prÉmios · lidade do acto administrativo ... numa palavra, uma maior garantia do valor de...

54
2 PRÉMIOS PRÉMIO DOUTOR MARNOCO E SOUSA COACÇÃO ENQUANTO VÍCIO OU FALTA DE VONTADE NA DETERMINAÇÃO DA VALIDADE DE ACTOS ADMINISTRATIVOS À LUZ DA NOVA INTERPRETAÇÃO DO ART. 133.º/1 DO CPA LEONG HONG CHENG

Upload: others

Post on 23-Feb-2020

7 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

2PRÉMIOS

PRÉMIO DOUTOR MARNOC O E SOUSA

coacção enquanto vício ou falta de vontade na determinação da validade de actos administrativos

à luz da nova interpretação do art. 133.º/1 do cpa

LEONG HONG CHENG

(página deixada em branco propositadamente)

(página deixada em branco propositadamente)

prémio doutor marnoco e sousa

2

coacção enquanto vício ou falta de vontade na determinação da validade de actos administrativos

à luz da nova interpretação do art. 133.º/1 do cpa

LEONG HONG CHENG

ED IÇÃOFaculdade de Direito da Univers idade de CoimbraInst ituto Jur íd ico

C ONC EÇÃO GRÁF ICA | INF OGRAF IAAna Paula Si lva ı apsi [email protected]

C ONTAC TO SPátio da Univers idade ı 3004-528 Coimbra inst itutojur id [email protected]

I SBN 978-989-8787-23-1

© MAI O 201 5

INSTITUTO JURÍDICO | FACULDADE DE DIREITO | UNIVERSIDADE DE COIMBRA

7

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade

de Actos Administrativos à Luz da Nova Interpretação do Art. 133.º/1 do CPA

LEONG HONG CHENG

Resumo: A presente investigação visa analisar o problema da coacção enquanto causa de nulidade de actos administrativos, no contexto de uma nova interpretação do art. 133.º/1 do CPA, e revelar a divergente natureza dos diferentes tipos de coacção, o que implica uma necessidade de diferenciação de tratamento.

Palavras-Chave: coacção; actos administrativos; validade; art. 133.º/1 do antigo CPA; art. 159.º/1 do Projecto da Revisão do CPA.

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

8

Duress as Vice or Lack of Willingness in the De-termination of the Validity of Administrative

Acts in Light of the New Interpretation of the Article 133.º/1 of the Code of Administrative

Procedure

LEONG HONG CHENG

AbstraCt: This investigation aims to analyze the problem of duress as a cause of nullity of administrative acts in terms of a new interpretation of the art. 133.º/1 of the Code of Ad-ministrative Procedure, and to reveal the nature of different types of duress which implies a necessity of differentiated treatments.

Keywords: duress; administrative acts; validity; art. 133.º/1 of the old CPA; art. 159.º/1 of the CPA Revision Project.

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

9

Parte Introdutória

Entrando no século XX, o mundo jurídico sofreu uma grande revolução ideológica. A Jurisprudência dos Conceitos do normati-vismo do século XIX foi superada, tendo sido substituída transi-toriamente pela Jurisprudência dos Interesses de Jhering que por seu turno foi revogada pela actual Jurisprudência dos Valores, que importa para a ordem jurídica vigente novas perspectivas acerca do sistema estrutural e axiológico do Direito e novas metodologias ju-rídicas. Todavia, seja em nome da segurança jurídica, seja por causa da falta das ideias inovatórias, seja em virtude da adaptabilidade pa-cífica, a influência do conceitualismo do século XIX ainda é visível no actual Império da Jurisprudência dos Valores.

Entre outros, temos o conceito da nulidade e o sistema bi-partido de nulidade/anulabilidade que são construídos pelos con-ceitualistas do século XIX através do seu próprio método de ope-rações metódicas (realizadas pela chamada Jurisprudência Inferior) e tarefas da construção-sistematização conceitual (realizadas pela chamada Jurisprudência Superior). Para alguns juristas, devido à sua nascença indigna, o conceito de nulidade tem um defeito congénito incurável e portanto deve ser superado1.

Não contestamos esta posição da necessidade de inovação no actual regime da validade. Mas estando a própria razão de ser da nulidade já radicada no nosso ordenamento jurídico por mais de um século, acreditamos também na dificuldade enorme da sua supera-ção imediata. Portanto, na nossa perspectiva, o que nós, juristas, te-mos de fazer agora é tentar tornar mais materiais estas construções conceitualistas e corrigir o seu defeito para adaptá-las à axiologia do Império da Jurisprudência dos Valores, até vir o dia em que consiga-mos encontrar novas soluções revolucionárias.

1 Sobre esta crítica, consulte André Salgado de MATOS, «Algumas observações críticas acerca dos actuais quadros legais e doutrinais da inva-lidade do acto administrativo», 55-68.

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

10

O presente trabalho visa exactamente este objectivo, tentando atribuir uma alma mais materialmente diferenciada ao corpo for-malista-simplista do actual regime jurídico-administrativo da deter-minação da nulidade do acto administrativo e criticar o regime da determinação da validade do acto praticado sob coacção mediante uma perspectiva substancial.

1. Crítica e reconstrução do actual regime da deter-minação da nulidade do acto

1.1. Apreciação da sistematização do art. 133.º/1 do CPA2

Segundo a sistematização do nosso legislador, o art. 133.º (Actos nulos) fica inscrito dentro da secção «da invalidade do acto administrativo». Isto permite-nos retirar logo a conclusão lógica de que o problema da nulidade de actos administrativos é um problema de validade. Por isso, para bem localizar o problema a tratar infra, temos de compreender o sentido da validade e diferenciá-lo de ca-tegorias adjacentes: segundo a doutrina, a ideia da validade corres-ponde a uma violação das normas ou princípios jurídicos, ou seja, a uma antijuridicidade. Todavia, nem todos os actos antijurídicos são inválidos. Só uma antijuridicidade qualificada, ou seja, uma ofensa substancial de interesses públicos (recorde-se que a Administração, nas suas actuações, deve prosseguir sempre os interesses públicos), pode conduzir à invalidade do acto. Caso estejamos perante uma violação das chamadas «zonas de legalidade menos exigentes ou ju-ridicamente imperfeitas» ou um vício não substancialmente relevan-te do acto, à luz do princípio constitucional de proporcionalidade, aplica-se uma sanção proporcionalmente menos gravosa, que é a mera irregularidade. Como a nulidade se traduz numa patologia gra-víssima do acto cuja razão de ser se radica no fenómeno de falta dos elementos essenciais, não pode deixar de ser um tipo de invalidade.

2 Temos como bibliografia principal de referência nesta apre-ciação: Vieira de andrade, Lições de Direito Administrativo, 172 e s.: Idem, «Validade (do acto administrativo)», 581-592; Idem, «A nulidade administrativa, essa desconhecida», 333-338 e Ana Raquel Gonçalves mo-nIz, Casos Práticos Direito Administrativo, 237 e s..

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

11

Ora, a validade não se confunde com a eficácia de um acto. Enquanto que a primeira é intrínseca ao acto, a última é extrínseca, reportando-se ao momento da produção dos efeitos do acto e po-dendo ser imediata, diferida, retroactiva, prospectiva, etc. Para me-lhor distinguir a diferença entre validade e eficácia, mesmo que não seja alvo do estudo deste trabalho, gostávamos de mobilizar o con-ceito e o regime da anulabilidade (art. 135.º e s., CPA): a anulabilida-de é um vício de natureza substancialmente qualificada e portanto é um tipo de invalidade. Todavia, um acto anulável (inválido) pode ser provisoriamente eficaz até ao momento em que é anulado e pode mesmo passar a produzir os seus efeitos de forma normal quando tiver decorrido um ano (art. 141.º, CPA com remissão para o art. 58.º/2a, CPTA), formando o chamado “caso decidido”.

Além disso, temos de separar a nulidade da sanção da inexis-tência, que é uma forma extremamente intolerável (mais intolerável que a nulidade) da invalidade. No actual regime da validade de ac-tos administrativos, não existe a sanção da inexistência dado que, conforme a opção do legislador, o instituto da inexistência já foi absorvido pelo da nulidade – isto é, enquanto que a inexistência em geral se traduz num vício de falta dos elementos estruturais de um acto (vício esse que é tão grave que nos leva a considerar o acto como se fosse inexistente desde o início), o legislador, ao definir a cláusula geral de nulidade por “falta dos elementos essenciais”, já inclui no próprio sentido da nulidade a figura da inexistência. Se-gundo a compreensão da doutrina, também não é conveniente dizer que existe um acto administrativo não inexistente. Ora, temos de prestar atenção ao facto de que o conceito de inexistência enquanto figura da invalidade é diferente do conceito de inexistência do acto administrativo stricto sensu. Este último conceito aponta para a situa-ção grave em que, nas palavras de Vieira de andrade 3, «pelas mais variadas razões, não há ou ainda não há uma decisão de autoridade formalmente imputável a um ente administrativo».

Por fim, salientamos que, embora o regime da nulidade seja colocado na sistematização do Código previamente ao da anula-bilidade, dentro do quadro jurídico dos actos administrativos, é a anulabilidade que é a sanção geral e residual. Isto pode ser revelado

3 Vieira de andrade, «A nulidade administrativa, essa desconhe-cida», 337.

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

12

pelo conteúdo do art. 135.º do CPA que afirma que «são anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja outra san-ção» (itálico nosso). Para a doutrina, este sistema de anulabilidade enquanto sanção geral é substancialmente satisfatório, uma vez que na evolução da perspectiva acerca do papel da Administração Pública na vida dos cidadãos – da Administração autoritária para a Administração de prestação de serviços – com o consequente au-mento dos actos favoráveis aos cidadãos (tal como a autorização), necessita-se de uma maior estabilidade das actuações administrativas e menor precariedade dos actos, sobretudo nos favoráveis pratica-dos pela Administração. Numa palavra, uma maior garantia do valor de segurança jurídica e de confiança legítima. Só com a previsão da anulabilidade enquanto sanção geral da invalidade dos actos admi-nistrativos, cuja susceptibilidade de impugnação é temporalmente limitada (art. 141.º/1, CPA), se pode concretizar esta necessária fun-ção estabilizadora dos actos administrativos.

1.2. Interpretação literal e declarativa do art. 133.º/1 do CPA

Como se diz no nosso código, «são nulos os actos a que fal-te qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade». Literalmente compreen-dido, podemos chegar a uma conclusão lógica de que um acto ad-ministrativo será nulo ou por faltar qualquer dos seus elementos es-senciais ou por a lei o determinar. Ou seja, na tipologia sugerida por Vieira de andrade 4, temos aqui dois tipos de nulidade, a nulidade por natureza (falta dos elementos essenciais) e a nulidade por deter-minação legal. Por isso, mobilizando esta interpretação literal para responder à questão levantada por Vieira de andrade no seu artigo5 – «saber se a exemplificação contida n.º 2 do artigo 133.º (“são de-signadamente, actos nulos”) deve ser considerada como concretiza-

4 Vieira de andrade, Lições de Direito Administrativo, 175-176, e conforme a nossa compreensão da p. 340 do citado artigo «A nulidade administrativa, essa desconhecida» do Autor.

5 Vieira de andrade, «A nulidade administrativa, essa desconhe-cida», 333-349.

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

13

ção do paradigma substancial da nulidade6 ou como um conjunto de hipóteses típicas de determinações político-legislativas» – chegare-mos à conclusão de que todos os exemplos de actos nulos contidos no art. 133.º/2 são antes de mais um conjunto de hipóteses típicas de deter-minações legislativas (que, na nossa compreensão, não têm necessaria-mente por detrás uma opção puramente política). Isso porque uma vez verificados na prática, estes tipos de actos são imediatamente nulos simplesmente pela imposição legal; sem prejuízo de alguns deles se-rem nulos também por preencherem a cláusula geral de nulidade, uma vez que implicam necessariamente, mesmo no plano abstracto, uma falta dos elementos essenciais de actos administrativos ou um vício evidente de gravidade extremamente intolerável à luz do princípio da juridicidade e os princípios gerais do Direito Administrativo. Por isso, não negamos que algumas alíneas do art. 133.º/2 podem ser simultaneamente tidas como hipóteses típicas de determinações legislativas e como concretização do paradigma substancial da nulidade.

No entanto, se assim for, não podemos deixar de salientar que, segundo esta interpretação literal, um acto administrativo, independente-mente de faltarem os elementos essenciais ou não, uma vez que seja previsto pelo legislador em abstracto como nulo, é, só por isso, necessa-riamente nulo, sem qualquer margem de possibilidade de se fazer uma apreciação material dos actos concretamente em causa.

1.3. Discordância face a esta interpretação

Na nossa perspectiva, esta interpretação literal não é subs-tancialmente aceitável e o regime implicado na letra deste artigo é infeliz e demasiado simplista. A nossa discordância reside na ideia de que um acto, classificado em abstracto pelo legislador como nulo, não deve ser só por isso imediatamente nulo uma vez verificada a hi-pótese em concreto. Pelo contrário, temos de justificar sempre, em concreto, se os actos em causa implicam igualmente uma falta dos elementos essenciais ou um vício evidente de gravidade extrema-mente intolerável à luz da ordem jurídico-administrativa equiparado a uma carência absoluta dos elementos essenciais. Isto salvo quando da teleologia da lei fique claro que a determinação legal da nulida-

6 Ou seja, concretizando a cláusula geral de nulidade do art.133.º/1, que aponta para o requisito geral da falta dos elementos essenciais.

