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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DIRCEU RIBEIRO NOGUEIRA DA GAMA "O CONCEITO DE JOGO EM WALTER BENJAMIN E SUAS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS PARA O SUJEITO” Tese de Doutorado Área de Concentração: Ética

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

DIRCEU RIBEIRO NOGUEIRA DA GAMA

"O CONCEITO DE JOGO EM WALTER BENJAMIN E SUAS IMPLICAÇÕES

PEDAGÓGICAS PARA O SUJEITO”

Tese de Doutorado

Área de Concentração: Ética

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TESE EM FILOSOFIA

"O CONCEITO DE JOGO EM WALTER BENJAMIN E SUAS IMPLICAÇÕES

PEDAGÓGICAS PARA O SUJEITO”

por

DIRCEU RIBEIRO NOGUEIRA DA GAMA

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade Gama Filho, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Filipe Ceppas de Carvalho e Faria

Rio de Janeiro/09

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Av. Presidente Vargas, 62/12º andar - Centro CEP: 20071-000. Tel./Fax (021) 2518.2028 ramal 359

e-mail: [email protected] O(A) autor(a), abaixo assinado(a), autoriza as Bibliotecas da Universidade Gama Filho a reproduzir este trabalho para fins acadêmicos, de acordo com as determinações da legislação sobre direito autoral, n(s) seguintes(s) formato(s) ( ) Fotocópia ( ) Meio digital Assinatura do autor: _________________________________________________

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4 OS CEGOS

Contemplai-os minha alma, eis que são pavorosos!

São como os manequins, ridículos noctâmbulos,

E de sinistro horror como os sonâmbulos;

E quem sabe aonde vão seus globos tenebrosos?

Seus olhos, donde a chama paternal é partida,

Como se olhassem longe, estão no firmamento;

E não se os vê jamais, por sobre o pavimento,

Inclinar vagamente a fronte sucumbida.

Atravessam assim a infinda escuridade,

Esta irmã do silêncio imutável, cidade!

Enquanto em torno a nós é um lamento o teu canto

Que é tão atroz que chega a perder-se no orgasmo,

Vê que eu erro também e mais do que eles pasmo,

Digo: “O que pelos céus eles procuram tanto?”

(Charles Baudelaire, As Flores do Mal)

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5 SUMÁRIO

EPÍGRAFE.............................................................................................................................7

DEDICATÓRIA.....................................................................................................................8

AGRADECIMENTOS...........................................................................................................9

RESUMO.............................................................................................................................11

ABSTRACT.........................................................................................................................12

APRESENTAÇÃO DA TESE..............................................................................................13

INTRODUÇÃO....................................................................................................................15

Jogo e Filosofia.....................................................................................................................15

Arte e Livre Jogo em Kant....................................................................................................23

As Contribuições dos Românticos.........................................................................................26

A Releitura de Walter Benjamin............................................................................................33

CAPÍTULO I. O Jogo em Walter Benjamin..........................................................................40

Passado, Presente e Massas Urbanas: Baudelaire

e as Cenas Parisienses...........................................................................................................41

Jogo, Sociedade e Linguagem...............................................................................................50

Infância, Ludicidade e Arte...................................................................................................67

CAPÍTULO II. Cultura, Estética e Política............................................................................89

Estética do Impacto e Emancipação....................................................................................100

CAPÍTULO III. Educação e Ética.......................................................................................130

Considerações Finais...........................................................................................................150

Referências Bibliográficas...................................................................................................154

Listas de Anexos.................................................................................................................162

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7 EPÍGRAFE

“Por mais ridículo que fosse o fato de eu esperar tanto da roleta, tenho a impressão de ser

ainda mais ridícula a opinião rotineira, por todos aceita, de que é estúpido e absurdo

esperar algo do jogo.”

(Fiódor Dostoievski)

“Os seres não cessam de mudar de lugar em relação a nós. Na marcha insensível mas eterna

do mundo, nós consideramo-los como imóveis num instante da visão, demasiado breve para

que seja percebido o movimento que os arrasta. Mas basta escolher na nossa memória duas

imagens suas, tomadas em instantes diferentes, bastante próximos no entanto para que eles

não tenham mudado em si mesmo, pelo menos sensivelmente, e a diferença das duas

imagens mede o deslocamento que eles operavam em relação a nós.

(Marcel Proust)

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8 DEDICATÓRIA

A todos aqueles que conseguem encontrar nos seus inacabamentos os sinais de que

a diferença é a fonte dos acordes que renovam as grandes sinfonias

da existência.

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9 AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor Filipe Ceppas de Carvalho e Faria, pela orientação, paciência e

compreensão, os quais foram fundamentais para a confecção dessa pesquisa;

Ao Professor Doutor Jorge Luiz Rocha de Vasconcellos, por ensinar que o pensamento

filosófico não pode prescindir do diálogo com os grandes temas do presente;

Ao Professor Doutor Edson Peixoto de Rezende Filho, pelo empenho na resolução de toda

sorte de problemas dos docentes e discentes do PPGFIL/UGF;

Ao Professor Doutor Norman Madarasz, pelas suas inegáveis contribuições e sugestões

fornecidas para a finalização da tese;

Ao Professor Doutor Flávio Beno Siebeneichler, por mostrar que a produção filosófica

assenta muito mais na disciplina do pensamento e do agir do que propriamente em

iluminações inspiradoras;

Ao Professor Doutor Altigran Soares, Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da

Universidade Federal do Amazonas, por ter viabilizado meu retorno ao Rio de Janeiro para a

conclusão do Doutoramento;

Ao Professor Doutor Jeferson José Moebus Retondar, por ter me introduzido ainda no

segundo semestre de graduação, mesmo de maneira despretensiosa, à leitura de Walter

Benjamin;

À Fabiana, secretária do PPGFIL/UGF, pelas demonstrações de competência e conhecimento

profissionais;

Aos colegas de curso Reginaldo Menezes, Sérgio Mendes, Edson Sendin e Eduardo Sut, pelas

valiosas trocas de informações e conversas efetuadas durante as aulas;

À minha mãe, Marilda, minha avó Zulmira, e Luzia, por nunca terem se furtado a dar os

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10 devidos suportes materiais e morais, dentro de suas possibilidades, para meu crescimento

pessoal e acadêmico;

À minha esposa, Ana Paula, por sempre estar do meu lado em todas as horas;

Aos meus sogros, Paulo César e Neide, pela acolhida;

O meu franco obrigado.

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11 DA GAMA, Dirceu Ribeiro Nogueira. O conceito de jogo em Walter Benjamin e suas

implicações pedagógicas para o sujeito. (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro: PPGFIL/UGF,

2009.

RESUMO

Em diversos momentos da história da filosofia, pensadores tributários das mais

diferentes correntes teóricas recorreram ao conceito de jogo com o propósito de elucidarem

questões chaves em suas reflexões. Como exemplo, podemos citar Heráclito, Tomás de

Aquino, Leibniz, Bernouilli, Erasmo de Roterdam, Rousseau, Kant, a primeira geração de

filósofos românticos e, mais recentemente no século XX, Walter Benjamin. Assim, o objetivo

desse trabalho consiste de uma investigação do conceito de jogo na obra deste último.

Inicialmente, faremos a exposição das bases teóricas sobre as quais ele é construído. Em

seguida, analisaremos que sorte de inter-relações existem entre o mesmo e as análises do

autor acerca dos vínculos entre arte e linguagens. Por fim, discutiremos até que ponto o

binômio jogo/arte pode ser empregado para a estruturar reflexões sobre os processos de

formação moral do sujeito no contexto da modernidade.

Palavras-Chaves: Walter Benjamin; Jogo; Arte; Educação; Ética.

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12 DA GAMA, Dirceu Ribeiro Nogueira. The concept of play in Walter Benjamin and its

pedagogical implications for the subject. (Doctoral Thesis). Rio de Janeiro: PPGFIL/UGF,

2009.

ABSTRACT

In several moments of the history of philosophy, thinkers belonging to the most

different theoretical streams examined the concept of play in order to solve relevant questions

on their works. As example, we cite Heraclitus, Thomas Aquinas, Leibniz, Bernouilli,

Erasmus of Rotterdam, Rousseau, Kant, the first generation of romantic philosophers and,

more recently on the 20th century, Walter Benjamin. Thus, the purpose of this research is to

inquiry play concept on the writings of this last. At the beggining, we will expose the

theorethical grounds over whom it is built. Then, an analysis concerning the relationships

between the same and the author`s studies about arts and languages will be made. Finally, we

will discuss until where the joint play/arts can be adopted to drive reflections about the

processes of subjects moral education on the context of modernity.

Key-Words: Walter Benjamin; Play; Arts; Education; Ethics.

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13 APRESENTAÇÃO DA TESE

Todos os grupos humanos, no decorrer da história, detiveram certa autonomia para

eleger, instituir e legitimar determinados hábitos culturais em detrimento de outros. Não

obstante essa constatação aparentemente óbvia, determinadas classes de atividades

comunitárias são até hoje verificadas universalmente, independente do grau de restrições

técnicas, geográficas, étnicas ou econômicas condicionando o cotidiano. O ato de jogar

pertence ao rol dessas últimas, considerando-se que nenhuma civilização jamais abdicou de

praticá-lo, pelos mais vastos motivos: celebração, relaxamento, preparação social,

aprendizagem de valores, entretenimento, profecias e outros mais.

A globalidade desse fenômeno não permaneceu incólume à percepção dos filósofos.

Mesmo que muitos deles não tenham elegido o jogo como objeto central de suas

investigações, não raro recorreram à essa noção na tentativa de explicitar, com o seu auxílio,

temas de reconhecida importância filosófica. Nesse sentido, vale a pena rememorar a sentença

de Heráclito de que o curso do tempo do mundo assemelha-se aos procedimentos de uma

criança que joga, ou mesmo a anedótica repreensão de Platão a dois indivíduos que jogavam

dados com displicência, pois jogar dados simbolizava algo deveras importante, a invocação

do acaso.1

Em contrapartida, demonstra Duflo (1999), há pensadores que realmente procuraram

produzir reflexões sistemáticas sobre jogo, também pelo fato delas mais ajudarem a elucidar

questões chaves de suas obras do que propriamente nutrirem algum tipo de interesse

específico pelo assunto. Segundo o autor, enquadram-se nessa linha situacional Tomás de

Aquino; Bernouilli, Leibniz e Pascal; os filósofos Iluministas Erasmo de Roterdam e

1 A descrição dos dois acontecimentos narrados, nessa ordem, encontra-se nos textos Les écoles

présocratiques, edição de Jean-Paul Dumont, Paris, Gallimard, 1991, página 78 e Vie, doctrines et sentences des philosophes illuestres, de Diógene Laerce, Paris, Garnier-Flammarion, 1965, página 165.

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14 Rousseau; e, por fim, Kant. Até o fim do século XVIII, coube à esses nomes organizar as

reflexões teóricas de maior relevo sobre jogo.

Após o cenário descortinado por Kant, outros autores de renome revisitaram o

conceito de jogo como forma de fundamentar, em maior ou menor grau, temáticas

diretamente ligadas ao foco central de suas investigações. Dentre eles, convém destacar os

Românticos Novalis, F. Schlegel e A.W. Schlegel, Nietzsche e, mais tarde, no século XX, o

filósofo Walter Benjamin.

Em função dessa constatação, o objetivo do presente estudo consiste em uma

investigação do conceito de jogo em Walter Benjamin. Num primeiro momento, buscaremos

expor as pressuposições teóricas a partir das quais ele é construído, para em seguida analisar

que sorte de inter-relações existem entre o mesmo e as análises de Benjamin sobre arte. Por

fim, discutiremos até que ponto o binômio jogo/arte pode ser empregado para estruturar

reflexões sobre os processos de formação moral do sujeito no contexto da modernidade.

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15 INTRODUÇÃO

JOGO E FILOSOFIA

Caso coloquemos Tomás de Aquino como o filósofo que primeiro dedicou-se a

escrever um estudo sistemático sobre o ato de jogar, pode-se afirmar que o eixo central de

suas análises irmana-se ao problema das virtudes, enquanto atributos para o alcance humano

da felicidade. Na questão 168 da Suma Teológica, concernente ao estudo da ´eutrapelia`,

Aquino procurará responder nos artigos 2, 3 e 4 a seguinte pergunta: existe alguma virtude no

jogo? Resumidamente, o ponto chave a ser resolvido é se qualquer distração lúdica é negativa

por si própria, ou há como obter efeitos positivos da entrega a elas.

Os argumentos de Aquino, referenciados em Santo Agostinho e Aristóteles,

enveredam para a verificação de uma dupla positividade. Primeiro, o jogo proporciona ao

espírito finito recobrar-se da fadiga gerada pela dedicação às atividades intelectuais. “A (...)

alma, em suas operações, está unida ao corpo, usando os órgãos sensíveis para realizar seus

atos; e quando, em seu modo de agir, sai do mundo sensível, se produz certo cansaço (...)

tanto se se dedica à vida contemplativa ou a ativa.” (Tomás de Aquino, 1955, p. 421). Jogar é,

assim, uma forma de descansar o espírito.

A segunda positividade é o desenvolvimento da ´eutrapelia`, ou urbanidade e bom

humor, característica essa requerida para a vida em sociedade. Aquino chega mesmo a

defender que a abstinência irrestrita a qualquer modalidade de jogo é ato pecaminoso.

Todavia, para que esses bons resultados acabem acontecendo, o jogador deve ser comedido,

ou seja, ter a virtude da medida, que faz parte de uma outra, a da temperança ou modéstia, que

preserva o homem dos excessos. Na sua ausência, o jogo periga tornar-se um fim em si

mesmo, e dessa forma corromper a alma.

Outras formas de tratar o jogo vieram à baila nos séculos XVII e XVIII, desprendidas

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16 do viés teológico-moral legado pelo Tomismo. O surgimento da teoria das probabilidades

fez com que a atenção dos matemáticos se desviasse para o escrutínio dos fenômenos lúdicos,

principalmente para os jogos de apostas e loterias, devido principalmente à incerteza dos

resultados. As pesquisas de Leibniz e Bernouilli, primeiro, seguidas das de Pascal, conferem

um tratamento diferenciado aos jogos, porquanto enxergam-no como fenômeno da

engenhosidade humana. Leibniz, em De arte combinatória, e Bernouilli, em Ars Conjectandi,

partilham da mesma opinião de que jogos são a arte de criar novas combinações a partir de

outras preexistentes. Particularmente Leibniz, em correspondência endereçada a Rémond de

Montmort, chegará a expor o desejo de criar um curso sobre tratamento matemático de toda

sorte de jogos.

Entretanto, a grande estima de Leibniz pelo ato de jogar será anunciada sem

subterfúgios em Novos ensaios sobre o entendimento humano. Neste trabalho, os fenômenos

lúdicos serão exibidos como testemunhas das capacidades do espírito livre de

constrangimentos. Eles oferecem as melhores oportunidades para se estudar o entendimento

humano, exatamente como as leis físicas do movimento são hipoteticamente estudadas nos

espaços livres de atritos:

Seria bom que aquele que quisesse tratar dessa matéria continuasse o exame dos jogos de azar; e geralmente eu gostaria que um hábil matemático quisesse fazer uma ampla obra bem circunstanciada e bem raciocinada sobre todos os tipos de jogos, o que seria de grande uso para aperfeiçoar a arte de inventar, parecendo o espírito humano melhor nos jogos do que nas matérias sérias. (Leibniz, citado por Duflo, 1990).

Jogar é, então, exercitar o intelecto, com o diferencial do incentivo do prazer, o que

não se tem nas ditas ocasiões sérias, como, por exemplo, reuniões de negócios. Nas análises

de estratégias, antecipações de jogadas e cálculos de risco, o jogador comporta-se como o

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17 sábio ilustrado que deve prever a natureza. É nesse sentido que jogar compatibiliza-se com

o espírito racionalista do tempo: ao exigir um trabalho de pensamento, desenvolve a

habilidade do pensar.

A dificuldade de se chancelar com precisão exata as conseqüências das situações de

jogo, por sua vez, chama a atenção para o fato de que as escolhas do jogador nem sempre são

recompensadas tal qual ele gostaria. Insurge aqui a questão de um tipo particular de juízo,

que, formulado e emitido a partir de uma análise circunstancial, nem sempre é acompanhado

por resultados à altura. É justamente esse item que desperta o interesse de Pascal, que,

inicialmente nas cartas trocadas com Fermat, e depois em Pensamentos, anunciará a

possibilidade de haver uma justiça retributiva no jogo. Em outras palavras, há leis no jogo, e é

com base nelas que a relação decisão/resultado espelha uma maior ou menor justeza de

proporções. Isso quer dizer que mesmo na ignorância do que o acaso trará, ainda assim vige

uma legislação ordenadora.

A ascensão do Iluminismo acarretará consigo um novo levante de considerações sobre

o lugar social do jogo, em larga escala guiadas pela necessidade de reformulação universal

das bases educacionais herdadas da tradição na direção de uma sociedade mais livre e

esclarecida.

Certos tratados sobre a educação das crianças tinham, desse ponto de vista, aberto o caminho. A obra ´De pueris instituendis` de Erasmo é, nesse sentido, exemplar. Nele encontramos a idéia de que o jogo pode ter uma função educativa e que podemos utilizá-lo, mesmo que seja como o açúcar que envolve o medicamento para dissimular seu amargor. (Duflo, 1999, p. 53).

Erasmo defende, sem reticências, a colocação das emulações provocadas pelas

atividades lúdicas a favor das finalidades de ensino-aprendizado. “O papel do preceptor será

(...) o de levar ao estudo a máscara do jogo.” (Erasmo, citado por Duflo, 1999, p. 54).

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18 Também Rousseau comungará da mesma idéia de que o jogo é um veículo deveras

profícuo para catalisar a assimilação de conteúdos pedagógicos. O fato de ser agradável aos

infantes justifica o seu emprego utilitário. “Não consigo imaginar nada tão divertido e tão útil

quanto (...) jogos, por pouca habilidade que se use para ordená-los.” (Rousseau, 2004, p. 166).

Contudo, isso não significa falta de comprometimento, sublinha Rousseau, pois a dedicação

da criança ao jogo constitui algo deveras sério:

As ocupações e as diversões são as mesmas coisas para ele: suas brincadeiras são suas ocupações, não sente nenhuma diferença entre elas. Em tudo o que faz, mostra um interesse que faz rir e uma liberdade que agrada, revelando ao mesmo tempo o jeito de seu espírito e a esfera de seus conhecimentos. Não é o espetáculo dessa idade (...) doce e encantador (...) ver uma linda criança, de olhos vivos e alegres, jeito contente e tranqüilo, fisionomia aberta e risonha, fazer enquanto brinca as coisas mais sérias, ou então profundamente ocupada com as mais frívolas diversões? (Rousseau, 2004, p. 208).

Rousseau, seguindo a trajetória de Erasmo, confere ao jogo um tratamento moral até

então pouco explorado, o de coadjuvante na formação educacional do sujeito. Se em Aquino

jogar trazia descarrego das tensões da alma, e em Leibniz e Bernouilli era uma sofisticada

forma de exercício da inventividade e da cognição, o pensador francês vai adiante dos três ao

ousar indexar tal prática ao status de meio condutor do aperfeiçoamento humano em direção a

sua plenitude.

As inovações encaminhadas por Rousseau, dado o seu alcance, abriram problemáticas

para a filosofia da educação. Elas suscitaram o interesse de Kant, que conseguiu renovar

muitas das orientações sobre o conceito de jogo. As principais obras em que Kant teoriza

sobre o assunto são as Reflexões sobre Educação, Antropologia de um ponto de vista

pragmático e Crítica da Faculdade do Juízo. Como estratégia para se compreender as

mudanças de rumo dada ao assunto pelo filósofo alemão, iniciaremos nossas considerações

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19 partindo dos dois primeiros textos. Convém lembrar que ambos foram editados ao fim da

vida de Kant, depois do terceiro estudo crítico. Contudo, sabe-se também que tratam-se de

trabalhos baseados em notas de aulas antigas, o que em parte justifica nosso procedimento.

Nas Reflexões sobre Educação, Kant opõe-se em muitos itens ao Emílio,

principalmente contrariando a idéia de que, para a criança, não há dissociabilidade entre

brincadeira e ocupação.2 Ao assumir essa posição, Rousseau está, para Kant, sugerindo que

ações laboriosas e ações lúdicas possuem os mesmos fins ontológicos, o que é inverossímil.

Certamente o puro e simples treinamento instrucional, repousando na autoridade do mestre e

na heteronomia é ruim. Mas é um contra-senso que a destinação do homem funde sua

formação no puro prazer lúdico. Jogar deve ser estimulado e mesmo praticado, porém a

dedicação ao trabalho precisa ser aprendida, ainda mais naquilo que possui de penoso e

constrangedor.

O argumento kantiano pauta-se numa máxima antropológica cujos efeitos pedagógicos

são decisivos, porque é por ser livre que o homem age como animal laborioso que transforma

a natureza, e para aprender a sê-lo carece de vivenciar a coerção. Por esse motivo, é

necessário que a educação passe por uma aprendizagem do trabalho pelo trabalho; uma

educação que preconiza demasiadamente o jogo e o prazer, tal qual a dos discípulos de

Rousseau, está a priori fadada a impedir a assimilação da estrutura coercitiva do real.

A escola é uma cultura por coerção. É extremamente ruim habituar a criança a ver tudo como um jogo. Ela deve ter tempo para suas recreações, mas também deve haver para ela um espaço em que trabalhe. E se a criança não vê de início para que serve essa coerção, perceberá mais tarde sua grande utilidade. (Kant, citado por Duflo,

2 Vale a pena lembrar, a título de informação, que as críticas de Kant incidiram não apenas sobre Rousseau,

seu foco principal, incluindo adicionalmente a maior parte dos teóricos da educação na Alemanha que tentaram vulgarizar as noções do iluminista francês propondo-lhe aplicações práticas, como, por exemplo, os acadêmicos do ´Philanthropinon`, o instituto de pesquisas educacionais fundado por Basedow em 1774. Para maiores detalhes sobre esse acontecimento, conferir a introdução Kant et le problème de l`èducation, de Alexis Philonenko, tradutor francês das Réflexions sur l`education, Paris, Vrin, 1993, p. 17-23.

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20 1999, p. 56-57).

A tese de que uma mesma atividade guarda características de ocupação e

entretenimento, dependendo do ângulo sob o qual seja vista, em nada autoriza subjugar o

ensino ao crivo do agradável. “Acreditar que o jogo possa ensinar a trabalhar é se equivocar

sobre os fins recíprocos do trabalho e jogo.” (Duflo, 1999, p. 57). Isso não significa, no

entanto, que o ato de jogar seja desprovido de valor educativo, porque também oferece, à sua

maneira, um aprendizado sobre diversos assuntos e mesmo favorece o desenvolvimento do

ser humano. Os jogos das crianças são, sob essa ótica, um lugar insubstituível de auto-

aprendizagem espontânea, por se tratarem de expoentes de uma cultura ´livre`, não escolar,

que obviamente também é essencial. Afinal de contas, nessas atividades elas confrontam-se

com regras, executam papéis, são obrigadas a negociar interesses e prestam-se à auto-correção

de atitudes.

Feita essa observação, Kant chega mesmo a listar um receituário de jogos, tendo por

critério a sua completude. “Em geral, os melhores jogos são aqueles nos quais aos exercícios

de habilidade acrescentam-se exercícios dos sentidos.” (Kant, citado por Duflo, 1999, p. 57).

Um bom jogo educacional, para Kant, deve desenvolver harmonicamente as forças das

crianças (jogos de bola com corridas), levá-las a tecer julgamentos sobre o sensível (visar e

avaliar as distâncias) e cultivar habilidades gerais, imaginação e memória (pipas e jogos de

esconder).

Vê-se que o mérito dos jogos está, acima de tudo, na riqueza com que ativam as

valências físicas, espirituais e afetivas. Ao dinamizá-las, combate a inércia que volta e meia

lhes assola e compromete o seu melhor funcionamento. A bem da verdade, Kant está assim

tomando partido de uma posição muito peculiar sobre os efeitos dos jogos sobre o sujeito,

doravante explorada na Antropologia de um ponto de vista pragmático, a de que mexem com

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21 as sensações e, assim atuando, promovem a vida. O tédio, a ausência de movimento, são ao

mesmo tempo fonte e sintomas de dor existencial:

Sentir (...) vida (...) não é, pois, nada mais que se sentir continuamente compelido a sair do estado presente (que, portanto, tem de ser uma dor que retorna com tanta freqüência quanto este). Daí, se explica o peso opressivo, angustiante, do tédio para todos os que dedicam atenção à própria vida e ao tempo (...). O vazio de sensações que se percebe em si provoca horror (horror vacui) e é como que o pressentimento de uma morte lenta, (...) em que o destino corta repentinamente o fio da vida. (...) Daí se explica também porque os passatempos são identificados com o contentamento: porque, quanto mais rápido passamos pelo tempo, tanto mais reanimados nos sentimos (...). (Kant, 2006, p. 130).

Eis o espaço antropológico conquistado pelo jogo e que serve para justificar, num

primeiro momento, sua prática: ele é um artifício de combate à consciência do tempo,

proporcionando esquecê-lo. Isso não só diverte como acarreta prazer. Mas como isso ocorre?

Como uma atividade até certo ponto vazia pode conduzir ao esquecimento do vazio de uma

existência?

Kant assim explica esse aparente paradoxo do jogo: “Porque ele é o estado em que

temor e esperança incessantemente se alternam (...) Porque em todos eles há certas

dificuldades – inquietação e hesitação em meio a esperança e alegria – e (...) o jogo de

afecções contrárias é (...) estímulo à vida (...), pois comoveu interiormente.” (Ibid. p. 129).

Em outros termos, nota-se, com efeito, que no jogo ocorre a imitação de situações da vida;

porém, essa mímese é dotada de uma cinética particular que chega mesmo a ludibriar a

matéria que compõe a vida. Alguém que vai ao jogo para se entreter, combater o tédio e

esquecer os infortúnios do tempo acaba penetrando num rol de situações que porão em

circulação afecções suas aparentemente sem nenhuma afinidade direta, numa escala tal que

ultrapassa qualquer expectativa de auto-controle.

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22 Porém, na medida em que ao decidir jogar, o homem acaba, sem saber, despertando

a promoção lúdica da vida, é porque o jogo não existe desprovido de finalidade. Ou seja, visto

que na natureza as coisas não são em vão e possuem finalidades, o prazer achado no jogo

pelos homens é signo de que aquela, em sua vitalidade, induz os mesmos a isso de modo a

dinamizar neles o que lhe pertence. O que se passa aqui, em pequena escala, corresponde ao

verificado na história: o indivíduo que acredita agir por si mesmo, e segundo os impulsos de

sua livre aspiração, está, na verdade, sendo alavancado pela mediação da natureza servindo a

fins que o transcendem.3 O jogador provoca algo muito maior do que a diversão que procura

voluntariamente e crê manter sob controle, pois, no fundo, será a natureza que comandará

partes de si sobre as quais não consente e mesmo não delibera:

Os jogos de bola dos meninos, as lutas, as corridas, as brincadeiras de soldado, além disso, os dos homens no jogo de xadrez e de cartas (...) os jogos do cidadão que tenta sua sorte nas sociedades públicas com (...) dados – todos eles são inconscientemente estimulados pela sábia natureza à empreitada de testar suas forças em disputa com outros, a fim (...) de que a força vital em geral se preserve da extenuação e se mantenha ativa. Dois desses antagonistas crêem jogar um contra o outro, porém de fato a natureza joga com ambos (...). (Kant, 2003, p. 172).

Caso olhemos a riqueza das considerações de Kant sobre jogo não tanto sob o prisma

de seus conteúdos, mas a respeito do que dizem sobre a estrutura dele, notaremos que

referem-se a um tipo de prática cujos predicados que melhor lhe servem são movimento,

intercâmbio, circulação, circuitos e alternância de estados, dinamismo, etc. Essa mesma idéia

será reapresentada posteriormente, com a conotação de ´livre jogo das faculdades`, para

explicar o acometimento do sujeito pela sensação de beleza diante da obra de arte.

3 A defesa dessa tese, na perspectiva de uma evolução macroscópica da humanidade, é apresentada na quarta

proposição do ensaio Idée d´une histoire universelle d´un point de vue cosmopolite, presente no compêndio Ouvres philosophiques, Paris, Gallimard, 1985, p. 192-193.

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23 ARTE E LIVRE JOGO EM KANT

A idéia de livre jogo, enquanto referência adotada por Kant para pensar a questão

estética desenvolvida na Crítica da Faculdade do Juízo, insere-se num contexto mais amplo

de discussão conceitual em grande medida delineado pelo cruzamento de informações

trabalhadas na Crítica da Razão Pura com outras da Crítica da Razão Prática. Ao passo que

no campo da razão pura teórica vige uma impossibilidade de representar objetos como coisas

em si, pelo fato da acessibilidade aos mesmos restringir-se ao campo fenomênico, o escrutínio

do domínio da razão prática indica que a formulação de uma lei moral universal não

contingente é viável caso a vontade livre-se do peso das inclinações sensíveis. Abre-se aí um

precedente por meio do qual pode-se esperar que, via razão prática, o plano das realidades

numenais torne-se acessível. A solução definitiva para esse problema, mediando a unidade do

mundo dos fenômenos e dos númenos, percorrerá quase todo o trabalho investigativo do

terceiro estudo crítico (Terra, 2003).

No capítulo introdutório à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant revê a já vista questão

dos diferentes domínios do conhecimento humano representados pelos territórios da natureza

e da liberdade moral, e com base neles reitera que razão e entendimento não exercem

influência mútua direta um sobre o outro. Todavia, ao final da segunda seção do capítulo

introdutório, o filósofo arvora ser viável pensar numa interferência do reino da liberdade

sobre o da natureza. Com isso, admite que o conceito de liberdade não só pode como deve

tornar efetivo no mundo dos sentidos o fim posto por suas leis, o que significa considerar a

natureza a partir de uma possibilidade de concordância da conformidade legal que rege suas

formas com outros fins nela presentes.

O alcance de tal unidade entre a liberdade, cujo conceito sustenta a razão na qualidade

de agente das prescrições práticas, e a natureza, que tem no entendimento a chave para seu

conhecimento teórico, ocorre em um terceiro termo, denominado de faculdade do juízo, que

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24 nada mais é do que a faculdade de pensar algo particular como contido num universal.

Quanto à isso, Kant nos fornece duas situações possíveis: o aparecimento do universal sob

forma de princípio, lei ou regra dada a priori subsumindo em si o particular, produzindo

juízos do tipo determinantes; e a caracterização de substratos universais a partir de elementos

particulares, obtida através do acionamento da faculdade do juízo reflexiva.

O reconhecimento de que a atividade de reflexão sobre um particular conduz à

produção de ajuizamentos universais presume que, por detrás das contingências empíricas, jaz

uma unidade comum a todas elas passível de encontro. A condição transcendental que permite

ao sujeito reflexionante chegar a esse resultado arraiga-se no pressuposto de que tal unidade

foi plasmada, segundo Kant, por um entendimento além do nosso que assim a fez em

concordância com nossas competências para conhecer. Esse princípio, chamado por Kant de

conformidade a fins da natureza, é a lei que a faculdade do juízo reflexiva dá a si própria para

unificar o múltiplo disperso empiricamente.

Na medida em que essa máxima subjetiva da conformidade a fins representa o eixo

norteador a partir do qual a reflexão move-se na direção de uma experiência de interconexão

de objetos, ela também representa uma ocasião de libertação de necessidades que, em última

instância, retrocede sobre o sujeito com efeitos regozijantes. Essa auto-satisfação, nas

palavras de Kant, decorre da interpretação subjetiva de que o curso dos acontecimentos deu-se

como se o acaso favorecesse as intenções de encontro de uma unidade sistemática por debaixo

das ocorrências empíricas. Nos momentos em que isto acontece, aflora um legítimo

sentimento de prazer, conforme podemos aduzir da seguinte transcrição:

De fato (...) a descoberta da possibilidade de união de duas ou várias leis da natureza empíricas, sob um princípio que integre ambas, é razão para um prazer digno de nota (...) ainda que o objeto deste nos seja bastante familiar. (...) Pelo contrário, ser-nos-ia completamente desprazível uma representação da natureza na qual antecipadamente

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25 nos dissessem que na mínima das investigações da natureza, para lá da experiência mais comum, nós deveríamos deparar com uma heterogeneidade das suas leis que tornaria impossível para o nosso entendimento a união das suas leis específicas sob leis (...) universais. (Kant, 2005, p. 31-32).

O prazer ou desprazer de que fala Kant não são propriedades inerentes ao objeto; eles

advêm da adequação das representações que o sujeito faz de sua forma por intermédio de um

livre jogo, imputado pela reflexão, das faculdades de imaginar e entender. Logo, sem o lastro

de arcabouços conceituais, tal representação é estética. Desta colocação, Kant retira as

seguintes conseqüências:

a) O acordo lúdico da imaginação com o entendimento mediante a reflexão sobre uma dada

representação da forma do objeto, ao produzir prazer, indica que o objeto é belo;

b) Os julgamentos que incidem sobre um objeto belo, por envolverem prazer ou desprazer,

são julgamentos de gosto;

c) Sendo o fundamento do prazer o casamento da representação de um objeto conforme a fins

com as faculdades da imaginação e entendimento em livre jogo, situação essa que é universal

para todos os sujeitos, e estando a ascensão ou não desse prazer na base da emissão dos juízos

estéticos de gosto, deduz-se que estes também são de validade universal;

d) Os juízos de gosto expressam um estado de ânimo que pode ser comunicado

indistintamente com dimensões de universalidade.

Na acepção de Lebrun (2002), convém lembrar que Kant foi um filósofo aprumado

pelo intelectualismo estético da Aufklärung, cuja idéia de beleza acenava para campos de

aplicação em que o bem dizer, subordinado aos manuais de retórica e poética, superava em

importância as belas artes liberais. Não apenas o belo permanecia submetido aos imperativos

da perfeição lógica como era inconcebível sem esses parâmetros. Eis uma noção com que

Kant se depara e que não renegará, haja vista a precedência que ele outorga à superioridade da

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26 poesia perante todas as outras artes. Contudo, as circunstâncias que sustentam os juízos

reflexivos estéticos, conforme desenvolvidas na 3.a Crítica, abrem margem para a

constituição de outros horizontes de problemas até então não contemplados pela atmosfera

conceitual da Aufklärung.

AS CONTRIBUIÇÕES DOS ROMÂNTICOS

Em síntese, pela fórmula do juízo reflexivo, a afirmação de que algo é belo alude a um

evento cuja ordem não é teleológica nem arbitrária. Isso significa que os juízos de gosto, com

tudo aquilo que englobam, acenam para estados de coisas não enquadráveis na forma com que

a pura consciência intelectiva, descrita na 1.a Crítica, remata os objetos. Contudo, isso não

significa ausência de lógica e perfil organizativo. As análises de Kant na Crítica da

Faculdade do Juízo conferem às criações artísticas um finalismo apenas delas, e é nessa

singela propriedade que radica a sua verdade.

O reconhecimento dessa possibilidade, consoante a perspectiva dos historiadores da

filosofia, contribuiu para a estruturação de boa parte da teoria estética romântica,

principalmente no que concerne aos pensadores da primeira geração, com destaque para os

irmãos Schlegel, Novalis e Schleiermacher (Reale, 1990). Para Novalis e Friedrich Schlegel,

as criações artísticas espelham a capacidade do gênio dos artistas de reinventar formações

lingüísticas por meio de novas condensações e arranjos (Gagnebin, 2007). Esse

acontecimento inicia-se com o recolhimento de aspectos do real nas dobras e desdobras das

linguagens (iconográfica, ideográfica, corporal, etc.) e segue com a posterior dilatação das

composições maturadas nesse encontro até os outros universos nele anunciados. Nesse

sentido, os artistas, principalmente os poetas, dada a espontaneidade e a irreverência com que

transitam por entre esses espaços, chegando mesmo a destruir frações suas para depois

reinventá-las, insurgem como legítimos transformadores do mundo conhecido.

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27

A rigor, o poeta (...) expressa a liberdade máxima (...) como (...) um jogo constante que mescla a zombaria com a seriedade; (...) um jogo que (...) se situa naquele ponto em que todas as formas, incluindo as estéticas, se dissolvem, não para desaparecer, mas para transformar-se em outras que se dissolvem por sua vez e assim ao infinito. (Mora, 2001, p. 2612).

