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Elisa Sell Cardozo PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NA COZINHA: DE QUANTAS CICATRIZES SE FAZ UM COZINHEIRO? Trabalho de Conclusão de Licenciatura do Curso de Ciências Sociais, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. Orientador: Prof. Amurabi Oliveira FLORIANÓPOLIS 2018

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  • Elisa Sell Cardozo

    PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NA COZINHA:

    DE QUANTAS CICATRIZES SE FAZ UM COZINHEIRO?

    Trabalho de Conclusão de Licenciatura

    do Curso de Ciências Sociais, do

    Centro de Filosofia e Ciências

    Humanas da Universidade Federal de

    Santa Catarina.

    Orientador: Prof. Amurabi Oliveira

    FLORIANÓPOLIS

    2018

  • Cardozo, Elisa Sell

    Processo de ensino e aprendizagem na cozinha : de

    quantas cicatrizes se faz um cozinheiro / Elisa Sell

    Cardozo ; orientador, Amurabi Oliveira, 2018.

    68 p.

    Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) -

    Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de

    Filosofia e Ciências Humanas, Graduação em Ciências

    Sociais, Florianópolis, 2018.

    Inclui referências.

    1. Ciências Sociais. 2. Sociologia da educação. 3.

    Sociologia das profissões. 4. Cozinha. 5. Gastronomia.

    I. Oliveira, Amurabi. II. Universidade Federal de Santa

    Catarina. Graduação em Ciências Sociais. III. Título.

    Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

  • Elisa Sell Cardozo

    PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NA COZINHA:

    DE QUANTAS CICATRIZES SE FAZ UM COZINHEIRO?

    Este Trabalho de Conclusão de Licenciatura foi julgado adequado

    para obtenção do Título de Licenciada em Ciências Sociais, e aprovado

    em sua forma final.

    Florianópolis, 11 de maio de 2018.

    ________________________

    Prof. Tiago Daher Padovezi Borges, Dr.

    Coordenador do Curso

    Banca Examinadora:

    ________________________

    Prof. Amurabi Oliveira, Dr. Orientador

    Universidade Federal de Santa Catarina

    ________________________

    Prof. Antônio Alberto Brunetta, Dr.

    Universidade Federal de Santa Catarina

    ________________________

    Débora Previatti, Msc.

  • AGRADECIMENTOS

    Um agradecimento sincero e emocionado a todas e todos que

    fizeram parte da minha trajetória na construção deste trabalho.

    Ao meu orientador Amurabi, que não desistiu de mim enquanto

    aluna mesmo quando eu achei que não fosse possível terminar este

    trabalho, que acolheu pacientemente todos os meus milhares de ideias

    diferentes para desenvolver esta pesquisa, e que foi presente e forneceu

    todo o apoio necessário de diversas formas.

    Ao meu companheiro Pedro, que além de noivo é colega na

    cozinha e nas Ciências Sociais, o que muito me ajudou através de nossos

    debates e leituras incansáveis das mesmas linhas.

    À minha vó Odília, por ter sempre sido minha inspiração

    feminina que me ensinou a amar a cozinha e a persistir nos meus

    objetivos, que tanto investiu de si na minha educação.

    À minha mãe Joyce, que foi fonte inesgotável de abraços e força,

    quando a exaustão da cozinha não me deixava ler nem sequer um artigo.

    Ao meu pai Cloves, por insistir na ideia de que é mais importante

    ser do que ter.

    À minha irmã Larissa, por achar que no fim eu sempre dou conta.

    Aos colegas de profissão entrevistados, que se dispuseram a

    embarcar nestes questionamentos aqui postos junto comigo, mesmo com

    seu cotidiano atribulado.

    A todas as cozinheiras e cozinheiros do mundo que tem um dos

    trabalhos mais desgastantes e menos reconhecidos, mas que apesar das

    cicatrizes que a cozinha deixa, se preocupam carinhosa e

    profissionalmente com todos os detalhes para poder proporcionar aos

    outros um momento único que significa muito, mas muito mais que uma

    refeição.

    Aos brilhantes chefs que tive que me fizeram aprender a

    desaprender e querer sempre mais.

    Aos poucos e inesquecíveis mestres e mestras que tive na

    graduação em Ciências Sociais na UFSC que me fizeram acreditar que

    este curso não ensina só teoria, nos ensina a ser no mundo.

  • RESUMO

    O presente artigo apoiou-se na revisão de teorias sobre sociologia das

    profissões e brevemente na sociologia da educação para fazer uma

    análise sobre as trajetórias de formação de cozinheiros dentro do campo

    gastronômico. Buscou-se uma análise dos dados obtidos através de

    entrevistas a cozinheiros profissionais e da pesquisa bibliográfica, que

    brevemente explanasse o cenário gastronômico e que evidenciasse as

    trajetórias formativas dos profissionais da área, tendo como objetivo,

    através de uma investigação teórico-empírica, analisar como se dão os

    processos de ensino e aprendizagem na profissão de cozinheiro e as

    trajetórias educacionais dos discentes, buscando evidenciar o que suas

    próprias narrativas contam sobre a realidade do campo de atuação.

    Palavras-chave: Sociologia da educação. Sociologia das profissões.

    Cozinha. Gastronomia. Campo. Habitus.

  • ABSTRACT

    This article is based on revision of theories on sociology of professions

    and briefly on sociology of education to make an analysis on the paths

    of cooks in training within the gastronomic field. It was pursued to make

    an analysis of data obtained by means of interviews with professional

    cooks and bibliographic research, that would briefly explain the

    gastronomic scenario that would show up the formation path of

    professionals in this area. It was set as main objective, through a

    theoretical empirical research, to find out how the teaching and learning

    processes take place as well as the educational paths followed by

    learners in the profession of cook, trying to highlight what their own

    narratives tell about reality in this field of action.

    Keywords: Sociology. Education. Cooking. Gastronomy. Bourdieu.

    Field. Habitus.

  • “Quem é que prepara a comida que você come, falando nisso?

    Que estranhas feras são essas que se escondem por trás das

    portas da cozinha? Você vê o

    chef: ele é o cara sem chapéu,

    com uma prancheta debaixo do

    braço, quem sabe com o nome bordado em azul-toscano no

    jaleco engomado, junto àqueles

    botões chineses de pano. Mas quem está de fato fazendo sua

    comida?”.

    Anthony Bourdain, Cozinha

    Confidencial.

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO ........................................................................ 15

    1 O REFERENCIAL TEÓRICO: PIERRE BOURDIEU E

    UMA REALIDADE DAS COZINHAS PROFISSIONAIS NO

    BRASIL ..................................................................................... 19

    1.1 CONCEITOS BOURDIESIANOS ............................................. 19

    1.2 APLICAÇÃO DOS CONCEITOS NO CAMPO

    GASTRONÔMICO .................................................................... 22

    2 SOCIOLOGIA DAS PROFISSÕES E A TRAJETÓRIA

    FORMATIVA DOS COZINHEIROS .................................... 31

    2.1 HISTÓRIA DA PROFISSÃO DE COZINHEIRO E SEUS

    DESAFIOS ................................................................................. 31

    2.2 EDUCAÇÃO PROFISSIONALIZANTE E TRAJETÓRIAS

    FORMATIVAS DOS COZINHEIROS ...................................... 40

    3 DO DESENHO DE PESQUISA: CONSIDERAÇÕES

    METODOLÓGICAS E PROCEDIMENTOS DE

    CONSTRUÇÃO E ANÁLISE DO CORPUS ......................... 47

    4 NOTAS SOBRE A PESQUISA DE CAMPO ........................ 51

    4.1 DIÁRIO DA OBSERVAÇÃO EM CAMPO ............................. 51

    4.1.1 Local 1 - café ............................................................................. 51

    4.1.2 Local 2- restaurante de alta gastronomia ............................... 52

    4.2 TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ................................... 53

    4.3 AVALIAÇÃO GERAL DAS ENTREVISTAS: ........................ 61

    5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................... 63

    REFERÊNCIAS ....................................................................... 67

  • 15

    INTRODUÇÃO

    Nos últimos trinta anos, o mercado da Gastronomia expandiu em

    tamanho e complexidade no contexto brasileiro, não só por haver uma

    necessidade crescente de consumo de refeições prontas ou pré-

    preparadas fora do ambiente domiciliar da maioria dos trabalhadores,

    como também por uma demanda de consumo de alimentos e bebidas

    estimulada pela presença de grandes redes de franquias de fast food em

    centros comerciais e demais espaços públicos desde os anos 80. Além

    disso, o serviço de catering também passou a ser mais procurado por empresas aéreas, indústrias e outros segmentos dos setores privado e

    público.

    Sendo assim, os conceitos operacionais dentro do campo

    gastronômico, que vinha se consolidando cada vez mais no contexto

    nacional, precisaram ser reformulados, e a demanda por profissionais do

    ramo cresceu bruscamente, principalmente cozinheiros e chefs de

    cozinha. Cada vez mais exigente, o mercado tem implementado sistemas

    de controle de qualidade e demandado mais conhecimento específico e

    competência por parte dos trabalhadores, os quais devem ser capazes de

    criar, desenvolver e controlar as atividades dentro da cozinha e fora

    dela, no que diz respeito aos seus processos logísticos como gestão de

    fornecedores etc.

    Somado a isso, o setor ganhou grande visibilidade devido à

    evidência dada ao profissional chef de cozinha na mídia, mesmo que de

    forma muito glamourizada. Profissionais antes “escondidos” na cozinha,

    passaram a aparecer em revistas, colunas sociais de jornais, best-sellers e programas de televisão como reality shows.

    Isso tudo fez com que a concorrência pelos postos de trabalho

    aumentasse, e que muitos indivíduos se interessassem pela área,

    passando a buscar por formação em instituições de ensino técnico e

    superior, e também motivou cozinheiros já atuantes a buscar

    especializações e ou uma qualificação “formal”, mais acadêmica.

    Assim, a educação profissional, que no Brasil teve início por

    volta do ano de 1840, após diversas mudanças paradigmáticas em sua

    trajetória, novamente teve de responder às mudanças industriais e

    inovações tecnológicas do mundo social, mais especificamente no campo gastronômico, assim como ao incremento da competitividade das

    empresas do setor, aumentando a importância e necessidade da transição

    “escola-trabalho”, do “aprender-fazer”, do ensino profissionalizante.

