produÇÃo do tempo

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CARLOS FRAZÃO

PRODUÇÃO DO TEMPO

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TITULO: Produção do Tempo

Autor: Carlos Frazão

2010 Euedito

Editor: Carlos Frazão

Euedito

[email protected]

www.euedito.com

Depósito Legal: 320286/10

ISBN: 978-989-97105-0-4

A cópia ilegal viola os direitos dos autores.

Os prejudicados somos todos nós.

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PRODUÇÃO DO TEMPO

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…imagina que cada dia é uma vida completa.

Séneca

...por isso, não havia mais tempo.

Carlos Frazão

...depois sorriu, com a boca fechada, um sorriso

curto, que se desfez lentamente.

Rubem Fonseca

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Primeiro Dia

Três horas, a cidade está envolta num nevoeiro pálido, o frio penetra-me os ossos, talvez uma chuva fina comece por cair enquanto deambulo sem destino por estas avenidas desertas. Ouço vozes ao longe, vozes humanas, frases desconexas, palavras soltas. Os bares e cafés vão estar abertos até ao começo da manhã. Por mim o que desejo é perder o sentido e a orientação, deixar-me embalar pelo silêncio da noite, deixar-me embalar por sons longínquos de quem atravessa a escuridão como vultos anónimos. Vejo pequenos grupos aparecerem e desaparecerem, risos que começam ao fundo de ruas mais iluminadas por tons feéricos que convidam a vida a gastar-se de um modo rápido e intenso. A noite é este contraste entre o ruído e o silêncio, entre a luz e a sombra, a presença e a ausência. E eu atravesso a noite, sem destino, pelo prazer, o límpido prazer de atravessar a noite, caminhar por ruas e avenidas, praças e jardins, sem procurar nada, sem vocação para nada, deambulando para olhar a noite que flui por dentro de si, inexorável, eterna.

Esta cidade é uma cidade possível, uma igual a todas as outras. É um lugar imenso, penso que é um lugar imenso, como todos os lugares imensos. Ideal para nunca a conhecermos, para nunca sermos conhecidos. Explico: aqui estamos condenados a ser anónimos, aqui todos os espaços são inóspitos, aqui todos somos incógnitos. Ainda que voltemos às mesmas ruas, aos mesmos parques, às pontes, aos túneis, aos viadutos, às vielas, às estações de metro, de autocarros, às lojas, aos centros comerciais, aos mesmos restaurantes e bares e cafés e quartos, pensões, hotéis, sempre seremos estranhos, ou melhor, indistintos, ignorados, inexistentes. Nada nos marcará, fantasmas de nós próprios, andando em redor do desconhecido, do indefectivelmente

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desconhecido. Por exemplo: ontem estive ou não aqui, é possível, nada me pertence e não pertenço a nada. Talvez. Talvez até não exista. Nem sei se existo, repito: sou inexistente. Necessitamos dos outros, de lugares, de referências, de memórias, para podermos existir, para sermos, para sairmos do nada. Identidade, unidade. Pluralidade, multiplicidade. Necessidade e contingência. Ser por não sermos o outro. Ser para não sermos o nada. Falo para esta porta, para a porta deste edifício, um edifício entre outros edifícios um pouco esguios numa praça deserta, falo solitário, a qualquer hora da noite, não importa. Esta praça está, de momento ou sempre, deserta. Não importa. Quando todos voltarem pela manhã continuará deserta, não importa. Penso e rio-me, gosto de pensar e rir-me, não do que penso, mas de pensar. Rir aprofunda o pensar, rio-me até às lágrimas e o pensamento flui de um modo fácil. Talvez ainda haja um futuro para o riso! Somos demasiado sérios! Com os olhos fixos nas coisas, com as mãos tacteando as coisas, com todos os sentidos despertos pela luz coada na neblina, o ser, o ser é o vazio, semelhante a um vapor, uma espécie de fumo volatilizando-se silencioso pelos ares. Melhor, o ser é apenas um verbo copulativo, cumpridor de funções tão nobres como as funções lógicas e gramaticais. Sempre o soube, sem surpresas. Rio, continuo a rir, rio de tudo, rio de mim. O filósofo tinha razão. Acrescento: prefiro a coisa ao ser. A possibilidade de uma perspectiva.

Ainda: a chuva é agora mais forte, vou apressar-me, tenho muitas outras ruas e praças e avenidas e edifícios para acompanhar numa viagem delirante ao âmago da noite, ao túnel da noite. Caminhar é pensar, pensar é caminhar. Penso, logo caminho. Caminho, logo penso.

Agora: ignoro tudo, suspendo as frases, os raciocínios. Digo o que me ocorre numa torrente imediata e, dos enunciados assim ditos, penso numa torrente imediata de conceitos, proposições, argumentos. Novas teorias para meditar enquanto serenamente caminho na ausência de um destino, repito, isto é, de um objectivo, de uma finalidade. Isto é, de um lugar, uma companhia, um grupo, uma actividade, uma profissão, vocação, desejo, crença, ideal. Não

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tenho intenções, não tenho motivações, não tenho vontade. Estou inocente. Teoria: pensar é caminhar, repito-me. Falo enquanto caminho e sei, sem equívocos, que indo pela noite dentro, sem equívocos, sem vontade de conversar com alguém, indo, me canso de um cansaço dormente que alivia, que reconforta, que desespera, atordoa. Quero parar, mas o cérebro não me perdoa, tudo flui, a vida flui, escorre pelo pensamento ou pela imaginação ou pelas veias ou pela garganta ou seja o coração e os pulmões e os órgãos inúmeros que há no corpo…

Estou inocente. Onde estou poderia não estar, o que faço poderia ser o que não faço, tudo é possível, o que sou é uma possibilidade entre todas as possibilidades. Não me lembro de ter escolhido, de ter optado, sinto-me agora como sempre alguém que é manipulado, orientado, conduzido por mãos invisíveis que decidem por mim. Peça de um jogo jogado que desconhece as regras, peça de um grande jogo onde a única certeza é que um jogo se joga. Um jogo se joga, um jogo eterno, um jogo se joga independentemente das peças, porque sempre haverá novas peças, outras peças que vêm substituir as gastas, as inoportunas, as velhas, as moribundas, as inúteis…E o jogo continuará, continuou, continua. E a liberdade é um sarilho, sobretudo porque a liberdade cria a ilusão da liberdade. Estamos condenados a não ser livres – o filósofo não tinha razão -, não escapamos, no limite da ilusão, à tirania de uma história sinistra que nos retira a autodeterminação, a alternativa, a escolha. Como dizia o poeta, talvez pelos mesmos motivos ou por motivos completamente diferentes: Raios partam a vida e quem lá anda! O absurdo!

Caminhando por estas ruas, insisto, não foi escolha minha. Foram as circunstâncias que para aqui me levaram. Nada do que possa julgar consequência de uma decisão pessoal foi, efectivamente, resultado da minha liberdade. Nada. Tudo foi circunstancial, tudo foi um simples acaso, um fluido e é tudo. Ou, o que me acontece, o que me pode acontecer - o que me acontecerá no futuro, breve ou longínquo -, foi determinado por factores, por causas, por antecedentes, mas que ultrapassam a minha responsabilidade pela sua ocorrência. De um modo ou de outro, não tenho escolha. Ser

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em si ou ser para si? Não!? Talvez tenha escolhido, tenha optado, tenha valorizado, mas… De facto, decidi, uma noite – uma tarde, uma hora, esta noite -, voltar para a esquerda e não voltar para a direita, olhar para o céu e não para a terra, fumar um cigarro ou deixar de fumar, ladrar ou miar, amar ou odiar, mas…Talvez tenha…É possível que tenha comido carne ou comido peixe num dia longínquo, não me lembro, sem nada ou ninguém me obrigar a comer carne ou peixe, ou a comer ou não comer. Penso, onde nasci, quando nasci, de quem nasci, o tempo e o espaço que me moldaram, a cara que me deram, o corpo que tenho, o que sei e o que não sei, o que fiz e o que não fiz – deixem-me continuar -, aquilo em que acredito e aquilo em que não acredito ou já não acredito, as pessoas que amei, as pessoas que passaram por mim como íntimas e me são hoje indiferentes, as histórias que soube e esqueci… Mesmo se há factores que não domino, tal significará que tudo escapa ao meu controlo? Mesmo se muitos acontecimentos parecem ser, inexoravelmente, aleatórios, tal significará que nada escapa ao absurdo do acaso? Nada? Estou convencido, para além de tudo o que possa dizer, que a vida não é um projecto, um processo contínuo de escolha, em última ou primeira instância, nada se configura como autodeterminação, livre-arbítrio (lembro Schopenhauer). Há uma lógica do aleatório? Há uma determinação no indeterminado, liberdade na causalidade? Leis rigorosas do acaso? Determinismo ou indeterminismo absolutos?

Confesso, esta chuva molha-me e quase tenho a ilusão de que regresso a casa por vontade própria. Confesso: não, estou inocente! Mas, medito, reflicto…Podia pensar algo completamente diferente e reconhecer que sou livre, que estamos condenados à liberdade, só não somos livres de não o ser. Sartre teria toda a razão do mundo, a má disposição provocada pelo cansaço de uma noite vivida à chuva, ao frio, seria a causa de sentimentos mórbidos, insustentáveis, rícinos, seria a razão de não ter razão. Não, de facto somos quase em absoluto livres. Dizer o contrário é uma perfídia, uma afirmação perigosa de alguém que esconde uma intenção obscura. Tudo nos separa destas pedras, destas ervas daninhas, dos fenómenos quânticos, mesmo destes cães que passeiam inconscientes e são irresponsáveis pelos seus actos instintivos,

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espontâneos, naturais. Pelo menos tenho a liberdade de defender todas as teorias possíveis, entrar em contradições, ser incongruente, incoerente. Pelo menos posso apresentar as minhas teses, os meus argumentos, pensar os problemas e resolvê-los segundo as minhas conveniências ou não. Sou diferente de mim mesmo em cada noite que passa pela minha vida e que eu escolho para sentir as múltiplas hipóteses de pensar, de ser, de estar. Talvez um dia, por decisão própria e livre seja egoísta, noutro altruísta, no mês seguinte um assassino, depois um ladrão, um violador, um miserável, uma pessoa solidária, um misericordioso, um crente fanático, um católico praticante, um católico não praticante, um budista, um céptico, um atraente agnóstico, um defensor da pena de morte, um intrépido adversário de todas as religiões, um místico, hedonista, antifascista, democrata, ateu, internacionalista, comunista, anarquista, protestante, taoista, capitalista, pedinte, banqueiro ou caixeiro, professor ou proxeneta, escritor ou traficante, vigarista, sapateiro, louco, polícia, jornalista, actor, poeta, pastor de almas ou animais, vendedor e trolha e emigrante e imigrante e mercenário e bispo e talhante e soldado e papa e presidente e condenado e enforcado e assassinado e mercenário e doente, talvez. (Talvez nunca possa deixar de ser humano. Deixar de ser humano, a isso é que era urgente chegar - mas é tema para outra noite).

Talvez um dia seja tudo sem qualquer possibilidade de decisão própria.

Confesso, confesso-me sem certezas, sem certezas, enquanto as horas passam e decido regressar pelo fim da madrugada ao quarto, regressar ao quarto arrendado, por um mês, nesta cidade cujo nome não importa, mas que é imensa e igual a todas as cidades imensas onde somos anónimos, nós, a cidade, eu, todos os outros, anónimos.

Os outros, os outros ao longe, os outros vagueando. Os outros, há sempre os outros, próximos ou longínquos, os outros existem, estão para ali, na distância existem e eu ouço-os, perdidos como eu, sem destino como eu. Apetece-me regressar ao lar, apetece-me caminhar, continuar, o caminho é caminhar. Apetece-me perder a

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orientação, perder-me, perder-me de mim, perder de mim, perder a autoconsciência, a consciência de si, explodir o eu, fragmentar-me, dividir-me, ir e não ir, parar e caminhar, viver e morrer, amar e odiar, estar e não estar, ser tudo, não ser nada, e tudo ao mesmo tempo…, ser o outro e o eu, ser um elemento dos outros que observo e ser eu observando um elemento dos outros que observa o eu que observa o outro…Biologicamente social e socialmente biológico. Sorrir à humanidade como a criança sorri, sorri logo nos primeiros meses, mas sorrir com escárnio para contemplar o grande espectáculo que é a humanidade moribunda. A humanidade, ah, a humanidade! Não temos importância absolutamente nenhuma. (Mas não temos importância relativamente a que critério? O que é preciso é abolir qualquer critério e deixar de pensar em qualquer importância que possamos ter ou não). Quanto ao psicanalista René Sptiz, o sorriso entre as seis e as doze semanas é um fenómeno comunicacional, o modo de o bebé estabelecer uma relação emocional e intencional com o que o rodeia e resultado da díade mãe/filho. E ele sorri mesmo? Que sorriso é esse? A inocência. Ah, a humanidade! Vou dormir - as grandes teorias moralistas são o resultado de uma noite de insónia ou de uma indigestão gástrica. Apenas isso.