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

14

de é uma pura opção político-estratégico-legislativa, tal como a do combate à corrupção política, da realização da política criminal, etc. Fora desta excepção, quando a teleologia da lei seja a de sancionar um acto por faltarem os seus elementos essenciais, e mesmo quando estejamos em dúvida, no nosso entender, ainda que a lei expressamente preveja em abstracto a sanção da nulidade, temos de verificar se, em concreto, o acto inválido em causa preenche igualmente a cláusula geral da falta dos elementos essenciais, antes de chegarmos à con-clusão da nulidade do acto.

O raciocínio da nossa posição é o seguinte:

1. Tal como a doutrina salienta, o regime legal vigente da nuli-dade é muito radical. Por isso, se se aplicar este regime ime-diatamente a um acto pelo simples facto de a lei o prever em abstracto, sem qualquer avaliação concreta nem interpretação teleológica da lei, agrava-se ainda mais o radicalismo do qua-dro geral do regime da nulidade, que já é muito criticado pela doutrina.

2. De acordo com o ensinamento da Jurisprudência de valores, a lei não é auto-suficiente e é naturalmente lacunosa. Portanto, não podemos confiar que todos os actos pensados em abs-tracto pelo legislador como violando gravemente a ordem jurídica são actos a que faltam sempre os seus elementos es-senciais em concreto.

3. Sendo um regime sancionatório, deve obedecer ao princípio da proporcionalidade. Não nos parece adequado aplicar a san-ção de nulidade, com o seu regime tão radical, a uma situação em que temos uma determinação de nulidade pelo legislador em abstracto sem se verificar em concreto uma falta dos ele-mentos essenciais (certo, não estamos a falar do caso em que a determinação legal da nulidade tem por detrás dela uma pura opção política legítima, caso no qual basta a verificação do pressuposto legal para determinar imediatamente a nulidade do acto).

4. Se bastar uma mera determinação legal para tornar um acto nulo quando a hipótese da respectiva lei se verifica em con-creto, isso significa que se permite ao legislador, mediante o art. 133.º/1, outorgar a si próprio um mandato legal de ma-

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

15

nipulação do sistema da determinação da validade de actos administrativos. Além disso, o legislador pode esgotar assim o sentido útil e a importância da cláusula geral de nulidade, que garante a essência da figura da nulidade. Levado ao extremo, este mandato disponibiliza ainda ao legislador um meio de subversão do sistema da validade dos actos administrativos, levando na prática a nulidade a ser a sanção normal e mesmo universal da invalidade dos actos administrativos.

Por isso, em conclusão, na nossa perspectiva não devemos ter só dois tipos de nulidade, uma por natureza (falta dos elementos essenciais) e outra por mera determinação legal, tal como se afirma na letra do art. 133.º/1. Baseando-nos na construção feita, devemos ter, pelo menos, três tipos de nulidade: 1) a nulidade por natureza, 2) a aparente nulidade por determinação legal (cuja declaração depen-de da verificação em concreto da cláusula geral de nulidade) e 3) a pura nulidade por mera determinação legal.

Assim sendo, coloca-se a questão de saber qual é o sentido útil da determinação legal se tivermos de, quase sempre, preencher em concreto a cláusula geral de falta dos elementos essenciais antes de poder concluir pela nulidade do acto. A resposta é a seguinte: mes-mo assim, esta determinação expressa da lei tem grande relevância no plano processual, maxime na repartição do ónus da prova entre as partes em conflito. Isto é, se não existir uma determinação legal da nulidade do acto em causa, quem invoca a nulidade do acto por falta dos elementos essenciais tem o ónus de provar esta falta. Pelo contrário, se existir uma determinação legal, a repartição do ónus da prova já ficará invertida, tornando-se a parte que alega que não está preenchida a cláusula geral de nulidade quem tem o ónus de prová-lo. Por outras palavras, a pré-determinação legal da nulidade daquele acto funciona entre nós como uma presunção ilidível da falta dos elementos essenciais.

Enfim, salientamos que a posição adoptada tem como intuito a obtenção de uma interpretação mais correcta da lei7. Uma vez que tal posição tem como efeito prático imediato dificultar a de-claração da nulidade de um acto administrativo, contribuindo indu-

7 Não estamos a tentar obter uma interpretação mais favorável à Administração Pública nem uma mais favorável aos administrados

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

16

bitavelmente para a estabilidade do acto classificado em abstracto como nulo mas não necessariamente nulo em concreto (recorde-se que a regra geral é a da anulabilidade, cujo regime previsto no CPA permite a estabilização formal do acto inválido, formando o que a doutrina chama um caso decidido), esta traz consigo a vantagem de atenuar (ou melhor, não agravar) a perturbação material-sistemática provocada pelo regime radical da nulidade do acto administrativo8 e permitir realizar na ordem jurídico-administrativa uma verdadeira justiça material-concreta.

1.4. A apreciação do art. 159.º/1 do projecto de revisão de 2013 do Código de Procedimento Administrativo a par-tir da posição afirmada

O art. 159.º/1 do projecto de revisão de 2013 corresponde ao art. 133.º/1 do CPA vigente, tendo o seguinte conteúdo «São nulos os actos para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade».

Literalmente apreciado, o novo artigo elimina a parte «a que falte qualquer dos elementos essenciais», ou seja, a cláusula geral de nulidade. Por isso, parece que o novo artigo sobre a determinação da nulidade do acto pretende estabelecer apenas o tipo de nulidade por mera determinação legal. Esta versão, sem dúvida, é absoluta-mente incompatível com a nossa posição adoptada, que advoga a importância da cláusula geral de nulidade. Não conseguimos mesmo perceber qual é a ratio legis legítima e a ratio iuris por detrás da refor-ma deste artigo.

Ora, o ponto mais inaceitável é que se deixa de considerar como nulo um acto a que em concreto faltem os seus elementos essenciais se a lei não previr em abstracto para isso a sanção da nulidade. Opomo-nos sem reservas a este novo sistema. Porque em primeiro lugar, como afirma a doutrina de Coimbra, a razão de ser da nulidade e a natureza de um acto nulo reside na falta dos elemen-tos essenciais. Por consequência, da eliminação da parte «a que falte

8 Sobre a crítica doutrinal do regime da nulidade do acto adminis-trativo, convém consultar Vieira de andrade, «A nulidade administrativa, essa desconhecida», 340 e s..

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

17

qualquer dos elementos essenciais» resulta, sem dúvida, um esgota-mento da base lógica e da razão de ser do regime da nulidade.

Em segundo lugar, ainda que se achasse que, de facto, todas as determinações legais da nulidade têm na sua base uma afirmação implícita, ou uma presunção legislativa do preenchimento da cláu-sula geral de nulidade9 e por isso a razão de ser da nulidade ainda se manteria nesta nova versão da norma, o art. 159.º/1 ainda seria muito defeituoso, uma vez que, por um lado, tal como se afirmou, o sistema legal não é suficiente e é omisso. Não podemos concordar com tentativas legislativas de prever taxativamente todas as causas da falta de elementos essenciais dos actos administrativos10. Por outro lado, a averiguação do preenchimento ou não da cláusula geral de nulidade deve ser uma tarefa doutrinal e jurisprudencial. O legislador não tem a capacidade de afirmar que todos os casos previstos em abstracto por ele como falta dos elementos essenciais correspondam à realidade em concreto. Por isso, mesmo que não se aceite que essa interpretação desta nova versão do art. 133.º/1 viola o princípio da separação dos poderes e portanto é indubitavelmente inconstitucional, não deveriam, na nossa perspectiva, restar dúvidas de que existe aqui um furor normandi do poder legislativo, que limita excessiva e irrazoavelmente o campo da intervenção e realização do poder judicial. Além disso, este abre ainda mais caminho para ma-nobra do legislador, prejudicando os direitos e interesses dos admi-nistrados maxime quando, no nosso sistema político, o Governo tem a sua própria competência legislativa constitucionalmente garantida.

Tendo construído a nossa posição sobre o regime da deter-minação da nulidade de actos administrativos, podemos partir desta para apreciar o regime vigente da determinação da validade do acto praticado sob coacção.

9 I.e. uma identificação entre a nulidade por determinação legal e a nulidade por natureza, recusando-se a ideia da existência de uma pura eliminação da antiga cláusula geral de nulidade.

10 O legislador não tem a capacidade de prever todos os casos de falta dos elementos essenciais de um acto administrativo, por simples causa da imprevisibilidade do futuro e da evolução do mundo prático. Recorde-se que, na história, a ruptura do normativismo do século XIX já revelou a não sustentabilidade de um sistema jurídico fechado.

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

18

2. Crítica e reconstrução do regime da determina-ção da validade do acto praticado sob coacção:

2.1. Análise do art. 133.º/2e do CPA

O conteúdo desta alínea é: «são, designadamente actos nulos os actos praticados sob coacção».

2.1.1. Comparação com o Regime no Direito Civil

No Direito Civil, o problema do negócio jurídico celebrado sob coacção, é tratado na área dos vícios de vontade11 e da diver-gência entre a vontade e a declaração12, sendo regulado no art. 246.º e art. 255.º do Código Civil, consoante se trate do caso da coacção absoluta ou coacção relativa13. Sucintamente apreciando, no direito civil, a situação da coacção absoluta e da coacção relativa é sanciona-da de maneira diferente na medida em que para aquela, a sanção será a não produção de qualquer efeito14; enquanto que para esta, é a anulabi-lidade. No Direito Administrativo, as coisas já são diferentes, posto que segundo o art. 133.º/2e do CPA, é indiferente que uma coacção seja absoluta ou relativa: desde que se trate de uma coacção, a sanção será imediatamente a nulidade15. Diz-se imediatamente uma vez que no

11 Como se trata de um tema do Direito Civil, não será lugar pró-prio desenvolvê-lo detalhadamente aqui. Para um desenvolvimento com pormenor, veja Carlos Mota PInto, Teoria Geral do Direito Civil, 498 e s..

12 Carlos Mota PInto, Teoria Geral do Direito Civil, 457 e s..13 «Na coacção física ou absoluta o coagido tem a liberdade de acção totalmen-

te excluída, enquanto na coacção moral ou relativa a liberdade está cerceada, mas não excluída.» Carlos Mota PInto, Teoria Geral do Direito Civil, 489.

14 Para a doutrina maioritária, será mais exacto interpretar a não produção de qualquer efeito no sentido da inexistência em vez da nulidade. Assim, Carlos Mota PInto, Teoria Geral do Direito Civil, 490, nota 649.

15 Não se confunde a nulidade e a anulabilidade no Direito Administrativo com os mesmo conceitos no Direito Civil. Os próprios conceitos e os regimes correspondentes não são idênticos. Por exemplo, enquanto que no Direito Civil temos a sanção da inexistência, esta não existe no Direito Administrativo em relação ao problema da validade do acto administrativo. De acordo com a doutrina, o instituto da inexistên-cia é absorvido no próprio conceito da nulidade do regime de actos ad-ministrativos, que Vieira de andrade designa por nulidade-inexistência (Veja ponto 1.1). Aliás, no Direito Civil, um negócio jurídico anulável é sanável pelo decurso do tempo; todavia, no Direito Administrativo, para a Escola de Coimbra, a anulabilidade de um acto não se sana pelo decurso

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

19

Direito Civil, pelo menos para a coacção relativa, para que o negó-cio jurídico seja anulável, é necessário preencher simultaneamente um conjunto de requisitos16 (essencialidade da coacção, intenção de extorquir a declaração e ilicitude da ameaça); no Direito Administra-tivo, porém, a declaração da nulidade de um acto administrativo pra-ticado sob coacção, conforme a letra da lei, já não é condicionada. Além do mais, a diferenciação do regime da coacção praticada por terceiro previsto no art. 256.º do CC não é acolhida no nosso CPA.

Agora, tendo feito esta comparação sucinta, será o momen-to adequado para perguntar pela razão desta diferença e questionar a bondade desta relativa simplicidade pela qual o nosso legislador optou no CPA. Quais são os valores que o legislador pretende sal-vaguardar através da declaração incondicionada da nulidade do acto praticado sob coacção? Existe um equilíbrio material entre os valo-res a salvaguardar e os valores suprimidos? A sanção tão grave da nulidade é adequada para todos os casos da coacção? Se admitirmos que esta alínea não é um caso de pura nulidade por determinação legal, por não acharmos que o legislador tem qualquer necessidade ou interes-se político particular em autonomizar todas as coacções como causa imediata da nulidade do acto, então quais são para o legislador (na nossa interpretação) os elementos essenciais que faltam presumivel-mente17 num caso de coacção? Antes de responder a estas perguntas, é importante conhecer primeiro os seguintes conceitos operativos.

do tempo mesmo que se estabilize formalmente no tempo, ou seja, o acto permanece no tempo em nome de um caso decidido mas continua a ser um acto inválido.

16 Para um aprofundamento destes, remete-se para Carlos Mota PInto, Teoria Geral do Direito Civil, 531-532 e Pires de lIma e Antunes va-rela, Código Civil Anotado, Vol. I, 238.