    Entretanto, como diz Pereira, “A técnica, na integralidade, reúne,

    além de aspectos observáveis de execução, muitas decisões e

  • 16

    julgamentos que o cozinheiro faz enquanto executa a preparação de uma

    refeição.” (PEREIRA et al, p. 32.). Logo, o processo de aprendizagem

    do profissional de cozinha é muito limitado, se meramente mecânico. Já

    ao aliar trabalho e educação em termos de rentabilidade e inteiração

    social, ele supera a dicotomia entre saber prático e teórico e é capaz de

    formar profissionais completos e mais bem preparados.

    Segundo Manfredi (2002) O saber fazer recobre dimensões práticas, técnicas

    e científicas, adquiridas formalmente (curso-

    treinamento) e-ou por meio da experiência

    profissional; o saber ser inclui traços de

    personalidade e caráter, que ditam os

    comportamentos nas relações sociais de trabalho,

    como capacidade de iniciativa, comunicação,

    disponibilidade para a inovação e a mudança,

    assimilação de novos valores de qualidade,

    produtividade e competitividade; e o saber agir é

    a possibilidade de intervenção ou decisão diante

    de um evento novo, do trabalho em equipe, da

    capacidade de resolver problemas e realizar

    trabalhos diferentes.

    Desta forma, o “saber da cozinha” não é apenas técnico e nem

    depende apenas de uma formação voltada ao desenvolvimento prático

    de processos. É preciso saber “ser cozinheiro”, ou seja, além de obter a

    qualificação técnica para a profissão, depende-se de uma série de fatores

    sociais e disposições sociais incorporadas nos indivíduos para que eles

    tenham uma determinada postura e forma de trabalhar, para que

    dominem determinados códigos e se comportem de uma forma mais ou

    menos específica para que consigam obter legitimidade dentro do campo

    gastronômico.

    Anthony Bourdain, deixa isso claro nesta coletânea de trechos

    seguintes retirados de seu livro “Cozinha Confidencial” (BOURDAIN,

    2016). Um cara que galgou todos os degraus da pirâmide,

    que conhece cada praça, cada receita, cada canto

    do restaurante e que aprende, acima de tudo, o seu

    sistema de trabalho com certeza é mais valioso e

    duradouro que um branquela mijão criado para

    acreditar que o mundo lhe deve o sustento e que

    acha que sabe das coisas. (BOURDAIN, 2016,

    p.89)

  • 17

    Ao fim e ao cabo, o que eu quero é continência e

    “Sim, senhor!”. Quando quiser uma opinião, eu

    mesmo dou. (Ibid., p.90).

    Estar devidamente aparelhado, ter treinamento e

    coordenação motora não basta. Um bom

    cozinheiro de linha também precisa manter a

    cabeça fresca, organizada e razoavelmente

    equilibrada durante os períodos frenéticos e

    estressantes (Ibid., p.94).

    A capacidade de “trabalhar bem com os outros” é

    uma necessidade (Ibid., p.95).

    Em outras palavras, para que os cozinheiros consigam estabelecer

    estratégias para obter uma posição privilegiada- favorável no campo da

    gastronomia, o que recorrentemente está aliado à visibilidade na mídia

    especializada e reconhecimento pelos pares da profissão, não basta que

    saibam cozinhar. É preciso que tenham incorporado o habitus de classe,

    conforme a teoria do sociólogo Pierre Bourdieu para terem legitimidade

    dentro do que seria, por definição do mesmo, um campo simbólico.

    Posto isso, pode-se dizer que o problema sociológico deste

    trabalho está locado no campo da Sociologia das Profissões, pensando

    como a profissão de cozinheiro surgiu e se transformou ao longo do

    tempo, assim como os desafios enfrentados pelos profissionais da área

    em busca da legitimação de sua carreira e seus direitos. Porém, a

    pesquisa embasa-se na perspectiva de análise do mundo social da teoria

    Bourdiesiana para tratar de identificar e entender como se dão as

    trajetórias formativas dos cozinheiros e o que suas narrativas refletem

    sobre o campo gastronômico.

    O objetivo nesta pesquisa é, através de uma análise histórica da

    profissão de cozinheiro, seus estigmas e desafios dentro do campo das

    profissões ao longo do tempo, desvendar como se dá a formação destes

    profissionais, em que ambientes e de acordo com que regras. Também

    trata-se de pensar em como essas trajetórias formativas podem afetar a

    carreira de diferentes tipos de cozinheiros e o que motiva a distinção

    entre eles em um mesmo campo.

    No primeiro capítulo, abordam-se os conceitos de Pierre

    Bourdieu de campo e habitus, aplicando-os a um possível cenário do

    campo gastronômico no Brasil.

  • 18

    No segundo capítulo, faz-se uma breve explanação sobre o

    referencial teórico da sociologia das profissões, já contextualizando com

    a profissão de cozinheiro e suas transformações ao longo da história.

    No terceiro capítulo, são feitas considerações metodológicas

    acerca dos procedimentos de construção e análise do corpus da investigação.

    No quarto capítulo, apresentam-se as entrevistas realizadas com

    os colaboradores da pesquisa e as notas sobre o trabalho em campo.

  • 19

    1 O REFERENCIAL TEÓRICO: PIERRE BOURDIEU E UMA REALIDADE DAS COZINHAS PROFISSIONAIS NO

    BRASIL

    1.1 CONCEITOS BOURDIESIANOS

    Enquanto para alguns autores as formas simbólicas guiam a ação

    humana, para Bourdieu o que existe é uma homologia entre formas

    simbólicas e estruturas sociais, negando a explicação estruturalista para

    as produções simbólicas como arte, religião, linguagem etc., a qual

    defende a supremacia da estrutura sobre a agência dos sujeitos. Desta

    forma, para o autor, não é o simbolismo que determina a agência, nem é

    a estrutura que automaticamente produz as formas simbólicas.

    Para Gabriel Peters, o esforço do autor traduz “A tentativa de

    superação da dicotomia objetivismo-subjetivismo [...]” (PETERS, 2013,

    p.1.) que, para ele, é o que está na raiz do quadro teórico-metodológico

    de análise da vida social de Bourdieu.

    A partir disto, o autor formula o conceito de campo, o qual constitui um espaço simbólico que possui determinada autonomia em

    relação às estruturas sociais que regem a ação dos indivíduos, mas que

    ao mesmo tempo é estruturado pela agência deles que, nas suas lutas,

    determinam, validam e legitimam representações.

    Para Peters (2013) [...] o sociólogo francês desenvolveu uma

    abordagem praxiológica cujo cerne é a relação

    dialética entre condutas individuais propelidas por

    disposições socialmente adquiridas e reunidas em

    um habitus, de um lado, e estruturas objetivas ou

    “campo” de relações entre agentes

    diferencialmente posicionados e empoderados, de

    outro. (PETERS, 2013, p.1.).

    Segundo Bourdieu, esta dupla determinação entre indivíduos e

    estrutura, da qual “resulta” o campo simbólico, demonstra que a classe

    não é apenas o lugar que os indivíduos ocupam no meio de produção

    capitalista, como postula a teoria Marxista, uma vez que o mesmo

    indivíduo pode ocupar uma posição "alta-boa" em um campo e uma

    posição "baixa-ruim" em outro.

    Para o autor, A noção de campo está aí para designar esse

    espaço relativamente autônomo, esse microcosmo

    dotado de suas leis próprias. Se, como o

  • 20

    macrocosmo, ele é submetido a leis sociais, essas

    não são as mesmas. Se jamais escapa às

    imposições do macrocosmo, ele dispõe, com

    relação a este, de uma autonomia parcial mais ou

    menos acentuada. (BOURDIEU, 2004, p.20).

    De acordo com Peters (2013), na visão de Bourdieu o espaço

    social existe sob duas esferas articuladas: objetivamente como “campo”

    e subjetivamente como habitus. O comentador explica os conceitos de tal forma:

    A noção de campo refere-se a espaços objetivos

    de relações entre agentes diferencialmente

    posicionados segundos uma distribuição desigual

    de recursos materiais e simbólicos, isto é, de

    capitais múltiplos que operam como meios

    socialmente eficientes de exercício do poder. O

    conceito de habitus aponta, por sua vez, para

    esquemas simbólicos subjetivamente

    internalizados de geração e organização da

    atividade prática dos agentes individuais,

    esquemas que tomam a forma de disposições

    mentais e corporais, isto é, modos potenciais

    socialmente adquiridos e tacitamente ativados de

    agir, pensar, sentir, perceber, interpretar,

    classificar e avaliar. (PETERS, 2013, p.2).

    Sendo assim, apesar de Bourdieu pensar de forma próxima a

    Marx (MARX; ENGELS, 2011) sobre a questão de em que medida a

    ação humana está condicionada ao lugar que se ocupa no meio de

    produção- mundo social, ele se distancia do autor clássico ao considerar

    que a categoria "classe" não existe apenas no nível objetivo e

    econômico, embora os campos simbólicos sejam permeados por

    disputas de classe e os indivíduos sejam marcados pelos seus habitus,

    que também são de classe.

    No entanto, enquanto estas disputas para Marx seriam pelos

    meios de produção, para Bourdieu elas seriam pela hegemonia no

    campo, pelo domínio das "regras do jogo", traduzido no que ele chama

    de senso prático (BOURDIEU, 2009). Isso gera a possibilidade de uma

    maior "flexibilidade" dentro do campo, já que uma pessoa além de pertencer a uma classe, também ocupa uma posição dentro desta

    estrutura que está condicionada a outras variáveis.

    Peters (2013) infere que a análise das condições sociais de

    produção das estruturas subjetivas de motivação e conhecimento que

  • 21

    orientam tacitamente a experiência que os agentes têm de seus mundos

    da vida leva à tese de que estas estruturas subjetivas variam

    sistematicamente conforme variam aquelas condições. Tal variabilidade,

    segundo sua interpretação da teoria bourdiesiana, seria resultante não

    apenas das diferenças entre contextos sócio-históricos diversos como

    também das diversas posições diferenciais ocupadas pelos indivíduos

    em um mesmo espaço social. Em outras palavras, Peters percebe que os

    “pontos de vista” sobre o mundo societário são sempre “vistas de um

    ponto” (PETERS, 2013, p. 51).