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Segundo Dia

Acordo, serenamente. Serenamente, observo o lugar onde estou, o quarto arrendado, por um mês, talvez um mês, rigorosamente um mês. Não me metamorfoseei em insecto, sou o mesmo da véspera. Ainda não me vi ao espelho, mas sinto que nada de significativo há no meu corpo para assinalar. Sinto o corpo, sinto o pensamento. Penso. Penso-me. O pensamento sente-se. Algo pensa. Algo pensa-me. Procuro, agora, que o pensamento se perca, se vá perdendo, se dilua. Também a manhã. A manhã esvai-se numa lentidão suave, o ar está límpido, o céu é um azul forte. Digo tudo isto porque tudo isto se oferece para lá dos vidros da janela. Quero permanecer na cama, deitado de costas, deitado durante horas. Olhando, observando, observando tudo que há para observar, até exasperar a vista, os olhos. A mobília castanha, uma madeira gasta, polida, brilhante e baça, velha, rompida, irregular. Cómoda, guarda-fatos, cadeira, cama, duas mesinhas de cabeceira, uma pequena secretária, um espelho esbatido, tinta creme nas paredes. Paredes esboroadas, manchadas, tristes e alegres. Candeeiros: de tecto e um sobre uma das mesinhas de cabeceira. Na secretária, nada, nada sobre a secretária. A porta do quarto também é de madeira, pintada em esmalte branco, como as portadas da janela. As cortinas reflectem muitos anos e aguentam-se num barão de ferro. Não tenho livros pelo simples facto de que dei os que tinha, dei-os, dei-os por necessidade. Necessidade de me libertar de tudo o que pudesse pesar-me na existência. E o peso excessivo era avaliado para além de dois ou três verdadeiramente úteis. Já não leio, releio, disse um dia Borges. Eu também releio, ou seja, leio mentalmente o que ficou na memória e o que ficou na memória ficou para sempre. Para sempre, pelo hábito de lembrar sempre a mesma meia dúzia de ideias que na verdade interessa. Todos os dias recito em voz alta essa biblioteca mental que me acompanha, todos os dias repito as palavras únicas que possuo, que ecoam pelos labirintos do

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cérebro. Todos os dias. Recito-as como orações, autênticas orações que me religam ao universo e me salvam, me salvam de cair em tentação agora e na hora da minha morte. Qual tentação? Não sei. Nem acredito. Mas. Estas palavras salvam-me. Melhor: têm-me salvado até agora. Múltiplas tentações. As tentações. Adoro cair em tentações. Adoro salvar-me. Experimentei todas as tentações. Por exemplo: a tentação da inércia, do vazio, de não pensar. Reconheço, é uma tentação sedutora, não pensar, ser levado para o vácuo, para a morte de olhos bem abertos. Penso: o que será pior, não pensar ou não olhar? A morte é não pensar? A morte é não ver? A tradição ocidental associa o conhecer e o ver. Ver o real, a visão como espelho da realidade. Pensar é o interior e olhar é o exterior? Pensar é olhar, olhar é pensar? Não há interior nem exterior? Como processa o cérebro estas operações? Como seria interessante podermos escolher encerrar algumas capacidades cerebrais durante horas ou dias ou anos. E retomá-las. Ligar e desligar. Mais, perder a consciência de que estamos ligados ou desligados. Voltarmos a ganhar consciência, e perder, e ganhar. Viver e morrer durante a vida, viver e morrer durante a morte, num eterno retorno renovável e infinito. Repito, ligar e desligar o cérebro, por vezes, com intenção e sem intenção. Dominar o cérebro. Ser dominado pelo cérebro.

Definitivamente, sou um pecador que cai em tentação.

Um insecto percorre, em voos rasantes, o tecto do quarto. É impossível acompanhá-lo com o olhar. Tento e desisto. Sinto frio, está frio, é Novembro. A pálida cor do início da tarde penetra pelo quarto, em tons, pelo contraste, róseos. As cortinas agitam-se de modo indelével, alguma corrente de ar acelera a algidez do ar. Permaneço imóvel, apenas mexendo os globos oculares. Não disse ainda que a roupa da véspera está pousada na cadeira e um copo está na mesinha de cabeceira sem candeeiro. Não disse, porque só agora reparo, que o meu rosto está ao espelho, pendurado, o rosto ou o espelho, na parede da secretária. Olho-me, o cabelo curto ou comprido, não sei, a barba de 48 horas, a pele branca como sempre, branca e perfeita. Tudo no meu rosto é ausência de espanto, tudo é serenidade. É possível que Aristóteles preferisse o

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espanto à serenidade para fundar uma escola, é possível que eu, humildemente, prefira a serenidade, a insustentável leveza da serenidade. Estou vivo, continuo vivo para descrever o quarto. Serenamente, observo o lugar onde estou. O tecto é branco, o meu rosto olha-me, olho fixamente o meu rosto. Rosto de todos os rostos possíveis. Olhamo-nos ou um rosto desconhecido que é o nosso nos olha e, por vezes, esse estranho aniquila-nos com o seu olhar desconhecido, profundo e grave. Desconhecido e ambíguo e sibilino. Ali, aquele rosto conspícuo perturba-me, não o identifico e, desviando o olhar, ele sempre regressa inexorável ao olhar do meu olhar. Talvez haja uma serenidade espantada, talvez. Um espanto sereno em todo este universo, que é o quarto arrendado por um mês. O tecto branco, repito, manchado, maculado pelo tempo, húmido, um mar branco sobre o meu corpo em repouso. Sobre o meu corpo um mar invertido quase me afoga. Mexo agora os braços, as pernas, inclino a cabeça. O dia será dedicado a estes exercícios, simples e banais. Olhar, a eterna ditadura do olhar. Todas as perspectivas são possíveis, todos os mundos são alternativos, as descrições contingentes e maleáveis. Platão falou do olhar, o olhar inteligível. Não é esse o meu olhar. Não há essências nem acidentes.

O quarto está situado numa avenida. Da avenida chegam sons distantes e urbanos. Pessoas circulam, transportes públicos rolam pelo asfalto. Alguém grita para a vida, alguém enterra a melancolia, alguém sonha por entre as sombras e a luz esvaída de um dia de Outono, um dia comum com gente dentro, dentro do dia, gente arrastando-se, arrastando-se célere para…a vida inevitável…a alegria, a felicidade da alegria. A tristeza da felicidade.

O insecto continua vivo e vivo voa feliz, voa com um zumbido cortante que não me perturba, confesso. Ele sabe da minha presença, deste volume que ocupa espaço. Pousa, por vezes, nas minhas mãos e desaparece sem rastro. Volta e desaparece, A sua superioridade é nunca perder-me de vista, ver-me sem ser visto. Nada posso contra ele. Sabe onde estou, sempre. Amarguradamente, nunca sei se estou só ou acompanhado. Nada

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sei de essencial, tudo sabe o insecto, tudo o que interessa a um insecto, o que vale para ele tudo.

Decidi não levantar-me, não comer, não beber, não urinar, defecar, lavar-me. Decidi ficar aqui até anoitecer. Também não dormir, apenas ficar neste quarto, este lugar arrendado por um mês. Como não tenho livros - dei-os, já o disse -, sirvo-me da minha biblioteca mental. Não é uma verdadeira biblioteca, porque é mais caos do que ordem, e por muitas outras razões. Uma biblioteca é ordem, organização, mundo, cosmos, princípio, regra. É apenas uma expressão que me agrada, que inventei porque me agrada e mais nada, agrada-me porque retirando tudo o que não é, é. É, serve. Os livros são incompletos, há folhas desaparecidas, há frases retiradas e colocadas noutros livros, autores trocados…Afinal apetece-me estabelecer comparação! Frases que mudam de significado com o tempo, frases que desaparecem, livros que desaparecem, autores que desaparecem. Temas confusos, novos autores e livros e palavras que aparecem e se confundem e volta a aparecer o que desapareceu e a desaparecer o que aparece de repente. Tudo é, de facto, desordem, caos, descontinuidade, ausência de regra, de princípio. Uma biblioteca que não tem livros, tem um fluido que corre incerto por um espaço fluido, incerto, inominável, inaudito. Mas, por instantes, a biblioteca organiza-se, a ordem regressa, tudo é certo e preciso, os livros, os textos, as frases, as palavras, um universo ganha vida e domina-me, autores mobilizam-se como retratos em álbuns de família a que voltamos para recordar o que somos e o que não somos. Álbuns que abrimos e fechamos continuamente. Nomes. Nomes.

São 4 horas da tarde. Leio as ideias que me afloram à mente. As palavras pedidas para consulta. Que posso saber? Que devo fazer? Que posso dizer? O que posso comunicar? O que me é permitido esperar? O que é o homem? Quem sou? Onde estou? Por que comemos, qual a finalidade de dormirmos? O que significa sermos animais gregários ou de rebanho? Temos um inconsciente que nos domina? O complexo de Édipo é real? A energia é igual à massa vezes a velocidade da luz ao quadrado? Em cada célula humana há 46 cromossomas? O ser humano é dominado por pulsões? O todo

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é percebido antes das partes que o constituem? A matéria atrai matéria na razão directa das suas massas e na razão inversa do quadrado das suas distâncias? Etc., etc., etc.?

O relógio do corredor bate cinco horas da tarde. O tempo passa. Na casa não há ninguém. Agora não há ninguém. Todos os dias ouço vozes. De manhã muito cedo, ao fim do dia também. Vozes de outros hóspedes como eu, pessoas que não conheço, que nunca vi. Trabalham entre a manhã e o fim do dia, como aliás quase toda a gente. É assim que presumo sem ter uma grande certeza. Vozes suaves, vozes fortes, ríspidas, duras, ténues, finas, grossas. Imagino pessoas de meia-idade, jovens, velhas, homens, mulheres, pessoas que nunca vi, imagino-as, nunca as verei, imagino-as. Não tenho um horário certo de me levantar, de me deitar. Nem de comer, nem de passear, de vadiar ou de outra coisa qualquer. Não me cruzo com os outros hóspedes nesta casa. Repito, não conheço ninguém, aqui ninguém me conhece. Não simpatizo, não antipatizo, não amo, não odeio, sou indiferente perante os outros que existem, sei que existem e ao sabê-lo sei tudo o que interessa saber. Existem como vozes que ouço. Contudo, apercebo-me, e só agora me apercebo, que essas vozes não me são totalmente indiferentes. Soube descrevê-las, classificá-las, imaginar os corpos, quem sabe, imaginar o carácter que produzem essas vozes. Era capaz, com algum rigor, de identificar o número de moradores que habitam debaixo do mesmo tecto, de parte dos seus hábitos, de muitas partes dos seus hábitos, do horário de trabalho de alguns deles. Poderia, se quisesse, saber muito mais, se quisesse poderia saber as suas profissões, os seus sentimentos, as ilusões que vivem, as graças e desgraças que hão-de suportar um dia. Se quisesse poderia dedicar-me a uma investigação profunda, tão proficiente que talvez mesmo soubesse mais do que os próprios, unindo pormenores que escapam aos seus autores. Poderia fazer a transição das vozes para os objectos pessoais, dos objectos pessoais para os passos nos quartos ou no corredor, dos passos para os ruídos, pequenos sons, um bocejo, um arrastar de uma cadeira, um candeeiro que se acende no decorrer da noite, um jornal ou um livro caído no chão, o tipo de lixo que fazem, o modo como batem com as portas, os palavrões oportunos e inoportunos

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durante os diálogos que mantêm entre si. O silêncio, o eloquente silêncio. Toda esta panóplia, todo este manancial de elementos significativos, e muitos outros, me dariam a inteligibilidade perfeita dos seres dos quais tudo sei mas nunca os vi. De outro modo: dos quais tudo poderia saber sem nunca os ter visto. Seria uma tarefa própria de um detective, simultaneamente perigosa e fascinante. Seria uma tarefa própria de um escultor. Seria uma tarefa própria de um arqueólogo. De um deus. Seria uma tarefa possível, possível, possível. Um entretenimento para uma vida. Um projecto de grande dignidade. Uma verdadeira introdução a uma metafísica dos costumes. Mas estou apenas a falar para o espelho, confessando ideias que irrompem na obscuridade progressiva e enleante do quarto. Não conseguimos estancar a corrente do pensamento, da linguagem, da imaginação, da memória. Na biblioteca mental requisito em meu nome esta citação de Nicholas Blake: “Um homem tem de falar a si próprio quando se encontra sozinho sobre gelo movente, sozinho no escuro, perdido”.

Perdido, não. Não estou perdido, sei onde estou e estou serenamente, há horas, no meu quarto. Este dia é dois de Novembro. Estou tão certo desta verdade como estou certo da verdade de não saber qual é o dia da semana. Não sei nem estou interessado em saber. Não tenho nenhum motivo para ocupar a mente com preocupações desse tipo. Mas sei o dia e o mês, não o ano. Com rigor, e é talvez o mais espantoso, também não sei o ano em que estamos, embora saiba com uma margem de erro de dois, três anos. Os dias da semana não me preocupam, é-me indiferente se é segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado ou domingo. Somente o mês e o dia correspondente. Não encontro nenhuma justificação para explicar cientificamente este fenómeno de amnésia interesseira, mas não é importante. Contudo, é curioso não desprezar, também, os dias e os meses. Enfim, é assim. O que há ainda para dizer? Ainda qualquer coisa com propósito: seria mais perturbador no dia seguinte ninguém morrer ou no dia seguinte ninguém saber o dia, a semana, o mês, o ano? Ignorância total sobre o calendário, o tempo sem registo, ausência de datas, de referências, de marcações, de celebrações, de festas, de efemérides, registos sem tempo, tempo sem tempo…, nada, nada,

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nada para fixar, reter, lembrar, nada, nada! E o mesmo dos lugares, cidades, vilas, aldeias, freguesias, ruas, estradas, também ignorância total. Aniquilar, o mais possível, o espaço e o tempo, Fluir, navegar. Da minha parte, sei, ainda, que estou num quarto, arrendado, o quarto está no segundo andar de um prédio situado numa avenida de uma grande cidade. Um quarto numa cidade grande ou grande cidade, e eu estou lá muitas vezes, e muitas outras vezes não estou. Quer dizer, estar no quarto é não estar na cidade, é estar apenas no quarto. E estar na cidade é não estar no quarto, digamos assim. Estou no quarto a qualquer hora. Estou na cidade a qualquer hora. Sem objectivos ou finalidades, como uma peça, já o disse, de uma engrenagem que funciona normalmente. Resumindo: sei as horas, os meses, se é dia ou noite, ignoro os dias da semana, sei de alguns lugares, sei que me encanto do que não sei e do que não quero saber, sei que talvez possa deixar de me situar no tempo e no espaço e então voar. Sim, voar. Como as moscas, os insectos voadores. Talvez amanhã! Lembrei-me: voar. No quarto ou na cidade.