F. Schlegel e Novalis (citados por Gagnebin, 1999) reiteram que esses movimentos

lúdicos de condensação, expansão e metamorfose das linguagens, mais do que abalizarem

somente a geração de expressões artísticas, também apresentam afinidade formal com os

pensamentos conceituais, pois estes, a partir da apreciação das particularidades dos

fenômenos, também buscam providenciar formulações de validade universal. No entanto, a

produção de sentidos ora estéticos, ora cognoscitivos, depende do modo como os signos

lingüísticos são combinados entre si. Considerando-se que tais associações são infinitas, elas

configuram-se como veículos produtores de efeitos múltiplos, o que faz com que a própria

linguagem constitua, para os filósofos, um território dinâmico, e, por isso, livre de

cerceamentos. Atentando especificamente para o exemplo da poesia, Novalis e F. Schlegel

(Ibid.) reconhecem nela uma manifestação artística onde constantemente neoformações

semânticas são realizadas por meio de um desdobramento voluptuoso de palavras que em

quase nada lembra o discurso argumentativo linear apregoado pelo sujeito clássico da

Aufklärung. Por mais que os escritos provenientes de atividades poéticas versem sobre temas

universais, como, por exemplo, o amor ou a origem, as possibilidades de conflagração de

sentidos aí latentes através do manuseio de palavras, na sua incomensurabilidade, não

exprimem um sujeito interagindo mecanicamente com a realidade. Sobre isso, Novalis (citado

por Benjamin, 2002, p. 54) adianta: “Vários nomes são vantajosos para uma idéia (...)

Quantas vezes se sente a pobreza de palavras para atingir várias idéias com um golpe”.

Em que pese essa busca pelas melhores articulações de palavras, em cujas brechas

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28 emergem as infinitas facetas do sentimento poético, Novalis (ibid. p. 71) complementa que

ela indica a vigência de uma interface entre a poesia e o pensar:

A arte da poesia é certamente apenas uma utilização arbitrária, ativa e produtiva dos nossos órgãos – e talvez o pensar seria ele mesmo algo não muito diferente – e, portanto, pensar e poetar constituiriam uma mesma coisa.

F.Schlegel (ibid. p. 70) não apenas adota ponto de vista semelhante ao de Novalis

como acrescenta um novo elemento em uma passagem de texto publicada nas Lições

Windischmann, a saber, a convergência do pensar poético com a faculdade criativa absoluta

do Eu-do-mundo:

Existe (...) um tipo de pensar que produz algo e que, portanto, possui uma grande semelhança formal com a faculdade criativa que nós atribuímos ao Eu da natureza e ao Eu-do-mundo. A saber, o poetizar, que de certo modo cria sua própria matéria.

Pelo exposto, Novalis e F. Schlegel ratificam na poesia um pensar que coloca o sujeito

numa situação de homologia com o Eu-do-mundo. Habitando a linguagem poética, esse

pensar eqüipara-se à natureza gerando-se a si mesma sem limites, condizente com uma arte de

inventar absoluta. Nessa condição, o pensar recebeu deles a denominação de reflexão: na arte

poética vivificada na linguagem, vigora um pensamento originário cuja estrutura formal

assemelha-se a da essência criadora absoluta do Eu-do-mundo, o que significa que, noutros

termos, a arte da poesia representa o meio de reflexão onde o pensar dilui-se no absoluto. Na

perspectiva de Novalis, (ibid. p. 73) o refletir pode ser também visto da seguinte forma:

O ato de saltar por cima de si mesmo (...) o mais elevado, (...) a gênese da vida. Assim, toda filosofia inicia-se onde o filosofante filosofa a si mesmo, isto é, consome-se [...] e se renova ao mesmo tempo. Assim

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29 (...) inicia-se a vida da virtude, através da qual, talvez, a capacidade aumente ao infinito.

Em seu fragmento, Novalis considera a atividade pensante conduzida no meio de

reflexão da arte um processo que, malgrado transcender a superficialidade das relações

determinísticas de causa e efeito, faz coincidentes o auto-conhecimento do que se conhece, do

que conhece e o ser-conhecido do que conhece. “Portanto, tudo aquilo que se apresenta ao

homem como conhecer de uma essência é o reflexo nele do auto-conhecimento do pensar

nesta mesma essência.” (Benjamin, 1999, p. 62). Essa visão, presente não apenas em Novalis

e F. Schlegel, mas partilhada pelos demais filósofos românticos da primeira geração, presume

que as essências do sujeito e dos objetos abertos à investigação não compõem um agregado

de mônadas fechadas em si, avessos à interpenetração. Rompendo com correntes da

Aufklärung que postulavam a confiabilidade do conhecimento em razão do grau de

neutralidade investigativa do sujeito perante o objeto, os românticos, mais do que sugerirem

outro caminho metodológico, enveredam para um novo paradigma de saber pautado na

premissa de que a intensificação do pensar no meio de reflexão da arte, na condição de auto-

atividade criadora enredada ao absoluto, delimita potencialmente, em seu movimento, o

acesso às verdades contidas na religião, história, cultura, misticismo etc.

Ainda em relação a essas verdades, Novalis afirma em Pólen que muitas vezes suas

naturezas obedecem a lógicas bastante singelas, sem maiores compromissos com a ausência

de contradição e a coerência formal entre termos exigidas pelos filósofos da Aufklärung. Do

outro lado está Goethe, diz o poeta, pois este foi alguém que sempre buscou compreender,

segundo suas próprias palavras, a partir de exercícios imaginativos semelhantes a um jogo, as

correspondências conceituais aparentemente sem nexo vinculando o mundo dos homens e a

natureza, com ressalvas para aquelas feitas pelo senso comum:

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30 Uma notável peculiaridade de Goethe observa-se em seus enlaces de ocorrências pequenas, insignificantes, com acontecimentos mais importantes. Ele parece não nutrir nenhum outro propósito nisso, a não ser ocupar a imaginação, de um modo poético, com um misterioso jogo. Também aqui esse homem singular achou a pista das intenções da natureza e apanhou-lhes em flagrante um engenhoso artifício. A vida costumeira está cheia de acasos semelhantes. Constituem um jogo que, como todo jogo, desemboca em surpresa e ilusão (...) Vários dizeres da vida comum repousam sobre uma observação dessa conexão reversa – (...) sonhos ruins significam fortuna – boato de morte, vida longa – um coelho que atravessa o caminho, infortúnio. Quase a superstição toda do povo comum repousa sobre alusões a esse jogo. (Novalis, 2001, p. 53).

Essa dimensão de abertura para outras regiões proporcionada pela reflexão conduzida

no meio da arte, comparável a um jogo imaginativo, do qual Goethe é um dos expoentes mais

notáveis, faz com que Novalis (citado por Benjamin, 1999, p. 52) chegue a dizer que aquela

eqüipara-se a “... uma idéia mística [...] penetrante, que nos introduz irresistivelmente em

todas as direções”. O misticismo de que fala Novalis refere-se à potência mesma da

linguagem que, no fundo, resulta da impossibilidade de seu fechamento. Resulta daí que a

comunicação de conhecimentos é relativa, pelo fato de depender do teor dos recortes

operados nos signos, palavras e conceitos da linguagem. Isso coloca em xeque a própria

legitimidade dos sistemas filosóficos nas suas pretensões teóricas de alcançar em definitivo,

por meio do rigorismo lógico, a verdade dos objetos de estudo sobre os quais versa. Isso fica

patente na seguinte afirmação de F. Schlegel (Ibid. p. 52):

O místico conseqüente não deve simplesmente deixar indefinida a comunicabilidade de todo conhecimento, mas negá-la totalmente; isto deve ser demonstrado de maneira mais profunda do que a lógica habitual alcança.

Ao fragmento anterior, escrito em 1776, pode-se acrescentar outro da mesma data: “A

comunicabilidade do verdadeiro sistema pode ser apenas limitada; isto se deixa provar a

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31 priori.” (Ibid.). Ademais, numa carta escrita a Schleiermarcher datada de 1798, A.W.

Schlegel (citado por Benjamin, 1999, p. 52-53), irmão de F. Schlegel, fornece o seguinte

parecer:

As glosas marginais de meu irmão eu também conto como positivas; pois resultam nele melhor do que cartas inteiras, assim como fragmentos melhor do que teses, e palavras auto-cunhadas melhor do que fragmentos. No fim, todo seu gênio limita-se à terminologia mística.

Chamando particularmente a atenção para a questão do misticismo decantado por A.

W. Schlegel, reiterando que ele não remonta a um território nebuloso situado além da

linguagem, mas sim ao núcleo misterioso em cima do qual erige-se a potencialidade mesma

das palavras para franquear, com maior ou menor fidedignidade, o conhecimento da verdade

em qualquer direção, Seligmann-Silva (1999 a) afirma que o adjetivo ´místico` irmana-se a

um termo mais abrangente aparecido com recorrência entre os românticos, denominado

´Witz`. O ´Witz` engloba uma dimensão de aparição, de iluminação na fantasia despertada por

palavras formando conceitos que movimentam-se com uma dinâmica própria no meio de

reflexão da arte. F. Schlegel fala do ´Witz` como faculdade profética, enquanto Novalis

designa-o como um jogo mágico de cores nas esferas superiores, porquanto atua como um

agente que perturba para em seguida restabelecer, com novos aspectos, as coisas existentes

(Seligmann-Silva, 1999 b). Resumindo, o ´Witz` alude, para ambos os filósofos, a um estado

privilegiado do pensar, arraigado em ligações filosóficas ardentes e densas constituídas por

debaixo das palavras, diferente do que habitualmente se convencionou chamar de razão. Ele

invoca um pensamento radiante que, como um relâmpago, clarifica instantaneamente o real

para logo depois desaparecer, podendo advir da lucidez de uma escrita fragmentária, de um

aforisma, de um verso, ou, no limite extremo, de um único nome portentoso o bastante para

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32 abarcar o universo inteiro. (Seligmann-Silva, 1999 a).

A teoria mística da linguagem desenvolvida pelos primeiros românticos subentende,

pelo ´Witz`, não haver acabamentos definitivos ou transparências perenes na linguagem. Ao

passo que, no bojo do kantismo, ser crítico referia-se a uma proposta de elucidação impelida

pela objetividade clareadora da consciência cognoscente, para os românticos a evolução do

pensamento crítico segue o movimento da reflexão. Isso torna a crítica romântica um

empreendimento assaz criativo, pois as propriedades místicas da linguagem, ao iluminá-la,

igualmente maturam processos de conhecimento originais, sem itinerários lineares. Com isso,

ela desconcerta as estruturas do pensar contínuo que funciona pela procura de identidades

tautológicas e não contraditórias. Esse mesmo motivo fá-la sempre inacabada e propícia à

reconstrução pela capacidade do sujeito de designar. Em Kant, a reflexão alavancava a

emissão de juízos estéticos subjetivos; nos românticos da primeira geração ela constitui a base

da atividade crítica.

Diante da impossibilidade de encerramento, a crítica torna-se um empreendimento

destinado a ser infinitamente revisto pelos que dela se ocupam, o que reverbera sobre o

próprio estatuto da obra de arte. Frente ao insuperável inacabamento da obra de arte, a

atividade crítica assume, para os românticos, muito mais uma função de complementação do

que propriamente julgamento de valor.

A RELEITURA DE WALTER BENJAMIN

O conceito romântico de crítica influenciou, em larga escala, as teorizações de Walter

Benjamin sobre as metamorfoses acontecidas no universo da arte no contexto da

Modernidade. Em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, Benjamin (1999)

demonstra que não apenas aceita a crítica como perpétuo acabamento da obra de arte, tal qual

advogado pelos filósofos do Romantismo, como vai além, asseverando que ela capitaneia o

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33 conhecimento progressivo daquele que conhece no que se dá a conhecer. Com isso, ela

mostra-se como veículo de auto-reflexão e auto-julgamento da obra por ela mesma. Dito de

outro modo, o ato de criticar catalisa o desdobramento do espírito na direção de níveis de

reflexão cada vez mais abstratos e sofisticados:

Todo conhecimento crítico [...] enquanto reflexão [...] não é outra coisa senão um grau de consciência mais elevado da mesma, gerado espontaneamente. Esta intensificação da consciência na crítica é, a princípio, infinita; a crítica é, então, o medium no qual a limitação da obra singular liga-se metodicamente à infinitude da arte e, finalmente, é transportada para ela, pois a arte é, como já está claro, infinita enquanto medium de reflexão [...] Ou seja, a obra de arte singular deve ser dissolvida no medium da arte, mas este processo só pode ser representado de maneira coerente através de uma pluralidade (...) de graus de reflexão personificados. É evidente que a potenciação da reflexão na obra (...) nada mais deve fazer do que descobrir os planos ocultos da obra mesma, executar suas intenções veladas. No sentido da obra mesma, isto é, em sua reflexão, deve ir além dela mesma, torná-la absoluta. (Benjamin, 1999, p. 74-75).

A crítica, evidenciando que a obra de arte caracteriza-se enquanto criação incompleta

aberta ao absoluto que demanda re-elaboração constante, demonstra o paradoxo de sua sina, a

saber, nascer já explicitando na imbricação particular de conteúdo e forma um chamado para

posteriores reformulações que, consoante Benjamin (1999), denotam dialeticamente sua

predisposição para ser auto-superada na reflexão. Essa relação tensa, presente na obra, entre

construção e destruição dita o ritmo da elaboração estética, frisa o filósofo. Ou seja, ao

compor sua produção, o artista aponta a necessidade de modificar e destruir a forma e o

conteúdo que estão nascendo, como se jamais pudesse finalizar a frase literária, o arranjo

musical, o desenho, o traço que está desenvolvendo e inventando, pois frase, arranjo, traço,

etc. irão se interromper num momento comprovando sua insuficiência. A única conclusão

possível é o lance afortunado que ratifica o inacabamento. Cabe ao raciocínio crítico destruir a

individualidade inacabada da obra, inscrevendo-a de modo mais profundo na unidade

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34 universal da arte, fazendo-a correlata desta:

A [...] obra singular [...] vítima da destruição [...] rasga um céu da forma eterna, a Idéia das formas, a que se poderia denominar de forma absoluta, e esta atesta a sobrevida da obra que extrai desta esfera sua existência indestrutível, depois que a forma empírica, a expressão de sua reflexão isolada, tenha sido consumida por ela. (Benjamin, 1999, p. 90 – 91).

A destruição do individual/particular da obra na forma absoluta converte esta em signo

da gestação de uma vida mais abrangente, comparável, nas palavras de Seligmann-Silva

(1999 a), ao esquartejamento dionisíaco de Nietzsche ou à ressurreição especulativa de Hegel.

Em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, Benjamin (1999) menciona um

verso de F. Schlegel que consegue sintetizar com bastante lucidez essa dialética da destruição

e do nascimento:

Sim, também a obra, comprada cara, permaneça valiosa para ti; Mas tu a amas tanto, dá-lhe tu mesmo a morte, Fixando no olho a obra que mortal algum finalizará: Pois é da morte do individual que brota a imagem do todo. (Ibid. p.89).

Por outro lado, a dissolução da obra particular no absoluto pela reflexão, na avaliação

de Benjamin, por residir na organização interna da mesma, destoa dos padrões da estética

kantiana, porque independe do prazer do gênio-artista ou da subjetividade do crítico

mobilizados em situação de livre jogo das faculdades. “Logo, neste tipo de [...] ligação com o

incondicionado, trata-se não de subjetivismo e jogo, mas, antes, da assimilação da obra [...] ao

absoluto, de sua completa objetivação que paga com sua eliminação.” (Benjamin, 1999, p.

90). Finalmente, retomando Schlegel, Benjamin (1999) declara que os aprimoramentos

realizados na obra pela crítica de arte de modo a abrir o caminho que vai do um ao todo são

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35 delineados justamente nas intercorrências místicas da linguagem. “Esta arte da [...] crítica

[...] também é denominada por Friedrich Schlegel de ´divinatória`.” (Ibid. p. 94).

A propriedade divina da crítica de arte exerceu grande influência sobre Benjamin, o

qual manteve-a para o campo das linguagens em geral. Torna-se redundante dizer que isso

apenas atesta o peso exercido pela tradição romântica na estruturação de seu pensamento. No

entanto, essa vinculação específica entre linguagem, arte e crítica, temperada por ingredientes

místicos, insere-se numa discussão benjaminiana bem mais ampla, que trata da questão das

semelhanças existentes entre as coisas no cosmos.

Em trabalhos pioneiros e emblemáticos sobre esse tema, como Teoria das

Semelhanças, Sobre a Faculdade Mimética, Problemas de Sociologia da Linguagem e Sobre

a Linguagem em Geral e sobre a Linguagem Humana, Benjamin explicita que conhecer as

esferas do ´semelhante` constitui tarefa primordial para a compreensão da substância dos

saberes, pois estes são ora imediatos, ora não imediatos. Sendo o homem o espécime que goza

da maior capacidade de produzir semelhanças na natureza, das quais a arte é o grande

exemplo, conclui-se que suas faculdades superiores são permeadas por uma que entrelaça-se

com todas as outras: a faculdade mimética.

A faculdade mimética opera apreendendo por intermédio do consciente e inconsciente

as semelhanças físicas e não físicas existentes no mundo ao longo das eras. Sobre a percepção

dessas semelhanças, Benjamin (1992 a) afirma em Teoria das Semelhanças que ela é furtiva,

como o ´Witz` romântico. Logo, os homens não conseguem fixá-la definitivamente. “Ela

oferece-se aos nossos olhos de modo tão fugaz e passageiro como uma constelação” (Ibid. p.

61). As chaves para o estabelecimento dos elos de semelhança entre objetos físicos e não

físicos habitam, para o filósofo, os interstícios das linguagens.

Uma das grandes evidências de que desde os primórdios da humanidade a faculdade

mimética presentifica-se nas linguagens é a reprodução onomatopaica dos sons da natureza.

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36 Através dela, geram-se vocábulos e, por conseguinte, conceitos, diz Benjamin. Até hoje,

observa-se que entre os poucos grupos humanos primitivos remanescentes no mundo, é

comum palavras de dialetos diferentes serem ordenadas ao redor de um mesmo significado,

como se ele fosse o epicentro em torno do qual gravitassem. Mesmo que todas não possuam

semelhanças de pronúncia entre si, sempre acha-se remissões em comum com aquilo que está

disposto ao centro. No seio de tal contexto, que abrange duplamente os planos da escrita e da

fala, formam-se multiplicidades de espaços cujos limites são o movimento dinâmico que vai

da sonoridade da frase e palavra ao correspondente grafológico impresso no texto, e vice

versa. Cabe ao pensamento que aceita aventurar-se nas reentrâncias e saliências desses

enigmáticos espaços, similares a quebra cabeças, buscar os nexos de semelhança na

infinitesimal brevidade do instante.

Desta maneira, a linguagem revela-se como o ´medium` de residência da faculdade

mimética. É nela que as semelhanças materiais e imateriais penetraram a fundo e

permaneceram. Como corolário, ler, reproduzir graficamente, reinventar e manusear signos

são assim atividades que permitem ao espírito re-adentrar essa dimensão constitutiva da

condição humana onde as semelhanças que perpassam os fluxos entre as coisas irrompem e

desaparecem transitoriamente.

Considerando-se o exposto, tanto no caso das leituras profanas como no das recitações

sagradas, estamos face a face com procedimentos dinâmicos que guardam em comum o fato

de exigirem do leitor tanto discernimento como interpretação das informações que guardam.

Portanto, há a necessidade de adoção de atitudes críticas, diz Benjamin (1992 a) em Teoria

das Semelhanças. Ora, tanto o aprimoramento da competência crítica como a mobilização da

faculdade humana de produzir mímesis por meio da cientificação de semelhanças físicas e não

físicas são habilidades que a educação pode e deve desenvolver, segue o autor. Sobre esse

ensino-aprendizado do acionamento da faculdade mimética, Benjamin afirma que o tronco a

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37 partir do qual ele desencadeia-se é o jogo.

Em carta de 8 de abril de 1926 endereçada a Jula Cohn-Radt, o filósofo expõe que

saber detectar o que é importante ou não em textos (páginas, fragmentos, citações, capítulos,

notas, etc.) demanda toda uma preparação, por se tratar da exploração de um universo

enigmático em que é preciso encontrar-se desperto, vigilante. A postura requerida para ser

bem sucedido neste empreendimento, defende Benjamin, aparenta-se com a de um cavalo de

xadrez, que, montado pelo cavaleiro imaginário, devasta pastos e sustenta as laçadas. O

próprio Benjamin, de acordo com relatos de Missac (1998), enquadra-se nesta lógica:

Armado de sua preciosa caneta-tinteiro como de uma lança, numa progressão saltitante, Benjamin vincula [...] idéias e intenções, as transpõe e remodela. Outra vez, vem à mente o movimento de cavalo de xadrez (em alemão ´Springer`, saltador) que força o xeque-mate no meio do jogo, não no fim da partida, pula de uma casa para outra, volta àquela do início da partida para saltar de novo. (Ibid. p. 27)

Missac (1998) também refere-se a uma entrevista concedida por Benjamin onde os

procedimentos do enxadrista diante das trocas de posição de peças no tabuleiro sugerem uma

aproximação entre o ato de jogar e a literatura. A atenção despendida a leitura dos catálogos

de exposição em uma Galeria de Arte ou dos fichários da Biblioteca Nacional de Paris requer

tanto o envolvimento quanto a contemplação dos detalhes de uma pintura ou a imersão em um

livro. Porém, dessa concentração deve aparecer alguma novidade surpreendente, porque

inesperada e obediente ao sabor do acaso. Para o entendimento dessa posição benjaminiana, é

preciso aceitar que o manejo criativo da palavra origina-se de um mergulho lúdico na

linguagem. Por causa disso, Missac (1998) insiste que a relação de Benjamin com o jogo

insurge como um quesito central de sua filosofia.

O [...] leitor que tomou nota de uma citação saborosa ou útil, o

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38 escritor que relê com satisfação a formulação que acabou de escrever como se estivesse fazendo um ditado, todos eles experimentam a euforia do jogador que [...] percebe subitamente que pode ganhar, ou que ganhou. (Missac, 1998, p. 104).

A vivência mais elevada dessa sorte de enlevo está, para Benjamin, no jogo de pôquer,

considerado por ele o ´rei dos jogos` (Ibid). Nele, o jogador envereda por situações em que se

vê obrigado, a cada rodada, a premeditar pela leitura fisionômica dos olhos dos adversários,

manuseio de cartas, acréscimo ou retirada de apostas, palavras pronunciadas, expressões

faciais, etc. o resultado com maior possibilidade de ocorrer para aí decidir entre o blefe, a

retirada do jogo, a troca de cartas em mão, o pagamento ou o confronto.

Olhando para todas essas ponderações, deparamo-nos com um cenário peculiar. A

crítica de arte, na avaliação de Benjamin (1999) em O conceito de crítica de arte no

romantismo alemão, não fundamenta-se no subjetivismo kantiano de gosto derivado do livre

jogo entre imaginação e entendimento. Enquanto leitura, discernimento e reconstrução aberta

da obra de arte, ela edifica-se na linguagem, que, por sua vez, goza de atributos místicos,

lúdicos e divinatórios. Essa mesma linguagem é o sítio da faculdade mimética, reunindo em si

infindáveis possibilidades de associações entre semelhantes físicos e não físicos tanto na

leitura como na escrita. Finalmente, o dom mimético, mais do que uma ferramenta

pedagógica, tem no jogo o princípio diretor de seu aprendizado.

Conclui-se então que, em Benjamin, vigora uma relação conceitual entre jogo e arte

até certo ponto enredada ao seu envolvimento inicial com os românticos. Essa mesma relação

segue ainda a persecução de uma outra trajetória em comparação com aquela desenvolvida

primeiramente por Kant na Crítica da Faculdade do Juízo. Logo, isso mostra que a questão

do jogo no pensamento de Benjamin obedece a orientações próprias.

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40 CAPÍTULO I

O JOGO EM WALTER BENJAMIN

Pode-se dizer que os estudos de Walter Benjamin sobre o ato de jogar inserem-se no

contexto maior de suas reflexões sobre a modernidade. Para Rouanet & Witte (1992), a

originalidade dos trabalhos benjaminianos sobre o jogo arraiga-se no casamento de

referenciais literários com a observação in loco de experiências vividas por pessoas concretas

nas ruas, galerias, cafés e subúrbios da Paris do século XIX.

Sobre o singelo fato de Benjamin ter sido adepto de jogos, sabe-se que em suas idas a

Moscou costumava jogar dominó, sem olvidar que durante quase toda sua vida praticou o

xadrez. Nos últimos anos de vida, teve como parceiro fiel Bertold Brecht, que inclusive

chegou uma vez a sugeri-lo que ousasse reinventar o xadrez junto com Karl Korsch. No ano

1926, em 22 de março, Benjamin, numa correspondência a Jula Cohn-Radt, fala de sua

afeição ao pôquer, que adorava jogar contra adversários desconhecidos durante viagens de

trem.

Por mais que tenha sido diletante de jogos com características, regras e condições de

prática deveras diferentes entre si, a maior parte dos escritos de Benjamin acerca do assunto

incide sobre modalidades enquadradas, segundo Missac (1998), na categoria dos ´jogos de

azar`. Ao empregar essa expressão, o autor está querendo evidenciar a predileção do filósofo

por toda uma gama de jogos em que a provocação propositada de acontecimentos aleatórios,

não obstante ser requisitada, prevista e aceita pelos jogadores como condição fundamental

para seu acontecimento, serve igualmente de pano de fundo para a compreensão de outras

questões existenciais pertinentes a constituição do sujeito moderno.

Se, de um lado, a investigação benjaminiana sobre os jogos de azar reflete a

popularidade assumida por eles no panorama cultural do século XIX, por outro ela busca

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41 compreender esse fenômeno relacionando-o a dois outros acontecimentos típicos da

modernidade: a divisão do trabalho fabril e o crescimento demográfico das populações

urbanas.

PASSADO, PRESENTE E MASSAS URBANAS: BAUDELAIRE E AS CENAS

PARISIENSES

A consolidação do capitalismo europeu no século XIX veio acompanhada de uma

grande elevação das populações residentes nas cidades e do alargamento das fronteiras

urbanas. Esta metamorfose não permaneceu incólume aos olhares da produção literária da

época, a qual tratou de incluí-la no rol de seus temas de trabalho. É com muita propriedade

que Victor Hugo, com Os Miseráveis e Os Trabalhadores do Mar, pode ser considerado um

dos pioneiros na exploração do assunto. Além disso, boa parte dos trabalhos acadêmicos de

inspiração socialista do período, dado o afã de identificar no crescimento desordenado das

multidões urbanas uma importante ferramenta para a revolução do proletariado, acabou por

assumir o tema da explosão populacional como objeto de investigação. Vejamos o que diz

Engels (1998) na passagem abaixo, retirada do documento A condição da classe trabalhadora

na Inglaterra:

Uma cidade, como Londres (...) é algo estranho. Essa colossal centralização (...) de dois milhões e meio de pessoas em um ponto, centuplicou o poder desses dois milhões e meio (...) Mas o custo desse sacrifício só mais tarde aparecerá. Depois de se vagar pelas ruas da capital (...) nota-se (...) que esses londrinos foram forçados a sacrificar as melhores qualidades da natureza humana, para realizar todas as maravilhas da civilização que pululam na sua cidade (...) O próprio tumulto das ruas tem algo de repulsivo (...) contra o qual a natureza humana rebela-se. As centenas de milhares de todas as classes e grupos, que se empurram uns aos outros, não são eles seres humanos com as mesmas qualidades e poderes, e com o mesmo interesse em ser feliz? (...) E, no entanto, colidem uns com os outros como se não tivessem nada em comum, nada a ver com o outro, e a única tácita

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42 concordância é a de que cada um siga no seu lado da calçada, para não constranger a multidão que corre no lado oposto, enquanto não ocorre a nenhum homem honrar o outro com um mero olhar. A indiferença brutal, o isolamento insensível de cada um no seu interesse privado torna-se o mais repelente e ofensivo, quanto mais essas pessoas são aglomeradas junto em limitados espaços. (Engels, 1998, p. 79-80)

Um traço característico desse registro é o rigoroso detalhamento de Engels dos

espaços por onde circulam as multidões que cruzam Londres. Sua composição textual prima

pela objetividade. O distanciamento necessário para a produção de tal tipo de descrição,

contudo, não livra Engels de mostrar uma certa reação moral e estética diante do movimento

das massas, estimulada pela velocidade com que os transeuntes se precipitam sobre seu corpo

causando-lhe ´desagrado`. Encontramos semelhante juízo em Hegel, quando este, visitando

pela primeira vez Paris, pouco antes de sua morte, escreve à sua esposa: “Quando ando pelas

ruas, as pessoas aparentam-se com as de Berlim; elas vestem as mesmas roupas e os

semblantes parecem os mesmos – o mesmo aspecto, só que numa multidão maior.” (Hegel,

citado por Leach, 1997, p. 26).

O parâmetro que norteia as anotações de Hegel e Engels é a fidedignidade dos

conteúdos registrados em relação aos objetos externos observados. Para Löwy (2005) a

escolha por esse modelo de descrição pressupõe que a base do ato de conhecer alicerça-se no

distanciamento investigativo do sujeito sobre o objeto. Implicitamente, o real é suposto como

um composto de unidades elementares articuladas entre si regidas por algum finalismo: por

debaixo da aparente desorganização com que ele mostra-se aos sentidos, vigoram relações

passíveis de explicação inteligível.

Visitando o mesmo fenômeno de um ângulo alternativo, e que denuncia sua parcial

afiliação a fulgurância romântica da palavra, do aforisma ou do verso libertos da estrutura do

útil e dos fins como chave para a articulação das verdades, Benjamin recorre ao olhar

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43 diferenciado da poesia moderna de Baudelaire para avaliar o quadro urbano das multidões

que turbilhoam Paris. Acerca dessa escolha, no trabalho Charles Baudelaire: um lírico no

auge do capitalismo, Benjamin (1989 a) assim se pronuncia:

No que diz respeito a Baudelaire, a massa lhe é algo tão pouco exterior que nos permite seguir de perto, em sua obra (...) seu envolvimento e (...) sua atração. (...) Em Baudelaire, a massa é de tal forma intrínseca que em vão buscamos nele a sua descrição. Assim, seus mais importantes temas nunca são encontrados sob a forma descritiva. (...) Baudelaire não descreve nem a população nem a cidade. Ao abrir mão de tais descrições colocou-se em condições de evocar uma imagem na outra. Sua multidão é sempre a da cidade grande; a sua Paris é invariavelmente superpovoada. (Benjamin, 1989 a, p. 115-116 ).

A palavra poética de Baudelaire exprime uma relação visceral com as multidões

urbanas de Paris, onde um imiscui-se organicamente com o outro. As coordenadas

ontológicas que parametrizam esse amálgama do escritor com as massas, denunciando a

unificação de ambos sem distinção de sujeito ou objeto, apontam para a configuração de uma

determinada articulação da linguagem em que os sentidos das coisas assumem uma faceta de

abertura e mobilidade. Sem restrições métricas e censura da sintaxe, os versos de Baudelaire

invocam justamente a imaginação dispersa na palavra poética como o espaço de residência da

verdade.

Conforme Benjamin (1989 a), Baudelaire exprime em estrofes as microtessituras de

uma Paris caótica, sem pontos fixos ou indícios de estabilidade, desprovida de solidez e

ordenações lineares.4 A metrópole baudelaireana reveste-se de significações taciturnas e

veladas; coberta por sombras labirínticas e penumbras, reúne fatos e acontecimentos que não

4 Encontramos no expressionismo inglês contemporâneo obras que recuperam o mesmo sentido de

desorientação e perda característicos da Paris poetizada por Baudelaire. Por exemplo, no quadro do pintor inglês Francis Bacon O retrato de George Dyer num espelho, de 1968, o artista esquematiza via jogo de cores e desenhos um espelho cuja reflexão do real mostra imagens inacabadas, não duplicadas, desconexas e desordenadas anatomicamente. As identidades que duplica não são estáveis, mas carregadas de ebriedade e ilusões. Conferir ANEXO I.

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44 obedecem a qualquer lógica positiva. Baudelaire é soberbo na forma como revela um

aspecto ímpar da vida urbana moderna: o trânsito de indivíduos nas lotadas vias públicas

urbanas de Paris repercute diretamente nas faculdades sensório-motoras de seus corpos

físicos, por submetê-lo a estímulos similares a choques. Nos levantes urbanos, os corpos são

traspassados por sons, odores, estímulos visuais, toques, etc. das mais variadas naturezas, que,

entrando e saindo abruptamente do raio da percepção, despertam circuitos de sensações

independentes da aquiescência do sujeito. “Baudelaire fala do homem que mergulha na

multidão como em um tanque de energia elétrica.” (Ibid. p. 124-125). O poema A uma

passante ilustra essa situação:

A rua em derredor era um ruído incomum, Longa, magra, de luto e na dor majestosa, Uma mulher passou e com a mão faustosa Erguendo, balançando o festão e o debrum; Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata. Eu bebia perdido em minha crispação No seu olhar, céu que germina o furacão, A doçura que embala e o frenesi que mata. Um relâmpago e após a noite! - Aérea beldade, E cujo olhar me fez renascer de repente, Só te verei, um dia e já na eternidade? Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente! Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais, Tu que eu teria amado – e o sabias demais! (Baudelaire, 2005, p. 107).

A mulher desconhecida e o poeta que, caminhando numa avenida, trocam olhares,

examinam-se e afastam-se para nunca mais se acharem, protagonizam o caso de um original

amor que é, concomitantemente, à primeira e última vista: tão rápido quanto aparece, com

todo o sabor de novidade e surpresa que causa, ele some. Sobra a sensação nostálgica de que

algo poderia ter sido explorado até suas derradeiras conseqüências e não foi, permanecendo

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45 doravante em suspenso.

Essa misteriosa transeunte personifica toda eventual pessoa que move-se

abstratamente nas massas, aparecendo e desaparecendo ao olhar do outro com imensa

velocidade e sem rastros, atestando que a durabilidade das interações entre indivíduos nessas

condições deriva do dinamismo de forças coletivas que ultrapassam o raio das vontades

particulares isoladas. Poeticamente, ela demonstra o quanto os relacionamentos na

modernidade tendem para a efemeridade e superficialidade, durando não mais do que breves

instantes.

Privados de perdurar por extensos períodos de tempo, a lógica dos relacionamentos

modernos de certa maneira acompanha, segundo Benjamin (1989 a), a lógica que norteia o

plano da produção material de mercadorias. Na modernidade, os objetos são planejados,

produzidos e comercializados por períodos de tempo relativamente curtos, pois, desde o

momento de sua criação outros artigos similares supostamente mais sofisticados já estão

sendo arquitetados para substituí-los, ainda que nem todas as suas propriedades ou

potencialidades tenham sido exploradas ou efetivamente exploradas. Eles surgem destinados a

tornarem-se, cedo ou tarde, obsoletos não pelo esgotamento das capacidades funcionais de

utilização, e sim pelas sucessões de congêneres mais novos e com supostas apreciações

superiores.

Estamos diante de um quadro que institucionaliza a caducidade e o perecimento das

coisas segundo caminhos anti-naturais. A não durabilidade propositada dos artefatos

industriais postos em circulação deriva, paradoxalmente, de relações de produção estruturadas

para perpetuarem-se sob a cobertura dessa dimensão de precariedade. Nada muda com a

aparição de novidades, haja vista que, de um ponto de vista formal, o estado da arte das

relações de produção segue estruturalmente intocado.

O que esperar então dos bens criados e comercializados para imediatamente

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46 soçobrarem e caírem em esquecimento? Que sorte de trajetória eles cumprem? O ritmo do

progresso tecnológico que decreta o término de sua vida útil e funcional disponibiliza-os, por

outro lado, para sofrerem re-apropriações subjetivas em outros universos contextuais, onde

recebem novas e inesperadas significações. Logo, à decadência inescapável das coisas

concebidas, de antemão, para desaparecer, segue a possibilidade de renascimento enquanto

alegorias denunciadoras de um mundo em decrepitude, habitado por homens e bens

mortificados que apenas desse modo acharão a salvação (Gagnebin, 2006).

Um mundo com essas características, que recebe o eternamente igual travestido de

novo, e o sempre novo como reiteração do sempre igual, cerceia a experiência da história

como fluxo de transformações. Nele, a história perpetua-se como prisão do imediatamente

recente em relações ditadas por padrões inabaláveis. Ora, a inércia de um real que auto-

regenera seus conteúdos tanto materiais como culturais sem assinalar qualquer indício de

mutação em sua base estrutural é típica da temporalidade dogmática da magia e do mito,

lembra Benjamin (2006) em Passagens. “Em conseqüência, a modernidade não somente não

significa o fim da magia como significa a radicalização do universo mágico.” (Rouanet &

Witte, 1992, p. 114). Ao invés de selar um definitivo rompimento ontológico com a tradição,

a racionalidade técnica da modernidade acarreta a ascensão de um outro tipo de ambiência

mítica, fundada na eterna repetição dos mesmos acontecimentos.

