos importantes, o sculo XIX no Brasil chegaria sua ltima dcada com novas transformaes, que confeririam mais centralidade instituio do Ministrio Pblico.

  • MP43

    A Constituio de 1891 e a instituio de uma Justia Federal

    A passagem do Imprio Repblica, ofi-cialmente anunciada no Quinze de Novembro de 1889, obedeceu dinmica de um processo histrico pouco precipitado, que j vinha sendo articulado nos ltimos decnios do regime monrquico. E, neste caso, a proclamao de uma nova ordem poltica imporia no apenas a transformao imediata no nvel das institui-es brasileiras que de monrquicas passa-riam a republicanas.

    Mesmo antes de se assistir, na Praa da Aclamao, parada militar e ao brado de inau-gurao da Repblica brasileira, organizados s pressas por um grupo de oficiais de baixa patente que se juntou ltima hora com os oficiais superiores, as bases sociais e econmi-cas do pas j sofriam importantes alteraes, apontando para a necessria constituio de uma ordem burguesa, consolidada nas dcadas seguintes pelas vias do sistema oligrquico, que passaria a carro-chefe da poltica econmica brasileira at o final da dcada de 1920.

    A conjuntura exigia o estabelecimento de uma nova ordem poltica capaz de dar conta do novo ciclo de expanso acumulativa, ancorado na exportao de produtos primrios, em espe-cial o caf, responsvel por grande parte das

    mudanas estruturais que se processariam no pas nas trs dcadas seguintes.

    S no Estado de So Paulo, desembarcaram nessa poca 184 mil imigrantes e, de 1888 a 1900, este nmero saltaria para mais de 730 mil estrangeiros, dos quais cerca de 50% encon-trariam trabalho na agricultura.Fernando Henrique Cardoso. Dos governos militares a PrudenteCampos

    Sales, 1996.

    Com ou sem xito, o fato que a instau-rao da Repblica em 1889 viria a calhar para as intenes expansionistas dos novos empre-srios das lavouras, de modo que, to logo subissem ao poder os polticos da nova ordem, arranjar-se-iam os meios necessrios conso-lidao da hegemonia, tanto no plano poltico como no econmico, da nova classe a dos grandes oligarcas. A essa altura, a sociedade brasileira dinamizava-se tambm no cresci-mento das cidades e, para atender s demandas das lavouras e das incipientes, mas promis-soras, fbricas j em atividade , abriam-se as portas do pas para a migrao estrangeira. Afora isso, tambm era premente avanar nas instalaes de infra-estrutura da economia agro-exportadora, propiciando a expanso da rede ferroviria e a melhoria dos portos para o escoamento da produo.

  • 44

    Se havia oferta abundante de terra e um incentivo pujante imigrao, para suprir as necessidades de mo-de-obra, a frmula repu-blicana da expanso econmica no falharia: em breve, a nao brasileira veria transfor-mada, sombra do regime oligrquico, toda a sua forma de organizao social, inclusive no tocante estrutura jurdica.

    Ora, se o pas dava sinais de que cres-ceria vertiginosamente em termos econmi-cos, impunha-se premente o reordenamento das foras sociais e polticas em cujas bases se assentava a sociedade. Mudanas na organiza-o dos Poderes, maior autonomia para as pro-vncias (que to logo passaram a Estados) a fim de que articulassem e desempenhassem cada qual o seu papel na economia nacional, criao de bancos, concesso de emprstimos nacio-nais e estrangeiros destinados ao incremento da produo agrcola, investimentos de infra-estrutura, incentivo a polticas pblicas de edu-cao, sade e saneamento bsico, visando ao desenvolvimento das cidades, tudo isso, enfim, a Constituio republicana de 1891 trataria de prever e fomentar.

    Era preciso remodelar o Brasil, dot-lo de um vigor para o desenvolvimento econ-mico, subtrair-lhe a inrcia frente s mudanas de inclinao poltica do imperador d. Pedro e aos seus plenos poderes para distribuir os

    cargos pblicos, preenchidos sempre pelo apa-drinhamento das famlias que mais lhe con-viessem. Tambm era preciso repensar toda a mquina administrativa estatal, redistribuir os poderes, rearranjar suas prticas institucionais. Afinal, a centralidade de decises seria agora, mais do que nunca, ocupada e articulada pelas oligarquias.