17 Enfatizamos presumivelmente porque, repetimos, a verificação da falta dos elementos essenciais de um acto exige sempre uma apreciação concreta casuística. Qualquer tentativa de pré-identificação dos elementos essenciais em falta numa dada situação sem deixar qualquer margem para uma reapreciação concreta a posteriori será apriorística e derroga o espírito de um verdadeiro Estado de Direito material, sem prejuízo de que em cer-ta situação, v.g. usurpação de poderes, faltem sempre elementos essenciais de um acto e os elementos essenciais carecidos sejam sempre os mesmos (in casu, o exercício da função administrativa).

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

20

2.1.2. Vontade psicológica e vontade normativa

Como a coacção é um problema de falta ou vício de vontade, será essencial saber qual é a vontade relevante para a análise do pro-blema. No Direito Civil, a vontade relevante é a vontade psicológica do declarante, que é composta pela vontade de acção, vontade de declaração e vontade negocial. Já no Direito Administrativo, qual é a vontade relevante na emissão do acto administrativo? Será a vontade psicológica do titular do órgão? Parece que não: o acto administra-tivo18 é uma estatuição autoritária praticada no exercício da função administrativa, e como tal deve ser sempre vinculada pelo princí-pio da legalidade e o princípio da prossecução do interesse público, não vigorando aqui para a Administração o princípio da autonomia privada. Portanto, não é legítimo invalidar um acto administrativo, por exemplo, pela razão de que o titular do órgão, enquanto pessoa singular, ao emitir um acto administrativo, tenha manifestado que não teve a vontade subjectiva-pessoal de atribuir a tal acto os efeitos jurídicos previstos na lei, alegando assim que existe uma divergên-cia entre a sua declaração e a sua vontade psicológica. Ou seja, não há dúvida que a divergência existe ao nível pessoal, mas esta não é relevante para a determinação da validade do acto emitido, já que, sendo titular de um órgão, ao exercer a sua competência ele está a cumprir a lei – a dinamizar a função administrativa – em lugar de estar a satisfazer as suas próprias necessidades individuais em nome da autonomia privada.

Todavia, é facto que para o sistema jurídico a construção da vontade do titular do órgão não é um procedimento irrelevante; pelo contrário, como Ana Raquel Gonçalves monIz defende19:

18 O conceito de acto administrativo adoptado neste texto é aque-le defendido por Rogério soares, isto é, uma estatuição autoritária (uma decisão) emitida por um órgão da Administração no exercício da função administrativa para regular uma relação concreta e individual, produzin-do efeitos jurídicos externos, positivos ou negativos. Não existe unani-midade doutrinal sobre o conceito de acto administrativo. Por exemplo, para a Escola de Lisboa, sobretudo a doutrina de Sérvulo CorreIa, um acto que produz efeito negativo, i.e. um indeferimento, não é um acto administrativo. Para mais sobre esta posição doutrinal, leia Sérvulo Cor-reIa, «O incumprimento do dever de decidir», 23-27 (ponto 22).

19 Ana Raquel Gonçalves monIz, «A discricionariedade adminis-trativa: reflexões a partir da pluridimensionalidade da função administra-tiva», 599-651.

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

21

«porque a decisão é exteriorizada através de um acto praticado por uma pessoa física (ou um colectivo de pessoas físicas), o sistema contempla algumas exigências quanto à formação da vontade des-ses sujeitos» que pensam e querem.

Ora, se assim for, não será paradoxal afirmar, por um lado, que a vontade psicológica do titular do órgão é irrelevante para a va-lidade do acto emitido e, por outro, que o sistema contempla algumas exi-gências quanto à formação da vontade desses sujeitos? Não. Vejamos porquê.

Recordemos que, na emissão de um acto administrativo, o titular do órgão, mesmo no âmbito da discricionariedade20 que é o núcleo fundamental da função administrativa, não está a exercer uma liberdade arbitrária mas sim um liberdade condicionada e sem-pre vinculada pelos princípios jurídicos21. O titular do órgão não pode atribuir ao acto efeitos jurídicos fora da lei (em sentido amplo), prosseguir um fim diferente daquele que a lei prevê, violar os direi-tos fundamentais dos administrados para alcançar um interesse pri-vado, etc. Por isso, é importante averiguar se a vontade do titular do órgão objectivada e exteriorizada na decisão através da fundamentação (que é obrigatória) é uma vontade secundum legem22 imputável à pró-pria Administração, obedecendo ao fim estipulado pelo legislador e aos princípios jurídicos. É essa vontade dita normativa ou objectiva23 imputável à Administração Pública que interessa verdadeiramen-te para o problema da determinação da validade do acto. Assim, em síntese, podemos dizer que: 1) a vontade psicológica do titular

20 Para um aprofundamento do problema da discricionariedade enquanto espaço solene do núcleo central da função administrativa, veja Ana Raquel Gonçalves monIz, «A discricionariedade administrativa: refle-xões a partir da pluridimensionalidade da função administrativa».

21 O conceito de princípios jurídicos aqui adoptado é o de prin-cípios enquanto ius vigente. Para um estudo detalhado sobre a diferença entre princípios como ratio, intentio e ius vigente, leia Castanheira neves, Sumário de uma lição-síntese sobre «os princípios jurídicos como dimensão normativa do direito positivo» (a superação do positivismo normativista).

22 A identificação de uma vontade secundum legem e o telos da lei implica o trabalho da interpretação.

23 Portanto, o conceito da vontade normativa aqui mobilizado não deve confundir-se com o conceito adoptado pelo Marcello Caetano, que exprime a ideia de que «[s]ão as normas jurídicas que conferem a certos modos de conduta o carácter (que podem não possuir efectivamente) de manifestação de certa vontade», Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 424.

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

22

do órgão, em princípio, é juridicamente irrelevante; 2) desde que a vontade objectiva corresponda24 ao fim estipulado pelo legislador, não releva qualquer desvio da vontade psicológica25; 3) o desvio da vontade subjectiva é juridicamente relevante para a validade do acto apenas quando seja manifestado26 na decisão e cause um desvio da vontade objectiva do interesse tutelado pela lei27.

Estamos agora em condições de responder à questão «quais são para o legislador (na nossa interpretação) os elementos essen-ciais que, presumivelmente, estão em falta num caso da coacção?». Em regra, a coacção consiste numa situação em que o agente é forçado ilicitamente28 pelo destinatário do acto ou por terceiro a emi-tir um acto que ele próprio não tem a vontade subjectiva de praticar. É anormal uma pessoa formar psicologicamente de maneira sã a sua vontade quando está a sofrer uma ameaça. Por isso, podemos iden-tificar o elemento que falta ou se vicia normalmente numa coacção – a vontade psicológica do titular do órgão, que todavia não é elemento essencial, nem imediatamente relevante, de um acto administrativo.

Mas o que acontece à vontade normativa, que é um verdadei-ro elemento essencial do acto administrativo, num caso de coacção? Está em falta? Desvia-se do fim estipulado na lei? Ou permanece inafectada? Para esta pergunta, a nossa resposta é – depende. Não podemos ter uma resposta única e exaustiva. Perante diferentes cir-cunstâncias concretas, a resposta varia. Analisaremos separadamen-te os casos da coacção relativa e da coacção absoluta, e, por fim,

24 Não basta uma simples não incompatibilização.25 Defendendo a mesma posição, temos Ana Raquel Gonçalves

monIz, «Pode suceder que, não obstante o desvio da vontade subjectiva do agente, a decisão seja juridicamente irrepreensível: basta que, em ter-mos objectivos, se demonstre que aquela ainda corresponde ao interesse tutelado pela norma legal, ainda que não fosse essa a intenção psicológi-ca do titular do órgão», «A discricionariedade administrativa: reflexões a partir da pluridimensionalidade da função administrativa», p. 607.

26 Tal como Marcello Caetano afirma, «em rigor, só é vontade produtora de efeitos jurídicos a vontade manifestada.», Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 425.

27 Ainda que, nesta situação, o desvio da vontade psicológica só releve mediatamente. O que é imediatamente relevante é o desvio consequente da vontade normativa.

28 Não é coacção, por não ser ameaça ilícita mas sim exercício não abusivo do direito, v.g., a situação em que um cidadão diz ao agente: “vou fazer queixa se não emitir a autorização segundo o procedimento previsto na lei”.

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

23

abordaremos a especialidade das coacções por terceiro e por outro órgão administrativo.

2.1.3. Coacção relativa29

Para melhor revelar o inevitável casuísmo (mas controlado pelo próprio pensamento jurídico) na determinação da falta (ou não) dos elementos essenciais de um acto praticado sob coacção relativa, mobilizamos os seguintes casos práticos.

Caso 1): O Senhor António, sem tirar o curso de medicina nem frequentar a prova profissional necessária, quer ser médico. Para concretizar esse seu sonho, ele dirige-se à Ordem dos Médi-cos, ameaçando o bastonário da Ordem que se este não lhe emitir uma admissão (um acto administrativo) na Ordem, atribuindo-lhe a posição estatuária de médico, ele vai divulgar a um jornal a relação extraconjugal do bastonário. Temendo que esta divulgação arruíne o seu casamento, o bastonário emite a admissão.

Caso 2): Um dia, o Senhor Bernardo dirigiu-se à Câma-ra Municipal competente para requerer a emissão de autorização para construção de uma marquise. Tendo esperado por mais de três horas, Bernardo ficou muito impaciente. Não conseguindo tolerar mais a morosidade do serviço, dirigiu-se a um balcão que se en-contrava “temporariamente encerrado” e ameaçou o funcionário ali sentado com uma pistola, coagindo-o a dar-lhe a autorização pretendida imediatamente. Face a esta circunstância, o funcionário abriu de imediato o balcão, seguiu todos os procedimentos necessá-rios, cumpriu o fim da lei aplicável e emitiu a autorização requerida pelo coactor.

Ora, em ambos os casos, temos uma coacção relativa em que a formação da vontade psicológica do agente está viciada, ou seja, a vontade subjectiva do agente de emitir o acto administrativo reque-rido não é formada de maneira sã. No entanto, em relação à forma-ção da vontade normativa nessas decisões administrativas, estamos perante situações diferentes no Caso 1) e Caso 2).

No Caso 1), a vontade normativa, a vontade objectivada na decisão, desvia-se do fim estipulado pelo legislador (o vício de von-

29 Definição: veja supra, nota 13.

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

24

tade psicológica contamina a formação da vontade normativa) – o bastonário, ao emitir a admissão, não está a realizar o interesse tute-lado na lei. Pelo contrário, ele está a prosseguir um interesse privado, que é a não divulgação da sua relação extraconjugal. Por causa disso, o acto emitido é nulo. Contudo, é preciso notar que o elemento essencial em falta, que provoca a nulidade do acto, não é a vontade normativa – uma vez que, neste caso, a vontade normativa não está em falta, ela apenas se desvia do fim legal30. Portanto, em rigor, a causa da nulidade aqui é um des-vio de poder31 grave. Temos pois um caso de nulidade por natureza (preenchimento da cláusula geral de nulidade) e não de aparente nulidade por determinação legal (art. 133.º/2e, CPA), com a verifi-cação em concreto da falta do(s) elemento(s) essencia(is) legalmente presumida (na nossa compreensão, a vontade normativa32).

Já no Caso 2), como o funcionário na emissão da autorização seguiu todos os procedimentos legalmente exigidos e cumpriu o fim da lei aplicável, a vontade normativa objectivada no fim no acto emitido não falta nem se desvia do fim estipulado pelo legislador. Por outras palavras, a coacção aqui não é essencial. Consequentemente, o acto não deve ser declarado nulo com fundamento na falta da von-tade normativa imputável à Administração Pública33. Portanto, mes-mo que se trate aqui sem dúvida de um caso de acto praticado sob

30 A nosso ver, este desvio do fim legal é grave e evidente. Contu-do, isto não é suficiente para levar-nos a considerar que este vício é equi-parável a uma carência absoluta da vontade normativa. No máximo, só podemos aceitar que este é um vício equiparável a uma carência absoluta da realização da missão-obrigação de prossecução dos interesses públicos, que para nós também é um elemento essencial do acto administrativo conforme o art. 269.º/1, CRP.

31 Na sistematização de Rogério Soares, o desvio de poder é um vício na relação fim-conteúdo do acto, e não um vício de vontade.

32 Para nós, só a interpretação do art. 133.º/2e no sentido de que o elemento essencial que se presume carecido é vontade normativa impu-tável à Administração Pública nos permite concluir que o art. 133.º/2e é um fundamento autónomo da nulidade do acto. Para mais sobre esta nossa posição, veja infra.

33 Questão diferente é averiguar se o agente sob coacção aprovei-tou com mérito a margem de discricionariedade, cumprindo o princípio da boa administração. Aqui, trata-se de uma questão de mérito e não de validade. Por isso, para sancionar esta dimensão do acto, o regime aplicável será a revogação e não a anulação ou a declaração da nulidade [o tema da revogação não é alvo do estudo deste texto, para um aprofundamento des-te leia Pedro Gonçalves, «Revogação (do acto administrativo)», 303-325].

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

25

coacção, materialmente analisando, não se deve aplicar o art. 133.º/2e, CPA para declarar nula a autorização em causa. Isto porque, recor-demos, desde que a vontade objectiva corresponda ao fim estipulado pelo legis-lador, não interessa qualquer desvio da vontade psicológica (in casu, provocado pela coacção relativa)34, sem prejuízo de ser ainda possível declarar nulo o acto em causa através da aplicação do art. 133.º/2c, por se tratar de um acto cuja prática constitui crime (art. 154.º, Código Penal)3536.