Mas ainda é cedo. A mosca poisa sobre a dobra do lençol. Uma certa intimidade me aproxima dela, dois seres vivos num diálogo possível. Ela voa, eu quero voar. Eu quero voar, ela voa. Há aqui alguma coisa de conivência. Sonho muitas vezes que voo, mas não sou pássaro, um humano que aprendeu a voar e voa. Quando sonho que voo prolongo o sonho – sei-o fazer –, prolongo-o o mais possível, por minha vontade não voltava a acordar. Quero dizer, não voltava a acordar sem saber voar. Só posso voar no sonho. Sonhando que voo voo, voo numa irrealidade real ou numa realidade irreal. É assim que entendo o sonho. Não me interessam muitas explicações sobre os sonhos. Não me interessam as explicações freudianas, não me interessam as explicações pré e pós-freudianas. As técnicas psicanalíticas não me preocupam, não me preocupa conhecer-me cientificamente, não quero saber mais de mim do que posso saber sem pensar muito sobre mim, sem pensar sobre o mundo para saber de mim. Reconheço, para ser sincero, que nem sempre fui assim. Ainda ontem pensei de mais, pensei sobre muita coisa, toda a noite a ocupei a pensar. Amanhã será igual. Sei que será igual. Não pensar é apenas um desejo para

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concretizar no futuro. No fim do mês do quarto arrendado, será esse o meu futuro a concretizar. Não pensar, como é maravilhoso pensar não pensar, não pensar! Quando sonho que voo – estou de novo a pensar –, não sou um humano que voa, afinal no sonho não sou humano. Mas coisa, coisa que voa, coisa voante entre outras coisas. Alguém disse – sei quem foi – que cada personagem dos actos do sonho é a personagem que sonha. Mas não somos nós uma síntese dessas personagens múltiplas, contraditórias, efémeras, contingentes, relativas, emergentes, precárias, sem unidade? Não somos nós máscaras possíveis de circunstâncias possíveis até ao infinito? Somos, afirmo que somos, afirmo o que já disse: não há nenhuma essência, não há nenhum acidente.

Cai a noite, cantam agora todas as fontes, sozinho no escuro, perdido e achado (a biblioteca não tem horário de encerramento), vou tentar dormir, afogar-me no cansaço, confundir-me nas sombras, pairar, o quarto existente numa penumbra melancólica e bela. Desligar, o mais possível, totalmente? Voltar a ligar mais tarde para criar o destino – um destino feliz, é o que queremos. Bem, vou sonhar que voo, voo com a mosca, companheiro dela. Não me metamorfoseei em insecto, mas – bela ironia kafkiana – metamorfoseei-me em humano.

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Terceiro Dia

Saio para a rua. Saía para a rua. Preciso encontrar o que não encontro ou que não vou encontrar. O que ele não vai encontrar e sabe que não vai e saiu do quarto para rua, de um quarto que se aluga por um mês, numa casa indistinta, ao fundo de uma rua indistinta de uma cidade indistinta. Ele ou eu. Não sei, quem saiu? Ele ou eu, não sei quem escreve, ele ou eu. Se for eu, escrevo que ele saiu, se for ele, diz que eu saí. Não sei. Quem escreve, quem não escreve, quem é ele, quem sou eu, de que se escreve, para que se escreve, para quem se escreve, o que se escreve, o que se escreve quando se escreve? Escreves-me ou escrevo-te? Escrevendo, escrevo-me, escrevendo-te, escreves-me.

Sai para a rua, procura o que queres procurar, procura o que não queres procurar para não encontrares. Lembro-me. Lembro-te, só se encontra o que se procura, nem a ti próprio te encontras se não te procurares. Mas não quero procurar a minha intimidade, talvez por agora. Saio para sair de mim, saio da casa para a rua para encontrar o exterior de mim fora do interior. É possível. Talvez procure um objecto, um estado, uma sensação, um sentimento, uma palavra, talvez procure alguém, alguém indistinto na cidade indistinta, alguém que vi, alguém que verei, talvez procure quem nunca verei. Um objecto ou um lugar. Ruas, avenidas, alamedas, jardins. Saíste para a rua à procura de ti, não, saíste para encontrar uma possibilidade, uma possibilidade de ti, a tua memória, a alma, uma árvore – pensa -, um pinheiro, um abeto, uma acácia, flores, tulipas, lírios, rosas, ou nomes, insisto, saíste com a ideia de abraçar uma árvore, uma árvore ou um cão, olhar a tristeza de um cão vadio, sair e abraçar um cão, uma pedra, um olhar, abraçar o abraço gigante de um bosque. Ou o mar, ver o mar, abraçar o mar. Saio e abraço a luz de um poste ou o frio ou um deus que não

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existe ou a solidão que existe ou a melancolia do entardecer, abraçar a certeza e a dúvida, abraçar uma ideia. Sais e abraças-te enquanto caminhas para fora de ti, abraçar todas as sombras rodopiando pelo espaço do teu próprio delírio. Sais e queres abraçar uma pedra, aquele objecto ao fundo da rua diluído na luz. E na obscuridade. Como quando se escreve, não sabemos para onde vamos.

Sais e queres. A vontade. Começo com a filosofia, a filosofar, os filósofos da vontade.

Não vejo ninguém, não há ninguém para abraçar. Todas as árvores e todas as pedras de todos os jardins. Este dia, desde cedo, pálido vai desaparecendo. Talvez se procure um sentido, o sentido, talvez se procure o riso. Queres rir, sei, saíste à procura do riso. Será o esquecimento? Une as palavras, como Kundera, o riso e o esquecimento, o livro do riso e do esquecimento. Reparo, repara, alguém vem, pergunto-lhe, perguntas, vais perguntar, pergunto a alguém qual a razão de eu ter saído, aproveito e pergunto o que procuro, o que procuras. Pede-lhe que te esclareça sobre o sentido, apenas sentido, não um sentido, há muitos sentidos, muitas perspectivas de sentido, o sentido, interroga-o sobre o sentido. Não uses a ironia, esquece o filósofo, ou melhor, usa a ironia, a tua melhor ironia, o riso, o tal riso, o sarcasmo, os dentes afiados, queres morder a verdade. Lembra-te do outro filósofo, quando fores ao encontro marcado com a verdade, não te esqueças de afiar a lâmina. Estas palavras duras são as mais sensíveis, as mais nobres, como a verdade nos tem desgastado, o que ela foi capaz de fazer de nós! Esquece tudo o resto, mesmo o nevoeiro que nos perturba, nós que queremos ver os olhos de quem nos vai narrar o sentido da vida!

Aproveita a presença de uma máscara para encontrarmos qualquer coisa que dê sentido a estarmos aqui, aqui, não, não me refiro ao que pensas, estarmos aqui neste anoitecer rápido contra o vento, de estarmos aqui prostrados no frio de uma avenida sem nome, aqui para onde viemos curiosos de uma procura de nada, melhor, do nada. Pode ser que não saiba, não saiba responder, não queira responder, responda sobre o sentido sem sentido, diga o que não

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queremos ouvir, aquilo que menos gostamos de ouvir. Pode ser. Não sabemos. Pode ser que ele próprio nos venha perguntar sobre o sentido, que tenha saído para a rua para procurar algo, abraçar algo, uma teoria, o suporte de uma ideia, até, como vimos, é possível ter saído para abraçar um cão, uma árvore, um poste de iluminação. Abraçar uma ideia, uma teoria, uma crença, a verdade, o paraíso, a eternidade, deus, as ilusões, a felicidade.

É isso, veio pela noite com passos débeis preocupado com a solidão da felicidade. Deslumbra-lhe o rosto, aquela alegria indisfarçável que lhe cintila nos olhos, observa como agita os braços, os seus dentes brilham na escuridão. A roupa é clara como convém. Veio abraçar a felicidade, agradecer-lhe, sim, ele sabe o sentido, sobre o sentido, ele encontrou o que procura. Quer retirar à felicidade a solidão. Ou à solidão a felicidade? Mas, quem é ele? O que sabe do sentido da vida, saberá ensinar-nos novas crenças, lembrar-nos as crenças que perdemos, lembrar-nos das crenças que não queremos mais? Falar-nos sobre as ilusões? Ainda tenho os apontamentos desse tempo em que aprendemos ilusões, decorámos ilusões, copiávamos nos testes para termos boas notas nessa universidade de ilusões. Éramos alegres! E esquecemos tudo, embora tivéssemos tido o melhor ensino, embora tivéssemos sido os melhores alunos. Doutores de ilusões. Haverá outras, teremos de aprender.

Grita para o fundo da rua, queremos ilusões. Grita pelas ilusões. Grita a plenos pulmões, talvez elas nos ouçam, venham até nós, as ilusões.

Nós, os amantes de ilusões!

Outras crenças, outras certezas, outras verdades, ou, finalmente, a verdade, que não desgaste, que não procuremos mais, a verdade oferecida, a verdade como um prenda, embrulhada em folha de prata e laço de cetim. Imagina uma prenda assim. Ah, o encanto de desembrulhar um prenda assim! A Verdade, a verdade em si

mesma. Era isso que procuravas, era isto que procuro, saí ou saíste para ouvires a verdade, numa noite comum, saí para esta chuva álgida, para este diálogo, sim, do manto da noite irrompe a beleza.

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Esta noite não me escurece, me ilumina, volto à minha ilusão, às minhas crenças, à luz, ah, a luz, devorando a escuridade, a certeza de nunca mais me corroer nas incertezas. Quando tudo parecia perdido, eis que numa noite comum, noite como todas as noites, comum, saio, ou sais, saímos, à procura do que nunca soubemos, à procura de encontrar, à procura de encontrar o nada, encontrar nada. Dissemos, dissemos, ou disse, disseste, abraçar um cão, um olhar, sei lá, até o amor, acreditar no abraço de um amor, ah, o amor, abraçar uma árvore e uma pedra, chorar o choro daquele olhar sempre triste de um cão…

Lembrei-me de Godot…

Como Godot, não, não como Godot, ninguém veio, mas eles, os que o esperavam, ainda o esperam, ainda lá estão e Godot não irá e eles esperam…

Repete: procurámos o nada e encontrámos tudo, que poderíamos ter de melhor na moldura do nosso destino!? Vamos perguntar a esse ser na névoa, a ele que se aproxima dos clarões da noite, como é a verdade. Teremos de ser subtis, delicados e felizes. Aquece o teu melhor sorriso, esmalta o teu traje, endireita a tua coluna, o momento é solene, divino, a verdadeira manhã nascerá amanhã. Já sinto os cânticos da aurora, a água das fontes será mais pura que o cristal, verás todos os amantes unidos para sempre. Deixa-me dizer ainda, os sonhos deixarão de ser sonhos, a realidade será o grande sonho. Deixa-me dizer ainda, deixa-me dizer o que não sei, esta alegria me atordoa, saímos e estamos aqui. Somos aqui os autores do nosso destino.

Como imaginas a verdade? Poderemos falar de cor, de cheiro, de forma, de sabor? É tão importante a forma! Será que se corrompe, que se degrada, que é mutável? Não devemos confundir as verdades com a verdade. Esse foi o problema. O momento é da verdade, absoluta, incorruptível, imutável, solução para nós que saímos à procura de qualquer coisa para encontrar. Lembra-te, saíste, saí, saímos para encontrar o que procurávamos sem saber que procurar, procurar qualquer coisa para encontrar qualquer coisa, procurar nada para encontrar nada. Assim chegamos aqui,

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um lugar como outro qualquer, tão importante como outro qualquer. Não podemos ir sem encontrar nada. Não vou, não vais, não vamos, não vão, eles não vão daqui, deste lugar sem importância, com as mãos vazias. Só regresso ao quarto arrendado por um mês depois de encontrar o que procurava, nada, a verdade é o nada que procurávamos. Tem esperança, estamos aqui tão próximos, agora tudo é possível.

Ninguém se aproxima pela névoa, esta hora, ao vento recôndito da noite, noite, ninguém se aproxima na névoa. Escuta, escutamos o silêncio, a eloquência do silêncio, escuta, escuto, escutamos, eles escutam o meu diálogo, este silêncio em névoa me silencia, da noite de névoa pelo silêncio, a tua eloquência, a minha eloquência. Rio-me de mim, ah, a beleza do nada, a única forma de aceitar a verdade, a sua completa e única vacuidade.

Não temos ninguém a quem perguntar o que procurávamos. Ninguém para nos dizer a verdade.

Sabemos, nós dissemos e encontrámos. Dissemos a nós, encontrámo-nos.

Olho as árvores, sabes, são elas que me olham como o mar me olha, esta noite me despertou para o riso e o esquecimento. As árvores riem, como o mar, os jardins, os cães. Se choram por que não rir? Rio-me para as árvores, os cães, o mar.

Esquecermo-nos de nós, desligar a máquina, esquecer o que tem de se esquecer, sermos esquecidos por que temos de ser esquecidos, desligar a máquina. Quando desligas a máquina, os circuitos neuronais? Ligar por vontade de viver o que se viveu ou o que quase se viveu. Quando desligas as sinapses, cortas as dendrites e as telodendrites, os axónios? Quando vais esquecer tudo? Saíste para esquecer, procurar o esquecimento em cada rua e alamedas e bosques e praças e edifícios e candeeiros públicos, olhares a degradação das coisas em contentores de lixo e lixo e lojas e festas e paixões e jornais e cafés e jantares e amores e bebedeiras e alegrias e alergias e tristezas e angústias e mulheres que passeiam e veres tudo isto para esquecer e rir e voltares com vontade de rir e esquecer. Voltar às alamedas e avenidas e abraços

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e cães e chuva e o ódio e ruas e o arrependimento e a vaidade e o sofrimento e a fraternidade e a solidão e os vagabundos e o pão podre que comem com alegria e a distância e o que se disse e o que se não disse e a coragem e o medo e as circunstâncias e a dor e o ciúme e os aniversários e o dia da nossa morte e a morte e a esperança e o futebol tão sério como a morte e a esperança e os gelados de verão e o absurdo, a existência, a verdade, o nada…

Procurar o nada ou a verdade, o mesmo.

