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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº65 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2002 VOLUME V ISSN 1517-5421 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: [email protected] CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA ISSN 1517-5421 lathé biosa 65 O HUMANO COMO INSÍGNIA EDILANIA ARRUDA ROSENDO PRIMEIRA VERSÃO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº65 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME V

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 65

O HUMANO COMO INSÍGNIA

EDILANIA ARRUDA ROSENDO

PRIMEIRA VERSÃO

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Edilania Arruda Rosendo O HUMANO COMO INSÍGNIA

Aluna do Mestrado em Ciências Humanas - UFRO

[email protected]

Numa perspectiva foucaultiana, o discurso homem, tecido secular construído no limite imaginário das mais distintas épocas, materialidade que se faz

paradoxalmente palpável e intocável, que se crê existente e, em essência, é por toda a sua extensão, personagem na arte da representação.

O descendente genético nasce, perpetuando a espécie, despido da cadeia cultural que, mais tarde, lhe transformará homem/mulher, negro/branco, pobre/rico,

magro/gordo dentre outras polaridades e que não cessará de transformar-se, lapidar-se.

Indivíduo histórico que, ao longo de sua invenção social, sofrerá sujeição física, neural e cultural das científicas sínteses, textualmente articuladas, para

ordenar sua projetada existência. Modelagem que não aceita resistências para resultar em uma efetiva aceitação coletiva.

No processo de maturidade deste ser vivo perpassa a educação pelos sentidos (visão, audição, tato, olfato e paladar), que serão friccionados, estimulados a

funcionar e a se constituírem em instrumentos de comunicação e compreensões sobre tudo que será gerado, reproduzido, circulado, comercializado, etc.

Gene, que se formatará gente, materialidade de um devir, invólucro de um coexistir. Será um estatuto jurídico, terá um nome, um número e o que lhe virá?

que papel ocupará na sociedade civilizada? será um professor? um advogado? um poeta? um internauta? um gari? um marginal? um sonhador? um construtor? um

vencedor ou um vencido?

Ser sexuado que será enquadrado, rotulado, carimbado, tachado, fichado, discriminado e em quais redes se embalará? Homo? etero? Bi? Pan? Ou trans? o

desafio está posto: sobrepor-se na dor e na delícia de ousar viver o que se deseja chegar a ser. O que se sabe é que desse animal se espera uma conduta contínua e

cartesianamente racional: deve crescer, produzir, reproduzir, consumir e partir.

Assim, a vida se fecha em seu círculo. Círculo que se reinicia na fissura dos outros devires, por ser a própria vida natureza e naturalizada na confluência de sua

força, no rompante de seus acontecimentos, nas marcas de sua temporalidade, nas margens de sua exclusão. Vida recriada na dinâmica de reelaboração do vivido,

mas também no afã de tudo que inspira a vontade de renovação, enxertando com sangue novo o que não passaria de repetição. Mas nesse refazer-se, a ditadura do

humano ensinará o nascido a andar, a sofrer, a ler, a comer, a estudar, a sonhar, a reprimir-se, a trabalhar, a obedecer e o conduzirá ao fim último de sua tradição:

amar. E amando o futebol, o romance e os ídolos, viverá o delírio de sua fome, que para uns será de comida, de dignidade, de cultura; para outros, além disso, será

de carros, de propriedades, de banalidades; para terceiros, de poder, de dinheiro e de mandato.

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Envolvido nas alucinantes imagens do sacerdote virtual (TV), será guiado num jogo visual, ao culto único do deus capital que, reconfortantemente, fará tudo

lhe parecer redondo e, penetrando nos recônditos de sua consciência, ofertar-lhe-á ares de modernidade, alisando o ego do já tão amansado ser que, sem se

reconhecer dominado, não quer, não pode nem lutará por liberdade.

Assim, os ferretes do escravismo neoliberal saíram da tez e desfilam nas vestes que autorizam a circulação, aceitação e identidade social. E vão-se a Nike, a

Zoomp, a Microsoft, a Mastercard e tantos outros, ocupando o imaginário e o cartão postal vocabular do corpo e do que se pensa humano. Gostaria de tocar nesta

região que se desvela como corpo textualizado, ritualizado de um dentro e de um fora. Um fora que se faz vitrine da nudez suplicante de movimento, posse, consumo.

Um corpo que dialoga com um corpus social, que produz e consome, que passivamente se nomina no jogo cultural dos invólucros masculino/feminino.

