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Page 1: PROCESSOS AMBIENTAIS ENVOLVIDOS NA ANÁLISE MORFOLÓGICA DAS CIDADES MUÇULMANAS TRADICIONAIS E SUA RELAÇÃO COM O AMBIENTE NATURAL ENTRE OS SÉCULOS VIII E XIII

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UNIVERSIDADE DE TAUBATÉPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS AMBIENTAIS

DISCIPLINA: ESTUDO E ANÁLISE DE PROCESSOS AMBIENTAISPROFESSORAS: DRA. HERMÍNIA Y. KANAMURA e DRA. SIMEY T. V. FISCHALUNA: HELOISA MARIA PAES DE SOUZA

PROCESSOS AMBIENTAIS ENVOLVIDOS NA ANÁLISE MORFOLÓGICA DAS CIDADES MUÇULMANAS TRADICIONAIS E SUA RELAÇÃO COM O AMBIENTE NATURAL ENTRE OS SÉCULOS VIII E XIII: UMA REVISÃO BIBLIOGÁFICA.

1. IntroduçãoO Islamismo é uma das três religiões monoteístas existentes no planeta. Sua origem remonta

ao século VII na Península Arábica, entretanto, os muçulmanos veem sua religião como uma restauração do monoteísmo original praticado por Abraão, tendo Deus escolhido Muhammad para ser o último mensageiro e profeta a ser enviado aos seres humanos.

Os muçulmanos não veem o Islã apenas como uma religião, mas como um modo de vida que integra todos os campos existentes, incluindo a questão ambiental. No Islã, a integração dos seres humanos com o meio ambiente é norteada pela doutrina de que os primeiros são “califas” de Deus na Terra, isto é, são vice regentes ou mordomos responsáveis pela administração do capital natural do planeta a fim de que possam ser utilizados pelas gerações futuras (AMERY, 2010). Percebe-se, portanto, que o conceito de sustentabilidade já estava contido na doutrina islâmica desde seus primórdios.

Nas últimas décadas, acompanhando os estudos sobre os efeitos da ação antrópica no ambiente natural, vem aumentando o número de ambientalistas muçulmanos que afirmam ter o Islã uma solução de paradigma para a questão ambiental, incluindo os problemas relativos à água (DIEN, 2010). Nos meios acadêmicos europeus e norte-americanos já se fala em uma eco-teologia, isto é, um discurso ambiental global que conecta temas ecológicos com a ética islâmica (ISLAM, s/d), cujos fundamentos repousam sobre o Alcorão e os registros dos ditos e feitos do Profeta Muhammad – a Suna.

No rastro do eco-Islã e também por conta dos gravíssimos problemas ambientais enfrentados nos países de maioria muçulmana, sobretudo no Oriente Médio e norte da África, estudiosos de diversas áreas do conhecimento tem voltado seus interesses para o passado da civilização islâmica numa tentativa de resgate de soluções éticas e técnicas para a sustentabilidade de um dos mais problemáticos ecossistemas existentes: os urbanos, pois a maior parte da população desses países vive em grandes cidades.

2. O Império Islâmico e o meio natural

Após a morte de Muhammad em 632, a religião islâmica e o Estado dela originado, propagaram-se, cobrindo territórios de diferentes povos e culturas. Tal processo de expansão abarcou extensa área, desde a Península Ibérica até partes da Índia e China, em um período compreendido entre os séculos VII e XIII, denominado pelos cientistas sociais de Época de Ouro do Islã (AQUINO, 1989).

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São muitas as razões que explicam a formação de império tão vasto em um curto espaço de tempo, pois a maior parte das terras conquistadas já havia sido integrada pouco mais de cem anos após a morte de Muhammad (figura 1). Entre as razões podemos citar que os árabes eram uma força organizada com habilidades e experiências militares, o fervor da convicção de que estavam espalhando a verdadeira religião de Deus, o fato dos Impérios Bizantino e Sassânida estarem enfraquecidos por causa de muitas guerras e de epidemias e o fato de, nas áreas dominadas, manterem a segurança, a paz e impostos razoáveis, permitindo que cristãos e judeus continuam-se praticando suas religiões e seus negócios (HOURANI, 2006).