Logo, o mesmo moderno que promete a emancipação humana pela racionalidade

técnica nasce arcaico, porque, em seus interstícios, a onipresença ancestral do mito não foi

abolida, mas sim intensificada de forma anti-natural por meio da lógica tecnificadora do

capitalismo. Dentre as muitas obras de Baudelaire, Benjamin (1989 a) afirma que o poema O

Cisne retrata com bastante sutileza essa questão, uma vez que, nele, a moderna Paris e a

mitológica Tróia de Homero são símiles:

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47 Andrômaca, só penso em ti! O fio de água, Espelho pobre e triste onde outrora resplendeu, De teu rosto de viúva a majestosa mágoa, O Simeonte mendaz que ao teu pranto cresceu, Rápido fecundou minha fértil saudade, Como eu atravessasse o novo Carrossel Morto é o velho Paris (a forma da cidade Muda bem mais que o coração de uma infiel); Em espírito vejo os campos de barracas, Os fustes aos montões, as cornijas rachadas, Os muros de um verniz verde, as ervas opacas, O vago ferro-velho a brilhar nas calçadas. Ali outrora havia um aviário; Lá vi uma manhã, quando sob a amplidão Clara, o trabalho acorda e o lixo funerário Manda ao ar silencioso obscuro furacão, Um cisne que, ao deixar sua gaiola, as palmas Dos seus pés atritando o pavimento iníquo, Arrastava no chão as grandes plumas calmas. Junto a um riacho sem água, a ave abrindo o seu bico, Suas asas no pó banhava, num desmaio, E dizia a sonhar com seu lago natal: “Água, não choverás? Não trovejarás, raio?” Eu vejo este infeliz, mito estranho e fatal, Às vezes fitando o céu, como o homem ovidiano, Para o céu de um azul cruel e tão irônico, Contorcendo o seu colo, o mais convulso e insano, Enquanto envia a Deus o seu riso sardônico!

Na lembrança da imagem do choro de Andrômaca, esposa de Heitor, cujo pai e sete

irmãos acabaram liquidados no oitavo ano da guerra de Tróia, o poeta lembra-se de uma

Paris, cujas construções perduram apenas na sua memória. O sentimento melancólico de

objetos e situações que jamais voltarão concentra-se na figura do cisne, cujo grasnar parece

perguntar aos céus que fim levaram a chuva e os raios que compunham o cenário pretérito de

uma paisagem vivaz e opulenta, mas que no momento atual não passa de espaço devastado.

Na segunda parte do poema, Baudelaire confirma tal transfiguração:

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Paris mudou! Porém minha nostalgia É sempre igual: torreões, andaimes, lajedos, Arrebaldes, em tudo eu vejo alegoria, Minhas lembranças são mais pesadas que rochedos. Também diante do Louvre uma imagem me oprime: Penso em meu grande cisne, o do gesto feroz, Exilado que ele é, ridículo e sublime, Roído de um desejo infindo! Como em vós, Andrômaca, a tombar dos braços de um esposo, Gado vil, para as mãos de Pirro tão sereno, Junto a tumba vazia, em langor doloroso; Viúva de Heitor além de ser mulher de Heleno! Penso na negra, a tísica e a doente; Busca de pés na lama e de olhar tão bravio De sua África nobre o coqueiral ausente Atrás do muro imenso, do nevoeiro e do frio; Em quantos a Fortuna, e para sempre, rouba Seu bem melhor! Nos que se alimentam de dor, Onde soem mamar, como de boa loba, Nos órfãos a mirrar mais seco do que a flor! E na floresta, que meu pobre corpo trilha, Soa como buzina uma velha lembrança. Penso no marinheiro esquecido numa ilha... Nos vencidos de sempre e nos sem esperança! (Baudelaire, 2005, p. 99-101).

A Paris dos versos finais de O Cisne agrega elementos de fragilidade e desolação,

como a adoentada negra mendicante e o marinheiro perdido na ilha, com outros de

reconhecida significância na história da arte poética (Andrômaca, viúva de Heitor e esposa de

Heleno).5 Particularmente, Benjamin (1989 a) analisa dessa forma em Charles Baudelaire:

um lírico no auge do capitalismo, a articulação poética que condensa o longínquo passado

troiano com cenas da Paris moderna:

5 No plano das artes plásticas, Benjamin considera que os quadros do pintor Charles Meryon exibem as

mesmas nuanças da Paris de Baudelaire em O Cisne, visto que neles a cidade é exposta como um reduto de mortos. Conferir a pintura A pequena torre, em ANEXO II.

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Não é à toa que se trata de um poema alegórico. Essa cidade tomada por constante movimentação se paralisa. Torna-se quebradiça como o vidro, mas, também como o vidro, transparente – ou seja, transparente em seu significado. A estatura de Paris é (...) a desolação pelo que foi e a desesperança pelo que virá. (Benjamin, 1989 a, p. 81).

Desolação e desesperança são sentimentos corriqueiros do sujeito moderno que

vivencia a história amarrado a uma temporalidade onde o novo confunde-se com o sempre

idêntico. Resignação, passividade e capitulação passam a ser atributos corriqueiros de sua

vida. A submissão à tais circunstâncias fundamenta o seguinte comentário de Benjamin

(2006) extraído de Passagens: “O capitalismo foi um fenômeno natural com o qual um novo

sono, repleto de sonhos, recaiu sobre a Europa e, com ele, uma reativação das forças míticas.”

(Benjamin, 2006, p. 436). O rumo do progresso tecnológico moderno, ao invés de sublimar as

potencialidades da humanidade na direção da libertação, re-insere no presente os arcaísmos

míticos do começo dos tempos.

Somente um observador superficial pode negar que existem correspondências entre o mundo da tecnologia moderna e o mundo arcaico dos símbolos da mitologia. Num primeiro momento, de fato, a novidade tecnológica produz efeito somente enquanto novidade. Mas logo nas (...) lembranças da infância transforma seus traços (...) Cada infância, com seu interesse pelos fenômenos tecnológicos, sua curiosidade por toda sorte de invenções e máquinas, liga as conquistas tecnológicas aos mundos simbólicos antigos. Não existe nada no domínio da natureza que seja subtraído de tal ligação. (Ibid. p. 503).

Todavia, qual o conteúdo desse grande mito coletivo que é a modernidade? Tal qual

sugerem as análises de Benjamin (2006) em Passagens, a inércia típica da falta de consolação

ante o que já desapareceu e o anunciado descrédito diante do que se prefigura, ambas frutos

do aprisionamento em um presente que eterniza-se, comparam-se, às condenações que o

inferno judaico-cristão reserva aos pecadores. De acordo com o autor, as grandes

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50 manifestações culturais parisienses do século XIX, como a moda, os museus, a criação

literária e o jogo, são lugares por excelência onde a face moderna do mito do inferno aparece

nas suas minúcias. Como proceder então para investigá-los?

Avançar com o machado afiado da razão, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda, para não sucumbir ao horror que acena das profundezas (...). Todo solo deve alguma vez ter sido revolvido pela razão, carpido do matagal do desvario e do mito. (Benjamin, 2006, p. 499).

JOGO, SOCIEDADE E LINGUAGEM

Os vários estímulos sensoriais que incidem sobre os órgãos dos sentidos de pessoas

imersas em multidões e que escapam ao seu desejo de querer ou não recebê-los no raio de sua

percepção reaparece no corpo dos operários que operam as máquinas fabris das linhas de

montagem. Ao passo que nas corporações de ofício artesanais as conexões entre etapas do

processo de trabalho obedeciam a uma certa continuidade, na organização laboral das

modernas fábricas elas independem entre si. As peças entram e saem do raio de intervenção

corporal dos operários de maneira arbitrária, sem suas anuências.

Na linha de montagem, cabe ao operário uniformizar o movimento corporal

adequando-o ao ritmo do funcionamento das máquinas, que podem ser vistas como

instrumentos adestradores, pois, na medida em delimitam o que deve ou não ser realizado na

linha de produção, contribuem para automatizar os gestos motores conforme suas demandas.6

Embora esse adestramento acarrete a produção de bens materiais, ele não funda uma prática,

porque esta pressupõe grupos de indivíduos exercendo integralmente uma mesma atividade

segundo o domínio de uma determinada técnica em comum. Na prática, cada participante

partilha a memória das experiências pessoais e coletivas do conhecimento técnico com os 6 Isso é o mesmo que dizer que os acréscimos progressivos na produtividade do trabalho exigidos pelo capital

esbarram também na instauração eficiente de uma pedagogia diretiva que tipifica o que ou não o corpo do trabalhador pode fazer no espaço de montagem.

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51 pares, podendo aperfeiçoá-la nos momentos seguintes. Por esse viés, a gestão fabril

taylorista e fordista invalida-se como exercício prático, pelo fato de bloquear a constituição e

comunicação de experiências duradouras entre os trabalhadores das linhas de montagem. A

ritmicidade cadenciada e mecânica dos movimentos automáticos executados pelos operários

fabris transcende o tempo e espaço da jornada de trabalho, reaparecendo no repertório gestual

dos indivíduos dedicados aos jogos de azar, anota Benjamin (1989 a) em Charles Baudelaire:

um lírico no auge do capitalismo. Sua justificativa apóia-se na constatação de que os atos

corporais dos diletantes de jogos de azar embaralhando cartas, alocando fichas de aposta, ou

mesmo aguardando a confirmação de resultados são também executados de maneira

automatizada, com grande velocidade e pouca interferência da cognição. Vista por esse viés,

ela quase em nada difere, qualitativamente, do movimento corporal do operariado nas

fábricas.

O século XIX assistiu a uma grande proliferação das casas de jogo e cassinos, em

acompanhamento à expansão dos perímetros urbano e industrial europeus. “O jogo (...)

passou a fazer parte da vida (...) dos milhares de existências (...) de uma cidade grande.” (Ibid.

p. 128). No entanto, quais as principais características desse tipo de atividade? Como situá-la

no espectro maior das análises de Benjamin? O que ela apresenta de único, para o filósofo?

A atuação dos indivíduos em jogos de azar consiste de eventos únicos, porque o início,

desenvolvimento e final de cada partida independe do que ocorreu nas antecedentes ou

futuras. Cada partida encerra um campo de virtualidades, pois toda decisão ou intervenção

feita pelos jogadores, salvaguardando a permissão das regras, geram efeitos imediatos que

retrocedem sobre o modo de atuação dos outros participantes. Geralmente, a cientificação

prévia de como cada jogador procederá não é possível de antecipar. Isso quer dizer que, no

espaço de jogo, as realidades situacionais configuram-se à medida que os lances acontecem,

nem antes e nem depois. Daí, não haver como, durante um jogo de azar, vigorarem

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52 ocorrências perenes e definitivamente consolidadas, pois reações pessoais e conjuntura

global de resultados interagem em estado de metamorfose permanente. Todo evento

acontecido numa partida abre nós de problemáticas imprevisíveis, as quais muitas vezes são

sequer resolvidas em função da rapidez com que surgem e somem. “A bolinha de marfim

rolando para a próxima casa numerada, a próxima carta em cima de todas as outras, é (...) o

(...) tempo (...) em que transcorre a existência daqueles a quem nunca é permitido concluir o

que foi começado.” (Benjamin, 1989 a, p. 129). O que existe de contínuo no jogo é seu

aspecto de ruptura, que quebra qualquer linearidade e conclusão definitiva dos

acontecimentos.

Durante uma partida, os estados de ânimo do jogador variam intensamente.

Representações dos mais variados aspectos aparecem e desaparecem de sua imaginação

enquanto jogam, sobrevivendo ao seu término como lembranças de um estágio interrompido.

Vejamos o seguinte depoimento que Benjamin (1989 b), no ensaio Jogo e Prostituição,

seleciona do livro ´O jardim de Epicuro`, do escritor Anatole France, alusivo ao comentário

de um jogador sobre os motivos que o conduzem a jogar:

Tentar a sorte não é uma volúpia medíocre. Experimentar num segundo meses, anos, toda uma vida de medos e esperança não é um prazer sem embriaguez (...) Ora, o que é o jogo senão a forma de provocar, num segundo, as modificações que o destino, de ordinário, só produz em muitas horas e mesmo muitos anos, a forma de reunir apenas num só instante as emoções esparsas na lenta existência de outros homens., o segredo de viver toda uma vida em alguns minutos, enfim, o novelo de linha do gênio? O jogo é um corpo a corpo com o destino... Joga-se a dinheiro (...) o que significa a possibilidade imediata, infinita. Talvez a carta que se vai revirar, a esfera que rola, dê ao jogador parques e jardins, campos e florestas imensas, castelos com pequenas torres pontiagudas erguidas para o céu. Sim, esta pequena esfera que rola contém em si hectares de boa terra e telhados de ardósia, cujas chaminés esculpidas se refletem no Loire; ela encerra tesouros da arte, as maravilhas do bom gosto, jóias prodigiosas, os corpos mais belos do mundo, e mesmo almas que não se acreditava venais, todas as condecorações, todas as honrarias, todos os obséquios

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53 e todo o poder da Terra ... E vocês gostariam que não jogássemos? Ainda se o jogo desse apenas infinitas esperanças, se não mostrasse mais que o sorriso de seus olhos verdes, talvez não o amássemos tão ardorosamente. Mas ele tem unhas de diamante, é terrível; concede, quando lhe apraz, a miséria e a vergonha; é por isso que o adoramos. A atração do perigo é subjacente a todas as grandes paixões. Não há volúpia sem vertigem. O prazer mesclado ao medo embriaga. E que há de mais terrível que o jogo? Ele dá e tira, suas razões não são absolutamente as nossas razões (...) Pode tudo. É um deus. (France, citado por Benjamin, 1989 b, p. 248-249).

Nota-se, diante desse excerto, que o ato de jogar suscita produções imaginárias

deveras fantasiosas. Encontramos conteúdo semelhante em fragmento de uma outra obra

citada por Benjamin (1989 a) em Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, a

saber, ´Os ceifeiros noturnos`, do romancista Edouard Gourdon:

Afirmo que a paixão pelo jogo é a mais nobre das paixões, pois reúne em si todas as outras. Uma seqüência de cartadas de sorte me proporciona mais prazer do que um homem que não joga pode ter em vários anos...Vocês acreditam que eu veja no ouro a que tenho direito apenas o lucro? Enganam-se. Vejo nele os prazeres que me proporciona e me delicio com eles. Chegam-me por demais velozes para que possam me enfastiar e em variedade grande demais para me enfadar. Vivo cem vidas em uma única vida. Quando viajo, é da forma como viaja a centelha elétrica... Se sou avarento e guardo meu dinheiro para jogar, isso é porque conheço bem demais o valor do tempo, para gastá-lo como as outras pessoas. Um prazer determinado que eu me concedesse me custaria outros prazeres... Tenho os prazeres no espírito, e não pretendo outros. (Gourdon, citado por Benjamin, 1989 a, p. 130-131).

O conteúdo de ambas as citações permite que algumas questões bastante peculiares

sobre o comportamento dos jogadores sejam discutidas.

O jogador, quando em situação de jogo, experimenta o tempo de uma maneira

qualitativamente diferente do usual. Enquanto os resultados das partidas não estão

homologados em definitivo, ele avalia a situação de tensão pela qual passa como muito

prazerosa. Todavia, tal avaliação, vista pelo lado das palavras que o jogador adota para

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54 explicar o que sente ao jogar, revela a não racionalidade de suas decisões. Sua conduta

obedece aos imperativos da paixão, e, como tal, em nenhum momento o próprio decide por

uma jogada ou combinação de números ponderando sobre as reais chances matemáticas deles

acontecerem. Sobre essa condição altamente emotiva, Benjamin (1989 b), inspirado em Paul

Lafargue, reitera em Jogo e Prostituição que ela engendra posturas supersticiosas nos devotos

do hábito de jogar, porque estes crêem que, por meio delas, conseguirão conjurar fortuitos

acontecimentos capazes de levá-los ao insucesso ou derrota.

Sucessos e fracassos oriundos de causas inesperadas, geralmente desconhecidas, e aparentemente dependentes do acaso, predispõem o (...) estado de ânimo do jogador (...) O jogador (...) é um ser altamente supersticioso. Os ´habitués`dos antros de jogo têm sempre fórmulas mágicas para exorcizar o destino; um murmura uma prece (...); um segundo só aposta quando uma cor determinada vence; um terceiro segura um pé de coelho com a mão esquerda etc. (ibid. p. 247).

Terminada a partida e conhecido o afortunado que venceu-a, sobram para os jogadores

a memória das cenas que vivenciaram no estado lúdico. Estas perduram até que outra partida

tenha reinício e estimule novamente o desencadeamento de novas fantasias. A

imprevisibilidade dos jogos de azar, insiste Benjamin (1989 b) em Jogo e Prostituição, mais

do que abalizar sensações mistas de deleite e ansiedade pelos resultados que realmente só

serão conhecidos ao final das partidas, concede pistas para que os jogadores sejam

compreendidos em função de outro singelo aspecto dos seus comportamentos: a invocação do

que denomina ´presença de espírito`.

Um jogo é tanto mais divertido quanto mais bruscamente nele se apresentar o acaso (...) Em outras palavras: quanto maior é o componente acaso em um jogo, tanto mais rapidamente ele transcorre. Essa circunstância se torna então decisiva (...) do (...) verdadeiro êxtase do jogador. Este repousa na peculiaridade do jogo de azar desafiar a presença de espírito, ao apresentar (...) constelações (...)

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55 inteiramente novas e originais (...). (Ibid. p. 268).

O que será que Benjamin (1989 b) concebe por presença de espírito? Qual sua relação

com o mergulho do jogador no estado lúdico? No comentário acima, este conceito remonta a

um atributo humano que é conclamado a manifestar-se com toda sua significância naqueles

que jogam, porquanto os mesmos acabam de tal maneira envoltos pelos sinais do fortuito e do

inesperado desfilados nas partidas que procurar decifrá-los torna-se um imperativo. O

exercício desse tipo de leitura, longe de ser um fardo, revela-se determinante para a sensação

de prazer no jogo, cuja experimentação acontece efetivamente no plano carnal do corpo. Um

detalhamento de tal processo nos é melhor oferecido por Benjamin (1995) no texto Imagens

do pensamento, onde, sob o verbete ´O jogo`, o filósofo sugere que a invocação da presença

de espírito pelo ato de jogar é um fenômeno de linguagem:

O jogo, como qualquer outra paixão, dá a conhecer seu rosto como a faísca que salta, no âmbito do corpo, de um centro a outro, mobilizando ora este, ora aquele órgão, e reunindo e confinando nele a existência inteira (...) Este é o prazer concedido à mão direita até que a bolinha caia em seu compartimento. Como um aeroplano, sobrevoa as divisões da roleta, espalhando em seus sulcos as sementes das fichas. Este prazo é anunciado pelo instante, unicamente reservado ao ouvido, em que a bola penetra o redemoinho e o jogador fica à escuta de como a fortuna afina seus contrabaixos. No jogo, que se dirige a todos os sentidos, sem excluir o sentido atávico da clarividência, chega também a vez dos olhos. Todos os números lhes dão piscadelas. Como, porém, os olhos desaprenderam a linguagem dos gestos, no que ela tem de mais decisivo, na maioria das vezes conduzem ao erro os que neles confiam. Naturalmente são aqueles que dedicam ao jogo a mais profunda devoção. Ainda um instante a aposta perdida permanece diante deles. O regulamento os detém. Não é de outro modo que retém ao amante a inclemência daquela por ele venerada. Sua mão, ele a vê ao alcance das dele; nada faz, entretanto, para pegá-la. O jogo tem devotos apaixonados, que o amam por ele mesmo e de modo algum pelo que ele dá. E mesmo que o jogo lhes tire tudo (...) Dizem então: - Joguei mal - E esse amor traz em si a recompensa pelo seu zelo de tal modo que as perdas são suaves só porque, com elas, provam sua coragem para o sacrifício. (Benjamin, 1995, p. 264-265).

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56 As peças, números, cores, ruídos etc. que o jogo movimenta definem um estado de

coisas dinâmico e complexo, no qual o jogador estabelece elos dialógicos com eles. Cabe ao

mesmo procurar decodificar as informações que presume jazerem nos interstícios de cada

combinação de cartas, dados ou bolas em giro. Para Benjamin (1989 b), o jogador assim atua

porque representa ilusoriamente os lances e resultados do jogo como indicadores subjetivos

de algo que ora flerta com ele, ora se esconde, porém é possível de ser antevisto: o destino.

Por meio da leitura atenta destes sinais, o jogador acredita que conseguirá identificar o

momento oportuno no qual os segredos do destino se acham mais susceptíveis de ser

capturados, e, com isso, lhe exibirem, sem maiores embargos, a verdade que ocultam.

Procedidas essas observações, Benjamin (1989 b), à luz delas, revisita o conceito de presença

de espírito com novos elementos:

A proscrição do jogo teria sua razão mais profunda em que um dom natural do homem, que o eleva acima de si mesmo, se voltado para objetivos superiores, o arrasta para baixo, quando voltado para um dos objetivos inferiores – o dinheiro. O dom em questão é a presença de espírito. Sua manifestação suprema é a leitura, que, em todo caso, é divinatória. (Benjamin, 1989 b, p. 269).

O mesmo jogo a dinheiro que leva o jogador ao cume do prazer também acalenta sua

degradação moral e material. Mediando esse desencontro está o emprego equivocado do dom

místico de leitura, que, enquanto atividade do espírito exercida nesse plano, quase sempre

catalisa a segunda situação. Mas quais as propriedades dessa leitura que tanto podem

engrandecer como destruir? Por que, quando exercida no jogo, sob a égide das impressões

subjetivas do jogador, ela destrona? Novamente em Jogo e Prostituição, Benjamin (1989 b)

nos encaminha para algumas possíveis respostas por meio de uma interrogação acerca da

origem dos jogos de cartas: “As cartas divinatórias seriam anteriores àquelas de jogar?

Representaria o jogo de cartas uma deterioração da técnica de adivinhação? Afinal, saber de

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57 antemão o futuro é decisivo também no jogo de cartas.” (Ibid. p. 270).

Na citação destacada, implicitamente percebemos que Benjamin (1989) especula sobre

até que ponto o aprendizado da técnica de leitura, que é divinatória, viria justamente da esfera

lúdica do jogo, mas não dos modernos jogos de azar. Estes seriam resquícios deturpados de

uma outra gama de jogos do passado, em cujo seio os mecanismos desencadeadores da leitura

teriam sobrevivido destituídos da conotação original. Os caminhos de tal leitura não limitam-

se ao reconhecimento textual de sinais gráficos escritos ou pronunciados. Eles envolvem uma

adivinhação, via sinais, do que virá a ser.

Apoiada em adivinhações, Benjamin (1992 a) denomina os princípios dessa técnica de

ler de mágicos ou clarividentes. No texto Teoria das Semelhanças, ela parece ser a forma de

leitura que predominava nos primórdios da humanidade, porque gerenciar o cotidiano, nos

tempos antigos, dependia da tradução do que dizia o posicionamento relativo de estrelas,

vísceras, conchas ou ossos. Esse tipo de decifração clarividente é um indício de exercitação da

faculdade mimética, ou habilidade dos homens de procurar, produzir e achar semelhanças

entre objetos. “Na verdade, não há nenhuma das suas funções superiores que não seja

determinada (...) pela (...) faculdade mimética. Esta faculdade tem (...) uma história (...) no

sentido ontogenético. (...) O jogo é, em muitos aspectos, a sua escola.” (Benjamin, 1992 a, p.

59).

Malgrado o uso do dom mimético ter sido algo determinante para a vida humana em

tempos remotos, e mesmo se mostrar notório nos primeiros anos de vida dos infantes,

Benjamin (1992 a) alerta que a intensidade das forças miméticas e o perfil dos objetos

miméticos varia de época para época histórica. No passado as forças miméticas respondiam

pela instituição de correspondências entre coisas que já não mais vigoram na modernidade,

como, por exemplo, a inter-relação entre as constelações do firmamento e as etapas da vida de

uma pessoa. As estruturas perceptivas do homem de outrora eram de tal modo articuladas que

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58 conseguiam captar semelhanças entre corpos físicos e não físicos por mais instantâneas e

esparsas que fossem. Pouco a pouco, com as modificações técnicas, demográficas, culturais e

sociais da humanidade, a competência mimética pautada na leitura direta dos objetos do

mundo atrofiou-se, mas não sumiu por completo. Ela migrou praticamente na íntegra para o

campo das linguagens falada e escrita.

Desta maneira a linguagem seria a utilização superior da faculdade mimética: um 'medium' no qual as faculdades primitivas de percepção das semelhanças penetraram (...) ela agora representa o 'medium' em que as coisas se encontram e se relacionam entre si, já não diretamente como outrora, no espírito do vidente ou do sacerdote (...) Por outras palavras: foi à escrita e à fala que a clarividência, ao longo da história, cedeu suas antigas forças. (Benjamin, 1992 a, p. 64).

Com a maturação dos tempos modernos, enquanto desdobramentos de prolongadas e

revolucionárias metamorfoses históricas, reduziu-se o alcance da então capacidade perceptiva

humana de identificar misticamente semelhanças físicas e não físicas entre as coisas do

mundo.

Adicionalmente, Benjamin (1992 a) sublinha que o acionamento da faculdade

mimética, seja por meio da linguagem escrita e falada dos tempos recentes da humanidade,

seja na sua antiga forma oracular, depende da instauração de um certo ritmo e velocidade de

leitura, em cuja ausência nem o espírito e nem as semelhanças virtualmente armazenadas nos

interstícios das palavras e coisas ascendem temporalmente. “Assim, a leitura profana – se

quiser ser simplesmente compreensível – partilha com a leitura mágica a dependência de um

´ritmo` necessário (...) que o leitor não pode, de modo algum, esquecer se não quiser ficar de

mãos vazias.” (Benjamin, 1992 a, p. 65).

Portanto, o despertar mimético, seja no jogo ou na leitura, arraiga-se no teor das

situações oferecidas à percepção do indivíduo, na velocidade com que estas lhes são

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59 oferecidas e ao tempo no qual fica concentrado nelas. Se, com o passar das eras, o domínio

da técnica de leitura clarividente dos sinais do acaso na natureza, enquanto forma de desvelar

o destino, regrediu com a migração da faculdade mimética para o campo das linguagens

falada e escrita, por outro lado, o ritmo e o dinamismo dos modernos jogos de azar, embora

compreendidos como sobrevivências do sentido místico originário que o estado lúdico gozava

no mundo antigo, podem outrossim instigar os jogadores a procurarem, via recorrência a

residuais dons divinatórios, semelhanças entre elementos físicos e não físicos, tal qual feito

nos primevos da humanidade.

Retornando ao tema da esperança do ganho de dinheiro no jogo, o fato do jogador não

ser movido pela necessidade de enriquecer monetariamente, mas pelo desejo de postergar sua

permanência no prazeroso estado lúdico, implica ainda um outro leque de questões. A injeção

de dinheiro no jogo realmente amplifica ao nível de eternidade a sensação de prazer verificada

em cada jogada, asserta Benjamin (1989 b). “O dinheiro é o que anima o número (...)”

(Benjamin, 1989 b, p. 270). Todavia, a mobilização da residual habilidade mimética de leitura

nessa perspectiva carreia virtuais conseqüências metaforicamente comparáveis àqueles

reservados pelo inferno judaico-cristão aos incautos: o jogo a dinheiro, por multiplicar a

profusão de imagens, também fragiliza a capacidade do jogador de dominá-las. Não

domesticadas, o jogador corre o risco de ser aprisionado por elas. “O jogo é o equivalente

infernal para a música dos exércitos celestiais.” (Ibid. p. 264).

Muito embora não tenha afirmado isso em nenhum de seus textos, acreditamos que,

para Benjamin, a aposta em dinheiro de qualquer jogador informa o grau de confiança que

ele deposita na confirmação das suas expectativas de ganho previamente formadas, pois as

mesmas, em última análise, fincam-se na precisa habilidade que ele julga dominar para

decifrar as insígnias que o destino lhe mostra. Dessa forma, montantes crescentes de recursos

apostados indicam que cada vez mais jogadores, guiados pela livre escolha, se dispuseram a

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60 adentrar ou investir mais dinheiro no jogo dotados da esperança de serem retribuídos com

volumes superiores de bens e riquezas. Contudo, o que eles não percebem é que a extensão

dos recursos apostados partida após partida, quer pelo aumento do número de jogadores, quer

pela elevação da quantidade de dinheiro disponibilizada, acarreta, nos dois casos, a elevação

do número de partidas perdidas sobre o de ganhas. Isso porque, no primeiro caso, com

levantes maiores de jogadores participando, alargam-se os universos amostrais de resultados

possíveis em relação aos poucos que, de fato, serão efetivados (para cada vitória, multiplica-

se à taxas exponenciais o número de derrotas). No segundo caso, fixado o número de

jogadores, mas elevando-se continuamente o total de dinheiro apostado, mais este acaba

trocando de circunstanciais donos segundo o sucessivo curso das partidas. Comparando-se, no

tempo, o somatório total de ganhos sobre as perdas, conclui-se que predomina uma tendência

desproporcional do aumento destas últimas sobre as primeiras.7

O artista litográfico Alois Senefelder consegue exemplificar com bastante proficuidade

os impactos que o excesso de derrotas significa para o jogador. Num antro de jogo, onde o

vencedor está acompanhado de quatro perdedores, Senefelder mostra que nenhum deles

esboça a mesma reação face ao resultado final. “Cada um está possuído pela (...) paixão: um

por uma alegria irreprimida; outro pela desconfiança em relação ao parceiro; um terceiro por

(...) desespero; um quarto, por sua mania de discutir; outro (...) se prepara para deixar este

mundo.” (Benjamin, 1989 a, p. 127).

Em que pese o poderio de sedução que o jogo exerce, vinculado sobretudo ao

sentimento de êxtase e prazer que desencadeia, Benjamin (1989 b) ainda lembra em Jogo e

Prostituição que, destarte a verificação do contexto anterior, pautado na sobressalência das

7 Essa discrepância entre a quantidade de perdas acumuladas em relação aos ganhos apenas reitera o que

Pascal conceituou como ´justiça dos jogos de azar`, no sentido de que os resultados aferidos a cada rodada são funções matematicamente dependentes do montante apostado, do número de envolvidos e da repetição de partidas. Por causa dessa justeza de proporções, diz o pensador francês, os jogos de azar apresentam mensurabilidade comparável, em termos de exatidão, aos teoremas da geometria euclidiana.

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61 derrotas sobre os ganhos, o jogador jamais considera-o. Compelido por inexplicável fé,

este, mesmo sofrendo perdas, age balizado pela convicção da chegada de um momento em

que, finalmente, ganhará. “Se é a fé no mistério que faz o crente, então há provavelmente

mais jogadores crentes no mundo do que homens de fé.” (Zschokke, citado por Benjamin,

1989 b, p. 264). Por causa dessa fé, ele sempre retorna para outra partida, acreditando que

nela superará todas as perdas. “O recomeçar sempre é a idéia regulativa do jogo (...)”

(Benjamin, 1989 a, p. 129).

Movido por esta pulsão de constante retorno, que não leva em conta ponderações

probabilísticas entre perda e ganho, o aprisionamento do jogador pelas imagens miméticas

que o jogo nele desperta desvia-o, em diversas ocasiões, para estados patológicos além de seu

controle, porquanto a dedicação exclusiva ao mesmo converte-se na inclinação diretora de sua

existência. Benjamin (1989 b) ventila essa idéia iluminando-a com uma colocação de Balzac:

Mas você compreende tudo que haverá de delírio e vigor na alma do homem que espera com impaciência a abertura de um antro de jogo? Entre o jogador da manhã e o jogador da noite existe a diferença que distingue o marido negligente do amante arrebatado sob as janelas de sua bela. Só pela manhã é que chegam a paixão palpitante e a necessidade em seu puro horror. Nesse momento você pode admirar um verdadeiro jogador (...) que não comeu, não dormiu, nem viveu ou pensou, tão duramente flagelado estava pelo açoite de sua combinação vencedora. Nesta hora maldita vocês encontrarão olhos cuja calma assusta, rostos que fascinam, olhares que erguem as cartas e as devoram. (Balzac, citado por Benjamin, 1989 b, p. 271).

A aparição de indivíduos compulsivos por jogo veio, em grande medida, capitaneada

pela proliferação dos cassinos e casas destinadas a esses fins na Paris da primeira metade do

século XIX. Até então, o hábito de jogar não era mais do que um costume nitidamente restrito

aos nobres e aristocratas descendentes do Antigo Regime.8 Benjamin (1989 b) relembra em

8 Sobre um ambiente típico de jogo aristocrático, ver ANEXO III.

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62 Jogo e Prostituição que, paralelamente a esse avanço, emergiram muitas iniciativas dos

poderes públicos franceses almejando regulamentar essa prática. Na prevalência dos casos em

que isso era difícil de fazê-lo, dado algum tipo de dificuldade, a insistência na proibição legal

deu-se indistintamente. Por volta de 1830, a legalização das casas de jogo da avenida Palais-

Royal rendia ao Tesouro francês cinco milhões e meio de francos.9 Estima-se que a

distribuição de concessões compreendiam 55 casas de jogo até mais ou menos 1835. No

entanto, a quantidade de estabelecimentos disponíveis não atendia ao grande número de

jogadores locais e estrangeiros que dirigiam-se para Paris, causando a abertura de espaços

clandestinos, de difícil controle. Esse estado de coisas prolonga-se até 31 de dezembro de

1836, data em que todas as casas de jogo foram declaradas ilegais na França. Com essa

proibição, inúmeros banqueiros de jogo deixaram o país indo explorá-lo, principalmente,

segundo o filósofo, na Bélgica, Monte Carlo e territórios de língua germânica.

Sobre os extremos da compulsividade no jogo, e o que ela pode gerar no jogador,

Benjamin (1989 b) cita um certo Marechal Blücher que, durante o período em que residiu em

Paris, após acumular infindáveis perdas, usou de sua influência para obrigar um adiantamento

de $100.000 francos, contraídos junto ao Banco da França para jogar. Depois que este

escândalo veio ao conhecimento público, Blücher abandonou a cidade desprovido de qualquer

bem, computando inclusive um gasto aproximado de seis milhões depois de caucionar todas

as suas terras. Outro personagem emblemático mencionado pelo filósofo é o príncipe de

Ligne, visto nos clubes de jogo de Paris com grande visibilidade após a capitulação de

Napoleão, e famoso tanto pelas inúmeras derrotas que colecionou como pela elegância com

que aceitava as mesmas. Ou então um certo Chodruc Duclos, assíduo jogador que diariamente

era visto nas imediações da avenida Palais-Royal. Até mesmo Kant, na nota 144 do § 86 de

Antropologia de um ponto de vista pragmático, relata a estória de um rico homem de

9 Sobre a disposição espacial típica de uma casa de jogos da avenida Palais-Royal , ver ANEXO IV.

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63 Hamburgo que, depois de perder fortunas consideráveis em cassinos, continuou a

freqüentá-los somente para ver os outros jogarem. Certa vez, perguntado como se sentia ao

lembrar da riqueza de outrora, respondeu: “Se a possuísse uma vez mais, não saberia um

modo mais agradável de empregá-la.” (Kant, 2006, p. 172).

Sumarizando, deparamo-nos com um complexo panorama cujos limites são a potencial

compulsividade que o jogo pode alavancar; as tentativas de controle, normatização e, nos

casos extremos, supressão das casas de jogo como fato histórico; a observação da

sobressalência matemática das perdas sobre os ganhos, ao longo de uma escala temporal,

tanto sob a forma de dinheiro apostado como resultados contabilizados partida após partida;

as produções subjetivas do jogador envolvendo jogo, destino e riqueza e as intensas sensações

de prazer que a imprevisibilidade do ambiente lúdico engendra. No epicentro do turbilhão,

dialogando com todas essas instâncias, está o jogador e a iminência do desgaste financeiro,

social e moral que o hábito de jogar lhe impõe.

O envolvimento do jogador por esse contexto também recebeu alento na poesia de

Baudelaire. Escrevendo sobre ele no poema O jogo, o poeta retrata a elevada tensão que

cerca os indivíduos em uma sala de jogo enquanto permanecem na expectativa de saber os

resultados.

