produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de … · 2019. 1. 10. · 2...

16
1 GT 27. Conflitos Socioambientais, Conhecimento Tradicional e Desenvolvimento Sustentável no Brasil Central. Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de buriti no Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses. 1 Mônica Sousa Pereira (Mestranda/PPGCSOC/UFMA - CV: http://lattes.cnpq.br/2576635947105598) PALAVRAS CHAVE: Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses. Produção Artesanal. Sistema de conhecimento. 1 Trabalho apresentado na 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 09 e 12 de dezembro de 2018, Brasília/DF.

Upload: others

Post on 09-Apr-2021

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de … · 2019. 1. 10. · 2 O plantio de palmeiras de buriti no povoado Achuí Considerando o modo pelo qual

1

GT 27. Conflitos Socioambientais, Conhecimento Tradicional e Desenvolvimento

Sustentável no Brasil Central.

Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de buriti

no Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses.1

Mônica Sousa Pereira

(Mestranda/PPGCSOC/UFMA - CV: http://lattes.cnpq.br/2576635947105598)

PALAVRAS – CHAVE: Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses. Produção Artesanal.

Sistema de conhecimento.

1 Trabalho apresentado na 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 09 e 12 de dezembro

de 2018, Brasília/DF.

Page 2: Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de … · 2019. 1. 10. · 2 O plantio de palmeiras de buriti no povoado Achuí Considerando o modo pelo qual

2

RESUMO

O artesanato à base de fibra de buriti - Mauritia flexuosa - é uma das atividades praticadas por

artesãs que historicamente residem e trabalham no povoado Achuí no Parque Nacional dos

Lençóis Maranhenses (PNLM), no município de Barreirinhas. O manejo das palmeiras para a

retirada dos olhos ou flechas (folhas novas) e demais partes para a confecção das peças

artesanais, é ancorado em formas específicas de saber, revelando estreita relação entre as

famílias e o meio biofísico. O manejo e uso das palmeiras obedecem a regras locais baseadas

em ciclos da natureza, consideração a sua agência, e um sistema de disposição de palmeiras

machos e fêmeas na composição do palmeiral, de modo a assegurar a obtenção da matéria

prima que serve de base à produção artesanal. O trabalho procura dar conta do complexo

sistema de manejo operado pelas famílias, enfatizando os diferentes momentos de cultivo,

cuidado e exploração dos recursos provenientes das palmeiras utilizados na produção

artesanal.

Palavras – Chave: Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses. Produção Artesanal. Sistema

de conhecimento. Manejo das Palmeiras de Buriti.

INTRODUÇÃO

Dentre as atividades econômicas praticadas pelas famílias que vivem e trabalham em

distintas localidades do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses (PNLM), estão a pesca, a

agricultura, o extrativismo, a criação de animais, a produção, beneficiamento e

comercialização da castanha de caju.

No PNLM observa-se que há um choque de concepções de natureza que orientam a

forma como os espaços são pensados e utilizados. Há duas concepções conflitantes: a das

famílias que vivem e trabalham historicamente; e a do órgão de monitoramento ambiental

que, orientado pelo SNUC, advoga uma perspectiva de natureza intocada (DIEGUES, 2008).

É neste cenário de concepções de natureza conflituosas que o trabalho toma como

objeto de estudo, o cultivo e o manejo da palmeira de buriti para indicar as interações que as

famílias estabelecem com as espécies vegetais no povoado Achuí. Procuro compreender como

as famílias do povoado interagem com as espécies vegetais, a partir dos saberes

historicamente construídos ao longo do processo de ocupação do território.

Na tentativa de aprofundar esse problema, procuro demonstrar, a partir do cultivo da

palmeira de buriti, como o artesanato à base das fibras desta palmeira é fruto de

conhecimentos nativos derivados do respeito ao ciclo de desenvolvimento da sua principal

matéria prima: as flechas ou olhos. Nesse sentido, entender as práticas que regem o cultivo e

manejo das palmeiras é o foco central deste trabalho.

Page 3: Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de … · 2019. 1. 10. · 2 O plantio de palmeiras de buriti no povoado Achuí Considerando o modo pelo qual

3

1 O cultivo e o manejo da Palmeira de Buriti no Parque Nacional dos Lençóis

Maranhenses: o caso de Achuí

O artesanato a base da fibra da palmeira de buriti (Mauritia flexuosa) é uma prática

considerada estratégica para o entendimento das atividades econômicas realizadas pelas

famílias PNLM. Neste sentido os palmeirais se configuram como importante recurso para a

reprodução das famílias do povoado Achuí. O plantio e cuidado dos buritizais são primordiais

para a manutenção da reprodução material dessas famílias.

Não são todas as famílias de Achuí que cultivam a palmeira de buriti. Destaca-se entre

elas a de Dona Francisca, que possui o costume de plantar e cultivar essa espécie vegetal com

destacado cuidado. Porém, o cultivo das palmeiras no PNLM alimenta a circulação da sua

principal matéria prima, o linho, que é comercializado internamente entre os povoados através

de uma rede de contatos mediada por relações de parentesco, amizade, compadrio e

comerciais.

