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Capítulo I PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO 1. INTRODUÇÃO O Direito Civil sempre foi considerado a “Constituição” das relações privadas, pois constitui o conjunto de normas onde estão centralizados os temas e institutos jurídicos relevantes para a sociedade civil, como, por exemplo, contrato, proprie- dade, casamento, filiação, sucessão, entre outros. O Direito Civil, portanto, desde sua origem, monopoliza as relações privadas intersubjetivas. Tal “ramo” do direito, se assim pode ser classificado, tem por objeto a regu- lação de interesses, deveres, obrigações, ônus e direitos no âmbito exclusivamente privado. Até por isso, sempre foi considerado como uma das ramificações do direito privado. No entanto, o Direito Civil, a partir dos séculos XIX e XX, suportou profundas transformações, principalmente por conta da socialização das relações privadas, de uma tutela diferenciada para a pessoa humana, da previsão de direitos fun- damentais para a pessoa humana, da introdução de cláusulas gerais nos sistemas jurídicos e da incorporação de princípios essenciais de natureza constitucional, como vetores da nova ordem legal responsável pela regulação das relações entre atores particulares. Tal evolução decorreu de vários acontecimentos históricos e levou a um questionamento da própria função ou da finalidade do Direito Civil na sociedade civil contemporânea. De fato, a bipartição do direito em público e privado não corresponde mais à realidade jurídica atual, em virtude da evolução da sociedade que adquiriu maior complexidade nas suas relações e, principalmente, devido a constitucionalização que o Direito Civil vem suportando. Para se compreender esse processo de transformação, abordaremos os as- pectos históricos mais relevantes, a fim de buscar a verdadeira função, os limites, e, principalmente, a ideologia desse Direito Civil que se apresenta para nós. O grande desafio dos operadores do direito neste século será tentar compre- ender o Direito Civil na sua acepção mais pura e, para isso, deverá ser abandona- da a concepção positivista ainda impregnada em nossa cultura jurídica. O Direito

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Capítulo I

PrInCíPIos ConstItuCIonaIs no DIreIto CIvIl ContemPorâneo

1. Introduçãoo Direito Civil sempre foi considerado a “Constituição” das relações privadas,

pois constitui o conjunto de normas onde estão centralizados os temas e institutos jurídicos relevantes para a sociedade civil, como, por exemplo, contrato, proprie-dade, casamento, filiação, sucessão, entre outros. o Direito Civil, portanto, desde sua origem, monopoliza as relações privadas intersubjetivas.

tal “ramo” do direito, se assim pode ser classificado, tem por objeto a regu-lação de interesses, deveres, obrigações, ônus e direitos no âmbito exclusivamente privado. até por isso, sempre foi considerado como uma das ramificações do direito privado.

no entanto, o Direito Civil, a partir dos séculos XIX e XX, suportou profundas transformações, principalmente por conta da socialização das relações privadas, de uma tutela diferenciada para a pessoa humana, da previsão de direitos fun-damentais para a pessoa humana, da introdução de cláusulas gerais nos sistemas jurídicos e da incorporação de princípios essenciais de natureza constitucional, como vetores da nova ordem legal responsável pela regulação das relações entre atores particulares. tal evolução decorreu de vários acontecimentos históricos e levou a um questionamento da própria função ou da finalidade do Direito Civil na sociedade civil contemporânea.

De fato, a bipartição do direito em público e privado não corresponde mais à realidade jurídica atual, em virtude da evolução da sociedade que adquiriu maior complexidade nas suas relações e, principalmente, devido a constitucionalização que o Direito Civil vem suportando.

Para se compreender esse processo de transformação, abordaremos os as-pectos históricos mais relevantes, a fim de buscar a verdadeira função, os limites, e, principalmente, a ideologia desse Direito Civil que se apresenta para nós.

o grande desafio dos operadores do direito neste século será tentar compre-ender o Direito Civil na sua acepção mais pura e, para isso, deverá ser abandona-da a concepção positivista ainda impregnada em nossa cultura jurídica. o Direito

Civil moderno deve ser entendido como o principal instrumento eficaz para a bus-ca da justiça social no caso concreto, sendo a pessoa humana objeto de proteção especial dos princípios e regras existentes na lei civil.

após anos de vigência do Código Civil atual, é muito fácil verificar, na prática, a dificuldade dos operadores do direito em relação à aplicação do Direito Civil contemporâneo. Por que isso? Porque os advogados, promotores e magistrados não conseguem se libertar da famosa frase: “em qual artigo do Código está a solução para esse caso?”.

a atual geração de profissionais do direito foi educada para “aplicar a lei ao caso concreto” e quando se depara com um Código “revolucionário”, baseado em princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, que rompe, de-finitivamente, com o paradigma positivista, acaba angustiada e, sem razão, passa a criticar o Código Civil.

na verdade, a não compreensão adequada do Direito Civil tem um reflexo negativo na sociedade, em especial na solução de conflitos coletivos ou individuais, o que pode gerar injustiças irreparáveis no caso concreto.

os operadores do direito ainda não perceberam a intenção do legislador em relação a este Código Civil, qual seja, delegar-lhes o poder de interpretar uma norma para ser aplicada ao caso concreto, sem as amarras do sistema fechado que preponderava no liberalismo do século XIX. o legislador, em uma mudança de postura fantástica, sem precedentes na história de nosso ordenamento jurídico, outorgou aos profissionais do direito o poder de interpretar livremente as normas, regras e princípios de Direito Civil. o fundamento e os limites deste poder são os valores sociais incorporados na Constituição Federal, os quais representam a base hermenêutica do Direito Civil.