Nos fanados divãs das cortesãs mais velhas, Pintada a sobrancelha, o olhar langue e fatal, Num esgar, a fazer das pálidas orelhas Tombar um retinir de pedra e de metal; Sobre um verde tapiz, muitos rostos sem boca, Como bocas sem cor, maxilares sem dente, Dedos em convulsão pela febre mais louca, Sondando o bolso roto ou o seio fremente; Sob os estuques vis, fila de frouxos lustres, De candeeiros de mal projetados fulgores Sobre as frontes letais dos poetas ilustres

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64 Que vêm desperdiçar os seus sangrentos suores; Eis o negro painel que num sonho noturno Vi desdobrar-se ao meu olhar claro e curioso. Eu mesmo, num desvão do covil taciturno, Encostei-me a tremer, o mais mudo e invejoso; Desta gente invejava a paixão tão tenace, Destas putas senis o prazer de tristeza Todos a traficar, à minha pobre face, Um o antigo pudor, outro a sua beleza! Eu pasmei de invejar tanta pobre criatura, Correndo ao hiante abismo, e de alma alucinada, Que tem no próprio sangue a embriaguez que procura E que prefere a dor à morte e o inferno ao nada. (Baudelaire, 2005, p. 110).

Baudelaire, bem como Benjamin, além de corroborar a mesma analogia entre jogo e

inferno, focaliza a procura voluntária do jogador pelo abrigo satânico. Em outros escritos,

Baudelaire fornece mais informações sobre sua visão do inferno. No poema ´Oração`,

Baudelaire (2005) reitera o aspecto onírico da figura de Satã:

Glória e louvor a ti, Satã, pelas alturas Do céu em que reinaste, e nas furnas obscuras Do inferno em que vencido és sonho e sonolência! (Baudelaire, 2005, p. 146).

Mesmo que as imagens produzidas no mundo de sonhos de Satã encarcerem

destrutivamente o jogador, Baudelaire (2005) compara-o também a uma entidade salvadora,

no sentido de que a degradação que o jogo traz instiga, por outro lado, o despontar de outras

realidades. Em ´As litanias de Satã`, o poeta demonstra o duplo aspecto do inferno:

Ó tu, o Anjo mais belo e o mais sábio Senhor, Deus que a sorte traiu e privou do louvor, (...) Tu, que és o condenado, ó Príncipe do Exílio, E que, vencido, sempre emerges com mais brilho, (...) Tu, sábio e grande rei do abismo mais profundo,

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65 Médico familiar dos males deste mundo (...) Ó tu, o que da Morte, a tua velha amante, Engendraste à Esperança – a louca fascinante! (...) Tu, que bem sabes onde, nas terras mais zelosas, Cioso Deus guardou as pedras mais preciosas, Tem piedade, Satã, desta longa miséria! (Baudelaire, 2005, p. 144-145).

Como Baudelaire, Benjamin detecta essa duplicidade de Satã. No trabalho sobre as

afinidades eletivas de Goethe, o filósofo assevera que o enclausuramento no inferno de Satã é,

acima de tudo, dialético (Missac, 1998). Reservatórios de ilusão, as demoníacas imagens dos

jogos de azar, continua Benjamin (1989 a), obrigam o jogador a comportar-se igual a um

herói. Entretanto, tal heroísmo em nada obedece aos padrões épicos que tipificam os clássicos

protagonistas das narrativas greco-romanas. “O heróico (...) é a forma (...) em que aparece o

demoníaco.” (Ibid. p. 164) Ele está no fato de que o jogador, sempre insistindo em vencer,

coleciona derrotas, porque a lógica do jogo é a perda. Assim, a procura insidiosa pelas vitórias

não culmina no coroamento dos esforços com os louros dos ganhos, pois, quanto mais joga,

maior a tendência para a ruína. O jogador é alguém deparado com um oponente eternamente

superior, o próprio jogo, o qual não consegue ser superado nem desvencilhado. Isso força-o a

retornar voluntariamente ao seu encontro derrota após derrota, sempre nutrido pela crença de

que, na próxima partida, melhorará sua performance a ponto de suplantá-lo.

A natureza desse heroísmo deriva do paradoxo do jogador suportar com brios o peso

das derrotas de partida em partida sem, contudo, conseguir afastar-se em definitivo de quem

sempre lhe derrotará. Aprisionado nessa espacialidade e temporalidade imobilizadora, da qual

não pode escapar e que obriga a obediência aos seus desígnios, seu esforço é heróico porque

as exortações que deve enfrentar superam em muito suas forças de revertê-las, restando-lhe

tão somente resistir.

A título de complementação, Benjamin (1989 a) lembra em Charles Baudelaire: um

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66 lírico no auge do capitalismo que, destarte não haver indícios de que Baudelaire fosse um

jogador inveterado, sua visível admiração por estes levou-o muitas vezes a render-lhes

palavras de homenagem. Para Baudelaire, a situação dos jogadores de azar eqüivale ao labor

dos gladiadores nas arenas romanas, porquanto, a grosso modo, por mais avassaladores que

sejam os infortúnios sofridos e a ciência de que o anúncio da derrota é o que restará no final,

nem um nem outro capitula.

Dialeticamente, o satânico heroísmo dos jogadores, compreendido entre o

aprisionamento pelo jogo, a não desistência e o constante reingresso em novas partidas,

mostra que a totalidade das perdas que sofrem não permanecem esquecidas, porque sempre

voltam impulsionados pela iniciativa de tentar recuperá-las na próxima aposta. Em outras

palavras, a progressiva ruína vem permeada pela insistência de salvar o imediatamente

perdido, empregando como recurso para tal o dinheiro. “Não haverá uma determinada

estrutura do dinheiro, que somente no destino se faça reconhecer, e uma determinada estrutura

do destino, que se faça reconhecer apenas no dinheiro?” (Benjamin, 1989 b, p. 246). Por esse

lado, o agir do jogador condiz com o de um alegorista comprometido em assegurar, a todo

custo, pela deposição aleatória do dinheiro no movimento das cartas, bolas ou dados de

partidas vindouras, uma sobrevida às imagens daquilo que o estado lúdico lhe mostrou

enquanto estava jogando.

INFÂNCIA, LUDICIDADE E ARTE

O mesmo ímpeto para voltar ao jogo identificado no comportamento do jogador de

azar, Walter Benjamin detecta em outra situação aparentemente sem nenhuma afinidade com

ele, mas que foi foco de suas acuradas observações: as brincadeiras de crianças. Por mais

diferentes que sejam os propósitos norteando as ações de cada um em separado, ambos

comungam desse mesmo aspecto.

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67

Provavelmente (...) nós já teremos vivenciado desde muito cedo (...) em jogos (...) com objetos inanimados (...) a grande lei que, acima de todas as regras e ritmos particulares, rege a totalidade do mundo dos jogos: a lei da repetição. Sabemos que para a criança ela é a alma do jogo; que nada a torna mais feliz do que o ´mais uma vez` (...) E, de fato, toda e qualquer experiência mais profunda deseja insaciavelmente, até o final de todas as coisas, repetição e retorno, restabelecimento da situação primordial da qual ela tomou o impulso inicial. (Benjamin, 2007, p. 101).

Pertencendo ao rol das experiências humanas originárias, a maior parte dos humanos

adultos já desejou recomeçar um jogo depois de arbitrado seu fim pelo fato de, um dia, ter

sido criança e verificado o paroxismo dos estados lúdicos. Antes de prosseguirmos, cabe aqui

um breve adendo. Pelas análises de Di Giorgi (2007), muitos dos trabalhos de Benjamin sobre

o jogar e brincar de infantes tratam essas atividades como símiles, pois o filósofo usa

irrestritamente o substantivo spiele para referir-se a jogos em geral, brincadeiras e mesmo

representações teatrais. Para este autor, a opção por tal vocábulo é propositada, pois a

característica crucial do mesmo está na polissemia de sentidos aos quais remete.

Brincando ou jogando, diz Benjamin, as crianças estão mimetizando, na perspectiva

que lhes cabe, as coisas do mundo. Em Teoria das Semelhanças, o autor afirma: “Na verdade

(...) os jogos infantis estão, por toda a parte, impregnados de formas de comportamento

miméticas e o seu âmbito não se limita (...) à imitação dos adultos. A criança brinca não só

(...) de comerciante ou professor (...) mas moinho de vento ou de comboio.” (Benjamin, 1992

a, p. 59). Recriar o ambiente lúdico no qual se passou pela experiência de mimetizar um outro

diferente de si significa, para a criança, adentrar o seio de uma situação primordial em cujo

contexto ela vê-se coagida a conviver com a alternância de conquistas e renúncias, pois no

mundo fantasioso do jogo a consecução integral de suas aspirações e desejos não é algo

plenamente exeqüível.

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68 A observação de que infantes imitam desde ocupações humanas até elementos

inanimados durante jogos e brincadeiras abre espaço para que, à luz desses atos, outras

questões sejam visitadas. A imitação de comerciante, professor ou moinho supõe o acesso da

criança a essas figuras, que, por outro lado, são situadas histórica e geograficamente, visto que

cada uma corresponde a afazeres e objetos técnicos próprios de uma determinada

configuração social. Ou seja, as matérias primas da ludicidade infantil estão espalhadas pelo

mundo material, cultural e espiritual.

Logo, o nascimento biológico e a subseqüente maturação do indivíduo na infância,

com exceção de raríssimos casos, acontecem no interior de tradições pré-existentes, mantidas

pela atuação das gerações anteriores. Por esse prisma, a infância condiz com um estágio de

transição onde, com o passar dos anos, a determinação biológica dos comportamentos reduz-

se na razão do progressivo envolvimento pela esfera da cultura. No rastro dessa inserção,

ocorre a proporcional capacitação na linguagem, valores, instrumentos, representações e

signos que conferem identidade ao meio social.

Portanto, diversos objetos empregados nas brincadeiras e jogos chegam aos infantes

pelas mãos das gerações antecedentes. Urge ressalvar que tal oferecimento transcende o

espectro meramente parental, dado que também sofre a interferência do nível de sofisticação

técnica existente no corpo social e do grau de dependência que dela possui a administração da

vida coletiva.

Pois (...) assim como o mundo da percepção infantil está impregnado pelos (...) vestígios da geração mais velha, com os quais (...) se defrontam, assim também ocorre com seus jogos. É impossível construí-los em um âmbito da fantasia, no país feérico de uma infância ou arte puras. (Ibid. p. 96).

A título de ilustração, inúmeros artefatos dados pelos adultos para crianças brincarem

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69 tiveram origem na ancestral esfera do culto ao sagrado, como as bolas, pipas, arcos, rodas

de penas, piões e chocalhos. Embora desviados dos propósitos para os quais foram criados,

suas conversões em brinquedos e jogos decorreram da livre atividade da imaginação infantil.

Esse ingrediente é crucial para que, posteriormente, a tradição chancele essa nova função

adquirida. Nos espaços da brincadeira e jogo, o infante reinventa os sentidos das coisas

atribuindo-lhes, por intermédio da imaginação, novas conotações que antes não detinham.

No ensaio Rua de Mão Única, Benjamin (1995) extrapola para o mundo em geral essa

forma de agir, reiterando que a desconsideração desse fato é visível em muitos dos pareceres

que educadores e estudiosos da infância emitem sobre o agir humano nos primeiros anos de

vida.

Elucubrar (...) sobre a fabricação de objetos (...) apropriados para crianças é tolice. Desde o Iluminismo essa é uma das mais bolorentas especulações dos pedagogos. Seu enrabichamento pela psicologia impede-os de reconhecer que a Terra está repleta dos mais incomparáveis objetos de atenção e exercício infantis. E dos mais apropriados. Ou seja, as crianças são inclinadas (...) a procurar todo e qualquer lugar de trabalho onde (...) transcorre a atividade sobre as coisas. Sentem-se (...) atraídas pelo resíduo (...) na construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico, na costura ou na marcenaria. Em produtos residuais reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta (...) para elas (...). Neles, elas menos imitam as obras dos adultos do que põem materiais de espécie muito diferente, através daquilo que com eles aprontam no brinquedo, em uma nova, brusca relação entre si. Com isso (...) formam para si seu mundo de coisas, um pequeno no grande, elas mesmas. Seria preciso ter em mira as normas desse pequeno mundo de coisas, se se quer criar deliberadamente para as crianças e não se prefere deixar a atividade própria, com tudo aquilo que nela é requisito e instrumento, encontrar por si só o caminho que conduz a elas. (Benjamin, 1995, p. 18-19).

Sobre essa forma de agir, Benjamin classifica-a como antinômica, porque, se de um

lado, o infante é capaz de aglutinar materiais com características bastante heterogêneas nas

construções lúdicas, do outro, apenas um simples refugo, por mais simples que seja, é

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70 suficiente para ser reaproveitado criativamente nas suas brincadeiras e jogos. Sempre vale a

pena lembrar que, por mais que os infantes mimetizem situações alusivas ao mundo dos

adultos, não se trata de uma mera reprodução mecânica. “A criança quer puxar alguma coisa e

torna-se cavalo, quer brincar com areia e torna-se padeiro, quer esconder-se e torna-se

bandido ou guarda.” (Benjamin, 2007, p. 93). Na imitação, tanto o real como o corpo são

recriados pela fantasia mediante re-alocações de sons, cores, formatos etc. às demandas

despertadas no território da ludicidade.

O ponto nevrálgico da questão está em que, ao adequar objetos visando a satisfação de

suas necessidades lúdicas, dando-lhes fins adequados para tal, o infante está, a bem da

verdade, intervindo no mundo. Benjamin (2007) insiste que é desse modo que ele absorve a

cultura e adquire costumes da coletividade a qual pertence. “Pois é o jogo, e nada mais, que dá

a luz todo hábito (...) O hábito entra na vida como brincadeira, e nele, mesmo em suas formas

mais enrijecidas, sobrevive até o final um restinho de brincadeira.” (Benjamin, 2007, p. 102).

Em outras palavras, a criança assimila valores e objetos criando ativamente sobre eles,

porquanto apenas assim ela procede suas acomodações. Mesmo no singelo quadro da

modernidade, por mais que a orquestração de brinquedos tenha sido absorvida pela mesma

racionalidade que rege a fabricação de mercadorias, convertendo-os assim em commodities

industriais dotadas de finalidades específicas e formas rígidas, ainda assim a criança consegue

heterogeneizá-los pelo recurso à criatividade.

As orientações dadas pelo pensamento benjaminiano sobre o comportamento infantil

colocam então a criança na posição de agente de uma relação alternativa com o mundo da

cultura e da natureza: tornando-se trens ou moinhos, convertendo porções de seus próprios

corpos em rodas de automóveis ou patas de cavalos, assimilando um galho a uma hélice,

tornando um boneco uma arma fictícia etc. elas estão procedendo uma reativação das coisas

por meio de uma nova atribuição, diferente, em tese, da usual para a qual foram socialmente

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71 designadas. Tal visão oferece uma perspectiva de parcial ruptura com rumos estabelecidos,

porque no desencantado mundo da modernidade, onde o sempre igual irrompe sem parar

travestido de novidade, as crianças pertencem ao rol daqueles que re-encantam, ainda que

momentaneamente, os elementos existentes.

De acordo com Lewandowski (1999), talvez seja esse o grande diferencial da análise

benjaminiana sobre a criança que joga e brinca, porquanto o filósofo reapresenta-a enquanto

agente rompedor das amarras de um futuro aparentemente incontornável. Por esse viés,

Benjamin distancia-se da visão rousseauniana e romântica, responsáveis por conceber a

infância como uma etapa da vida isolada das interferências da conjuntura histórico-social ao

seu entorno.

Pois se a criança não é nenhum Robinson Crusoé, assim também as crianças não constituem nenhuma comunidade isolada, mas antes fazem parte do povo e da classe a que pertencem. Da mesma forma, os seus brinquedos não dão testemunho de uma vida autônoma e segregada, mas são um mudo diálogo de sinais entre a criança e o povo. (Benjamin, 2007, p.94).

Ao olhar o agir infantil dessa maneira, Benjamin, na análise de Matos (1990), acaba

aproximando a criança dos grandes poetas, escritores, coreógrafos e pintores modernos,

porque as atitudes deste perante o percebido não se deixam censurar pela arbitrariedade de

sentidos prévios (detalharemos essa questão mais adiante). Nas suas forma de atuar, frisa a

autora, todos eles demonstram que não há evidências ou pontos fixos pré-determinando o

itinerário do que resolvem produzir, pois movem-se no território da falta de coerência típica

dos que abnegam os critérios de utilidade e finalidade para afirmarem suas verdades.

Extraviados de um mundo esquadrinhado pela racionalidade burguesa, suas livres criações

carreiam espontaneamente ao terreno do agora toda uma combinação de acontecimentos,

lembranças, cenários e contextos concernentes a outros espaços e tempos.

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72 A configuração desse estado de desordem criativa, ausente de determinismos ou

simetria, permite constatar que o reaproveitamento das coisas para além do esgotamento de

sua funcionalidade contribui tanto para retirá-las da predestinação ao esquecimento no

passado como alavancar, dialeticamente, no plano da consciência, a elucidação de questões

bastante densas. O infante, quando retira os significados usuais das coisas, no jogo, dando-

lhes outros com conotações não existentes, não procede com neutralidade e impessoalidade

face ao que está sendo criado. Atuando de maneira semelhante a um alegorista, ele não se

fecha diante da tarefa de ter que protagonizar outros eventuais papéis circunstanciados pelos

efeitos retroativos de criações sobre seu ânimo.

Consoante essa disposição para a versatilidade, dificilmente aquilo colocado em jogo

envereda para a assunção de algum caráter definitivamente estável. Com efeito, o

reconhecimento da incapacidade de se declarar seguramente o que irá suceder instante após

instante em situações com forte acento lúdico endossa que o esteio dos acontecimentos prima

por uma certa atmosfera de mistério e impenetrabilidade. Deparamo-nos então com um

ingrediente que faz, de acordo com Scholem (2006), a brincadeira e o jogo metaforicamente

afins da figura do labirinto, pois nesses a ordem dos eventos não obedece a dogmatismos ou

consensos absolutos.

Ora, tramitar em labirintos significa percorrer e tomar decisões frente a caminhos

desconhecidos quanto ao que reservam. Então, o jogo também pertence ao domínio do

enigma, uma vez que, num labirinto, a opção por uma ou outra rota, em detrimento das outras,

não arraiga-se no domínio de informações exatas sobre o que ocorrerá no próximo momento e

o que, em decorrência, seguiu oculto. Paradoxalmente, eis aí, na interpretação de Scholem

(2006), um quesito profético do jogo, na medida em que esclarece que entre o desconhecido e

o conhecido vigora um ínfimo hiato, arraigado na singela sensação de que algo diverso do

efetivamente acontecido poderia ter sido mas não foi. Ela acontece porque, no fundo, os

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73 subsídios que levam a uma ou outra escolha não são puros e absolutamente retilíneos:

gerados em um mundo estremado por coordenadas falíveis e imprecisas, seus veredictos

revestem-se do estigma da precariedade, porquanto sedimentados em percalços e desvios

abertos ao acaso.

O poeta alegorista em particular, notadamente Baudelaire, demonstra isso na

proliferação heterogênea dos detalhes, dissonâncias, confusões e exageros de escrita em seus

poemas; as crianças, nas surpreendentes reinvenções dos propósitos das coisas, de sua

gestualidade corporal e na fluidez dos papéis que exercem durante o brincar. Tal circunstância

indica, segundo Benjamin, que no plano da diagramação do espaço interno do sentimento e da

inteligência as informações exteriores captadas pelos sentidos estão sendo desorganizadas e

reformuladas pelos extremos da fantasia.

No rico artigo de revisão literária intitulado Problemas de Sociologia da Linguagem,

Benjamin (1992 b) analisa em pormenores essa conjuntura, argumentando que daí podem

emergir subsídios teóricos capazes de elucidar uma série de questões pertinentes ao campo da

linguagem. Segundo o filósofo, o caminho epistêmico das pesquisas na filosofia,

antropologia, lingüística, psicologia e etologia, sugere que, à vista do modo como os animais

superiores interagem uns com os outros, a aparição e uso dos recursos inteligentes de fala e

sinalização brotam do ajuste de gestos motores pessoais com estímulos ambientais afetivo-

reativos. As repercussões nascidas dessa combinação fazem com que o aparecimento da

linguagem infantil desponte como pista chave para a reconstituição da ontogênese da

linguagem humana. Indiretamente, o jogo e a brincadeira acabam adentrando essa discussão,

por se tratarem de atividades intrínsecas e corriqueiras do modo de ser infantil. Essa restrição

precisa ser tida em conta, caso contrário pouco se esclarecerá sobre o aparecimento da

linguagem em geral.

Para explicitar como o desenrolar das atividades lúdicas típicas da infância lança luzes

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74 elucidativas sobre as origens da linguagem, Benjamin recorre aos trabalhos experimentais

de Piaget e Wygotski lembrando que, ao longo dos primeiros anos de vida, as repetidas

perturbações dos estados de estabilidade emocional e corporal ocasionadas por fatores

ambientais externos em crianças abalizam a aparição de sons e expressões vocais não

direcionadas a ninguém e sem transmissão de conteúdos. Esse tipo pueril de articulação vocal-

sonora, egocêntrica por definição, erige-se muito antes do amadurecimento formal das

estruturas de raciocínio lógico-cognitivas. Ou seja, as etapas mais adiantadas do pensamento

abstrato vêm a posteriori de uma anterior base lingüística surgida livre de atributos

comunicativos. Com a continuidade das freqüentes ações de desestabilização interior,

seguidas da restituição de novos níveis de equilíbrio, estabelecem-se os fundamentos do

pensar e o paulatino encerramento da emissão subjetiva de expressões sem maiores

literalidades.

Como fica então, à luz dessas interpretações benjaminianas de Piaget e Wigotski, a

questão dos contatos inter-geracionais entre adultos e crianças no panorama do jogar e do

brincar enquanto fatos culturais? Por elas, ambos são agentes desencadeadores de

desequilíbrios e novos equilíbrios. As adaptações lúdicas que os infantes engendram no corpo

e nos objetos para solucionar problemas que lhes instigam e abalam, em termos cronológicos,

já ocorrem desde o berço, muito antes dos primeiros esboços de maturação dos aparelhos

sonoro e vocal, observa Benjamin. Com base no pressuposto de que a cientificação dessa

característica é empiricamente confirmada nas observações sistemáticas dos dois cientistas

acerca do comportamento das crianças, o filósofo afirma que há de se convir que expressões

auditivas e bucais de sons não deixam de ser, em tese, um prolongamento gestual de ações

corporais motoras.

Contudo, as fases de um gesto proposicional manual, transpondo-se

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75 nas fases correspondentes de um gesto proposicional (...) bucal, podem preservar muito tempo intacto o sentido concreto do original (...) Assim, a articulação como gesto do aparelho lingüístico relaciona-se como o conjunto da mímica do corpo. O (...) elemento fonético é portador de uma comunicação cujo substrato original era uma gesticulação expressiva. (Benjamin, 1992, p. 225-226) [b].

A admissão de que a palavra procede de elementos mímicos reitera o relativo

distanciamento de Benjamin das teorias que associam os primórdios da linguagem às ações

onomatopaicas de extrapolação direta dos sons do mundo em vocábulos. Gesto, fala e

componente vocabular escrito são, nessa ordem, manifestações sucessivas, cumulativas, auto-

complementares e não excludentes enraizadas no mesmo aspecto humano que sustenta a

imitação na brincadeira e jogo: a faculdade mimética. O poeta Mallarmé, com rara

perspicácia, soube detectar a riqueza desse fato.

A isto podemos acrescentar uma palavra de Mallarmé, que pode servir de motivo para A Alma e a Dança de Valéry. ´... a dançarina não é uma mulher [que dança, pelos motivos justapostos pelos quais ela não é uma mulher], mas uma metáfora resumindo os aspectos elementares da nossa forma: luta, golpe, flor, etc. [e que ela não dança, sugerindo pelo prodígio de uma síntese (...) com uma escrita corporal, aquilo que necessitaria de parágrafos em prosa dialogada, ou descritiva, para se exprimir, em termos de redação: poema libertado de todo o aparelho de escriba.` (Ibid. p. 226-227).

Pelo exemplo de Mallarmé, um mesmo fenômeno ou objeto pode assumir

expressividades diferentes dependendo da base lingüística onde se situa. Fazendo eco aos

dizeres do poeta, temos os trabalhos do filólogo Rudolf Leonhard, os quais advogam que

efeitos sonoro-auditivos desencadeados por recursos de fala e palavra pouco se aproximam

dos deflagrados pelas formulações lingüísticas não vocabulares (o contrário também é

verossímil). Ou seja, em seus relativos espectros de abrangência, conteúdos expressos numa

determinada combinação lingüística jamais são carreáveis na íntegra para outras combinações,

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76 mesmo com grande conversibilidade de termos entre ambas.

É um fato notável, e que indica com que extraordinária lentidão se produz a evolução humana, que o homem civilizado não tenha ainda renunciado a utilizar os movimentos da cabeça e das mãos como meio de expressão do seu pensamento (...) Quando é que aprenderemos a utilizar esse admirável instrumento que é a voz com tanta arte e razão que possamos dispor de uma série de sons tendo a mesma riqueza e perfeição? É certo que não fizemos ainda uma tal aprendizagem (...) Todas as produções da literatura e da eloqüência não passaram até agora de formas elegantes, engenhosas, elementos lingüísticos formais ou fonéticos que, por seu lado, são completamente selvagens e incultos, tal como se formaram de modo natural sem nenhuma ação consciente da humanidade. (Leonhard, citado por Benjamin, 1992 b, p. 229).

Tanto Mallarmé como Leonhard concordam que os modos de emprego da linguagem

são infinitos e ontologicamente diferenciados, tornando seus plenos conhecimento e

desenvolvimento ainda bastante superficiais. Quanto a isso, o lingüista Kurt Goldstein fornece

mais alguns subsídios capazes de enriquecer o debate:

O que nós vimos é a aparição da linguagem nos casos onde ela não tem senão valor de instrumento. Mesmo no homem normal, pode acontecer que a linguagem apenas seja utilizada como instrumento. (...) Mas esta função instrumental supõe que, no seu princípio, a linguagem representa qualquer coisa de completamente diferente (...) A partir do momento em que o homem usa a linguagem para estabelecer uma relação viva como ele próprio ou com seus semelhantes, a linguagem já não é instrumento, não é um meio; é uma manifestação, uma revelação da nossa essência mais íntima e do laço (...) que nos liga a nós próprios e aos nossos semelhantes. (Goldstein, citado por Benjamin, 1992 b, p. 228-229)

De toda essa exposição, iniciada com considerações de Piaget e Wigotski e finalizada

com Goldstein, entremeada pelos comentários de Mallarmé e Leonhard, pode-se extrair

algumas conclusões parciais. Primeiramente, a linguagem é composta de múltiplos recursos

sujeitos a sofrerem modificações temporais, tanto em função de metamorfoses no

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77 desenvolvimento pessoal do indivíduo como no curso dos acontecimentos históricos ao seu

entorno. Entretanto, cada recurso lingüístico possui capacidades formais expressivas e

representativas diferenciadas, e, portanto, características e alcance peculiares. Os usos

comunicativos marcadamente instrumentais que todos nós fazemos ao conversar ou informar

conteúdos nada mais são do que uma ínfima fração do montante de empregos que a

linguagem pode ter, visto haverem indícios de manifestações suas desprovidas de qualquer

viés utilitário mesmo depois de atingida a etapa dominada pelo componente vocabular falado

e escrito. Finalmente, o que dizer da singela situação das crianças imersas em ambiente de

jogo? Elas, com todas as idiossincrasias que o mergulho nos estados lúdicos alavanca,

apontam a cultura como o meio onde tais eventos têm vez.

Muito embora não seja explicitado, a linha de raciocínio de Benjamin em Problemas

de Sociologia da Linguagem organiza os principais acontecimentos relativos à gêneses da fala

e escrita dentro de um percurso com notável acento genealógico, pois coloca-os numa

transição unindo passado e futuro. Reflexões mais detalhadas sobre essa trajetória aparecem

em outro ensaio denominado Sobre a Linguagem em Geral e sobre a Linguagem Humana.

Nele, o autor assevera que todos os entes do mundo, vivos e inanimados, partilham entre si a

condição de serem dotados de linguagens. O cosmos adquire assim a possibilidade de ser

pensado como totalidade cortada por fluxos lingüísticos com diferentes intensidades e relativa

autonomia em relação ao elemento humano.10

Todas as manifestações da vida (...) podem ser concebidas como uma espécie de linguagem, e esta concepção (...) perspectiva em geral outras questões. Pode falar-se de uma linguagem da música, da plástica, da justiça que, de uma forma imediata, não é idêntica à linguagem em que as sentenças judiciais são redigidas, sejam elas em alemão ou em inglês; pode falar-se de uma linguagem da técnica que

10 A pressuposição de que a natureza das coisas do mundo reduz-se a um ou mais códigos de linguagem

antepara o pensamento de diversas correntes da tradição rabínica judaica. Isso é possível porque o princípio espiritual do universo, derivado no Verbo divino decantado no Livro do Gênesis, antecede a matéria.

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78 não é idêntica à dos técnicos. Neste contexto (...) é (...) a comunicação através da palavra apenas um caso particular, subjacente a conteúdos humanos ou que nele se baseiam (justiça, poesia, etc.). Mas a existência da linguagem não se estende apenas por (...) domínios de manifestação espiritual do homem que (...) contêm sempre língua (...), mas acaba por estender-se (...) a tudo. Não há acontecimento ou coisa, seja na natureza animada, seja na inanimada que, de certa forma, não participe da linguagem. (Benjamin, 1992 c, p. 177).

O que aguardar então do sem número de linguagens que cortam o cosmos? Quais

conteúdos elas veiculam? Para Benjamin, toda linguagem, sem exceção, carreia a essência

espiritual das coisas que lhe correspondem. Tal transmissão é proporcional à consistência

interna de seus fundamentos estruturais, o que quer dizer que as potencialidades expressivas

de cada uma, vistas comparativamente, variam entre si.

No caso do gênero humano, um fator a mais precisa ser levado em conta: a fala. Ela

constitui o elemento preponderante de sua linguagem, e é essa circunstância que leva-o a ter

uma existência única. A exclusividade desse recurso dá a ele, e a mais nenhuma outra espécie,

a capacidade de designar objetos e representações. Portanto, apenas tal linguagem pode

nomear, diz Benjamin em Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana.

Aplicados às coisas, os nomes transmitem o teor das suas essências espirituais. Pelo lado do

homem, denominar representa a atividade factual responsável pela comunicação de sua

própria essência espiritual.

Isto é, o homem comunica a sua (...) essência (...) na (...) linguagem (...) por palavras (...) denominando todas as outras coisas. (...) Não se objecte que não conhecemos outra linguagem (...) designadora além da do homem. (...) Designar para quê? A quem se comunica o homem? Mas esta questão no homem será diferente das de outras comunicações (linguagens)? A quem se comunica o candeeiro? E a montanha? E a raposa? A resposta é a seguinte: ao homem Além disso: se o candeeiro, a montanha e a raposa não se transmitissem ao homem, como os denominaria ele? Mas denomina-os; ele comunica-se, denominando-os. (Benjamin, 1992 c, p. 180-181).

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A denominação de objetos ocorre porque o universo e o elemento humano comungam

de uma certa identidade lingüística. Esse comunhão, insiste Benjamin, exibe a singela posição

metafísica do homem no cosmos, pois ao mesmo tempo em que pertence ao rol de seres

criados pela demiurgia divina decantada no mito do Gênesis, apenas ele, dentre todos, obteve

a graça para nomear. No Gênesis, Javé originou tudo pela profissão da palavra, exceto Adão,

feito de terra. Ele constitui o único exemplo, na história da Criação, de uma entidade feita de

insumo material, cuja compensação foi o dom da linguagem falada e escrita. Depois dessa

outorga de competência, Javé retirou-se para repousar.

A descendência de Adão fica então confirmada como a continuadora do trabalho de

Javé. “A criação empreendida por Deus atinge sua perfeição, na medida em que as coisas

recebem o seu nome do homem, do qual, no nome, só a linguagem fala.” (Ibid. p. 182).

Todavia, isso não quer dizer que a palavra humana substitua o Verbo divino. O filósofo

explicita isso com base no que entende como a ´fórmula da criação`, dedutível do primeiro

capítulo do Gênesis. Segundo ela, o advento das origens decompõe-se num esquema

lingüístico de três termos: Seja – Ele fez (criou) – Ele chamou. Desencadeadas com um ´Seja`,

as coisas vão paulatinamente surgindo no ritmo de uma processualidade criativa que agrega

constituição e denominação. Indicador de onipotência criativa divina, o vocábulo `Seja` é o

termo responsável pela determinação, em nomes, dos entes (Merquior, 1969).

Esse primeiro aspecto não denominador do Verbo retrata a coisa em si, e escapa a

qualquer possibilidade de entendimento ou compreensão. A face dela reconhecível limita-se

ao que obteve chancela nominal. Por que isso? Viu-se que a libertação do potencial da

linguagem por parte de Javé, no homem, seguiu-se ao contingenciamento deste em terra.

Logo, sublinha Benjamin, enraizada em restrições materiais, ela não é incomensurável, mas

mediatizada a priori. Longe de ser imagem direta e perfeita da realidade, a linguagem

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80 humana, quando nomeia, apenas reflete a face designatória do Verbo. “O nome (...) é a

comunidade do homem com a palavra criadora de Deus. (Não é a única, e o homem conhece

ainda outra identidade lingüística com a palavra de Deus.) (...) Porque Deus criou as coisas, a

palavra criadora neles contida é o germe do (...) cognoscível.” (Benjamin, 1992 c, p. 188-

189).

Percebe-se então que a porção dos entes do mundo identificável pelo intelecto

humano, igualmente receptível aos epítetos que confere, depende justamente da maior ou

menor afinidade que ele nutre com a moldura nominativa que àqueles receberam no momento

da criação divina. “O homem (...) dá à natureza (...) o nome depois da comunicação que dela

recebe, porque também toda a natureza é percorrida por uma linguagem (...) resíduo da

palavra criadora de Deus, que se manteve no homem como nome cognoscível.” (Benjamin,

1992 c, p. 196). No fundo, declara Benjamin, o que o homem faz é simplesmente

sobredenominar os objetos outrora criados pela palavra de Javé nos primórdios. Por mais que

o Verbo e o homem encontrem-se no poderio mútuo para nomear, não há como, para o

filósofo, essa similitude ser perfeita, porque o primeiro age liberto de cerceamentos, enquanto

que o segundo, desde Adão, atua preso ao espaço e tempo, simbolicamente representados pelo

contingenciamento em terra.11

Encontramos mais alguns comentários esclarecedores de Benjamin sobre essa

capacidade humana para denominar em certos trechos de Passagens. Num deles, o filósofo

deixa a entender que Baudelaire foi alguém que soube usá-la com extrema sagacidade,

reportando-se, para isso, ao prefácio que o escritor, crítico literário e amigo Théophile Gautier

escreveu para este último na edição de 1863 das Flores do Mal:

11 Scholem (1994) arvora que, perante essa restrição, a Queda do Paraíso tende a ser inevitável para a

humanidade, pois sua constituição erige-se sobre determinações apriorísticas que, em algum momento, discernirão valorativamente o Bem e o Mal. Se, por um lado, o pecado original inaugurado pela ingestão do fruto proibido é conseqüência não contornável da condição humana, por outro, ele corrobora, para o autor, a inseparabilidade entre linguagem, ética e educação.

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Sua maior glória, escreveu Théophile Gautier (prefácio à edição <das Fleurs du Mal> de 1863), ´será ter feito entrar nas possibilidades do estilo séries de coisas, de sensações e de efeitos inominados por Adão, o grande nomeador.` Ele nomeia ... as esperanças e os pesares, as curiosidades e os temores que se agitam nas trevas do mundo interior. (Benjamin, 2006, p. 352).

Baudelaire nomeia com precisão porque imagina, e é o recurso à imaginação que

permite-lhe ver com extrema acuidade as correspondências miméticas entre os objetos e as

palavras. “A imaginação é uma faculdade quase divina que percebe ... as relações íntimas e

secretas das coisas, as correspondances e as analogias.” (Benjamin, 2006, p. 330).

Imaginando, Baudelaire reinventa as palavras e os significados, como o infante que refaz os

sentidos dos objetos ao brincar. “A imaginação ... decompõe toda a criação e, com os

materiais recolhidos, e dispostos segundo regras cuja origem não podemos encontrar senão no

mais profundo da alma, ela cria um mundo novo, produz a sensação do novo.” (Ibid. p. 335).

Em Imagens do pensamento, Benjamin fala novamente desse vínculo entre imaginação

infantil, divindade e ludicidade ao se lembrar de um jogo comum entre as crianças da época

Biedermeier, cujo ponto de partida eram as palavras ´rosquinha`, ´pena`, ´pausa`, ´queixa` e

´futilidade`. A tarefa de cada jogador consistia de articulá-las em um texto conciso sem alterar

essa ordem. Quanto mais curto o texto, tanto mais notável seria a solução.