Dona Francisca menciona a importância de ter aprendido a prática do artesanato com

sua avó e mãe. Quando fala em o artesã, se refere à própria prática de tecer e trançar o linho,

ou seja, do artesanato. Porém, o cultivo da palmeira do buriti se iniciou quando se casou e

veio morar em Achuí.

Ressalta que começou a prática no povoado há 22 anos. A observação de outras

mulheres plantando as mudas da palmeira próxima ao rio fez com que além de exercer o

artesanato à base a fibra também cultivasse a sua própria matéria prima para a produção dos

seus artefatos que comercializa.

O relatos da informante revelam a preocupação dos moradores em perpetuar essa

espécie na região, demonstrando que Achuí não é um caso isolado no cuidado com as

palmeiras. O plantio dos caroços, e a produção de mudas da palmeira do buriti são feitos por

diversas famílias nos povoados do PNLM no município de Barreirinhas.

Dos vinte três povoados que estão nos limites do PNLM no município de Barreirinhas,

em nove registra-se a prática de cultivo de palmeirais de buriti, segundo relatório apresentado

pelo Grupo de Estudos Rurais e Urbanos em 2017. São eles: Achuí, Baixa da Onça, Buritizal,

Mirinzal, Bom Jardim, Tratada de Cima, Tratada dos Carlos, Tucuns e Mocambo.

Como é uma prática que pode ocorrer durante todos os meses do ano, possibilita uma

entrada monetária constante que compõe a renda familiar, contribuindo para a manutenção da

família. Essa prática possui um grande valor para as artesãs, pois implica respeito aos ciclos

naturais da palmeira do buriti envolvendo técnicas de manejo criadas e produzidas ao longo

de gerações.

Page 4: Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de … · 2019. 1. 10. · 2 O plantio de palmeiras de buriti no povoado Achuí Considerando o modo pelo qual

4

Pinheiro (2011, p.99) ressalta que “em muitas regiões brasileiras, as palmeiras são a

vida do povo” e, seguindo essa afirmação, para muitas famílias do Parque elas sempre

estiveram presentes, fazendo parte dos seus modos de vida. Nos termos dos interlocutores,

uma palmeira de buriti se divide em tronco ou madeira, palha, braço e olho. Deste último é

retirada a flecha e demais matérias primas.

Durante os trabalhos de campo a fim de perceber como os interlocutores percebiam a

palmeira fizemos oficinas de desenho para melhor captar as informações e o entendimento

sobre as palmeiras de buriti.

O uso de desenhos durante o trabalho de campo foi uma ferramenta importante para a

compreensão e interpretação dos conhecimentos detidos pelas famílias. O desenho feito por

Dona Francisca e seus familiares demonstra a importância de todas as partes da palmeira para

a utilização de suas matérias primas assim como, ratifica o conhecimento da ecologia dessa

espécie vegetal.

Desenho de uma palmeira de buriti feito por moradores do povoado Achuí. Foto: Mônica S. Pereira.

Abril de 2016.

Apesar das flechas serem apontadas como a principal matéria prima mais utilizada

pelas artesãs, existem outras que podem ser retiradas da palmeira de buriti e utilizadas pelas

famílias na produção artesanal. O quadro a seguir, elaborado a partir do diálogo com as

interlocutoras, mostra diferentes usos da palmeira de buriti, identificando os artefatos

produzidos de cada parte da palmeira.

Page 5: Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de … · 2019. 1. 10. · 2 O plantio de palmeiras de buriti no povoado Achuí Considerando o modo pelo qual

5

Possibilidades de utilização da palmeira de buriti

Matérias primas

retiradas da

Palmeira de

Buriti (Mauritia

flexuosa)

Produtos e Artefatos produzidos

USO INTERNO

Uso/Consumo (interno)

USO EXTERNO

Comercialização (uso/Consumo

- externo)

Tronco (estirpe) Pontes, estacas p/cercas,

cochos, jarros p/planta.

Braço (pecíolo)

c/ ou s/ casca

Móveis domésticos,

gaiolas, depósitos para

alimentos, bolsas,

cancelas, portões, cercas,

cortinas, tapitis.

Folhas Maduras

ou abertas

Cobertura e tapagem de

casas e ranchos, cobertura

de canoas, cercas.

Tala do braço

Peneiras de cozinha e

farinhada, tipitis ou

tapitis, cestos p/ roupas,

balaios, crivadores,

estendedor de roupas.

Talo da palha Gaiolas, jiquis, pequenos

currais, munzuais.

Olho ou flechas

(folha nova com

o linho)

Artefatos de uso interno

(cordas, cabrestos,

vassouras, espanadores).

Linho (natural

ou tingido)

Bolsas, tapetes, chapéus, Bonés,

capinhas de garrafas, pulseiras,

pompons, descanso de mesa,

cabrestos de sandália, cintos,

centros de mesa.

Polpa do fruto

(buriti)

Comidas (raspas secas,

doces, cremes, rapadura)

Bebidas (licores, vinhos,

sucos, refrescos).

Comidas (raspas secas, doces,

cremes, rapadura)

Bebidas (licores, vinhos, sucos,

refrescos).