34 A mesma solução é aplicada também aos casos em que esteja-mos perante um acto totalmente vinculado pela lei e o coactor de facto já reúna todos os requisitos legais. Como ao coactor seria emitido o acto mesmo que ele não praticasse a coação, o acto emitido sob coacção tem um conteúdo legal, ou seja, podemos extrair do acto emitido uma vontade normativa secundum legem imputável à Administração Pública.

35 Salientamos que esta forma de aplicação do art. 133.º/2c é dou-trinalmente discutível, uma vez que este artigo diz só serem nulos «os actos cujo objecto...constitua um crime». Há doutrina (mais formalista e conceitualista na nossa perspectiva) que advoga que, quando o legislador usa a palavra “objecto”, ele está a recorrer ao seu sentido rigorosamente técnico stricto sensu. Não concordamos com esta doutrina. Pensamos que tendo em conta a gravidade da prática de crime, a importância dos bens jurídicos fundamentais de dignidade penal e a coerência da política crimi-nal, temos de fazer uma interpretação extensiva deste artigo, englobando também o caso do acto cuja prática e motivação constitua uma prática de crime. Nesse sentido, Mário Esteves de olIveIra/ Pedro Gonçalves/Pacheco de amorIm, «serem nulos não apenas os actos cujo objecto (cujo conteúdo) constitua um crime, mas também aqueles cuja prática envolva a prática de um crime» e «...de qualquer maneira, o acto praticado sob coacção relativa envolve a prática de crime e por aí, em nosso critério, já será nulo...», Código do Procedimento Administrativo – Comentado, 645 e 647. Ora, recordando a nossa interpretação, defendemos que temos aqui uma pura nulidade por determinação legal cujo ratio legis consiste na concretização (coerente) da política criminal, porque não parece que o legislador sancio-na esses actos com nulidade em virtude da falta dos elementos essenciais (um acto cujo objecto ou prática envolva a prática de crime tem ainda um objecto, só que este objecto viola gravemente os valores fundamentais do ordenamento jurídico).

36 Para a doutrina de Mário Esteves de olIveIra/ Pedro Gonçal-ves/Pacheco de amorIm, num caso de coacção relativa (na terminologia dos autores, a coacção resistível), embora não possamos dizer que não existe qualquer acto administrativo (inexistência do acto administrativo), o acto deve ser considerado nulo (como indica a lei) uma vez que a vontade (normativa) do acto assim formado não é vontade do titular do órgão mas do coactor (cfr. Idem, Código do Procedimento Administrativo – Comentado, 647). Não concordamos com esta fundamentação da nulidade do acto praticado sob coacção relativa, porque ainda que não possamos negar que o procedimento da formação da vontade normativa do titular do órgão foi perturbado pela conduta do coactor, a verdade é que a liberdade de agir do agente não foi totalmente excluída numa coacção relativa. Ele pode,

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

26

2.1.4. Coacção absoluta37

Na análise desta modalidade, vamos diferenciar duas situa-ções: a emissão de um acto totalmente vinculado pela lei, e a emis-são de um acto que tem subjacente o uso de poder discricionário38.

2.1.4.1. Acto totalmente vinculado pela lei

Comecemos por um caso prático. Caso 3): Na sequência de ser injectado com certa neurotoxina,

o titular do órgão X perdeu completamente a capacidade de contro-lar autonomamente o seu corpo. Ele ficou totalmente sob o contro-lo de Carlos, sem qualquer possibilidade de resistir. Aproveitando--se desta situação, Carlos controlou o corpo do agente de modo a deferir a atribuição de uma bolsa (suponhamos que este acto é totalmente vinculado pela lei) para si próprio, sendo que ele já reúne, de facto, todos os requisitos legalmente exigidos para a atribuição da bolsa; ou seja, mesmo que Carlos não usasse este meio, ser-lhe-ia atribuída igualmente a bolsa requerida.

Neste caso, não há dúvida que falta a vontade psicológica do titular do órgão. Contudo, prima facie, parece que a vontade objecti-vada na decisão não falta nem se afasta do fim estipulado na lei dado que, de qualquer maneira, a bolsa já seria atribuída a Carlos, uma vez que ele reunia todos os requisitos exigidos pela lei. Todavia, de facto, essa aparente vontade normativa (mais rigorosamente, uma aparen-te vontade normativa secundum legem) não é a vontade normativa do titular do órgão, uma vontade imputável à Administração Pública (uma vontade orgânica), mas sim completamente a vontade do Carlos, o coactor. Portanto, falta aqui o elemento essencial presumido no art. 133.º/2; e, como tal, o acto é nulo.

pelo menos numa perspectiva puramente teórica, escolher entre sofrer ou fazer o que o coactor pretende. Se o agente escolher a última opção, já não podemos dizer que não conseguimos extrair do acto uma mínima vontade do próprio titular do órgão (da emissão do acto), mesmo que o acto reflic-ta com certeza a vontade manifestada da maneira ilícita do coactor, que, porventura, justifica a natureza patológica do acto.

37 Definição: veja supra, nota 13.38 Sobre os indícios da existência da margem de discricionariedade ad-

ministrativa, leia Vieira de andrade, Lições de Direito Administrativo, 47-49.

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

27

2.1.4.1.1. Apreciação doutrinal da natureza deste acto

É certo que, de acordo com a posição que afirmamos, este tipo de acto é nulo nestas circunstâncias; ou, mais precisamente, nu-lo-inexistente nas palavras de Vieira de andrade39. No entanto, isto não significa que não possamos fazer uma reapreciação dogmática da bondade desta opção legislativa. Administrativistas como Mário Esteves de olIveIra/ Pedro Gonçalves/ Pacheco de amorIm40 já sugeriam que, no caso da coacção absoluta, nem sequer existe acto administrativo. Vieira de andrade41 também afirmou que se trata de uma situação de inexistência do acto administrativo42 quando não há decisão autoritária formalmente imputável à Administração Pública.

Concordamos com esta bem sustentada posição doutrinal; porém, tratando-se aqui de um acto totalmente vinculado pela lei e reunindo o “requerente”, de facto, todos os requisitos legais para a emissão do acto, achamos que não podemos deixar de aprofundar um pouco mais este problema numa perspectiva prática: em rigor, como dissemos, mesmo que o coactor não praticasse a coacção absoluta, ser-lhe-ia atribuída igualmente a bolsa requerida. Por isso, pensan-do pragmaticamente, ainda que este acto seja declarado nulo – ou seja, considerando que não existe desde o início qualquer acto ad-ministrativo – mais tarde, quando Carlos voltar a requerer, desta vez licitamente, a atribuição da bolsa, ele vai conseguir obtê-la desde que continue a reunir os requisitos exigidos43. Aliás, a este acto será atribuída eficácia ex tunc, uma vez que estamos perante um acto to-talmente vinculado pela lei e o requerente-coactor já tem reunidos todos os requisitos legais num momento anterior à data a partir da qual o acto produz efeito – situação a que a doutrina chama retro-

39 Para mais sobre esta construção doutrinal, consulte Vieira de an-drade, «A nulidade administrativa, essa desconhecida», 336 e s., ponto 1.3.

40 Mário Esteves de olIveIra/ Pedro Gonçalves/Pacheco de amorIm, Código do Procedimento Administrativo – Comentado, 647.

41 Vieira de andrade, «A nulidade administrativa, essa desco-nhecida», 337.

42 Recorde-se que a inexistência do acto administrativo não equi-vale ao acto administrativo inexistente.

43 Salvo quando a Administração Pública tenha no caso discricio-nariedade quanto ao momento de emissão do acto.

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

28

datação44. Assim sendo, parece que na ordem prática, perante este tipo de caso, a coacção absoluta só pode ser sancionada efectivamente no Direito Penal45.

2.1.4.2. Acto discricionário

Iniciamos também com um caso prático. Caso 4): Na sequência de ser injectado com certa neurotoxina,

o titular do órgão X perdeu completamente a capacidade de contro-lar autonomamente o seu corpo. Ele ficou totalmente sob o contro-lo de Carlos, sem qualquer possibilidade de resistir. Aproveitando-se desta situação, Carlos controlou o corpo do agente de modo a que este deferisse uma autorização para construção de prédio para si próprio. Na emissão desta autorização, o titular do órgão, segundo a lei, deve gozar de uma margem de discricionariedade.

Neste caso, obviamente, também falta aqui a vontade psi-cológica do titular do órgão. Todavia, diferentemente do Caso 3), desta vez não existe sequer uma aparência de vontade normativa, dado que o procedimento de formação da vontade normativa neste caso envolve necessariamente o uso do poder discricionário, que é um espaço reservado para a função administrativa à luz do princípio constitucional da separação de poderes. Ninguém e nenhum outro poder do Estado tem a competência de substituir o juízo de mérito e oportunidade próprio da Administração Pública. Uma vez que aqui o juízo de mérito é feito pelo coactor e não pelo titular do órgão, a

44 Sobre a diferença entre retrodatação, retrotracção, retroacti-vidade e retrospectividade, veja, Vieira de andrade, Lições de Direito Administrativo, 156 e Ana Raquel Gonçalves monIz, Casos Práticos Direito Administrativo, 248-250.

45 Afonso QueIró já tinha salientado este problema prático quando no seu texto publicado na Revista de Legislação e de Jurisprudência, 3751, 302-303, dizia que «a retroactividade dos efeitos do novo acto deixaria sem efectiva sanção jurídica a actuação ilegal da Administração...», «ao repetir o acto...que inicialmente praticou com vício... a Administração dá... nova vida ao acto que o tribunal anulou». (Nota: este texto de afonso QueIró não trata exactamente o nosso tema em apreço. Pelo contrário, analisa-se o problema do vício de forma do acto administrativo, do qual emerge o problema análogo da atribuição do efeito ex tunc ao acto anulado (ou declarado nulo). Para um estudo mais profundo do problema do vício de forma do acto administrativo, consulte Margarida Cortez, «O crepúsculo da invalidade formal?», 32-43).

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

29

vontade normativa não se forma (nem a sua aparência). Faltando o elemento essencial presumido na lei (in casu, art. 133.º/2e), o acto é nulo.

2.1.4.2.1. Apreciação doutrinal da natureza do acto

Igualmente, como não há aqui uma vontade normativa impu-tável à Administração Pública, para a doutrina a situação será mais correctamente considerada como inexistência de acto administrati-vo – e não de existência de acto administrativo nulo. No entanto, em comparação com o Caso 3), no Caso 4) não temos de enfrentar o problema prático da efectividade da sanção da nulidade no Direito Administrativo porque, em primeiro lugar, temos na mão um acto no qual o titular do órgão tem – e deve ter – poder discricionário. Por isso, já não podemos garantir que quando o “requerente” voltar a requerer, através de meio lícito, a emissão do mesmo acto depois da declaração da nulidade do acto anterior, ele conseguirá sempre obter um acto com o mesmo conteúdo. Em segundo lugar, como não se trata de um acto totalmente vinculado pela lei, já não há re-trodatação.

2.1.5. Coacção por terceiro

Vejamos os seguintes casos. Caso 5) Um dia, Maria, querendo “ajudar” o seu amigo Paulo

a tornar-se advogado, dirigiu-se à Ordem dos Advogados, ameaçan-do o bastonário de morte com uma pistola se aquele não emitisse uma admissão na Ordem para Paulo. Tendo medo, o bastonário emitiu o acto. Paulo desconhecia a situação de coação, e não tinha maneira de a conhecer.

Caso 6) Estando com a sua liberdade de acção totalmente excluí-da, Pedro, titular do órgão X, foi coagido por Tiago a emitir um deferi-mento de autorização da abertura de um casino ao requerente Fernan-do. Fernando não conhecia, nem tinha forma de conhecer a coacção.

No Caso 5), tal como no Caso 1) e no Caso 2), temos um caso da coacção relativa. Segundo o raciocínio exposto supra, a admis-

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

30

são emitida é nula mesmo que não o seja directamente por causa da coacção, ou melhor, por causa da falta do elemento essencial do acto presumido no art. 133.º/2e, i.e. a vontade normativa imputá-vel à Administração Pública. Como se recorda, conforme a nossa interpretação, o fundamento autónomo e possível para a nulidade do acto em causa será o desvio do poder e/ou prática de crime con-soante as circunstâncias46.

Contudo, não podemos ficar por aqui na tarefa da determina-ção da validade do acto, uma vez que entre uma coacção “simples” e uma coacção por terceiro, não existe analogia ao nível material – como a coacção por terceiro não é cometida pelo próprio destina-tário do acto mas por um terceiro, consideramos que não podemos deixar de ponderar os valores da confiança legítima do administra-do-destinatário e da segurança jurídica que são constitucionalmente protegidos num Estado do Direito. Quer dizer, apreciando material-mente o regime jurídico da validade do acto administrativo, não po-demos apenas considerar o valor (constitucionalmente protegido) da livre manifestação de vontade do Poder47 e aplicar cegamente a sanção de nulidade a um acto praticado sob coacção por terceiro. Temos de realizar um juízo material e concreto dos valores em con-flito: se neste caso, o destinatário do acto, Paulo, 1) reúne todos os requisitos legais rigorosamente determinados e provavelmente tam-bém os requisitos legais com conceitos indeterminados (se houver) necessários48 para a obtenção daquela admissão e 2) está de boa-fé (i.e. desconhecia ou não era suposto ter conhecimento da coacção), a sua confiança na validade e normalidade do acto é legítima e deve ser devidamente valorizada, merecendo uma tutela proporcional (princípio da proporcionalidade).