Um corpo que se genitaliza, nos pacotes moldados do ser homem, que se brutaliza e ser mulher, que se fragiliza; imagens mutuamente naturalizadas na

incondicional educação para a diferença, fronteiras do instituído fálico poder (para eles) e subserviência (para elas). E se dialetizam, Id e ego, por entre o liberado e o

reprimido, superfície e profundidade; polaridades do humano que se dualizam entre rg's e cpf's despersonalizados entre imposições, proibições e repressões, as quais

libertinamente lutam contra o lugar-comum de suas epetições/condenações/punições.

Espectadores de imagens e de sentidos, um rosto, um toque, um poema, uma pluma, outra formatação. Tecido interiorizado, psicologizado. Devir que se cala,

inconsiência que se corporifica, coisifica-se. E, no entanto, essa tênue linha de visibilidade o envolve numa rede complexa de incertezas edipianas, jocastianas, cristãs,

elementares e culturalmente humanas. Complexos, estresses e divãs, e tudo ou se explica ou se pira - sem nexos a coisa se complica. Hipertexto de consumos:

provetas e clones, sumos materialistas. Contradição: contraceptivos e engenharia genética. Tensão: terreno no qual superpopulação se encontra com um vantajoso

superfaturamento, variações do mesmo tema.

Compulsões sociais: templo dos ship´s, fogo eletrônico, internet, glabalização, Taylorização, alucinação, games da vida. Homem: elemento cômico, que se

verbaliza, em falas autorizadas, verdades consentidas, pré-estabelecidas; identidades divididas: proprietário, intérprete ou apenas artífice no grande palco da

representação? vaidades diluídas! Espetáculo que ele, homem, cria e observa, adentra e desvela, esconderijo preciso do ponto cego de sua existência. consciências

que se guiam e se vigiam. Vontades reprimidas, loucuras controladas, impulsões governadas e autogovernadas. Jogo de esconde-esconde em que se representa o que

não se é muito menos por não saber o que se é do que por saber ser.

Neste fluxo, o elemento homem distancia-se de seu espelho (criador) e na soberba de sua própria criação (cultura), faz-se obra (existir) na textura de suas

crenças (enfrentamento), re-tecendo suas experiências (permissão) na ousadia de sua reinvenção (superação). Obra que não vem de parte alguma, senão de um

espaço que lhe seria interior, cavidade sombria, sem violações, mas com interdições. Sem nenhum olhar capaz de torná-lo atual, descrito, lido, dito. Resultado de um

nada que toca sua profundidade, toca a reduplicação das binômias identidades criatura/criador, esses reversos que não se fixam e instalam-se como mutantes, sem

cessar em forma e conteúdo, em formato e formatação.

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Homem que no espaço de sua tradição é reverso revestido ou estética serial e faz-se texto primeiro e nada diz do que já foi dito e, por sua vez, é atravessado

por todos os dizeres antecessores. Discurso que não faz crer nada além do regime panoptiniano de vigília e punição no qual se encontra imerso. Texto que se

ficcionaliza na grade invisível das interioridades, do inapreensível homem que se contenta em enquadrar-se na moldura do que o faz crer-se humano.

BIBLIOGRAFIA

CALDAS, Alberto Lins. ORALIDADE, TEXTO E HISTÓRIA: PARA LER A HISTÓRIA ORAL. Edições Loyola.São Paulo 1998.

FOUCAULT, Michel. VIGIAR E PUNIR. 23ª Edição. Vozes Petrópolis. 2000.

________________. MICROFÍSICA DO PODER. 15ª Edição. Graal. Rio de janeiro. 2000.

________________. A ORDEM DO DISCURSO. 15ª Edição. Edições Loyola. São Paulo. 1999.

________________. A PALAVRA E AS COISAS. 15ª Edição. Edições Loyola. São Paulo. 1999.

WHITAKER, Dulce. MULHER E HOMEM: O MITO DA DESIGUALDADE. 8ª Edição. Editora moderna. São Paulo. 1988.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº66 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME V

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 66

FORMAÇÃO DA ALMA BRASILEIRA

ELISABETE CHRISTOFOLETTI

PRIMEIRA VERSÃO

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Elisabete Christofoletti FORMAÇÃO DA ALMA BRASILEIRA

Psicóloga e Mestra em Educação

[email protected]

“O homem leva sempre consigo sua história toda e a história da humanidade.” Jung

A primeira é imagem Severina. O desejo de abandonar o sentimento, a sensação Severina, de busca, sofrimento, e identidade. De tantos Severinos, Severinas

que somos, filhos de tantas Marias de finados Zacarias. Como isso ainda é pouco, somos tantos e iguais em tudo na vida: a mesma cabeça grande, o ventre crescido,

as pernas finas, o sangue com pouca tinta e morremos da mesma morte Severina: “Que é morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos

vinte, de fome um pouco por dia”. Nosso Severino tem mesmo uma sina: caminhar ao encontro da morte, e esta por certo sempre encontrou e quando encontrou vida

Severina compreendeu que é mais defendida que vivida.