Elaborado por Mônica Sousa Pereira. Fonte: Monografia de CARVALHO (1986)

O quadro separa artefatos de uso e consumo interno pelas famílias de distintos

povoados do Parque, daqueles voltados à comercialização para os turistas, notando-se a

Page 6: Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de … · 2019. 1. 10. · 2 O plantio de palmeiras de buriti no povoado Achuí Considerando o modo pelo qual

6

multiplicidade de matérias primas extraídas da palmeira do buriti. Ressalte-se o maior número

de artefatos ligados ao consumo interno entre os povoados do que aqueles voltados à

comercialização.

Isso demonstra que o uso dos materiais extraídos das palmeiras pelas famílias, não se

resume à comercialização dos artefatos produzidos para os turistas, indo muito além de

atender demandas externas de mercado com a venda das chamadas peças. Este quadro indica

a complexidade e riqueza desses modos de vida e a fina relação com recursos existentes na

região do PNLM. Ressalte-se que, apesar de a palmeira ser utilizada em sua totalidade pelos

moradores do PNLM, sua apropriação é mediada por uma série de regras que contribuem para

sua conservação.

Cada um dessas matérias primas da palmeira destina-se a um tipo de artefato, segundo

as artesãs. A retirada das fibras da flecha ocorre quando é feita uma pequena incisão, com

uma faca, na parte superior das flechas. A partir disso, ocorre o que as artesãs chamam de

riscar a flecha. Desses riscos é feita a separação do material entre linho, borra ou imbira e

talo. Depois da separação, o linho, principal produto retirado da flecha, é cozido em água

quente durante dez minutos, sendo colocado para secar ao sol.

Muitas artesãs têm o hábito de tingir essa fibra com pigmentos naturais, ou seja, no ato

do cozimento, colocam folhas, flores, pedaços de troncos de árvores misturado com cinzas,

para a fixação da cor, de modo a obterem um produto diferenciado.

Nesse sentido, o conhecimento das espécies vegetais que dão cor ao linho é muito

importante e representa os saberes que essas mulheres detêm, tanto em relação à natureza,

quanto à prática artesanal. Usam também a anilina e o papel crepom para obtenção de cores

não obtidas com pigmentos naturais.

Todo esse conhecimento adquirido por D. Francisca deve ser pensado dentro de um

sistema complexo de manejo das espécies vegetais. Desse modo, os processos de tratamento

dos materiais retirados da palmeira de buriti estão inseridos em um sistema de organização

que envolve não só o manejo, mas também o controle e regras de uso das matérias primas do

seu buritizal.

A disposição e uso desse recurso vegetal pela artesã são regulados constantemente,

respeitando os ciclos naturais de recuperação da palmeira, o que contribui ao mesmo tempo

para a conservação daquele ambiente.

2 O plantio de palmeiras de buriti no povoado Achuí

Considerando o modo pelo qual a produção artesanal ocorre entre essas mulheres,

envolvendo processos aprendidos e acumulados durante toda uma vida, deve-se compreendê-

Page 7: Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de … · 2019. 1. 10. · 2 O plantio de palmeiras de buriti no povoado Achuí Considerando o modo pelo qual

7

la em sua totalidade, a começar pela garantia do acesso ao território e aos recursos naturais

dos quais essa prática depende.

Ao depender de saberes e modos de fazer específicos, relativos ao saber cuidar,

manejar, tratar e tecer, a produção artesanal extrapola sua importância econômica. É

importante frisar que tais conhecimentos e práticas voltadas ao artesanato não se separam de

outras atividades desenvolvidas pela interlocutoras, no conjunto das demais relações que

ocorrem no âmbito da organização econômica familiar.

O período de frutificação do buritizeiro é diferente do período do surgimento das

chamadas flechas, matéria prima que origina o linho, a borra e o talo, usados para a

fabricação de diversos artefatos. Os cachos de buriti, com o fruto, só ocorrem quando as

palmeiras atingem a idade adulta. As primeiras flechas aptas para serem retiradas de uma

palmeira ocorrem após cinco anos de cultivo, mesmo não atingindo a idade de frutificar.

Dona Francisca, que conhece o ciclo que desenvolvimento dessa espécie vegetal, nos

disse que seu fruto, o buriti, brota entre os meses de junho e dezembro, período caracterizado

de verão, onde não há incidências de chuvas. As mudas começam a crescer após quinze dias

em que o fruto caiu da palmeira.

Como os ambientes em que nascem geralmente são alagados pelos corpos hídricos que

as circundam, não sentem dificuldades para brotar. Muitas dessas mudas são removidas pelas

interlocutoras para um local mais seguro que denominam de brejo, próximo aos rios, riachos e

olhos d’água.

As atividades voltadas aos tratos das palmeiras se iniciam com os atos de cuidar,

limpar e plantar as mudas pequenas à beira dos riachos, local denominados pela interlocutora

de brejo. Esse zelo com as plantas jovens demonstra um grande conhecimento para

conservação das fibras da palmeira adulta. Do contrário, a planta não se desenvolve, ou como

diz Dona Francisca, ela fica maltratada. Assim, a palmeira é alvo de um fino manejo que

depende não só da limpeza do local onde é plantada como também da atenção ao seu

desenvolvimento, cuidando de vigiar para que animais ou pessoas não as pisem.