    Pierre Bourdieu se aproxima de outro grande clássico da

    sociologia, Max Weber, ao pensar que a questão de classe vai muito

    além apenas da dimensão objetiva na estratificação econômica, estando

    relacionada também com a dimensão do status e da autopercepção. Ou

    seja, apesar das normas sociais, os agentes também teriam o poder de

    mobilizar estas normas, a partir de sua agência. Assim, ter ou não os

    meios de produção, não seria uma categoria total, como dito

    anteriormente.

    No entanto, o que Bourdieu aponta como uma falha de Weber é o

    fato de que as dimensões objetiva e subjetiva, a das autorrepresentações,

    não se dão separadamente, como o mesmo sugeria, mas sim em relação

    uma com a outra. Para Bourdieu, o processo biográfico só é possível a

    partir do deslocamento nos campos simbólicos. Para ele, apesar de

    darmos um ordenamento lógico para a nossa trajetória, ela não é um

    conjunto de fatos organizados numa sequência.

    Desta forma, com as teorias de Marx e Weber de plano de fundo,

    pode-se concluir que Bourdieu procura pensar objetivamente, mas

    também a partir de condições subjetivas, embasado em uma relação

    dialética entre agência e estrutura, indivíduos e sociedade, objetivismo e

    subjetivismo.

    Para este autor, os agentes sociais são postos em múltiplos

    campos e em múltiplas posições dentro destes, podendo ter mais capital

    (não necessariamente financeiro, mas no sentido de “atributo” conforme

    sua teoria) em um determinado momento e menos em outros, mais ou

    menos poder, prestígio, reconhecimento etc., apesar da possibilidade de

    transformarem um tipo de influência dentro de um campo específico

    em outro tipo de capital nos demais campos.

  • 22

    1.2 APLICAÇÃO DOS CONCEITOS NO CAMPO GASTRONÔMICO

    Ao analisar o campo gastronômico com base no trabalho de

    campo e na pesquisa bibliográfica feita nesta pesquisa, um cozinheiro

    com alto nível de educação acadêmica, educação formal,

    especializações, pós-graduações etc. pode ter grande prestígio e

    reconhecimento dentro do campo acadêmico, como professor ou

    escritor, já que o mesmo possuirá um grande capital cultural na área.

    No entanto, o mesmo indivíduo dificilmente terá legitimidade e

    respeito em uma cozinha caso não domine as técnicas básicas dos

    processos de corte e cocção dos alimentos, o linguajar típico dos

    cozinheiros composto por gírias da profissão, caso não tenha a postura

    esperada de um cozinheiro de resistência e tenacidade, a forma de lidar

    com a pressão da cozinha, enfim, um habitus da profissão incorporado,

    que segundo Bourdieu se caracteriza como [...] um sistema de disposições duráveis e

    transponíveis que, integrando todas as

    experiências passadas, funciona a cada momento

    como uma matriz de percepções, de apreciações e

    de ações – e torna possível a realização de tarefas

    infinitamente diferenciadas, graças às

    transferências analógicas de esquemas [...]

    (ORTIZ, 1983, p. 65).

    É imperativo que o cozinheiro saiba se portar na cozinha de

    acordo com a hierarquia do trabalho nela imposta. É necessário que

    saiba reconhecer o seu lugar de acordo com o tempo que executa seu

    trabalho e a posição que ocupa na brigada, a legitimidade que possui no

    campo que reflete diretamente sua capacidade de internalizar as normas

    e modus operandi do mesmo, fazendo com que transpareçam na sua ação.

    E esse, a partir desta pesquisa, constata-se que é um dos fatores

    mais relevantes no processo de formação dos cozinheiros e que o faz ser

    um tanto quanto particular, uma vez que o habitus em si, esse conjunto

    de disposições sociais incorporadas nos indivíduos, que refletem nas

    suas ações e também se alteram através delas, é um fator de distinção

    dentre eles e que lhes confere ou não legitimidade no campo perante

    seus colegas.

    Em outras palavras, dentro de uma cozinha profissional, onde

    você estudou, para onde viajou, que idiomas fala ou que técnicas

    domina, são questões que apresentam um peso relativo, pois apesar de

  • 23

    poderem ser fatores de distinção, de diferenciação e classificação dentre

    os cozinheiros, não bastam por si só para a sua formação profissional.

    Porém, o que realmente atribui legitimidade e respeito a um cozinheiro é

    sua atitude, sua forma de lidar com a equipe e sua boa vontade de, não

    importa o que aconteça, baixar a cabeça e trabalhar, seguir as ordens da

    estrutura hierárquica acima dele.

    Em grande parte das cozinhas, devido às longas jornadas de

    trabalho, a pressão imposta pelo ritmo da “comandeira cuspindo fogo”,

    dos pedidos chegando do salão, dos gritos do chef para manter a equipe

    no mesmo ritmo harmonicamente, e de diversas outras tensões inerentes

    a este local de trabalho, existe o hábito de fazer piada de tudo. É

    necessário saber rir dos outros, com os outros e, principalmente, de si

    mesmo. Sem perder o foco na produção, em cada detalhe, mas é preciso

    rir para aguentar o ritmo. Logo, se um indivíduo não sabe lidar bem com

    esta realidade, por exemplo, não importa a especialização que possua no

    campo acadêmico, não terá o respeito dos colegas de brigada. É

    necessário incorporar o habitus do cozinheiro para ser aceito e

    reconhecido pelo grupo e, neste caso, saber lidar com a realidade

    profissional com humor, é uma demanda.

    No entanto, o que Bourdieu fala sobre a possibilidade de

    transformar capitais que podem ser flexibilizados em diversos campos,

    também pode ser facilmente observada no campo gastronômico.

    Exemplo disto são cozinheiros que por falarem outro idioma tem a

    possibilidade de trabalhar em cozinhas internacionais, que são muito

    prestigiadas e que podem fazer toda a diferença na trajetória formativa

    de um profissional de cozinha, por estarem em contato com mestres

    extremamente capacitados.

    Para Pierre Bourdieu existem vários tipos de capital. O capital

    pode ser social, cultural, econômico e simbólico. No caso do capital

    cultural, ele é o que se acumula na educação, de diversas formas, que

    podem ser livros, diplomas, conhecimentos apreendidos em geral.

    Neste caso, um capital cultural feito o fato de falar um segundo

    idioma, pode se transformar em um capital social dentro do campo

    gastronômico, já que faz com que a posição do indivíduo dentro do

    mesmo seja muito mais propícia para estabelecer conexões e contatos

    com outros profissionais e meios de trabalho. Isto posto, fica claro que a questão de classe para Pierre Bourdieu

    não existe apenas no nível objetivo, nem apenas no nível

    das autorrepresentações e, mesmo nestas, não obrigatoriamente

    os indivíduos têm uma consciência "de classe".

  • 24

    Segundo Bourdieu, só é possível pensar a classe social a partir

    das práticas sociais, das trajetórias individual e coletiva dos indivíduos,

    pois ela não é compreensível deslocada deste contexto: O campo, no seu conjunto, define-se como um

    sistema de desvio de níveis diferentes e nada, nem

    nas instituições ou nos agentes, nem nos atos ou

    nos discursos que eles produzem, têm sentido se

    não relacionalmente, por meio do jogo das

    oposições e das distinções. (BOURDIEU, 2003, p.

    179)

    Sendo assim ele fala em estruturas estruturantes, e estruturas

    estruturadas, as quais existem dentro de um contexto de dupla

    determinação, no qual há o processo de incorporação das estruturas

    sociais pelos indivíduos (o habitus de classe que faz com que um

    cozinheiro “aja” como tal), mas também de exteriorização da forma

    como elas se incorporam neles, que é diferente em cada caso específico

    (apesar de uma uniformidade “inerente” à profissão, cada cozinheiro

    tem seu estilo, forma de trabalhar).

    Em termos bourdiesianos, ao pensar no caso das obras de arte,

    podemos abranger a produção simbólica como uma “estrutura

    estruturada”, por isso existem muitos quadros, por exemplo, que

    repetem as temáticas ou estilos dentre distintos artistas e em diferentes

    lugares, os quais possivelmente nunca tiveram contato. Ao mesmo

    tempo, a produção simbólica, neste caso, também é estruturante, uma

    vez que a agência humana está explícita nela, ao notarmos que, embora

    as obras se pareçam, não são a mesma coisa, possuem a marca profunda

    de quem as criou.

    Da mesma forma, existem tendências no campo gastronômico,

    modismos e marcadores de tempo e espaço que se manifestam através

    de técnicas utilizadas, como a gastronomia molecular e o cozimento à

    vácuo, muito em voga nos últimos tempos, que criam a necessidade de

    domínio dessas técnicas nos cozinheiros para que sejam reconhecidos,

    mas ao mesmo tempo são criadas pelos próprios para se distinguirem

    dos demais ou se diferenciam na prática mediante a subjetividade dos

    indivíduos na internalização da tendência.

    Na leitura de Peters (2013), há na teoria de Bourdieu um esforço paralelo para, por um lado, se aproximar de perspectivas que

    caracterizam estruturas sociais objetivas não como padrões formais

    estáticos ou entidades ontológicas autônomas, mas em termos de sua

    constituição processual contínua, dos modos pelos quais elas são

  • 25

    historicamente reproduzidas ou transformadas pelas práticas de agentes

    hábeis e, por outro, também capturar as fontes sociogenéticas, ou seja,

    social e historicamente variáveis, destas habilidades cognitivas e

    agenciais.

    Quer dizer que, pensando no campo gastronômico, existem

    tendências estruturais que são historicamente contextualizáveis no

    campo da gastronomia que moldam a formação dos cozinheiros. No

    entanto, os cozinheiros, com sua agência em tal processo de dupla

    determinação, entre campo e indivíduos, através de suas práticas, de

    suas leituras pessoais e subjetivas de uma técnica e ou receita, por

    exemplo, também determinam as tendências do campo gastronômico.