Que peso carregam nossos Severinos? Que destino!? Que destino Severino acreditamos ter?

Longe de Severino penso em Ari Barroso, na execução da Orquestra de Música Brasileira, que nos oferece uma leitura de espaços lentamente preenchidos com

o toque dos instrumentos, como uma espiral inflacionária, somos inflados, e ao saborear docemente vamos recobrando o espírito de antes do nascimento.

Retornemos, portanto, a nossa certidão de nascimento. Hoje, foram 22 dias de abril ...

“Neste mesmo dia, a hora de véspera, houvemos vista de terra! A saber primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais

baixas ao sul dele; e de terra chã, com grande arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!”

O ENCONTRO: A TROCA “Pardos, nus, sem coisa alguma que lhe cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas.Vinham todos rijamente em direção ao batel. E

Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na

costa. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro

de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas

que querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isso se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais

fala, por causa do mar.”

A IMAGEM “A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rosto e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso

de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido

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nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de

dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a moda de roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhe

põem estorvo no falar, nem no comer e beber.

Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que sobre-pente, de boa grandeza, rapados todavia por cima das orelhas. E

um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira, de penas de ave amarela, que seria de comprimento de um coto, mui

basta, e mui cerrada , que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição branda como, de maneira tal que a

cabeleira era mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.

O Capitão, quando eles vieram, estavam sentados em uma cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao

pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui na nau com eles íamos, sentados no chão, nessa alcatifa.

Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e

começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. Também olhou para um castiçal de

prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata!

Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse ali.

Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele.

Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados.

Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada; e se provavam alguma coisa,

logo a lançavam fora.

Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada, nem quiseram mais.

Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não beberam; apenas lavaram as bocas e lançaram-na fora.

Viu um deles umas contas de rosário, branca; fez sinal que lhe dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as no pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em

volta do braço, e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão, como se dariam ouro por aquilo.

Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim desejarmos! Mas se ele queria dizer que levaria as conta e mais o colar, isto não queríamos nós entender, por que lho

não havíamos de dar!...”

A MISSA E O PARAÍSO “Enquanto assistimos à missa e ao sermão, estaria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos, como a de ontem, com seus arcos e setas, e andavam

folgando. E olhando-nos, sentaram. E depois de acabada a missa, quando nós sentados atendíamos a pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou

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buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias - duas ou três que lá tinham - as quais não são feitas como as que eu vi;

apenas são três traves, atadas juntas. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra, só até onde podiam tomar pé.”

“Andamos por aí vendo o ribeiro, o qual é de muita água e muito boa. Ao longo dele há muitas palmeiras, não muito altas; e muito bons palmitos. Colhemos e

comemos muitos deles.”

A MISTURA “Ao sairmos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos em direção à cruz que estava encostada a uma árvore, junto ao rio, a fim de ser colocada amanhã,

sexta-feira, e que puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou dose que lá

estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram todos beijá-la.

Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma,

segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção

de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela

simplicidade. E imprimir-se-à facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens

bons. E o Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação

deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!”

A CRUZ E O BATISMO “... Plantada a cruz, com as armas e divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique,

a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelho assim como nós. E

enquanto se veio o Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim até se

chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós estávamos,

com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção.”

O desfalque e o ataque à natureza são nossos sinais de Batismo. No princípio fomos invadidos, logo em seguida tivemos retirado nossas árvores, nossa terra

violentada, e nascemos, portanto, desfalcados.

Da terra retiram/derrubam o pau-brasil, e a cruz é feita. A retirada torna-se um símbolo forte do início, o desfalque e o ataque à natureza são nossos sinais de

batismo, como o é também a posse da mulher índia pelo branco invasor (fomos e agimos como seres possuídos) até hoje.

Encantamo-nos com os brilhos (as luzes do shoping center), fomos seduzidos e nos deixamos possuir, curiosos e ingênuos.