    Ainda que timidamente, durante os pri-meiros anos republicanos expressivas transfor-maes no mbito do Executivo e do Judicirio foram realizadas no pas: era premente redefinir cada um dos Poderes da nova nao brasileira, sobretudo para que ficassem bem delimita-das a atuao e as prerrogativas de deputados, senadores, governadores de Estado, presidente da Repblica, juzes e promotores. No mbito judicirio, em 11 de outubro de 1890, o Decreto no 848 tratou de prenunciar importantes medi-das que viriam reiteradas e aperfeioadas na primeira Constituio republicana, criando e regulamentando a Justia Federal e reestrutu-rando o Ministrio Pblico.

    Inaugurava-se, pois, uma poca de buro-cratizao das instituies e dos cargos da Justia no Brasil. A exemplo disso, a primeira instncia da novel Justia Federal passaria a contar com Sees Judicirias em cada Estado da Federao e no Distrito Federal, onde exer-ceriam a jurisdio, por livre nomeao do pre-

  • MP45

    sidente da Repblica: um juiz federal, vitalcio, tambm chamado juiz seccional; um juiz fede-ral substituto, que interinamente substituiria o primeiro em caso de impedimento e tambm colaboraria em suas atividades judiciantes; e um juiz ad hoc, que cuidaria das questes que no competissem ao juiz seccional ou ao juiz substituto. Tambm ficaria finalmente institu-do o Jri Federal.

    Determinava-se, ainda, que a segunda instncia da Justia Federal seria exercida pelo Supremo Tribunal Federal (extinto Supremo Tribunal de Justia), do qual fariam parte quinze juzes vitalcios, da mesma forma livre-mente nomeados pelo presidente da Repblica, aps aprovao do Senado. Esta estrutura, estipulada pelo Decreto n 848 e mantida na Constituio do ano seguinte, trazia ainda uma Exposio de Motivos na qual tambm se outorgavam, uma vez mais, a importncia do Ministrio Pblico:

    O Ministrio Pblico, instituio necessria em toda a organizao democrtica e imposta pelas boas normas da justia, est representado nas duas esferas da Justia Federal. Depois do Pro-curador Geral da Repblica vm os Procuradores seccionais, isto , um em cada Estado. Compete-lhe em geral velar pela execuo das leis, decre-tos e regulamentos que devem ser aplicados pela Justia Federal e promover a ao pblica onde ela couber. A sua independncia foi devidamente resguardada.

    de se ressaltar que as funes do Minis-trio Pblico, a despeito da reiterada importn-cia e dos avanos acompanhados ao longo de mais de dois sculos, no foram substancial-mente alteradas: uma vez mais, outorgavam-se decretos e leis, nos quais havia referncia not-ria s atribuies dos promotores (procurado-res) de justia, aqui e acol se lhes estabeleciam mais competncias, mas continuava o rgo com a incumbncia de promover o bem dos direitos e interesses da Colnia, do Imprio ou, j agora, da Unio. Em sntese, o Minist-rio Pblico continuava sob a gide de um poder central no caso do recm-inaugurado sistema poltico: cumprindo as ordens do presidente da Repblica.

    Mas algumas medidas meritrias para o Brasil, que possibilitariam ainda novos rumos ao pas, sobretudo no tocante Justia, viriam previstas na Carta Federal de 24 de fevereiro de 1891: eis que se eliminava o Poder Moderador, outrora centralizado na figura do imperador, e seriam criados os Estados federados, a cada qual competindo legislar sobre matrias de seu interesse nos mbitos civil e comercial. Com o fortalecimento dos poderes estaduais, estava preparado o terreno para a cristalizao das prer-rogativas oligrquicas em cada um dos Estados da federao, e o Brasil passaria por um longo perodo em que se estabeleceria, lado a lado com

  • 46

    a justia togada, a lei dos coronis: poca em que a justia ia dar nos currais das fazendas.