Esse jogo fomenta os mais belos achados, sobretudo junto às crianças. Ou seja, palavras (...) são como cavernas, entre as quais conhecem curiosas linhas de comunicação (...) Isso se torna palpável, sobretudo, nos textos denominados religiosos (...) E, de fato, frases que no jogo uma criança forma com palavras têm mais afinidade com as dos textos sagrados que com as da linguagem corrente dos adultos. Eis um exemplo que uma criança (no seu décimo segundo ano de vida) forma ligando as palavras acima: “O tempo se lança através da natureza feito uma rosquinha. A pena colore a paisagem, e se forma uma pausa que é preenchida pela chuva. Não se ouve nenhuma queixa, pois não há nenhuma futilidade.” (Benjamin, 1995, p. 272).

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Sumarizando, a situação do homem guarda uma característica paradoxal, pois, dentre

todos os outros seres criados, apenas ele herdou o dom da nomeação, cujo termo inicial

remonta à pureza divina do Verbo de Javé, criador do cosmos. Nenhum outro consegue

reproduzir a criação e perpetuação nominal de coisas. Por outro lado, o arsenal lingüístico que

dispõe para conduzir tal empreendimento coincide com sua limitada condição existencial, o

que, em comparação com a abrangência e a potência eterna do demiurgo, restringe o que pode

alcançar. Depreende-se que a linguagem do homem tão somente imita a palavra criadora: ele

não vai além de providenciar a recuperação, no plano finito, de uma tarefa originariamente

infinita. Tomando-se o poeta Baudelaire na qualidade de um nomeador de primeira estirpe, a

riqueza estética de suas criações é proporcional ao modo com que relaciona-se ludicamente

com o teor das palavras e das coisas, tal qual uma criança brincando.

Essa conversão de um contexto em outro, de acordo com Benjamin, eqüipara-se a um

procedimento de tradução. Contactar coisas, investigá-las e traduzi-las em nomes significa

movê-las de suas linguagens singulares para a humana. Uma transposição desse tipo

necessariamente valoriza as primeiras, pois enriquece-as com qualificativos que não detinham

e que apenas o homem pode lhes oferecer. “A tradução da linguagem das coisas na do homem

(...) é (...) a tradução (...) do que não tem nome no nome. É (...) a tradução de uma língua

imperfeita numa mais perfeita (...) nomeadamente o conhecimento. Porém, a objetividade

desta tradução tem o aval de Deus.” (Benjamin, 1992 c, p. 189). Após o recolhimento em

linguagem humana, as coisas saem do silêncio e acabam indexadas, no que tange à sua

visibilidade, a uma situação existencial superior.

Antes de prosseguirmos, urge esclarecer algumas questões sobre essa análise

benjaminiana do teor das linguagens. Concordamos com Merquior (1969) que ela goza de

uma inegável textura teológica, mas nem por isso a reflexão peca pela ingenuidade dos

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83 argumentos ou autoritarismo dogmático. O foco de Benjamin é a insistência na distância

entre o Verbo e a faculdade humana de nomeação: em nenhum instante a palavra humana é

exposta como nascida de epifania. A referida distância, ao invés de ser usada para justificar

uma inegável fragilidade da linguagem do homem, invoca justamente a inesgotabilidade do

real e o movimento incessante do espírito humano para apreendê-lo e traduzi-lo. Sob esse

ângulo, linguagem é energéia, ou, atividade dinâmica e auto-poiética que estabelece

horizontes e fronteiras para si na tradução que faz em si dos entes do mundo. Os nomes que

efetivamente recebem, enquanto indicadores de potência lingüística consumada em ato, são os

mediadores da ampliação dos universos conhecidos e da originação de novos.12

A exercitação humana da linguagem remete, assim, a um movimento de produção

incessante dela mesma. As inúmeras denominações científicas, maquínicas, ideográficas,

artísticas, jurídicas, religiosas etc. comprovam factualmente esse dinamismo. Embora todas

incidam sobre domínios espirituais específicos, Benjamin dedica especial atenção às

linguagens artísticas, sugestionando sua superioridade sobre as demais para traduzir a

natureza.

Há uma linguagem plástica, da pintura, da poesia. Da mesma forma que a linguagem da poesia assenta na linguagem humana dos nomes, ainda que não apenas nela mas, de qualquer modo, também nela, assim também é pensável que a linguagem da plástica ou, talvez, da pintura, assentem em determinados gêneros das linguagens das coisas, de forma que nelas se encontra a tradução da linguagem das coisas, numa linguagem infinitamente mais elevada (...). (Benjamin, 1992 c, p. 195).

12 Os primeiros esboços de uma teoria tratando a linguagem como energéia, ou atividade produtora,remontam

aos trabalhos do romântico Wilhelm Von Humboldt. Ao adaptá-la para os propósitos de seus estudos sobre digressões da palavra humana em analogia com o Verbo divino, Benjamin está tanto antecipando a revogação que mais tarde Jakobson fará da tese saussuriana do significante puramente arbitrário como apontando a possibilidade do pensamento humano formar-se em obediência à uma gramática generativa e transformacional, hipótese essa que é a coluna dorsal das correntes da lingüística contemporânea inspiradas em Chomsky.

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84 Por que essa valorização das linguagens artísticas? O que o artista possui de único?

Consoante Gagnebin (2005), Benjamin enxerga no legítimo artista alguém que busca

incessantemente e de maneira voluntária o novo. Esse novo não é substância material, e sim

uma constante metamorfose das maneiras de olhar o mundo, porque os verdadeiros artistas,

caso se prendessem a certezas estanques, bloqueariam a auto-renovação das estruturas

perceptivas, mnemônicas e imaginativas das quais dependem a captação, gravação e figuração

do real em obras de arte. Procurar a revisão consciente das doutrinas e conceitos orientadores

de seu agir, com vistas à flexibilizá-los, ou até mesmo dissolvê-los, significa abertura para

outras possibilidades de aprender e mobilizar o diferente. Sem isso, a tradução estética da

realidade no formato mais engrandecido da obra de arte torna-se empreendimento com

validade e fidedignidade questionáveis.

O renascimento do mundo nesse mérito maior da arte dialoga assim com um duplo

movimento de aquisição e desapego, pelo artista, de determinados valores, convicções e

técnicas. A intensidade dessa troca revela-se fundamental para que o ato tradutivo avance em

qualidade e sofisticação. As peças teatrais de Sófocles re-escritas por Hölderlin, assinala

Benjamin, superam as versões similares dos demais dramaturgos exatamente por serem muito

mais do que transposição de vernáculos. Sua vitalidade incontestável deriva, acima de tudo,

da complexa teia de comentários, asserções, interpretações e divagações depositados nas

entrelinhas dos originais (Roberts, 1982).

Benjamin cita Hölderlin não por acaso. Assim como Baudelaire, ele tipifica o artista

que teve necessidade de reaprender a escrever, falar, avaliar e comparar sob pena de, caso em

contrário, não conseguir dar conta de revisitar e criar obras. Hölderlin não furtou-se a

desconcertar o patamar de estabilidade conceitual à sua disposição, onde achava-se

relativamente estável, para ampliar o entendimento da visão que tinha do autor grego. Houve

a renúncia de uma postura imóvel, engessada em certezas, em prol da aquisição de uma nova

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85 fala, um novo palavreado, enfim, um novo aparato de linguagem. Nesse sentido, o

investimento de Hölderlin na assimilação de competências que até então não tinha exibe

traços de um comportamento com certa dose de infantilidade, pois, sem pejoração, o marco

fundador em que, pela primeira vez, sujeito e aprendizado da linguagem penetram-se e

examinam-se aos extremos não é outro senão a infância.

Na visão de Agamben (2005), filósofo comentador de Benjamin, o ser humano sem

infância não passa de natureza inerte. Não há como os indivíduos viverem fora da história,

porque todos têm de aprender a falar e tornarem-se falados numa infância que não pode ser

universalizada ou antecipada. Interessa notar que essa infância não é apenas cronológica, pois

experiência e infância não antecedem a linguagem, mas são suas condições originárias,

fundantes. A humanidade (condição de ser humano) inexiste sem elas, e sem elas, não há

sujeito que possa falar (ou ser falado). Em certo sentido, Agamben (2005) ainda nos lembra

que estamos sempre aprendendo a falar (e a ser falados), nunca sabemos falar (ou somos

´sabidos` pela linguagem) de forma definitiva, jamais acaba nossa experiência na e da

linguagem. Nessa medida, permanecemos fadados à infância. Quando acreditamos tudo

dominar e perdemos a curiosidade de saber algo novo, convertemo-nos em natureza. Caso

negligenciemos a experiência da infância, diz o autor, seremos repetição invariante,

normalidade imodificável; assumindo-a, ratificamo-nos como interrupção e reinício,

inventividade e versatilidade; enfim, historicidade plena.

O autêntico artista não deixa esmorecer em si essa atmosfera desconstrucionista e

reconstrucionista típicas da infância. De um ponto de vista teórico, as colocações de Agamben

(2005) sobre o pensamento de Benjamin abrem campo para a introdução de novos elementos

nas reflexões sobre a arte enquanto vetor de transformação social. Mesmo sem mencionar

diretamente, Agamben (2005) acaba trazendo ao lúmem certos tópicos discutidos por

Benjamin em um tímido artigo de 1928, intitulado Programa de um teatro infantil proletário.

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86 Nesse texto, Benjamin (2007) oferece algumas pistas sobre o aspecto revolucionário

da conexão entre produção artística e infância. Para tal, vai ao livro Schriften über Kunst

(´Escritos sobre Arte`), do crítico Konrad Fiedler, usando como exemplo emblemático a

pintura. “Nós sabemos – para falar apenas da pintura – que o essencial, (...) nessa forma de

atuação infantil, é o gesto.” (Benjamin, 2007, p. 116). O diferencial nas análises de Fiedler,

segue Benjamin, reside na perspicácia de demonstrar que o grande pintor não vê de modo

mais naturalístico, poético ou extático do que outras pessoas. Ele apenas observa mais

intimamente com a mão o que foge ao olhar, isto é, consegue transmitir a inervação

receptadora dos músculos óticos à inervação inventora da mão.

Inervação criadora em correspondência precisa com a receptiva, eis todo gesto infantil (...) enquanto preparação de requisitos teatrais, pintura, recitação, música, dança (...). Em todas elas a improvisação permanece como central; pois (...) é a constituição da qual emergem os sinais, os gestos sinalizadores. (Ibid. p. 116).

O improviso do artista alude então a uma maneira de romper com o convencional sem

abdicar totalmente do que ele oferece, porque o pincel, a caneta, a espátula, o papel, a tela e as

outras ferramentas que deve empunhar e manusear corporalmente para expressar sua

imaginação também são produtos alocados na história. Mesmo os conteúdos de suas criações,

atualizados sob forma de poemas, peças, gravuras, estátuas etc. nascem do recolhimento de

informações e linguagens localizadas no fluir do cotidiano. Essa gestualidade improvisadora é

igualmente profética porque, mesmo em sua feição microscópica, confirma a possibilidade da

história ser revirada de dentro através da atividade do sujeito sobre os elementos lingüísticos,

materiais, ideológicos, semióticos etc. disponibilizados no espaço e tempo. Afinal de contas,

improvisar presume retirar alguma coisa de contexto e pô-la noutro, com alteração funcional

de papéis e sentidos. Uma improvisação quebra, portanto, com a monotonia e padronização

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87 uniformizadoras por meio de certa irreverência, informalidade e ausência de censura diante

dos objetos, fatos esse que ratificam sua familiaridade com o jogo. “Ela representa (...) aquilo

que o carnaval representava nos antigos cultos. O mais alto converte-se no mais baixo (...)

assim como em Roma, nos dias saturnais, o senhor servia ao escravo. Novas forças (...) vêm à

luz (...) nessa selvagem libertação da fantasia (...) no jogo.” (Benjamin, 2007, p. 118).

Consumada como manifestação de um comportamento infante pelo artista, com tudo o

que isso implica, a obra de arte reflete o movimento de tradução das linguagens imperfeitas e

mudas da natureza em outras mais elaboradas. Tal conversão de universos lingüísticos

demanda a participação de determinadas habilidades e disposições improvisadoras, visto que,

guardadas as proporções, ela segue a lógica de um peculiar jogo de ´quebra-cabeças`, onde, ao

contrário do homólogo com o mesmo nome, não existe total e perfeito encaixe de peças. A

improvisação criativa é crucial para o preenchimento dos hiatos surgidos entre os desacordos

de suas arestas e, por conseguinte, para a qualidade do produto final. Esse duplo exercício de

desconstrução e reconstrução de mundos, lúdico por si mesmo, pode ser igualmente

compreendido como imagem do dinamismo transformador da história, e, nessa circunstância,

contribuir para efetivar análises sobre o que aguardar da arte em se tratando da temporalidade

mítica da modernidade. Isso será feito a seguir.

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88 CAPÍTULO II

CULTURA, ESTÉTICA E POLÍTICA

Na seção anterior, vimos que a não acomodação do artista no que se refere às

influências, critérios de criação e técnicas de trabalho representa um quesito seminal para que

ele consiga realizar a tradução da linguagem insonora da natureza na linguagem estética da

obra de arte. Isso pode ser também entendido como uma necessidade de explorar

indefinidamente sua capacidade de aprendizado.

De acordo com Gagnebin (2005), esse movimento pode ser interpretado como um

enfrentamento da possibilidade de auto-estagnação mediante a efetivação de uma constante

busca, em espaços universais, do que é ausente ou limitado no aspecto particular,

acompanhada de uma respectiva filtragem de tudo aquilo que foi descoberto. Para Benjamin,

tal temática permeia um dos principais textos fundadores da reflexão estética na modernidade:

o ensaio Le peintre de la vie moderne, de Baudelaire.

Para Benjamin, Baudelaire revela-se bastante original no modo com que trata o

problema, porque, evitando análises academicistas, considera-o com um sentido concreto. O

poeta apresenta o artista moderno enquanto alguém que, para criar, precisa oscilar entre o

ensimesmamento solitário e a imersão no cotidiano das multidões. Em função desse trânsito

entre ambientes tão distintos, dificilmente não se acha nas suas criações um tom de exagero e,

nos casos mais extremos, delírio.

O corolário disso é a verificação de que a plasticidade e versatilidade estéticas

emergem como uma característica preponderante do artista moderno. Baudelaire deixa isso

claro na seguinte citação, extraída de Le peintre de la vie moderne:

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89 Pode-se igualmente compará-lo a um espelho tão imenso quanto essa multidão; a um caleidoscópio dotado de consciência que, a cada movimento, representa a vida múltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida. É um ´eu` insaciável pelo ´não-eu`, que a cada instante o revela e exprime em imagens mais vivas que a vida, sempre instável e fugidia. (Baudelaire, 2006, p. 4)

Contudo, Baudelaire admite que esse mergulho ´caleidoscópico` nas massas deixa o

artista exposto a influências tanto opostas como complementares: de um lado, adentrar o ir e

vir delas a fim de colher subsídios que serão depois trabalhados nas suas reproduções significa

sujeitar sua percepção ao recebimento de múltiplos estímulos, muitas vezes além de sua

capacidade de captá-los na íntegra. De outro, o mesmo precisa travar uma luta consigo mesmo

para refazê-los na obra antes que desapareçam da lembrança. Em suma, sua movimentação

obedece às exortações de duas tendências distintas. Uma delas é a temporalidade moderna das

aglomerações urbanas e da linha de montagem capitalista, onde levantes de coisas trocam de

posição com imensa velocidade; a outra, a do combate contra o esquecimento das informações

que absorveu de suas submersões no cotidiano. Perante esse cenário, Baudelaire situa o dia a

dia do artista moderno como o de uma figura submetida ao crivo da vontade de duas entidades

míticas: os deuses Cronos e Mnemósine.

Cronos personifica os processos de metrificação e racionalização do tempo, cujo ápice

acontece justamente no contexto da época moderna. Filho mais novo de Urano, o céu, e Géia,

a terra, pertence ele à primeira geração de seres celestiais, os titãs, anteriores aos Olímpicos.

Narra o mito que Cronos, depois de tramar com sua mãe, envolveu-se em árdua batalha com o

pai intentando tomar seu lugar no céu. Saído vitorioso, proclama-se senhor do mundo e decide

desposar sua irmã Réia, contrariando a predição de seus genitores que dessa união incestuosa

nasceria um descendente capaz de destroná-lo de sua posição. Para evitá-lo, Cronos

sucessivamente gerava e devorava os filhos recém-nascidos, até que um dia, enganado por

Réia, não conseguiu comer um deles, Zeus, que, fugindo para Creta e lá crescendo, retornou

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90 anos depois para destituí-lo, finalmente cumprindo a profecia. Como Cronos, o tempo

medido e contado numericamente tanto pode fecundar a vida como acelerar a sua destruição.

Com relação a Mnemósine, ela simbolizava a memória para os gregos. Enquadrada

pelos mitógrafos na categoria das titânidas, pois igualmente nasceu de Urano e Géia, os rituais

celebrando-a ocorriam num manancial localizado diante do Oráculo de Trofônio, na região da

Beóscia. Grimal (2000) registra que nesse mesmo lugar, porém em outra fonte, os beóscios

rendiam homenagens a Lete, deusa do esquecimento. Acreditava-se que a água da fonte de

Lete vertia do Hades, tendo os condenados que bebê-la para apagar as lembranças

remanescentes da vida terrena.13 Lete veio ao mundo por intermédio do ventre de Éris, a

discórdia, que integrava a familia das Erínias, um grupo de gênios alados formados das gotas

de sangue caídas de Urano durante o combate com Cronos. “Assim como as Moiras (o

destino), elas eram originalmente as guardiãs das leis da natureza (...) física e moral (...), e por

isso puniam todos aqueles que ultrapassassem seus direitos à custa dos de outrem, quer entre

os deuses, quer entre os homens.” (Chevalier & Gheerbrant, 2002, p. 376).

Nos poemas homéricos, as Erínias são investidas da função de reparar faltas cometidas

contra os laços de família e a tradição. Por exemplo, o crime premeditado de Altéia contra

Meleagro foi inspirado por elas como vingança pelo fato de Meleagro ter provocado a morte

dos tios. Das Erínias também vieram as múltiplas desgraças que assolaram os familiares de

Agamenon, como conseqüência do sacrifício de Ifigênia. Também elas estimularam Orestes a

castigar Climnestra depois desta matar o marido. No mais, o anúncio da maldição que

assolaria Édipo após o assassinato de Laio e o casamento com Jocasta deu-se por uma delas.

Em suma, o que extrair de todo esse panorama? O desenrolar da narrativa mitológica

exposta, tomando-se por base a colocação inicial de Baudelaire de que o processo criativo do

artista moderno é governado, em termos figurados, pelas influências de Cronos e Mnemósine, 13 Pelo mesmo motivo, Platão, na sua doutrina da metempsicose, advertia que todas as almas encarceradas nas

prisões do Hades necessitavam ingerir tal líquido antes de regressarem à vida encarnadas em um novo corpo.

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91 permite-nos chegar a algumas constatações. As relações entre essas duas entidades míticas,

segundo o caminho que trilhamos, são mediadas por personagens coadjuvantes que, sempre

quando focalizados em particular, invocam logo a seguir a sugestiva presença de algum outro

ou outros imediatamente próximos. Ou seja, a forma como Cronos e Mnemósine interagem

dá-se no bojo de uma complexa trama cujo desenrolar chama a constante participação de

elementos adjacentes. Cada um desses elementos protagoniza papéis que não se bastam em si

mesmos, sempre remetendo ao envolvimento de algum outro. Guardadas as proporções, esse

aspecto bastante singelo da trama exemplifica com alguma propriedade a essência do conceito

de alegoria. “A alegoria é (...) pluralista e não monista (...). Sua maneira de reportar-se ao todo

consiste em aludir sem cessar ao outro.” (Merquior, 1969, p. 106).

Ainda que a afinidade da arte moderna com a alegoria realmente mereça destaque por

se tratar de importante descoberta no campo da história da arte, Benjamin acaba re-

aproveitando esse vislumbre baudelaireano para estruturar um empreendimento muito mais

grandioso e original, a crítica dos fundamentos que suportam os saberes na modernidade. De

acordo com Merquior (1969), o ponto de partida do filósofo é a premissa de que só a profunda

e irrefreada penetração do sujeito no objeto possibilita o mapeamento dos recônditos da

cultura:

O ´espírito objetivo` já não pode ser rastreado de maneira muito confiante na transparência da intenção que animou seus passos (...) O método (...) de Benjamin aspira a uma ´desmedida entrega ao objeto`, porém essa crescente aproximação da coisa pelo pensamento torna o espaço objetivo estranho, estranho à própria intenção que se pensara fundá-lo: só assim a crítica descobrirá os segredos da realidade subterrânea da cultura.” (Merquior, 1969, p. 102).

Semelhante procedimento orientava a leitura dos antigos textos cifrados do

Renascimento e do Medievo. Em termos epistêmicos, eles e as produções da cultura eram

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92 concebidos como miniaturas de mundos mais amplos. “A exegese de Benjamin, o hábito

(...) de tomar o texto (ou o objeto cultural de maneira geral) por um microcosmo, por um

´speculum mundi` (...) parece pertencer ao universo analógico dos intérpretes medievais ou

renascentistas.” (Merquior, 1969, p. 103).

Portanto, por este raciocínio, a alegoria moderna condiz então com um determinado

estágio temporal do juízo, do conhecimento e da cultura. Como a crítica da cultura deve então

se portar? Que diretrizes seguir? Benjamin insiste que o realmente inovador para ela remete a

perquirir, no tempo que testemunha a produção da obra de arte, o perfil do tempo correlato

que lhe circunda, conhece e avalia.

Ora, o objeto alegórico, justamente por causa de sua constante remissão a algum outro

contexto, reveste-se de polissemia. Com isso, não se consegue extrair de sua interpretação um

resultado estável, decisivo e acabado. Portanto, sem precisão, ele é incompatível com o

encaminhamento de procedimentos racionais monistas. “O acontecimento é significativo, mas

seu pleno significado (...) não é ´dado` de uma vez por todas – o acontecido significa mais de

uma coisa. Em conseqüência, significado aberto e polissemia coincidem.” (Ibid. p. 110).

Incompleta, a estética do alegórico dissona de boa parte dos resultados a que as

investigações filosóficas desde Kant sobre a obra de arte chegaram. O estranhamento causado

pelo anacronismo da alegoria envereda para a formulação de suspeitas contra a radicalidade

da arte moderna, centradas no argumento de que o abstracionismo suspende o sentido. Mas no

fundo, diz Merquior (1969), a profusão e substituição de detalhes no objeto alegórico

contrariam a intenção dos saberes norteadores do contemporâneo moralismo socialista ou

liberal, defensores da plenitude de um movimento da humanidade para os diferentes télos que

colocam.

Assim, com a alegoria benjaminiana, a obra de arte e os produtos da cultura assumem

a condição de exemplares de problemas epistêmicos sem, contudo, deixarem de ser

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93 averiguados no que guardam de singulares em si mesmos. Logo, o modo mais profícuo de

discorrer sobre suas interfaces com o entorno cultural e o estado presente do conhecimento

existente acaba sendo, para Benjamin, o ensaio filosófico. Uma definição concisa e ao mesmo

tempo bastante abrangente desse gênero de escrita, realçando seus principais pontos, nos é

dada por Lukàcs:

O ensaio fala sempre de algo já formado ou (...) de algo que já foi, em outra ocasião; pertence à sua essência não extrair coisas novas do vazio, mas ordenar, de maneira nova, coisas que em algum momento, já foram vivas. E como se limita a reordená-las, em lugar de dar forma a algo novo partindo do informe, acha-se vinculado a essas coisas, tem que dizer sempre ´a verdade` sobre elas, e exprimir sua essência. (Lukács, citado por Merquior, 1969, p. 113).

A técnica ensaística prima pela busca do universal através do escrutínio do particular

condensado na criação cultural e artística, desviando-se assim das doutrinas dominantes desde

Platão, segundo as quais o mutável e o efêmero são indignos de investigação filosófica. Com

ela, apaga-se a distinção entre a metafísica, enquanto filosofia primeira, e uma até então

secundária filosofia da cultura.

Urge destacar que, malgrado o ensaísmo privilegiar a descrição como eixo

estruturador da reflexão filosofante, nem por isso ele converge para a pura descritividade

fenomenológica que busca conciliar a apoditicidade das essências com o material concreto,

afirma Merquior (1969). Sabe-se que para Husserl, a fenomenologia é uma operação de

descrição da estrutura específica do fenômeno por uma consciência cuja intencionalidade

constitui as suas significações. A colocação das coisas do mundo e da crença nelas entre

´parênteses` é um pré-requisito metodológico para se chegar ao terreno maior da consciência

pura e das atividades por ela realizadas, independente dos objetos visados por ela existirem ou

não. Apenas depois de alcançada essa etapa é que ocorre a reflexão transcendental, capaz de

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94 levar o eu ao conhecimento fidedigno que recupera o mundo.

Em se tratando das relações entre fenomenologia e história, Zilles (2007) informa que

Husserl também enfatizou a necessidade de se colocar entre ´parênteses` a concepção das

ciências modernas sobre o mundo e a cultura. A ciência deve ser vista como uma determinada

práxis histórica. “A vida moderna, sua consciência científica e cultural, é apenas uma entre

outras possíveis.” (Zilles, 2007, p. 221). A redução fenomenológica seria uma forma de

impedir que formas culturais historicamente criadas, como a ideologia do progresso ad

infinitum, fossem hipostasiadas como a priori. Daí, a pergunta forçosa: o que então realmente

perdura na constituição do mundo para Husserl? A subjetividade transcendental, conclui

Zilles (2007). “A subjetividade transcendental é absoluta e se manifesta com suas estruturas

essenciais no processo (...) da história.” (Ibid. p. 221).

A perspectiva de Benjamin envereda para um outro caminho, conforme nos revela o

seguinte trecho extraído de Passagens:

É importante afastar-se resolutamente do conceito de “verdade atemporal”. No entanto, a verdade não é – como afirma o marxismo – apenas uma função temporal do conhecer, mas é ligada a um núcleo temporal que se encontra simultaneamente no que é conhecido e naquele que conhece. Isso é tão verdadeiro que o eterno, de qualquer forma, é muito mais um drapeado em um vestido que uma idéia.

A verdade (o drapeado) remete assim a um contexto embasado em um fundo de

linguagens e conceitos (o vestido) que lhes servem de suporte, os quais podem ser lidos por

aqueles que tenham a necessária presença de espírito para decodificar seus sinais com

acurácia, como o faz o jogador de cassino com os dados e cartas. Por outro lado, o formato

dos vestidos tende a sofrer mudanças no transcorrer do tempo devido ao aparecimento de

novos tipos de tecido, novos modos de costura, alterações nos padrões de corte, atualização da

moda, reviravolta das demandas sociais, etc. Agregando a si esses novos ingredientes, ele

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95 pouco a pouco assume um perfil mimético diferente daquele que possuía, o que se reflete

no contorno imagético dos drapeados, de maneira que nuanças outrora despercebidas podem

passar ao primeiro plano do olhar ao preço da ocultação de outras que até então eram

evidentes. Ou seja, o aspecto deste não é indissociável do estado geral do vestido. Em

Passagens, encontramos um outro fragmento que versa sobre essa questão:

O que distingue as imagens das “essências da fenomenologia” é seu índice histórico (...) Essas imagens devem ser absolutamente distintas das categorias das ciências do espírito (...) O índice histórico das imagens, diz, pois, não apenas que elas pertencem a uma determinada época, mas que elas só se tornam legíveis numa determinada época. E atingir essa “legibilidade” constitui um determinado ponto crítico específico do movimento em seu interior. Todo presente é determinado por aquelas imagens que lhe são sincrônicas: cada agora é o agora de uma determinada cognoscibilidade. (Benjamin, 2006, p. 504).

Colocadas essas informações, podemos agora visualizar com mais nitidez o que

efetivamente separa a descrição ensaística benjaminiana da fenomenológica: a opção pelo

mergulho filosófico nos termos lingüísticos de fato usados pelos escritores para redigir as

ficções (poesias ou prosas), pois eles são o tecido que abriga as imagens e verdades contidas

nestas. Apenas o envolvimento subjetivo com estes termos permite o acesso do intelecto à tais

imagens e verdades. Portanto, as premissas do ensaio benjaminiano, segue Merquior (1969),

condizem com uma criticidade alternativa que não se mede pela envergadura conceitual com

que consegue tematizar os conteúdos e assuntos convencionalmente abarcados pela teoria

social. Sua radicalidade está na maneira como é formulada, alheia a idéia de que o discurso

filosófico, para alavancar transformações, precisa do abstrato espírito de sistema. Em outras

palavras, esse modelo de ensaio não se dispõe a esquadrinhar o objeto via teoria, porque tal

caminho, que é o da sistematização formal, periga encurtar o espaço e a mobilidade do

pensamento inovador; para não cair no equívoco de engessar e empobrecer a compreensão do

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96 objeto cultural, ele volta-se metodologicamente para uma sempre aberta revisão de si e

daquilo sobre o qual discorre, anteparado no pressuposto alegórico deste último.

Visto de outro modo, a propositada abertura interpretativa da linguagem do ensaio

benjaminiano como meio de recortar o objeto e exibir seus contornos mais íntimos por

intermédio do retorno incessante às suas minúcias condiz muito mais com a natureza

polissêmica e fragmentária da alegoria do que o excessivo rigor das doutrinas sistemáticas. O

ensaísmo crítico de Benjamin, procurando reproduzir lingüisticamente o polimorfismo do

objeto alegórico, corrobora-se como discurso de conhecimento compatível com uma imagem

do Todo que não é mais mediação universal absoluta. Isto quer dizer, por outros mecanismos,

que a proposta do ensaio benjaminiano continua a coadunar-se com os grandes problemas da

filosofia moderna; sua diferença está na recusa em procurar explicações generalizantes

derivadas de fenômenos determinados, como o fetichismo da mercadoria ou a práxis do

proletariado. A totalidade, para Benjamin, aparece dialeticamente nos panos de fundo

dinâmicos de cada objeto histórico trabalhado pela crítica.

Consoante os comentários de Adorno (1992), Benjamin revigora o princípio da ´omnis

determinatio est negatio`, de Spinoza.14 É a livre comparação que franqueia o acesso às

profundezas do objeto e legitima a abordagem epistemológica.

No capítulo introdutório de Origem do drama barroco alemão, Benjamin adapta essa

consideração ao mundo das idéias, advertindo que estas não são passíveis de apresentação 14 O princípio ´omni determinatio est negatio` (´toda determinação é negação`) supõe que qualquer realidade

possui uma outra que lhe é alheia. Essa última constitui algo como um ´a partir de fora`, contra o qual os elementos constitutivos daquela primeira se confrontam. Assim, não se pode negar a relevância desse ´fora` enquanto elemento componente de sua estruturação interna (Mora, 2001). No livro Passagens, Benjamin chega a sugerir a adaptação desse princípio como base para uma proposta metodológica de investigação dialética da história cultural: “É muito fácil estabelecer dicotomias para cada época, em seus diferentes ´domínios`, segundo determinados pontos de vista: de modo a ter, de um lado, a parte ´fértil`, ´auspiciosa`, ´viva` e ´positiva`, e de outro, a parte inútil, atrasada e morta de cada época. Com efeito, os contornos da parte positiva só se realçarão nitidamente se ela for devidamente delimitada em relação à parte negativa. Toda negação, por sua vez, tem o seu valor apenas como pano de fundo para os contornos do vivo, do positivo. Por isso, é de importância decisiva aplicar novamente uma divisão a essa parte negativa, inicialmente excluída, de modo que a mudança de ângulo de visão (mas não de critérios!) faça surgir novamente, nela também, um elemento positivo diferente daquele anteriormente especificado.” (Benjamin, 2006, p. 501).

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97 direta: sua apreensão esbarra numa vasta arquitetura de conceitos, exemplificações,

divagações etc. reunidos sob elas. “Pois idéias não são representáveis em si mesmas, mas

única e exclusivamente em uma combinação de elementos concretos no conceito: como

configuração desses elementos (...) Idéias estão para objetos como constelações para as

estrelas.” (Benjamin, 1998, p. 34-35).

Disposto a encurtar o hiato que separa o intelecto humano da esfera das idéias, o

ensaio benjaminiano abandona a técnica da exposição corrida e explícita de argumentos por

uma densa engenharia de citações, excertos e pareceres. Cabe ao crítico agregar todo esse

material e deixar que a montagem resultante fale por si. Parafraseando o filósofo, as

verdadeiras surpresas da linguagem capazes de arrebatar o leitor e deixá-lo estupefacto,

exatamente como os bandidos que saltam dos galhos das árvores na estrada e rendem as

carruagens, brotam dos interstícios dessa bricolagem. Na exposição ensaística, radicalidade

filosófica e aguçamento da crítica social caminham de mãos juntas.

Sobre o aspecto multifacetado do ensaio, Adorno (1981) ainda acrescenta que essa

estratégia de Benjamin objetiva eqüiparar-se ao estilo dos grandes nomes da arte moderna.

Muito dessa convicção deve-se ao papel que a leitura de Kafka desempenhou junto à

Benjamin, no sentido de que, frente à violência e os absurdos do mundo, urge adotar medidas

que levem os poderes institucionalizados a mostrarem-se como tais. “Não foi resignação que

Kafka apregoou, mas, antes disso, o mais eficaz modo de ação contra o mito: astúcia.”

(Adorno, 1981, p. 269). Benjamin assimilou a astúcia kafkiana não como arte e crítica cultural

imbuídas da missão de descortinar um rumo ideal para a humanidade, um sentido positivo de

realidade, como Lukács procurou descortinar, mas sim na dissecação minuciosa da miséria do

existente com toda sua pujança. Nas profundezas do projeto estético benjaminiano, assume

Adorno, mora a esperança de que, se o mundo for mostrado com toda a sua carga de violência

e totalitarismos, efeitos de choque poderiam ser gerados elidindo um sentimento comunitário

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98 de indignação contra a injustiça.

Nessa virtual contribuição estética da arte moderna para a libertação do homem,

reaparece a sombra do jogo de azar, pelo fato dele igualmente representar, em sentido

figurado, um dínamo produtor de choques e traumas (os comportamentos corporais

automatizados e reflexos dos jogadores nas mesas de apostas, como vimos, são o testemunho

carnal desse acometimento). O que Benjamin acaba propondo é um aproveitamento dialético

desse princípio para a causa política da emancipação humana. Não apenas a escrita de Kafka,

mas o teatro de Brecht, o romance de Proust, o surrealismo, o dadaísmo, a fotografia, o

cinema e a fundadora poesia de Baudelaire constituem vetores a serem empregados nessa

empreitada. Adorno (1981) sintetiza a questão dessa maneira: “Especificamente, toda arte

moderna pode ser considerada uma tentativa de manter a dinâmica da história viva através da

magia, provocando uma sensação de horror que se faça sentir como choques paralisantes, por

retratar a catástrofe do a-histórico de forma tal que, repentinamente, promova a aparição de

sua face arcaica.” (Adorno, 1981, p. 58). Discutiremos tal questão, com acentos mais

específicos, na seção adiante.

ESTÉTICA DO IMPACTO E EMANCIPAÇÃO

Em artigo de 1934 denominado Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de

sua morte, Benjamin dedica-se a explorar os meios pelos quais, para o crítico da cultura

atento, a literatura de Kafka anuncia-se como inovadora. No universo literário kafkiano, o

burocrata de Estado aparece como alguém com uma vida decrépita e eivada de escuridão

existencial. Como exemplos, temos o juiz de direito que todo dia trancafia-se no sótão de casa

depois de chegar do trabalho, ou o secretário executivo que despacha isolado na solidão de

seu quarto de castelo; ambos retratam esse personagem tão desgastado do dia a dia da

modernidade. Muitas vezes, Kafka desloca o mesmo traço decadente para personagens

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99 tipicamente subalternos, como porteiros e empregados, e serviçais. Mas são as figuras

paternas os elementos mais repulsivos da ficção kafkiana.

O pai é a figura que pune. A culpa o atrai, como atrai os funcionários da justiça. Há muitos indícios de que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são idênticos para Kafka. Essa semelhança (...) é feita de estupidez, degradação e imundície. (...) A imundície é de tal modo um atributo dos funcionários que eles podem ser vistos como gigantescos parasitas. Isso não se refere, naturalmente, às relações econômicas, mas às forças da razão e da humanidade, que permitem a esses indivíduos sobreviver. Do mesmo modo, nas estranhas famílias de Kafka, o pai sobrevive às custas do filho, sugando-o como um imenso parasita. Não consome apenas suas forças, consome também seu direito de existir. (Benjamin, 1994, p. 139-140).