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Compomos civilização aparentemente frágil, que compõe sua história em construções de palha, paxiúba, porém justamente em nossa fragilidade está nossa sutileza e

por todos estes motivos justamente precisam ser tão cuidadas, pois pode não permanecer. Nossa fragilidade é nosso trunfo, porém acreditamos muito mais em

fragilidades, inseguranças. Importante tanto quanto ser, é o que acreditamos ser.

O processo psíquico constituído por meio da história, carrega cada mito indígena ou seringueiro a auto-representação da psique brasileira, contando sua

maneira de ser por meio da linguagem que lhe é própria – a das imagens. Somos fruto do processo que criou a consciência, o modo de ser, pensar e agir, do qual

somos portadores e representantes, e do passado riquíssimo que foi deliberadamente apagado.

A ORIGEM “Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve

lançar. E que não houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui está pousada para essa navegação de Calicute bastava. Quanto mais, disposição para se nela cumprir e

fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa fé!”

“Beijos as mãos de Vossa Alteza.”

Na origem tínhamos o paraíso, uma floresta cifrada, tocada para seu uso, a sombra escondendo as árvores - útero.

Neste útero/espaço se encontram o índio e o desbravador. O índio, filho da terra, guiado por Eros, livre, espontâneo, cabe garantir a continuidade, a coesão

interna do Cosmo, por isso é força importante vinculada à vida.

O desbravador chega guiado por sua sombra. A busca pelo desconhecido, terras que poderiam lhe oferecer glórias, riquezas. Encontra terra assustadora de habitantes

que destoavam dos europeus, mas onde seria visto o paraíso de suas projeções mais íntimas. Nosso branco vem em busca de seus sonhos, do que está por ser feito.

Por isso é importante retornarmos, reconhecer uma alma ancestral no Brasil, como propõe Gambini. Nossa consciência e identidade foram construídas no

plano da racionalidade, após uma investida intensa para anular a irracionalidade que compunha a população que habitam essas mesmas terras “descobertas”. O

equilíbrio entre a racionalidade do branco e a irracionalidade do nativo poderiam compor o equilíbrio perdido, já quando fomos invadidos.

De fato, não fomos descobertos, mas invadidos. Costumeiramente não enfrentamos nosso nascimento, cremos numa história fantástica (que aprendemos na

escola e que alimentamos o tempo todo) e fazemos isso porque precisamos desse tipo de história, quando surgimos como conseqüência de um feito fascinante, fomos

“descobertos” por acaso, (quem surge não tem gestação, não é esperado, não se prepara, que tipo de pai ou de mãe poderá ter portanto?) como conseqüência de

feitos extraordinários (lembremos da história oficial do descobrimento do Brasil). Dessa maneira sentimo-nos enobrecidos, como se nesta situação encontrássemos

nossa grandeza.

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Nossa terra incógnita e “descoberta” (fantasia do paraíso – na carta de Pero Vaz de Caminha) que não era de ninguém e recebe a projeção do paraíso sobre

si, constituiu-se na matriz de consciência para a qual é possível e desejável apropriar-se da abundância e sugar para sempre como eternos filhos que nunca crescem,

buscando sempre no seio farto o alimento, atribuindo por conseguinte todas as responsabilidades aos pais.

O PAI E A MÃE Darcy Ribeiro, em seus textos fala da protocélula do povo brasileiro: A criação de um híbrido que nunca saberá quem é, porque nem pai, nem mãe lhe servirão

de espelhos ou modelos de identidade.

Nossa relação com a Terra (mãe) é bastante frágil e debilitada, enxergamos muitas vezes a o trabalho com a terra como relação secundária, literalmente de

segunda categoria. Sofremos uma estupidez, uma crueldade, órfãos de mãe e abandonados pelo pai.

A SOMBRA Talvez as imagens mais fortes que tenhamos sejam a cruz e a serpente. O cristianismo dissipou suas teorias e encontrou na postura de nosso povo, no

despojamento, na disponibilidade, terreno ideal para projetar sua necessidade de dependência, o conceito de pecado, para caracterizar a libertação do mal simbolizada

na serpente.

Passamos pelo encontro, dois mundos, duas leituras que interagiram por sobreposição, jamais o branco pode ouvir o índio. Os Jesuítas aqui chegando,

atribuíram a imagem cristã do inferno sobre os nativos, foram incapazes de aceitar a alteridade e sua forma de vida, criando olhar pré-julgando de repressão e

supressão. Importa compreender porque o comportamento instintivo em geral deveria ser considerado tão vil.