    Diferente destino no poderia experi-mentar o Estado de Gois: aqui tambm se fun-daram as oligarquias, cujos chefes estiveram frente tanto da economia como da poltica regional por longas dcadas. Mas cumpre neste momento ressaltar que, a despeito de Gois ter acompanhado a trajetria dos demais Estados brasileiros, os quais a partir do regime republi-cano passariam a administrar seus territrios de maneira mais autnoma e sombra do sis-tema oligrquico, h, por outro lado, to ine-narrveis singularidades demarcando as vere-das goianas rumo institucionalizao de suas

    prticas polticas, econmicas, sociais, culturais e tambm jurdicas, que a prpria histria do Ministrio Pblico agora se prope com novos contornos: em vez de arraigada histria da justia em mbito nacional, como relatou-se at aqui, chegado o momento de a histria jur-dica do Estado de Gois ir-se desvelando ao leitor de modo a transmitir-lhe suas prprias peculiaridades. No se abandonar a histria brasileira, apenas ser mudado o fio condutor, a perspectiva dos episdios mais expressivos da Justia: e a instituio Ministrio Pblico passa agora a ser perscrutada mais intimamente pela tica da experincia goiana, ainda que irrefuta-velmente relacionada experincia nacional.

    Detalhe da cidade de Gois

  • A autoridade da justia moral e sustenta-se pela moralidade das suas decises. O poder

    no a enfraquece, desatendendo-a; enfraquece-a, dobrando-a. A majestade dos tribunais

    assenta na estima pblica; e esta tanto maior quanto mais atrevida for a insolncia oficial,

    que lhes desobedecer, e mais adamantina a inflexibilidade deles perante elas.

    Rui Barbosa, 1892

    A Primeira Repblica e a justia dos coronis

    Pouco antes de instaurar-se no Brasil a ordem republicana, j vinham sendo definidas as bases de uma transformao na estrutura das foras sociais que operariam no pas at a dcada de 1930. Conforme atesta o socilogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, na obra Histria geral da civilizao brasileira,

    a pedra angular do sistema econmico-financeiro herdado pela Repblica consistia na exportao de produtos primrios geradora de divisas e no controle dos instrumentos de cmbio como mecanismo bsico para assegurar a continuidade da produo exportadora, (...) bem como para fi-nanciar o gasto pblico.

    Para garantir a balana comercial favor-vel, o governo dependia do sistema de expor-tao de produtos primrios. E o incremento das exportaes s se tornaria possvel se do governo central partissem polticas de incen-tivo economia agro-exportadora. Essa opo torna-se cada vez mais clara desde a transio do regime imperial ao republicano.

    Com isso, novo ciclo se formava: se o Brasil dependia cada vez mais da produo e exportao dos produtos primrios, se estes estavam vinculados terra, e se quem a detinha eram as grandes e prestigiosas famlias produ-toras, estava armado o pano de fundo para uma nova fase a das oligarquias. Caberia aos lde-res polticos da recm-inaugurada Repblica assegurar as bases deste novo sistema. Assim, o quadro econmico do Brasil no incio da Pri-meira Repblica era de produo e exportao de produtos primrios, como caf, acar ou ltex. E inclua-se a carne bovina, principal produto do Centro-Oeste.

    Ora, se os latifundirios passavam a depo-sitrios da economia brasileira, nada mais natu-

    O Ministrio Pblico de Gois

  • 50

    ral que reivindicassem tambm o controle da nao: e isso eles fariam garantindo que a jus-tia fosse dar nas porteiras de suas fazendas.

    Com isso, o governo central conferiria principalmente com o presidente Campos Sales cada vez mais autonomia de deciso aos Esta-dos, cada qual passando a responsvel por suas polticas de incentivo produo agropecuria. a chamada poltica dos governadores, respon-svel por potencializar os nichos de poder que regionalmente estavam em vias de se formar. Por outro lado, a justia togada, a essa poca j institucionalizada pela Carta de 1891, atuaria em favor dos interesses dos grandes proprie-trios de terras, conferindo-lhes, para alm de prestgio, que se instaurassem no poder, ou fos-sem nele representados por seus pares, as pr-prias famlias oligrquicas. E ningum ousaria desrespeitar a lei dos latifundirios.

