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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS NEOLATINAS / FACULDADE DE LETRAS UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO estudos neolatinos vol12 #2 JULHO DEZEMBRO 2010 ISSN 1517-106X

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P R O G R A M A D E P Ó S - G R A D U A Ç Ã O

E M L E T R A S N E O L AT I N A S / F A C U L D A D E D E L E T R A S

U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O R I O D E J A N E I R O

estudosneolatinos

vol12#2

J U L H O D E Z E M B R O 2 0 1 0

ISS

N 1

51

7-

10

6X

Sumário

Mal-estar na cultura: corpo e animalidade em Kafka, Freud e Coetzee 205MáRCIO SELIGMANN-SILVA

Sociologia e crítica literária 223JAIME GINzBURG

Roland Barthes e seus primeiros toques de delicadeza minimalista. Sobre O grau zero da escritura 233LEDA TENóRIO DA MOTTA

Dois críticos, para que servem? 248ALBERTO PUCHEU

Havana: a cidade como catástrofe em Antonio José Ponte 257RODRIGO LOPES DE BARROS

Literatura, História e Medicina: a formação e o quotidiano profissionais de Zênon, médico do século XVI, em A Obra em Negro de Marguerite Yourcenar 269VANESSA COSTA E SILVA SCHMITT E ROBERT PONGE

Música popular e literatura em diálogo – Mário de Andrade e as poéticas da palavra escrita e cantada 288JúLIO DINIz

Luzes vagas de estrelas: tempo e poesia em um filme de Visconti 308MARCELO DA ROCHA LIMA DIEGO

Tradução criativa, diagrama e cálculo icônico 322JOãO QUEIROz

Resenhas

Giorgio Agamben. Categorie Italiane. Studi di poetica e di letteratura (Bari: Laterza, 2010) 335ANDRéIA GUERINI E ROBERTO MULINACCI

Rafael Santana Gomes. Erótica e semiótica decadentista: uma leitura de A confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro (Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa. Faculdade de Letras – UFRJ, 2010) 341LATUF ISAIAS MUCCI

Lise Gauvin (org). Les littératures de langue française à l’heure de la mondialisation (Montreal: Constantes/ Académie des Lettres du Québec/ Hurtubise, 2010) 347EURíDICE FIGUEIREDO

Fábio Akcelrud Durão. Rio-Durham (NC)-Berlim: um diário de ideias (Campinas: UNICAMP/IEL/Setor de Publicações, 2008) 350EDUARDO GUERREIRO BRITO LOSSO

Contents

Malaise in the Culture: body and animalilty in the works of Kafka, Freud and Coetzee 205MáRCIO SELIGMANN-SILVA

Sociology and literary criticismJAIME GINzBURG

Roland Barthes and his early Neutrals´s minimalist touches 223LEDA TENóRIO DA MOTTA

Two critics, what is their use? 248ALBERTO PUCHEU

Havana: the city as a catastrophe in Antonio José Ponte 257RODRIGO LOPES DE BARROS

Literature, History and Medicine: Zenos’s medical training and his everyday professional life as a physician in the sixteenth century in Marguerite Yourcenar’s L’Œuvre au Noir 269VANESSA COSTA E SILVA SCHMITT E ROBERT PONGE

Popular music and literature in dialogue Andrade and the poetics of written and sung word 288JúLIO DINIz

Vague star lights: time and poetry in a film by Visconti 308MARCELO DA ROCHA LIMA DIEGO

Creative translation, diagram and iconic calculation 322JOãO QUEIROz

Reviews

Giorgio Agamben. Categorie Italiane. Studi di poetica e di letteratura (Bari: Laterza, 2010) 335ANDRéIA GUERINI E ROBERTO MULINACCI

Rafael Santana Gomes. Erótica e semiótica decadentista: uma leitura de A confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro (Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa. Faculdade de Letras – UFRJ, 2010) 341LATUF ISAIAS MUCCI

Lise Gauvin (org). Les littératures de langue française à l’heure de la mondialisation (Montreal: Constantes/ Académie des Lettres du Québec/ Hurtubise, 2010) 347EURíDICE FIGUEIREDO

Fábio Akcelrud Durão. Rio-Durham (NC)-Berlim: um diário de ideias (Campinas: UNICAMP/IEL/Setor de Publicações, 2008) 350EDUARDO GUERREIRO BRITO LOSSO

Editorial

O presente volume organizou-se sobretudo a partir do de-bate entre a literatura e outros domínios da estética e das ciências humanas.

No primeiro artigo, num recorte amplo, em que passa por Darwin, Kafka, e Coetzee, Márcio Seligmann-Silva associa o de-bate em torno da animalidade ao tema biopolítico da compaixão, transitando entre a literatura, a ciência e a política. Em seguida, três textos reconstituem, sob um viés eminentemente teórico, dife-rentes movimentos da crítica literária. Jaime Ginzburg discute com Adorno, na interface com a sociologia, o papel do crítico literário, com forte ênfase nos critérios de qualidade que deveriam nortear a produção acadêmica. Leda Tenório da Motta relê, sob a perspecti-va do “neutro” – tema do penúltimo curso de Roland Barthes no Collège de France –, o conceito de “grau zero”. Alberto Pucheu, por sua vez, explora, com Deleuze e Baudelaire, a produtiva ten-são entre uma crítica filosófica e uma crítica poética da literatura.