Portanto, tais valores concedem ao operador do direito maior flexibilidade hermenêutica e a finalidade será sempre a busca da justiça social no caso con-creto. as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados são exemplos deste poder hermenêutico, porque exigem do intérprete a necessária tarefa de integrar o conteúdo da norma (aberta) com valores pessoais pautados em um sentido de justiça.

o atual Código Civil está impregnado de cláusulas gerais e conceitos jurídi-cos indeterminados, tudo a fim de dar ao sistema civil maior oPeraBIlIDaDe ou moBIlIDaDe. o ConteÚDo Da norma Passa a ser PreenCHIDo Por valores no caso concreto. É por isso que o Código Civil é considerado um sistema “aberto” (aberto para a atividade hermenêutica).

neste ponto, uma questão relevante deve ser considerada: há diferença en-tre cláusula geral e conceito jurídico indeterminado? a resposta deve ser positiva. tanto a cláusula geral quanto o, impropriamente denominado, conceito jurídico in-determinado possuem conteúdo vago, abstrato e genérico. ambos conferem maior operabilidade e mobilidade ao sistema. os poderes que deles derivam exigirem

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do intérprete que preencha os seus conteúdos com valores. mas o que os dife-rencia? Preenchido o conceito jurídico indeterminado, o resultado (solução jurídica) já está previsto ou pré-estabelecido na norma. ou seja, a consequência jurídica é dada pelo legislador e não pelo intérprete. Por exemplo: no caso do artigo 317 do Código Civil1, caberá ao intérprete preencher o sentido da expressão “motivos imprevisíveis” com valores pessoais. Preenchido este conteúdo, a consequência jurídica, qual seja, a revisão judicial da obrigação, já está prevista na lei. logo, no conceito jurídico indeterminado a lei estabelece o conceito indeterminado e dá as consequências. Já nas cláusulas gerais o intérprete preenche os valores e atribui a solução que lhe pareça a mais correta. ou seja, nas cláusulas gerais tanto a integração quanto a consequência são levadas a efeito pelo intérprete. Como exemplo, o princípio da função social, previsto no artigo 421 do Código Civil2.

Portanto, é na consequência jurídica que se localiza a principal diferença entre cláusula geral e conceito jurídico indeterminado.

Há uma resistência injustificada a esse novo sistema baseado em valores. na realidade o operador do direito sempre preferiu uma “muleta”, no caso, a lei, para uma resposta prévia a um caso concreto. Por conta da ausência dessa percepção, o Direito Civil ainda não provocou a transformação social que deveria gerar nas relações privadas civis e nas relações privadas de um modo geral.

apenas para citar alguns exemplos desse poder delegado pelo legislador, após o novo Código Civil, as relações privadas devem se nortear pelos princípios da boa-fé objetiva e da função social. no entanto, em nenhum momento a lei Civil define, com limites bem precisos, boa-fé objetiva e função social. Qual a razão para isso? simples: no caso concreto, o operador do direito vai ter a obrigação de verificar se, naquela relação jurídica privada, em si considerada, foram observados tais princípios. em termos abstratos, é praticamente impossível resolver um conflito entre particulares. a análise do caso concreto, mais do que nunca, passou a ser fundamental para a realização da tão sonhada justiça social.

sem utopias ou preconceitos é possível realizar as transformações sociais relevantes com a correta aplicação dos princípios e regras que estão inseridos no Código Civil de 2002.

Para entender esse novo Direito Civil que se apresenta para a comunidade jurídica por meio de um Código promulgado em 2002 e, em especial, o atual

1. Dispõe o art. 317 do Código Civil: Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier despro-porção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

2. Código Civil, art. 421: a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

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estágio da nossa legislação civil, é necessário ressaltar aspectos históricos que influenciaram diretamente essa “Constituição” das relações privadas.

atualmente, alguns princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, solidariedade social e igualdade substancial são a base de sustentação de todas as relações jurídicas privadas, norteando a aplicação de todas as normas e princípios existentes na legislação civil.

o Direito Civil, hoje, é baseado em princípios, conforme será detalhadamente explicado, e não mais em regras objetivas descritivas de condutas. Para chegar a esse ponto, o Código Civil percorreu um longo caminho. É o que passaremos a ressaltar.

2. o dIreIto CIvIl e a transIção do estado lIberal para o estado soCIalo Direito Civil teve seu auge no chamado “estado liberal”, período em que

se exaltava a liberdade e a autonomia dos indivíduos nas relações privadas e, como consequência, não se admitia a intervenção do Poder Público nos assuntos particulares. o “estado liberal” teve por marco a revolução Francesa de 1789.

antes deste movimento social, que representa um divisor de águas na história da humanidade e, principalmente, do direito, durante a Idade média, a Igreja teve forte influência na sociedade, tentando incutir a filosofia religiosa, cuja base era a evocação de divindades. na verdade, tal pensamento da Igreja acabou dando suporte para o absolutismo, regime em que se concentrava o poder nas mãos de um monarca. o pretexto de que “tudo era desejo de Deus” acabou por servir como justificativa para o reinado de vários déspotas monarcas durante a Idade média. neste período pré-revolução Francesa não havia codificação. o Direito Civil era basicamente representado por valores medievais e do mencionado absolu-tismo monárquico e, de certa forma, não passava de um emaranhado de regras costumeiras somadas a resquícios dos ideais que ainda sobreviviam do combalido e decadente Direito romano. a “codificação” civil, como a conhecemos hoje, teve início com o estado liberal e se materializou com o Código Civil Francês de 1804, denominado Código napoleônico.