    Assim, na Repblica do incio do sculo XX, abriam-se as portas para o paraso dos coro-nis. Como lembra o historiador Jos Murilo de Carvalho, em artigo no Jornal do Brasil, havia um governador de Estado eleito que dependia mais [do coronel] que do ministro da Justia (...). O coronel municipal apoiava o coronel estadual que apoiava o coronel nacional, tam-bm chamado de presidente da Repblica, que apoiava o coronel estadual, que apoiava o coro-nel municipal.

    Esta hegemonia de coronis se estendia rapidamente por todo o territrio brasileiro, das grandes capitais s cidadezinhas do interior. A essa altura, no poderia ser outro o destino das oligarquias goianas. A notcia da Proclamao da Repblica que aqui chegara tarde, apenas no dia 28 de novembro, como lembra Palacn havia servido antes para acirrar a disputa entre

    O coronelismo um sistema poltico, uma complexa rede de relaes que vai desde o coronel at o presidente da Repblica, envol-vendo compromissos recprocos. O coronelismo, alm disso, datado historicamente. (...) Ele surge na confluncia de um fato poltico com uma conjuntura econmica. O fato poltico o federalismo implantado pela Repblica em substituio ao centralismo imperial. O federalismo criou um novo ator poltico com amplos poderes, o governador de Estado. O antigo presidente de Provncia, durante o Imprio, era um homem de confiana do Ministrio, no tinha poder prprio, podia a qualquer momento ser removido, no tinha con-dies de construir suas bases de poder na Provncia qual era, muitas vezes, alheio. No mximo, podia preparar sua prpria eleio para deputado ou para senador. O governador republicano, ao contrrio, era eleito pelas mquinas dos partidos nicos estaduais, era o chefe da poltica estadual. Em torno dele se arregimentavam as oligarquias locais, das quais os coronis eram os principais repre-sentantes. Seu poder consolidou-se aps a poltica dos Estados implantada por Campos Sales em 1898, quando este decidiu apoiar os candidatos eleitos pela poltica dominante no respectivo Estado. (...) E era dos Estados que se governava a Repblica: a poltica dos Estados (...) era a poltica nacional.

    Jos Murilo de Carvalho

  • MP51

    as oligarquias rurais do Estado, pondo termo a uma corrida entre coronis, que buscavam asse-gurar sua parcela de poder na nova ordem.

    Victor Leal sintetiza a situao: dentro da sua esfera prpria de influncia, o coro-nel como que resumia em sua pessoa, sem substi-tu-las, importantes instituies sociais. Exercia, por exemplo, uma ampla jurisdio sobre seus dependentes, compondo rixas e desavenas e pro-ferindo, s vezes, verdadeiros arbitramentos.

    Com a instituio da Repblica, forma-se o Governo Provisrio, e Campos Sales futuro presidente do pas investido do cargo de ministro da Justia. Nessa condio, seria ele o responsvel pelo Decreto n 848, de 11 de outu-bro de 1890, que reformaria a Justia brasileira. Entre as principais mudanas estava a reforma na Corte Suprema: competiria ao Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade das leis.

    O Decreto n 848 tambm alterava o Ministrio Pblico. Instituio necessria para a organizao democrtica da nao, ele pas-saria a ser representado por duas esferas da Justia Federal: depois do procurador-geral da Repblica, seriam os procuradores seccionais, cada qual em seu Estado, os responsveis por zelar pela execuo das leis, decretos e regula-mentos, promovendo a ao pblica onde esta conviesse. Com isso, a independncia deste rgo jurisdicional estava, finalmente, em vias de ser resguardada.

    Decreto n 848 (1890)CAPITULO VIDO MINISTRIO PBLICO

    Art. 21. O membro do Supremo Tribunal Federal, que for nome-ado procurador-geral da Repblica, deixar de tomar parte nos julgamentos e decises, e, uma vez nomeado, conservar-se- vitaliciamente nesse cargo.