    Assim, o campo determina a ação dos cozinheiros, de certa forma, mas

    em determinada medida também é determinado por eles.

    Claramente, não são todos os cozinheiros que possuem a

    legitimidade necessária para expressar sua subjetividade através de seu

    trabalho, isso é determinado pela estrutura hierárquica dentro do

    processo de formação dos mesmos, como será abordado no capítulo

    seguinte.

    Para Bourdieu, a própria estrutura do campo simbólico, está em

    constante mutação, já que é permeada pelos processos de disputa dentre

    os indivíduos, razão pela qual as determinações não são automáticas.

    Apesar disso, entende-se que o campo, apenas torna-se campo,

    quando tem regras específicas, quando se delimita. É interessante ainda,

    a ressalva feita pelo autor, que se refere às múltiplas possibilidades de

    categorias dentro de um campo, fazendo com que cada uma delas possa

    ter mais de uma função, a depender do nível em que se encontram. Por

    exemplo, a questão da propriedade privada, que dentre a classe

    dominante tem uma função de coesão, enquanto na classe dominada tem

    um efeito de desmobilização.

    Na cozinha, pode-se pensar no exemplo da trajetória formativa

    dos cozinheiros como uma categoria dentro do campo gastronômico que

    possui muitas possibilidades diferentes de ser estruturada e também

    diversos significados. Para a classe dominante, muitas vezes uma

    qualificação técnica em um curso superior não significa muito, caso não

    se tenha feito um estágio profissional no exterior com um chef de

    renome internacional e se tenha passado por diversas cozinhas, quanto mais premiadas, melhor. Já para a classe dominada, um diploma de

    nível técnico pode representar a primeira qualificação formal em um

    contexto familiar ou a possibilidade de ingresso mais promissora e

    rápida possível no mercado de trabalho.

  • 26

    Ou ainda, podem-se pensar os cursos de formação em

    Gastronomia no contexto geral da história da profissão de cozinheiro

    como uma forma “menos degradante”, mais elitizada da classe média

    adentrar ao campo gastronômico. Uma profissão que antes era vista

    como puramente braçal, suja, física, passou, com a intensa atividade da

    mídia no processo de glamourização do chef de cuisine, a ser algo

    almejável por esta classe, que passaria então a pagar mensalidades nos

    cursos de formação muito mais altas que os salários de cozinheiros já

    formados.

    Ainda acerca da discussão entre agência e estrutura, Pierre

    Bourdieu supera a dualidade competitiva dentre as perspectivas. Embora

    talvez a estrutura tenha um pouco mais de peso, ela não se determina em

    um vácuo à parte das individualidades, por isso o conceito de habitus é construído em relação ao conceito de campo.

    O conceito de habitus para Bourdieu está relacionado com a forma segundo a qual o mundo social se operacionaliza na prática. Ele

    representa a capacidade cognitiva dos indivíduos de internalização dos

    valores (ethos) de uma sociedade. Ele é o conjunto das disposições sociais-culturais duráveis e incorporadas, as quais fazem com que seja

    possível estabelecer uma relação inteligível entre determinadas práticas

    e uma situação cujo sentido é produzido pelo próprio habitus em função

    de categorias de percepção e de apreciação, produzidas por condições

    objetivamente observáveis.

    Ou seja, o habitus de classe é um princípio unificador e gerador

    de práticas. Não a toa, um cozinheiro reconhece outro de longe, o que

    não é uma característica específica desta profissão, já que a maioria

    delas tem seus jargões, suas posturas, formas de falar, de comer, de

    apreciar determinadas bebidas, tipos de música, de lugar etc. em

    detrimento de outras, o que é um recorte de classe também, por isso

    Bourdieu fala em habitus de classe. Neste caso, não apenas a classe de

    cozinheiros, como as classes sociais a ela correspondentes.

    O habitus nem sempre é consciente, e na maioria das vezes é tão

    naturalizado e automático que os sujeitos nem se percebem enquanto

    reprodutores de uma determinada prática. Segundo o autor, mesmo o

    que há de mais íntimo em nós, ainda é uma representação das estruturas,

    inclusive de um pertencimento de classe, embora em um sentido amplo do conceito, já que as pré-disposições incorporadas são habitus de

    classe.

    A imigração ou as revoluções, neste sentido, poderiam ser

    consideradas possibilidades de racionalização do habitus, já que ambos

    os processos implicam em rupturas muito fortes, fazendo com que os

  • 27

    indivíduos se obriguem a sair da zona de conforto ou do "piloto

    automático" e passem a racionalizar a sua ação e comportamento.

    O processo de contratação de um funcionário em uma cozinha

    profissional, por exemplo, se dá através dos testes. Não importa onde

    estudou ou com quem trabalhou, o cozinheiro geralmente passa por um

    teste para ser admitido, no qual existe uma prova de fogo, que se refere,

    na maioria das vezes, à execução de uma tarefa muito difícil ou ao fato

    de resistir a um serviço intensamente demandante. Por isso muitos dos

    testes são feitos logo nos dias e horários de maior movimento em um

    restaurante, para vez se o cozinheiro é capaz de acompanhar o ritmo da

    equipe sem perder o controle. Nestes casos, gera-se uma situação limite

    onde o cozinheiro por mais experiente que seja, geralmente racionaliza

    seu habitus a fim de se inserir na equipe e ser bem recepcionado, conquistando o respeito de todos e merecendo assumir o cargo.

    Apesar de cozinhas profissionais, assim como explica Bourdieu

    sobre os campos, possuírem regras e modos de operar bem delimitados,

    cada cozinha é diferente e possui o ritmo ditado pelo chef. A mesma

    receita de um molho, por exemplo, pode ser executada de diversas

    formas, e isso depende do estilo do chef. Sendo assim, no momento do

    teste, o cozinheiro deve esquecer todas as suas manias e formas de agir

    que estão internalizadas, que eram utilizadas no trabalho anterior, para

    observar como são feitas as coisas na cozinha em que está sendo testado

    e rapidamente se incorporar na equipe. Neste momento, o cozinheiro

    racionaliza o habitus, a sua ação e comportamento.

    Para Pierre Bourdieu, a partir de um habitus incorporado, da

    detenção de certos tipos e quantias de capital, da inserção em um

    determinado campo, geram-se práticas. Nesta equação social, a relação

    entre habitus e campo é tão forte, que quando existe uma disjunção entre estes dois elementos, gera-se um "stress". Por exemplo, quando um

    indivíduo pobre ganha uma fortuna em jogos de sorte. A sua posição no

    campo irá mudar consideravelmente, por conta do seu novo capital

    econômico, no entanto, o seu habitus de classe gera práticas que talvez

    não sejam condizentes com a sua nova situação social, e isso pode

    acarretar uma grande confusão e sensação de angustia.

    Pensando no campo da gastronomia, um exemplo disto são os

    programas de televisão que simulam cozinhas profissionais, como o Master Chef, no Brasil, onde indivíduos provenientes dos mais diversos

    meios sociais se tornam “iguais” dentro das provas e desafios

    promovidos pela direção do programa. Ali, em frente às câmeras, todos

    são cozinheiros. No entanto, nas estratégias de jogo dos participantes

    ficam evidentes as diferenças entre eles, sendo que para alguns tudo que

  • 28

    é dito e visto faz parte de um universo familiar, enquanto para outros

    representa uma ruptura total com o seu habitus, com as disposições sociais por eles incorporadas, com seu universo. Fica evidente a

    violência simbólica neste contexto.

    Da mesma forma, nos cursos de gastronomia, devido à

    pluralidade de seu corpo discente, como explicado anteriormente, alguns

    dos alunos após as aulas práticas tem a possibilidade de comprar os

    ingredientes para repassar todos os processos em casa. Caso tenha uma

    aula sobre lagosta na universidade, ou no curso técnico, compram várias

    lagostas para “testar”, praticar em casa. Já outros alunos,

    economicamente menos favorecidos, muitas vezes já trabalhadores

    ativos, sequer provaram um ingrediente nobre como a lagosta ao longo

    de sua vida, tendo o primeiro contato na aula, e não tendo a menor

    possibilidade de comprar para testar em casa. Isso influencia inclusive

    no seu desempenho, muitas vezes, pela falta de acesso aos materiais.

    Daí o “stress” sobre o qual fala Bourdieu quando ocorre o

    “descolamento” entre o habitus dos indivíduos e as disposições no

    campo.

    Quanto ao campo, para Bourdieu, ele é sempre relacional,

    existem tensões entre os campos e entre os agentes, que podem ser pessoas, instituições etc.. A disputa por uma visão legítima de mundo,

    por uma verdade, é constante. Desta forma, deve-se ter claro que o

    campo é produzido por pessoas e que a agência individual atualiza as

    normas do mesmo. Entretanto, quanto mais autônomo for o campo, mais

    poder para refratar as influências externas e para dispor sobre

    generalizações para os demais campos, ele tem.

    Neste caso, pode-se pensar nas tensões existentes entre o campo

    das indústrias e da Gastronomia. Existe um movimento que vem

    ganhando tremenda força, atualmente, que nasceu com as iniciativas do

    “Farm to table”, da fazenda para a mesa, de cozinheiros que buscam

    desmistificar a cadeia produtiva dos alimentos que utilizam em suas

    produções, fazendo com que a origem dos produtos seja um fator de

    distinção dentre eles e que os produtores rurais, principalmente, estejam

    em evidência, e não escondidos atrás de uma etiqueta comercial.

    Para os integrantes deste movimento, não há boa cozinha sem

    bons ingredientes e, por isso, os mesmos devem ser valorizados, assim como quem os produz, além é claro de garantir o direito do consumidor

    de saber de onde vem o que ele está comprando e ingerindo.

    Segundo Doria, Em sua maioria, os chefs de cozinha têm se

    curvado à linha de pesquisa que coloca no centro

  • 29

    os ingredientes. Não raro, fazem verdadeiras

    peregrinações Brasil afora à procura do que

    consideram uma novidade suficiente para

    galvanizar as atenções, seja pelo sabor, pelo

    aroma ou pela inserção social do ingrediente.