Figura1:mapa da área de abrangência do Império Islâmico até o século VIII. Fonte:http://historia7.wordpress.com/2009/05/19/civilizacao-muculmana

Nos territórios conquistados e anexados ao Império Islâmico estão inseridos boa parte dos biomas com menor disponibilidade de água do planeta: os desertos do Saara e da Arábia, e o bioma mediterrâneo (extremo norte africano e sul da Europa).

O bioma desértico pode ser definido como uma área que perde mais água por meio da evapotranspiração do que ganha com a precipitação. Um lugar é considerado árido quando recebe menos de 500 milímetros de precipitação no ano e os desertos do Saara e arábico recebem menos de 250 milímetros por ano (SILVEIRA, 2003). Outro fator que contribui para a existência dos desertos é a irregularidade das chuvas e, devido à falta de umidade, há uma grande variação anual e diária da temperatura (amplitude térmica). De acordo com Miller (2008) os desertos citados são classificados como tropicais: têm pouquíssimas plantas (as existentes são do tipo xerófitas), animais com qualidades próprias de adaptação (sendo o camelo o mais utilizado pelos seres humanos) e uma superfície áspera, castigada pelo vento e coberta por areia e pedras, resultantes da erosão eólica.

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O bioma mediterrâneo representa uma área de transição e apresenta invernos amenos e chuvosos, já os verões têm clima temperado e bastante seco (SILVEIRA, 2003). A vegetação é esparsa e composta por arbustos e árvores com raízes longas e caules e troncos grossos adaptados à falta de água.

A adaptação dos seres humanos aos biomas áridos foi possível mediante a adoção de práticas que tinham como principais objetivos coibir a desidratação e o desequilíbrio térmico por conta da evaporação insensível, pois o clima é tão quente e seco que o suor evapora extremamente rápido, não dando chances de que se perceba a transpiração (MORAN, 1994). Os povos que vivem e viveram nesses biomas desenvolveram estratégias que vão desde o tipo de vestuário que minimiza a ação dos raios solares até a construção de cidades, cujas edificações retardavam a entrada de ar quente, seguindo certas técnicas que foram difundidas e aperfeiçoadas no Império Islâmico.

3. As cidades muçulmanas tradicionais entre os séculos VIII e XIII

Chamamos de cidades muçulmanas tradicionais àquelas adaptadas ou criadas pelos muçulmanos durante a chamada Época de Ouro do Islã. Como foi mostrado no item anterior elas foram construídas em biomas áridos de difícil adaptação. No que tange aos elementos arquitetônicos sintetizaram com criatividade as tradições de várias culturas, tais como a árabe, a bizantina, a persa, a indiana e a greco-romana (AQUINO, 1989).

Diversas são as origens dessas cidades: algumas já existiam e foram adaptadas à cultura da sociedade islâmica, como Alepo e Damasco na Síria. Algumas tiveram sua origem em acampamentos militares muçulmanos, tais como Basra e Kufa no Iraque e Fustat (Cairo) no Egito. Outras surgiram espontaneamente partir de feiras esporádicas e há aquelas foram obras de governantes, como Bagdá no Iraque.

As principais cidades muçulmanas foram e são, por motivos religiosos, Meca e Medina na península arábica. A primeira recebe milhões de fiéis todos os anos durante o hajj (peregrinação) e Medina, cidade que acolheu o Profeta durante a perseguição feita aos muçulmanos no início do Islã, contem lugares sagrados também visitados pelos peregrinos. Além delas, outras cidades do mundo muçulmano, ainda existentes nos dias atuais, são importantes centros religiosos, acadêmicos, turísticos, econômicos e/ou políticos: Cairo, Bagdá, Fez, Tanger, Marrakesh, Túnis, Córdoba, Sevilha, Granada, etc.

Depois da morte dos três primeiros califas do Império Islâmico houve o desaparecimento de uma estrutura unitária de governo e o surgimento de vários Estados islâmicos.Os elementos que deram continuidade ao mundo muçulmano foram a religião, a alta cultura e a economia praticada em um conjunto de cidades cujas características são muitíssimo semelhantes (ABIKO, 1995 apud GOITIA, 1992).

O assim chamado mundo muçulmano ligava duas bacias marítimas – a do mar Mediterrâneo e do oceano Índico, em um constante movimento de exércitos, mercadores, artesãos, estudiosos, peregrinos e também ideias, estilos e técnicas (HOURANI, 2006). As rotas que ligavam as cidades eram internas, cortando montanhas e desertos, e marítimas, especialmente no que tange o comércio internacional.