Com a decadência da monarquia absolutista, surge, então, um movimento que visava se contrapor a essas ideias até então reinantes, o Iluminismo, que forneceu as bases ideológicas para a revolução Francesa.

o Iluminismo se iniciou na França, no século XvII, e defendia o domínio da razão sobre a visão teocêntrica que dominava a europa desde a Idade média. os pensadores iluministas pregavam que o pensamento racional deveria prevalecer sobre crenças religiosas e questões místicas.

o apogeu do Iluminismo foi no século XvIII, conhecido como o século das luzes. o Iluminismo foi intenso na França, onde influenciou a revolução Francesa através de seu lema: liberdade, igualdade e fraternidade.

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Para os filósofos iluministas de forma geral, o homem era naturalmente bom, porém era corrompido pela sociedade com o passar do tempo. eles acreditavam que, se todos fizessem parte de uma sociedade justa, com direitos iguais, a fe-licidade comum seria alcançada. Por essa razão, os iluministas eram contra as imposições de caráter religioso, as práticas mercantilistas, o absolutismo do rei e, principalmente, os privilégios dados à nobreza e ao clero.

os iluministas lutaram bravamente contra o absolutismo, caracterizado pela concentração de poder no monarca ou em uma única pessoa. tal resistência ilu-minista acabou eclodindo com a mais importante revolução da história da huma-nidade, justamente a revolução Francesa.

embora tenha por marco o ano de 1789, na realidade, a revolução Francesa teve início muito antes, pois filósofos e pensadores iluministas, de forma silen-ciosa, já alardeavam na sociedade francesa as ideias liberais. Foram décadas de reuniões, traições e conspirações antes da inevitável revolução tomar as ruas da capital francesa, Paris.

nesse período, estava em plena ascensão, na França, uma classe abastada e rica, mas completamente destituída de poderes ou influência política. tal classe emergente era a burguesia francesa e, por conveniências políticas e econômicas, passou a se interessar pela filosofia iluminista. as ideias iluministas eram compa-tíveis com os interesses da burguesia: filósofos iluministas e cidadãos burgueses eram igualmente contrários ao absolutismo real e à concentração de privilégios para os nobres e para o clero.

na verdade, a burguesia francesa “encampou” o movimento iluminista, por-que, embora fosse uma classe abastada em termos financeiros, buscava poder e influência política, dos quais era desprovida.

os burgueses tiveram participação decisiva para o sucesso da revolução Fran-cesa, movimento que teve por objetivo principal a liberdade dos cidadãos em relação ao estado absolutista. tanto foi assim que muitos rotulam a revolução francesa de “revolução burguesa”, cujo termo não é justo, porque exclui desse movimento social os seus principais mentores, quais sejam, os filósofos iluministas.

os principais filósofos do Iluminismo foram: John locke (1632-1704), que acre-ditava que o homem adquiria conhecimento com o passar do tempo por meio do empirismo; voltaire (1694-1778), que defendia a liberdade de pensamento e não poupava críticas à intolerância religiosa; Jean-Jacques rousseau (1712-1778), que pregava a ideia de um estado democrático que garantisse igualdade para todos; montesquieu (1689-1755), que defendia a divisão do poder político em legislati-vo, executivo e Judiciário; Denis Diderot (1713-1784); e Jean le rond d’alembert (1717-1783). tais filósofos, juntos, organizaram uma enciclopédia que reunia os conhecimentos e pensamentos filosóficos da época.

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explicando esse movimento, DanIel sarmento3, em sua obra “Direitos fun-damentais e relações privadas”, resume os motivos que levaram à luta contra o despotismo do estado:

era necessário proteger o indivíduo do despotismo do estado, garantin-do-lhe um espaço de liberdade inexpugnável. Por outro lado, tornara--se inadmissível a continuidade da discriminação fundada no nascimen-to, o que exigia a abolição de privilégios estamentais desfrutados pela nobreza e pelo clero. a nova cosmovisão inverte a ótica pela qual se concebia o poder político, que passa a ser analisado ex parte popoli e não mais ex parte principis. um dos temas recorrentes do pensamento político no Iluminismo era a fundamentação da legitimidade do poder estatal, o que buscava através da teoria do contrato social, presente em autores como loCKe, Kant e rousseau.

entre os pensadores iluministas, como já ressaltado em linhas gerais, havia diferenças consideráveis, mas o objetivo era o mesmo: a busca da liberdade, na crença de que esta levava à felicidade.

Por exemplo, segundo anota DanIel sarmento4,

rousseau enfatizava a importância da democracia e da soberania po-pular, erigindo, a partir do seu conceito de volonté générale, uma teoria que confiava cegamente na sabedoria das maiorias. no seu contrato social, os indivíduos alienavam toda a sua liberdade, mas não para um terceiro, que, como em HoBBes, assumiria a função de governante absoluto, e sim para um corpo social a qual todos pertenciam. Gover-nantes e governados passariam a se identificar plenamente, e isso, na sua visão, representava a liberdade. sem embargo, é evidente que tal concepção abria espaço para um absolutismo das maiorias, que poderia atropelar os direitos das minorias. no campo oposto, loCKe defendia a liberdade dos modernos, preocupando-se, sobretudo, com a proteção dos direitos individuais em face do estado. no modelo de contrato social que formulou, os indivíduos não alienavam todos os seus direitos, como em HoBBes e rousseau. eles retinham direitos naturais, inatos e inalienáveis, que os governantes tinham de respei-tar, e cuja infringência justificava até mesmo o exercício do direito de resistência. Dentre tais direitos, o mais essencial, segundo loCKe, era a propriedade, cuja proteção representava a mais importante função estatal.

as ideias iluministas sofriam variações de acordo com a concepção de cada filósofo, mas o objetivo principal era a salvaguarda da liberdade, o que influen-ciou, decisivamente, o Direito Civil durante todo o estado liberal, servindo como principal instrumento para assegurar a autonomia dos indivíduos, “protegendo-os”

3. sarmento, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. rio de Janeiro: lumen Juris, 2008.