    Trazer à mesa o que os consumidores não

    conhecem parece ser a diretriz buscada e mais

    comum. Alguns elegem áreas mais distantes dos

    grandes centros urbanos como verdadeiros

    “campos de pesquisa” de onde extraem, anos a

    fio, os elementos necessários para a criação de

    novos pratos. Amazônia, Cerrado e Mata

    Atlântica figuram como biomas mais

    demandados. Outros cozinheiros aprofundam-se

    em espaços socioculturais como quilombos, áreas

    indígenas, comunidades caboclas, regiões de

    antiga colonização ou especialização produtiva,

    com o intento de revelar aspectos desconhecidos

    de nossa alimentação. (DÓRIA, 2014, p. 109)

    Logo, as produções artesanais têm ganhado grande valor,

    principalmente as feitas em pequenas escalas, por produtores que

    dominam técnicas passadas de geração em geração, com o mínimo uso

    de químicos possível e prezando ao máximo pela qualidade e

    concentração de sabor, o que tornam os produtos exclusivos e delimitam

    o público que terá acesso a eles.

    Esta busca pelo consumo de produções sustentáveis, não apenas

    econômica, mas também socialmente, geralmente vai em direção oposta

    aos interesses da indústria, que perde um mercado consumidor que, ao

    se tornar mais consciente, crítico e exigente, deixa de consumir muitos

    alimentos processados e ultra processados e passa a se voltar aos modos

    de consumo em menor escala mais alternativos como pequenas feiras de

    bairros e produtos de procedência certificada.

    Sendo assim, o campo industrial é afetado pelas iniciativas

    geradas dentro do campo gastronômico, o que gera tensões e disputas

    por legitimidade, fazendo com que muitas vezes os interesses de

    determinados setores da sociedade usem de sua força e poder para

    executar manobras políticas que aplaquem a força de movimentos que

    estejam em outra direção.

    Exemplo disto são os estudos encomendados pela indústria para

    comprovar os malefícios e riscos causados por alguns alimentos que não

    fazem parte da sua produção, tratando de direcionar o mercado

  • 30

    consumidor motivado por preocupações com a saúde. Ou ainda

    iniciativas que surgem no intuito de proibir determinados tipos de

    produção artesanal, como o de queijos de leite cru no Brasil, por não

    atender às normas sanitárias, mas que na verdade só acabam por destruir

    tradições de produções de alimento locais e artesanais e dar mais força

    para o monopólio da indústria alimentar que produz com cada vez

    menos qualidade e responsabilidade.

    No entanto, é também notável que à medida em que o campo

    gastronômico e seus agentes, principalmente chefs de cozinha famosos,

    ganham mais visibilidade através das mídias em geral e seus discursos

    ganham mais espaço, o campo se torna mais forte em suas lutas e

    refratário às mudanças.

    Exemplo disto são leis referentes à produção ou manipulação de

    alguns gêneros alimentícios que são alteradas após grande mobilização

    civil em torno de uma questão levantada por alguém influente no campo

    gastronômico. Concluindo, para Bourdieu o duplo processo de condicionamento

    entre campo e habitus, o qual funciona como o modus operandi (um organizador de práticas e da forma que elas se elaboram na realidade

    social), reafirma que a estrutura se altera e as condições do sujeito e suas

    vontades também, pontuando a influência de uma dimensão sobre a

    outra, ou seja, a existência da correlação entre as esperanças subjetivas

    do sujeito e as probabilidades objetivas do mundo social.

    Sendo assim, segundo o autor, o deslocamento no campo

    influencia nas práticas, uma vez que a quantidade de capital cultural, por

    exemplo, pode variar, fazendo com que indivíduos que pertencem a

    mesma classe e com o mesmo capital econômico, como pais e filhos da

    mesma família, possuam práticas sociais bastante diferentes, caso os

    filhos possuam um maior grau de escolaridade.

    Dentro das cozinhas, normalmente, existe a possibilidade de

    ascensão profissional. Sendo assim, mesmo que um lavador de pratos

    supostamente vindo de uma origem mais humilde e com menos recursos

    financeiros esteja ganhando um bom salário em uma posição de

    primeiro cozinheiro ou chef de partida, talvez ele não seja tão

    reconhecido no meio gastronômico por não possuir muitos contatos

    importantes que lhe possibilitem a visibilidade e fama no campo, por sua prática social estar vinculada a um meio mais simples, mesmo que

    em termos de classe social ele tenha ascendido. Assim, fica claro que o

    habitus não apenas incorpora, mas também gera novas práticas.

  • 31

    2 SOCIOLOGIA DAS PROFISSÕES E A TRAJETÓRIA FORMATIVA DOS COZINHEIROS

    Inicio este capítulo justificando o significativo número de

    citações nele, e no que o segue, do trabalho elaborado por Clarissa

    Galvão Cavalcanti Borba, da Universidade Federal de Pernambuco,

    chamado “Dos Ofícios da Alimentação à moderna Cozinha Profissional:

    reflexões sobre a ocupação de chef de cozinha”, publicado em 2015

    como sua tese de doutorado, a qual foi orientada pela professora doutora

    Silke Weber.

    Por conta da realidade da gastronomia contemporânea se tratar de

    um objeto de estudo ainda um tanto quanto novo para a sociologia,

    apesar das produções de Norbert Elias, Georg Simmel e tantos outros

    sobre o ato de comer e tudo que o envolve, a partir da minha extensa

    pesquisa ao decidir o objeto aqui analisado, constatei que a tese de

    Clarissa é a compilação de dados históricos e teóricos mais completa no

    tocante a Gastronomia no cenário nacional e internacional disponível no

    momento.

    Sendo assim, esclareço que o seu trabalho foi minha principal

    referência nestes dois capítulos que seguem e que, se faço várias

    citações dele, é porque não poderia escrever de melhor forma em

    minhas palavras.

    Desta maneira, neste capítulo apresentam-se as teorias e

    conceitos utilizados na investigação que resultou no presente trabalho,

    as quais optei por correlacionar com o objeto de pesquisa por questões

    metodológicas facilitadoras. Assim, à medida em que explico os

    conceitos, explico também como se relacionam com o objeto e porque

    se justificam na análise.

    Aqui, trato de fazer uma breve contextualização histórica sobre as

    origens e o desenvolvimento da cozinha profissional, enfatizando as

    mudanças ocorridas neste espaço que resultaram nas diferentes

    trajetórias formativas dos cozinheiros.

    O termo cozinheiro é utilizado para facilitar a escrita, mas se

    refere a todas e todos os trabalhadores da cozinha, do lavador de pratos

    ao chef, de ambos os sexos.

    2.1 HISTÓRIA DA PROFISSÃO DE COZINHEIRO E SEUS

    DESAFIOS

    Como dito anteriormente, as mudanças sofridas pelo cenário

    gastronômico nos últimos anos tiveram, dentre as consequências de

  • 32

    expansão do setor, uma relação direta com o aumento da procura e, por

    conseguinte, da oferta de cursos especializados na área da culinária.

    Mas para entender como os processos de formação de cozinheiros

    sofreram mudanças ao longo da história, é importante entender como

    surgiu a profissão e em que contexto, assim como é relevante esclarecer

    a definição de gastronomia, dentre tantas existentes, que é utilizada

    como referência nesta análise. Neste caso, como define Borba (2015)

    sua dimensão estética e sensorial sempre esteve intrinsicamente

    relacionada com o desenvolvimento de uma cozinha de elite europeia,

    principalmente francesa, que sofreu grandes transformações com o

    advento da modernidade: “[...] a idéia de gastronomia como arte e

    ciência da boa mesa e do bem comer. Esse é um reino bem distinto

    daquele da alimentação como uma necessidade que visa nutrir o corpo.”

    (BORBA, 2015, p.60)

    Antes do desenvolvimento da urbanização e do florescimento da

    esfera pública nas cidades, a alta cozinha estava restrita ao espaço

    privado das cozinhas da corte e de burgueses abastados, o que fazia com

    que a arte culinária tanto na Antiguidade como na Idade Média fosse

    restrita aos grandes banquetes das elites que, já nesta época, contavam

    com cozinheiros populares e famosos, que se tornavam celebridades na

    alta sociedade.

    A partir do século X, com o desenvolvimento das cidades e o

    fortalecimento das relações de trocas na Europa, a organização de

    atividades comerciais foi possibilitada por meio das guildas ou

    corporações de ofício, as quais regulamentavam através de estatutos

    rígidos não apenas as profissões no tocante às suas atribuições e funções

    a serem desenvolvidas, mas também aos processos formativos que

    levariam um indivíduo a obter o direito de exercer ofício. Estas

    corporações [...] buscavam benefícios provenientes do

    estabelecimento de monopólios tais como a

    regulação do exercício do trabalho, o controle

    sobre o ingresso no ofício, a formação, o preço, a

    quantidade e qualidade do produto, entre outros

    (TRUBEK, 2000 apud BORBA, 2015, p. 62).

    As corporações de ofício eram compostas pelos mestres,

    jornaleiros e aprendizes, sendo que os primeiros detinham o controle do

    conhecimento e dos processos produtivos, juntamente ao direito de

    vender tudo que na sua oficina fosse produzido. Além disso, os mestres

  • 33

    recebiam dinheiro das famílias dos aprendizes para ensinar o ofício, o

    que levava em média o tempo de sete anos.

    Sendo assim, os aprendizes eram treinados na prática, através da

    observação e reprodução dos movimentos dos mestres, até a exaustão.

    Porém, como salienta Borba (2015), as etapas de aprendizado na

    carreira do ofício eram marcadas pela hierarquia entre as posições

    ocupadas no processo de produção, fazendo com que para passar do

    posto de aprendiz ao de jornaleiro, por exemplo, o indivíduo deveria

    provar que não apenas era capaz de reproduzir o trabalho do mestre com

    exatidão, como também tinha a capacidade de realizar tarefas de

    gerência e liderança (SENNETT, 2009, p. 72 apud BORBA, 2015,

    p.62).