Van der Ploeg (2000, p.360) demonstra que o cultivo de batata por comunidades

camponesas no Altiplano Peruano envolve dimensões de tempo, espaço e gestão de

conhecimentos nativos. Chama de art de la localité (arte da localidade) esse conhecimento

local que essencialmente é artesanal. Problematiza o conhecimento dito cientifico que acaba

por marginalizar o conhecimento tradicional o vendo como ultrapassado.

Un rasgo básico del conocimiento local de la agricultura tradicional es la forma en

que se entrelaza con el proceso productivo. El conocimiento, el proceso laboral y los

que en él intervienen integran una unidad difícil de descomponer en sus distintos

Page 8: Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de … · 2019. 1. 10. · 2 O plantio de palmeiras de buriti no povoado Achuí Considerando o modo pelo qual

8

elementos. El proceso productivo es esencialmente artesanal. (VAN der PLOEG,

2000, p. 360).

O trabalho mental e manual segundo este autor está em constante interação e se traduz

em interpretações contínuas e valores durante o processo produtivo. Esse processo afeta a

visão dos camponeses sobre o ambiente que resulta no produto final. O plantio das mudas em

Achuí e o cuidado posterior com os buritizeiros ressalta o conhecimento que é reproduzido ao

mesmo tempo em que demonstra a afinidade e respeito com o meio biofísico, resultando no

êxito na produção das matérias primas dos buritizeiros.

3 A Retirada das flechas e do linho: regras de uso e respeito à natureza

No palmeiral reconhecido por todos como pertencendo à Dona Francisca, a retirada

das flechas e de qualquer outro material, deve ter sua permissão ou licença. As palmeiras são

escolhidas no momento da extração de qualquer dos materiais que oferecem, a partir de

critérios dados pela observação e avaliação das artesãs. Assim, a extração das chamadas

flechas deve respeitar: 1) a idade mínima de cinco anos de plantada a palmeira; 2) não ter sido

retirada a flecha dessa mesma palmeira no mês anterior; 3) o período de extração deve

respeitar o ciclo lunar (período da Lua Cheia); 4) o braço deve ter, aproximadamente, meio

metro de altura.

Essas normas que guiam a atividade de extração dos materiais da palmeira foram

construídas a partir da observação e experimentação da artesã, de modo que, no seu palmeiral,

demora muito tempo para escolher uma palmeira, pois sabe que deve respeitar o tempo da

natureza.

Essa demora diz respeito ao tempo que a Dona Francisca escolhe a palmeira desejada

para trabalhar. Em passeio pelo seu palmeiral, a trabalhadora criteriosamente observa qual

tem melhores condições para a retirada das flechas, sempre obedecendo aos critérios já

mencionados. Disse-nos que demora horas para escolher, e quando nota que nenhuma

palmeira está preparada para retirada do olho deixa passar alguns dias, voltando a procurar

uma em melhores condições.

O bom cuidado com os buritizeiros está diretamente ligado a uma boa produção de

matérias primas, a retirada responsável da flecha e o respeito com a recuperação dela são

princípios fundamentais que balizam as ações de Dona Francisca. Esse cuidado preserva e ao

mesmo tempo demonstra uma concepção de natureza traduzida pela interação com o meio

biofísico.

O respeito ao intervalo de cinco após o plantio para extração da matéria prima, foi

estabelecido após a artesã ter percebido que as palmeiras que plantara, e que tinham menos de

cinco anos, ainda não ofereciam material suficiente para retirada das flechas. Antes desse

Page 9: Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de … · 2019. 1. 10. · 2 O plantio de palmeiras de buriti no povoado Achuí Considerando o modo pelo qual

9

intervalo, o volume do linho disponível era muito pouco quando comparado àquele das

palmeiras mais velhas.

Ela observou, ainda, que uma palmeira demora um mês para se recuperar após a

extração, produzindo nova flecha. Neste caso, porém, não a retira, deixando-a se recuperar,

pois sabe que o uso contínuo de uma mesma palmeira a enfraquece, impedindo seu

desenvolvimento posterior. Por esse motivo, espera cerca de dois a três meses para extrair

materiais da mesma planta. Para tanto, observa-a, narrando esse momento do manejo em

conversas informais com expressões como espiar a palmeira. Espiar, aqui, significa observar,

calcular o momento exato de novamente extrair materiais da planta.

As fases da lua são indicadores fortes não apenas para a extração das flechas, como de

outros tipos de matérias primas, como a madeira para a construção de cercas. É no período

identificado como de lua cheia que os moradores do povoado costumam extrair as flechas do

buriti, pois consideram que obedecer a esse momento é fundamental para que a linho não

apresente o que chamam de piolho, insetos que dela se alimentam. Chamam a lua cheia de lua

grande e consideram que três dias antes ou depois da lua grande ainda podem extrair as

várias matérias primas da palmeira.