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4. As cidades muçulmanas tradicionais: o debate

A cidade muçulmana tradicional era o lugar de múltiplas atividades: os mercadores e artesãos trabalhavam, os sábios estudavam e ensinavam, os governos mantinham suas cortes e palácios, os juízes administravam a justiça, os aldeões e moradores do deserto vendiam seus produtos e compravam o que precisavam (geralmente bens manufaturados), etc. Portanto, a cidade precisava de uma estrutura adequada para tantas necessidades.

Mas, o que diferenciava a cidade muçulmana tradicional de outros modelos de cidades existentes na história? Em primeiro lugar cabe dizer que a definição do que ela é e o que a identifica mudou com o passar do tempo. Ao longo do século XX surgiram duas correntes de investigação sobre o tema que promoveram um polêmico debate sobre sua definição e legitimidade (ABU-LUGHOD, 1987). Tal debate atravessou o século passado, envolvendo estudiosos dos departamentos de línguas e estudos orientais de diversas universidades europeias e norte-americanas.

4.1. Correntes de pensamento

A primeira corrente de pensamento destaca o papel do Islã no processo urbanístico e sua influência na organização da cidade. Entre as múltiplas opiniões dos que advogam tal corrente, cabe destacar as seguintes ideias:

A base da estrutura das cidades muçulmanas é o islamismo. Ao redor da religião desenvolvem-se todos os acontecimentos da cidade.

A civilização muçulmana foi, antes de tudo, urbana. Desde o início da formação do Império Islâmico os conquistadores sentiram a necessidade de se instalarem em cidades, já existentes ou fundar outras (SHINAQ, 2001).

A segunda corrente nega o papel da religião islâmica na organização da cidade muçulmana. Entre as ideias dos autores que compõe este segundo grupo, cabe destacar as seguintes:

O Islã não previu qualquer organização urbana ou municipal como tiveram as cidades romanas ou as incipientes cidades cristãs a partir dos séculos XI e XII. As cidades muçulmanas, tanto no Oriente quanto no Ocidente, careciam de um estatuto jurídico e de edifícios administrativos, por conseguinte, não eram entidades políticas, posto que a lei religiosa nada dispôs acerca da regulamentação das construções, de seu embelezamento e características, assim como do traçado, da largura das ruas e dos seus edifícios.

A família, em todas as civilizações, tem um papel muito importante na organização espacial das cidades e seus tecidos urbanos, sobretudo nos bairros residenciais. Contudo, na cidade muçulmana tradicional, constitui o eixo principal da mesma, devido à sensibilidade com a qual o Islã trata a família, assim como ao conceito de privacidade e a separação dos gêneros e quais os domínios do homem e da mulher (SHINAQ, 2001).

De acordo com Abu-Lughod (1987) e Hoteit (1993) as correntes apresentam um sério problema: construíram um modelo geral de cidade muçulmana tradicional tendo como base um único exemplo (quando muito dois).

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Na década de 1970 Hourani e Stern passam a discutir como foi formada a cidade muçulmana tradicional e as características essenciais que as diferem das cidades europeias. Entretanto, os autores apenas consolidaram o arquétipo já instituído no passado (HOTEIT, 1993), especialmente no que concerne à constituição física das cidades.

4.2. A xaria e a normatização das cidades muçulmanas tradicionais

Os estudos recentes sobre as cidades muçulmanas tradicionais tem procurado entendê-las como resultado da presença marcante do islamismo no cotidiano da época, mais precisamente da presença da xaria, entendida como o código de leis do Islã, que não prevê separação entre religião e direito.

A xaria tem como objetivo regular todas as ações humanas em conformidade com os mandamentos estabelecidos no Alcorão e na Suna. Nos séculos imediatamente posteriores ao advento do Islã, costumava ser o único sistema jurídico que regulava a vida de muçulmanos e não muçulmanos nas áreas do Império Islâmico. É importante destacar que a xaria agiu como elemento chave na integração dos povos e culturas que fizeram parte do referido império e pouco variou naquele território tão vasto e multicultural.