Entre as instituições familiares e o corpo da administração pública estatal, Kafka

enxerga similitudes ímpares. Tanto uma como a outra deixam poucas esperanças de salvação

para seus membros, mesmo os mais corretos. Os únicos personagens da galeria kafkiana ainda

possuindo alguma oportunidade de salvação são os ajudantes, os estudantes, os vigaristas

urbanos, os loucos e os inábeis. Vivendo à penumbra, aparecendo e sumindo de cena como

que feitos de névoa, eles circulam entre todos os grupos sem, contudo, pertencerem a nenhum

em específico. Benjamin compara a natureza cambiante desses seres ao herói épico Ulisses.

Homero descreve Ulisses, ou Odisseus, na condição de um dos mais inteligentes

combatentes da guerra de Tróia. Seus conselhos e táticas de batalha foram fundamentais para

que os gregos saíssem vitoriosos de muitos confrontos. A idéia da construção do grande

cavalo de madeira que penetrou em Tróia carregando guerreiros escondidos nas entranhas

constitui o mais famoso dos ardis desse grande guerreiro. Entretanto, sua estatura física

causava surpresa por ser bastante inferior a dos demais legionários. Muitos mitógrafos

comparam o tamanho de Ulisses ao dos anões. Propositadamente, interpreta Benjamin, o

paradoxo de uma grande sagacidade vivendo nos limites de um diminuto e franzino corpo

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100 infantil não só representa a principal chave para a compreensão da sina dos personagens

merecedores de salvação no mundo de Kafka como também o retrato de suas convicções

sobre a modernidade.

Na ´Odisséia`, Homero nos conta que Ulisses ordenou à sua tripulação que tapasse os

ouvidos com bolas de cera para não escutar o fatal canto das Sereias, e depois amarrasse seus

braços e pernas no mastro da nau. Mesmo que implorasse, seus marinheiros estavam

proibidos de desfazer as amarras. Em um determinado momento, ouviu a melodiosa voz

desses seres marinhos e sentiu um incontrolável desejo de lançar-se ao mar, no que foi

imediatamente impedido. Abaladas com o fracasso, as Sereias, do alto dos rochedos onde se

encontravam, atiraram-se às águas e lá acharam a morte.

Benjamin frisa que Kafka goza de esperteza tão grande como Ulisses; porém, diante

dele, essas entidades mistas de mulher e peixe provavelmente silenciariam a voz. Tal

mudança de atitude decorreria da subversão que sua literatura operou no gênero narrativo.

Uma coisa é certa: Kafka (...) está na fronteira do mito e do conto de fadas. A razão e a astúcia introduziram estratagemas no mito; por isso, os poderes míticos deixaram de ser invencíveis. O conto é a tradição que narra a vitória sobre esses poderes. Kafka escreveu contos para os espíritos dialéticos quando se propôs narrar sagas. Introduziu pequenos truques nesses contos e deles extraiu a prova de que ´mesmo os meios insuficientes e até infantis podem ser úteis para a salvação.` (Benjamin, 1994, p. 143).

A escrita de Kafka prima por toda uma série de inflexões e idiossincrasias provindos

do teatro. Esse competente enovelamento abre margem para intermináveis reflexões,

porquanto questiona a solidez das fronteiras que separam literatura e encenação. Nesse ponto,

Kafka firma-se como crítico da cultura, uma vez que seus textos exploram zonas pouco

conhecidas e convidam a incessantes revisitações, citações e traduções de si mesmos.

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101 Podemos ir mais longe e dizer que muitos estudos e contos (...) de Kafka só aparecem em sua verdadeira luz quando transformados, por assim dizer, em peças (...). Somente então se perceberá claramente que toda a obra de Kafka representa um código de gestos, cuja significação simbólica não é de modo algum evidente (...); eles só recebem essa significação depois de inúmeras tentativas e experiências, em contextos múltiplos. O teatro é o lugar dessas experiências. (...) Assim, os gestos dos personagens kafkianos são excessivamente enfáticos (...) e extravasam para um mundo mais vasto. (Ibid. p. 146).

Essa transcendência dos personagens para outro mundo além dos limites textuais

existe porque Kafka singulariza cada um deles enquanto atores que apenas auto-interpretam

papéis. E que papéis são esses? As próprias vidas que levam. “Está absolutamente excluído

que eles sejam o que representam.” (Ibid. p. 150). Em outras palavras, os valores que

normalmente a sensibilidade dos autores transpõe para os escritos ficcionais, perenizando-os

na personalidade dos protagonistas que criam, não se vê em Kafka, pois, de acordo com

Benjamin, o formato de seu universo literário segue a linha de um grande teatro do mundo:

por detrás de cada personagem, encontra-se alguém contratado para atuar nesses palcos

interpretando as mesmas funções que exerce no cotidiano. Mas por que isso? Qual o motivo

dessa aproximação? Benjamin assim responde:

Representando seus papéis, os atores procuram um abrigo no teatro (...) como os seis atores de Pirandello procuram um autor. Para uns e outros, a cena constitui o último refúgio, e não é impossível que esse refúgio seja também a salvação. A salvação não é uma recompensa outorgada à vida, mas a última oportunidade de evasão oferecida a um homem, como diz Kafka, ´cujo crânio bloqueia... o caminho`. A lei desse teatro está numa frase escondida no Berich für eine Akademie (Relatório à academia): ´... eu imitava porque estava à procura de uma saída, por nenhuma outra razão.` (Benjamin, 1994, p. 150).

A dimensão mimética do teatro insurge assim como uma possibilidade de desvio na

direção salvadora de um outro real pelas vias da ludicidade, do mesmo modo como a criança

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102 evade do mundo real recriando seus matizes nos espaços da brincadeira. Curiosamente,

ainda em Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte, Benjamin lembra

que no texto de ´Amerika`, uma importante obra de Kafka cujo tema central é o convite a um

homem de nome Karl Rossman para que integre uma companhia de teatro ao ar livre situada

na cidade de Oklahoma, há um momento em que os atores que nela aceitaram ingressar são

colocados em um grande banco recoberto com toalha branca para serem celebrados. O

ambiente dessa celebração é caracterizado como uma quermesse ou festa de infantes, o que de

certa forma invoca a alegria, o cenário e a fantasia reinantes nessas ocasiões como atributos

típicos de quem acha no mimetismo inerente ao brincar e jogar tanto o eixo diretor como a

salvaguarda de suas existências.

A original alteração que a literatura de Kafka estabelece nas relações entre autor, obra

e leitor, afirma Benjamin, está para o gênero narrativo assim como a proposta de Brecht de

reformulação do teatro épico está para o mundo dos palcos modernos. Afinal de contas, este

último jamais escondeu sua preocupação em tentar modificar os padrões interativos entre

público e palco, diálogos e representação, direção e atores.

No trabalho Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht, Benjamin (1994)

apresenta e discute as seis prerrogativas conceituais delineadas por Brecht como os pontos de

partida para a consecução desse empreendimento: 1) o palco, outrora entendido como um

´círculo mágico`, eqüivale a uma sala de exposição, diagramada em ângulos favoráveis; 2) o

público que freqüenta as salas de teatro possui interesses que devem ser satisfeitos; 3) a

representação, enquanto interpretação virtuosística do texto, cai para um segundo plano,

passando a ser uma forma de gestão das possibilidades intrínsecas desse de chamar outras

questões; 4) o texto deixa de constituir um fundamento inviolável orientador da ação dos

atores, ascendendo como roteiro de trabalho onde se registram transformações necessárias; 5)

o diretor não é um instrutor de atores que apenas fornece informações visando obter efeitos,

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103 mas um expositor de teses diante das quais posições precisam ser assumidas; 6) o ator

converte-se num minucioso investigador de papéis e personagens, de modo que sua diagnose

emerge como requisito da representação.

A satisfação dessas premissas, na visão de Brecht, é fulcral para que o teatro épico

adapte-se às circunstâncias da vida moderna sem perder a sua característica de, desde a Grécia

antiga, ser um teatro de consciência incessante, viva e produtiva. “Essa consciência permite-

lhe ordenar experimentalmente os elementos da realidade, e (...) no fim desse processo (...) o

teatro épico presta homenagem, de forma dura e pura, a uma prática socrática.” (Benjamin,

1994, p. 81).

O aspecto socrático do moderno teatro épico de Brecht está no chamado às massas

para que ela, atores, direção e cenários engajem-se num amplo processo reflexivo com

finalidades de auto-aprendizagem coletiva. Tal postura, na ótica de Benjamin, instaura um

rompimento com a visão disseminada pela burguesia dos espetáculos teatrais enquanto

diversão ou passatempo. A hegemonia da crítica especializada termina fragilizada com essa

proposta, pois a participação ativa das massas retira de suas mãos os ´segredos` que julgava

deter.

No momento em que a massa se diferencia através de debates, de decisões responsáveis, de tomadas de posição bem fundamentadas, no momento em que a falsa e mistificadora totalidade ´público` começa a fragmentar-se (...) - nesse momento, a crítica sofre o duplo infortúnio de ver desvendada a sua função de agente e (...) se converte, voluntária ou involuntariamente, em representante do que os antigos chamavam de ´teatrocracia`: tirania das massas, baseada em reflexos e sensações, que constitui o contraste mais completo com as decisões das coletividades responsáveis. (Benjamin, 1994, p. 87).

A adesão voluntária e consciente das massas, continua Benjamin, pode ser um ponto

de partida para inovações que, em grande medida, excluirão as idéias não realizáveis pela

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104 conjuntura dominante da sociedade moderna. O sentimento de comunhão gerado amplifica

a capacidade delas reconhecerem a si mesmas nos gestos, pausas e ritmos dos atores com o

necessário distanciamento que precede a perplexidade e a subseqüente busca de saídas para

dilemas. Por esse viés, no rastro dos debates e discussões que suscita, o teatro épico eterniza-

se nos comentários, lembranças e remissões de todos aqueles envolvidos comunitariamente na

sua processualidade. “A tarefa maior da dimensão épica é exprimir a relação existente entre a

ação representada (...) e o comportamento teatral, que mostra essa ação. (...) Tais formulações

podem evocar (...) a significação e a aplicabilidade social da dialética.” (Ibid. p. 88).

Pelas palavras de Benjamin, todos os eventos levados a cabo no espaço do palco,

desde a passagem do texto até ensaios, envolvendo direção, cenografia, construção do

personagem etc. presumem exames concretos do corpo social. “O que se descobre na

condição representada no palco, com a rapidez do relâmpago, como cópia de gestos, ações e

palavras humanas, é um comportamento dialético imanente. A condição descoberta pelo teatro

épico é a dialética em estado de repouso.” (Ibid. p. 89).

Um entendimento mais detalhado dessa associação entre a proposta conceitual do

teatro de Brecht e a questão da dialética em repouso pode ser obtido por meio do seguinte

parecer, extraído do livro Passagens:

Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética – não de natureza temporal, mas imagética – Somente as imagens dialéticas são autenticamente históricas (...) A imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da cognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico (...) subjacente a toda leitura. (Benjamin, 2006, p. 505).

As peças de Brecht compõem-se de ricos arranjos lingüísticos não apenas textuais,

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105 reunindo também elementos corporais, sonoros, iluminatórios, decorativos, etc. dotados

das mais variadas características. A originalidade com que essas combinações são

meticulosamente concebidas contribui para que produzam efeitos estéticos até certo ponto

associados a um certo estranhamento; porém, o diferencial de Brecht está no fato de que a

surpresa que suas criações causam nos espectadores vem acompanhada não de uma sensação

de resistência e negação perante o que seus olhos observam, mas de um chamado para que

leiam, interpretem e partilhem discursivamente essas problemáticas. Isto é possível porque

suas elaborações levam em conta que todos possuem alguma herança cultural que lhes permite

decodificar as mensagens expostas, herança essa que reaparece no presente sob os aspecto de

imagens lembradas justamente nos momentos em que a interação com os atores em cena tem

vez. A constituição do sentido passa então pela resolução de questões que envolvem o resgate

daquilo que está guardado nas profundezas da memória, cujo ressurgimento igualmente

implica numa reconstituição subjetiva de valores, certezas e discernimento. Assim, tanto o

público que assiste como a encenação executada mostram-se abertos a novas influências e

configurações (Nicié, 2008).

Tal descoberta suscita nos espectadores uma sensação de recompensa e satisfação, o

que conduz a uma natural troca de informações entre eles. Logo, sem fechar-se ao prazer, ela

impele um auto-aprendizado próprio de quem está vivenciando algo muito próximo do

ambiente lúdico de uma brincadeira. Sobre a importância pedagógica e mesmo moral de se

debater algum assunto em bases lúdicas, Benjamin assim comenta em Imagens do

Pensamento: “Pois (...) só se aprende desse modo: a alegria pela discussão que chega até o

prazer lúdico no parceiro, a grande capacidade de (...) perder de vista a meta (...) e (...) acima

de tudo, amabilidade.” (Benjamin, 1995, p. 189). O reconhecimento de que é possível

inscrever a vida humana num fluxo de eventos dinâmicos e em perpétua atividade já

representa, por si próprio, um saber regozijador.

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106

O fato de que ele é modificável por seu ambiente e de que pode modificar essa ambiente, isto é, agir sobre ele (...) provoca um sentimento de prazer. O mesmo não ocorre quando o homem é visto como algo de mecânico, substituível, incapaz de resistência (...) O assombro, que devemos incluir na teoria (...) da tragédia, deve ser visto como uma capacidade que pode ser apreendida. (Brecht, citado por Benjamin, 1994, p. 89).

Sumarizando, podemos afirmar que a variedade e a originalidade das proposições do

teatro de Brecht e da literatura de Kafka instituem quebras nas linguagens perpetuadoras dos

convencionalismos dominantes. Guardadas as proporções, Benjamin pontua que a

representatividade dessas cisões compara-se a queda de um corpo sólido num ambiente

aquático, que, depois de varar a superfície e invadi-lo até o auge da profundidade, gera

refluxos em todas as direções. Por onde passa, tal refluxo impacta os marasmos existentes; o

efeito redundante condiz com o assombro que Brecht menciona no excerto acima. Mais uma

vez aparece aqui a sombra da presença de Baudelaire, pois foi ele o primeiro artista moderno

a eleger a produção propositada de efeitos impactantes sobre as pessoas como princípio

cardinal das criações estéticas, do qual não só Kafka e Brecht são tributários diretos, mas todo

um levante de escritores, poetas, pintores, desenhistas e mesmo expoentes das novas artes

(cinema, fotografia, etc.).

Mas a partir de que perspectiva esses autores conseguem ocasionar quebras na

linguagem a ponto de produzirem choques nos seus leitores? Qual o motivo de seus sucessos?

Benjamin nos fornece algumas pistas em Imagens do Pensamento: “Em toda prova, as

maiores chances não estão, portanto, com o candidato bem preparado, mas com o

improvisador.” (Benjamin, 1995, p. 190). Não bastam a genialidade, a erudição ou a

eloqüência; o escritor realmente diferenciado atua como um brincalhão re-inventor do que é e

do que pode ser dito com base no acervo lingüístico ao seu dispor, o qual também não deixa

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107 de estar sujeito à sua criatividade. Todavia, tais reinvenções não são planejadas com

antecedência; ao invés disso, elas seguem um percurso aberto aleatoriamente.

Isso significa pois: compreender a língua na qual a sorte faz seu acordo conosco (...) A estrutura do sucesso é, no fundo, a estrutura do acaso. Repelir o próprio nome sempre foi o modo mais radical de se livrar de todas as inibições e sentimentos de inferioridade. E o jogo é tal qual um ´steeple-chase` sobre a pista de obstáculos do próprio ego. O jogador é anônimo, não tem nome próprio nem precisa de qualquer nome alheio. Pois o substitui a ficha de aposta que se encontra lá numa área bem definida do pano, que se diz verde como a dourada árvore da vida mas é cinza como o asfalto. E que êxtase nesta cidade da sorte, nessa rede rodoviária da sorte, de poder se fazer duplo onipresente e espreitar, de uma só vez, nos quatro cantos, a fortuna se aproximando. (Benjamin, 1995, p. 190).

Com características de jogadores, Benjamin chega a afirmar, com um certo tom de

trocadilho, que o sucesso de autores do porte de Baudelaire, Kafka e Brecht não está no

espírito, e sim na ´presença de espírito`. “Assim, não é o Quê nem o Como, mas só o Onde do

espírito que determina. Que ele esteja presente no momento e no espaço, isso só consegue

penetrando o tom, o sorriso, o emudecer, o olhar, o gesto. Pois, presença de espírito só o

corpo é que cria” (Ibid. p. 191). Saber antever na palavra, no palco, na folha em branco ou no

breve resíduo de memória o que deve ser colocado em jogo para se chegar a algo maior é o

que caracteriza os grandes nomes da arte, das finanças etc. “O sucesso com que gênios (...)

fizeram sua carreira é (...) da mesma qualidade que a presença de espírito com que um Abbé

Galiani operava no salão.” (Ibid. p. 191).15

Destarte Baudelaire, Kafka e Brecht serem comparáveis, nas suas perspicácias, aos

jogadores de azar, Benjamin ainda nos dá alguns outros subsídios para entendermos o porquê

15 Abbé Galiani foi filho de Ferdinando Galiani, diplomata e oficial da Real Administração financeira do Reino

de Nápoles durante o século XVIII. Economista, latinista, arqueólogo, nunismático, geólogo e escritor, Abbé adquiriu fama igualmente nos Salões de Paris pela forma com que transitava por entre eles inventando e contando estórias e piadas bastante criativas. Uma detalhada biografia de sua vida pode ser encontrada em Kaplan, S.L. La Baggare: Galiani`s lost parody. New York: Springer-Verlag, 1979.

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108 da arte deles ser assimilada como algo que choca quando traça um paralelo entre elas e as

interpretações psicanalíticas de Freud acerca dos sonhos dos acidentados da Primeira Grande

Guerra registrados em Além do Princípio do Prazer.

Nesse livro – um dos mais importantes na evolução do seu pensamento – Freud

argumenta que os traços residuais da memória são mais intensos e duradouros quando o

processo que os depositou na mente não chega a atingir o limiar da consciência. Os dados

armazenados por esse tipo de memória, involuntária por definição, não recebem a chancela

das vivências privadas do sujeito. As distinções da consciência no referido processo ocorrem

porque, de acordo com Freud, é igualmente crucial para o organismo vivo que ele tenha meios

de se proteger de boa parte das sensações que possui. O organismo armazena um certa

quantidade de energia, e deve tender, sobretudo, a proteger as formas particulares de

transmutação psíquica que nele acontecem contra as interferências destrutivas e niveladoras

dos outros gradientes de energia vindos do mundo externo.

Os traumas, ou choques, são o modo como o corpo sente a ameaça desse afluxo de

energias provindas do exterior. Nos momentos em que a consciência dá conta de registrá-los,

tal efeito traumatizante não apenas fica reduzido como até converte-se em fator de estímulo

orgânico. Os sonhos e devaneios dos ex-combatentes de guerra denotam, mais do que o

desejo, o esforço de reconquista do controle dos estímulos e da proteção da consciência em

face das agressões do universo exterior. Contudo, nesse caso, devido à insuficiência de meios

da consciência, quem se mobiliza no sentido de auxiliá-la acaba sendo o inconsciente.

Essa dupla manifestação, mista de convergência e diferença, coaduna-se, consoante

Freud, com o ambíguo sentido das expressões alemãs ´heimlich` e ´unheimlich`. ´Heimlich`

significa o reconhecimento, a familiaridade e a identificação que asseguram a alguém o

desfrute resguardado de uma sensação segura. Mas esse resguardo também guarda

familiaridade com recolhimento, esconderijo, saída das vistas de alguém. Por causa disso, o

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109 vocábulo comporta também o seu oposto, pois o prefixo ´un` refere-se a afastamento,

reclusão ou contenção. Portanto, ´heimlich` e ´unheimlich` pertencem a dois conjuntos de

idéias que concordam mesmo com suas singularidades, porque familiaridade e identificação

envolvem também uma parcela de misteriosa ocultação e permanência em segredo. “Dessa

forma, ´heimlich` é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência,

até que finalmente coincide com seu oposto, ´unheimlich`.” (Freud, citado por Matos, 1990).

Por meio dessa noção, é compreensível a tentativa de socorro que o inconsciente, sob

o aspecto de sonhos e devaneios, tenha prestado ao debilitado estado de consciência dos ex-

soldados de guerra. Benjamin encontra de maneira direta não em Freud, mas nos estudos de

seu ex-discípulo Jung, considerações concernentes ao mesmo fenômeno

´heimlich`/´unheimlich` aplicadas a lógica da criação da obra de arte. Vejamos o seguinte

fragmento do livro Passagens:

O processo criativo...consiste em uma ativação inconsciente (...) até resultar na obra perfeita. A nova configuração (...) é, de certa forma, sua tradução para a língua do presente...Nisso reside o significado social da arte: ... ela traz à tona as formas de que mais sente falta o espírito do tempo. Insatisfeito com o presente, o desejo do artista se retrai até atingir no inconsciente a imagem (...) apta a compensar...a unilateralidade do espírito do tempo. O desejo apodera-se dessa imagem e, ao aproximá-la da consciência, muda também sua forma até que ela possa ser apreendida pelo homem do presente segundo sua capacidade de compreensão. (Jung, citado por Benjamin, 2006, p. 513-514).

No fundo, Benjamin apropria-se da discussão freudiana e junguiana sobre a

composição das mônadas energéticas individuais e coletivas adaptando-as a um novo

contexto, o da história da cultura. Consoante essa apropriação, a dinâmica criadora das obras

de arte localiza-se numa esfera de tensão estremada, de um lado, pela história enquanto

manancial de estímulos traumáticos, e de outro, pela filtragem psíquica da subjetividade que

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110 retém, revolve e novamente envia esses estímulos ao cotidiano. A questão secundária que

se impõe em função disso é justamente que sorte de possibilidades o emprego da reflexão

consciente sobre a dialética de tal processo implica para o sujeito e sociedade. “A utilização

dos elementos do sonho ao despertar é o cânone da dialética. Tal utilização é exemplar para o

pensador (...).” (Benjamin, 2006, p. 506).

Antes de mais nada, Benjamin afirma que a especificidade dos processos dialéticos

dissipa a aparência de que o curso dos eventos não se altera. O que significa agir em

consonância com eles, no rastro daquilo que mostram? “Para o dialético, o que importa é ter o

vento da história universal [Weltgeschichte] em suas velas. Pensar significa para ele: içar as

velas. O que é decisivo é como elas são posicionadas. As palavras são suas velas.” (Benjamin,

2006, p. 515). Em outras palavras, a abertura do pensamento ao movimento da história

reverbera sobre a composição das linguagens que ele usa para se expressar; tal reviravolta

desvela novas possibilidades a serem exploradas para ambos. A aplicação desse princípio no

plano concreto da arte moderna traz à baila elucidações que apenas uma presença de espírito

refinada, exatamente como a que o jogador de azar evoca antes de apostar, consegue ler.

Em toda obra de arte autêntica existe (...) uma aragem como a brisa fresca do amanhecer. Daí resulta que a arte, muitas vezes considerada refratária a qualquer relação com o progresso, pode servir a sua verdadeira definição. O progresso não se situa na continuidade do tempo, e sim em suas interferências, onde algo verdadeiramente novo se faz sentir pela primeira vez, com a sobriedade do amanhecer. (Ibid. p. 516).

Essa interrupção dialética representa, para Benjamin, o acontecimento originário da

história. A apologia de Baudelaire, Kafka e Brecht justifica-se por terem eles conseguido

alinhavar com bastante precisão, nos moldes de uma lógica ´heimlich/unheimlich`, o caminho

do ensimesmamento subjetivo fundamental para a criação estética com a lucidez reflexiva do

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111 pensamento dialético. Se suas criações provocam sensação de assombro, isso ocorre

porque a intercessão que operam nos rumos da história vem sob a forma de uma modernidade

retratada para as pessoas através de imagens portando ao mesmo tempo caracteres familiares e

estranhos. O duplo desafio que se põe, e nisso Brecht exerceu um papel pioneiro, é o de

aproveitar e mesmo ampliar essa dimensão golpeadora, impactante, que a arte moderna exerce

sobre a percepção do sujeito justamente pela capacidade que tem de desalinhar o semblante do

sempre igual do continuum da história.

Aos olhos de Benjamin, o cinema encarna a grande possibilidade de estender tais

intenções ao nível das massas. “O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos

existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo.” (Benjamin,

1994, p. 192). Contudo, os primórdios do que apenas ele conseguiu anunciar de modo ímpar,

guardadas as proporções, já permeava momentos dos romances de Proust, do surrealismo,

dadaísmo e da fotografia artística.

Os treze volumes da coleção A la recherche de temps perdu, a grande obra de Proust,

tida por analistas literários como uma das mais importantes do século XIX, são o resultado de

uma minuciosa e surpreendente síntese de elementos místicos, descritivos, satíricos, eruditos e

autobiográficos articulados segundo um ordenamento cênico que transcende os padrões

vigentes de seu tempo. Por debaixo de toda essa miscelânea, declara Benjamin, acha-se uma

unidade homóloga a do sonho, no sentido de que os acontecimentos narrados, malgrado suas

particularidades, concentram incontestáveis semelhanças uns com os outros. “Ou seja, eles

não aparecem de modo isolado, patético e visionário, mas são anunciados (...) e carregam

consigo uma realidade frágil e preciosa: a imagem. Ela surge da estrutura das frases

proustianas.” (Benjamin, 1994, p. 40).

As imagens que brotam das rebuscadas figurações metafóricas de Proust, tematizando

os recônditos da sociedade burguesa, eqüivalem, para Benjamin, a densos e enebriantes

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112 correspondentes miméticos da distorcida luta existencial que os patéticos e saudosistas

habitantes da metrópole parisiense precisam travar todos os dias para sobreviver. Os abalos

que tal artimanha causa nos leitores devem-se a sutileza com que ela cruza, para a

consciência, duas temporalidades distintas, a da eternidade de reminiscências oníricas com a

do envelhecimento cronológico dos objetos do mundo; por meio dessa estratégia muitos

segmentos da modernidade são virados ao avesso e forçados a exibir detalhes de uma clausura

que até então passavam despercebidos. As elaborações lingüísticas de Proust, mais até do que

Baudelaire, conciliaram essas duas tendências justamente porque deram conta de estabelecer

um circuito em que as expressões factuais do território do vivido e as imagens primevas das

coisas em estado de semelhança, mais do que interpenetrarem-se, retroalimentam uma a outra.

Quanto a isso, Benjamin é taxativo:

Compreender a interação do envelhecimento e da reminiscência significa penetrar no coração do mundo proustiano (...). É o mundo em estado de semelhança, e nela reinam as ´correspondências` (...) em sua existência vivida (...). ´A la recherche du temps perdu` é a tentativa interminável de galvanizar toda uma vida humana com o máximo de consciência. (Ibid. p. 46).

O que será que Benjamin quer dizer com a expressão ´...galvanizar toda uma vida

humana com o máximo de consciência.`? Normalmente, o verbo galvanizar é empregado para

ilustrar a eletrificação de metais através de alguma bateria ou pilha química. Entretanto,

durante o século XIX, com o avanço das pesquisas científicas em fisiologia e anatomia

humanas, observou-se a adoção desse procedimento na consecução de diversos estudos

laboratoriais cujo foco era a ativação de músculos vivos sem nenhuma mobilidade ou mesmo

a tentativa de reanimação de corpos imediatamente após a morte. A exploração

sensacionalista desse tipo de prática por boa parte dos meios de comunicação de massa da

época levou o vocábulo a ser adotado em conversas despreocupadas com a conotação de

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113 descarga energética reanimadora em alguém com sinais de apatia. Mais tarde, dado esse

desvio, galvanizar tornou-se sinônimo de libertação de algum estado inercial, ressuscitação e

mesmo renascimento (Ariès, 1975).

De acordo com Benjamin, o universo de Proust possui o poder de ´galvanizar` a vida

de quem se deixa penetrar por ele porque, destarte ser esvaziado de interesses metafísicos ou

consoladores, a estrutura fundamental de cada frase, parágrafo ou capítulo consiste de um sutil

envio do leitor a um espaço de visualizações imagéticas sugestivamente provocadas, seguido

de um convite para que o mesmo procure ler, de forma consciente, as informações dispersas

nos interregnos dessas imagens. Além disso, o filósofo tece mesmo uma analogia entre a

atividade artística de Proust e a natureza transformadora do jogar infantil, da qual discorremos

no capítulo anterior.

Para dizer (...) Proust usa (...) de modo (...) fascinante (...) a ponte para o sonho. (...) As crianças conhecem um indício desse mundo, a meia, que tem a estrutura do mundo dos sonhos, quando está enrolada, na gaveta de roupas, e é ao mesmo tempo ´bolsa` e ´conteúdo`. E, assim como as crianças não se cansam de transformar, com um só gesto, a bolsa e o que está dentro dela, numa terceira coisa – a meia – ,assim também Proust não se cansava de esvaziar com um só gesto o manequim, o Eu, para evocar sempre de novo o terceiro elemento: a imagem (...) de um mundo (...) no qual irrompe à luz do dia o verdadeiro rosto da existência, o surrealista. (Benjamin, 1994, p. 39-40).

Assim como Proust, o surrealismo, como movimento de vanguarda, implodiu

dialeticamente a arte por dentro na medida em que defendeu sua distensão até os limites da

fronteira entre o sono e a vigília, onde palavra, som e imagem interpenetram-se com precisa

exatidão, declara Benjamin em O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia.

A especificidade da cosmovisão surrealista enraíza-se na diluição do sujeito em um ambiente

de embriaguez que, ao mesmo tempo em que pode fasciná-lo ao nível do deslumbramento,

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114 oferece também apoios para ele desligar-se dela.

Não obstante assinalar algumas divergências em relação aos posicionamentos

assumidos por alguns dos seus mais notórios nomes, especialmente Aragon e Breton,

Benjamin elogia a vitalidade com que as produções surrealistas enovelam o reino lógico do

conceito com o reino místico da poesia e do desenho.

Todavia, Benjamin condenou a extrapolação ingênua e intempestiva das premissas

teóricas do movimento para outras regiões do saber com o intuito de ajuizá-las e mesmo

deliberar sobre suas naturezas epistêmicas. Muito precipitadamente, Apollinaire e Breton

ousaram dizer que as conquistas da ciência e da tecnologia obedecem muito mais a critérios

surrealistas do que lógicos. Tal digressão, segue Benjamin, marca o início da saída do

movimento de seus propósitos apenas estéticos na direção do abraço da causa política, em

grande parte devido às hostilidades do modus vivendi burguês contra qualquer manifestação

de liberdade e criatividade espirituais.

Esse incômodo contribuiu para que uma parcela razoável de pensadores e artistas do

surrealismo optasse pela afiliação a partidos e ideologias políticas de esquerda. Certos

acontecimentos, como a deflagração da guerra do Marrocos, apressaram essa tomada de

atitudes.16 Por outro lado, ao fazê-lo, acabaram ficando afins do que Benjamin denomina de

´moral burguesa de esquerda`, concepção essa que não vai além de um idealismo político

revolucionário ancorado na idéia de que as energias da embriaguez artística, devidamente

canalizadas, são capazes de alavancar revoluções. “Pois o que é o programa dos partidos

burgueses senão uma péssima poesia de primavera, saturada de metáforas? O socialista vê ´o

futuro mais belo dos nossos filhos e netos` no fato de que todos agem ´como se fossem anjos

(...), ricos e (...) livres.`” (Benjamin, 1994, p. 33). 16 Pelo nome de Guerra do Marrocos, compreende-se uma série de conflitos bélicos ocorridos inicialmente

entre Espanha e Marrocos, entre 1840 e 1860. Na primeira década do século XX, o despertar do interesse imperialista da Alemanha, França e Inglaterra pelo país norte-africano deu início a diversos embates diplomáticos entre eles. Novamente, essa querela recebeu a denominação de Guerra do Marrocos.

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115 Um outro segmento desse mesmo grupo elege o pessimismo integral típico da

radicalidade comunista como sua bandeira. “Desconfiança (...) do destino da literatura, (...)

liberdade, (...) humanidade européia, e principalmente desconfiança com relação a qualquer

forma de entendimento mútuo: entre as classes, entre os povos, entre os indivíduos. (...) E

então?” (Ibid. p. 34).

Diante do impasse observado, Benjamin ressalva uma terceira via, a sugerida por

Aragon, cuja coerência e originalidade demandam sua necessária ampliação. Aragon, numa

intuição estilística extremamente feliz, detectou que na esfera da política os domínios da

metáfora e da imagem se diferenciam de forma rigorosa e sem a menor oportunidade de

conciliação. Caso se enxergue o espaço da política não mais pelo viés da metáfora moral, e

sim pelo das linguagens imagéticas, o pessimismo da radicalidade comunista adquire uma

chance de ser revisto e reorganizado. Toda vez que uma ação gera não apenas uma imagem de

si mesma, mas de fato converte-se nessa imagem sem nenhum distanciamento, nasce daí um

universo multidimensional onde qualquer coisa torna-se passível de ser dialeticamente

despedaçada e metabolizada (indivíduo, psiquismo, materialismo político, etc.). O filósofo

assim se pronuncia em O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia:

No entanto, e justamente em conseqüência dessa destruição dialética, esse espaço continuará sendo espaço de imagens, e algo mais concreto ainda: espaço do corpo. Não podemos fugir a essa evidência, a confissão se impõe: (...) o coletivo é corpóreo. E a ´physis`, que (...) se organiza na técnica, só pode ser engendrada em toda sua eficácia política e objetiva naquele espaço de imagens (...). Somente quando o corpo e o espaço de imagens se interpenetrarem (...) tão profundamente que todas as tensões revolucionárias se transformem em inervações do corpo coletivo, e todas as inervações do corpo coletivo se transformem em tensões revolucionárias; somente então terá a realidade conseguido superar-se (...). (Ibid. p. 35).

Mesmo sem nominar, a declaração de Benjamin, em grande medida influenciada por

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116 Aragon, mostra sua fé nos atributos estéticos do cinema. “O cinema: desdobramento

[Auswicklung] (...) de todas as formas de percepção, velocidades e ritmos já pré-formados nas

máquinas atuais, de tal maneira que todos os problemas da arte contemporânea encontram sua

formulação definitiva apenas no (...) cinema.” (Benjamin, 2006, p. 439). Sem desmerecer o

papel do surrealismo na teorização benjaminiana sobre cinema, urge pontuar que o dadaísmo

talvez tenha sido o movimento de vanguarda que mais insistiu em tentar replicar através da

pintura, da poesia e da literatura os mesmos efeitos que apenas a projeção filmográfica viria a

efetivar na íntegra. Sua preocupação inicial consistiu da criação de obras de arte totalmente

impróprias para usos contemplativos. “Seus poemas são ´saladas de palavras`, contêm

interpelações obscenas e todos os detritos verbais concebíveis. O mesmo se dava com seus

quadros, nos quais colocavam botões e bilhetes de trânsito.” (Benjamin, 1994, p. 191).

A distração, assevera Benjamin, emerge como a categoria chave da estética dadaísta.

Propositadamente, as obras dos dadaístas eram planejadas de modo a causar a diluição da

atenção dos espectadores por entre suas associações de cores, palavras, formas, sons e objetos

à medida que estes aceitavam percorrê-las. Com isso, dificultavam a focalização da percepção

e, por conseguinte, o alcance dos estados necessários de concentração indispensáveis para a

retenção de informações na memória, mesmo que por intervalos de tempo breves. Em outras

palavras, a estética dadaísta objetivava sobrecarregar a memória com doses de estímulos

muito além da capacidade da cognição absorvê-los e processá-los devidamente. Nesse sentido,

nenhum estímulo captado é completamente assimilado na íntegra, pois mal a percepção dele

se assenhora, logo vem outro para substituí-lo. Tais interrupções assemelham-se aos abruptos

términos das sensações de prazer experimentadas pelos jogadores de azar depois que o rolar

dos dados ou o virar das cartas termina e o resultado da partida torna-se finalmente conhecido,

restando-lhes tão somente fazer novas apostas o mais rápido possível a fim de provocarem o

reinício desses momentos extremos.

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117 Esse objetivo declarado de distrair o público via obra de arte colocou o dadaísmo

no centro de um escândalo; com isso, ele atingiu sua meta precípua: suscitar a indignação

pública. “De espetáculo atraente para o olhar e (...) o ouvido, a obra convertia-se num tiro.

Atingia, pela agressão, o espectador. E com isso, esteve a ponto de recuperar para o presente a

qualidade táctil, indispensável para a arte nas (...) épocas de reconstrução histórica.” (Ibid. p.