4. Ibidem.

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de intervenções do estado. Como bem frisa sarmento, o “estado era visto como um adversário da liberdade”.

Com a forte influência dos pensadores e filósofos do movimento Iluminista, eclodiu a revolução Francesa, tendo início o estado liberal, ponto em que começa a análise do Direito Civil na modernidade.

a questão que se coloca é: qual a relação do liberalismo com o Direito Civil?

o estado liberal praticamente nasce com a revolução Francesa e tem por fun-damento básico a defesa da liberdade do cidadão em suas relações privadas, re-jeitando qualquer tipo de intervenção estatal. Daí o nome liberalismo ou liberdade. alguns filósofos iluministas, como rousseau, chegaram a afirmar a liberdade como a felicidade plena. a ingenuidade desse grande filósofo durou muito pouco, pois defendia a democracia e soberania popular como decorrência da não intervenção estatal, mas, na prática, o que se viu foi apenas uma classe gozando de privilégios e direitos políticos. e qual seria essa classe? Justamente a burguesia ascendente.

os burgueses abraçaram as ideias iluministas e lutaram bravamente contra o estado absolutista, que concentrava o poder em uma única pessoa, o monarca, e possuía duas classes de privilegiados, a nobreza e o clero, ao passo que a burguesia e os trabalhadores compunham o chamado terceiro estado, despido de influência e poderes políticos.

assim, sob o falso pretexto de uma sociedade livre e justa, com pregações para a abolição de privilégios da nobreza e do clero, os burgueses conseguiram conquistar a liberdade almejada e afastar o estado das relações privadas.

no entanto, após conquistarem essa liberdade, os burgueses passaram a explorá-la, centralizando o poder político, dominando o Parlamento, cuja repre-sentação era praticamente um retrato da classe burguesa, com a criação de uma verdadeira oligarquia, que concentrava todo o poder em suas mãos. ou seja, com a revolução Francesa o rei sai de cena, mas a burguesia o substitui à altura. em razão disso, podemos afirmar que o pano de fundo da revolução Francesa, na realidade, é um verdadeiro “golpe de estado da burguesia”.

nesse sentido, a lição do historiador orlanDo FeDelI5:

Quando se estuda a revolução Francesa, é impossível não ficar impres-sionado com a flagrante contradição entre sua trilogia mágica – liber-dade, Igualdade, Fraternidade – em nome da qual se fez a revolução, e os fatos que dela resultaram.

até mesmo o leitor mais hipnotizado pelos slogans revolucionários se perturba ao ver o paladino da igualdade, robespierre, praticamente fazer-se adorar na festa do ser supremo, em 1794. o mais cego liberal

5. FeDelI, orlando. A Revolução Francesa. Disponível em: <http://www.monfort.org.br>. acesso em 18 de junho de 2010.

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tem que fazer restrições aos crimes de terror, e fica estupefato ante a intolerância absoluta gerada pelo triunfo da tolerância e da liberdade. Como não ver que a Fraternidade romântica e sonhadora de rousseau e de seus adeptos, a sociedade perfeita, pacífica e amorosa, finalmen-te realizada em 89, produziu o ódio e a guerra?

liberdade... em seu nome se combateu a pretensa tirania de luiz XvI, se levantou o povo contra a disciplina inquisitória da Igreja Católica, se destruiu a Bastilha e a prepotência dos nobres.

esta, a lenda.

liberdade... que criou a lei dos suspeitos, que suprimiu a defesa dos réus nos tribunais, e que estabeleceu a escravidão da lei, e a tirania de robespierre e de napoleão. são bem filhos dessa liberdade e dessa tirania as ditaduras de lenin, de Hitler, de mussolini e de Fidel Castro...

os poderes do monarca passaram justamente para a classe burguesa. os burgueses franceses corromperam os ideais dos filósofos iluministas para atender a interesses próprios. É impressionante como a história se repete nos dias atuais (modificam-se as pessoas e mantêm-se os sistemas)! os burgueses conseguiram escravizar a sociedade por meio de leis. a liberdade sempre foi um pretexto para a “monarquia dos burgueses”.

na história da humanidade, desde o primeiro sinal de vida no Planeta terra até os dias atuais, aqueles que buscam o poder defendendo ideias libertárias, e por que não dizer revolucionárias, com lemas como “libertar o povo”, “consoli-dar a democracia”, “gerar empregos”, “distribuir renda”, “buscar o crescimento econômico”, “acabar com os marajás”, “acabar com os privilégios”, “reformar o estado”, “acabar com a fome”, “romper com a elite dominante”, sempre o fazem no intuito de conquistar votos a qualquer preço. a ideia é conquistar o poder e, para isso, vendem o lema da “felicidade”, como já dizia rousseau.

tais pessoas, durante toda a história, após conquistarem o poder político, como fizeram os burgueses na França, passam a explorar essa falsa liberdade que o povo acredita ter sido alcançada. o mesmo fenômeno aconteceu na Inglaterra, em 1215, com a Carta magna, quando os barões ingleses, inconformados com o Poder absolutista, impuseram ao rei “João sem terra” a assinatura desse docu-mento, em que havia uma cláusula permitindo a um conselho de barões rever qualquer decisão real, uma verdadeira farsa em termos políticos e sociais. não foi diferente a revolução Francesa, sempre tratada de forma glamorosa e fraterna.

assim, na revolução Francesa, a pretexto de uma utópica liberdade, o que se viu foi apenas o poder ser transferido de uma pessoa (monarca) para uma classe (burguesia), a qual, na mesma linha do antigo regime absolutista, dominou o povo.

em uma sociedade desigual, a plena liberdade e autonomia podem ser mais nefastas do que o poder absolutista ou a centralização de poder, pois, em um estado “liberal” ou liberalista, a vontade do mais forte sempre vai prevalecer sobre a vontade do mais fraco.