O olhar missionário foi incapaz de apreciar e compreender a gratuidade de viver do índio ao cantar, dançar e beber. Não seria necessário participar dos rituais,

bastaria aceitar pelo que são, mas isso não foi possível. Nas várias descrições da imagem do índio e da terra “descoberta” encontramos referências a eles como

diabos; a nudez, a pintura pela pele, os coloridos das pinturas e plumagens, suas músicas, danças, rituais de vida ou morte, era identificado como o próprio inferno. O

contato com a mata talvez não possibilitou outra leitura, e com certa facilidade os europeus transformavam os espíritos da mata como entidades demoníacas,

elegendo os índios seus interlocutores.

Como o punhal pacificador, ao penetrar no território conquistado a cruz trespassa a alma ancestral do Brasil. Em contraste com as mulheres devotas,

submissas, contidas, sofridas que conheciam, os conquistadores encontraram por aqui algo novo e diferente: mulheres disponíveis com olhos formatadas pela

sedução, carregados de amoralidades. Uma completa invasão do ego pelas forças arquetípicas do princípio feminino renegado, pois foi sobre as mulheres que os

Jesuítas projetaram seu lado mais intolerante, essa dimensão vazia, não trabalhada de sua psique. As índias outra vez como espelho (Gambini) refletiam a frágil

condição amorfa, caótica e arcaica da anima jesuítica. É a anima que permite a um homem abrir-se para o inconsciente, para o novo, para o mundo, relacionar-se (ao

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mesmo tempo em que nega) com a natureza e nela encontrar beleza e sentido, e acima de tudo relacionar-se positivamente com o sexo oposto. A anima é para o

homem o arquétipo da potencialidade da vida e da satisfação de viver.

Quando uma porta é fechada para impedir que a anima participe criativamente da vida psíquica, não deixa de existir, mas atua destrutivamente por trás, nos

bastidores, pelo fato de ser negada, encontra uma brecha e atua por trás (assim nascem as bruxas, quando uma das fadas tem seu convite extraviado para participar

de uma recepção. Sentindo-se traída, rejeitada, abandona a vida inverte o tom). As índias eram escravizadas e utilizadas como concubinas, pagando pelo mal que não

sabiam realizar, concretizando a idéia de pecado e punição.

A imagem de Macunaíma é bastante forte neste momento, pois é aquilo que ainda não pode ser. O que brinca o tempo todo, que tem preguiça, o que ao

mesmo tempo nos diferencia porque permitimos o ócio, ouvimos nosso corpo, mas também é nossa prisão, pois pode fazer com que não saiamos da superficialidade

das coisas, sempre estamos buscando o caminho mais rápido, mais fácil, antes de cansarmos. Não configuramos um amadurecer, continuamos filhos irreverentes.

Forjamos um “Povo Zé-ninguém” (de Darcy Ribeiro ou Reich). Criamos o hábito de olhar para nós mesmos e sentir que não fomos nós que fizemos, não somos nós

quem controla, não cabe a nós decidir nada seriamente, o povo brasileiro faz sempre figuração e espetáculo.

Zé Carioca, o malandro, é outra imagem bastante brasileira, tem duas fases, a primeira quando nasce sempre produzido no Rio de Janeiro e a segunda quando passa a ser produzido em São Paulo, justamente quando ganha esse caráter da malandragem, a imagem que faz o paulista do carioca. Será o espelho negado, reprimido, a sombra?

Continuando filhos ... a relação mãe e filho, fundamental para o crescimento, foi anulada logo de princípio. Nem sempre soubemos de onde viemos, não

pudemos ser amado, nutrido e protegido por essa mãe, nem nos espelhar nela, como também não pudemos nos relacionar com um pai, que nem apareceu na

história. O herói vai fazer seu percurso, mas não terá as condições iniciais para cumprir o destino, muitas vezes nem mesmo o reconhece, não chega ao fim de uma

trajetória heróica, no entanto estamos diante do arquétipo do herói necessário, que não pode ser herói por completo. Vive a morte da mãe, a ausência do pai, e a

ignorância de quem é.

Tornamo-nos sobreviventes e cada vez menos autores de nosso próprio destino.

BIBLIOGRAFIA CAMINHA, Pero Vaz. A Carta. Bookweb. Editora e Livraria Virtual, s/d.

DIAS, Lucy & GAMBINI, Roberto. Outros 500. Uma Conversa Sobre a Alma Brasileira. São Paulo, Editora SENAC, 1999.

GAMBINI, Roberto. Espelho Índio. São Paulo, Axis Mundi/ Terceiro Nome, 2000.