191). As criações dadaístas são produções tácteis porque a indignação que propositadamente

causam faz-se sentir no próprio corpo: os impactos ocasionados ao olhar que aceita aventurar-

se nos seus cambiantes lugares, ângulos e planos tanto pode diminuir como acelerar os

batimentos cardíacos; elevar ou reduzir a temperatura interna, provocar transpiração excessiva

ou calafrios; gerar gestos de não aceitação ou resignação; suspender ou aumentar a freqüência

respiratória; elevar ou cessar a voz. Em grande medida, esses efeitos são análogos, segundo

Benjamin, aos que acometem os indivíduos apaixonados por jogo perante o revolver de bolas

numeradas numa urna de sorteio ou os giros de uma roleta.17

Semelhantes incômodos atravessaram novamente os setores mais tradicionais da arte

européia quando Tristan Tzara declarou a versatilidade da fotografia para abrir novas frentes

de trabalho. “Quando tudo o que se chamava arte se paralisou, o fotógrafo acendeu sua

lâmpada (...) e (...) absorveu alguns objetos de consumo. Ele tinha descoberto o poder de um

relampejar terno e imaculado, mais importante que todas as constelações oferecidas (...) para

nossos olhos.” (Tzara, citado por Benjamin, 1994). Brecht também emitiu pareceres sobre o

assunto, notificando que a fotografia inaugura um momento em que a retratação do real por

meio de artifícios óticos e técnico-mecânicos informa mais e melhor sobre facetas de sua

natureza do que a observação direta e a olho nu das dimensões originais. A bem da verdade,

Brecht e Tzara estão dizendo que a exacerbação tecnológica dos aspectos sensíveis das coisas

reverbera na estruturação do aparelho perceptivo. As fotografias inquietam porque a livre 17 Conferir a transcrição literal que fizemos de um fragmento de Benjamin denominado O jogo, apresentado nas

página 45 e 46 do presente estudo.

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118 contemplação não lhe cabe. “O (...) observador (...) pressente que deve seguir um caminho

definido para se aproximar delas. Ao mesmo tempo (...) as legendas explicativas se tornam

pela primeira vez obrigatórias.” (Ibid. p. 175).

A defesa da fotografia por parte do dadaísmo, na perspectiva de Benjamin, serviu

como um breve aperitivo para o cinema. Esse, bem mais do que ela, exige do observador que

abandone qualquer expectativa de acompanhamento contemplativo das imagens que associa.

Quando o observador percebe uma imagem, ela já deixou de ser o que era. A lógica do cinema

é a de imagens em movimento com ângulos e lugares abordados também diferenciados. A

cada instante, ele intercepta os sentidos de um modo que não condiz com o da imagem exibida

anteriormente, e, em função dessa fugacidade temporal, a atenção e a procura pela

compreensão do mostrado são o tempo todo requeridas.

As múltiplas abordagens efetuadas pela captação filmográfica do real e reproduzidas

para o espectador, mesmo incidindo sobre objetos e paisagens reais, como, por exemplo, ruas,

avenidas, montanhas etc., resultam em criações finais com uma certa característica de

efemeridade. Isso acontece porque o processo cinematográfico atrofia o que Benjamin chama

de aura da obra. “Em suma, o que é aura? É uma figura singular, composta de elementos

espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja.”

(Benjamin, 1994, p. 168). Admirar uma cordilheira de montanhas ou deleitar-se com as ondas

do oceano significa absorver a aura desses fenômenos naturais. O cinema é uma manifestação

artística cujo produto final revela-se modificado na aura porque reduz ao extremo a distância

entre o objeto tematizado na imagem e o olhar humano. Além do mais, ele supera o caráter

único de qualquer fato na medida em que pode reproduzi-lo ad infinitum por meio do aparato

tecnológico que lhe ampara. Com isso, ele retira da quintessência do objeto o que a

continuidade da tradição lega ao patrimônio da cultura.

A perda da quintessência da obra subentende a destituição de sua autenticidade.

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119 Assim, toda a função social da mesma se altera, pois, se antes do extremo

desenvolvimento dos meios de reprodução técnica ela fundamentava-se no ritual, na religião

ou na celebração mítica, com a instituição da modernidade há o afastamento dessas esferas e o

estabelecimento de um intenso diálogo com a política e a economia. Por que isso? A produção

de filmes demanda a participação de um sem número de técnicos especializados em alguma

função, sem olvidar do elenco de atores. A gestão de todo esse procedimento é tão custosa que

não se sustenta sem a adesão de consumidores dispostos a comprar o resultado final. Logo, a

obra cinematográfica é uma criação de coletividades para coletividades ainda maiores. “Em

1927, calculou-se que um filme de longa metragem, para ser rentável, precisaria atingir um

público de nove milhões de pessoas.” (Ibid. p. 172).

Ainda com respeito a produção de filmes cinematográficos, Benjamin assinala que ela

exige, por mais paradoxal que possa parecer, perfectibilidade e descartabilidade. Qualquer

gravação, não obstante de longa ou curta metragem, necessita da constituição inicial de um

grande acervo de imagens, onde apenas as melhores e mais adequadas serão aproveitadas para

edições. “Para produzir a opinião pública, com uma duração de 3000 metros, Chaplin filmou

125000 metros.” (Ibid. p. 174). A quase totalidade do material não utilizado nessa seleção

acaba descartada como refugo.

A participação do ator cinematográfico em todo esse empreendimento reveste-se de

características também únicas, que não se repetem no contexto do palco teatral. O ator de

cinema não representa diante de platéias, mas desempenha performances para grupos de

especialistas – diretores, operadores, cinegrafistas, iluminadores, engenheiros de som – que a

todo momento tem o poder de interpelar aquilo que assistem. Logo, sua atuação decompõe-se

em seqüências quebradas, cuja concretização obedece a fatores muitas vezes aleatórios e sob

os quais não tem o menor controle (tal qual a submissão do jogador de azar ao desígnio das

partidas), como a disponibilidade dos outros atores, o entendimento do que a direção aspira,

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120 os compromissos promocionais de divulgação do filme, o bom funcionamento dos

recursos técnicos, etc. “É óbvio (...) que (...) pode-se filmar, no estúdio, um ator saltando de

um andaime, como se fosse uma janela, mas a fuga subseqüente será talvez rodada semanas

depois, numa tomada externa.” (Ibid. p. 180-181). Não convém ao ator de cinema reivindicar

o direito de saber o contexto total em que sua atuação está inserida. O desempenho de tarefas

independe de como e onde os registros delas serão encadeados. Portanto, a auto-alienação é

uma exigência da sua profissão.

Há que se dizer que tal auto-alienação admite aplicações bastante criativas. As

execuções performáticas do ator cinematográfico para as lentes de uma câmera gerenciada por

uma equipe técnica, imbuída da função de criar e selecionar as melhores tomadas, acaba

tornando sua imagem, bem como as narrativas que protagoniza, destacáveis e transportáveis

para os mais diversos locais freqüentados pelas massas. Além disso, a sofisticação dos

aparelhos de filmagem, permitindo acelerações ou retardamentos da velocidade de rodagem

das películas, ampliações ou miniaturizações dos objetos focados, paralisações de cenas e

outras situações afins, oferece ao olhar, segundo o filósofo, a experiência de um inconsciente

ótico.

Pois os múltiplos aspectos que o aparelho pode registrar da realidade situam-se em grande parte fora do espectro de uma percepção sensível normal. Muitas deformações e estereotipias, transformações e catástrofes que o mundo visual pode sofrer no filme afetam realmente esse mundo nas (...) alucinações e sonhos. Desse modo, os procedimentos da câmara correspondem aos procedimentos graças aos quais a percepção coletiva do público se apropria dos modos de percepção individual do psicótico ou do sonhador. (Ibid. p. 190).

O corolário dessa apropriação é a submissão das reações individuais à resposta

coletiva das massas ao estímulo fílmico. “Assim, o mesmo público, que tem uma reação

progressiva diante de um filme burlesco, tem uma reação retrógrada diante de um filme

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121 surrealista.” (Ibid. p. 188). As atitudes induzidas pelo cinema arraigam-se na constatação

de que os recortes e diagramações cênicas evidenciam uma gama de pormenores sobre os

condicionamentos, objetos e valores que norteiam a existência coletiva das pessoas sem os

cerceamentos espaço-temporais cotidianos aos quais estão submetidas. “Através dos seus

grandes planos (...) e (...) sob a direção genial da objetiva, o cinema (...) assegura-nos um

grande e insuspeito espaço de liberdade.” (Ibid. p. 189).

Por meio dos aparelhos de filmagem e gravação, as massas acessam o próprio rosto de

maneira tal que seus aspectos íntimos mais desconhecidos são trazidos à baila. O mesmo

desenvolvimento técnico e científico que viabiliza esse auto-conhecimento cinematográfico

também transforma-se em questão moral quando necessariamente se nota que, caso as

relações de produção na modernidade permaneçam intocadas e sem expectativa de mudança,

o único destino que lhe resta não é outro senão suprir interesses bélicos ou econômicos.

A (...) guerra moderna se apresenta do seguinte modo: como a utilização natural das forças produtivas é bloqueada pelas relações de propriedade, a intensificação dos recursos técnicos, dos ritmos e das fontes de energia exige uma utilização antinatural. Essa utilização é encontrada na guerra, que prova com suas devastações que a sociedade não estava suficientemente madura para fazer da técnica o seu órgão, e que a técnica não estava suficientemente avançada para controlar as forças elementares da sociedade. Em seus traços mais cruéis, a guerra imperialista é determinada pela discrepância entre os poderosos meios de produção e sua utilização insuficiente no processo produtivo, ou seja, pelo desemprego e pela falta de mercados. Essa guerra é uma revolta da técnica, que cobra em ´material humano` o que lhe foi negado pela sociedade. (Ibid. p. 195-196).

Apesar dessa advertência final, torna-se desnecessário ratificar o louvor de Benjamin

ao cinema e a crença depositada na expansão tecno-científica. “Nossos cafés (...) e nossas

ruas, (...) escritórios, (...) estações e (...) fábricas pareciam aprisionar-nos inapelavelmente.

Veio então o cinema, que fez explodir esse universo carcerário com a dinamite dos seus

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122 décimos de segundo, permitindo-nos (...) viagens aventurosas.” (Ibid. p. 189). No entanto,

a defesa otimista de que as conquistas tecnológicas trariam benefícios emancipatórios para a

humanidade, desde que modificados os parâmetros diretores da ordem social vigente, põe

Benjamin no lado oposto de contemporâneos seus de peso, notadamente Adorno e Marcuse

(Merquior, 1969).

Mas por que essa divergência? Qual o seu fundamento? Como explicá-la? Consoante

Merquior (1969), a argumentação de Marcuse gravita em torno da tese de que, no mundo ,

contemporâneo, a negação do real existente, enquanto baliza dialética de seu movimento

histórico, tende a fenecer, em função da primazia absoluta adquirida pela dinâmica tecno-

científica para lhe reger. Para ele, esta última converteu-se no determinante único das

possibilidades do real, a ponto mesmo de retirar dele o papel da negação do dado enquanto

motor da criação histórica. Isto fica patente quando olha-se para as propostas oferecidas ao

homem comum por alguns de seus ´filhos` mais representativos: a sociedade estetizada e a

tecnologia humanizada. O primeiro, reflete a desenfreada importância assumida pelo lazer,

publicidade e culto das aparências no dia a dia cultura de massas, enquanto o segundo diz

respeito ao peso assumido pelos aparatos de mídia na gestão social das grandes questões

cotidianas. Tanto um como o outro não anunciam a latência de nada radicalmente diferente do

que já está em vigor como também cerceiam com competente eficácia a aparição de qualquer

coisa com esse sentido.

Dada essa gigantesca tendência niveladora que padroniza com veemência as formas do

indivíduo perceber e se expressar, dificilmente pode-se esperar que a prática, enquanto

resposta à teoria, transcenda o real a ponto de redirecionar o rumo de sua transformação

histórica. Para não cair na inércia e nem ser colonizado, cabe ao pensamento erigir-se como

grande recusa; protestar e mostrar pessimismo terminam sendo aquilo que deve ser feito.

De certa maneira, a posição de Marcuse pouco difere da de Adorno, porquanto para

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123 este a conquista tecnológica do mundo em nada garante que uma vida humana

verdadeiramente melhor será alcançada. A procura pelo desmascaramento científico da

natureza, em grande medida estimulado pelo discurso da Aufklärung, confirma, para Adorno,

o elevado estado de angústia que assola os homens modernos diante das ameaças que

acreditam existirem naquela e que podem destroná-lo. Na interpretação de Merquior (1969),

O espírito de domínio tecnológico da natureza (...) é uma força intimamente desorientada: o “espírito sem finalidade”. A civilização mais atenta a seus recursos, a sociedade mais lúcida quanto a seus meios, é cega na essência de sua ação. Ela é a cultura que trabalha na ignorância dos fins humanos, no esquecimento dos interesses da felicidade. O iluminismo triunfante é infeliz. Destruindo as ilusões e os mitos, não chega a substituí-los por uma ordem amena; o homem iluminista permanece hostil ou estranho ao remanso da totalidade, à euforia de integração no cosmos. (Merquior, 1969, p. 49).

Assim, a razão tecno-científica acaba convertendo-se numa investida do homem

contra ele próprio. Os desdobramentos disso sobre o campo da cultura são imediatos: “O

desgosto (...) termina por condenar globalmente a arte. Esta fica (...) responsabilizada pela sua

incapacidade de redimir a cultura.” (Merquior, 1969, p. 134). Benjamin diverge desse ponto

de vista porque, segundo Merquior (1969), se por um lado, ele não nega a historicidade das

linguagens da arte e da cultura, por outro, endossa que no interior das mesmas vigem

elementos que, se não podem ser propriamente chamados de atemporais, pelo menos

acompanham o homem em todas as fases de seu itinerário histórico.

A estética de Benjamin conjuga a noção dos universais da conduta humana com a consciência das raízes históricas da arte. A teoria de Adorno não tem lugar para esse primeiro elemento. Ela relativiza, em sentido historicista, todos os componentes do significado da obra de arte – sem relativizar, contudo, essa própria relativização. Benjamin sabe que a História contém ela mesma o trans-histórico; Adorno não. Por isso, o pensamento de Benjamin (...) especula sobre a dimensão da origem, ao passo que Adorno permanece (...) alheio a esse motivo.

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124 (Merquior, 1969, p. 135).

Esse aspecto trans-histórico não é outro senão a própria capacidade nomeadora da

linguagem de criar novos epítetos ou combinações de signos verbais, imagéticos, sonoros etc.

e, com isso, tornar conhecidas facetas do real até então ocultas.

Após esse breve parênteses, retornando novamente à questão da confiança depositada

por Benjamin nas possibilidades transformadoras do cinema, um outro ponto polêmico

observado por comentadores seus é justamente a possibilidade do estabelecimento de uma

ponte, por meio da idéia de inconsciente ótico, entre a exibição fílmica, enquanto terapia de

massas, e sua respectiva mobilização para finalidades políticas. O filósofo reconhece que a

modernidade tanto intensificou e mesmo alavancou o surgimento de novas fobias, medos e

ansiedades outrora desconhecidos, como também aprimorou sutis mecanismos para, senão

curá-los, pelo menos apaziguá-los.

Se levarmos em conta as perigosas tensões que a tecnização, com todas as suas conseqüências, engendrou nas massas – tensões que em estágios críticos assumem um caráter psicótico – perceberemos que essa mesma tecnização abriu a possibilidade de uma imunização contra tais psicoses de massa através de certos filmes, capazes de impedir, pelo desenvolvimento artificial de certas fantasias sadomasoquistas, seu amadurecimento natural e perigoso. A hilaridade coletiva representa a eclosão precoce e saudável dessa psicose de massa. A enorme quantidade de episódios grotescos (...) consumidos no cinema constituem um índice impressionante dos perigos que ameaçam a humanidade, resultantes das repressões que a civilização traz consigo. Os filmes grotescos (...) produzem uma explosão terapêutica do inconsciente. (Benjamin, 1994, p. 190).

O cinema exerce efeitos terapêuticos sobre as massas, primeiro, porque elas se deixam

impregnar pelos efeitos das câmeras nas cenas, e só conseguem isso pelo motivo que lhes guia

até as salas de projeção: divertimento. O fundamento que ampara essa sensação de alívio

sentida ao final dos filmes reside no poderio que as lentes tem de reordenar artificialmente as

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125 valências físicas que abalizam nossa existência corpóreo-material no espaço e tempo:

ritmo, profundidade, velocidade, distância, ondas sonoras, luzes, cores, etc. Nossa percepção

não encontra livremente fontes de estímulos com esse formato no dia a dia; o imperativo de

adaptá-la às mesmas influencia na equilibração do sistema psíquico.

De acordo com Benjamin, o diferencial da questão emerge quando a procura pelo

cinema para diversão converte-se em hábito popular, pois quanto mais freqüente se tornar a

ida das massas às telas guiada por esse motivo, mais elas estarão disponibilizando suas

estruturas perceptivas, e, por conseguinte, seu corpo, ao que o autor chama de ´toque` das

imagens fílmicas. Dito de outro modo, as imagens em movimento, remodelando a percepção,

influenciam a parte táctil do corpo. Para o filósofo, os desdobramentos de tal fato repercutem

nas relações entre juízos críticos e práxis política.

Através da distração, como ela nos é oferecida pela arte, podemos avaliar, indiretamente, até que ponto nossa percepção está apta a responder a novas tarefas. E, como os indivíduos se sentem tentados a esquivar-se a tais tarefas, a arte conseguirá resolver as mais difíceis e importantes sempre que mobilizar as massas. É o que ela faz, hoje em dia, no cinema. (...) E aqui, onde a coletividade procura a distração, não falta de modo algum a dominante tátil, que rege a reestruturação do sistema perceptivo. (Ibid. p. 194).

A experiência cinematográfica, na formulação benjaminiana, sintetiza o espectador

como alguém duplamente passivo e ativo: as sucessivas inserções lúdicas na terapia de

massas contribuem para maturar um indivíduo mais consciente, com maior capacidade de

examinação.

Concordamos com Merquior (1969) que, em primeira mão, a declarada confiança

benjaminiana nos benefícios dessa arte indiretamente afiliada ao aprimoramento científico-

tecnológico parece até certo ponto ingênua. Mas, no trecho a seguir, extraído de Passagens,

Benjamin, tomando novamente o cinema como modelo, elabora uma argumentação concisa

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126 acerca do que ainda parece pouco compreendido: o porquê da arte moderna representar

um veículo político potente o suficiente para convencer as massas de que o direito à

felicidade, enquanto causa histórica comum de toda a humanidade, também lhes pertence.

Sobre o significado político do filme. O socialismo jamais teria surgido no mundo se tivesse pretendido despertar o entusiasmo do operariado simplesmente por uma melhor ordem das coisas. O que constitui a força e a autoridade do movimento foi o fato de Marx ter conseguido despertar o interesse dos operários por uma ordem na qual as condições de vida deles seriam melhores, mostrando que essa seria também uma ordem justa. Exatamente o mesmo vale para a arte. Em nenhuma época, por mais utópica que seja, será possível conquistar as massas para uma arte superior, mas apenas para uma arte que lhes seja mais próxima. E a dificuldade consiste justamente em dar a esta arte uma forma tal que se possa afirmar, em plena consciência, que se trata de uma arte superior. Ora, algo desse gênero dificilmente será por aquilo que é propagado pela vanguarda burguesa (...) As massas decididamente exigem da obra de arte (...) algo que as aqueça. (...) Ora, o que importa para as formas vivas e em desenvolvimento é que tenham em si algo que aqueça, que seja utilizável, enfim, algo que traga felicidade (...) Atualmente, talvez apenas o cinema esteja à altura desta tarefa – de qualquer modo, é ele que se encontra mais próximo dela do que qualquer outra forma de arte (...) Somente o cinema pode detonar as substâncias explosivas que o século XIX acumulou (...). (Benjamin, 2006, p. 439-440).18

Nota-se que a visão de Benjamin sobre a significância da arte na modernidade destoa

do pessimismo declarado de Adorno e Marcuse, pois o mesmo consegue mostrar que a

inacessibilidade e mesmo hostilidade da arte moderna a qualquer atitude de contemplação 18 Filho das mesmas forças técnicas que conferem ao mito moderno o seu suporte objetivo, o cinema encarna

uma possibilidade de uso reverso dessas mesmas forças de modo a romper politicamente a continuidade do idêntico travestida de novidade. Assim, ele aparece como um agente capaz de reaquecer, entre os homens, a esperança na possibilidade de um tempo de felicidade, o mesmo tempo que, consoante Gagnebin (2005), é desejado pelas figuras angelicais, presenças marcantes em muitos escritos de Benjamin. Vejamos o comentário da autora: “Dito de maneira política e profana, é quando os homens se resignam ao curso inelutável da infelicidade, dele fazem uma necessidade supra-histórica que chamam, depois, do nome ambíguo de ´progresso`, é nesse momento que eles cessam de poder tomar em mãos sua história e de poder agir sobre o presente e no presente, que eles continuam fixados no passado e se abstêm de inventar seu futuro (...) Neste presente pervertido que só é continuação do idêntico, nenhum anjo mais consegue abrir passagem. Pois o que todos os anjos de Benjamin, sem exceção, desejam profundamente, é a felicidade; essa não é nem a volta a um paraíso antes da história, nem tampouco a avidez devoradora da modernidade, sempre em busca de novidades. A felicidade é muito mais, segundo a fórmula do anjo Agesilaus Santander, ´O confronto (...) onde se opõem o estremecimento do único, do novo, do ainda não-vivido com a beatitude do mais uma vez, do repossuir, do (já) vivido.`” (Gagnebin, 2005, p. 133).

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127 passiva exigem, tanto do criador como do receptor da obra, algo mais do que o simples

emprego da atenção; para acompanhá-la, o envolvimento do trabalho cognitivo torna-se

salutar. Curiosamente, em escrito póstumo publicado em 1951 na coletânea Prismas, Adorno

rende-se ao teor da descoberta de Benjamin durante suas investigações dos pormenores da

música de Schoemberg. “Quanto mais ela dá aos seus ouvintes, menos oferece a eles. Isso

requer do ouvinte que componha espontaneamente seus movimentos internos, demandando

não mera contemplação, mas práxis.” (Adorno, 1981, p. 149-150).

Finalmente, o que deve ser retido dessa discussão? Em linhas gerais, entender a arte

moderna como produção potencialmente impactante para a subjetividade significa aceitar a

possibilidade dela romper de modo dialético com a sincronia das rotineiras percepções

cotidianas do mito moderno e, outrossim, das convenções morais correlatas.19 Tal interação

define, assim, um nicho onde diferenciações comportamentais podem acabar emergindo;

nesse sentido, isso também caracteriza-a como espaço educacional. Todavia, estamos diante

de um processo de aprendizagem arraigado na instantaneidade mimética de um insight, e não

na sistematicidade dos pensamentos objetivadores; o mesmo insight que muitas vezes leva o

jogador de azar a desistir de apostar numa série de números e escolher outros em função de

algum sentimento profundo, e mesmo o infante a mudar radicalmente o significado de um

objeto durante sua brincadeira.

19 Tal posição benjaminiana reaparecerá novamente numa série de trabalhos de Habermas publicados nos anos

setenta. A arte moderna, na visão habermasiana, problematiza com extrema acurácia a maneira artifical com que a racionalidade instrumental refere-se às práticas comunicativas espontâneas maturadas no panorama da cultura. O detalhamento dessa discussão está em Communication and the Evolution of Society, London, Heinemann, 1979.

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128 CAPÍTULO III

EDUCAÇÃO E ÉTICA

A apregoação de que a arte moderna, em geral, e o cinema, em particular, representam

veículos educativos com o poderio de abalar perceptivamente o sujeito por meios lúdicos,

assim como sua forma de relacionar-se moralmente com a atmosfera mítica da modernidade,

subentende a necessidade de adentrar algumas outras questões.

A primeira delas alude à constatação que Benjamin, de certa forma, comunga do

argumento desenvolvido por Weber e também Heidegger de que, com a ascensão das

sociedades modernas européias, o desenvolvimento técnico atingiu um nível de

confiabilidade, abstracionismo e emprego para resolução de problemas jamais experimentado

por qualquer outra formação coletiva em épocas anteriores. A complexificação deste

aprimoramento técnico, base da cultura enquanto segunda natureza humana, acaba

denunciando, por outras vias, que a chegada do processo civilizatório ao estado moderno

envolve o alcance de uma determinada correlação de forças sociais, políticas, econômicas,

institucionais e administrativas sobre as quais a vontade humana não exerce mais nenhum

controle. Verificada tal conjuntura, Benjamin é então bastante incisivo, como podemos notar

no parecer abaixo, extraído de A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica:

Diante dessa natureza, que o homem inventou, mas há muito não controla, somos obrigados a aprender, como outrora diante da primeira. Mais uma vez, a arte põe-se a serviço desse aprendizado. Isso se aplica, em primeira instância, ao cinema. O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido. (Benjamin, 1994, p. 174).

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129 Verificamos aqui, com clareza, que a imagética da arte e do cinema modernos é

pedagógica porque introduz o sujeito ao contexto maquinal que rege a modernidade sem, com

isso, abdicar, por princípio, da possibilidade de operar a reversão dos preceitos mestres que

determinam essa configuração. Em linhas gerais, Benjamin está indicando a existência de dois

panoramas ao mesmo tempo distintos, porém interligados: um, o efetivamente hegemônico,

outrora tão bem descrito por Marx em O Capital, onde o trabalhador é prolongamento

humano de uma lógica maior que o ultrapassa, a dos sistemas produtivos hiper-racionalizados

do ponto de vista instrumental. As práticas educacionais nele vigentes, demonstra o filósofo,

possuem um ordenamento lógico próprio que, veremos, não abre mão de empregar uma certa

estetização dos meios em função dos fins que almeja atingir. Todavia, em se tratando de sua

potencialidade ética, Benjamin critica-a com veemência. O outro panorama alude não a

negação desse ambiente, mas a re-inserção do sujeito enquanto fator ativo da condução e

mediação das circunstâncias balizadoras do próprio. É aqui que impera a necessidade de um

exame mais acurado da pedagogia artística do surrealismo, dadaísmo, cinema, etc. à vista de

suas nuanças ´chocantes`.

Sabe-se que boa parte dos textos de juventude de Benjamin sobre educação referem-se

ao modo como o ensino burguês se auto-constitui e como engendra antinomias das quais não

consegue sair. Um dos motivos que mais concorre para isso remete, na sua visão, ao excesso

de instrumentalização científica das atividades educacionais. O advento da literatura escolar

moderna, pautada nas recomendações da didática e da psicologia, é o grande exemplo da

instauração desse processo.

Inicialmente filhos do Iluminismo, principalmente na sua vertente alemã, até o

alvorecer do século XIX os livros para crianças conjugavam uma intensa combinatória lúdica

de cores, formas e desenhos com enredos textuais adaptados dos antigos contos, lendas e

mitos tribais. Tal conjuntura motivava as atenções infantis por invocar uma atmosfera de

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130 enigmática disputa contra certas presenças desafiadoras e desconhecidas, mas que no

fundo revelavam-se grandes companheiros de brincadeira. Propostas desse tipo, independente

de como e onde aparecem, tendem a deixar as crianças deveras à vontade para estabelecer

relações novas e modificadas com o mundo das coisas concretas e o da fantasia. Por outro

lado, a ênfase na articulação entre escrita, forma e conto, vista historicamente, denota o peso

que a estética barroca exerceu nos rumos da educação até o final da época Biedermeier. Os

potenciais efeitos por ela desencadeados sobre a percepção são assim descritos pelo filósofo:

A exortação taxativa à descrição (...) em imagens (...) desperta a palavra na criança. Mas, assim como descreve essas imagens com palavras, a criança as descreve de fato. Ela habita as imagens. A sua superfície não é (...) nem em si mesma e nem para a criança (...) A criança penetra nessas imagens com palavras criativas. E assim ocorre que ela as ´descreve`, no outro sentido do termo, ligado aos sentidos. Cobre-as de rabiscos. Nessas imagens, aprende ao mesmo tempo a linguagem oral e a escrita: os hieróglifos. (Benjamin, 2007, p. 65-66).

O modo com que tais livros fomentavam o estudante a decifrar as conexões ocultas e

misteriosas entre signo gráfico, cor e som aponta para algo que a educação racionalista não

captou na íntegra. “Certamente (...) aprender a ler é, em boa parte (...) aprender a adivinhar

(...). Pois durante todo o tempo em que o ensino se agrupou ao redor dos eclesiásticos, a

posição dos pedagogos esteve sempre ao lado do saber, de certa forma junto a Deus.”

(Benjamin, 2007, p. 140). Logo em seguida a esse fragmento, extraído do ensaio

Chichleuchlauchra, de 1930, Benjamin registra, como exemplo, os curiosos recursos

pedagógicos usados pelos religiosos para promover o ensino da linguagem: loterias de letras,

dados de letras e semelhantes jogos. Ou seja, aprender a ler e a escrever alude a uma

competência cuja exercitação conclama a razão; entretanto, sua descoberta advém da

interveniência divinatória da presença de espírito. Portanto, é justificável que os escolásticos

recorressem a jogos em que o elemento acaso fosse constante como forma de forçar sua

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131 aparição. “Tal combinação possibilitou a valorização genuinamente dialética das

inclinações infantis para colocá-las a serviço da escrita.” (Ibid. p. 140).

A relação entre memorização e respectiva sonorização de sinais gráficos, enquanto

agentes catalizadores de aprendizados por meio de adivinhações, remonta a uma característica

ímpar da natureza dos gestos lúdicos: o seu aspecto gestáltico. Ainda que não tenha explorado

mais a fundo essa intuição, Benjamin explicita-a durante o fechamento do trabalho

Brinquedos e Jogos: observações marginais sobre uma obra monumental, datado de 1928. O

filósofo considera a palavra ´gestalt` não no seu sentido germânico literal, o de uma interação

figura-fundo; ao invés disso, recorre a ela enquanto conceito concernente a uma determinada

configuração ambiental onde as partes componentes não são percebidas como coisas

conectadas aleatoriamente, mas na perspectiva de totalidades estruturadas dotadas de sentidos

mais amplos. Como exemplos do viés gestáltico de atos corporais lúdicos, o autor cita

algumas situações típicas do esporte e de algumas brincadeiras: os jogos de gato e rato,

polícia e ladrão, etc. enraizam-se na primitiva perseguição das presas realizadas pelos

primeiros caçadores paleolíticos; o tenista rebatendo bolas ou o goleiro protegendo a meta

revivem fêmeas animais protegendo filhotes no ninho; os demais jogadores disputando a bola

supõem a luta pelo objeto causador de satisfação sexual.

Feita essa colocação, a que universos então as afinidades eletivas, ou gestálticas, entre

cor, forma, imagem e som presentes nos livros infantis do período barroco até o final da

Biedermeier, parafraseando Goethe, carreiam dialeticamente o leitor infantil? Qual a sua

dimensão gestáltica? Benjamin encontrará boa parte dessas respostas na produção teórica de

Paul Klee desenvolvida na Bauhaus. Klee insistia que palavras e figurações combinadas

ludicamente levam o espírito a mundos intermediários, situados nos interstícios das

informações captadas pela percepção, mas que ainda assim podem ser re-projetados

exteriormente.

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132 Os mundos intermediários de Klee versam sobre uma dada conformação da

natureza existente ainda em condição de potência. O que a consciência captura e representa de

seus interiores é de cunho não fenomenal. Na avaliação de Fronza (2006), a dedicação de

Klee aos estudos sobre tal tema arraiga-se na hipótese de que o contato com esses mundos

intermediários constitui uma etapa necessária para quem almeja vislumbrar os horizontes da

pureza conceitual. “Conseguir franquear o acesso ao mundo intermédio constitui um dos

legados mais profundos da pintura de Klee, dos romances e contos de Kafka (...) A colocação

no mundo intermédio é uma conquista dessa proposta filosófica que pôs no seu centro a

questão da representação.” (Fronza, 2006, p. 2).

Klee considera que a experimentação de alguma situação nos mundos intermediários e

sua respectiva representação, material ou mental, libertam tanto o representado como o agente

que representa da escravidão do dado. “O homem modifica aquilo que é, e manifesta, na ação

presente, o futuro que agora lhe pertence e com o qual estabelece contato. Através da ação

representativa, a experiência histórica se desestrutura em si mesma e se recompõe em um

estado ulterior, para lá de qualquer apreensão banal” (Ibid. p. 2-3). Como conseqüência desse

desdobramento libertador, o movimento de representação estética dos conteúdos dos mundos

intermediários permite ao sujeito mobilizar, no campo da cultura, processos que até então

eram da ordem exclusiva do divino natural.

Entretanto, Paul Klee avisa que isso não é fácil e muito menos imediato. Não são

todos que conseguem ter uma presença de espírito tão apurada, como a que os jogadores de

azar crêem possuir, a ponto de ler a conjuntura de fatores que os mundos intermediários lhes

expõem, e muito menos absorver, digerir e criar algo diferente em cima dessas informações,

tal qual os infantes fazem em suas brincadeiras com toda sorte de materiais. Um parênteses

deve ser aberto para Kandinsky, pois, na ótica de Klee, foi ele o artista que melhor soube

transitar nos meandros desse universo: “No fundo, eu não sou como um aprendiz de feiticeiro

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133 diante do qual o grande mago joga (...) Me perco no mundo intermédio (...) Muito daquilo

que provém do mundo intermediário, um homem como Kandinsky enxerga (...) Kandinsky

enxerga o puro mundo da luz.” (Klee, citado por F. Klee, 1960, p. 162-163).

Os escolhidos que, como Kandinsky, conseguem ver a luz, visualizam as questões

morais ainda em estado de potência. Em tal circunstância, não enredadas a substratos

concretos ou expressas em linguagens, sua conformação ainda é incompleta, o que fá-las

metaforicamente homólogas aos únicos personagens de Kafka passíveis de salvação: os não

acabados. Logo, finaliza Fronza (2006), a dinâmica do mundo intermédio deve ser entendida

como imagem dialética de uma vigília, oscilando entre o sono e o despertar.

Depois dessas colocações, o que extrair delas à vista da leitura banjaminiana de Klee,

enquanto referência para se entender as concepções de educação reinantes do período barroco

até a época Biedermeier, testemunhadas no advento do livro infantil? Em linhas gerais, nota-

se que associações gestálticas de signos gráficos, sonoros, figurativos e de cores tratados

ludicamente eram compreendidos como fortuitos veios ontológicos de acesso a realidades

espirituais mais densas; a tramitação nesse plano concorria para a aprendizagem divinatória

da linguagem, a capacitação para formulação de conceitos e a autêntica postura moral. Tal

visão da educação subentendia, quanto aos princípios, estratégias e metas, a preponderância

do filósofo, do eclesiástico, do artista e do enciclopedista enquanto formuladores e gestores

privilegiados.20

De maneira bastante pontual, Benjamin detecta a partir de que momento essa

concepção educacional começou a dar sinais de esgotamento. “Os fenômenos mais notáveis

surgem (...) por volta do final do Biedermeier, nos anos quarenta, simultaneamente com a

expansão da civilização técnica e o nivelamento da cultura, o qual não estava desvinculado

20 Para um exame mais detalhado das tarefas e papéis que cabiam a cada um deles no bojo da cosmovisão

educacional reinante pós Renascença, recomendamos a leitura do livro História da educação: da Antigüidade aos nossos dias, de Mário Alighiero Manacorda, editado desde 2001 no Brasil pela Cortez.

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134 desse contexto.” (Benjamin, 2007, p. 62). Ocorre a autonomização da educação em

relação às artes, filosofia, tradição escolástica e enciclopedismo, em grande medida

capitaneada pelo desenvolvimento da então recente psicologia comportamental. O psicólogo

do desenvolvimento, em função do domínio de técnicas e métodos de trabalho sedimentados

nas ciências positivas, converte-se na principal autoridade educacional, visto dominar saberes

sobre a vida interior da criança, do adolescente e do adulto.

Os desdobramentos dessa ascendência repercutiram na educação em duas grandes

frentes, afirma Benjamin. A primeira diz respeito ao modo com que a criança e o jovem

passaram a ser representados, como seres demasiado complexos, retendo pulsões e anseios

misteriosos. A segunda remete a toda uma produção literária de teses, monografias, textos

didáticos, etc. sobre e para os infantes e jovens em idade escolar, predizendo a necessidade de

racionalização sistemática do ensino caso se queira atingir o objetivo principal de educar as

populações urbanas para a cidadania.