Assim, numa apreciação puramente doutrinal, se se tratar de um acto totalmente vinculado pela lei e tiver um conteúdo legal49, no nos-

46 Explicação completa, veja supra, p. 20-23.47 Expressão citada de Mário Esteves de olIveIra/ Pedro Gonçal-

ves/Pacheco de amorIm, Código do Procedimento Administrativo – Comentado, 647.48 “Provavelmente” porque, para a doutrina actual, os conceitos in-

determinados na hipótese são fonte da discricionariedade da Administração. 49 Quando se trata de um acto totalmente vinculado pela lei, caso o

destinatário já reúna todos os requisitos legais exigidos, em princípio, é raro termos um acto administrativo com conteúdo ilegal ou antijurídico, salvo se a lei que preceda à emissão do acto for ela própria uma lei antijurídica.

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

31

so entender, o acto viciado deve ser excepcionalmente convalidado ou mesmo considerado válido ab initio. Isto porque, em primeiro lugar, ainda que o acto seja declarado nulo, será (ou melhor, deverá ser) emitido novamente quando o destinatário do acto anterior vol-tar a pedi-lo – por isso, praticamente dito, a livre manifestação de vontade do Poder fica como se fosse não violada (mas claro, esses tratamentos excepcionais têm como pressuposto que o destinatário tenha feito devidamente o respectivo requerimento no procedimen-to do acto praticado sob coacção do terceiro, salvo se se tratar de um procedimento de iniciativa oficial; e a Administração Pública não tenha no caso discricionariedade quanto ao quando!). Em se-gundo lugar, não é justo, proporcional nem materialmente razoável para um destinatário de boa-fé se o acto emitido tiver um fim e con-teúdo legal mas for declarado nulo meramente em virtude de uma coacção praticada por terceiro.

Além do mais, mesmo que estejamos perante um acto discri-cionário em que à Administração é atribuída uma maior margem da manifestação de vontade, achamos desproporcional a aplicação no caso de uma sanção tão grave como a de nulidade, sobretudo quando o regime actual de nulidade é tão radical. Para salvaguardar esta maior margem da manifestação de vontade, mas ao mesmo tempo não preterir excessivamente a confiança legítima de destinatário, propo-mos a sanção de anulabilidade50.

50 Casos especiais são aqueles em que, ao praticar um acto discricio-nário, mesmo que seja coagido moralmente, o titular do órgão seguiu todos os procedimentos obrigatórios (ex. instrução, audiência...), teve em conta o fim estipulado na lei e escolheu a solução melhor para o interesse público, tendo aproveitado com mérito a aludida maior margem da manifestação de vontade. Como resolvê-los? O acto assim emitido tem um conteúdo legal e reflecte uma vontade normativa secundum legem (como no caso do acto totalmente vin-culado pela lei praticado sob coacção). Entretanto, nele o titular do órgão aproveitou e aproveitou com mérito (mesmo sob coacção) a margem de discricionariedade. Consequentemente, em concreto, aquela maior margem da livre manifestação de vontade já foi salvaguarda na decisão pela pró-pria Administração e parece que possamos por isso recorrer à solução da convalidação ou a consideração ab initio da validade do acto... Todavia, não nos podemos esquecer de que no mundo prático, é muito difícil justificar se o titular do órgão, ao emitir o acto sob coacção, realizou e realizou com mérito a margem de discricionariedade. Além do mais, a questão do mérito de acto não é uma questão justiciável, o tribunal não tem a com-petência de penetrar neste horizonte de mérito a fim de diferenciar em concreto o grau da ofensa daquela maior margem da livre manifestação de vontade do Poder emergente de discricionariedade; ou seja, o tribu-

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

32

No caso 6), temos uma coacção absoluta. Segundo a posi-ção afirmada, o acto é nulo por faltar a vontade normativa (caso de acto discricionário) ou por faltar uma vontade normativa imputável a Administração Pública ainda que tenhamos uma aparência da von-tade normativa (caso de acto totalmente vinculado pela lei). Todavia, como no caso anterior, não podemos ficar por aqui. Tratando-se de uma coacção por terceiro, temos de fazer um adequado juízo material dos valores envolvidos (a livre manifestação de vontade do Poder versus a confiança legítima do destinatário do acto). Em com-paração com a coacção relativa, na coacção absoluta, a ofensa do va-lor da livre manifestação de vontade do Poder é mais violenta, o que

nal não pode apreciar a questão de saber se a Administração, sob coac-ção, já salvaguardou, salvaguardou 30% ou não salvaguardou a sua maior margem da livre manifestação de vontade (questão esta que se relaciona intimamente como a questão de mérito do acto). Portanto, defendemos ainda a sanção da anulabilidade para este caso delicado.

Então, se esta questão for levada ao tribunal e for depois anu-lado o acto, não provoca assim uma injustiça concreta para um destina-tário de boa-fé? Sim, mas há ainda possibilidades incidentais de corrigir esta injustiça devida ao limite da competência dos tribunais – pensa-se, por exemplo, no instituto da inexecução da sentença da anulação de actos administrativos com causas legítimas previsto no CPTA: segundo o art. 175.º, CPTA com remissão para art. 163.º, CPTA, a Administração pode, depois de ter proferido a sentença de anulação, pedir a inexecução desta sentença com invocação da impossibilidade absoluta ou de que a execução provoca grave prejuízo para o interesse público. Na nossa perspectiva, ainda que na situação em apreço a não anulação do acto consista em pri-meiro lugar na satisfação de interesses próprios do destinatário de boa--fé, isto não significa que a mesma não possa implicar simultaneamente a realização de interesses públicos importantes tal como a credibilidade da Administração, a segurança jurídica e mesmo a justiça das actuações do Estado. Por isso, a Administração tem toda a legitimidade de recorrer a este instituto de forma a corrigir a injustiça indesejavelmente provocada. Só que não nos podemos esquecer de que o art. 163.º /1, CPTA inclui um conceito indeterminado «grave prejuízo» que implica necessariamente um juízo jurisdicional do pedido da Administração da inexecução à luz do princípio da proporcionalidade. Portanto, se este pedido não passar o crivo de proporcionalidade, a Administração já tem de executar a senten-ça segundo o art. 158.º, CPTA «obrigatoriedade das decisões judiciais». Todavia, nesta hipótese, mesmo que a confiança jurídica de destinatário de boa-fé se mantenha prejudicada, a injustiça material fica atenuada ou mesmo eliminada porque, ao não permitir a não inexecução, o tribunal deve já compatibilizar a complexidade dos valores envolvidos no caso à luz do princípio da proporcionalidade. Isto salvo se cometer um erro judi-ciário, que é fonte da responsabilidade civil extracontratual do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional (art. 13.º da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro).

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

33

nos obriga a reestruturar o nosso juízo de valores realizado quanto à coacção relativa: em relação a um acto totalmente vinculado pela lei, para compatibilizar os valores51, achamos que já não é materialmen-te defensável a solução da convalidação ou a consideração ab initio da validade do acto, sob pena de valorizar desproporcionalmente a confiança legítima de destinatário. No entanto, numa perspectiva mais pragmática, reparamos que: mesmo que o acto seja declarado nulo, ele será emitido novamente quando o destinatário do acto an-terior voltar a pedi-lo, salvo se a Administração tiver discricionarie-dade quanto ao momento da prática do acto. Por isso, parece não haver razão prática para declarar nulo o acto.

Como se resolve, então, este problema de praticabilidade sem restringir desproporcionalmente o valor da livre manifestação de vontade do Poder? Não é fácil arranjar uma resposta segura. Para isso, sugerimos o aproveitamento do acto nulo52. O aproveitamen-to significa uma tolerância da permanência do acto nulo na ordem jurídica sem se esquecer a sua invalidade – é por isso que consideramos a solução do aproveitamento de acto um tratamento mais atendível ao valor da livre manifestação de vontade do Poder do que a con-validação e a consideração ab initio da validade do acto. Será assim se o acto for nulo. No entanto, não se esquece que, para a doutrina, um acto a que falte a vontade normativa imputável à Administração Pública não é acto! Se não existir um acto administrativo, não podemos logicamente resol-ver o problema através do aproveitamento do acto, que pressupõe precisamente a existência de um acto! Como se resolve este proble-ma hipotético? Propomos uma solução relativamente conservadora, que é a da reabertura automática do correspondente procedimento administrativo sem necessidade de apresentação do novo requeri-mento (um aproveitamento de requerimento), e porventura tam-bém um aproveitamento de todos os procedimentos não viciados

51 Recorde-se que só há confiança legítima (da normalidade do acto) que se merece da tutela especial quando o destinatário 1) reúne todos os requisitos legais bem determinados e possivelmente também os requi-sitos legais com conceitos indeterminados necessários para a emissão do acto e 2) está da boa-fé.

52 Claro, não vamos aproveitar se o destinatário não tiver feito devidamente o respectivo requerimento na emissão do acto praticado sob coacção do terceiro.

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

34

pela coacção (por exemplo, a instrução), com a atribuição da eficácia ex tunc ao acto em nome da retrodatação53.

Ora, se o acto em causa for discricionário, qual será a solução? Na coacção relativa, sugerimos a anulabilidade como uma sanção adequada para compatibilizar os valores em conflito. Mas, tal como numa coacção absoluta, temos de valorizar ou tutelar ainda mais o valor da livre manifestação de vontade do Poder que sofre uma violação mais chocante, e precisamos de uma sanção mais gravosa. Esta será a nulidade com o regime mais razoável e menos radical proposto por Vieira de andrade 5455. Não é possível fazer aqui o aproveita-mento do acto nulo uma vez que a Administração deve ter oportu-nidade de exercer o seu poder discricionário, concretizando a auto-nomia da função administrativa – o que pressupõe necessariamente um novo procedimento administrativo. A única coisa que podemos aproveitar é o requerimento antigo do destinatário de boa-fé e o procedimento não viciado.56

2.1.5.1. Actos desfavoráveis

Finalmente, importa tomar nota de que a análise realizada an-teriormente tem como prius actos favoráveis a destinatário e actos constitutivos de direitos ou interesses legalmente protegidos. Então,

53 Pensávamos também numa resolução arrojada mas acabámos por não a defender por ser excessivamente conceitualista, complicar des-necessariamente as coisas e subavaliar a gravidade da coacção absoluta. Esta resolução consiste numa ficção da existência do acto para que depois possamos aproveitar este acto fictitio nulo.

54 Vieira de andrade, «A nulidade administrativa, essa desconhecida», 340 e s..

55 Recorde-se que para a doutrina, em rigor, não há aqui qualquer acto administrativo.

56 É importante salientar que na análise construída, repetimos por várias vezes (mesmo que não seja directamente) que o juízo de valor reali-zado tem como pressuposto que o acto emitido sob a coacção por terceiro tenha um conteúdo legal uma vez que se o acto tiver um conteúdo ilegal, v.g. por violar o conteúdo essencial de um direito fundamental, já não podemos adoptar as soluções propostas. Isto porque entraram em jogo mais valores materiais que se precisam de uma tutela devida que por seu torno implica uma inevitável restrição do grau da satisfação do valor da confiança legítima de destinatário de boa-fé, levando-nos a re-estruturar o nosso juízo de valores – de que até pode resultar a re-adoptação do regime original da coacção simples.

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

35

se o acto for desfavorável (ou menos favorável) aos seus destina-tários de boa-fé (quem desconhecia e não era suposto ter conhe-cimento da coacção), aplicar-se-á ainda o tratamento excepcional proposto?

Analisemos: dado que um acto desfavorável tem uma influên-cia negativa para a esfera jurídica do seu destinatário, enquanto que um acto favorável, pelo contrário, implica uma alteração positiva; iniludivelmente, temos de fazer uma diferenciação na ponderação dos interesses e valores envolvidos. Se o conteúdo desfavorável for antijurídico, não podemos expectar juridicamente que o destinatário deva colocar confiança nele; ao invés, o destinatário tem interesse legítimo, juridicamente tutelável pelo princípio da legalidade admi-nistrativa, na retirada do acto da ordem jurídica. Por isso, já não temos necessidade de moderar o regime geral de coacção simples a fim de equilibrar o confronto entre o valor da livre manifestação de vontade do Poder e o valor da confiança legítima57 – estes dois valores apontam para a mesma sanção: a nulidade (recorde-se que, para nós, a causa autónoma desta nulidade será diferente consoante a natureza da coacção).

Todavia, diferentemente de uma coacção simples, numa coac-ção por terceiro na sequência da qual foi emitido um acto cujo con-teúdo desfavorável é ilegal, o destinatário de boa-fé é uma vítima cuja posição jurídica é afectada indirectamente pela coacção (entre a coacção e a emissão do acto desfavorável tem um nexo da causalida-de quase não inegável) e precisa de protecção. Contudo, esta protec-ção não pode decorrer da responsabilidade civil extracontratual do Estado no exercício da função administrativa, porque mesmo que o acto desfavorável emitido tenha um conteúdo antijurídico, e por isso segundo o art. 9.º/1 da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro (altera-da pela Lei nº 31/2008, de 17 de Julho)58 seja uma actuação ilícita, o titular do órgão não tem culpa na prática deste acto ilícito porque ele

57 Que mesmo não existe porque, segundo a Jurisprudência, um dos requisitos da existência da confiança legítima tutelável é a afectação de expectativas em sentido desfavorável. A provável retirada de um acto desfavorável do ordenamento jurídico implica pelo contrário influência favorável para a esfera jurídica do destinatário dele.