Dona Francisca ressalta os períodos de lua cheia e quarto crescente como ideais para o

manejo das flechas da palmeira de buriti. Essa retirada respeita, a partir dos princípios

nativos, as regras pelas quais a extração deve obedecer, sendo os períodos de lua nova e

quarto minguante impróprios para essa prática.

Essa complementaridade é acentuada por Balée (2009), quando discorre sobre as

formações das paisagens, assinalando que são fruto tanto da agência humana quanto de

movimentos próprios da natureza. Nesse sentido, constrói a categoria paisagens vivas para

discorrer sobre ambientes naturais que sofrem a interferência humana. Seriam artefatos vivos,

portanto uma herança do passado que nos dizem muito sobre o presente.

O hábito de manejar e retirar a flecha de maneira a não agredir a palmeira, também é

recorrente. Apesar da pesquisa ter sido centrada no povoado Achuí, durante as idas a campos,

foram identificados em outros povoados o costume de manejar as flechas. No povoado Cedro,

por exemplo, o marido da artesã Maria de Lourdes é apontado como sendo um dos

especialistas em tirar o olho do buriti. Os entrevistados informaram que o olho é retirado de

três em três meses de cada palmeira nesse povoado.

No povoado Bom Jardim, Dona Maria mostrou como retira as flechas da palmeira.

Relatou que não as extrai todo o mês da mesma palmeira, pois deve esperar a recuperação da

Page 10: Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de … · 2019. 1. 10. · 2 O plantio de palmeiras de buriti no povoado Achuí Considerando o modo pelo qual

10

árvore para obter um linho de boa qualidade. Geralmente “tira uma no mês e espia dois

[meses]”.

Outra artesã do mesmo povoado comentou que é responsável pela conservação dos pés

de buriti que plantou. Disse que quando estão pequenos retira os que estão perto do outro para

que cresçam sem dificuldade e fica de olho, para não pisarem ou os retirarem do local que

plantou. Interessante notar o uso dos termos e expressões ficar de olho, espiar, ressaltando a

atividade de observação controlada, tão cara às nossas ciências naturais, lembrando mais uma

vez, com Lévi-Strauss (1976), que o pensamento selvagem nada perde, em qualidade, ao

cultivado.

Falou, ainda, que retira as flechas ou olhos das palmeiras, pelo que denomina de

luada, que corresponde ao ciclo lunar. Não retira a flecha da mesma planta todo o mês. Ao

retirar flechas, as artesãs tomam cuidado para não extraí-las de modo a comprometer a

palmeira. Caso o contrário, as próximas flechas que nascerem ficarão com o linho feio, não se

desenvolverão bem, comprometendo até o crescimento do fruto, o buriti.

O Calendário a seguir serve para ilustrar como as retiradas das flechas obedecem a

princípios de sustentabilidade, a regras de cultivo e recuperação das matérias primas

fornecidas pelas palmeiras de buriti. Os meses que indicaram o período da retirada das flechas

não correspondem, rigorosamente, à época de extração.

Extração anual das flechas da palmeira de buriti

Elaborado pela autora a partir de informações do trabalho de campo.

Como se pode perceber, a flecha de uma palmeira de buriti é utilizada quatro vezes ao

ano. O respeito à agência da palmeira funciona como princípio fundamental no período de

extração das suas matérias primas. Dona Antônia, moradora e artesão do povoado Achuí,

apesar de não cultivar buritizeiros também demonstra a preocupação com o respeito a essa

espécie vegetal.

Dias (2017, p. 117) afirma que as formas de apropriação dos recursos encontrados no

PNLM são pensadas através de regimes de propriedades comuns ligadas a formas de usos

Page 11: Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de … · 2019. 1. 10. · 2 O plantio de palmeiras de buriti no povoado Achuí Considerando o modo pelo qual

11

comuns. Neste sentido, apesar do uso ser comum não quer dizer que são de uso coletivo.

Nesse sentido, Lévi-Strauss (1976) desmitifica a simplicidade das sociedades ditas primitivas,

alertando que não podem ser conceituadas somente em função de suas necessidades

biológicas e sim, pela fina relação com o meio em que vivem.

O conhecimento da ecologia da palmeira, dos usos possíveis de suas distintas matérias

primas faz parte da vida dessas famílias, e por isso não se resume, apenas, à prática do

artesanato. Ao regular o acesso e o uso da palmeira, Dona Francisca e dona Antônia

demonstram essa atenção apaixonada, já citada por Lévi-Strauss (1976), que somente a

familiaridade extrema com o meio biofísico pode causar.

4 O namoro das palmeiras: representações em torno do cultivo da palmeira de buriti

Perguntando às interlocutoras sobre suas relações com os palmeirais, as classificam

como palmeiras macho e palmeiras fêmea. Instigados, perguntamos como conseguem

diferenciá-las entre dezenas de palmeiras. As palmeiras macho, segundo as artesãs e outros

entrevistados, possuem o troco mais grosso, sendo que o linho que retiram das chamadas

flechas também é apontado como mais grosso. Suas folhas são descritas como mais duras e

fortes e os seus frutos não se desenvolvem.