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não se questiona a importância da revolução Francesa, mas não podemos vislumbrar esse movimento de forma romântica e lúdica, pois a realidade mostrou que a plena liberdade apenas aumentou o abismo entre os mais ricos e os menos favorecidos, intensificando as desigualdades sociais.

os movimentos sociais do final do século XIX e de todo o século XX são a prova do fracasso do liberalismo pregado pelos burgueses franceses.

3. lIberalIsmo e dIreIto CIvIlo liberalismo burguês teve influência intensa no Direito Civil, na medida em

que o próprio Código Civil passou a ser considerado a “Constituição das relações privadas”. no estado liberal, o objetivo do Direito Civil era assegurar a plena au-tonomia do indivíduo em suas relações privadas.

Com isso, durante o liberalismo, passou a existir um paralelismo entre a Cons-tituição e o Código Civil. a Constituição, basicamente, servia para limitar o poder do estado, ao passo que o Código Civil regulava as relações privadas.

o marco histórico do Direito Civil é, sem dúvida, o Código Civil napoleônico de 21 de março de 1804. antes deste, outros Códigos existiram, mas nada comparado ao Código Civil Francês, batizado de Código napoleônico6.

Por isso, o parâmetro do Direito Civil da época era o Código Civil Francês de 1804, diploma “impregnado” pelas ideias liberais, decorrentes da revolução Fran-cesa e do pensamento Iluminista. tal Código influenciou vários diplomas civis que o sucederam, em especial o nosso bom e velho Código Civil de 1916, o qual, no conteúdo, acolheu o pensamento liberal francês e, na estrutura, passou a adotar a metodologia (divisão em Parte Geral e especial) apresentada ao mundo pelo Código Civil alemão, o famoso BGB, datado de 1896, que entrou em vigor no ano de 1900.7

o Código Civil Francês foi o grande instrumento das ideias liberais e iluminis-tas. segundo renan lotuFo,8

napoleão, ao receber e ouvir as referências do jurista PortalIs que apresentou o projeto de Código, sentiu-se confortável em dizer que ali estava a constituição do cidadão francês. a partir daí, a França não deu maior valor às demais legislações. toda a França passou a centrar-se no Código Civil. este Código e tal posicionamento legislativo ganharam

6. Como relata renan lotuFo: Código de ur-nammu, de 2100 a.C, descoberto em nipur, no começo do século XX, e o babilônico, o famoso Código de Hamurabi, que data de 1780 a.C. no âmbito do direito civil, o primeiro Código referido é o que CrIstIano v, em 1683, publicou para a Dinamarca e que veio a vigorar também na noruega, a partir de 1687, e na IslânDIa, ao qual se seguiu o Código de 1743, da suécia, entre outros.

7. Ibidem.8. Ibidem.

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tamanha repercussão que a Itália passou a adotar o próprio Código Civil francês como base legislativa. assim, o Code acabou servindo de modelo para inúmeros outros países, como a própria Bélgica, que aca-baram herdando esta nova ordem jurídica.

aliás, um registro histórico: napoleão, que participou ativamente da elaboração do Código Civil francês, teria dito que a aprovação desse diploma, que, segundo ele, viveria eternamente, era mais importante que todas as suas conquistas milita-res. muitos especulam a veracidade dessa frase, a qual, na verdade, seria de algum civilista empolgado com o novo Código Civil e não, necessariamente, atribuída a napoleão Bonaparte. este é um dos segredos da história da revolução Francesa.

o Código Civil francês passou a ser um paradigma no mundo e, como lembra novamente lotuFo,

em razão das conquistas napoleônicas, se tornou extensivo à Bélgica, luxemburgo, Prússia renana, Palatinato, Hesse, Darmstadt, Genebra, savóia, Piemonte, Ducados de Parma e Placência, Itália, Holanda. ado-taram-no espontaneamente: reino de Westfália, grão-ducados de Bale, de nassau, de Frankfurt, vários cantões da suíça e, dentre outros, o reino de nápoles.

Durante o estado liberal, os indivíduos tinham plena liberdade para atuar em qualquer relação jurídica privada. o liberalismo exaltava a autonomia da von-tade, pregando que os indivíduos eram livres para contratar e realizar negócios. aliás, os grandes pilares do Direito Civil durante o liberalismo foram justamente a propriedade, considerada pelo Código Civil francês como um direito mais que absoluto (os franceses conseguiram um superlativo para a palavra ‘absoluto’), e o contrato, no qual a liberdade de atuação era plena, tendo em vista que o estado liberal não intervinha nas relações privadas.

nessa época, os burgueses, que dominavam o Parlamento e ainda tinham receio dos magistrados, egressos da nobreza, passaram a controlar os juízes com um sistema “fechado” de leis, não admitindo, em um primeiro momento, qualquer tipo de interpretação. apenas no final do século XIX passou-se a admitir a inter-pretação meramente literal da lei.

assim, os burgueses passaram a controlar o estado em todas as suas verten-tes. Dominavam o Parlamento, detinham o poder político e passaram a controlar o Judiciário com leis que descreviam, de forma pormenorizada, todos os institutos jurídicos, justamente para impedir a interpretação. os juízes eram dominados pelas leis. montesQuIeu, em sua obra “Do espírito das leis”, chegou a dizer que o juiz era apenas a boca que pronunciava as palavras da lei, caracterizando os magistrados como seres inanimados que não podiam moderar nem a força nem o rigor da lei.