Sabes regressar? Para onde vou, para onde vais, eles vão?

Quando voltar a sair, prometo, vou abraçar um cão.

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Quarto Dia

Fixa o teu olhar, não desvies o teu olhar, fixa o meu, fá-lo cintilar num brilho único. Um vidro reflectido à luz intensa. Ela me dizia, olhando-me. Olha-me, então, com o teu melhor olhar. Deixa-me ficar em silêncio enquanto me olhas. Estou em silêncio, ficarei em silêncio por que me olhas. Mas, o teu silêncio não pode perdurar, não o deixes ir além, não deixemos que o silêncio fale por nós, mais do que nós. Nada nos escapa, não podemos escapar a nada.

Vendem-se palavras, compram-se palavras, frases completas, discursos, argumentos, homilias, palavras para certas ocasiões, frases de amor para oferecer a quem se ama, a quem se vai amar, quem se amará ou quem se amou. Discursos de despedida dos outros, homilias que convençam ingénuos e cépticos, argumentos de entusiasmo pela eternidade, sílabas avulso de apelo à felicidade, compaixão, solidariedade. Vendem-se argumentos se queremos ser felizes, compram-se, em mercados de retórica, raciocínios que um dia teremos disponíveis se a alegria se rasga. Palavras estão à venda e compram-se, prevendo o dia da nossa morte. Tememos tanto as palavras, queremos palavras, queremos tanto as palavras, tememos a palavras. Não é a vida que nos interessa, é a explicação da vida. Sim, com a venda em quiosques de palavras ou das palavras – depende -, vendemos explicações. As mais simples, explicações elementares, às mais complexas, as essenciais, sejam simples ou complexas. O importante é explicar. Encontro numa palavra a minha vida, direi, o sentido da minha vida está numa palavra. Onde poderia encontrar o que procuro? Onde encontras o que procuras? Onde foste procurar? A quem perguntaste o sentido da tua vida? Por onde andaste que não te encontraste? O grande sentido da vida está à venda num quiosque de palavras. Há uma grande variedade de palavras, a dificuldade está em saber escolher.

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Depende das circunstâncias. Muitas palavras já não me servem, usei-as e abandonei-as.

Quando não prolongamos o silêncio podemos ir muito longe. A nossa dificuldade é começar. Experimento: na neblina da noite foi onde encontrei a luz mais intensa; sem um nome, o que vai existir ainda não existe; e percorro a madrugada como se fosse uma floresta, quero conhecer antes da aurora todas as árvores, na clareira do dia hei-de saber nomeá-las.

Troco metáforas por outras metáforas, quero conhecer essa realidade, descreve-me essa realidade, emprega as tuas melhores metáforas, narra-me as realidades que não vi. Não percas as emoções, mesmo que não voltes a senti-las. Ofereço as minhas mais íntimas emoções, talvez possamos viver tudo de novo, talvez possamos trocar a vida enquanto trocamos o olhar. Que emoção! Terei de compreender.

Se dissesse, como entenderias? Digo: aqui, o dia se esvai e afirmo ao dia que se esvai, um hábito para me reconhecer, enquanto passam personagens respirando, de ar solene, o ar solene de ruas anónimas. Escrevo. Escrevi. Não escrevo confissões, mas a dissolução, dissolver é renovar, deslizar, negar uma confissão, a confissão é assunção de culpa. Nós não somos culpados.

Trocamos de metáforas, é o nosso acordo, cada dia. O que dizemos de nós só em parte sabemos, do que vivemos só uma parte retemos. Inventamos para explicar o que vivemos, sentir o que não vivemos. O que preferes? Como reconheces a linha que te separa? Onde estás, que lugar ocupas? Preferes ficar na linha, permanecer na fronteira, nenhum passo que nos defina, definitivamente. E não é que, curiosamente, não sejamos capazes de voar.

Quando vier a noite, como ontem na repentina obscuridade, ouvimos como nunca – num pronunciar subtil que atordoa – a voz do filósofo: “jamais se deixa de ser um outro”.

Na iluminação da noite, voltamos ao olhar. Repito, queremos entender, queremos saber o que olhamos. Não temos nenhum

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espelho, não confundamos o seu brilho. Não temos nenhum espelho que reflicta qualquer essência. Uma perspectiva, múltiplas perspectivas, a realidade marcada pelas características do olhar. Ou, então, mil espelhos e todos os brilhos que possam cintilar.

Que outro sou eu, que outro sou hoje? Quem tu vês? Quem vemos? Talvez nem me conheça, nem eu me conheço. Quem somos? Fragmentaste-te por um só dia, todos os dias, encontro-te num palco e surges entre a névoa, surges para representar o que nunca se ensaiou. Frente a frente. Frente a frente nos olhamos, assim, a pluralidade de nós, já não buscamos conhecer-nos de outro modo. “Jamais se deixa de ser um outro”. Eu fragmento-me, tu fragmentas-te, eles fragmentam-se.

Deveremos voltar às metáforas - como as belas sombras de jardins reais, o toque dos lábios nos lábios, a intuição das folhas ao vento, imagens habitando as pálpebras, o céu das formas sobre o mar, a ontologia luminescente dos jardins, árvores invisíveis no vale dos sonhos e areais longínquos para traçar a memória e a noite onde vieste de vestes púrpuras ouvir as fontes, horas no encontro das aves, esse desejo vivido na pele do delírio, a aurora na irrisão dos ombros da manhã, tuas veias rondando os véus do corpo, quando dias sensíveis do crepúsculo, o que escrevi sobre a tela do fascínio, mapas do assombro, profusão de pétalas nas alamedas do ar e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e.

Trocamos de metáforas, nosso repto. Trocamos de metáforas em qualquer momento de ondas, filtramos sílabas num espaço aéreo.

Eis as metáforas possíveis para inventares a realidade:

Como as belas sombras de lábios reais, o toque dos sonhos nos lábios, a concepção das folhas ao vento, imagens debitando as pálpebras, o céu das formas sobre os vales, a metafísica de jardins imarcescíveis, árvores invisíveis na planície dos lábios e areais longínquos para traçar a noite e a noite onde vieste de vestido translúcido ouvir os bosques, horas no encontro do desejo, essas aves vividas na pele da aurora, o delírio na irrisão dos ombros da manhã, tuas veias rondando o corpo das veias, enquanto dias

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sensíveis do poente, o que escrevi sobre a tela da impaciência, apontamentos do assombro, infusão de sombras nos corredores do ar e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e .

As palavras, escolhê-las com o objectivo de descrever a vida. Comprar as palavras mais exactas e saber quem somos. Que elas sirvam para explicar o que vivemos, a solução do que viveremos. Trazê-las no bolso, como maços de notas, utilizáveis em cada momento oportuno e nunca nos enganarmos, nunca nos enganarmos. Sim, eis a solução, num bolso de casaco, repito, a solução da vida.

É tarde, fiquemos em silêncio, olha-me com o teu melhor olhar, deixa que perdure o silêncio. Cintile este brilho num espelho pela reminiscência da noite.

Regressemos ou voltemos.

Pela manhã compramos as palavras: as palavras exactas.

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Quinto Dia

Olho pelos vidros, olho a noite e as palavras descem-nos pelo abismo das veias, no âmago das sílabas o lume acende de imediato as pálpebras. Uma narrativa possível.

Tenho as palavras e a memória. A imaginação e a lucidez. Sentir, impacientemente. Os instrumentos da arte e a denúncia numa frase cintilante.

Há cidades que só existem na noite. Podemos chegar a qualquer hora, mas elas emergem lentamente com a obscuridade, o instante onde se inicia a noite.

E o céu, o céu se irrompe ao crepúsculo, instruídas, as aves voam ao longo da marginal e desaparecem nos focos artificiais da luz. Estas árvores como colunas erguidas em sombras roxas.

Estas árvores de sombras esperam o desenho da noite, desenham uma realidade possível, deslizam entre lugares, uma personalidade comovida na folhagem.

Numa cidade existem árvores, mas as árvores não definem uma cidade. Talvez não definam. De certeza, as árvores são dos bosques, embora as cidades não sejam bosques e tenham árvores. E tenham bosques. E tenham lagos e flores e montanhas e rios e prados e relva. O que define uma cidade?

Há cidades junto ao mar, cidades há onde o mar está ausente.

Tenho de estar próximo do mar. Tenho de ouvir o mar, olhar-te, ó mar.

O mar devia imitar o céu. Omnipresente, nenhum lugar, nenhum lugar possível, nenhum lugar sem mar fosse possível. E os barcos

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fossem como as aves, sempre no horizonte, voando, navegando, navegar, voar, um único verbo.

O céu e o mar. Uma esfera. O céu é o mar, o mar é o céu. Uma questão de perspectiva. Uma questão de geometria descritiva.

Chego a esta cidade de noite. Primeiro, vou cumprimentar o mar. Depois, as árvores. Mas o mar é o mar. E.

(Continuo na próxima noite. Subir ao céu na próxima noite. Quer dizer, quando a noite cair, quando, o manto da obscuridade cobrir o mundo, cai sobre as páginas a narrativa em fragmentos. Cai a noite e a narrativa, o mesmo verbo. Assim: quando a noite cair, subir ao céu de elevador - que melhor forma de ascender ao céu -, subir a um varandim sobre o infinito. Não o céu, olhar do céu. Não olhar o céu, olhar do céu. Convido-te a olhar do céu, os olhos como uma praia estendida ao fundo, ao fundo azul da luz, olha até onde se olha o infinito. Nossos olhos e dedos e mente e corpo - Platão disse: demiurgos. Somos demiurgos no último andar da realidade)

Depois as árvores, os jardins, os navios, os cães, a relva, a noite, os muros e as pedras. Só depois os edifícios, as avenidas, os postes eléctricos, os candeeiros e os carros e as lojas e os autocarros e o metro. As ruas e os anúncios luminosos e as pessoas e a alegria, a felicidade, a tristeza e a solidão. A melancolia e os outros animais.

(Somos deuses quando subimos de elevador ao céu. Pertencemos, por momentos, a uma outra categoria de seres: somos seres criadores, omnipotentes, omnipresentes, omniscientes. Deste varandim do infinito, no último andar, dentro do céu, observo a totalidade, crio a própria realidade, nada escapa ao meu conhecimento. Sei, vejo, posso. Crio a vida. Vejamos: no edifício mais alto, no andar mais alto, no céu da noite imensa, onde não se pode subir mais, onde cheguei atrás de um vidro e da vertigem, sou o criador como os deuses da invenção. Crio a vida. E rio. Crio a vida rindo. Nenhum deus se lembrou de criar a vida rindo)

No edifício mais alto desta cidade – possível, factualmente!

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Sexto Dia

A criação do riso. Deus do riso. Penso em Diónisos, Eros e Pã. Talvez os gregos antigos se tenham lembrado do riso divino, talvez. No mundo antigo o riso foi adorado, mas não durou muito, o pecado substituiu o riso, o pecado estava ali aguardando os humanos. Recebemos o pecado como presente, ficou-nos a mágoa e o ressentimento. O pecado é a condição de salvação, desde que assumamos o arrependimento.

Aguardo a noite de olhos fechados. Sobre o varandim do céu. E declaro, não me arrependo de nada, a minha salvação é o riso, brindo ao riso nas asas diáfanas da noite.

A cidade prolonga-se pelos arredores, talvez haja um outro céu nos arredores. Talvez uma noite visite o céu dos arredores. Outra narrativa e outros deuses.

Talvez eu tenha outra noite ou esta mesma noite, talvez não tenha outra noite, seja esta única, unicamente possível, uma noite onde não esteja mais para amar a noite, onde não esteja mais, só a noite, independente de mim.

É, a noite ficará depois de mim. E aqui, no varandim do infinito, no céu, outro fale da noite, se escreva outra narrativa e a minha desapareça com o vento. A voz ou o grito, a raiva ou o desejo.

É. A minha vontade, o silêncio no ponto mais alto onde se vai de elevador. Ao céu.

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Sétimo Dia

Sétimo dia. Um jardim desce ao longo de uma avenida. Árvores estiveram ali sempre. Como esta noite ou este dia. A tarde à altura da luz. Sempre existiram. A tarde e a luz. As árvores. Digo, envolto num azul áureo, tudo sempre existiu. O mar espraiado como um vale. Há um lago onde ao domingo vai-se namorar ou ver o futuro reflectido num espelho. Outros escolhem a relva, narram em silêncio os sonhos. Os que olham os álamos, bebem água alguns e respiram o ar de flores roxas. Personagens distribuídos como pilares pelo verde de fundo. Digo, amanhã serão outros os personagens, paixões desmedidas, o mesmo céu sobre uma multidão anónima. Tudo sempre existiu à sombra das hastes da solidão. Bela imagem. É assim. Um jardim desce ao longo de uma avenida qualquer até ao mar de uma hora qualquer. Envolto num azul áureo, aves ilustradas no cristal dos olhos. Descreve os corredores onde a melancolia se esconde, os edifícios altos, avenidas fendidas como arestas, descreve essas fendas da vida. Depois. Serão outros, depois a manhã deslizando pela noite inevitável dos candeeiros tristes acesos. Tudo foi sempre assim. E quando fores ao encontro das estradas rosáceas entre margens ebúrneas terás de tudo a vulgar paisagem do que sempre foi. Um terraço longínquo será um terraço longínquo, imaginas figuras dançando ao crepúsculo e os lábios débeis da aurora que virão com a sua mecânica de iluminação natural. O olhar profundo dos cães, ombros debitados no futuro, querer a esperança ao alcance de um toque digital. Sétimo dia, fiz o mundo, nunca descansei, nem os olhos, nem os dedos. Árvores de bronze ao vento, um vale para crescer à sombra dos plátanos, abrir as pálpebras na efusão dos instantes. É assim. Um jardim desce ao longo de um lago, o ar à altura da noite, narram as imagens aos instantes verdes de qualquer sonho e os edifícios longínquos são um espelho de álamos pela manhã. Outros olhos de vidro.