    Art. 22. Compete ao procurador-geral da Repblica:a) exercer a aco pblica e promov-la at o final em todas as causas da competncia do Supremo Tribunal;b) funccionar como representante da Unio, e em geral officiar e dizer de direito em todos os feitos submettidos jurisdico do Supremo Tribunal;c) velar pela execuo das leis, decretos e regulamentos, que devem ser applicados pelos juzes federaes;d) defender a jurisdico do Supremo Tribunal e a dos mais juzes federaes;e) fornecer instruces e conselhos aos procuradores seccio-naes e resolver consultas destes, sobre matria concernente ao exerccio da justia federal.

    Art. 23. Em cada seco de justia federal haver um procu-rador da Repblica, nomeado pelo Presidente da Repblica, por quatro annos, durante os quaes no poder ser removido, salvo si o requerer.

    Art. 24. Compete ao procurador da Repblica na seco:a) promover e exercitar a aco publica, funccionar e dizer de direito em todos os processos criminaes e causas que recaiam sob a jurisdico da justia federal;b) solicitar instruces e conselhos do procurador-geral da Re-pblica, nos casos duvidosos;c) cumprir as ordens do Governo da Repblica relativas ao exerccio das suas funces, denunciar os delictos ou infrac-es da lei federal, em geral promover o bem dos direitos e interesses da unio;d) promover a accusao e officiar nos processos criminaes sujeitos jurisdico federal at ao seu julgamento final, quer perante os juzes singulares, quer perante o Jury.

  • 52

    At ento, a instituio do Ministrio Pblico aparecia sempre sob as rubricas fun-cionais do Procurador ou da Procuradoria da Justia. Agora, depois daquela meno pio-neira ao Ministrio Pblico, na instalao do Tribunal da Relao da Provncia de Gois, em 1874, pela primeira vez na legislao fede-ral brasileira, falava-se, enfim, em Ministrio Pblico.

    Tambm na Repblica, instituiu-se a figura do juiz distrital, lotado nos respectivos termos, a quem competia homologar contratos, abrir testamentos, presidir casamentos, proceder a corpo de delito, julgar em primeira instncia causas de at de-terminada monta, entre outras atividades. No Estado de Gois, a lei judiciria de 1892 definiu que os juzes distritais seriam escolhidos por eleio popular, cujos mandatos se renovariam a cada trs anos. Os juzes de direito, por sua vez, seriam de-signados mediante uma lista trplice proposta pelo Superior Tribunal de Justia. Nesta lista, s poderiam ser inseridos ba-charis com no mnimo trs anos de foro.

    Comarca Termos jurisdicionados

    Gois Capital, Allemo, Curralinho e Jaragu

    Rio Verde Rio Verde, Rio Bonito

    Jatahy Jatahy

    Pireneus Pyrenpolis, Corumb e Antas

    Bella Vista Bella Vista, Santa Cruz e Bonfim

    Morrinhos Morrinhos e Pouso Alto

    Paranahyba Catalo e Entre Rios

    Formosa Formosa, Mestre dArmas e Santa Luzia

    Posse Posse e So Domingos

    Rio Tocantins So Jos do Tocantins e Pilar

    Cavalcante Cavalcante, Forte e Flores

    Rio Paran Arrayas, Taguatinga e Duro

    Palma Palma, Peixe e Conceio

    Alto Tocantins Porto Nacional e Natividade

    Boa Vista Boa Vista

    A essa poca, para ser nomeado juiz, no havia necessidade do diploma de bacharel. Primeiramente, o candidato deveria ser indicado pelos chefes polticos, em regra coronis ou seus prepostos; em seguida, o ato formal de nomeao ficava a cargo do presidente do Estado. Sem revestir-se do status de magistrado, o juiz distrital encontrava-se a servio do coro-nelismo. Quanto ao juiz da comarca, que despachava na sede do respectivo termo que a sediava, a nomeao tambm no exigia o bacharelado, em face da escassez de profissionais de-vidamente habilitados.