Por isso se diz que o sistema positivista é “fechado”, as leis são autoexpli-cativas, se isso é possível, absolutamente conceituais, com preceitos determina-dos e preestabelecidos pelo Parlamento burguês. Com essa estratégia política, a burguesia conseguiu transformar o liberalismo em um verdadeiro estado Burguês.

34 Daniel Carnacchioni

essa foi a grande farsa da revolução Francesa, a qual é sempre passada para a humanidade de uma forma romântica e fraternal. a revolução Francesa não passou de uma mudança de regime, nada mais do que isso.

não havia qualquer romantismo ou fraternidade no pensamento burguês.

apenas para fazer justiça, deve ser ressaltado que alguns filósofos iluministas realmente acreditavam em uma sociedade justa, livre e solidária, mas esse lema apenas serviu como uma fachada para os burgueses conquistarem o poder e a liberdade que lhes interessava para, em seguida, explorar essa liberdade.

os burgueses não hesitaram em explorar o mais fraco, a pretexto de que todos eram livres e iguais perante a lei (igualdade meramente formal). todos sa-bem que não existe igualdade em uma sociedade desigual. a liberdade intensificou tanto a exclusão social que, nesse período, chegou-se a dizer que a “liberdade escraviza e a lei liberta”. Como pode a liberdade escravizar? É um paradoxo. mas tem sua razão de ser, pois a liberdade plena faz com que a vontade do mais poderoso venha a prevalecer sobre a vontade do mais fraco. este permanece escravo de sua vontade e da sua própria liberdade.

a liberdade plena pressupõe igualdade substancial, inexistente durante o es-tado liberal. em razão dessa falsa liberdade, começou-se a perceber a necessi-dade de mudança para admitir ao estado, de alguma forma, intervir nas relações privadas, amparando o mais fraco.

no liberalismo, o Código Civil desempenhava o papel de constituição das re-lações privadas, relegando-se à Constituição o papel de regular as relações entre estado e indivíduo, justamente para limitar a atuação dos governantes.

Como bem ressalta sarmento:9

na lógica do estado liberal, a separação entre estado e sociedade tra-duzia-se em garantia da liberdade individual. o estado deveria reduzir ao mínimo sua ação, para que a sociedade pudesse se desenvolver de forma harmoniosa. entendia-se, então, que sociedade e estado eram dois universos distintos, regidos por lógicas próprias e incomunicáveis, aos quais corresponderiam, reciprocamente, os domínios do direito público e do direito privado. no âmbito do direito público, vigoravam os direitos fundamentais, erigindo rígidos limites à atuação estatal, com o fito de proteção do indivíduo, enquanto no plano do direito privado, que disciplinava relações entre sujeitos formalmente iguais, o princípio fundamental era o da autonomia da vontade.

o culto da lei pelo liberalismo e a ideia de que a sociedade perfeita era aquela que não admitia a intervenção do estado nas relações privadas começou a ruir já no final do século XIX. Diante da desigualdade provocada pelo liberalismo,

9. sarmento, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. rio de Janeiro: lumen Juris, 2008.

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o movimento passou a suportar críticas, principalmente porque os valores huma-nitários não estavam sendo observados nesse período.

o patrimônio preponderava sobre a pessoa humana. o liberalismo tinha como pilares a propriedade e o contrato. Garantia-se a propriedade a qualquer custo, tanto que o Código Civil francês conseguiu a “façanha” de criar um superlativo para a palavra “absoluto”, ao dizer que a propriedade era um direito mais que absoluto.

Durante o estado liberal, o Direito Civil centralizou as regras e princípios re-ferentes à regulação das relações privadas. a Constituição, influenciada por esse ideal liberal, tinha uma concepção estritamente política, não dispondo sobre re-gras e princípios de direito privado. nas relações entre particulares, a única fonte legislativa era o Direito Civil. as regras e os princípios constitucionais somente eram invocados nas relações entre o indivíduo e o Poder Público para garantir a liberdade individual. a Constituição tinha como objetivo limitar o poder do estado.

nosso primeiro Código Civil encampou, em seu conteúdo, essas ideias liberais da revolução Francesa e, principalmente, do Código Civil napoleônico de 1804, razão pela qual o diploma de 1916 sempre foi taxado de patrimonialista e indi-vidualista.

o legislador do início do século passado, ao elaborar o Código Civil de 1916, não se preocupou com a tutela do ser humano, com questões humanitárias, com os direitos decorrentes da personalidade, os quais começavam a serem discutidos naquela época, dando as costas para a pessoa humana desprovida de patrimônio.

a sociedade brasileira da época era patriarcal e agrária, fator decisivo para essa preocupação excessiva com o patrimônio, desprezando o ser humano, cuja figura, no Código Civil de 2002, passou a ser o centro do sistema jurídico.

Gustavo tePeDIno10 bem destaca essa característica do Código Civil de 1916:o Código Civil de 1916, bem se sabe, é fruto da doutrina individualista e voluntarista que, consagrada pelo Código de napoleão e incorpo-rada pelas codificações posteriores, inspiraram o legislador brasileiro quando, na virada do século, redigiu o nosso primeiro Código Civil. Àquela altura, o valor fundamental era o indivíduo. o direito privado tratava de regular, do ponto de vista formal, a atuação dos sujeitos de direito, notadamente o contratante e o proprietário, os quais, por sua vez, a nada aspiravam senão ao aniquilamento de todos os privilégios feudais: poder contratar, fazer circular as riquezas, adquirir bens como expansão da própria inteligência e personalidade, sem restrições ou entraves legais. eis aí a filosofia do século XIX que marcou a elaboração do tecido normativo consubstanciado no Código Civil de 1916. (...) o Có-digo Civil brasileiro, como os outros Códigos de sua época, era a Cons-tituição do Direito privado. De fato, cuidava-se da garantia legal mais

10. tePeDIno, Gustavo. Temas de direito civil. 4. ed. rio de Janeiro: renovar, 2008.