O orgulho pelo conhecimento psicológico da vida interior da criança, conhecimento que em profundidade e valor vital jamais pode ser comparado com uma antiga pedagogia, como a ´Levana`, de Jean Paul, fomentou uma literatura que, em seus vaidosos caprichos pela atenção do público, perdeu o caráter ético que confere dignidade mesmo às mais frágeis tentativas da pedagogia classicista. (Benjamin, 2007, p. 66-67).21

Como exemplo emblemático dessa nova produção literária fundamentada em

deliberações da psicologia da aprendizagem, Benjamin menciona o livro de um certo

pedagogo dos anos 30, Alois Jalkotzky, denominado Märchen und Gegenwart. Das deutsche

Volksmärchen und unsere Zeit [Contos maravilhosos e o presente. O conto maravilhoso

21 Jean Paul corresponde ao pseudônimo de Johann Paul Friedrich Richter (1763-1825), escritor do tempo do

idealismo alemão, deveras admirado por Walter Benjamin. Detentor de uma extensa obra envolvendo romances de formação, sátiras, idílios popularescos, o diferencial em seus escritos era o uso exacerbado da imaginação. Levana, ou Teoria Educacional é, porém, o seu único tratado pedagógico, publicado em 1807.

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135 alemão e o nosso tempo]. Nele, o autor esforça-se em desqualificar as narrativas fabulares

originais da cultura alemã, como as veiculadas pelos irmãos Grimm, por considerá-las alheias

a sensibilidade dos tempos modernos. Uma das justificativas para a condenação do mundo

fantástico dos ogros, bruxas e heróis é o atraso que geram na evolução da personalidade

infantil, uma vez que a mantém narcisicamente identificada com personagens simbolizadores

de um mundo adulto hostil e pouco acolhedor. A outra é a manutenção de uma memória típica

dos tempos monárquicos centro-europeus, que deve ser esquecida por corresponder a um

momento da história que pouco contribui para o aprimoramento dos ideais modernos do povo

alemão. Jalkotzky recomenda como solução o revisionismo minucioso de cada uma dessas

estórias, dada a necessidade de refazê-las didaticamente a partir de fantasias condizentes com

o cotidiano dos atores sociais das fábricas, cidades, centros comerciais, arranha-céus, etc.

Benjamin critica com veemência a superficialidade de tal forma de raciocínio,

argumentando que a falta de rigor dos conceitos que ele articula, sobretudo freudianos, apenas

atesta seu compromisso velado com o pensamento burguês.

Não se encontrará com facilidade um livro em que o abandono do mais autêntico e original seja exigido com a mesma naturalidade com que se concebe a delicada e reservada fantasia da criança, sem a menor consideração, enquanto demanda espiritual, no sentido de uma sociedade produtora de mercadorias, e com que se vê a educação com desenvoltura tão lamentável, enquanto mercado colonial para bens culturais. Essa espécie de psicologia infantil (...) constitui o equivalente exato da famosa ´psicologia dos povos primitivos`, vistos como clientes enviados por Deus para consumir as quinquilharias européias. (Ibid. p. 147-148).

A comparação da educação infantil com um processo de colonização subentende duas

particularidades. Tanto a educação passa a ser vista como nicho de mercado promotor da

circulação de mercadorias pedagogicamente criadas para o consumo à vista das demandas

escolares de crianças, como a juventude representada enquanto herdeira do modus vivendi da

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136 burguesia moderna. A necessidade de organização didática dos ambientes de ensino, em

função dessas restrições, leva o filósofo a duvidar da propriedade dos mesmos para carrear o

desenvolvimento moral de educandos segundo a matriz kantiana.

No artigo O ensino de moral, de 1913, Benjamin apresenta essa tese tomando por base

a clássica distinção que Kant faz entre legalidade ética e moralidade no prefácio da

Fundamentação da metafísica dos costumes: “Pois que aquilo que deve ser moralmente bom

não basta que seja conforme à lei moral, mas tem também de cumprir-se por amor dessa

mesma lei.” (Kant, 2005, p. 16). Sabe-se que para Kant, a liberdade de motivações externas

ou inclinações também são fatores de determinação da vontade ética, pois cabe apenas à

forma da lei constituir a vontade moral pura. Portanto não há porquê e nem como o estudo e a

fundamentação das temáticas sobre composição da lei ética necessitar de premissas

psicologizantes, pois a psicologia limita-se a investigar as ações e balizas do querer humano

como um todo.

Por esse prisma, a famosa afirmação kantiana de que nada pode ser pensado no

mundo, ou fora dele, como absolutamente bom a não ser uma boa vontade recebe de

Benjamin um comentário salutar:

Essa sentença (...) contém a orientação fundamental da ética kantiana (...) que nos interessa (...). ´Vontade` não significa nesse contexto nada de psicológico. O psicólogo constrói em sua ciência um fato psicológico, e, para a realização deste, a vontade, enquanto causa, representa no máximo um fator. Ao indivíduo ético importa o aspecto ético do fato, e este não é ético por haver procedido de inúmeras razões, mas tão somente enquanto procedeu de uma intenção ética. A vontade do ser humano compreende a sua obrigação perante a lei ética; esgota-se neste fato o seu significado ético. (Benjamin, 2007, p. 13).

A reflexão benjaminiana contida nessas linhas abre espaço para que os problemas de

uma educação ética denotem a antinomia que lhes é inerente. Se a finalidade da educação

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137 ética é a formação de vontades éticas, nada torna-as mais inacessíveis do que vê-las

enquanto grandezas psicológicas abordáveis por instrumentos de mensuração. Ou seja,

nenhuma resposta empírica obtida através de estímulos comportamentais garante o

atingimento da vontade ética enquanto tal. “Será que a bancarrota da educação ética é a

conseqüência dessas reflexões? Seria certamente o caso se irracionalismo significasse a

bancarrota da educação. Irracionalismo significa tão somente a bancarrota de uma ciência

exata da educação.” (Benjamin, 2007, p. 14). Deriva daí a renúncia benjaminiana às teorias

científicas do ensino para a educação ética, pois não há compatibilidade entre ela e esquemas

didáticos fechados. “A lei ética não se deixa apreender com maior exatidão pelos meios do

intelecto, isto é, de maneira universalmente válida.” (Ibid. p. 15).

Será que então a idéia de educação ética está fadada ao fracasso? Benjamin afirma que

não; o que deve ser esboçado é uma outra maneira de conduzi-la. “O princípio da comunidade

estudantil livre e da coletividade ética parece ser aqui de fundamental importância.” (Ibid. p.

14). A ´plasmação do ético` (expressão benjaminiana concernente à edificação de normas

grupais de conduta conversíveis em ordem empírica legal) requer a composição de

comunidades necessariamente livres. “A essência da formação ética da comunidade parece

fundamentar-se na imbricação entre rigor ético na consciência do compromisso comum e

aceitação da eticidade pela ordem comunitária.” (Ibid. p. 15).

Como princípio norteador das comunidades estudantis livres, que devem ser

fomentadas desde o ensino elementar até a universidade (agremiações poéticas, musicais,

literárias etc.), Benjamin sugere o aproveitamento pedagógico dos critérios de religiosidade

comuns aos discentes. Religiosidade no sentido que Hanna Arendt dá a palavra ´religare`, ou

seja, o de uma comunhão de sentimentos e predisposições assentes em afinidades

naturalmente identificadas sobre determinadas afeições, preferências, valores e práticas

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138 culturais.22 A pouca importância atribuída pela educação formal burguesa a esse quesito,

dada a centralidade de interesses nos aspectos técnicos do ensino, mais do que relegar a um

segundo plano a criação de condições para que educandos formem laços éticos autênticos,

termina engendrando efeitos concretos que terão elevado custo político sobre si mesma.

Um deles concerne ao fato de que ela, diante da obrigação de ter que ensejar nos seus

descendentes a adesão aos valores da existência liberal, fundamentais para reproduzir o

aparato ideológico que lhe sustenta, termina quase sempre tendo que apelar aos ideais cívicos

para realizá-lo. A opção forçada pelo civismo, declara Benjamin, reforça o embotamento da

eticidade, pois parte do princípio de que a moralidade necessita da proclamação da coragem

heróica, do elogio do extraordinário e da exaltação dos sentimentos pátrios para ser motivada.

Ora, Kant não se furtou de condenar a fiança em exemplos como fator heterônomo da

intenção ética, porquanto tal medida pertence ao território das inclinações. Benjamin vai ainda

mais além, acrescentando que esse tipo de proposta, não obstante retirar das atitudes morais

qualquer fundamento de liberdade, periga contaminá-las com a falaciosa casuística da

predestinação racial. Essa idéia caminha lado a lado com outra bastante parecida, a de

enaltecimento étnico; o casamento das duas fundamenta o ideário de nazismo e fascismo.

No trabalho Entre erotismo e economia geral: Bataille, Habermas (2002) comenta que

Benjamin já havia constatado mesmo antes de Battaile a competência do poder imaculado dos

regimes do ´Führer` e do ´Duce` para mobilizar características funcionais das sociedades

homogêneas capitalistas (disciplina, amor à ordem, padronização dos comportamentos,

obediência incontestável) lado a lado com elementos heterogêneos não pertencentes à esse

domínio, como a veneração do sagrado, da embriaguez e dos contramundos místicos. Esse

encontro de tendências radicalmente opostas atraía levantes populacionais porque

apresentava-se como encarnação viva de alteridades inteiramente radicais, capazes de cindir o 22 Esse conceito é desenvolvido pela autora no ensaio ´O que é autoridade?`, contido no livro ´Entre o passado e

o futuro`, São Paulo, Perspectiva, 1997.

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139 fluxo fastidioso e impotente dos fluxos temporais contínuos e conseguir realizar algumas

das promessas de felicidade perpetuadas nos discursos escatológicos. Assim, as manifestações

militares de massa e a intensa propaganda midiática do fascismo e nazismo não só evocavam,

pelo recurso à faculdade mimética, a possibilidade de concretização de um mítico Paraíso

Perdido como sugeriam ser factível mantê-lo para a eternidade no mundo material através do

recurso à violência.

Em 1915, Benjamin, ainda exercendo o cargo de presidente do Estudantado Livre de

Berlim, descreve no ensaio denominado A vida dos estudantes o complexo processo de

transformação sofrido no modo de pensar das antigas associações estudantis fundadas no

âmago das guerras de libertação contra a ocupação napoleônica (as ´Burschenschaften`), a

ponto de, nos primeiros anos do século XX, terem elas deixado de lado a crença nos discursos

amparados nos ideais de justiça e liberdade para assumir o culto exacerbado ao nacionalismo

e anti-semitismo como grande marca identitária.

O demasiado apego afetivo dos jovens à essas idéias reflete, nas palavras do filósofo, o

imenso processo de deserotização que a modernidade exerceu sobre suas personalidades

desde a tenra infância. Esse Eros a que Benjamin se refere não é o amante de Psiqué, mas a

fidedigna personificação do amor. Nas antigas teogonias, Eros era considerado um deus

nascido ao mesmo tempo que a Terra, a partir do Caos originário. Mas com o passar do

tempo, apareceu outra versão do mito, colocando-o como um dos filhos do Ovo primordial

colocado pela Noite, irmã de Céu e Terra. “É ele que assegura não somente a continuidade

das espécies, mas também a coesão interna do Cosmos, tema sobre o qual se exerceu a

especulação dos autores de cosmogonias, dos filósofos e poetas.” (Grimal, 2000, p.148).

Todavia, em O Banquete, Platão questiona as doutrinas dominantes, responsáveis pela

excessiva valorização da figura de Eros, através da lembrança de Diotima, sacerdotiza de

Mantinéia, que, segundo ele, foi a grande iniciadora de Sócrates. Afirmava ela que Eros não

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140 passava de um gênio intermediário entre deuses e homens, fruto da união de Poro (o

Expediente) com Pênia (a Pobreza) no jardim dos deuses durante uma festa para a qual

haviam sido convidadas todas as divindades. “Aos seus progenitores deve as qualidades bem

significativas e definidas que possui: sempre em busca do seu objecto, como a Pobreza, sabe

(...) atingir os seus fins (como o Recurso). Mas longe de ser (...) todo-poderoso, é uma força

eternamente insatisfeita e inquieta.” (Ibid. p. 148).

O que concluir então disso tudo? Nem deus e nem homem, o Eros da reflexão

platônica guarda as peculiaridades de uma entidade inacabada, semelhante aos personagens de

Kafka. Os poetas tornaram-se os responsáveis pela sua representação tradicional, a de uma

criança alada que, no momento repentino em que surge, estabelece uma diacronia que abala o

sujeito e quebra a continuidade do estado em que se achava no instante imediatamente

anterior. Com ele, outras dimensões vitais descambam a ser vislumbradas e mesmo trilhadas.

Portanto, uma educação que denega pedagogicamente a participação erótica do amor na sua

processualidade impede a fundação e o avanço dos laços de religiosidade na perspectiva do

livre e autêntico religare. Além disso, ao não estimular o livre comunitarismo discente como

pré-requisito ético, ela reduz as chances da presença do amor brotar entre os mesmos. Decorre

daí um círculo vicioso gerador de vácuos existenciais cuja necessidade de preenchimento

levou ao abraço do norte afetivo mais próximo que despontou enquanto absorvente das

deturpações emocionais geradas: o irracionalismo consumado na intolerância ao diferente.

Ora, rechaçar o diferente eqüivale a apartar-se das circunstâncias em que a vida

transcorre e auto-regenera sua essência. “A estranheza hostil, a incompreensão (...) perante a

vida (...) pode ser (...) interpretada como recusa da criação imediata (...). Isso transparece no

comportamento escolar (...).” (Benjamin, 2007, p. 40). As particularidades desse tipo de

escola, à vista dos princípios que lhe servem de guia e das armadilhas aporéticas em que

necessariamente cai, aduz Benjamin, oblitera as chances de evolução espiritual ainda na raiz.

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141 Com base na abordagem que Habermas (2002) desenvolve no ensaio A

consciência de tempo da modernidade e sua certeza de autocertificação, pode-se afirmar que

modelos pedagógicos como este em questão, dado o perfil dos parâmetros organizacionais

que lhe regem, dificilmente conseguem provocar auto-inquietações morais nos indivíduos a

ponto de solidarizá-los na íntegra com as injustiças do passado e ainda em curso na história.

O que Benjamin tem em mente é a idéia altamente profana de que o universalismo ético também tem de levar a sério as injustiças já sucedidas e, evidentemente, irreversíveis; de que há uma solidariedade das gerações com seus antepassados, com todos aqueles que foram feridos pela mão do homem em sua integridade física e pessoal (...) que pode ser efetuada e comprovada. (Habermas, 2002, p. 22).

Dizer que as instituições pedagógicas burguesas modernas tendem a falhar com esse

propósito moral significa indiretamente admitir que o modo como elas se apropriam e

transmitem formalmente a cultura arraiga-se em assimetrias cujos desdobramentos interferirão

na capacidade subjetiva dos discentes de absorver e avaliar os acontecimentos da história. O

fato de que as barbáries vigentes e as de outrora não suscitam reações de indignação ou sequer

são percebidas ratifica essa observação.

Isto posto, convém pontuar que a crítica de Benjamin sobre a educação moderna não

representa uma descrença total na modernidade. Esta última é um estado do qual não se pode

escapar; todavia, as perversões que estrangulam-na e bloqueiam a plena efetivação de suas

potencialidades implicam não só questionamentos, mas a urgência de mudança política das

relações sociais nela desenhadas. Essa dualidade explica a coexistência, em Benjamin, de

atitudes contra-modernas, evidenciadas na minuciosa caracterização dos traços mítico-

infernais da mesma, com outras pró-modernas, saudando o potencial revolucionário da técnica

consubstanciada no cinema, surrealismo, dadaísmo, etc. Contra os aspectos da modernidade

que cerceiam a configuração do universalismo ético (a efetivação de seu projeto educacional é

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142 um deles), Benjamin, segundo Rouanet & Witte (1992), assume uma conduta cuja

explicitação paulatina ao longo de sua obra convém ser normativamente chamada de ética da

recusa. Mas essa ética da recusa não esgota-se nas meras denúncia e inaceitação do quadro em

voga, pois seu horizonte de referências jamais abre mão da possibilidade existencial de

revertê-lo. “A (...) modernidade real abre um espaço para a crítica – o real é denunciado

através do normativo – e para a utopia – ela torno visíveis os contornos de uma ´outra`

modernidade.” (Rouanet & Witte, 1992, p. 115).

É no bojo desse debate que cabe uma análise mais precisa do estatuto pedagógico das

artes modernas, tendo em vista a utopia da mudança em cima da qual Benjamin situa-se. No

capítulo anterior, discutimos cinema, surrealismo, dadaísmo e outras manifestações artísticas

modernas a partir de uma matriz subsidiada na leitura crítica que o filósofo faz da literatura,

psicanálise, crítica teatral, história política, etc. Agora, trataremos de tematizá-las

considerando suas implicações educacionais. Como estratégia para tal, recorreremos

novamente ao tema do jogo e da ludicidade enquanto mecanismos de suporte.

Apenas como recordação, quando discorremos sobre os estudos banjaminianos acerca

dos jogos de azar e brincadeiras/jogos infantis, algumas situações bem singelas foram

discriminadas pelo filósofo. No caso dos primeiros, eles emergem como eqüivalente mimético

das relações, representações e divagações da precariedade humana no que tange às

circunstâncias imprevisíveis e indiscerníveis do destino. Ao passo que a ciência das

informações que o destino traz é, em vista da sua aleatoriedade, um evento por si mesmo

chocante, o recurso à aposta em dinheiro serve para amplificar esse impacto bem como

impulsionar o exercício de tentar antecipá-lo via recorrência à leitura divinatória. Quanto às

crianças, no que lhes compete, elas dialogam com o mundo circundante mimetizando

prazerosamente objetos e coisas, e do emprego desses meios deriva tanto a internalização do

mundo adulto bem como a gênese e o amadurecimento das estruturas lingüísticas. A mímesis

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143 está assim ligada de maneira lúdica ao aprendizado e conhecimento. Os homens são

dotados da dupla capacidade de produzir semelhanças e interagir com as criadas por outrem.

No entanto, tal situação não deixa de ser paradoxal, pois segundo o próprio Benjamin,

não há como as semelhanças permanecerem estanques no transcorrer das eras. Pela teoria

benjaminiana, existe uma história da capacidade mimética humana, porquanto não existem

semelhanças imutáveis e eternas; todas elas são geradas e inventariadas pelo acervo de

conhecimentos e técnicas humanas disponíveis nas épocas. Malgrado a ascensão do

pensamento científico e da razão abstrata ser interpretada por muitos historiadores das idéias

como a definitiva derrocada dos saberes milenares centrados no mito, na magia, na astrologia

e na adivinhação mística, Benjamin vai justamente no sentido contrário dessa elucubração, ao

defender que a capacidade mimética não desaparece, mas refugia-se nas linguagens falada e

escrita durante a história. Portanto, não há extinção, mas adequação e auto-transformação

correlatas ao ritmo dos tempos. Assim, a leitura das constelações, a aprendizagem e o uso

infantis do alfabeto, a decifração das mensagens anunciadas nas vísceras de um animal

sacrificado em ritual, o mergulho num texto e a adivinhação dos resultados desenhados em

combinações de números ou cartas numa mesa de jogo alinham-se mimeticamente da mesma

maneira que o gesto corporal na dança e no brincar com a poesia ou pintura.

A teorização benjaminiana sobre a capacidade mimética, ressalva Gagnebin (2005),

não assume então um perfil demasiado restritivo, pois não erige-se sobre uma noção fechada

de semelhança. Benjamin não enxerga-as apenas como cópias ou reproduções, apesar dessa

dimensão realmente existir em certas ocasiões. Ou seja, semelhanças não limitam-se a uma

figuração analógica e identitária entre coisas sensíveis. “Saber ler o futuro nas entranhas do

animal sacrificado ou saber ler uma história nos caracteres escritos sobre uma página significa

reconhecer não uma relação de causa e efeito entre a coisa e as palavras ou as vísceras, mas

uma relação comum de configuração.” (Gagnebin, 2005, p. 96-97). Em se tratando de relações

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144 de configuração, mesmo que nos seus começos tenha existido imitações, seu

desaparecimento não destitui a similitude das partes. Por outro lado, podem haver

configurações cuja natureza não é tão determinada por imitações. Nesse caso, estamos falando

de uma semelhança não sensível. O próprio Benjamin, num auto-depoimento de memória

apresentado em Infância em Berlim por volta de 1900, ilustra uma ocorrência desse tipo:

É numa velha rima infantil que aparece a Muhme Rehlen. Como na época Muhme nada significava para mim, essa criatura se tornou em minha fantasia uma assombração: a Mummerehlen. Os mal entendidos modificavam o mundo para mim. De modo bom, porém. Mostravam-me o caminho que conduzia ao seu âmago. Qualquer pretexto lhes convinha. Assim quis o acaso que, certo dia, se falasse em minha presença a respeito de gravuras de cobre [Kupferstich]. No dia seguinte, colocando-me sob uma cadeira, estiquei para fora a cabeça – a isto chamei de ´gravuras de cobre` [Kopf-verstich]. Mesmo tendo (...) deturpado a mim e às palavras, não fiz senão o que devia para tomar pés na vida. A tempo aprendi a me mascarar nas palavras, que, de fato, eram como nuvens. O dom de reconhecer semelhanças não é mais que um velho resquício da velha coação de ser e se comportar semelhantemente. Exercia-se em mim por meio de palavras. Não aquelas que me faziam semelhantes a modelos de civilidade, mas sim às casas, aos móveis e as roupas. (Benjamin, 1995, p. 98-99).23

Para a criança, a palavra da lembrança do filósofo jamais é engessada por convenções:

ela abriga um universo a ser explorado. Os indícios dessa exploração, que os adultos

normalmente desaprenderam a fazer, perdura na essência das linguagens artísticas, diz

Gagnebin (2005). À luz da noção de semelhanças não sensíveis, da mesma maneira que na

história pessoal do indivíduo o desenvolvimento lingüístico segue um percurso marcado pela

não disjunção mimética entre letra, palavra, objeto material, adivinhação, brincadeira, pinturas

coloridas, etc., na história da humanidade verifica-se algo parecido, no sentido de que desde

sua gênese, a linguagem dos homens transita dos desenhos e pinturas em cavernas e

monolitos para a arquitetura, ideogramas, hieróglifos, escrita rúnica, alfabetos e, finalmente,

23 A palavra ´muhme`, atualmente obsoleta, significa ´tia` em alemão.

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145 bricolagens entre som, letra e imagem (eis um dos porquês das cartilhas barrocas do

Biedermeier, fidedignos testemunhos desse leque de combinações, figurarem entre os

documentos históricos que mais receberam a atenção de Benjamin).

Curiosamente, numa ocasião bastante despretensiosa, Benjamin teria dito a um amigo

acreditar que as palavras de qualquer língua são retratações gráficas dos objetos e eventos que

designam. Essa intuição é novamente retomada em um trabalho onde o idioma chinês é

investigado (Gagnebin, 2005). Por outro lado, o enovelamento do leitor com a literalidade da

palavra desprende de suas funduras mais viscerais a dimensão mimética, exatamente como as

imagens que brotam e somem dos cenários teatrais entre um ato e outro. No excerto abaixo,

retirado do original alemão de Teoria das Semelhanças, encontramos elementos que, mais do

que ratificarem essa relação, fornecem subsídios para avançarmos um pouco mais no que

concerne ao potencial pedagógico das artes modernas:

O texto literal é o único e imprescindível fundo para a enigmática imagem-quebra cabeças poder se formar. O composto de sentido que se encontra nos sons da frase é portanto o fundo em que o semelhante pode, como um relâmpago, vir à luz a partir de um tom. (Benjamin, 1972, p. 208-209).

Com a arte moderna, vem se juntar ao texto e som, enquanto núcleos desencadeadores

da faculdade mimética, a influência da cor, desenho, imagens abstratas pintadas, fotografia,

filme, mosaicos, artefatos de metais, blocos de concreto e outros ingredientes mais. Assim,

pode-se dizer que ela espelha a emergência de uma singular situação histórica da configuração

lingüística do semelhante e dos comportamentos miméticos. Caso consideremos o cinema

como fidedigno retrato da culminância desse rico processo, os arranjos miméticos

dinamizados no interior do inconsciente ótico com as profusões de cenas, tomadas fílmicas,

aproximações, distanciamentos, acelerações e retardamento de quadros, na medida em que

aproximam coisas, situações e presenças pertencentes a diversos espaços e tempos,

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146 contribuem para impulsionar uma dialética da proximidade e da distância, do familiar e do

não reconhecido, do imagético movimentado e do real imobilizado. Ou seja, as interfaces das

condensações e dilatações rítmicas dos circuitos de imagens, diálogos, luzes e sons acalentam

o alvorecer de momentos onde fluxos até então separados se encontram e se juntam gerando

novas intensidades. Logo, nas idas e vindas por entre as linhas de tensão que esse contexto

inusitado e descontínuo estabelece, vige a chance repentina de um verdadeiro outro eclodir

(Gagnebin, 2007).

Nesse sentido, o tipo de relação que o sujeito tem com objetos, conteúdos e situações

mediado pelas estruturas do cinema remete a uma forma de conhecer o mundo que não

obedece diretamente aos padrões estabelecidos pelas categorias do entendimento. Nela, o

sujeito não toma posse do objeto para em seguida esquadrinhá-lo, mecanismo esse que não

deixa de ter um certo ingrediente de dominação. Trata-se antes de uma interação onde

predomina muito mais a tactibilidade entre partes, por meio da qual o sujeito deixa-se afetar

pelas emanações do objeto sem necessariamente inclinar-se a submetê-lo. Portanto, uma

esfera do conhecer que, na perspectiva de Gagnebin (2007), enovela o escrutínio de Logos e a

sensibilidade de Eros.

No esteio de tal interpenetração entre Logos e Eros, é lícito falar que esse outro

registro de saber tende a aprumar-se fora dos ditames que guiam os passos do conhecedor que

domina e do conhecido que é dominado. Em contrapartida, seria ingênuo achar que essa

dimensão crítico-libertária sustenta-se epistemicamente por si mesma. Para que ela ocorra,

urge que o cultivo das prerrogativas que abalizam suas radicais aparições nas brechas das

linguagens se dê livre de manipulações ou camuflagens. O desrespeito à essa exigência

fertiliza a massificação alienadora, como o provam a indústria cultural e o ideário nazi-

fascista. Apenas assim garante-se ao olhar o necessário afastamento que enquadra a

estranheza sem julgá-la como convivência impossível ou fonte de angústia e medo. Satisfeita

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147 essa restrição, experiência estética e formação insurgem como pólos complementares que

retroalimentam-se. Ou, como diz Gagnebin (2007):

A experiência estética, experiência da distância do real em relação a nós, experiência também da distância entre o real tal como é e qual poderia ser, essa experiência pode configurar um caminho privilegiado para o aprendizado ético por excelência, que consiste em não recalcar o estranho e o estrangeiro, mas sim em ser capaz de acolhê-lo na sua estranheza. (Gagnebin, 2007, p. 94).

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148 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciamos nosso estudo levantando o quanto o jogo, ao longo da história da filosofia,

foi abordado como questão problemática por pensadores tributários das mais diferentes

orientações filosóficas. Todavia, caso situemos as abordagens feitas pelos Iluministas como

intensamente ricas, detalhadas e com enfoques específicos (jogo como paradigma de

conhecimento: Leibniz e Bernouilli; jogo como referência para investigações sobre justiça:

Pascal e Fermat; o jogo e seu papel na educação: Erasmo de Roterdam e Rousseau), há que se

lembrar a original inovação proposta por Kant, conduzindo-o ao território da estética. O

caminho inaugurado por Kant em grande medida exerceu influências sobre as concepções dos

Românticos sobre arte e linguagem, que, por sua vez, sofreram revisões por parte de Walter

Benjamin.

Em seguida, procuramos caracterizar, no capítulo um, as perspectivas próprias a partir

das quais Walter Benjamin trabalha o tema do jogo, o qual, nas palavras de Missac (1998),

permanece como item de grande importância no bojo de sua obra. Vimos que Benjamin

realizou reflexões bastante peculiares sobre a lógica dos jogos de azar adotando como pano de

fundo o advento da Modernidade, tal qual entendida por Charles Baudelaire, e sobre a

natureza dos jogos e brincadeiras de crianças. Também mostramos como a análise

benjaminiana sobre o jogo pode ser articulada com outros conceitos significativos seus, tais

como presença de espírito, faculdade mimética, semelhanças, alegoria e ´Witz`.

Depois, tratamos de investigar como tais inter-relações nos possibilitam compreender

o porquê de Benjamin conferir elevada credibilidade ao que seria o papel político-pedagógico

dos produtos da cultura e da arte modernas junto às massas (capítulo dois), bem como seu

potencial para promover processos efetivos de formação ética contrapostos ao ideário

educacional burguês (capítulo três).

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149 Feito esse apanhado geral, acreditamos que determinados pontos abordados no

estudo ainda carecem de breves observações finais.

O primeiro deles alude ao fato de que Benjamin não se preocupa em conceituar jogo,

no sentido de precisamente dizer o que ele é, como também não o fizeram Tomás de Aquino,

Leibniz, Bernouilli, Pascal, etc. Todavia, suas análises trazem à baila informações que

possibilitam o encaminhamento de uma definição. Assim, por nossa própria conta e risco,

ousaríamos dizer, com base em Benjamin, que o jogo é uma representação mimética das

complexas malhas de relações que os homens estabelecem com os objetos, entidades,

concepções e linguagens do mundo, cuja constituição segue caminhos espaço-temporais

imprevisíveis e, por isso mesmo, sempre abertos a novos horizontes de configuração. Apenas

a título de exemplo, cumpre afirmar que tal formulação distancia-se relativamente das

propostas de dois grandes autores contemporâneos que efetivamente resolveram conceituar

jogo: o historiador Johan Huizinga e o filósofo Hans Georg Gadamer. Por mais que os dois

não tenham sido discutidos neste trabalho, ainda assim acreditamos que, mesmo nas

considerações finais, convém invocá-los apenas para mostrar como a noção de jogo é

polissêmica, e em função desse aspecto, diferentes caracterizações podem vir à tona. No seu

livro Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura, Huizinga (1995) define jogo como

sendo uma atividade livre na qual há alguma disputa, desprovida de utilidade imediata e

ocorrida dentro de cercanias espaço-temporais particulares, dependente de regras e capaz de

aproximar pessoas em função da certeza de partilharem coisas em comum. Já Gadamer, em A

atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, concebe jogo como movimento da

vida: “O jogo aparece (...) como um auto-mover-se que por seu movimento não pretende fins

nem objetivos, mas o movimento como movimento, que quer dizer um fenômeno de

redundância (...) do estar vivo.” (Gadamer, 1985, p. 38). Em linhas gerais, notamos que, ao

passo que Huizinga propõe um conceito apenas descritivo de jogo a partir tanto do registro de

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150 suas características empíricas como de análises documentais, Gadamer denota afinidade

com a noção kantiana de livre jogo estético das faculdades. Como vimos na introdução e

capítulo primeiro de nossa tese, Benjamin segue um caminho diferenciado.

Curiosamente, em se tratando da afeição de Benjamin por jogos, Missac (1998) afirma

que o filósofo denotava ser intensamente crítico com os jogos esportivos profissionais. No seu

entender, a lógica reinante no esporte profissional nutria grande semelhança com a dinâmica

própria da Modernidade. A produção constante de novas informações disseminadas pelas

mídias sobre os limites do corpo humano sendo superados através de quebras de recordes

esportivos somente mitiga o modo como ele de fato é realmente concebido pelas relações de

produção invariáveis norteadoras do mundo capitalista burguês: um prolongamento carnal de

máquinas engenhadas para funcionarem com eficiência, essas sim representadas como os

organismos centrais reguladores da vida moderna. O jogador esportivo que estatisticamente

faz mais pontos num jogo, defende mais bolas, corre distâncias no menor tempo etc. e logo

adiante é superado por algum companheiro que faz tudo isso melhor representa um signo

alegórico da contenção das imensas potencialidades técnicas da Modernidade em relações de

produção padronizadas e invariáveis.

Um outro item que gostaríamos de destacar diz respeito ao aparecimento de uma

questão bastante específica que, a nosso ver, é significativa para futuras pesquisas filosóficas.

Em um artigo de 1928 denominado Velhos brinquedos: sobre a exposição de brinquedos no

Märkische Museum, Benjamin reitera o quanto os pedagogos rousseaunianos não

conseguiram captar as tendências despóticas e desumanas do comportamento das crianças.

“Deparou-se então com a faceta cruel, grotesca e irascível da natureza infantil (...) As crianças

são insolentes e alheias ao mundo.” (Benjamin, 2007, p. 86). Todavia, continua o filósofo,

Paul Klee e o escritor Joachim Ringelnatz não deixaram isso passar desapercebido em seus

trabalhos. Por outro lado, em Rua de Mão Única, Benjamin assevera: “Há muito o eterno

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151 retorno de todas as coisas tornou-se sabedoria de criança, e a vida, uma antiqüíssima

embriaguez de dominação, com a retumbante orquestra, no centro, como tesouro de coroa.”

(Benjamin, 1995, p. 39). Pois bem, o que será que Benjamin quer dizer com a expressão

“eterno retorno de todas as coisas”? E, além disso, por que o eterno retorno guarda afinidade

com o que seria o mundo próprio da infância? Eis um problema que com certeza requer

maiores aprofundamentos.

Por fim, vimos que, consoante Benjamin, os efeitos impactantes dos trabalhos de

Baudelaire, Kafka, Proust, Brecht, Tzara e outros artistas em muito derivou de suas singulares

presenças de espírito. Através delas, conseguiram com rara perspicácia captar a grandiosidade

fulgurante das palavras e empregá-la em contextos artísticos dos mais diversos perfis. Muito

dos sucessos e polêmicas que engendraram decorre destas intervenções criativas e

deliberadamente lúdicas nas linguagens. Ora, assim como Benjamin, Wittgenstein e Jacques

Derrida, salvaguardando a especificidade dos recortes teóricos de cada um, empregaram a

noção de jogo para fundamentar diversas reflexões acerca dos horizontes e possibilidades das

linguagens. Portanto, constituiria um contribuição notável proceder o mapeamento dos

principais conceitos e raciocínios destes dois últimos em relação aos de Walter Benjamin no

que tange à referida problemática.

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REALE, G. História da filosofia: do Humanismo a Kant. São Paulo: Paulus, 1990.

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158 modernidade em Walter Benjamin. Revista USP, N.º 15, set-nov 1992.

ROUSSEAU, J. J. Emílio, ou, Da educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

SCHOLEM, G. O golem, Benjamin, Buber e outros justos: judaica I. São Paulo: Perspectiva,

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____________ Walter Benjamin: a história de uma amizade. São Paulo: Perspectiva, 2006.

SELIGMANN-SILVA, M. A redescobterta do Idealismo mágico. In: BENJAMIN, W. O

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______________________ ´Double Bind`: Walter Benjamin, a tradução como modelo de

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LISTAS

DE

ANEXOS

ANEXO I

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161

“O Retrato de Georges Dyer num Espelho”, de Francis Bacon (1909-1992) Disponível em http://francis-bacon.cx/1966_67.html Acessado em 19/03/2008.

ANEXO II

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162

“A pequena Torre”, de Charles Meryon (1821-1868) Disponível em www.chrislee.org.uk/InspringCreativity/GR165 Acessado em 22/01/2008.

ANEXO III

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163

“Les jouers de cartes” , de Pierre Bergaigne (1652-1708) Disponível em http://www.picture-desk.com Acessado em 30/09/2008.

ANEXO IV

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164

“Rouge et noir (card game): gambling table in the Palais-Royal”, de Georges Cruikshank (1792-1878) Disponível em http://www.lesartsdecoratifs.fr/fr/05bibliothequeartsdeco/index.html Acessado em 01/10/2008.

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“O CONCEITO DE JOGO EM WALTER BENJAMIN E SUAS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS PARA O SUJEITO". Tese de Doutorado em Filosofia apresentada por DIRCEU RIBEIRO NOGUEIRA DA GAMA em 30 de março de 2009 ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UGF-RJ, e aprovada pela Comissão Julgadora formada pelos seguintes professores:

Prof. Dr. Filipe Ceppas de Carvalho e Faria (Orientador)

Universidade Gama Filho – UGF

Prof. Dr. Jorge Luiz Rocha de Vasconcellos Universidade Gama Filho – UGF

Prof. Dr. Norman Madarasz

Universidade Gama Filho – UGF

Profa. Dra. Claudia Castro Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/Rio

Profa. Dra. Andréa Bieri Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/Rio

Rio de Janeiro, 30 de março de 2009

Prof. Dr. Edson Peixoto de Resende Filho Coordenador do Programa de Pós-graduação em Filosofia

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