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Tudo foi sempre assim.

Bela imagem. Ver descer os outros a avenida. Ver tudo.

Ter desejo de narrar.

Estar descrito na descrição.

As imagens nos narram.

É assim.

Desce a avenida, alguém, não sei quem é, desço a avenida, um outro de alguém que me vê descer entre jardins a avenida.

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Oitavo Dia

Daqui,

tudo surge mínimo, uma linha é um traço, este vértice, a quase impossibilidade real de uma margem. Alinho as personagens, invento o destino dos seus nomes. Escrever a noite, agora a ficção da noite. Escrever o que se viveu. Alterar o cenário, ser outro lugar, aquelas palavras habitadas num rumor.

Um caderno de apontamentos como um mapa. Pergunto o nome de um destino. Apenas o nome. Imaginar um lugar vazio com um nome. Criar avenidas e jardins para esse nome. Recuso ir mais longe, recuso saber da sua existência. Fixo-me no nome. Dizem-me que existe esse lugar com esse nome. Dizem-me que existem alamedas e jardins e avenidas e personagens e emoções, dizem-me que ao fundo existem luzes acesas no limar da noite. Há postais ilustrados, fotografias coloridas, a vida existe e a morte no lugar desse nome. Melhor, esse nome é o lugar, esse nome é apenas um apêndice de um lugar onde é possível ir dobrando a esquina de uma avenida. Que importa o nome, há mesmo quem não saiba o nome e exista. Uma árvore não sabe o nome de um lugar onde existe. Quem não seja capaz de pronunciar o nome de um lugar assim, ou o nome assim de um lugar. Quem saiba e se esqueça, quem soube e se esqueça, quem sabe e não queira saber. Há quem sabe e queira saber para sempre, a felicidade de não esquecer o nome de um lugar onde se existe. Mas todos preferem o lugar ao nome.

Pergunto o nome de um destino. Colecciono nomes. Pergunto repetidamente pelos mesmos nomes. Pergunto por ficções, ficções para mim, invento as possibilidades de criar o destino para um nome. Como um mapa. Um nome tem muitos mapas, estes nunca se repetem. Não importa já perguntar pelo destino de um nome. Todos preferem

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o lugar ao nome. Entre o que me dizem e a minha ficção, nada me liberta da minha preferência.

Desenho um lugar, tudo surge mínimo, uma linha é um traço, qualquer margem se dilui num espaço infinito, indeterminado. As emoções irreais, uma ideologia política do nada, a arte transposta ao absoluto de Malevich. A socialização da névoa como um vácuo.

Desenho um nome num lugar indelével. Visitar o nome, organizar cruzeiros turísticos ao interior das sílabas, adorar os templos fonéticos da pronúncia quase exacta. Instruir em nome do nome, dos nomes, educar para a cidadania dos nomes. Projectar, a partir da breve sonoridade poética de um nome, um lugar, mesmo um lugar que seja breve como um nome breve.

Alinho as personagens. O que é possível viver. Cada um escreve essa possibilidade. Um nome; deste: um lugar; neste: o que é possível viver.

Daqui,

tudo surge mínimo.

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Nono Dia

Imagino, possivelmente não é real, ou há uma osmose quase perfeita entre os dois planos. Aliás, é sempre assim.

Uma estrada como um vale alcatroado. A margem direita perde-se num espelho sombreado. Um rio, ou o mar, um espelho. O dia apresenta-se nublado e aquela superfície confunde-se com o céu. Existe como uma máscara de névoa. Com algum esforço, aquela superfície talvez seja a margem de outra estrada.

A margem esquerda está invisível. Ali, na paisagem global, mas invisível. Imagino uma margem invisível. E, no entanto, há uma sombra azul sobre a estrada, a sombra dessa margem invisível.

Uma relva imperfeita é a orla do alcatrão. Árvores esguias pontuadas assimetricamente, como se um sentido houvesse para perceber uma intenção. Procuro o significado, encontro o meu próprio significado daquele silêncio verde num dia nublado. Olhei as árvores, a sua composição aleatória, a presença breve do que passou breve para quem passa. Porque uma estrada, como esta, é um lugar que se passa, como uma palavra dita, um som que não se repete, um fundo mais fundo que se afasta. Olho para trás de mim que passo, pela estrada. O fundo que se afasta. Mil vezes “se”. A estrada que passa. Olho para o fundo da estrada que foi, olho para o fundo para não sentir saudade. De mim que fui.

Ao longe onde estarei. Mais ao longe. Uma placa indica uma localidade. A distância a percorrer para chegar a esse destino. Um destino que se aproxima menos distante. Menos distante quando acelero, as árvores mais breves, mais rápido o vento, as margens, o próprio dia nublado cumprindo o dia. Sempre em linha recta ou quase. Agora a luz da noite. Luzes dispersas para além das margens. A do rio ou do mar. Um espelho de névoa gravado por sombras. E mesmo a outra margem invisível reflecte luzes de lugares possíveis. Todos os lugares possíveis onde nunca irei. Outras placas, outras estradas, alguém que passa anónimo, outras

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sombras, este dia enevoado e as árvores e o mar e o rio estarão como sempre na sua posição eterna.

Descrevo-te uma estrada como um vale alcatroado. Não sei se imagino, as margens invisíveis e visíveis talvez existam, talvez exista muito mais do que posso imaginar, um destino onde se chega para partir. Uma placa indica uma cidade. Muito mais do que posso imaginar ficou para trás, ao fundo do que passa. A realidade entre dois planos, o que sei descrever e o que está suspenso – nem sei – para ser descrito. Muitas placas para nos indicar a realidade, nomes que nos orientam entre o caos. Talvez exista muito mais do que posso imaginar ou nomear. Descrevo apenas a partir do que tenho, as palavras. Aonde elas nos levam. Apenas.

Descrevo-te uma estrada por onde passei – nem sei. Num dia enevoado, correndo para atravessar a noite até um destino que passa.

Descrevo-te uma estrada – para começar.

Descreve-me personagens que pudessem ter sido.

Descreve-me personagens que pudessem ter sido eu - para começar.

Descreve-me lugares onde nunca irei.

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Décimo Dia

Observo do alto da janela aqueles que passam. Anónimos ao meu olhar. Aqueles que passam. Observo aqueles que um dia passaram a outro olhar. Os que já não passam. Os que deixaram de ser vistos. Como Pessoa dizia sobre a morte. A ausência. A suspeita de tudo o que podia ser. A suspeita de imaginar aqueles que não passam. A suspeita do que não está, o vazio do que a vida seria se tivesse havido outra vida possível. A ausência dos que falam, a felicidade de um rosto anónimo sob o vácuo de um dia. Do não dito na breve permanência de um fluxo contínuo. E a minha memória ou o sonho que houve teriam outros que passam, outros indistintos pela brevidade do que vai.

A avenida é o outro lado, aquela estrada ao fim da tarde, uma sombra coada pela chuva ou – quem sabe? – a névoa diluindo qualquer destino de um propósito sem sentido. A primeira luz da noite, a última margem habitada por personagens de uma história inventada. Nem sei o que narro, o que pudesse descrever do alto da janela que valesse apenas um rumor ou uma voz audível ao futuro. Tudo o mais é a indisposição gástrica de pensar, a simples subtileza. Abro as cortinas e ouço a minha voz do outro lado, abro as cortinas e reflicto também eu sobre as imagens, esta imagem reflectida num cenário real de avenidas sem fim. Mais longe, onde tudo pode ser invenção, talvez as áleas verdes de um bosque, talvez o que não existe, só o silêncio.

Talvez o quotidiano tão autêntico como a respiração. A felicidade dos que são felizes e infelizes. Do alto da janela o mundo se manifesta, objecto de uma depurada observação. Assim num olhar de deus nascido de todas as ilusões. À noite, prolonga-se a noite pela marginal até ao infinito e fico com as palavras que trago nos bolsos. Desafiar as palavras, provocá-las, cada impressão me desperta mais do que posso sonhar. As áleas verdes de um

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bosque, os navios que parecem sempre os mesmos declinados no horizonte ou na solidão. Penso as viagens que nunca fiz. O que poderia ter sido, o pátio da minha infância, agora tão presente este muro caiado, uma linha onde subi para saber do céu mais alto e afligir com a inocência a minha mãe. Tudo passa anónimo e até a emoção se defende da emoção. Do alto da janela nada sei dos que passam, também sou a personagem enevoada na imaginação da noite.

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Décimo Primeiro Dia

Escrevo no centro de uma praça, sentado a uma mesa e há sol e há vento para eu escrever o vento. Não faltam palavras, objectos vulgares para quem escreve sentado a uma mesa num centro de uma praça. Não faltam imagens, a percepção imediata do que vejo e descrevo mentalmente, não faltam imagens de outros lugares onde estive a recolher imagens para um dia escrever no centro de uma praça. E, e há ainda imagens do que nunca vi, mas evoco na invenção de evocar imagens. Este é um caminho possível. Ou decantar apenas alguns contornos e deixar que as imagens e as palavras me escrevam com os dedos que já não são meus.

Um dia, um dia houve o mar, talvez fosse aquela marginal onde iam acabar as grandes ruas, talvez os edifícios fossem altos e o sol desaparecia mais cedo naquelas sombras prolongadas no asfalto. Talvez a casas fossem térreas e podia-se ouvir sempre o mar, mesmo que as janelas se fechassem. Uma multidão corria ao fim da tarde, no desejo apressado de recolher a vida na intimidade das paredes vulgares de um quarto. Ou não havia ninguém ao fim da tarde, e eu podia ouvir o mar entrar no meu silêncio, o mar na intimidade da minha alma vulgar. E a razão de falar da alma é apenas porque gosto da palavra e nada mais, nada mais há na alma que a beleza da palavra alma. Então o mar entrava nas minhas palavras, entrava pelo átrio do silêncio. Entrava para escutar as palavras que escutavam o mar. Por isso a alma vulgar, as minhas palavras são o mar quando falam do mar. Nada mais vulgar.

Foi assim, àquela hora, ao vento recôndito da noite. Não sei se vivi essa noite depois da ida do sol, não sei se o que evoco é apenas a vontade de ter vivido essa noite. As imagens fluem por dentro de outras imagens. Talvez esta praça não exista no presente, a luz do sol me confunda, a claridade que irradia seja a luz distante dos navios, os candeeiros erguidos no cais das ilusões que partem.

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Todas as viagens são ilusões. Pessoa dizia que todo o cais é uma saudade de pedra - a ilusão, a saudade.

Escavo as palavras sentado a uma mesa. À minha memória vem a memória de todas as imagens. Nela já estão as imagens do futuro. Os jardins que nunca vi, as aves passeando pelas salas de uma casa de portas abertas ao vento, as folhas por varrer nos quintais de paredes de cal, as mulheres tão belas como mulheres, a neblina azulada da aurora, o mar a entrar no meu silêncio, as palavras mais reais do que a realidade, a solidão dos bosques, os lagos longínquos de um sonho, aquelas hélices na querida Irlanda, Nietzsche e Joyce e outra vez Pessoa, nós deitados esperando o crepúsculo num hotel da marginal, eu no centro de uma praça, sentado a uma mesa, agora, quando o vento pela noite me entusiasma, quando tudo são outras imagens, quando tudo é muito mais, para entrar no átrio das folhas futuras. E. Quando. E. O que virá!

Tudo sempre muito mais por escrever do que por viver.

Talvez.

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Décimo Segundo Dia

Aquelas personagens do sonho são as nossas máscaras. Sonhei este sonho.

Sonho este sonho muitas vezes. Primeiro: surge um cenário num fundo branco. Parece-me um fundo branco. Um espaço habitado por figuras. Podia identificar essas figuras, mas não são rigorosamente as figuras que eu podia identificar. Elas próprias se transmutam, metamorfoseiam em outras figuras que vão perdendo a identidade. Segundo: são estas figuras que podia identificar. Temos um cenário num fundo branco, temos figuras nesse cenário. Temos a minha dificuldade em identificar as figuras que no cenário aparecem e eu sonho. A mosca do quarto de que falei no primeiro dia existe. Preocupo-me se existem estas figuras que no cenário do sonho eu sonho. As pessoas que passam na rua, as palavras à venda num quiosque, os jardins e os parques onde ficamos ao domingo à espera da alegria – tudo existe. Mas as figuras do meu sonho são apenas as figuras do meu sonho. Terceiro: e se a realidade é ainda este sonho ou outro sonho ou outro sonho que nunca sonhei e podia ter sonhado? Ou se é um sonho que não sei se sonhei? Ou se é um sonho que alguém sonhou? E se esse cenário num fundo branco e essas figuras que surgem, que parecem estar em silêncio, estáticas, se esse cenário e essas figuras – insisto - forem peças, peças reais, próximas, concretas? Por exemplo: uma casa totalmente branca, sombras deambulando num jogo vital de múltiplas máscaras. Se – de novo a condicional – não for eu a sonhar este sonho que sonho muitas vezes? Quarto: preciso parar aqui.