Rodrigo Lopes de Barros passeia entre várias referências teó-ricas – entre as quais a noção agambeniana de museificação – para ler no conto Un arte de hacer ruinas de Antonio José Ponte a cida-de de Havana como um museu em ruínas. Vanessa Costa e Silva Schmitt e Robert Ponge propõem uma reflexão sobre a medicina do século XVI a partir da leitura de A Obra em Negro, de Margue-rite Yourcenar.

Na sequência, dois textos se voltam para a relação entre a li-teratura e outras artes. Júlio Diniz confronta com sutileza vários textos de Mário de Andrade, explorando especialmente os textos sobre a música e procurando desvendar como sua prática de escrita se aproxima de uma metodologia etnográfica. Marcelo Diego refle-te, com apoio em Agamben, sobre as relação entre cinema e litera-tura, especulando em particular sobre o uso da poesia de Leopar-di na criação de Vaghe Stelle dell´Orsa, de Visconti. Concluindo a série de artigos, João Queiroz explora com Haroldo de Campos as relações entre a semiótica e a tradução.

Encerram o volume quatro resenhas, em panorama repre-sentativo de nosso esforço para abarcar as diversas faces da refle-

xão contemporânea na área de Letras: um livro recém-lançado de Agamben, inédito em português; uma dissertação de mestrado em literatura portuguesa, defendida na UFRJ; uma coletânea de textos sobre a literatura do Québec; e, finalmente, um pequeno volume de ensaios de Fabio Durão.

Os Editores

artigos

alea

205

Mal-Estar na cultura: corpo E aniMalidadE EM KafKa, frEud E coEtzEE

Márcio Seligmann-Silva (IEL, UNICAMP)

I Ato

Investigações de um símio ou Nós animais em Kafka

Caríssimos colegas da academia, não podem imaginar como fiquei tocado e emocionado com este convite: escrever sobre os ani-mais na obra de meu amigo Franz Kafka. Sim, meu amigo. Muitos de vocês não o sabem, mas o conheci pouco depois de ele ter publi-cado – para meu furor: sem a minha permissão – o relatório, que logo se tornou famoso. Refiro-me, é claro, ao Ein Bericht für eine Akademie (Um relatório para uma academia). Naquela ocasião eu era ainda jovem e não havia entrado na academia, onde se aprende toda sorte de manobras e de trapaças. Então eu era inocente e pu-ro. Mas fico especialmente feliz com esse convite, porque escrever sobre esse tema permite-me não só voltar a ler as páginas já bem amareladas da obra única daquele (apesar de tudo) grande escritor de Praga – aliás: que linda cidade! – como também me voltar para colegas que moram do outro lado do Equador, em um país tropical, como aquele que habitei até os cinco anos de idade. Como sabem, desde aquela idade moro em Hamburgo, encantadora cidade por-tuária alemã. Mas chega de introduções! O espaço é pequeno e es-tou com quase cem anos, dependo de minha secretária, Frau Bünd- schen, que precisa ir para casa cuidar de seu filho recém-nascido.

Comecemos pelo início: por que Kafka abriu um espaço tão privilegiado para animais em seus textos? Para mim isto é um si-nal de inteligência! Assim ele pôde pensar melhor no próprio ani-mal-humano. Sinceramente, como macaco, primo de vocês, pos-so dizer que o Sr. Kafka deve ter sido um dos que melhor soube mergulhar nesse homem do século XX, ou seja, alguém que não se sente em casa nem no próprio corpo. De animais mesmo ele não entendia quase nada. Ele gostou de meu relatório porque lá apre-sento como o ser-humano está a um passo do ser-animal. Eu atra-vessei a galope o processo evolutivo, que vocês levaram centenas de milhares de anos para trilhar. Como vocês, também eu me tor-