58 Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas. Para um estudo profundo deste regime, consulte Carlos Ca-dIlha, Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

36

foi coagido no momento da decisão. Consequentemente, segundo o art. 7.º da Lei, não há responsabilidade civil extracontratual do Estado59. Portanto, para proteger a esfera jurídica do destinatário através do Direito Administrativo, sugerimos outro meio, que se traduz na obrigação de a Administração reconstituir a situação afectada e no aproveitamento do requerimento antigo e do procedimento não viciado pela coacção. Soma-se ainda a obrigação de a Administração atribuir eficácia ex tunc ao novo acto se este tiver um conteúdo favorável ou mais favorável do que o acto nulo (até à data em que o destinatário já reuniu todos os requisitos legais para a emissão do acto, se se tra-tar de um acto totalmente vinculado pela lei; e até à data da emissão do acto nulo, se se tratar de um acto discricionário60).

Ora, e se o conteúdo desfavorável do acto for legal? As so-luções serão as mesmas que adoptámos no caso de acto favorável, ainda que a natureza dos actos seja diferente e os valores em jogo não sejam totalmente iguais. Isto porque em primeiro lugar, o desti-natário de boa-fé já não tem o interesse legítimo, tutelado pelo princípio da legalidade, na retirada do acto do ordenamento jurídico uma vez que aqui o conteúdo do acto é legal. Em segundo lugar, o valor da segurança jurídica (reforçado pelo conteúdo legal do acto) aponta para a estabilidade, pelo menos formal, do acto na ordem jurídica. Se o acto for totalmente vinculado pela lei, o valor da economia pro-cedimental contribui também para a manutenção do acto – mesmo que o acto seja declarado nulo e o destinatário volte a fazer novo requerimento (ou haja iniciativa oficiosa), o novo acto terá o mesmo conteúdo, salvo se o destinatário tiver novas condições que possam

59 Sem prejuízo de que o destinatário pode pedir indemnização ao coactor através do art. 483.º, CC se ele conseguir provar dano e nexo da causalidade entre o dano e a coacção [os outros requisitos já foram preen-chidos porque a) a actuação do coactor é ilícita; b) ele tem culpa].

60 A data em que, se não ocorresse a coacção e o acto praticado por causa disso não tivesse um conteúdo ilegal, provavelmente, o destina-tário de boa-fé já teria obtido o acto com conteúdo legal favorável ou mais favorável. Por isso, se este conteúdo favorável do novo acto derivar exclu-sivamente de um facto que não foi levado ao conhecimento da Adminis-tração Pública no momento da prática do acto anterior, a Administração já não é nem deve ser obrigada a atribuir eficácia ex tunc ao novo acto, uma vez que já não existe um nexo da causalidade possível entre a coacção por terceiro e o conteúdo mais desfavorável do acto nulo.

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

37

influenciar o conteúdo do acto (mas isto implica já necessariamen-te um novo procedimento independentemente de o acto ter sido declarado nulo ou mantido). Portanto, compatibilizando o valor da livre manifestação de vontade do Poder (cuja ofensa num caso de acto totalmente vinculado pela lei não será muito chocante) com os valores da segurança jurídica e economia procedimental, advogamos as mesmas soluções propostas para o caso do acto favorável, i.e., a convalidação ou a consideração ab initio da validade do acto para o caso de coacção relativa e o aproveitamento do acto nulo para a coacção absoluta.

Em relação ao acto discricionário, como existe uma maior margem de livre manifestação de vontade do Poder, e a necessidade da plena realização da autonomia da função administrativa prevalece sobre a economia procedimental e a segurança jurídica, não pode-mos recorrer às soluções propostas para o caso do acto totalmente vinculado pela lei. Temos de reestruturar o nosso juízo dos valores, principalmente entre o valor da livre manifestação de vontade e o da segurança jurídica, o que nos leva a propor as mesmas soluções que defendemos no caso de acto favorável com conteúdo legal, que é a anulabilidade para o caso de coacção relativa e a nulidade para a coacção absoluta.

2.1.5.2. Actos com efeitos duplos praticado sob coacção de terceiro (breve consideração)

Não podemos deixar de considerar a especialidade dos actos administrativos com efeitos duplos, que são actos que produzem efeitos jurídicos “ao mesmo tempo, mas de forma diferente” para o destinatário do acto e terceiros. De acordo com a doutrina, em re-gra, no caso de afectação da estabilidade do acto, vale para este tipo de actos o princípio da prevalência da posição de destinatário. Por isso, em princípio, mesmo que estejamos perante um acto com efei-tos duplos, aplicamos o regime construído supra que tem como ob-jectivo directo a tutela da posição jurídica de destinatário de boa-fé.

A única excepção que pode nos levar a realizar novo juízo de valores é a situação em que a lei estabelece a favor de terceiros uma tutela especial. Isto acontece quando tenham sido os tercei-

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

38

ros (não o terceiro-coactor), nas palavras de Pedro Gonçalves61: «a promover a prática do acto desfavorável para o destinatário, caso em que pode dizer-se que esse acto (que por eles foi provocado) fundou a seu favor um interesse legalmente protegido...»

Neste caso de acto com efeito desfavorável para o destinatá-rio mas efeito favorável para terceiros (não coactores), temos pois de considerar os interesses legítimos legalmente protegidos de ter-ceiros na manutenção de acto quando determinarmos a validade do acto em causa – isto implica uma tarefa complicada de compatibi-lização dos diferentes interesses e valores em causa cujo resultado, na nossa perspectiva, apenas pode ser determinado em cada caso concreto, tendo sempre como critério orientador o raciocínio intro-duzimos ao longo deste trabalho.

2.1.5.3. Problema incidental da tutela da confiança legítima do destinatário de boa-fé do acto praticado sob coacção por terceiro ao nível transcendente do regime da de-terminação da validade do acto

Na parte abordada, partilhamos a nossa opinião quanto às possibilidades e necessidades de uma tutela legislativa específica (através da modificação legislativa) da confiança legítima de destina-tário do acto praticado sob coacção por terceiro quando aquele está de boa-fé. Ora, se esta tutela é ignorada pelo legislador (como o que acontece na actualidade e também no projecto da revisão de 2013), será possível recorrer a outros meios vigentes no ordenamento ju-rídico actual para corrigir esta injustiça provocada pela legislação formalista e simplista?

Mesmo que a nossa opinião fosse adoptada pelo legislador, não podemos deixar de pensar no problema da necessidade da tute-la da confiança legítima de destinatário de boa-fé ao nível transcendente do regime da determinação da validade do acto – repara-se que ainda que tentemos o melhor possível para salvaguardar o valor da confiança legítima de destinatário de boa-fé, no caso de acto discricionário praticado sob coacção absoluta por terceiro, não podemos prever outra sanção senão a nulidade. Isto uma vez que, além do valor da

61 Pedro Gonçalves, «Revogação (do acto administrativo)», 320.

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

39

confiança legítima, temos de cuidar do valor (também fundamental) da livre manifestação de vontade do Poder (no acto discricionário, a margem da livre manifestação é ainda maior e pois necessita da maior tutela), para que obtenhamos um equilíbrio material entre os valores fundamentais em causa – o que implica inevitavelmente uma restrição na satisfação do valor da confiança legítima.

Esta necessidade a tutela da confiança legítima do destinatário de boa-fé “ao nível transcendente do regime da determinação da validade do acto” é facilmente detectada se adoptarmos um pensa-mento jurídico-pragmático:

Imaginemos que o órgão X, sob a coacção absoluta por A, emitiu um deferimento a B, requerente de autorização da construção de prédio (um acto discricionário). B reunia todos os requisitos legais rigorosamente determinados e provavelmente também os requisitos legais com conceitos indeterminados necessários para a emissão do acto. Ele desconhecia esta coacção nem era suposto sabê-la.

Conforme a posição afirmada, a autorização é nula e, segundo o art. 134.º/1, CPA, não produz qualquer efeito desde o início. Por isso, mesmo que B já tenha construído metade do prédio, ele tem de destruí-lo. Isso não será chocante para a confiança legítima de B e injusto? Sim, mas como se corrige esta injustiça?

Em primeiro lugar, ao nível do regime da nulidade do acto administrativo, podemos recorrer ao art. 134.º/3, CPA que prevê «...a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito» para tutelar a confiança legítima e a boa-fé do destinatário62. No entanto, aplicando este artigo para atribuir efeitos putativos ao acto nulo, dis-pensando assim o destinatário de boa-fé da obrigação de destruição da parte construída, isto significa que o destinatário pode continuar a construir o prédio? Ou que ele tem de pedir/esperar por um novo acto (recorde-se que na nossa opinião, pode haver neste caso apro-veitamento do antigo pedido e do procedimento não viciado)? A resposta deve ser a última, que salvaguarde a autonomia da função administrativa (na hipótese, temos um acto discricionário). Por isso,

62 Para mais sobre esta moderação legal do regime da nulidade e as correspondentes críticas doutrinais, veja Vieira de andrade, «A nulidade administrativa, essa desconhecida», 342 (A principal morigeração...) e s..

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

40

a Administração pode voltar a praticar um mesmo acto; ou, se de-pois achar que a emissão da autorização (com o mesmo conteúdo do acto nulo) não é conveniente para o interesse público, pode e deve decidir emitir um indeferimento ou um deferimento com con-teúdo modificado63 – de qualquer maneira, se a nova decisão tiver um conteúdo desfavorável ou menos favorável, o investimento do destinatário de boa-fé fica afectado.

Ora, ficando prejudicado por causa de uma decisão adminis-trativa, o destinatário pode pedir ao Estado uma indemnização, re-clamando a responsabilidade civil extracontratual da Administração por dano decorrentes do exercício da função administrativa? Não, porque para sujeitar o Estado a esta responsabilidade, tem de preen-cher cumulativamente os requisitos previstos no art. 7.º ou 8.º da Lei nº67/2007, de 31 de Dezembro que, entre outros, incluem a ilicitude (definição legal: art 9.º da Lei) e a culpa (definição legal: art. 10.º da Lei). Todavia, na emissão deste acto administrativo, a Administração não tem culpa nem se comporta ilicitamente. Pelo contrário, a Administração está a licitamente realizar a sua missão constitucional da prossecução de interesses públicos.

Então, poderá o destinatário recorrer ao art. 16.º da Lei para pedir uma indemnização pelo sacrifício, cujos requisitos de aplica-ção prescindem da ilicitude e culpa? De acordo com este artigo, são requisitos da sua aplicação 1) uma intervenção do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, 2) uma intervenção por razões de interesse público, 3) que esta intervenção imponha encargos ou cause danos especiais e anormais e 4) nexo de causalidade entre o dano e a intervenção. Neste caso de prejuízo causado por um acto da Administração Pública, sem dúvidas que se preenchem os pri-meiros dois requisitos, visto que o acto que causa dano é um acto administrativo (logo uma intervenção da Administração Pública) que tenta prosseguir da melhor forma o interesse público. O quarto

63 Contudo, defendemos que o juízo de mérito deste novo proce-dimento administrativo deve ser feito como se fosse feito no procedimento anterior. Ou seja, este juízo não pode ser um juízo de mérito de hoje porque o que a Administração está a fazer é repetir o que não teve oportunidade de fazer no passado. Se a Administração achar que a emissão daquele acto foi conveniente no passado mas não é conveniente hoje, ainda tem de emiti-lo, sem prejuízo da possibilidade de emitir simultaneamente um acto de revo-gação de acordo com o correspondente regime normativo previsto no CPA.

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

41

requisito também é preenchido, dado que é directamente por causa deste novo acto administrativo menos favorável que a esfera jurídica patrimonial do destinatário de boa-fé fica afectada negativamente.

Portanto, o ponto-chave da determinação de aplicabilidade deste art. 16.º no caso reside-se no terceiro requisito – especialida-de e anormalidade do dano6465. Na nossa perspectiva, trata-se aqui

64 Encontramos a sua definição legal no art. 2.º da lei mas a ju-risprudência e doutrina não deixam de pormenorizar estes conceitos. Por exemplo, segundo a o Acórdão do STA de 2012/12/19, proc. 01101/12, a especialidade de um dano «resulta de este comportar um atentado ao princípio da igualdade, impondo a um determinado particular um sacrifício que não é exigido à generalidade dos membros da colectividade» enquanto a anormalidade «ocorre sempre que peça inequívoca gravidade do sacrifício que impõe e da situação excepcional que consubstancie, comporte, em consequência, um dano demasiado oneroso para que não seja justo o administrado a suportá-lo por si próprio» e esta «só se verifica quando ocorre fora do que constitui a álea normal de uma determinada actividade dependente de bens sujeitos a intervenção por parte da própria Administração Pública». Por outro lado, conforme o Acórdão do TCA Norte de 2011/07/15, os danos serão qualificados de anormais e especiais «quando ultrapassem os pequenos transtornos inerentes à actividade em causa, que decorrem da própria natureza dessa actividade, e vão onerar, pesada e especialmente, apenas algum ou alguns cidadãos, sobrecarregan-do-os de forma desigual em relação a todos os demais». Para Carlos Ca-dIlha, «a especialidade do dano resulta de ele incidir sobre um cidadão ou um grupo de cidadãos, colocando-os em situação de desigualdade em relação a outros...assenta essencialmente numa ocorrência da vida real que seja susceptível de violar o princípio da igualdade. Anormal é...o dano que, pela sua gravidade, tem relevância ressarcitória...», Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, 80. Para um estudo especializado destes conceitos e a sua exigência, leia Gomes CanotIlho, O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, 271-283.