  • MP53

    Enquanto isso, em Gois, novos rumos para a justia foram sendo estabelecidos. No governo do coronel Bernardo Antnio de Faria Albernaz (de 9 de julho a 1 de novembro de 1898), a organizao judiciria do Estado de Gois passou por extensa reformulao. Por intermdio da Lei n 188 de 13 de agosto de 1898, que punha em vigor, como lei do Estado, o projeto de organizao judiciria ela-borado pelo ento governador foram discri-minadas as comarcas e os respectivos termos jurisdicionados.

    No Ttulo II da referida lei, o artigo 3 listava a estrutura do judicirio, dispondo-a da seguinte maneira:

    Superior Tribunal de Justia (contando com cinco desembargadores)

    Juzes de Direito (nas comarcas) Tribunais do jri (nos termos) Juzes municipais (nos termos) Juntas correcionais (nos termos) Juzes distritais (nos distritos)Por outro lado, o artigo 5 era reservado

    estruturao do Ministrio Pblico, na esteira da inovao proposta pelo ministro Campos Salles, em 1890.

    Art. 5 O Ministrio Pblico exercido:

    a) por um procurador-geral do Estado, no Supe-rior Tribunal de Justia;

    b) por um promotor pblico em cada comarca, accumulando as funes de curador geral de

    rphos, interdictos, ausentes, massas fallidas e de promotor de resduos, no termo sede da comarca;

    c) por um sub-promotor pblico em cada termo, accumulando as funces de curador geral de r-phos, interdictos, ausentes, massas fallidas e de promotor de resduos, em cada termo no sede da comarca.

    Logo a seguir, no artigo 34, encontrare-mos disposta a atuao do Ministrio Pblico perante as juntas correcionais:

    Art. 34 Funcionar na sede de cada termo uma Junta Correcional, composta do juiz municipal, como presidente, do presidente do Conselho Mu-nicipal e do juiz do 1 districto, como vogaes.

    Pargrafo nico Nos termos sede de comarca, funccionar perante a Junta Correcional, por par-te do ministrio pblico, o promotor e, nos outros termos, o respectivo sub-promotor.

    A partir do exame da norma, quele tempo o Ministrio Pblico desempenhava as atividades mais tarde direcionadas Procura-doria Geral do Estado: a defesa dos interesses do Estado de Gois. E justamente isso que consta no caput do artigo 43:

    Art. 43 O Ministrio Pblico [fica] institudo para representar o Estado e seus interesses, os da justia pblica, os dos rphos, interdictos e au-sentes (...).

    ainda de ressalvar que, pela nova lei, dois dispositivos legais sugeriam a indisponi-bilidade de bacharis em Direito no Estado de Gois e a falta de garantias quanto estabili-

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    dade do membro do Ministrio Pblico, con-forme acompanhamos na leitura dos artigos 45 e 46:

    Art. 45 Para os cargos de promotor e sub-pro-motor tero preferncia os bacharis ou os dou-tores em direito, os advogados provisionados, os solicitadores e as pessoas que tiverem exercido judicatura, salvo quando a sua conducta for noto-riamente irregular.

    Art. 46 Todos os representantes do Ministrio Pblico sero nomeados e demitidos livremente pelo presidente do Estado.

    No apenas em Gois, mas em todo o Brasil, havia necessidade de se formarem novos contingentes para a rea jurdica. Apesar da criao, a partir de 1891, das chamadas Facul-dades Livres de Cincias Jurdicas e Sociais, ainda escasseavam os profissionais das leis. Se, no tocante a esse quadro, avaliarmos a situa-o da regio Centro-Oeste que teria sua pri-meira e efmera Faculdade de Direito apenas em 1916, na capital de Gois , constataremos a premncia de contratar profissionais habili-tados para a prtica jurdica. Prevalecendo a indisponibilidade destes profissionais, a sada seria criar ao menos um curso de Direito, o que foi feito no dia 13 de agosto de 1898, atravs da Lei n 186.

    Embora a lei fosse de 1898, a instalao da Academia de Direito s se