    Na França, berço da alta gastronomia, os trabalhadores

    relacionados aos ofícios da alimentação poderiam estar ligados às

    guildas ou à corte. No primeiro caso, eles deviam seguir estritamente as

    disposições que rezavam os estatutos das corporações de ofício,

    enquanto no segundo caso possuíam mais liberdade pois organizavam-

    se a partir de uma hierarquia relativa a empregados domésticos e eram

    regulados por estatutos próprios, já que não atuavam na esfera pública.

    Sendo assim, existiam várias classificações e hierarquizações

    dentre os profissionais da gastronomia, o que não apenas segmentava

    este campo de ofícios, mas também gerava disputas entre os

    profissionais que queriam exercer, na maioria das vezes, mais funções

    do que as que lhe eram permitidas. A maior parte dos conflitos era

    causada pelo desejo de flexibilizar os monopólios que cada uma das

    guildas possuía.

    Entre os séculos XIV e XV, a variedade de ofícios da alimentação

    aumentou devido à ramificação e especializações de ofícios já

    existentes, como, por exemplo, a profissão de padeiro que se desdobrou

    em fabricantes de canudos (um tipo de doce) e posteriormente em

    confeiteiros.

    Em resumo, a esfera pública do ofício de cozinheiro dizia

    respeito ao preparo dos alimentos “comuns” do cotidiano, à produção

    varejista de alimentos, enquanto a esfera privada era estritamente a

    cozinha das elites, onde se encontrava a dimensão gastronômica da

    culinária, em palácios e mansões. A grande mudança na profissão de cozinheiro se deu, para alguns

    autores, a partir da Revolução Francesa, após a qual os célebres

    cozinheiros da nobreza ficaram desempregados e tiveram que achar

    outros meios de se manter, como por exemplo cozinhar nos restaurantes

  • 34

    que então começavam a surgir, alterando o paradigma da relação entre a

    esfera pública e privada na gastronomia.

    Mesmo que muitos destes cozinheiros continuassem trabalhando

    para aristocratas e burgueses em suas mansões, o surgimento do

    restaurante revolucionou, principalmente a partir da segunda metade do

    século XIX o comércio alimentar e a profissão de cozinheiro no

    contexto de efervescência econômica, social e cultural vivenciada em

    Paris já desde a segunda metade do século XVIII.

    No universo das elites “[...] aconteciam discussões sobre

    medicina e dietética, culinária e arte, culto ao luxo ou a frugalidade [...]”

    (BORBA, 2015, p. 67) e esse discurso “semi-medicinal” acerca da

    alimentação aliada com a saúde foi o principal fator que deu início a um

    processo de distinção entre restaurantes e os estabelecimentos tipo

    estalagens, que já existiam e serviam bebidas e refeições aos comensais.

    Criou-se, portanto, um discurso sobre os poderes “restaurativos”

    dos caldos servidos nos novos restaurantes, que compunham uma

    refeição leve e balanceada, a qual exerceria a função de restaurar o

    corpo e espírito de um viajante que precisasse repor seus ânimos após

    uma longa jornada, integrantes das elites locais e estrangeiras. “Nesta

    chave, a dieta relacionava-se não só à saúde física, mas também às

    dimensões emocional e intelectual dos indivíduos.” (BORBA, 2015, p.

    68). O restaurante, então, compunha por definição um meio de cuidar da

    saúde, mas também de acessar a sensibilidade e o “bom gosto”, “Em um

    só espaço combinavam-se os diversos interesses das elites, tais como a

    busca por bem estar e o culto à boa mesa.” (Ibid, p. 68).

    Borba acrescenta que a ligação entre Revolução Francesa, criação

    dos restaurantes e a criação da cozinha profissional na esfera pública

    não é simples resultado de uma relação de causa e efeito, mas sim o

    fruto de um processo complexo de articulação entre fatores materiais e

    simbólicos que se mostrou mais consolidado a partir da segunda metade

    do século XIX, apesar de ter sido tecido de modo não linear ao longo do

    tempo. (Ibid., p.71).

    Faço uma pausa na análise histórica para chamar à atenção o

    caráter multifacetado da sociologia, que é fascinante, por fazer com que

    seja possível entender a complexidade do meio social e como estruturas

    simbólicas e objetivas se entrelaçam e quase confundem por vezes. Neste caso, apesar da presente pesquisa estar inserida na análise da

    sociologia das profissões, é impossível negar tantas outras questões que

    atravessam o objeto de pesquisa, como, por exemplo, as questões de

    gênero.

  • 35

    Com a profissionalização do trabalho de cozinheiro na nova

    conjuntura material e simbólica da França do século XIX os cozinheiros

    e chefs homens abandonaram o papel de empregados domésticos e

    passaram a ocupar a esfera pública, agora mais reconhecida e digna de

    prestígio. Sendo assim, o trabalho nas cozinhas da burguesia passou a

    ser desempenhado por mulheres cozinheiras. Assim, enquanto as

    mulheres se ocupavam da alimentação das famílias burguesas, tarefa já

    menosprezada e pouco honrada, os homens se encarregavam, na esfera

    pública, de dotar a refeição de significados simbólicos e estéticos,

    tornando-a uma mercadoria. (TRUBEK, 2000 apud BORBA, 2015).

    Segundo Borba, “A transformação da alimentação e da

    gastronomia em mercadorias e a consolidação do capitalismo na

    sociedade moderna implicaram mecanismos de divisão do trabalho e do

    mercado para todas as ocupações.” (BORBA, 2015). Fruto disso foi o

    fato de que os chefs que antes gozavam de prestígio na alta gastronomia,

    ficaram deslocados na hierarquia social dentre os status de artesãos,

    operários ou profissionais. Isso gerou, por sua vez, uma necessidade de

    busca pela manutenção do seu ofício na sociedade capitalista.

    Daí então o surgimento de estratégias de profissionalização do

    trabalho na cozinha, que têm seu modelo mais bem acabado na obra de

    Auguste Escoffier (1846-1935), o qual, além de implementar

    codificações de receitas base, sistematizou a divisão do trabalho

    organizando-o e classificando-o através de um modelo hierárquico as

    praças, o que é remanescente até os dias de hoje.

    Neste processo, Escoffier tratou de separar e distinguir as funções

    de cozinheiro e chef de cozinha, além de sucumbir a um esforço imenso

    de comparar e equiparar essas ocupações com outras profissões liberais,

    formando associações, escolas, criando competições e buscando apoio

    estatal. De fato, o desejo era conquistar uma legitimidade dentro do

    campo gastronômico e, sobretudo, das profissões no meio social.

    Este processo de “institucionalização” da gastronomia perdura até

    os dias de hoje, basta dizer que a profissão de chef de cozinha no Brasil

    ainda não é regulamentada pelas leis trabalhistas. Ou seja, as ocupações

    de chef e cozinheiro figuram na Classificação Brasileira de Ocupações

    (CDO), porém não aparecem na lista de profissões reconhecidas pelo

    Ministério do Trabalho. É interessante ressaltar, ainda, que na tentativa de uma

    proposição de um projeto de lei sobre o assunto, (PL 2079-2011), feito

    em Alagoas em 2011, o que se tratava de legitimar era a profissão de

    “gastrólogo” e a criação de conselhos regionais e federal de

    Gastronomia, mas não as profissões já existentes de chef ou cozinheiro.

  • 36

    Além disso, no cerne desta atribuição do título de “gastrólogo” estaria a

    caracterização desta função como um saber abstrato, intelectual e

    especializado. Logo, o mesmo só poderia ser concedido aos indivíduos

    com nível superior.

    Mas para resumir, o fato é que nem gastrônomos nem

    gastrólogos, chefs ou cozinheiros tem seu lugar específico garantido no

    mercado de trabalho.

    Sendo assim, é importante pensar nos fatores que implicam nessa

    dificuldade de reconhecimento da função. E aí, mais uma vez, surge o

    fator de gênero transversalmente, quando se pensa que só o fato de

    mulheres desempenharem a função de cozinheiras foi um elemento que

    historicamente impediu que a profissão fosse legitimada a fim de

    justificar um monopólio, separando o trabalho doméstico do público,

    profissional. Grotescamente, é como pensar que se “até” as mulheres

    cozinham, não pode ser uma atividade tão exigente e rigorosa a se

    desempenhar, digna de visibilidade e regulamentação.

    Para Dória Escoffier estava ocupado em definir um ofício do

    qual as mulheres não participariam e, por isso, ele

    deveria definir também o “lugar” delas na

    sociedade, reforçando a ideia de que à mulher

    estava reservada a família, não a indústria

    hoteleira. Em síntese, não era por

    tradicionalmente “saber cozinhar” que ela deveria

    alçar novos voos. Sua ocupação deveria ser a

    “nutrição” dos homens (DÓRIA, Carlos Alberto,

    2014, p.211).

    Este discurso de Escoffier fica bastante claro no trecho a seguir,

    que elimina qualquer dúvida sobre suas intenções de hierarquização do

    trabalho culinário, o qual fez parte de um discurso seu e está presente no

    Annual Repport od the Universal Food and Cookery Association, publicado em 1895, com o título “Why Man Make The Best Cooks” (Por

    que os homens são os melhores cozinheiros) (ESCOFFIER, 1895 apud

    DÓRIA, 2014): Cozinhar é, indubitavelmente, uma arte superior, e

    um chef competente é tão artista em seu ramo de

    trabalho quanto um pintor ou escultor. Há tantas

    diferenças entre bons e maus cozinheiros quantas

    há entre uma sinfonia executada por um grande

    mestre instrumentista e uma melodia tocada num

    realejo [...] Nas tarefas domésticas é muito difícil

  • 37

    encontrar um homem se igualando ou excedendo

    uma mulher: mas cozinhar transcende um mero

    afazer doméstico, trata-se, como eu disse antes, de

    uma arte superior. A razão pela qual na culinária

    os louros são “apenas masculinos” não é difícil de

    encontrar. Não é porque o homem seja mais

    epicurtista do que a mulher [...]. O que acontece é

    que o homem é mais rigoroso no seu trabalho, e o

    rigor está na raiz de tudo o que é bom, como em

    tudo o mais. Um homem é mais atento sobre os

    vários detalhes que são necessários para produzir

    um prato verdadeiramente perfeito... Para ele,

    nenhum detalhe é mais importante do que outro.