As palmeiras fêmeas, ao contrário, são descritas como possuindo tronco mais fino, seu

linho é definido como mole e melhor de manusear, e dão frutos. Essa diferenciação afeta a

produção dos artefatos, pois ambos possuem linho, porém, aquele extraído dos indivíduos

fêmeas são mais apropriados para alguns tipo de artefatos e os machos para outros.

Essas representações organizam a visão coletiva no tocante à apropriação das

palmeiras de buriti pelas artesãs, a partir de um referencial sensível concreto, com base em

observações sistemáticas, em experimentações reais de propriedades específicas dessa espécie

vegetal.

Perguntando sobre a relação entre machos e fêmeas, disseram que para um palmeiral

se desenvolver necessita da presença de ambos. Assim, a ideia de “namoro das palmeiras”, se

dá primeiramente na relação entre as palmeiras machos e fêmeas, e também entre as palmeiras

e as pessoas que as manejam naquele ambiente.

Dona Francisca, em entrevista, relatou que desde quando são mudas é possível

identificar se uma palmeira é macho ou fêmea. Isso demonstra a maneira como classificam as

palmeiras por gênero. A ideia que a fêmea gera frutos, contrariamente ao macho, mostra como

operacionalizam a oposição dual de masculino e feminino que, juntos, ajudam a racionalizar a

maneira como classificam a disposição dos buritizeiros no palmeiral.

Page 12: Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de … · 2019. 1. 10. · 2 O plantio de palmeiras de buriti no povoado Achuí Considerando o modo pelo qual

12

A partir das características morfológicas da palmeira, observam que a fibra extraída da

árvore macho é mais grossa e da fêmea é fina, com base na observação logo após o

nascimento da planta jovem. Em um buritizal indivíduos machos e fêmeas, juntos, formam

um sistema ideal para terem o que consideram uma boa produção de matérias primas.

Acima muda de palmeira fêmea plantada no brejo e abaixo muda de palmeira macho encontrada

à beira do rio Achuí por informantes. Fotos: Mônica Sousa Pereira. Abril de 2016.

Dona Francisca ressalta, ainda, que cada tipo de fibra, obtida de distintas partes da

palmeira, é extraída para determinadas finalidades. Por exemplo, aquela retirada das flechas,

chamada linho, das palmeiras classificadas como fêmeas é mais utilizada nas peças que os

turistas compram. O fato de esta fibra ser mais maleável é mais fácil de ser manuseada pelas

artesãs.

Palmeiras machos e fêmeas são colocadas como categorias de entendimento que

remonta os modos de classificação da interlocutora. Neste sentido, trata-se de uma

representação pautada nas suas experiências com o mundo sensível que a circunda. As

dualidades verificadas nas expressões, macho e fêmea, grosseiro e fino, macio e duro,

expressam os sistemas de ordenamento sociocultural que a entrevistada está inserida. E a

palmeira de buriti também está sujeita a essas interpretações, pois está inscrita na organização

material e social da informante.

Lévi-Strauss (1976, p. 36) comenta que os sistemas que regulam o ordenamento social

seja no plano sensível ou no científico são válidos, pois, ambos classificam. Ao classificar o

homem organiza e materializa o seu mundo social e torna inteligível seus pensamentos

memórias.

“A classificação, embora heteróclita e arbitrária, salvaguarda a riqueza e a

diversidade do inventário; decidindo-se que é preciso levar tudo em conta, facilita-se

a formação de uma memória” (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 37).

O manejo e cultivo das espécies vegetais por Dona Francisca, principalmente dos

buritizeiros, se materializam em práticas que vão além da obtenção de matérias primas. O

Page 13: Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de … · 2019. 1. 10. · 2 O plantio de palmeiras de buriti no povoado Achuí Considerando o modo pelo qual

13

modo como cultiva e espacializa as palmeiras também, colocando machos e fêmeas juntos no

seu palmeiral, fazem referência às suas representações cotidianas de um palmeiral

esteticamente agradável, ambos devem ser cultivados nos mesmos espaços. Nesse sentido, a

ideia de “namoro das palmeiras” se inscreve no modo pelo qual ordena as coisas ao seu redor.

A classificação das palmeiras segue o principio de gênero, macho e fêmea, e pela

idade, estágio inicial, as mudas, palmeiras jovens, a partir de 5 anos de cultivo onde se

extraem as primeiras matérias primas, e as adultas, a partir de entre 20 e 30 anos, com a

presença de frutos como principal indicador, segundo as informantes.

Enquanto são mudas os princípios de regem o manejo são de proteção e cuidado para

que tenha condições sadias de se desenvolverem. Por conseguinte, quando são consideradas

jovens os princípios de vigilância e respeito para o desenvolvimento de suas flechas e

posterior retirada dentro dos sistemas costumeiros, dos ciclos lunares, tamanho e mês de

retirada são fundamentais nesse período de desenvolvimento. E quando adultas, os princípios

anteriores continuam, e adiciona-se a produção de frutos para que possam nascer novas mudas

para o posterior plantio e cultivo.