A xaria, na visão islâmica, é uma espécie de catálogo indicativo de como satisfazer e servir a Deus, tanto nas obrigações de culto como nas relações com as criaturas por Ele criadas (LAMAND, 1994), compreendendo aqui tanto os bióticos quanto os abióticos.

Sendo não somente um conjunto de princípios legais como também morais, a xaria estabelece a seguinte divisão das ações humanas (DEEN,s/d): wajib (ações obrigatórias), manditib (virtudes devocionais e éticas), mubah (ações permissíveis), makrull (ações condenadas do ponto de vista moral, mas não no legal) e haram (ações proibidas).

Com o crescimento e a expansão territorial do Islã, a xaria foi se tornando mais sofisticada. Ao Alcorão e à Suna foram adicionados mais elementos: a ijma (consenso dos juristas eruditos), a qiyas (raciocínio por analogia), ijitihad (interpretação da lei segundo o contexto em que deve ser aplicada) urf wa adat (costumes e práticas locais, que não contradizem os princípios corânicos).

A partir do século VIII surgem as escolas do direito islâmico que, apesar de divergirem em questões metodológicas e em alguns pontos doutrinários, convergem nos princípios fundamentais da religião. As principais escolas sunitas (ramo do islamismo que congrega mais de 80% do conjunto dos muçulmanos), existentes até nossos dias, são a hanafita, a malikita, a hambalita (considerada a mais conservadora e que derivou no wahabismo, em vigor na Arábia Saudita) e a shafiíta (considerada a mais liberal) (LAMAND, 1994).

Apesar da existência de diferentes escolas de jurisprudência islâmica, entre elas há mais semelhanças que diferenças na normatização do ambiente construído. Vejamos os pontos convergentes:

Quanto às responsabilidades da autoridade governante da cidade: o governante deve estabelecer a primeira mesquita em um ponto central, depois o palácio do governo, a tesouraria, o mercado, as principais vias da cidade e, também, os muros defensivos com suas portas de acesso.

Quanto às responsabilidades dos chefes das famílias: eles devem organizar suas famílias em locais próximos uns dos outros e o projeto das casas.

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Quanto às responsabilidades do muhtasib: cabe a ele, como oficial responsável pela moral pública, também a regularização dos mercados, vias públicas, além das construções da população em geral.

Além dos pontos citados, que regulamentavam o macro, a nível micro (bairro e vizinhança) a lei previa o Qawa’id fiqhiyya, definida como uma regra geral estabelecida pelos juristas e que era aplicada aos particulares, também definida como uma regra abrangente, que se aplicava aos vários níveis de uma determinada situação ou problema (AL-HUSSAINI, 2005; HAKIM, 2010).

Os cinco princípios mais importantes do Qawa’id e que influenciaram no ambiente construído são:

La darar wala dirar: não prejudicar os outros e não sofrer prejuízo (princípio norteador de toda a lei).

Al-umur bi-maqasidiha: os assuntos são determinados pelas suas intenções. Al-yaqin la yazul bi-l-shakk: a segurança não é removida pela dúvida. Al-mashaqqa tajlib al-taysir: a dificuldade vem com o alívio (no sentido de socorro,

ajuda). Al-ada muhakkima: o costume tem o peso da lei (contanto que não contradiga os

princípios revelados no Alcorão e na Suna).

A lei também destaca cinco direitos do proprietário de um ambiente construído, que são: Liberdade para agir, contanto que não seja causado dano às propriedades adjacentes de

terceiros – a chamada ibaha – liberdade que é limitada pelo que é proibido (haram). Direito de precedência, isto é, o respeito às construções feitas anteriormente. Se uma

pessoa construir uma estrutura adjacente a uma já existente, deverá ter cuidado com a questão da privacidade de seu vizinho.

A pessoa que primeiro constrói tem o direito de controlar sobre as realizações do próximo construtor.

Um vizinho tem o direito ao abut, isto é, construir ao lado de uma parede já existente, contanto que não cause danos à parede vizinha ou à estrutura da construção. Já que as casas nas cidades muçulmanas foram construídas ao redor de um pátio, que provê luz e ar, tal direito facilitou o ajuntamento das construções.

O acesso a um edifício é feito através de um espaço chamado fina (ou harim), aproximadamente 1 a 1,5 metros de largura ao redor da parede exterior do edifício, sendo que o espaço também se estende verticalmente, contanto que não atrapalhe o tráfico de cargas, animais e pessoas (HAKIM, 2010).