    Uma mulher, por outro lado, irá trabalhar com o

    que tem à mão. Isso é muito agradável e generoso

    de sua parte, sem dúvida, mas eventualmente

    estraga a sua comida, e o prato não será um

    sucesso.

    Outro obstáculo para o projeto de profissionalização da ocupação

    de cozinheiro foi o que Trubek (2000 apud BORBA, 2015), com base

    no debate teórico da sociologia das profissões, chamou de

    incompatibilidade entre a natureza do seu conhecimento juntamente às

    suas práticas de trabalho e o paradigma profissional ao longo do tempo,

    que esteve diretamente relacionado ao monopólio de uma expertise e treinamento dentro do sistema de educação superior.

    Borba explica Ou seja, a dificuldade em justificar um

    monopólio, e em superar o trabalho realizado na

    esfera pública daquele empreendido na doméstica,

    bem como a dimensão de gênero que isso

    envolve, foram obstáculos centrais, na ótica de

    Trubek, para o reconhecimento do trabalho de

    chefs e cozinheiros como uma profissão na

    sociedade francesa, entre os séculos XIX e XX.

    (BORBA, 2015, p.75).

    É interessante ressaltar como ao analisar o processo de

    institucionalização e legitimação de diferentes ocupações, ao longo do tempo, perante o Estado, é evidente que a defesa de um conhecimento

    especializado e teórico para a construção de monopólios do saber e de

    atuação prática está diretamente ligada ao conhecimento transmitido na

    educação superior. Tal fato faz necessário refletir sobre a natureza do

  • 38

    trabalho e do conhecimento na cozinha e se estes se encaixariam em

    uma lógica acadêmica.

    Neste contexto, a universidade torna-se o local onde se

    diferenciam as artes liberais e mecânicas, o trabalho do “espírito” e das

    mãos, o braçal e o intelectual. Para Dubar “Podemos assim, associar à

    oposição entre “profissões” e “ofícios” um conjunto de distinções

    socialmente estruturantes e classificadoras que se reproduziam através

    dos séculos: cabeça-mãos, intelectuais-manuais, alto-baixo, nobre-vilão,

    etc.” (DUBAR, 1997 apud BORBA, 2015, p.76).

    Pode-se entender este processo classificatório e distintivo como

    uma hierarquização do campo da educação, assim como do campo das

    profissões, uma vez que a partir dele as atividades artesanais e manuais

    perderam prestígio por não necessariamente dependerem de uma

    formação acadêmica de instituições de nível superior.

    Porém Senett se contrapõe a essa visão reducionista e dual

    dizendo que Todo bom artífice sustenta um diálogo entre

    práticas concretas e ideias; esse diálogo evolui

    para o estabelecimento de hábitos prolongados

    que por sua vez criam um ritmo entre a solução de

    problemas e a detecção de problemas (SENETT,

    2009, p.20 apud BORBA, 2015, p.80).

    Sendo assim, o artífice, segundo ele, seria um ator capacitado,

    treinado, que, através da repetição de uma ação e sua revisão constante

    da mesma, melhoraria sua prática e desenvolveria a autocrítica e

    capacidade necessárias para detectar e solucionar problemas, criando

    coisas novas e sistematizando métodos.

    No entanto, ao seu ver, “[...] a capacitação teria, mesmo no caso

    das atividades mais abstratas, origem na prática corporal (no

    conhecimento tátil, na experiência) para depois se organizar como uma

    técnica a ser desenvolvida a partir da imaginação.” (BORBA, 2015,

    p.81).

    Esse seria o processo de transformação do conhecimento prático

    em conhecimento tácito, da incorporação do saber através da repetição

    de procedimentos e rotinas, a qual permite que as pessoas executem

    ações sem necessariamente pensar sobre todas as etapas dos processos

    envolvidos, sem a racionalização de cada passo envolvido.

    Com esse debate como plano de fundo, Borba conclui que Sem sombra de dúvidas, o trabalho empreendido

    dentro da cozinha profissional, na chave da

    gastronomia, é uma complexa forma de

  • 39

    artesanato, que envolve os diversos sentidos

    atribuídos a essa conceito: do trabalho manual

    (que não é necessariamente sinônimo de trabalho

    mecânico, mas que contempla uma dimensão de

    reprodução), da utilidade, do virtuosismo, da

    beleza e do engajamento. (BORBA, 2015, p. 82).

    Porém, é interessante observar que, se por um lado a formação do

    cozinheiro é um processo de internalização das disposições do campo

    gastronômico, que são apreendidas através do exercício de repetição e

    desenvolvem o saber prático, que se transforma em saber tácito e é

    utilizado pelo indivíduo de forma “natural”, por outro lado o estilo do

    cozinheiro, no sentido estético, que é o que separa a atividade artesanal

    da artística, se manifesta na expressão da sua singularidade, na

    expressão de si no produto do seu trabalho.

    Sendo assim, como será discutido mais adiante nos conceitos de

    habitus e campo, de Pierre Bourdieu, ocorre uma dupla determinação

    entre indivíduos e estrutura social, mais especificamente o campo no qual estão inseridos. Ou seja, ao mesmo tempo em que o cozinheiro

    aprende sua profissão a partir da apreensão, da repetição dos métodos e

    processos impostos pelo campo gastronômico como padrão, seja na

    prática do trabalho em um restaurante, ou seja, em uma escola de

    gastronomia, o cozinheiro também transforma o campo gastronômico ao

    expressar sua subjetividade pessoal nas marcas de autoria do seu

    trabalho. Apesar de provavelmente ser guiado por tendências do campo,

    modismos e demandas do mercado, o profissional ainda expressa suas

    particularidades, o seu estilo, no seu trabalho.

    A isso, Simmel acrescenta A gastronomia é uma mercadoria e é um marcador

    identitário utilizado como base para distinguir

    determinados estilos de vida. Desse modo,

    encontra-se, como outras esferas da vida

    cotidiana, sujeita ao carrossel da moda (SIMMEL,

    1998 apud BORBA, 2015) com novas tendências

    a cada ano, que se configuram como

    oportunidades de negócio (BORBA, 2015, p. 86).

    Sendo assim, apesar dos modismos do campo gastronômico e das tendências postas por ele, é evidente que os cozinheiros passam por uma

    formação para o desempenho da sua profissão, resta saber se essa

    formação se dá, contemporaneamente, a partir de um padrão formal e

    homogêneo, se é dispersa, se é variada e quais os fatores que implicam

  • 40

    nas suas diferentes modalidades. Também é importante pensar nas

    diferenciações e disputas entre os tipos de cozinheiros existentes e qual

    a relação que isso possui com os percursos formativos dos mesmos,

    questões indagadas no subcapítulo que segue.

    2.2 EDUCAÇÃO PROFISSIONALIZANTE E TRAJETÓRIAS

    FORMATIVAS DOS COZINHEIROS

    A educação técnica e profissionalizante no Brasil surgiu com a

    industrialização da economia, durante o Estado Novo (1937-1945), a

    partir de uma concepção assistencialista que visava diminuir a

    criminalidade e marginalidade entre menores abandonados e ou em

    situações de vulnerabilidade social. Sendo assim, a formação dessas

    pessoas “menos favorecidas” era voltada à instrução teórica e à prática

    industrial nos liceus de artes e ofícios.

    Com o passar do tempo, as modalidades destes cursos, assim

    como os organismos que os ofereciam, mudaram bastante. Porém

    sempre com o intuito de fornecer a possibilidade de estudo a populações

    que talvez não tivessem outros meios de acessar uma educação formal

    senão o ensino profissionalizante, principalmente por questões

    financeiras.

    Surgiram, a partir deste contexto, as escolas técnicas federais, o

    SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) e o SENAC

    (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial), fundados

    respectivamente em 1942 e 1946.

    Segundo Rubim & Rejowski (2013, p.168), desde a sua criação o

    SENAC contava com cursos livres, profissionalizantes, técnicos, de

    nível superior e de pós-graduação, tendo a unidade de São Paulo como

    especialista na área de serviços e hospitalidade, a qual contava, entre

    1950 e 1960, com cursos de garçom, cozinheiro e barman.

    No entanto, apenas em 1970 realmente foi criado o curso de

    cozinheiro em Águas de São Pedro, interior paulista, que neste momento

    era voltado para jovens em situação de desvantagem educacional, como

    explicado no início do capítulo, que inclusive contavam com o

    recebimento de uma bolsa de estudos.

    Mais de vinte anos depois, em 1994, o SENAC começou a oferecer um curso de qualificação profissional com o nome de

    Cozinheiro Chef Internacional, desenvolvido em parceria com o CIA

    (Culinary Institute of America), uma das escolas mais famosas e reconhecidas de gastronomia nos Estados Unidos.

  • 41

    Neste momento, o público que atendia a este curso de cozinha

    mudava tanto quanto mudavam as propostas educacionais em volta da

    formação para a profissão de cozinheiro. De fato, os indivíduos que

    buscavam este novo curso faziam parte de um estrato social bem

    diferente, com maior poder aquisitivo e nível de escolaridade, uma vez

    que o curso era pago e tinha um caráter de formação em cozinha

    internacional.

    Com o crescimento subsequente do mercado gastronômico, no

    fim dos anos 90 surgiram cursos de nível superior em gastronomia em

    Santa Catarina e São Paulo, o que abriu espaço para a criação do curso

    superior em tecnologia gastronômica em Águas de São Pedro nos anos

    2000.

    Nesta época o aumento da oferta dos mais diversos cursos em

    diferentes níveis e com diferentes propostas voltados à gastronomia foi

    intenso. Apenas em São Paulo, no ano de 2010, segundo Rubim &

    Rejowski (2013), havia mais de quarenta cursos superiores na área, a

    maioria em instituições privadas, com perfil tecnológico, e não técnico,

    e com altos custos de mensalidades, equipamentos exigidos etc., o que

    por sua vez filtrava seu público discente.

    Com isso, a organização da educação formal no campo da

    gastronomia no Brasil se deu de forma radicalmente diferente ao que

    aconteceu na França, onde foi motivada pela busca de

    institucionalização e legitimação da profissão na estratificação da

    moderna sociedade capitalista.