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elevada quanto à disciplina das relações patrimoniais, resguardando-as contra a ingerência do Poder Público ou de particulares que dificultasse a circulação de riquezas. o direito público, por sua vez, não interferia na esfera privada, assumindo o Código Civil, portanto, o papel de es-tatuto único e monopolizador das relações privadas.

o Direito Civil liberal não suportou as transformações sociais que vinham ocor-rendo no final do século XIX e se prolongaram por todo o século XX, sendo obri-gado a buscar novos horizontes.

no estado liberal, em que o Direito Civil era o principal instrumento de regula-ção das relações privadas, obviamente acabou-se absorvendo os ideais burgueses, em que a autonomia da vontade e a liberdade de atuar na esfera privada deve-riam ser garantidas pela lei Civil a qualquer custo. em razão da plena autonomia da vontade, nesse período, surgiu um dos principais princípios da teoria clássica dos contratos, qual seja, a obrigatoriedade do cumprimento dos contratos (pacta sunt servanda) – o contrato faz lei entre as partes.

Diante da autonomia plena da vontade, as pessoas tinham a liberdade de contratar, de regular os interesses e, ao se vincularem, deveriam cumprir as obri-gações contratuais, como se o contrato fosse um ordenamento jurídico. não se admitia a intervenção do estado para rever uma obrigação ou um contrato que violasse, de forma flagrante, o direito de uma das partes. a liberdade, pregada pelos burgueses, não admitia qualquer intervenção estatal, evidenciando o estrago causado pelo estado liberal.

ou seja, no estado liberal tivemos duas etapas: a primeira, a da conquista da liberdade, e a segunda, a da exploração dessa liberdade. este era o retrato do Direito Civil no estado liberal.

as críticas ao liberalismo econômico se acentuavam dia após dia, principal-mente pelos socialistas, que repudiavam o capitalismo burguês, e por uma ala mais social da Igreja, que defendia direitos para o trabalhador.

a primeira Guerra mundial (1914-1918), a revolução russa de 1917, a influ-ência do modelo soviético em vários países que passaram a adotar esse novo regime, entre outros movimentos sociais, começaram a minar as resistências a um novo modelo de estado, iniciando-se a transição do estado liberal para o estado social.

o estado liberal conseguiu se sustentar enquanto havia uma relativa estabili-dade econômica. Já no final do século XIX e início do século XX, as crises econô-micas provocadas por vários fatores e que se intensificaram durante a primeira grande guerra, deixaram de ser conjunturais ou excepcionais e, a partir de então, se vislumbrou a necessidade da mudança de paradigmas, a necessidade de se permitir que o estado interferisse nas relações privadas.

o estado denominado “social” tem origem nessa necessidade de proteção das pessoas em suas relações privadas. exemplo disso é a leI FaIllot, pós-primeira

Princípios Constitucionais no Direito Civil Contemporâneo 37

guerra, editada na França, que passou a permitir a resolução de contratos de fornecimento de gás que se tornaram prejudiciais aos contratantes. os franceses se renderam às vicissitudes da economia porque estavam mitigando, pela primeira vez, um dos mais importantens princípios liberais, o pacta sunt servanda.

a ideologia do estado social era baseada na justiça social e distributiva, de-fendendo a intervenção do estado nas relações privadas. o estado social pode ser democrático ou ditatorial. o que caracterizou, e ainda caracteriza, o estado social é o fato de a Constituição em tal estado trazer regras sobre a ordem econômica e social, permitindo, assim, a intervenção estatal nas relações privadas.

sobre o início da derrocada do liberalismo, tePeDIno11 é preciso:

esta era de estabilidade e segurança, retratada pelo Código Civil bra-sileiro de 1916, entra em declínio na europa já na segunda metade do século XIX, com reflexo na política legislativa brasileira a partir dos anos 20. os movimentos sociais e o processo de industrialização crescente do século XIX, aliados às vicissitudes do fornecimento de mercadorias e à agitação popular, intensificadas pela eclosão da Primeira Grande Guerra, atingiram profundamente o direito civil europeu, e também, na sua esteira, o ordenamento brasileiro, quando se tornou inevitá-vel a necessidade de intervenção estatal cada vez mais acentuada na economia.

Como o Código Civil de 1916 foi promulgado nessa fase de transição, acabou, por essa razão, absorvendo as ideias liberais que vinham sendo contestadas. Foi o legislador brasileiro obrigado a editar leis extravagantes, tudo para atender às demandas contingentes e conjunturais. tais leis passaram a conviver com o Códi-go Civil, mas este ainda mantinha a fisionomia de ordenador único das relações privadas.

todavia, a partir dos anos 30, o contingente de leis extravagantes se intensifi-cou e o Código Civil começou a perder a exclusividade na regulação das relações patrimoniais privadas.

Conforme bem ressalta tePeDIno12, por meio de tais normas, conhecidas como leis especiais – justamente por sua técnica, objeto e finalidade de especialização em relação ao corpo codificado – , o legislador brasileiro levou a cabo longa in-tervenção assistencialista, expressão da política legislativa do WelFare state que se corporifica a partir dos anos 30, tem assento constitucional em 1934 e cuja expres-são, na teoria das obrigações, se constituiu no fenômeno do dirigismo contratual.

esse estado de coisas enseja uma abrangência cada vez menor do Código Civil, contrapondo-o à vocação expansionista da legislação especial. a partir do longo processo de industrialização, que tem curso na primeira metade do século

11. tePeDIno, Gustavo. Temas de direito civil. 4. ed. rio de Janeiro: renovar, 2008.12. tePeDIno, Gustavo. Temas de direito civil. 4. ed. rio de Janeiro: renovar, 2008.