Quinto: ainda posso escrever: pode não ser sonho, mas realidade. Pode ser sonho do que pode ser realidade.

Sexto: preciso parar aqui.

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Décimo Terceiro Dia

Continuo, sem parar.

Julgo que Jung afirmou que todas as personagens do sonho são uma única personagem, a de quem sonhou.

Os sonhos de Munch. Imagens.

“A cor uivava”.

Há uma intenção deliberada de utilizar as cores arbitrariamente.

“A Dança da Vida” foi pintada entre 1899 e 1900.

Munch percorria o interior da noite, a cidade e o fiorde. Lembro-me de Oslo pelo interior da noite. A noite do norte, uma película de obscuridade, uma película que deixa uma luz coada sempre presente. Uma forma única de anoitecer. Lembro-me do frio, o corpo cortando o vento, o vento cortando o corpo. Lembro-me de Oslo assim, à noite, lembro-me de Munch. As mãos nos bolsos. O corpo doente de Munch. Os candeeiros acesos nos cones prolongados de múltiplas sombras. O cansaço. Sentir um grito, o início de um grito, um grito no rosto que uivava. E a forma desse rosto ou desse grito. 1893. Os dedos junto ao rosto, escorrem na natureza real as nuvens profundas do sangue. Das linhas de cor emerge a própria forma e a angústia no rosto oculto dos solitários. De costas, aquelas figuras inertes em frente ao mar. 1935. Por que vieste ouvir o mar? O teu cabelo caído ao longo de um vestido branco. A tua solidão, a beleza da melancolia ao ritmo das ondas.

Convido a inocência, a jovem da Dança, os cabelos esvoaçando, ela que olha a vida e o amor, olha mais fundo para dentro de si. E passam os transportes públicos com os primeiros operários para o trabalho. As sirenes da polícia, compro um jornal em inglês. Atravesso as avenidas ainda desertas e nas pontes repetem-se as

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mesmas raparigas que ficaram eternas numa noite clara, figuras de cores vivas. Em silêncio. Em silêncio.

Repete-se o silêncio.

“A cor uivava”, fixo-me aqui para sonhar.

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Décimo Quarto Dia

Podia ficar,

ali no sonho, planando sobre um lago fictício. Até amanhecer. Mas no sonho o tempo é outro, o rumor nas árvores da noite, vou cindir as praias longas do crepúsculo. Mas no sonho o espaço é outro, não ouço a voz, sinto a voz percorrer as hastes da pele profunda

mais além.

E a história nem começou e há uma história para viver no fim, enquanto no ouvido amadurece o vento pelo silêncio. Tu vens e o mar, o mar, tu vens cerzida na luz adormecer na minha sombra por entre os vidros. O reflexo nítido desta imagem

sob a neblina.

A história que se conta é da alegria, olha o nosso riso e os dedos como barcos. Nem sei. Talvez o mar repouse na margem dos lábios e nada sentimos senão os pulsos enquanto ondas. Combinámos ser assim para que cada vocábulo fosse o lume durável

dos instantes.

Podemos ficar nesse areal ou a casa ser um lençol eterno da leveza dos corpos. E nada mais narrar aos sentidos agora ígneos do nosso desejo. Deixo as aves adornar os teus cabelos, nada mais narrar que as veias ali no sonho

do dia único.

(Combinámos ser assim, nas esplanadas do real não havia muito mais para narrar – o dia entrava breve pelo Outono próximo).

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Décimo Quinto Dia

"Had to be imagined as an inevitable knowledge,

required as a necessity requires."

Wallace Stevens

“Sou o que me rodeia”, escreveu Wallace Stevens. As circunstâncias que me envolvem e me permitem pensar a relação entre imaginação e realidade. E a América é essa realidade, apenas pelo facto de que é, como podia não o ser. Nenhuma linguagem é arbitrária, mas sempre exigente, o rigor poético subentende a busca precisa da que produz o máximo resultado sobre o conteúdo. Depuração de palavras que filtre a poeira da respiração poética, uma vala construída no fluir límpido e concreto da simplicidade das coisas. Imaginar é entender o mundo e penetrar numa certa ordem nunca definitiva.

“Ficção Suprema”, disse Wallace Stevens. Parte do mundo para o poema, este, mesmo sendo ficção, revela a essência subtil da realidade. Ou parte da palavra para o mundo, espécie de luz que, eliminando todas as sombras, o encontra na sua verdadeira transparência. Talvez seja assim, talvez não seja assim, e os grandes campos e os pássaros, as tardes longas até ao fim do Verão, a água com o som de uma voz ausente, ou nem havia voz e os pinheiros cresciam ao vento, os eloquentes olhos para narrar. Estendiam as toalhas sobre a relva em Tennessee, aguardando o fim da angústia enevoada de domingo.

Talvez. Fosse. Assim. As folhas caíam no poema. Ele escrevia logo de manhã com laranjas e café. Lembrei-me de outra manhã, de outra manhã, a urgência da felicidade, a sua necessidade, mesmo que o mar fosse ao fundo da avenida uma película triste. Talvez.

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Assim. Via da janela as mesmas árvores alinhadas e não via a mágoa ou a solidão, apenas o teu rosto era a mágoa e a solidão. Continuava a ler o poema da alegria dele cantado às aves, a entrada pelo céu como um banhista que perde os sentidos e fica de borco no areal e todos julgam que a morte veio com as vestes inexpugnáveis da escuridão.

Poderia ser assim. O silêncio era apenas um exemplo. Lembro-me de caminhar pela noite, as luzes amarelas da cidade portuária, ou as luzes de qualquer cidade em silêncio, tudo brilhava, é isso, sob o tecto esculpido de estrelas. Não era o sonho, eram mais próximas as estrelas, o halo da sombra de ruas brancas e de mulheres. Os ombros das mulheres. Tu dizias, Stevens: “Noite, a fêmea, obscura, flagrante e flexível, encobre-se. Uma lagoa brilha, como uma pulseira agitada numa dança”. O silêncio era apenas um exemplo como os navios na paisagem, tu podias ter escrito ainda que havia um vento ágil.

Quando pensaste o que fazer para viver, falaste – para minha alegria – no vento. Eu digo: ela tinha os cabelos desalinhados pela ventania, entardecia ao som da água. A luz coalhava o mar por entre as cortinas da névoa. Gosto do frio e do vento incerto contra os vidros, as praias ficavam na linha infinita ao centro das nuvens azuladas. Em todos os lugares, perguntámos onde se podia ir de peito aberto sentir o frio tocar as veias, golpear a garganta com a lâmina do ar. E deixa-me dizer, em todos os lugares eu soube desse lugar, “os nossos grandiosos voos” pelo interior da música subtil dos pulsos.

Isso era o que havia a fazer para saber viver. As palavras não eram fáceis, nem chegamos ao fim da imaginação. O silêncio e as árvores, o vento, as praias profundas, ao anoitecer desaparecem as distâncias - ou as distâncias são outro modo de serem distâncias – e, por isso, sonhámos ir mais longe: como a morte. Os lagos ficavam confundidos na neblina à espera dos próximos “banhos de domingo”, nós intuímos. Mas a esta hora, sem compreender a causa da tristeza, as coisas simples como a água que se esvai, as imagens delidas na penumbra tardia dos campos, “garanted, we die for good”.

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A luz do candeeiro cintila sobre a folha, o tempo se esgota e as palavras têm toda a importância por serem palavras. Que mais importa? Sim, diz-me, “what else remains?”

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Décimo Sexto Dia

Na discussão sobre a felicidade, falámos sobre a máquina de experiências de Nozick. Um riso branco, estendendo os dedos sobre o tampo frio. Havia a luz coada ao fim da tarde. Eu não queria pensar mais na ética. Não queria argumentar, queria ficar em silêncio. Queria esquecer as crenças, os valores, adormecer na leveza do dia alguns princípios essenciais. Que eu julgava essenciais. A relva iludia o azul do mar, os muros em volta do olhar e ouvia o vento. A discussão sobre a felicidade. O que é relativo? A essência e o acidente. Natureza humana. Não há natureza humana. Filosofia moral. Axiologia. Kant e a deontologia. Transmutação de todos os valores. Para além do bem e do mal. Um riso branco exprimia o meu cansaço. O absurdo me domina pelas leituras daquele escritor irlandês emigrado em França. O absurdo me fascina por causa de Camus. Nozick sabia que a felicidade é sobretudo a felicidade de ir. Ir. O mais importante não é o que tenho, mas este modo de estar aqui navegando. Deixa-me dizer ainda, antes de nos despedirmos, o limite do sonho é a realidade por sonhar.

E o fim da tarde foi mais breve, voltava ao silêncio do ruído urbano, ao amortecer progressivo da noite. A memória de todas as noites. Mesmo que nunca as tivesse vivido. Ou vivido. Importam as palavras para inventar o que era possível viver. Quando viajava sem saber o destino, nem um nome, apenas aquele espaço preenchido em imagens, o significado das emoções possivelmente reais. Voltar ao início, narrar a mim mesmo as personagens de mim e não me conhecer, representar um outro que se encontra ao atravessar - sei lá! - avenidas de uma cidade vulgar. Voltar ao início, ir, navegar. Este exemplo: um grande parque absorvido por sombras e o eco solitário do mar e as árvores aliadas ao vento, quando vinhas de ombros descobertos deixar os lábios nos olhos. Sem nada dizer sobre ética, sem nada saber do utilitarismo, a pragmática das horas solenes sem melancolia. Eu não queria

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pensar em mais teorias, sobre mim havia a luz em colunas deslizando pela noite imensa.

Sobre mim – havia o teu corpo deslizando sobre mim.

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Décimo Sétimo Dia

Amanhã será um dia. Um outro virá a esse lugar. Nada sabemos. Fica o desassossego e a página para ler o teu desassossego. É certo, houve dias de chuva e a alegria regressa em jardins de sol. Viste, Bernardo Soares, o céu rasgado pela luz até ao sul. Os prédios estavam pintados, a roupa pendurada daqueles outros que a vestem leve ao vento emoldurando a cidade. Lisboa. Ela seria outra depois de ti, mesmo sem ti, seria outra por ti. A rua da Prata, o Rossio, a Praça do Comércio, a linha do Tejo sombreada ao entardecer. A felicidade, eu sei, apenas por não sentir a infelicidade. Disseste: “Feliz por não poder sentir-me infeliz”. Bloqueias as minhas palavras, imagino em silêncio o Universo à escala do escritório do patrão Vasques onde tudo se repete na rotina inexorável das certezas. Tão pouco para ser feliz, agora que as nuvens deixaram o infinito banhar os passeios azuis de gente, vendem-se bananas e jornais, possivelmente muito mais, neste dia de sol - “depois que as últimas chuvas passaram para o sul, e só ficou o vento que as varreu.” A hora corre por dentro de si, este dia de sol ao vento em que viver é ir descansadamente e saber ou não saber comprar bananas numa qualquer rua da baixa. Imagino. A certeza de voltar amanhã, quando a luz única do poente de Lisboa mergulhar a cidade em personagens de outra gente, jornais de uma data que não é de hoje, de alguém que não seja o mesmo. Mais ainda, tu que foste um outro nesse lugar.

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Décimo Oitavo Dia

1) Uma Personagem

Ao longo do percurso da narração, como se a história pudesse ter sido vivida. Mas não foi. Apenas imaginá-la. Ou foi. Escreveu para viver. Cumprir um horário rigoroso, ao fim do dia, ao fim da tarde, ao entardecer, quando anoitece, ao entrar naquela película sombreada no declinar do dia. Escreveu para viver, viver um acontecimento breve, nada de grandes apoteoses existenciais, a simples presença de um momento vulgar. Chegar e partir. Lembro-me de mim, os navios saíam do porto, passavam a barra e chorava ao ver desaparecer o que desaparecia, apenas isso, como se tudo fosse a história do que parte, do que não volta, os navios mergulhados para sempre no fundo longínquo do mar fundo. E voltava no outro dia ao cais, às pedras da saudade, ao som melancólico de um destino marítimo. Escrever com os dedos o que seria a memória no futuro, escrever o que alguém viveu, escrever sem deixar de sentir, sentir a possibilidade de sentir o que não se sente, sentir apenas por escrever. Viver no interior da narração as personagens inventadas, nem saber se foram inventadas, qualquer aspecto importante que ficasse para lembrar mais tarde – e ao lembrar se tornasse de facto importante. Escrever para viver como se não merecesse o esforço.

2) Uma Personagem

Ao fim do dia, voltava a lembrar para viver. Havia um jardim na infância que ficava na noite dos sonhos. Plátanos esguios e fontes. Aves que se ouviam num corredor de nuvens. Sentava-me num banco vermelho como este vermelho do banco de um outro jardim. Mas o jardim do sonho só era possível sonhá-lo por existir na realidade, a minha realidade em sombra por dentro de dias onde o

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Verão se prolongava sem fim. Um muro branco e portões verdes ladeavam aquele lugar de plátanos esguios e fontes e aves e sombras e tardes longas e bancos vermelhos, o sonho de tudo que era possível sonhar por ser sonho. Um dia, talvez quando a noite desliza já num simulacro de imagens, fiquei só no jardim (jardim de São Lázaro), os muros tornaram-se mais altos e os portões verdes fecharam-se hermeticamente, senti a alucinação das aves sobre as fontes, a respiração dos plátanos era mais intensa, na relva verde cresciam palavras como pétalas em canteiros de flores coloridas. Não sei se li este sonho, não sei se sonhei este jardim, se escrevi a hipótese de este jardim não ser um sonho, de procurar um jardim assim como síntese de todos os jardins que existem e - não sei.