    Na França, o intuito dos cozinheiros e chefs era de se encaixar no

    universo profissional, e não no mundo proletário, o que fez com que

    todos os indivíduos envolvidos com as profissões relativas à

    alimentação se organizassem para regular e sistematizar, por meio da

    regulação do Estado, a sua prática profissional, ou seja, para atribuir aos

    “ofícios de cozinha” o status de profissão.

    Desta forma, em 1890 o estado francês criou, com subsídio

    estatal e investimento privado, L’ecole Professionnelle de Cuisine,

    seguida da Le Cordon Bleu em 1895, em Paris, a qual existe até os dias de hoje. Estas escolas treinavam jovens meninos de 14 a 20 anos para as

    profissões de cozinheiros e chefs através de cursos pagos, e também

    tinham formação para mulheres, porém apenas nos níveis elementares para que fossem jovens donas de casa.

    Para Borba, [...] a natureza do conhecimento culinário e

    gastronômico e sua ubiquidade na vida cotidiana

    (inclusive como atividade exercida por mulheres

  • 42

    no espaço privado) dificultaram a defesa da

    cozinha profissional como possuidora de um tipo

    de conhecimento esotérico, sistematizado e

    transmitido via educação superior, que

    demandasse a construção de monopólios em torno

    desse mercado. (BORBA, 2015, p.159)

    Em contraposição a este processo de institucionalização dos

    cursos de formação em cozinha na França, no Brasil existiu um

    distanciamento entre as instituições de ensino superior e o mercado da

    cozinha profissional, o que foi causado por um ingresso da classe média

    em profissões que sempre foram tidas como sujas e meramente braçais,

    mas que ganharam o brilho da glamourização e romantização da mídia

    através da figura do chef de cozinha.

    Isso, a partir das entrevistas realizadas e literatura analisada nesta

    pesquisa, fez com que jovens da classe média se interessassem pelo

    trabalho desenvolvido nas cozinhas, porém de uma forma “caricata”.

    Eles se interessavam pelo trabalho do chef, como figura de dólmã limpa

    e bem apresentada, que finaliza pratos e dá seu toque de arte na

    composição de um menu, e não pelo trabalho de cozinheiros reais, em

    cozinhas reais, que limpam coifas, estripam animais, lavam câmeras

    frias, e se submetem a uma cadeia hierárquica de funções a fim de

    aprender trabalhando com quem está na profissão há mais tempo.

    Este descolamento da realidade do trabalho de cozinheiro, que

    por sua vez pode levar à posição de chef de cozinha, e a realidade dos

    cursos de formação de cozinheiros, também fica evidente no quesito

    monetário, uma vez que, enquanto a mensalidade destes cursos é por

    volta de quatro mil reais, o salário de um cozinheiro que trabalha no

    mínimo quarenta e quatro horas semanais é algo em volta de mil a dois

    mil reais.

    Muitas vezes, mesmo o quadro docente destas instituições nunca

    se deparou com a realidade prática das cozinhas profissionais, uma vez

    que os professores são frequentemente os próprios alunos destes cursos

    que seguiram carreira acadêmica e nunca tiveram o treinamento no

    trabalho e na relação mestre-aprendiz.

    Dito isto, é evidente que a criação e proliferação destes cursos

    profissionalizantes, sejam superiores ou não, na área da gastronomia,

    muito mais servem às demandas do mercado da educação do que da

    restauração.

    No entanto, neste contexto atual, o antigo método de formação na

    cozinha, do treinamento no trabalho prático, baseado na relação entre

  • 43

    mestre e aprendiz, continuou coexistindo com os novos métodos de

    educação profissionalizante.

    O caminho formativo dos cozinheiros não é único nem linear, o

    que ficou muito claro a partir da pesquisa de campo executada nesta

    pesquisa. Mas, apesar de sua formação não ser unificada, existem

    determinados padrões que se repetem na construção da carreira de

    grande parte dos cozinheiros, os quais apontam que, de fato, existem

    etapas, embora não rigidamente institucionalizadas, para se formar um

    cozinheiro profissional.

    Na realidade da maioria dos cozinheiros eles passam por uma

    experiência prática na cozinha profissional antes de procurar instituições

    de ensino para mediar o processo de formação. Além disso, eles

    inclusive defendem que este seja o melhor caminho para alguém que se

    interessa pela área, já que antes de fazer quaisquer cursos a pessoa deva

    investir em estágios e ou outras experiências profissionais para saber se

    de fato quer escolher a cozinha, este sacrificado ofício, como profissão.

    É neste momento que surgem as noções de dom e vocação,

    segundo os entrevistados, já que habilidades e características valorizadas

    no campo gastronômico são esperadas como traços dos aspirantes a

    cozinheiro. Sendo assim, é na experiência do estágio, ou ainda mais

    amplamente na experiência profissional, que o indivíduo vai descobrir

    se tem ou não “o dom” para a cozinha, que pode ser traduzido nestas

    características específicas, como tenacidade, resistência, subordinação

    etc.

    Logo, claramente ser um cozinheiro é muito diferente de saber

    cozinhar, já que independentemente do domínio do repertório da

    culinária clássica, que pode ser aprendido através da leitura ou mediado

    por instituições de ensino, e do treinamento prático, da observação e da

    repetição de processos, existe uma gama de habilidades-qualidades que

    são necessárias a um cozinheiro, valorizadas e esperadas por seus pares

    no campo, porém não explicitamente ensinadas ou ensináveis.

    Para Borba, O que é ser um cozinheiro profissional, [...] é uma

    questão cuja resposta está além do domínio da

    técnica. O entendimento do que esta colocação

    representa pode ser iniciado em instituições de

    ensino, mas só se consolida na prática, com a

    iniciação na cultura ocupacional da cozinha de

    restaurante, no mundo real do trabalho que opera

    a conversão do leigo em profissional. (BORBA,

    2015, p.147).

  • 44

    Pode-se dizer que o processo de formação de um cozinheiro é um

    processo de formação artesanal, a transformação de conhecimento

    prático incorporado na expressão do conhecimento tácito. É uma

    formação que depende não apenas de um treinamento técnico e prático,

    manual, como também e principalmente do desenvolvimento de

    habilidades simbólicas.

    Neste processo, a relação entre mestre e aprendiz é central e se dá

    no exercício cotidiano da profissão, tal como na sua herdada tradição de

    treinamento das corporações de ofício, mesmo que os indivíduos tenham

    passado por uma educação formal e sistematizada em uma instituição de

    ensino técnico e ou superior.

    Esse é um dos principais motivos da assimetria no processo de

    formação de cozinheiros entre a experiência teórica e prática, posto que

    dentro do campo gastronômico é muito mais relevante para o currículo

    de um cozinheiro ter tido experiências em cozinhas reconhecidas pelo

    mundo, com chefs célebres, do que ter feito um curso de prestígio na

    área.

    Sendo assim, a ascensão do status do cozinheiro dentro do

    processo formativo no campo gastronômico pode ser entendida através

    do ganho de liberdade por parte dos aprendizes a partir de um processo

    hierárquico. No início são designados aos “piores” trabalhos,

    conhecidos como “trabalhos sujos” dentro da cozinha, normalmente

    desempenhados pelas pessoas menos preparadas da brigada, os novatos.

    Ao provar serem capazes de desempenhar tais funções e,

    principalmente, resistirem a elas com a postura subalterna esperada,

    começam a conquistar a confiança do grupo e ter acesso a preparos mais

    exigentes e sofisticados, sempre com a orientação e supervisão do chef.

    Neste momento, se o aprendiz busca confrontar as ordens que lhe

    são dadas ou questionar algum processo tal qual foi passado pelo seu

    superior, está declaradamente “perdendo pontos” com a equipe. O que

    se espera deste indivíduo neste exato momento, é que abaixe a cabeça,

    ouça as ordens, responda com um simples “ok” ou “sim, chef!” e

    execute da forma mais próxima possível a qual ele observou sendo feito.

    Não é o momento de expressar o conhecimento “tácito” que possui, pois

    em tese ele não o possui. Está no momento de observar e reproduzir,

    desenvolver as habilidades, e não criar ou deixar sua marca impressa no produto manipulado. Não há individualidade neste momento, e sim a

    supressão dela, para que as normas e padrões do campo sejam

    internalizadas. A última coisa que um chef quer é um cozinheiro

    inovador, alguém com ideias próprias que vá

  • 45

    atrapalhar suas receitas e apresentações. Um chef

    precisa de lealdade cega, quase fanática, uma

    consistência rígida, automatizada, precisa de gente

    que execute seus pratos sob condições de batalha.

    (BOURDAIN, 2016).

    Daí vem a legitimação da hierarquia na divisão do trabalho

    dentro da cozinha. Não é mera questão de diferenciação do trabalho. O

    modelo das “grandes” cozinhas seguem um padrão e rigor militar, pois a

    liberdade para ação pessoal está direta e estritamente ligada ao

    reconhecimento do know how do cozinheiro por parte do chef, porém,

    sobretudo, à atitude “correta” e postura “humilde” que se espera do

    mesmo.

    Em suma, quanto maior a legitimidade do indivíduo no grupo,

    maior sua liberdade de ação e criação, de flexibilização das regras do

    campo.

  • 47

    3 DO DESENHO DE PESQUISA: CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS E PROCEDIMENTOS DE

    CONSTRUÇÃO E ANÁLISE DO CORPUS

    Neste capítulo apresenta-se o desenho metodológico da pesquisa,

    explicando e fundamentando as decisões tomadas acerca das técnicas de

    produção e análise do corpus. Ao justificar os procedimentos envolvidos

    na análise são discutidos também seus limites e possibilidades.

    As técnicas de pesquisa utilizadas neste trabalho estão inseridas

    no seio das pesquisas qualitativas que, como esclarece Borba (2015),

    segundo Bryman possuem algumas características singulares em relação

    às pesquisas quantitativas, que são: 1- o privilégio das palavras em

    detrimento dos números; 2- uma relação predominantemente indutiva

    entre teoria e pesquisa; 3- uma posição epistemológica interpretativista

    (a