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XX, das doutrinas reivindicacionistas e dos movimentos sociais, instigados pelas dificuldades econômicas que realimentavam a intervenção do legislador, verifica--se a introdução, nas Cartas Políticas e nas grandes Constituições do Pós-Guerra, de princípios e normas que estabelecem deveres sociais no desenvolvimento da atividade econômica privada. o Código Civil perde, assim, definitivamente, o seu papel de Constituição do Direito Privado.

4. estado soCIal e dIreIto CIvIl

a transição do estado liberal para o estado social, como não poderia ser di-ferente, acabou repercutindo no Direito Civil. antes baseado na plena liberdade de atuação jurídica e na mais absoluta autonomia de vontade nas relações privadas, o Direito Civil passou a transigir com essas ideias de justiça social, se curvando para a necessidade de regulação das relações privadas pelo estado sempre quan-do houvesse necessidade desta intervenção estatal.

Começa um movimento para romper com o sistema patrimonialista oriundo do liberalismo para dar lugar à humanização do Direito Civil, passando este a se respaldar em valores e princípios sociais voltados para uma tutela adequada do ser humano, deixando em segundo plano questões estritamente patrimoniais.

a consolidação dessas ideias sociais no Brasil somente se deu com a Consti-tuição Federal de 1988, até porque, após a segunda Grande Guerra mundial e um pequeno período de estabilidade política, o país acabou mergulhado por 20 anos em uma ditadura, cujo regime não estava sintonizado (para dizer o mínimo) com esse movimento social.

o estado social faz o Poder Público deixar de lado a sua inércia, que o ca-racterizava no estado liberal com o evidente absenteísmo na esfera econômica, passando a assumir um papel ativo e, por isso, passa a ter uma preocupação efetiva com a tutela da pessoa humana. o estado começa a ter deveres positivos, de prestação, das mais variadas naturezas, em prol da pessoa humana. os direi-tos fundamentais da pessoa humana, a serem analisados em tópico próprio, dão sustentação a tais deveres de prestação.

os direitos de prestação exigem do estado uma atuação ativa para atenuar as desigualdades sociais. nas palavras de menDes e Gonet13, os direitos à prestação partem do pressuposto de que o estado deve agir para libertar os indivíduos das necessidades sociais. tais direitos supõem que, para a conquista e manutenção da liberdade, os Poderes Públicos devem assumir comportamento ativo na sociedade civil. o traço característico dos direitos à prestação está no fato de se referirem a uma exigência de prestação positiva, e não de uma omissão.

13. menDes, Gilmar Ferreira; CoelHo, Inocêncio mártires; BranCo, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. são Paulo: saraiva, 2009.

Princípios Constitucionais no Direito Civil Contemporâneo 39

nesse contexto, o estado intervém nas relações sociais sempre no intuito de tutelar o mais fraco no caso concreto.

no âmbito do Direito Civil isso fica evidente, pois começam a se multiplicar normas de ordem pública, ampliam-se as limitações à autonomia da vontade, modificam-se os paradigmas, tudo agora em prol do interesse coletivo e não mais do indivíduo. Com isso, o estado passa a intervir nas relações privadas, passando a promover a igualdade concreta, chamada de igualdade substancial, diferente da mera igualdade formal do sistema liberal.

o Direito Civil passa por uma profunda transformação com a transição do estado liberal para o estado social. a autonomia da vontade passa a ser mitigada por princípios e valores sociais e a propriedade, instituto pilar do estado liberal ao lado do contrato, no estado social somente tem a tutela estatal se tiver uma função social.

a primazia deixa de ser a vontade para ser a justiça social. o Direito Civil deixa de ser instrumento para a garantia da autonomia e liberdade dos cidadãos para servir como meio de promoção de justiça social nas relações privadas.

Com o estado social, acaba o paralelismo entre Código Civil e Constituição Federal, pois, nesse novo estágio, a Constituição deixa de ter uma concepção es-tritamente política para adotar também uma concepção jurídica. assim, todas as normas constitucionais possuem força normativa, sendo todas as suas disposições espécies de normas jurídicas. o Código Civil passa a interagir com a Constituição Federal em um verdadeiro e bem-sucedido “diálogo de fontes”.

a Constituição Federal incorpora regras e princípios de direito privado que, antes, apenas integravam as legislações infraconstitucionais, exigindo uma releitura do Direito Civil, agora à luz do Direito Constitucional. o Código Civil não mais mo-nopoliza os institutos de direito privado, devendo observar os princípios e valores estabelecidos na Constituição Federal para que as relações privadas mereçam a devida tutela estatal.

Com o estado social, sai de cena o proprietário para dar lugar à pessoa; desponta a afetividade como valor essencial da família; a função social como li-mite e conteúdo das obrigações e da propriedade; a equivalência material; entre outros valores.

no Brasil, todo esse movimento social, que fez com que o estado interviesse de forma efetiva nas relações privadas, passou a ser percebido, de forma mais intensa, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que, certamente, revolucionou o Direito Civil.

5. prInCípIos ConstItuCIonaIs e sua relevânCIa para o dIreIto CIvIlno ordenamento jurídico brasileiro, o estado social se consolidou com a Consti-

tuição Federal de 1988, rotulada pelos parlamentares constituintes de “constituição

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