Desta forma, se pode colher da revelação corânica e da Suna os princípios e critérios para a boa convivência entre os habitantes desse ecossistema urbano específico (cidades muçulmanas tradicionais) e sua sustentabilidade, entendida do ponto de vista islâmico como a realização simultânea e equilibrada do bem-estar do ser humano, da justiça social e do equilíbrio ecológico, tendo a máxima atribuída ao Profeta Muhammad “não deve haver nenhum dano ou imposição de danos”, o principal guia norteador (ABUMOGHLI, 1992).

5. As cidades muçulmanas tradicionais como um ecossistema urbano específico

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Os ecossistemas urbanos fazem parte do conjunto maior dos ecossistemas terrestres. Sua principal característica é a forte presença da atividade humana transformando o ambiente natural que, neste caso, não é perfeitamente adequado à vivência humana por causa da grande aridez. Além da xaria, um conjunto de técnicas, procedimentos e inventos foram postos em práticas pelos habitantes desse ecossistema, em particular para que pudessem alcançar um nível de conforto ambiental adequado às suas necessidades.

Existem diversos ecossistemas urbanos por causa de suas particularidades históricas, socioeconômicas e culturais, sendo que o diferencial que distingue as cidades muçulmanas tradicionais dos demais ecossistemas é a semelhança morfológica resultante da xaria.

6.Elementos morfológicos das cidades muçulmanas tradicionais

O estudo da morfologia urbana propõe a compreensão da formação, evolução e transformação do espaço urbano, seus elementos e suas relações, possibilitando a identificação de problemas e de como intervir da melhor maneira nas áreas já construídas e no desenho das novas.

O estudo morfológico das cidades ocupa-se da divisão do meio urbano em partes (elementos morfológicos) e da articulação destes entre si e com o conjunto que definem (LAMAS, 2004), isto é, os lugares que constituem o espaço urbano.

Os elementos morfológicos das cidades ocidentais são o solo, o lote, o traçado da rua, monumentos, edifícios, quarteirões, a calçada (passeio público), a praça e a vegetação, além do mobiliário urbano, que são todos os objetos e equipamentos colocados em espaço público ou disponibilizados para o domínio público e, em regra, são destinados ao bem estar e satisfação dos seres humanos: lixeiras, postes de iluminação e sinalização, hidrantes, bancos, abrigos, etc. As cidades muçulmanas tradicionais, por sua vez, apresentam alguns desses elementos ou os apresentam com características diferentes.

Elementos morfológicos como praças e calçadas (passeio público) são inexistentes nas cidades muçulmanas tradicionais. A principal função da praça, que é reunir possíveis assembleias de cidadãos, era proporcionada pelo grande espaço interior das principais mesquitas das cidades que, além da grande área para abrigar os fiéis nas orações coletivas das sextas-feiras, possuíam um pátio interno aberto, de tamanho considerável, geralmente revestido em mármore.

Quanto aos edifícios públicos que constituíam o núcleo central das cidades (medina), além das mesquitas, havia o mercado (suq) e os banhos públicos (hammam). Quanto aos edifícios de caráter privado havia palácios e casas, sendo que estas eram agrupadas em bairros, divididos por critérios étnicos, religiosos e ambientais, pois, neste último caso, certas atividades econômicas como o abate de animais, a curtição e pintura do couro, por serem agressivas ao ambiente (provocam poluição do ar e sonora), de acordo com a xaria, eram realizadas nos pontos mais distantes, próximos aos muros que circundavam e protegiam a cidade. O cemitério, também normatizado pela xaria, era construído fora dos muros e voltado para o leste, em direção à Meca.

Edifícios e ruas tinham uma forma compacta nas cidades muçulmanas tradicionais. Os objetivos principais eram criar grandes espaços de sombra e evitar que o ar quente e as tempestades de areia entrassem nos mesmos. Para que pudessem ter algum conforto em meio ao ambiente árido certas diretrizes foram estabelecidas (GOOD, s/d apud BELKACEM, 1982; EL-SHORBAGY, s/d):

Localização e orientação das estruturas para tirar partido do sol, vento e água.

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Utilização de materiais tradicionais para proporcionar isolamento térmico natural: terracota, tijolo, madeira e cal.