Apesar das palmeiras adultas serem aptas para o uso das matérias primas, as jovens

são mais utilizadas por Dona Francisca pelo fato de serem mais baixas. A retirada das flechas

das adultas fica mais difícil de serem extraída pela interlocutora por atingirem alturas que

chegam ser superiores a 20 metros. Desde modo as palmeiras consideradas jovens são de

domínio privado e o uso delas por terceiros são mais regulados e deve passar pelas permissão

da artesã.

Monteles (2009, p. 77) ressalta que a apropriação social dos buritizais em Barreirinhas

são permeados por regimes de propriedade e regras de uso que regulam suas formas de

acesso. Os recursos advindos das palmeiras são condicionados às variantes de apropriação

comum e domínio privado das famílias.

A ética embutida tanto no respeito na utilização das matérias primas das palmeiras e o

reconhecimento social que aquele núcleo pertence à Dona Francisca está ligado ao sistema de

apropriação dos recursos. Neste sentido, os regimes de propriedades são responsáveis pelo

uso, conservação e controle da base física que os originam, os buritizais. Monteles (2009, p.

79) salienta ainda que “nesses casos, as áreas de coleta são terras públicas, onde qualquer

pessoa pode coletar, desde que acatadas as regras de acesso e uso”.

O respeito aos saberes associados ao manejo da palmeira de buriti se materializa em

peças artesanais embutidas num sistema de manejo das espécies vegetais no povoado Achuí.

Page 14: Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de … · 2019. 1. 10. · 2 O plantio de palmeiras de buriti no povoado Achuí Considerando o modo pelo qual

14

O artesanato da fibra de buriti como uma atividade importante para a renda familiar se traduz

nas formas de lidar com o meio biofísico.

Nesse sentido, os saberes mobilizados no cultivo das palmeiras de buriti se

materializam em diferentes artefatos e técnicas artesanais no PNLM. Assim, os

conhecimentos tradicionais, que são transmitidos e reproduzidos a partir do saber fazer das

artesãs, produzem, a partir do artesanato das fibras da palmeira de buriti, tanto formas de

existência social quanto formas de resistência cultural (KELLER, 2016).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As relações com as espécies vegetais no Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses,

precisamente em Achuí, são exemplo de como famílias de distintas localidades conseguiram

consolidar modos de vida específicos. Permite-nos entender como concepções de natureza são

construídas a partir de finas relações com o meio biofísico. A partir da interação com o

ambiente as famílias deste povoado conseguem expressar uma concepção de natureza

diferente daquela na qual humanos e ambiente são visto em oposição.

Por ser um povoado integrante de uma unidade de conservação de proteção integral, o

trabalho permitiu ter acesso aos problemas relacionados com a presença de famílias que se

reproduzem material e socialmente em um Parque Nacional. E principalmente, o modo pelo

qual o órgão responsável por sua fiscalização, o ICMBio, interage com as famílias dessas

comunidades tradicionais que estão presentes nessa região antes mesmo da criação do PNLM

em 1981.

O manejo da palmeira de buriti, e o modo como às famílias de Achuí zelam pelo

ambiente em que é encontrada, constitui-se como um patrimônio cultural desse grupo. O

cuidado e usos dos recursos provenientes da palmeira de buriti são possíveis graças aos

saberes tradicionais mobilizados pelas famílias, que utilizam seus conhecimentos específicos

a partir de uma ética ambiental que, além de assegurar uma fina relação com o ambiente, tem

contribuindo para a conservação dos espaços naturais de Achuí.

Assim, essa ética ambiental, que fundamenta a responsabilidade de conservar o meio

ambiente, orienta a prática artesanal à base das fibras de buriti reafirmando o cuidado com

buritizais que não se resume apenas na exploração para fins de comercialização de artefatos,

mas também na sua conservação e expansão. Essa prática está referida a um complexo

sistema de relações com as espécies vegetais respeitando quando e como suas matérias primas

são utilizadas.

Respeitar o tempo da palmeira, o comprimento das flechas, a lua em que ela é

extraída, faz parte dos sistemas de conhecimento presentes na interação entre homem e

Page 15: Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de … · 2019. 1. 10. · 2 O plantio de palmeiras de buriti no povoado Achuí Considerando o modo pelo qual

15

ambiente, das formas de saber que se constituem como patrimônios imateriais. O modo como

classificam as palmeiras machos e fêmeas, palmeiras jovens e adultas, tudo isto se configura

como importante domínio dos espaços de cultivo e afirma traços de identidade desses grupos.

Uma identidade ecológica.

Lévi-Strauss (1976) afirma que os meios artesanais são ao mesmo tempo objeto

material e objeto de conhecimento. Dito isso, cultura e natureza se complementam e traduzem

modos de vida através da junção do experimentar e do conhecer. Essa transmissão de

conhecimento precisa ser compreendida e disseminada não só junto à sociedade civil, mas

também nos espaços acadêmicos.

Neste trabalho procuramos contribuir com as discussões em torno de como as UC no

Brasil são geridas. Assim, ao classificarem um determinado ambiente como de proteção

integral, portanto usados apenas para contemplação e recreação, empobrece o entendimento

de como as comunidades tradicionais residentes nesses espaços, a partir de suas práticas

sustentáveis, podem ser importantes agentes da conservação ambiental.