ALEA VOLUME 12 NúMERO 2 JULHO-DEzEMBRO 2010 p. 205-222

206 ALEA VOLUME 12 NúMERO 2 JULHO-DEzEMBRO 2010

nei humanizado pecando, ou seja, fazendo sujeira e rindo: cuspin-do, bebendo e fumando! Comecei pelo schnaps e cheguei ao vinho tinto. Adoro as uvas suaves das montanhas da região de Chirou-ble. (Já sabem com o que me presentear!) Eu fui reconhecido mes-mo como humano quando soltei um “alô”, após virar uma garra-fa de eau de vie. Daí em diante foi tudo uma questão de imitação. Eu, como todo bom macaco, sou um excelente imitador. De ma-caco a animal-humanizado e daí a professor foram poucos passos. Tudo é uma questão de saber imitar bem, como já o sabia o bom Aristóteles. Kafka ficou fascinado com essa ideia. Talvez isto tenha a ver com a situação dos judeus na Europa, que em pouco tempo foram da marginalidade e do shtetl (as aldeias judaicas do leste eu-ropeu) para as grandes Universidades, mas isto é só uma hipótese divertida. Não se esqueçam que ele era um admirador de Darwin – o único cientista que realmente respeito – e mesmo Freud (que também admirava aquele cientista inglês), apesar de ter sido ironi-zado por Kafka, no fundo era admirado por ele também. Afinal, o que Kafka vê como sendo o meu processo de humanização, Freud também o descreve em seus escritos “Totem e tabu” (que ele pode ter lido) e em “O mal-estar na cultura”, de 1930. (Sim, “O mal--estar na cultura”, e não “na civilização”. Freud não era Rousseau, aquele filósofo suíço que, como escreveu Voltaire, gostaria de ter voltado a andar de quatro e retornado à floresta. Rousseau era crí-tico da civilização, Freud foi mais fundo e viu que o homem está condenado a morar no mal-estar, unbehagen, onde quer que ele vi-va, ou seja, está condenado a sentir-se desabrigado. Também eu me sinto assim desde que bradei aquele fatídico “alô”.)

No mesmo volume em que Kafka publicou o meu texto, le-mos ainda outros que me parecem importantes para minha temá-tica. Um dele é o “Chacais e árabes”. Trata-se de uma pequena pe-ça sobre a relação desses lobos do deserto com os árabes. O narra-dor é um “europeu do norte”. Mas o interessante é que o protago-nista é o líder dos chacais. Aqui vemos um dos toques da geniali-dade de Kafka. É preciso recordar que ele construiu boa parte de sua obra em meio a seus diários (que eram, na verdade, “noitários”: textos escritos de noite que continham também muitos sonhos). Sua obra nascia como parte de sua vida. Ele construía personagens em seus textos de tal modo que os leitores têm uma forte tendên-cia a identificá-los com o seu autor, ou seja, com Kafka. Ele soube como poucos com a sua pena introjetar e disseminar o gesto auto-

207MáRCIO SELIGMANN-SILVA | Mal-estar na cultura: corpo e animalidade em Kafka, Freud e Coetzee

-bio-gráfico, central na literatura desde então. Assim, eu mesmo já fui identificado com o escritor de Praga. Mas no caso específico dessa narrativa desses chacais reconheço que a tentação é grande de considerá-los uma tribo de judeus que há séculos luta com os ára-bes. Trata-se de uma luta que é descrita como nascida do sangue e que terminará em sangue. “Precisamos de paz com os árabes”, clama o lobo. Ele sonha com um deserto sem aqueles hábitos su-jos e bárbaros dos árabes; sonha com mortes limpas, rituais e sem sangue dos animais que eles precisam comer. Corroborando com essa leitura judaizante, é importante lembrar que Kafka publicou o meu texto e esse sobre os chacais na importante revista editada por Martin Buber, Der Jude, em 1917. Mas, para mim, o decisivo não é o olhar étnico, mas o olhar sobre o animal-humano que Ka-fka abre nesse texto. O animal é o limpo, os homens são os sujos: Kafka brinca de amarelinha na estrada tortuosa da “evolução” dita humana, ou ainda: ele joga lego com as peças da Criação.

Outro ensaio do mesmo volume Um médico rural (publicado, aliás, em 1920) trata de uma pequena cidade que é invadida por “nômades do norte”. Nesse pequeno texto, intitulado “Uma folha antiga”, novamente assistimos à operação de animalizar os homens, ou de despir esses animais envergonhados de sua tênue roupagem humana. Esses bárbaros comem carne crua – assim como os seus cavalos. Eles muitas vezes compartilham o mesmo pedaço de car-ne que devoram juntos. E se uma vaca viva lhes é lançada, bárbaros e cavalos a dilaceram loucamente com seus dentes afiados, de um modo que só Eurípides havia antes descrito em suas Bacas, referin-do-se ao frenesi das tebanas enfeitiçadas por Dioniso. Essa narrati-va kafkiana conta a história da dissolução da cidade realizada pela inoculação dessa invasão “animal” (aliás, bem dionisíaca também). Mas ela é mais do que isso. Ela apresenta o rei impotente no palá-cio imperial como uma metáfora da crise no poder soberano que, por sua vez, para existir, precisa domar a “vida natural” (zoe), a “vi-da nua”, como escreveu outro famoso contemporâneo de Kafka, Walter Benjamin. Ao tratar da vida animal, Kafka toca na crise da soberania e da nossa autoimagem. Essas duas crises se lhe aparecem como paralelas. Ele mostra o animal em nós, como Freud e, antes dele, Darwin o fizera. Ele mostra um poder amorfo, teoricamente o monopolizador da violência, que tenta gerir essa vida nua que lhe escapa (à qual Penteu e Cadmo, avô de Dioniso, também sucum-biram por não saberem venerar e sacrificar aos deuses).