Espaços interiores das casas organizados para minimizar a troca de calor com o ambiente externo.

Pátios internos abertos onde eram plantadas árvores frutíferas e plantas ornamentais, além da instalação de fonte d’água com o objetivo de refrescar o ar quente nos verões e trazer certa umidade em todas as estações.

Casas de construção introvertida, pois o pátio é o elemento central da casa e os cômodos são dispostos ao seu redor.

Presença de torres (malqaf) nos telhados ou terraços das casas para a captação do vento (ar frio) e eliminação/expulsão do ar quente.

A vegetação, um dos elementos morfológicos principais das áreas urbanas, no caso em estudo, não era encontrada com tanta frequência nas ruas das cidades, mas no interior dos edifícios particulares.

As ruas são um caso a parte nas cidades muçulmanas tradicionais. Ao contrário de como é entendida no Ocidente, como um meio de passagem público, naquelas cidades, dependendo de onde estavam localizadas, poderiam adquirir um caráter semi privado, como uma espécie de extensão das casas, servindo como passagem apenas para os moradores daquele local. , como uma espécie de extensão das casas.

6.1. O waqf

Ao falarmos nos elementos morfológicos que constituíram as cidades muçulmanas tradicionais não podemos deixar de falar no waqf, uma instituição islâmica regulamentada pela xaria responsável pela maior parte do mobiliário urbano das cidades.

O waqf é uma doação voluntária, irrevogável e permanente que pode ser feita em dinheiro ou espécie, cujo destinatário é Deus e tem como objetivo trazer benefícios à humanidade. O waqf apresenta-se em duas formas: bens econômicos e ativos sócias. No primeiro caso pode ser a doação de algum negócio cuja renda será utilizada para o financiamento sustentável da comunidade (ou parte dela) e o desenvolvimento de projetos e programas sociais que, como no segundo caso, inclui a construção de mesquitas, madrassas (escolas), poços artesianos, instalações de água e saneamento, plantio de árvores, irrigação, etc.

7.A questão da água: captação e abastecimento

Como foi dito, os biomas de deserto e mediterrâneo apresentam escassez de água. Esta é encontrada em aquíferos subterrâneos, lençóis subterrâneos, cursos de água intermitentes, oásis (trechos dos lençóis subterrâneos que atingem a superfície) e em alguns rios perenes, como o Nilo, o Tigre e o Eufrates (SILVERIRA, 2003).

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Uma das soluções encontradas para a captação da água que seria utilizada nas cidades e no campo (irrigação) foi a construção de qanats, invenção persa apropriada pelos muçulmanos e divulgada por estes em toda a área do Império Islâmico. Mais tarde, depois da conquista espanhola sobre a América, o mesmo princípio foi aplicado nas colônias.

Os qanats, mistura de poço com aqueduto, são túneis horizontais de baixa declividade, escavados nas montanhas para captar a água infiltrada. Os túneis têm aberturas na superfície que variam entre 0,60 a 1,20 m e a abertura que vai da superfície ao túnel varia entre 1,20 a 2,10 m. Tais túneis são curtos, tendo em média de 5 quilômetros de extensão. Entretanto, há grandes qanats que se estendem por 40 e 50 quilômetros (VILLIERS, 2002; BERNABÉ, 2006). A baixa declividade serve para que a água possa fluir até seu destino somente pela gravidade. Como o sistema ocorre alguns metros abaixo da superfície, a água é protegida da evaporação provocada pelo sol.

8.Considerações finais

As cidades muçulmanas tradicionais eram economias pré-industriais de ciclos fechados, ou seja, eram tanto local de produção quanto de consumo, mas não eram sistemas fechados, pois recebiam a produção excedente da zona rural (alimentos e matérias-primas), camponeses em épocas de conflitos e, no caso dos grandes centros urbanos, importavam e exportavam produtos manufaturados (geralmente fabricados em pequenas unidades de produção) e alimentícios a partir de rotas que cruzavam o mundo islâmico e além (ABUMOGHLI, 1992; HOURANI, 2006).

A doutrina ambiental islâmica, juntamente com o tipo de economia praticada, contribuíram para o caráter sustentável dessas cidades, pois certas imposições estabelecidas pela xaria restringiram seu crescimento econômico.

9.Referências bibliográficas:

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