A partir dos trabalhos de campo realizados, foi possível mostrar alguns aspectos

relacionados com conhecimento detido pelas artesãs e mobilizado na reprodução dessa prática

econômica. Considerada pelo órgão gestor uma palmeira nativa da região, a palmeira do

buriti, segundo relatos de interlocutoras e já mencionada neste trabalho, é por elas cultivada.

Essa polarização entre percepções e classificações do meio biofísico tem propiciado

choques e tensões entre as famílias dos povoados e os agentes do órgão ambiental do Estado,

já que as práticas das famílias, segundo a visão oficial, contradizem o que o Art. 11 do SNUC

estabelece: “o Parque Nacional tem como objetivo básico a preservação de ecossistemas

naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica” (SNUC, p. 7), sugerindo uma

concepção de natureza reducionista que separa natureza e cultura.

A partir das informações levantadas pudemos argumentar que a natureza modela a

cultura e a cultura modela a natureza. Balée (2009, p. 9), nos diz que “as paisagens são

encontros de pessoas e lugares” e, nesse sentido, os buritizais do Parque não podem ser

classificados puramente como natureza natural, pois resultam, também, do trabalho humano,

da ação da cultura.

O presente trabalho, que se ocupou entre outros aspectos do manejo dos buritizais do

PNLM realizado pelas famílias, pretende contribuir com a disseminação desses saberes

tradicionais, pois são responsáveis pela garantia da reprodução de modos de vida específicos

assim como a conservação ambiental não só no povoado Achuí, mas em outras localidades do

Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses.

Page 16: Produção artesanal, sistemas de conhecimento e manejo das palmeiras de … · 2019. 1. 10. · 2 O plantio de palmeiras de buriti no povoado Achuí Considerando o modo pelo qual

16

O artesanato da fibra de buriti faz parte não só da economia das famílias como

também da memória afetiva de artesãs e artesãos do PNLM. Durante o trabalho de campo foi

possível identificar essa relação afetiva não só com as palmeiras, mas também com a

atividade artesanal, que utiliza as matérias primas dela retiradas. Ao dizer que o vício dela é

ser artesã, Dona Francisca demonstra o apego que possui em tecer e cuidar dos materiais de

linho. Tudo isso reforça a importância que a atividade tem e se estende para além de ganhos

financeiros com a comercialização dos artefatos.

O cuidado com as palmeiras, os saberes mobilizados na atividade artesanal e os

sentimentos envolvidos servem para reforçar que o modo de vidas das famílias é marcado por

uma ética ambiental que deveria ser melhor compreendida, pois a preocupação em zelar pelos

ambientes de que fazem uso, poderia ser pensada como um exemplo a ser seguido em termos

de uma política de conservação ambiental no Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALÉE William. “Sobre a Indigeneidade das Paisagens”. Revista de Arqueologia, 21, n.2,

2009. P. 09 – 23.

CANCLINI, Néstor Garcia. Políticas culturais na América Latina. Trad. Wanda Caldeira

Brant. Novos Estudos Cebrap. V. 2, Jul. São Paulo: 1983, p. 39-51.

DIAS, Roseane Gomes. Tempo de muito chapéu e pouca cabeça, de muito pasto e pouco

rastro: ação estatal e suas implicações para comunidades tradicionais no Parque Nacional dos

Lençóis Maranhense. Tese de doutorado defendida pelo Programa de Pós-graduação em

Ciências Sociais/CCH, Universidade Federal do Maranhão, São Luís/MA, 2017.

DIEGUES, Antônio Carlos Sant´Ana. O mito da natureza intocada. 6. Ed. São Paulo:

Hueitec; Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras,

USP, 2008. 189p.

KELLER. Paulo F. O artesão e a economia do artesanato In.: Artesanato no Maranhão:

práticas e sentidos. Orgs.: Denilson Moreira Santos, Raquel Gomes Noronha et. Al. São Luís:

EDUFMA, 2016, p. 59- 107.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. Trad. Maria Celeste da Costa e Souza e

Almir de Oliveira Aguiar. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, Cap. 1: O

pensamento selvagem, p. 19-50.

MONTELES, Ricardo André Rocha. Etnoconservação e apropriação social dos buritizais

no entorno do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses. Belém, 2009, 117p.

Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Agricultura

Amazônica, Belém, 2009.

PINHEIRO, Claudio Urbano B. Palmeiras do Maranhão: Onde canta o sabiá. São Luís:

Gráfica e Editora Aquarela, 2011.

SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Texto da Lei 9985 de 18 de julho

de 2000 e vetos da Presidência da República ao PL aprovado pelo Congresso Nacional e

Decreto No 4.340, de 22 de agosto de 2002. São Paulo: Conselho Nacional da Reserva da

Biosfera da Mata Atlântica, 2002.

VAN DER PLOEG, Jan Douwe. Sistemas de conocimiento, metáfora y campo de interacción:

el caso del cultivo de la patata en el altiplano peruano. In.: Antropología del desarrollo:

Teorías y estúdios etnográficos em América Latina. Org. Andreu Viola. Barcelona: PAIDÓS,

2000, p. 359- 383.