3) Uma Personagem

E continuava a narração. Ouvia o transe da voz como se fossem os cadernos de Rilke. Um café em Paris quando aparecia André Breton. Descendo as avenidas pela névoa do horizonte. Qualquer cidade foi um lugar de encontro por que se escreve numa folha branca para não voltar a esquecer. Fosse o mar ou um jardim ou as hélices que filtram do ar o vento e vamos no entusiasmo com os clarins da noite. Agora. Aqui passam as horas da recordação entre as imagens reais e a realidade imaginária, sem nenhum limite a uma história que pudesse ter sido. O que se vive dentro das paredes de um quarto, ao convocar apenas um estímulo que do interior abriu as grandes vias que rasgam o infinito pelos múltiplos sulcos da memória. Muito mais numa narração quase sem fim. Uma manhã clara, as tardes brilhantes da existência, discutíamos a felicidade e a solidão, os surrealistas e o romantismo, os escritores alemães quando a noite era longa. Haverá ainda outra hora na metafísica das sensações, saberei as palavras exactas enquanto a vida continua e a morte é sempre a clareira de um último sentido. As cortinas corridas da janela, é assim - agora.

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Décimo Nono dia

Uma cidade como outra, desperto-me na partitura dos sons quando chego sem saber qual a importância do destino. Onde estou talvez um outro de mim não tenha sentido o mesmo numa hora em que as veias correm pelos pulsos. Vi aquela orla nublada do sonho

ao cair da noite,

numa distância à varanda do mar. Lhe disse que mais a sul a luz ficava exacta para olhar as sombras venosas caídas em arcos de qualquer voz anónima. Aqueles que vão até ao fundo da névoa comprar o vácuo. Eu vou por uma avenida invisível com o teu nome, nenhum apontamento me interessa por que esquecer ao cair da noite

me reflecte nos vidros da memória uma manhã possível. Mas agora é o momento de não saber deste lugar, apenas um passo mais lento paralelo aos muros, o cone esguio das árvores de ninguém que desliza pelo silêncio verídico da marginal. Uma noite assim. Os reflexos verdes do mar que existem no amplexo do corpo,

como os ombros por tocar ao descer lentamente as alças. Lembra-me de um outro dia próximo onde estamos num hotel com néones cintilantes à espera de uma bebida no bar, os dedos móveis nas hélices do desejo, o rosto em diagonal para beijar os lábios. E nenhuma palavra nesse instante, nenhum sentido em qualquer frase, a boca

poisada na boca absoluta do nosso silêncio. A noite assim. Correndo entre a paisagem estrema das veias. Sentir que o corpo se une numa vertigem.

Uma noite real – num quarto de hotel.

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Vigésimo Dia

As árvores ao fundo e o brilho dos lagos de um dia, como se fosse verde a respiração no anúncio anelado do crepúsculo.

Pelas fendas da existência, a estrada que falta viajar por um início ou retrospectiva, a chuva próxima diluída contra os vidros, voltar à atmosfera visível onde a cidade é um traço no destino de um mapa de névoa. Numa estação de metro observo a beleza dos horários em painéis digitais.

As avenidas que nunca vi, o espaço aberto de uma outra luz que esmorece nos muros deslocados da noite. Sem saber descrever os meus sentidos ou aquela hora entre áleas do que passou pela proveta dos olhos. Como os edifícios descoloridos ou os táxis visíveis no nevoeiro denso.

O que haverá para lá das esplanadas longínquas, o ruído do mar em esferas sobre a praia. Quero ficar apenas pela visão das janelas cerzidas ao vento, descer pelas pontes onde passam vultos anónimos. Um anel de aglomerados de habitação social.

Talvez nada entender nem pensar, fixar um ponto ou uma linha débil, a casa onde correu breve a infância de alguém, estas lâmpadas sem nome, diluo a memória e me envolvem as sombras em coágulos na paisagem. Urbana e suburbana.

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Vigésimo Primeiro Dia

Escrevo:

E nada mais,

nada mais se podia dizer que perturbasse aquele instante.

Olho pelos vidros, olho a tarde e as palavras descem-nos pelo abismo de outras palavras, no âmago das sílabas os sinais acendem de imediato as pálpebras profundas.

Provocar o real, afastar a ilusão exterior como quando se correm as cortinas, um vale de sombras ordenadas

numa insidiosa penumbra.

Do quarto a luz se perfila mais longínqua entre estas horas breves, o corpo silente deitado na sua identidade.

Uma linha de tinta azul, essencial.

Nenhuma hesitação por onde fluem as imagens cinematográficas da memória, as fotografias esbatidas, quem sabe, a existência encenada em cada hora por lembrar.

Nada mais. Fixo os painéis publicitários da vida e acredito, quando a atmosfera duma noite volta ao perfil dos vidros, nada mais neste lugar deserto para inventar.

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Vigésimo Segundo Dia

A larga praça ou um pátio aberto a um olhar público

e a luz desliza em lâminas esfarelando a noite num brilho de anéis.

Cada imagem narrada à imagem dos olhos, uma história possível escrita nas pedras de quaisquer vestígios. Nada dizer que pudesse manipular a certeza de um desígnio. Estar ali com a névoa aparada pelos ombros, um fundo vazio entre aspas ou janelas de persianas descidas sobre as arestas do sono.

Quando se olha a solidão como um arco e se devolve o corpo às cidades repetidas da memória, o mapa das estradas é agora a álea do que nunca fomos, apenas um traço evasivo num desenho sem título. O copo de cerveja morna poisado na mesa de mármore, os gestos dedilhados no espelho da noite, preencho a próxima mensagem com o teu nome.

E a luz desliza à velocidade das margens na paisagem.

A luz desliza em anéis num brilho de lâminas.

(Escrevo nas páginas da agenda o que vale o esforço de sentir mais tarde)

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Vigésimo Terceiro Dia

Uma película de névoa derrama no chão líquido

a sombra breve da sombra desfocada na tarde,

era a passagem pelo céu das árvores, a vida é um mosaico

vertiginoso em cada estrada.

Uma atmosfera inscreve sobre a pele todos os nomes pronunciados,

espécie de memória avulsa para uso imediato. O que ficou entre as pedras desse lugar ou o crepúsculo onde repousasse o vidro dos lagos, contemplar as janelas ao anoitecer daquela praça de arcos graníticos.

Depois, a chuva diluída entrava pela luz. Do teu contacto emerge a voz das margens. Lembro-me de um rio como um traço para quem narrar o futuro.

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Vigésimo Quarto Dia

AEROPORTO.

Um diálogo. Começo a escrever sem tédio, a impaciência leva-me ao fundo do corredor para observar as colinas, leio em folhas azuis o horário dos transportes, sem preocupação do tempo. Ler por ler. Ler palavras. Dialogo. Este diálogo num lugar privilegiado de vozes cruzadas. No PC registo as impressões como um observador exterior. Gosto de ser a minha figura sem mim. Nunca acreditei em nenhuma unidade, coerente ou consistente, nunca acreditei em nenhum eu. Sou adepto da fragmentação, da presença de personagens plurais que se exprimem em línguas diferentes. Começo o diálogo, desdobro-me em mil actores, subimos ao palco e representamos, representamos todas as histórias possíveis. Talvez. Não tenho a certeza, sejamos também o público. Simultaneamente, actores e espectadores. Tenho a certeza. A garantia de termos sempre a sessão esgotada. Nunca falo sozinho, falo para fora com todos os que me envolvem e aparecem e gritam e riem e choram e ficam e desaparecem e regressam e vão e não voltam, falo para me esquecer de todos os outros em mim, me lembrar de todos os outros de mim. Não existe monólogo, existe diálogo. Imagino, imaginem, uma sala de espelhos, paredes de espelhos. Imaginem. Qualquer objecto se projecta até ao infinito, se multiplica indefinidamente. Não sabemos a sua origem, não sabemos o seu fim. Apenas se projecta, se prolonga, apenas existe. Não distinguimos o real e a imagem do real. Um jogo de espelhos, uma realidade espelhar, uma espécie de vácuo, material e imaterial. Sem identidade, sem essência – adoro o que não tem essência -, algo que desliza entre paredes, elas mesmo deslizando por um fundo móvel.

Levanto um braço que se multiplica, pronuncio uma palavra que se arrasta por um eco indeterminado, corro não correndo e o

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movimento vai e vem em rectas assimptóticas. Questiono, interrogo, respondo, problematizo e todas estas figuras me acompanham, saem do silêncio, estilhaçam como cristais a solidão.

Não calculas o que tenho para dizer ainda.

Ao fundo do corredor, observo as colinas, filtrei o tédio. Viajo entre aeroportos. O que é um aeroporto? Uma ausência, a ausência é o que importa. Um acessório. Um preliminar. Um intervalo. Antes da apoteose, o que mais importa antes. Viajo entre aeroportos. É indiscutível, “ o caminho é o próprio caminhar”. O meu bilhete tem inscrições vazias.

Apenas estou de passagem.

Vou propor roteiros turísticos originais. Chegadas e partidas de aeroportos. Conhecer o ar, quando muito, conhecer do ar o simulacro de um espaço. Alguém diz, conheço todos os lugares a partir de uma lente que tanto se aproxima como se distancia. Conheço o mundo à superfície, nunca me interessou conhecê-lo em profundidade. Não vale a pena. Não vale a pena conhecer nada – e ninguém – em profundidade. Fico pelo teu rosto, pelas tuas mãos. Repeti seis vezes a palavra “conhecer”, isso assusta-me. Não quero conhecer nada. Sete vezes. Vejo um rosto, todos estes rostos aqui neste aeroporto de que não sei o nome. Tudo isto é suficiente. A beleza da superficialidade. É possível pensar superficialmente. Sentir superficialmente. Por que havemos de querer mais!?

Não calculas o que tenho para dizer ainda.

Estive sempre de passagem.

O próximo diálogo: o tempo não tem presente, passado ou futuro, foi estabelecido desde sempre como um fluxo.

Entrar no silêncio. E as minhas personagens estilhaçam como cristais na solidão.

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Vigésimo Quinto Dia

ILUMINAÇÃO.

Há nas marginais do anoitecer sombras. A beleza das sombras. A sombra nas árvores da marginal, assim a noite. O jardim que vivi, do lado de dentro ainda cresce o verde das árvores. Possivelmente, as imagens se cruzam em outras imagens e desenham um fundo nos espelhos da memória. Escolho palavras – ou o seu contorno – para dizer esta névoa flutuando no ar, a névoa que nos esconde o rosto do destino. Um diário que se escreve à luz com a sede dos lábios e cada intervalo desenha a moldura de outro dia. Como. Agora. Se dirá amanhã que o mar nos olha, se dirá que o mar existe pelo interior das pálpebras. Se dirá as veias do limite, as tuas árvores no jardim onde adormeces. Vais pela aurora onírica, talvez o corpo febril, adornar a felicidade com o ardor na pele. Há nas marginais desse lugar uma iluminação de sombras.

A minha memória. A memória é um espaço de invenção, um vértice para inscrever o futuro. Como. Agora. Lembro-me do que não vivi, uma praia e um vestido ao vento, um vestido branco, os cabelos dobrados ao vento, a tremura das lâmpadas para se despedir o poente, aves como traços longínquos no areal. As frases que nunca dissemos e todas as horas possíveis com os dedos unidos do destino. Ao anoitecer, o silêncio dos bosques me interroga sobre a realidade. Um breve olhar para cumprir o olhar, a existência desenhada nos vidros límpidos de uma história contada em fascículos. Interpretar cada momento numa verdade que se escapa pelo seu labirinto. Ainda. Lembro-me do que não vivi. O mar rondando o quarto sob os astros, o corpo ou os corpos estendidos na brevidade simultânea de uma iluminação de sombras.

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Vigésimo Sexto Dia

METAFÍSICA.

Exponho a teoria da evidência. Descrevo, nomeio - a evidência.

Talvez, talvez vagueasse sem um sentido, sem vontade de encontrar um sentido, aritmético ou físico. Esquecer a metafísica. Delir as certezas na serenidade marítima, as dunas eram simplesmente as dunas por onde deambulava o vento. O crepúsculo orienta o dia, o tempo dissonante para o seu fim, enquanto o silêncio escorre pelos dedos, o ar que cintila até às veias – a orla deste instante. Os jornais não deixarão de falar do quotidiano, a vida numa esquina aguarda a sua oportunidade. Ou a morte. A praia próxima e as aves que se sentem, olhar, mesmo encerrando as pálpebras. Paro, que importa o que existe, que importa o significado do que existe, não pergunto, afirmo. Paralelos ao mar, os barcos deslizam indiferentes. Esquecem a metafísica. Possivelmente, a semântica da luz é apenas a lâmpada que se acende, os candeeiros longilíneos na marginal, o asfalto líquido da chuva, quem vai digerir a solidão ou o amor em cada hora que lhe parece eterna. Pergunto às árvores o que pensam da metafísica, elas erguem-se numa névoa álgida de sombras, nenhuma voz vegetal me esclarece, nem as pedras, o rumor de saibro sob o peso do mundo e os lagos e a relva e o rio ao dobrar as margens. Sobre o horizonte outonal, amanhã vai chover em filamentos rápidos numa paisagem de crateras sem metafísica. Digo por palavras o brilho que emerge dos teus olhos, a única verdade que há para lembrar desse dia de água - desse brilho.

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(COMENTÁRIO: Meu amigo, o que é a metafísica? Muito simples, uma obra escrita por Aristóteles depois da "Física". Nada mais há a dizer. Abraços. Carlos Frazão)

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Vigésimo Sétimo Dia

PRINCÍPIO.