65 Para alguns autores, tal como Fernando Alves CorreIa, se se tratar de um dano patrimonial, precisamos de preencher mais um requisito para que possamos dizer que estamos perante um caso de indemnização pelo sacrifício propriamente dito. Este requisito extra é a não intenciona-lidade ablativa da Administração. Para este autor, caso falte este requisito, não devemos aplicar o art. 16.º da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro mas os regimes especiais associados aos actos ablativos de direitos patri-moniais privados. É o que sucede com a expropriação de sacrifício. Para uma leitura detalhada da diferença entre expropriação de sacrifício e in-demnização de sacrifício, leia Fernando Alves CorreIa, «A indemnização pelo sacrifício: contributo para o esclarecimento do seu sentido e alcan-ce», 143-161 (especialmente 155-161). No caso em apreço, mesmo que se adoptasse esta interpretação restritiva do art. 16.º da Lei mencionada, estamos dentro do âmbito da aplicação deste artigo porque ao emitir o novo acto menos favorável que causa prejuízo ao destinatário de boa-fé, o titular do órgão tem como objectivo a reposição da ordem de conveniên-cia e mérito e a melhor prossecução dos interesses públicos, sem qualquer

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

42

de um dano anormal visto que, em primeiro lugar, a ocorrência da substituição sem consentimento dos interessados de um acto favorável e constitutivo de um direito por um acto menos favorável por causa da inconveniência originária daquele – em que o destinatário, es-tando de boa-fé, tem toda a legitimidade de colocar a sua confian-ça na estabilidade e normalidade (da ordem legal e de mérito) do acto – ultrapassa a álea normal inerente à actividade administrativa que um administrado tem de suportar. Em segundo lugar, a completa interiorização deste prejuízo pelo destinatário de boa-fé ultrapassa igualmente o dever legítimo que a Administração pode, em nome do princípio da colaboração mutual entre a Administração e os parti-culares, impor a administrados. Sobretudo porque nasce deste prin-cípio e do princípio da boa-fé o dever de a Administração ponderar devidamente a fé e a confiança legítima dos interessados na prosse-cução do seu objectivo legítimo e legal.

Além disso, o dano é especial desde logo porque o acto menos favorável que causa prejuízo onera só o seu destinatário; e também porque a interiorização total do prejuízo pelo destinatário de boa-fé viola o princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos pú-blicos66 – embora o destinatário, enquanto interessado directo numa relação jurídico-administrativa estabelecida, se situe numa posição especial em relação à generalidade dos cidadãos, a transferência total do custo ou prejuízo, que a Administração suportou na reposição da ordem de mérito e na afirmação do princípio da boa administração, para um destinatário de boa-fé já ultrapassou os encargos especiais que este tem de suportar por causa da sua posição especial. Os en-cargos, fora aqueles que são justificados pela posição especial de um destinatário, devem ser exigidos à generalidade dos cidadãos sob pena de preterir o alcance do princípio da igualdade material.

Assim, verifica-se também o terceiro requisito e o destinatário deve ser indemnizado. No entanto, não podemos esquecer que esta indemnização é limitada, dado que só são indemnizáveis pelo insti-tuto da indemnização pelo sacrifício os danos anormais e especiais

intenção normativa de causar afectação negativa à esfera jurídica do des-tinatário de boa-fé.

66 Uma vertente material extraída do princípio da igualdade pre-visto no art. 13.º da CRP, que segundo a doutrina, se constitui a razão de ser do instituto da indemnização pelo sacrifício.

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

43

– e isto está em consonância com a racionalidade central do texto: nenhum valor pode arrogar-se na sua superposição sobre os outros para obter uma total satisfação. O juízo material de valores não é um jogo de exclusão mas sim de compatibilização. Aqui, o valor da confiança legítima tem de compatibilizar-se com outros valores, tal como o princípio da legalidade, o princípio da colaboração dos cidadãos com a Administração na prossecução de interesses públi-cos, etc., que justifica nesta hipótese uma indemnização limitada de destinatário de boa-fé.

Em segundo lugar, ao nível processual, podemos recorrer ao instituto da inexecução da sentença com causas legítimas como vi-mos na nota 50? Prima facie, parece que não: em primeiro lugar, a sentença declarativa não é, em regra, susceptível de execução; e, em segundo lugar, não temos qualquer regulação expressa prevista nas legislações sobre esta matéria no quadro da sentença da declaração de nulidade de actos administrativos. Contudo, como Vieira de an-drade salienta na sua obra do Direito Processual Administrativo67, isto não é necessariamente assim. Desde logo, da sentença da de-claração de nulidade podem nascer imposições obrigatórias para a Administração a fim de garantir a utilidade da sentença – isto torna a sentença (parcialmente) exequível68. Além disso, nada obsta a que, por analogia, apliquemos as regulações legais previstas para a exe-cução de sentenças da anulação de actos administrativos às senten-ças da declaração de nulidade de actos. Portanto, a Administração pode, em nome da impossibilidade absoluta e sobretudo do grave prejuízo para interesses públicos (v.g. a credibilidade da Adminis-tração, a segurança jurídica, a justiça material), reclamar ao tribunal a inexecução da parte exequível da sentença, salvaguardando assim parcialmente a posição jurídica de destinatário de boa-fé. Todavia, a inexecução não significa a convalidação do acto declarado nulo. Para sal-vaguardar a posição jurídica de um destinatário de boa-fé até ao má-ximo, é necessário um novo acto com mesmo conteúdo (se tratar de um acto renovável) ou mais favorável. Caso a Administração emita

67 Vieira de andrade, A Justiça Administrativa, 381.68 Por exemplo, a declaração da nulidade de uma autorização da

construção de prédio vai determinar a obrigação de a Administração pra-ticar um acto de destruição da parte construída.

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

44

um acto menos favorável, voltamos ao problema da responsabilida-de civil extracontratual do Estado por dano emergente do exercício da função administrativa e o da indemnização pelo sacrifício, que discutimos supra.

Ora, se existem estes meios de tutela, porque necessitamos ainda da modificação legal do regime da determinação da validade em relação à coacção para tutelar o valor da confiança legítima de destinatários de boa-fé? A resposta não é difícil: como vimos, estas tutelas incidentais não dão protecção suficiente; e, tal como Viei-ra de andrade 69 ensina, «é mais prudente e seguro efectuar uma modificação do texto legal».

2.1.6. Coacção por outro órgão administrativo7071

No ordenamento jurídico português, este tipo de coacção não foi analisado pela doutrina. Porém, tendo em conta a nossa própria interpretação do art. 133.º/1, CPA, vale a pena abordar com mais pormenor esta coacção.

Antes de começar a analisar este tema, temos de tomar nota de que, como estamos a falar da coacção praticada pelo titular do órgão em nome do órgão (não enquanto pessoa singular) contra outro órgão, ou seja, uma coacção feita pelo titular do órgão no exercício da fun-ção administrativa e no interesse do próprio órgão-coactor contra outro órgão, concentraremos a nossa abordagem na categoria de coacção relati-va (maxime, o não através de força) e deixamos ao lado a categoria

69 Vieira de andrade, Lições de Direito Administrativo, 191.70 I.e. administração em sentido organizatório. Não estamos a men-

cionar o titular do órgão enquanto pessoa singular. No entanto, na prática, admitimos que não será sempre fácil distinguir se a coacção é feita pelo titular do órgão enquanto pessoa singular ou pelo titular enquanto agente da administração, sobretudo quando estamos perante um órgão singular.

71 Só nos interessa a coacção praticada por órgão administrativo da entidade administrativa diferente. Não vamos abordar o problema da coacção praticado por órgão administrativo da mesma entidade adminis-trativa porque o acto emitido por um órgão para outro da mesma entidade administrativa, em regra, não é um acto administrativo, por faltar o efeito externo (recorde-se do conceito do acto administrativo que adoptamos, nota 18). O acto assim emitido é só um acto interno, que é um acto jurídico unilateral da Administração.

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

45

de coacção absoluta, que é praticamente quase impossível pela ra-zão de que um órgão administrativo enquanto tal não tem existência no mundo físico; e mesmo através do seu titular enquanto tal (que não se confunde com a pessoa do titular enquanto cidadão), num Estado do Direito material, não é pensável que a um órgão seja atribuída força para agir contra outro órgão a fim de satisfazer os interesses públicos legalmente impostos (isto salvo se trate de um órgão militar ou da Polícia de Segurança Pública, cuja competência (juridicamente vinculada) de recurso à força é constitucionalmente legitimada e portanto não se deve encarar o recurso proporcional e não abusivo da força como coacção. Recorde-se que coacção é necessariamente uma actuação ilícita); e muito menos é admissível atribuir a um órgão poder de excluir totalmente a liberdade de acção de qualquer outra pessoa ou órgão. Por isso, o seguinte conteúdo vai concentrar-se só na coacção relativa puramente moral. Vejamos um caso prático:

Caso 7): O Governo, pretendendo que uma determinada obra seja aprovada pelo presidente da Câmara Municipal, ameaçou-o de divulgar ao órgão de auditoria competente a fraude orçamental que este cometeu, se não lhe emitir um acto administrativo de aprovação em dois dias. Com a aprovação emitida mais cedo, o Governo já pode compensar o atraso acumulado nas fases anteriores.

Aqui, estamos perante uma coacção por órgão administrativo (in casu, o Governo) porque o coactor, ao exercer a coacção, está a fazer algo ainda dentro da função administrativa (ainda que por meio ilícito) e no interesse do próprio órgão (compensar o atraso). Dado que a coacção cometida é uma coacção relativa, tal como re-ferimos na nota 36, podemos extrair da decisão final ainda um mí-nimo traço da vontade normativa do órgão coagido sem negar a sua contaminação pela vontade do órgão-coactor. Assim, podemos logo excluir a falta da vontade normativa para fundamentar a nulidade do acto. Também não é útil levantar aqui a questão da imputabilidade da vontade normativa à Administração Pública, uma vez que seja o órgão coagido, seja o órgão-coactor, fazem parte da Administração Pública em sentido organizatório. Por outras palavras, temos apenas um vício de vontade normativa que, para nós, não é suficiente para considerar a coacção por outro órgão administrativo como uma

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

46

causa autónoma72 da nulidade do acto73, salvo se houver uma deter-minação legal com uma pura, clara e legítima opção política (a pura nulidade por determinação legal na nossa terminologia).

Todavia, não podemos só por isso concluir que um acto prati-cado sob coação por outro órgão administrativo não é nulo. Só po-demos dizer que não é aplicável o art. 133.º/2e (na nossa interpreta-ção) para tornar o acto nulo. Temos de aprofundar mais para ver se existem outras causas de nulidade do acto: será um desvio de poder grave? É possível, porque ao emitir o acto, mesmo que o titular do órgão-coagido não esteja a satisfazer um interesse privado dele en-quanto pessoa singular, está a prosseguir um interesse privado do órgão não tutelável (esconder a sua fraude orçamental). Mas já não parece que haja desvio do poder se 1) antes da coacção, o titular do órgão coagido já decidiu a emissão do acto, 2) na emissão, mesmo sob coacção, o órgão coagido seguiu todos os procedimentos legais, teve em conta o fim estipulado na lei e aproveitou bem a margem de discricionariedade74 se houver e 3) trata-se de um acto totalmente vinculado e o órgão-coactor reúne todos os requisitos legais e fez

72 Não autónoma significa que ele é só um exemplo possível da(s) outra(s) causa(s) autónoma(s) de nulidade do acto administrativo.

73 Recorde-se a nota 30.74 E se o órgão coagido seguiu todos os procedimentos legais, teve

em conta o fim estipulado na lei mas não aproveitou ou não aproveitou com mérito a margem de discricionariedade? Para nós, o acto é ilegítimo por violar a regra da boa administração. Contudo, é importante salientar que a consideração da conveniência ou oportunidade do acto administrativo é uma área reser-vada à função administrativa e não é um problema justiciável (art. 3.º/1, CPTA) no respeito pelo princípio da separação e interdependência dos poderes. Não podemos invalidar um acto por razão da sua falta de mérito porque a questão de mérito não é uma questão de validade. Todavia, não podemos esquecer-nos de que a discricionariedade não é uma liberdade arbitrária da Administração. Ela é vinculada pelos princípios jurídicos. Por isso, se este não aproveitamento ou mau aproveitamento da margem de discricionariedade violar os princípios jurídicos, nomeadamente o prin-cípio da igualdade (no caso do não aproveitamento de discricionariedade, o princípio da igualdade será sempre violado dado que esta conduta se tra-duz numa recusa da ponderação das circunstâncias específicas de cada caso no momento da decisão, preterindo assim o espírito de «tratar igual-mente o que é igual e tratar diferentemente o que é diferente»), o acto já é inválido por cometer um vício de conteúdo segundo a sistematização de Rogério Soares. Para um estudo em pormenor dos vícios de discricio-nariedade, consulte Ana Raquel Gonçalves monIz, «A discricionariedade administrativa: reflexões a partir da pluridimensionalidade da função ad-ministrativa», 619-626.