Fim. Fim da linha. A estrada não continua. Nem que tivesse um bilhete para o infinito. Aqui termina. Pode ser um dia, pode ser que haja um dia mais longo. Viver. Viver as horas distribuídas de um outro modo. Passei por canais, numa alameda estavam as árvores que estarão no futuro. Alguém cantou com voz solene o vazio. Olho a beatitude de um rio, rio à névoa, quase, quase aquele lago é um espelho da noite. Escrevo. Escolho uma palavra publicitária e começo um poema. Digo para mim, para mim, o rosto fixo nos vidros, o autocarro vai para o seu fim. Quando sair, pense no que me disse, a manhã que havia em ti, o brilho te coroava as pálpebras, vamos ver os navios, haverá sempre navios à entrada da eternidade. Se penso a solidão, se de uma linha nasce a melancolia, ou deus ou o vento ou vendem-se refrigerantes, e mesmo se o tédio nos acompanha numa viagem até ao fim, tiro outro bilhete até ao fim da linha. As aves vão mais longe que o céu, em princípio.

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27ºDia

PRIMEIRO PRINCÍPIO.

Árvores fúlgidas no horizonte. Um outro dia. Aguardo que os instantes fendam o real. Ou um nome vertido sob a luz. Poisando as sílabas nos lábios. Talvez. Esse destino pálido em quem não acredita no destino. Escolho uma lâmpada que ilumine o mar. Fim da linha. Tivesse um bilhete para o infinito, ir pela noite entre sombras de vidro, entrara num labirinto com as pálpebras acesas. O autocarro não vai além da esquina, regressa ao princípio, onde pode-se ver e sentir a profusão de imagens. Talvez o mundo não exista se dobrarmos o muro verde da impaciência. Diria, a viagem era outra, informo-me no balcão do medo. Quando sair, pense no que me disse naquela manhã repetida ao vento, os teus ombros tocam os meus, indeléveis como as aves ígneas adornando o ar, haverá sempre aves à entrada do infinito. Se inicio o diálogo, se a solidão desliza pelas veias e mesmo se os anúncios prometem alegria em pastilhas, amanhã voltarei à varanda deslumbrada do real. Em princípio.

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27ºDia

SEGUNDO PRINCÍPIO.

Mais distante que o olhar. Leio "As Cidades Invisíveis". E quando desvio a atenção das páginas, a neblina ondula no ar roxo do fim do dia. Percorro de autocarro avenidas, também elas invisíveis. Não há nenhum destino escrito que me lembre, não sei para onde vou, interessa-me apenas ir. Viajo para fender os meus próprios limites. O que se vive do outro lado das janelas do veículo, enquanto o movimento dissipa qualquer essência do que existe? Devir, ser permanentemente outro, dobrar um muro com convicção e fragmentar a identidade. Por que a questão não é

o que sou, mas o que vou sendo. Caem as sombras como sombras breves. As personagens invisíveis escolhem e são escolhidas por um rumo ou rumor, sim, um rumor análogo ao vento que vai, como o vento, repito, infiltrando-se pelos poros do vácuo. Observo, observar as lâmpadas sobre o mundo, os jardins diluídos na distância, alguém que morre de solidão num arranha-céus, os centros comerciais onde se compra o quotidiano em doses de felicidade a prestações. Invisível, mesmo a vida no prumo longínquo do horizonte. Esta noite e a outra, na noite próxima aguardo e guardo os teus lábios, essa luz que te desliza pelos ombros e me encandeia, te disse, me disseste que disse. E muito mais para descrever no entretanto de uma viagem, uma viagem ao fundo de qualquer cidade invisível. Se. Voltamos a este corredor imenso, aos vidros silentes por onde passa o mundo. Em princípio.

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27ºDia

TERCEIRO PRINCÍPIO.

“Esta aurora em sombras líquidas”. E era noite.

Não sei se foi durante a noite ou um dia onde fui com a neblina nos ombros. Não sei quem encontrei, se nada disse ou se disse, se aquelas palavras eram tuas ou se foi o meu silêncio que amaste quando cruzámos os dedos. Não sei. Tinha escrito, “esta aurora em sombras líquidas”, mas quando? Na véspera dos teus lábios poisados sobre os meus? Admito, com a noite percorre-se o asfalto sem destino, com a noite os corpos ondulam na sua própria luz.

Fala-me, pela última vez, das cidades invisíveis.

Uma cidade plana, sem nome, impronunciável. Quadriculada. Nenhuma imagem dela ficou ou ficará. Por que será este espaço uma cidade, nele nada existe de real? Ou tudo é mais real e não sabemos. Uma possibilidade aberta. Chega-se a um terreiro, um deserto, um descampado, campo perdido no horizonte, paisagem sem limites, lugar ermo, enfim, pode-se chegar a qualquer hora a este sítio e nada haverá para ver, ouvir, tocar, nada há que se possa sentir. O que é uma cidade? Ligações subterrâneas e aéreas. Não existem. Edifícios e avenidas e praças e rotundas. Nada ali existe de semelhante. Nem o vácuo de uma cidade, porque em todo o lado há o vazio. Nem o silêncio, nada ali existe. Um som de fundo, o eco permanente sem significado, a toponímia indecifrável. Uma fenda no espaço. Um intervalo de silêncio. Por que em todo o lado existe o silêncio. Uma película branca, uma linha. Uma linha, onde estamos. Brecha na memória que não teremos. Instantes vividos que nunca vivemos. Experiência da morte, do amor, do esquecimento, vivência do riso e da dor, palavras da denúncia, um sentimento de infelicidade em dias felizes. A grande dor da alegria. A alegria que regressa quando vamos olhar o nada. A minha

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impaciência e a minha ironia. Não teremos saudades e nem sei o que se sente. Não sentir, imaginar não sentir, nem ver.

Fala-me, pela última vez, das cidades invisíveis.

Descrevo: este vale e uma noite e uma voz e um cão e a tristeza e a alegria. Alamedas, lojas, táxis, sirenes, janelas, jardins, rotundas, fotografias, depressão, amor, presente, melancolia, mercados, galerias, futuro, o tédio e o suicídio, as neuroses, tudo o mais embrulhado em papéis de angústia. E recordamos a alma das coisas quando, quando vamos, finalmente, viver para um destino, um fim-de-semana para um fim. Imaginamos. Continuo, olho a realidade possível. E. E voltaremos amanhã, preferimos entrar neste espaço de solidão no decorrer da noite, as luzes que vemos na longitude acesas. Imaginamos. Fazemos excursões à imensidão vazia para imaginar, programam-se roteiros, rigorosamente cumpridos, aos lugares inóspitos que se estendem pelos corredores do horizonte. Cada um visita a cidade invisível sem companhia, ninguém quer companhia, não há grupos, há seres terrivelmente sós e cantam e dialogam para si mesmos e encantam-se. A uma hora marcada convocam-nos para sentir. E rimos, o grande riso, o que verdadeiramente se sente. O riso é a anulação da divindade. Queremos sentir e ver. Apelo às emoções que me despertem, me despertem como se fosse a última vez. Dizemos: aqui viemos. Dizemos: estaremos aqui, também nós invisíveis. Escrevo: traçar um lugar, um lugar onde nunca se iria. Ninguém iria. Ninguém veria. Vou repetir-me – sobre mim, um halo de uma sombra inteira, o fluxo do ar soa numa música de folhas -, na imaginação surge um vale, um espaço imenso para sentires o que é impossível. E todos seremos invisíveis. E todos estaremos desde os primeiros sinais do poente para partir. Para sentir e ver, verdadeiramente.

Fala-me das cidades invisíveis, faz crescer nos olhos as aves da visão, torna a noite sublime, absoluta, interminável. Faz crescer no estuário da pele o rio profundo das sensações.

Reunidos a uma hora marcada, no grande vale onde nada existe. A solidão de cada um.

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Teremos para descrever o vácuo. A tua luz me ilumina até às veias, a boca me fulmina.

O vácuo, os corpos invisíveis, nada mais imenso para te descrever. Nada mais perfeito. Em princípio.

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Vigésimo Oitavo Dia

INCONSCIENTE.

Num parque do futuro, a inclinação do vento pelos campos, aquela água que foi o corpo banhado da aurora. E a emoção que descia sobre a boca líquida, em viagem à luz os olhos sublimavam a sombra das horas. Bebesse a harmonia angular do crepúsculo. Depois de tudo que era imenso, o silêncio veloz funda os dias. Ronda o mar exposto à vertigem das aves. Um traço de vidro reflecte a noite - errando pelas pálpebras. Esta noite, no inconsciente. Outra claridade. O silêncio num parque (de diversões) sob sombras expostas.

INCONSCIENTE

Pelo inconsciente – correm as personagens com os seus nomes num jardim. O parque não encerra o sonho, aberto à vida desde a aurora ao crepúsculo. A noite imensa é onde os olhos mais abertos falam talvez do mar e talvez das aves e dos lábios talvez, os lábios vêem que as sombras divertem-se num carrossel até ao infinito.

Como se fosse a grande sala e um muro, a grande sala e uma antecâmara, um muro.

E o desejo.

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Vigésimo Nono Dia

ETERNO RETORNO.

Pelas altas horas de um dia côncavo, a atmosfera, para falar do contexto onde gerir as arestas da noite, previ sentir, sentir quando se sonha a neblina do que vivemos – neblina como um brilho em colunas. Nenhum estado se repete nas áleas da memória porque não queremos. Ficar no limite, entre linhas de um compasso que desliza, o limite é deslizar para sempre – um deslize. Nenhuma contradição, desenhamos até ao infinito as múltiplas aberturas onde vamos – vamos hoje beber um café na esplanada das nuvens enquanto chove. Este mesmo espelho se prolonga por um vórtice espelhar. Comprar as notícias numa loja de promessas, guardar os ecos quotidianos para recordar um dia em frente ao dia. Ou, talvez ir sobre os lagos debitar a solidão ou o frio nos dentes. E. E os navios que não voltam distraídos do destino. O riso das aves

com um convite para o crepúsculo. Não cessa o tema ao fundo do sonho, soa na névoa a mesma frase cintilante. O que escrevo – os andares de um edifício sem alicerces. Coágulos de luz em avenidas que flutuam.

A herdade da memória, marcas cavando o cérebro. E. Ficar no limite, em linhas sobre um espelho côncavo que nos prolongue: a alegria na noite, a exalação indiferente. Um tema para que as palavras mentissem.

E quando a neblina é a neblina – ou a noite é a noite – desenho aquelas avenidas por onde corre, o quê? Por onde corre a vida em botões digitais: começar a viagem de regresso às arestas de outra viagem por outras áleas. Pelas altas horas.

A cidade está envolta num nevoeiro pálido, ao longe – tudo é um lugar profundo.

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Fim

Encostados ao fim. Uma sombra entra pela janela – como se fosse o ar que o pulmão respira. O verde mais distante deixa os olhos no silêncio mais cúmplice. E mais, a noite que volta até ao fim. Nunca perder o rumor dos lábios, a casa por onde se ouvem pássaros perdidos acima da luz. Esta solidão no arrasto das horas brilhantes. São os dias do meu silêncio, inscrevo agora na margem. Nunca perder o rumo das viagens. A cidade é um fundo na atmosfera, registo-a enquanto se prolonga a voz, uma palavra escrita regista os passos em volta. E todos os dias em direcção à soma dos dias, ao espaço de outra voz pela alba do quotidiano. Mas o essencial, se o essencial fosse descrever com exactidão a vida, era ficar no terraço desenhando com os teus dedos o mar. Uma impressão nas paredes da casa.

Isso é o fim, este lugar irrepetível no areal dos olhos factuais – abro de novo a janela aberta à ontologia do vento e entendo o que na memória fica do lume breve do real. Um corredor de lâmpadas nas estradas do crepúsculo e ninguém tão próximo como as árvores. O lado factual do teu ombro decaído num anel luminoso. Pelo dealbar da tarde, o regresso ao Verão longínquo que vinha da infância, ou o latido dos cães invisíveis em prados outonais. Ficávamos sentados em silêncio e todas as palavras eram errantes e talvez mais perfeitas do que vamos julgando que seja o mundo. Tão vastas como o mundo. Eu gostava das árvores, dos muros, os vidros azulados das janelas, aquela hora já breve da penumbra, da impaciência.

Entram as imagens pelos vidros de qualquer lugar. O sul da Irlanda, quando a noite era um aceno e Yeats falava dos pássaros brancos e dos cisnes que cantam em voo. E eu vejo as hélices no céu do mar arrastando o vento numa sombra móvel. Podia não falar da Irlanda, havia outros vales, a morte de Poe em Baltimore, a certeza do azul mediterrâneo de Alexandria, cenário das folhas soltas de Cavafy. À imaginação vêm as palavras explorar as sensações do

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corpo aberto na memória. O sul é esta página por onde se desce ao longo de um espelho, a interrogação à janela de um quarto quando o poente ou as palavras ou o silêncio, as cortinas abertas, os terraços na noite e a felicidade, os insectos, os cães, os dias, cidades invisíveis, o grito, a solidão das avenidas, jardins de domingo – quando? (Fim. Encostados às palavras, as palavras se repetem num léxico circular. O texto não termina. Tudo o mais são factos de uma ficção: sem fim)

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Índice

Primeiro Dia 9

Segundo Dia15

Terceiro Dia 23

Quarto Dia 29

Quinto Dia 33

Sexto Dia 35

Sétimo Dia 36

Oitavo Dia 38

Nono Dia 40

Décimo Dia 42

Décimo Primeiro Dia 44

Décimo Segundo Dia 46

Décimo Terceiro Dia 47

Décimo Quarto Dia 49

Décimo Quinto dia 50

Décimo Sexto Dia 53

Décimo Sétimo Dia 55

Décimo Oitavo Dia 56

Décimo Nono Dia 58

Vigésimo Dia 59

Vigésimo Primeiro Dia 60

Vigésimo Segundo Dia 61

Vigésimo Terceiro Dia 62

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Vigésimo Quarto Dia 63

Vigésimo Quinto Dia 65

Vigésimo Sexto Dia 66

Vigésimo Sétimo Dia 68

27º 69

27º 70

27º 71

Vigésimo Oitavo Dia 74

Vigésimo Nono Dia 75

Fim 76

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