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

47

devidamente o pedido oficial. O raciocínio em 1) é a mera inexistên-cia do desvio do poder no momento da decisão; enquanto o em 2) e 3) é a não contaminação da decisão final pelo desvio de poder, ou seja, a coacção não é essencial.

Por outro lado, será esta conduta um crime e, logo, causa de nu-lidade? Sim, é um crime segundo o Código Penal e portanto, de acordo com a nossa interpretação do art. 133.º/2c, CPA, é causa autónoma da nu-lidade do acto administrativo75. Então, por aí, será que a coacção por outro órgão administrativo é de facto um caso normal da coacção re-lativa? Prima facie, sim; mas a nosso ver, uma coacção por outro órgão administrativo é mais chocante do que uma simples coacção relativa, uma vez que ela implica simultaneamente um abuso pela própria Ad-ministração (maxime, o órgão-coactor) do seu mandato democrático conferido (ainda que não seja directamente) pelos cidadãos. Atenden-do a esta gravidade qualificada da coacção por outro órgão adminis-trativo, defendemos que esta deve ser autonomizada em relação ao resto, no problema da determinação da nulidade do acto. Sugerimos que esta deve constituir um tipo de pura nulidade por determinação legal, para assim concretizar efectivamente a política da lealdade dentro da Administração Pública, sem prejuízo da necessidade não eliminável da consideração da confiança legítima de destinatários-terceiros (se houver) de boa-fé, que pode servir como fundamento material de flexibilização ou eliminação da nulidade.

Enfim, salientamos que o controlo deste tipo de coacção é efectivamente muito difícil de alcançar apenas através do sistema jurídico. Não é imaginável que, na prática, o órgão coagido (in casu, o presidente da câmara municipal) faça participação desta coacção ao órgão de inspecção competente porque, ao fazer isto, ele terá de enfrentar um problema muito mais grave do que a simples emissão do acto pretendido pelo órgão-coactor – o facto de que o coactor serviu para coagi-lo (in casu, o fraude orçamental) será indirecta-mente denunciado ao órgão de inspecção76! Por isso, necessitamos

75 Deve-se notar que a causa autónoma da nulidade aqui é a prá-tica de crime e não a coacção, que é apenas um exemplo da prática de cri-me. Descriminalização ou despenalização poderia acontecer mesmo que a probabilidade fosse baixíssima.

76 Admitimos, de certa maneira, a existência da falha do governo entre nós.

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

48

de um sistema político e institucional mais completo para fiscalizar as actuações ilícitas entre órgãos administrativos a fim de promo-ver a realização de uma verdadeira justiça material dentro e a partir da ordem jurídico-administrativa. Para este objectivo, contribuem e devem contribuir largamente os órgãos de auditoria e os órgãos de combate à corrupção77. Os próprios cidadãos, sendo os donos do governo num regime da soberania popular, também têm o ónus de denunciar as actuações antijurídicas da Administração.

2.2. Síntese

Através da análise realizada, podemos confirmar os seguintes pontos:

1. Na nossa interpretação do art. 133.º/2e, o elemento essen-cial de um acto administrativo que se presume faltar no caso de coacção é “a vontade normativa imputável à Administração Pública”.

2. Nem sempre existe um nexo de causalidade directa entre a coacção e a falta da vontade normativa. Tal como no caso de coacção relativa, a coacção própria causa apenas um vício de vontade normativa que não é, na nossa perspectiva, suficiente para ser uma causa autónoma da nulidade, cujo regime é tão

77 Em Portugal não há um único órgão vocacionado para a função de combate à corrupção. Actualmente, em virtude da diversidade e com-plexidade da natureza de corrupção (temos corrupção criminal, econó-mica, política, etc.), temos um conjunto de órgãos administrativos (e.g. o Conselho de Prevenção da Corrupção que é uma entidade administrativa independente) e judiciais que específica ou ocasionalmente desempenham esta função. Além disso, dado o factor globalização, a existência de paraí-sos fiscais e o desafio desencadeado pelo mundo electrónico, o fenóme-no de corrupção já não tem uma dimensão meramente nacional. Conse-quentemente, para combater efectivamente a corrupção, são necessárias indubitavelmente colaborações internacionais. Isto justifica a celebração das várias convenções internacionais por Portugal destinadas a esse fim. Entre outros, temos a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (2003), aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 47/2007 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 97/2007, ambos de 21 de setembro e a Convenção Relativa à Luta Contra a Corrupção em que estejam implicados Funcionários das Comunidades Europeias ou dos Estados-membros da União Europeia (1997), aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 72/2001 e ratificada pelo Decreto do Presi-dente da República n.º 58/2001, ambos de 15 de Novembro.

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

49

gravoso. Em geral, a causa de nulidade numa coacção relativa é o desvio de poder grave e/ou a prática de crime. Por ou-tras palavras, a coacção relativa será em regra absorvida pelo desvio do poder grave e/ou pela prática de crime (recorde a nossa interpretação, nota 35) enquanto causa imediata de nuli-dade do acto administrativo, perdendo assim a sua autonomia.

3. Já no caso de coacção absoluta, verifica-se um nexo de causa-lidade directa entre a coacção e a falta da vontade normativa ou a inimputabilidade de uma vontade normativa à Adminis-tração. Por isso, diferentemente de coacção relativa, admiti-mos que a coacção absoluta é uma causa autónoma e imediata de nulidade do acto.

4. Daí criticarmos o enunciado do art. 133.º/2c na medida em que este ignora a diferença material entre uma coacção rela-tiva e uma coacção absoluta, e a consequente divergência no problema do preenchimento da cláusula geral de nulidade – ou seja, o problema da verificação em concreta da falta do(s) elemento(s) essencia(is) presumido(s) na norma, i.e. a vonta-de normativa imputável a Administração Pública conforme a nossa interpretação do art. 133.º/2e – metendo duas coisas diferentes no mesmo saco, encaminhando para uma ideia er-rada de que todas as coacções são causa imediata de nulidade.

5. Em relação à coacção por terceiro, advogamos que temos sempre de fazer um juízo material de valores para compati-bilizar o valor da livre manifestação de vontade do Poder e o valor da confiança legítima de destinatários de boa-fé e a se-gurança jurídica. Atendendo a este último valor, defendemos que devemos recusar a nulidade enquanto sanção absoluta e universal para um acto praticado sob coacção por terceiro. Realçamos ao mesmo tempo que, dado que o grau de gravi-dade da ofensa ao valor da livre manifestação de vontade do Poder varia consoante o tipo de coacção em causa (relativa/absoluta) e o tipo do acto em causa (totalmente vinculado pela lei/discricionário), a resolução não deve ser única mas diferenciada. A diferença entre um acto favorável e um acto desfavorável também é decisiva para a diferenciação do juízo de valores.

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

50

6. Criticamos por isso o art. 133.º/2e do CPA, que tem um de-feito congénito – a falta de tutela do valor da confiança legíti-ma de destinatários de boa-fé e do valor da segurança jurídica, causando distorções no sistema da justiça e contribuindo para «uma generalização indiferenciadora-formalista de nulidade».

7. Além do mais, autonomizamos a coacção por outro órgão administrativo em relação a outros tipos de coacção relativa em virtude da sua gravidade qualificada. Sugerimos que um acto praticado sob esta coacção deveria constituir um tipo da pura nulidade por determinação legal, sem prejuízo da possi-bilidade de flexibilização do regime devido à necessidade de ponderação da confiança legítima de destinatários-terceiros (se houver) de boa-fé.

8. Em conclusão, a versão ideal do art. 133.º/2e em relação à coacção será a seguinte:

“Um acto é nulo sobretudo quando:

a) Faltar a vontade normativa imputável à Administração Pública ou for praticado sob coacção absoluta.

b) For praticado sob coacção por outro órgão administrativo, sem prejuízo da possibilidade de flexibilização do regime devido à ne-cessidade de ponderação da confiança legítima de destinatários--terceiros (se houver) de boa-fé na normalidade do acto. A boa-fé consiste num estado do sujeito que desconhecia ou não era supos-to ter conhecimento da coacção.

Quando a coacção for por terceiro, deve ponderar-se sobretu-do o valor da confiança legítima de destinatários de boa-fé na nor-malidade do acto no momento da determinação da sanção final”.

A coacção relativa fica assim absorvida pela(s) outra(s) causa(s) autónoma(s) de nulidade do acto administrativo.

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

51

2.3. Breve apreciação da nova versão do actual art. 133.º/2e no projecto da revisão de 2013 do Código de Procedi-mento Administrativo a partir da nossa posição.

O ainda actual art. 133.º/2e corresponde ao art. 159.º/2f do projecto da revisão de 2013 e tem o seguinte conteúdo: «São, desig-nadamente, nulos os actos praticados sob coação física ou sob coa-ção moral grave». Esta nova versão do regime de nulidade do acto praticado sob coacção tem como inspiração e trabalho preparatório matricial a posição de Vieira de andrade.

Para nós, esta nova versão ainda não é satisfatória, mas re-presenta já um bom avanço na medida em que se demonstra uma tentativa legislativa em diferenciação do regime da determinação da validade do acto praticado sob coacção – prevê-se uma diferencia-ção, ainda que de forma sucinta, entre a coacção absoluta e a coac-ção relativa. No entanto, isto é insatisfatório dado que 1) falta consi-derar a inexistência do nexo de causalidade entre a falta da vontade normativa e uma coacção relativa, negando que a coacção relativa, mesmo que seja grave, ainda não é uma causa autónoma de nuli-dade; 2) não prevê tratamento materialmente diferenciado para os actos praticados sob coacção por terceiro emitido a um destinatário de boa-fé; 3) não pondera o caso especial dos actos praticados sob coacção de outro órgão administrativo enquanto tal.

Abreviaturas

CC: Código CivilCP: Código PenalCPA: Código do Procedimento AdministrativoCPTA: Código de Processo nos Tribunais AdministrativosCRP: Constituição da República PortuguesaTCA: Tribunal Central AdministrativoSTA: Supremo Tribunal Administrativo

PRÉMIOS | Prémio Doutor Marnoco e Sousa

52

Bibliografia

andrade, J. C. Vieira de, «A nulidade administrativa, essa desconhecida», Revista de Legislação e de Jurisprudência, 3957 (2009) 333-350.

— «Validade (do acto administrativo)», in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. 7, Lisboa, 581-592.

— A Justiça Administrativa, 12.ª ed., Almedina, 2012.— Lições de Direito Administrativo, 2.ª ed., Coimbra, 2011.CadIlha, Carlos, Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e

demais entidades públicas ANOTADO, 2.ª ed., Coimbra, 2011. Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 10.ª ed. 7.ª

reimp., Almedina, 2001.CanotIlho, J. J. Gomes, O problema da responsabilidade do Estado por actos

lícitos, Almedina, 1974.CauPers, João; raPoso, João / amaral, Diogo Freitas do / GarCIa, Maria

da Glória F. P. D. / Claro, João Martins / vIeIra, Pedro Siza / sIlva, Vasco Pereira da, Código do Procedimento Administrativo - Anotado - Com Legislação Complementar, 6.ª ed., 2007, Almedina.

CorreIa, Fernando Alves, «A indemnização pelo sacrifício: contributo para o esclarecimento do seu sentido e alcance», Revista de Legislação e Jurisprudência, 3966 (2011) 143-161.

CorreIa, J. m. Sérvulo, «O incumprimento do dever de decidir», Cadernos da Justiça Administrativa, 54 (Novembro/Dezembro 2005) 6-32.

Cortez, Margarida, «O crepúsculo da invalidade formal?», Cadernos de Justiça Administrativa, 7 (Janeiro/Fevereiro 1998) 32-43.

Gonçalves, Pedro, «Revogação (do acto administrativo)», in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. 7, Lisboa, 303-325.

lIma, F. A. Pires de; varela, Antunes, Código Civil Anotado, vol. 1, 4.ª ed. rev. e actual., Coimbra, 2010.

matos, André Salgado de, «Algumas observações críticas acerca dos actuais quadros legais e doutrinais da invalidade do acto administrativo», Cadernos da Justiça Administrativa, 82 (Julho/Agosto 2010) 55-68.

monIz, Ana Raquel Gonçalves, «A discricionariedade administrativa: reflexões a partir da pluridimensionalidade da função administrativa», O Direito, 144/3 (2012) 599-651.

— Casos Práticos Direito Administrativo, Almedina, 2012.

Coacção Enquanto Vício ou Falta de Vontade na Determinação da Validade...

53

neves, a. Castanheira, Sumário de uma lição-síntese sobre «os princípios jurídicos como dimensão normativa do direito positivo» (a superação do positivismo normativista), policop., Coimbra, 1976.

olIveIra, Mário Esteves de; Gonçalves, Pedro; amorIm, Pacheco de, Código do Procedimento Administrativo – Comentado, 2.ª ed., 8.ª reimp. da ed. de 1997, Almedina.

PInto, Carlos Mota, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., Coimbra, 2012.QueIró, Afonso R., «Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal

Administrativo de 25 de Fevereiro de 1986», Revista de Legislação e Jurisprudência, 3751 (1987) 298 -303.