JUNG, C.G. Tipos Psicologicos. Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 1943.

RIBEIRO, Darci. O Povo Brasileiro: a Formação e o sentido do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº67 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME V

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 67

JÁ ESTAMOS NA CAMUFLADA GUERRA CIVIL DO DESEMPREGO

CLODOMIR MORAIS

PRIMEIRA VERSÃO

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Clodomir Santos de Morais

[email protected]

Professor de Sociologia Rural - UFRO

JÁ ESTAMOS NA CAMUFLADA GUERRA CIVIL DO DESEMPREGO

O desemprego e o sub-emprego que confIgura a marginalidade, no Brasil, têm conformado uma força social tão poderosa que chega mesmo a impor um

diário “toque de recolher”, a partir das 21 horas, nas 100 maiores cidades do país, obrigando perto de 50 milhões de brasileiros a não sair de casa sem o risco do

assalto a mão armada.

É tão patente esta dura realidade que um ministro da Justiça foi à televisão aconselhar aos que infringirem o “toque de recolher” no sentido que tenham

sempre algum dinheiro no bolso, porque a falta deste poderá irritar o assaltante e levá-lo a produzir maior violência.

Calcula-se em meio milhão de adolescentes conhecidos por “trombadinhas” que vivendo fora de controle do país, se dedicam a furtos e assaltos.

Nas maiores cidades brasileiras, as ruas e praças centrais, à boca da noite, são evacuadas rapidamente pela população compradora. Logo, em seguida, o

comércio protege suas portas com fortes grades de ferro enquanto a população se desloca aos bairros para proteger-se no lar , lar de janelas e portas também

reforçados por grades de ferro.

Há menos de maio século as pessoas podiam livremente desfrutar do passeio noturno para ver vitrines, parques, teatros, templos, cinemas, estádios de

futebol.

Naquela época somente os agentes da violência estavam metidos atrás das grades. Hoje, a coisa está completamente invertida, diametralmente oposta; à

noite a cidadania é recolhida às grades de ferro que protegem porta e janelas do seu lar, enquanto que a violência livremente campeia nas ruas pondo em risco a

tranqüilidade de todos.

Invertem-se inclusive os critérios da arquitetura, pois a grade que antes era o símbolo dos estabelecimentos penais, passou a impor-se como componente

arquitetônico de habitação familiar. É por isso que a serralheria constitui um setor industrial em expansão.

Não seria exagerado dizer que a maioria dos brasileiros, hoje em dia, dorme atrás das grades por temer a violência que impera nas ruas. E, por conta disso,

em expansão entra a indústria de novela de televisão, a fim de ninguém morra de tédio, encerrado em sua casa.

Cumpre-se assim a profecia de Josué, não o rei que conduziu os judeus à Terra Prometida e sim o médico e sociólogo Josué de Castro que dizia que a

população das grades urbes, um dia, estaria composta “dos que não comem e dos que não dormem: não dormem com medo dos que não comem”.

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De fato, esta é a triste realidade em que vivemos. Pior ainda porque o medo aos desempregados, ou seja, o medo aos que não comem rouba ao indivíduo a

liberdade de sair à noite. Muitos têm medo de sair mesmo em automóveis e gritam por mais policiamento nas cidades, como se já não fossem excessivamente

pesados aos cofres públicos e privados os serviços destinados à segurança pessoal e do patrimônio.

AS CAUSAS DO PROBLEMA

Toda nossa história mostra que o brasileiro é de espírito e índole pacífica e, por isso, avesso à guerra e à violência. Se este hoje constitui o mais grave

problema social dos brasileiros, é porque não se tem tratado de ultrapassar adequadamente as causas da violência -- que não são outras se não o desemprego e o

sub-emprego.

Na medida em que crescem o desemprego e o sub-emprego, cresce também a violência.

Nos países do Terceiro Mundo de economia deformadas e incipientes o progresso técnico da agricultura, na medida em que melhora as condições de vida

rural, desloca a população para os centro urbanos. Este constitui o custo da incorporação tecnológica com o propósito de aumenta a produção e incrementar a

produtividade agrícola em todo e qualquer sistema econômico montado sobre a produção de mercadorias, não importa o marco político-filosófico que o presidia. As

megalópoles marcam as geografias dos países ocidentais e orientais; do hemisfério norte e do sul. Quer dizer que, em qualquer parte do planeta onde existir a

produção mercantil, seja em forma de bens ou de serviços a tecnologia é sempre buscada para reduzir os custos da produção e dos preços das mercadorias,

reduzindo, em conseqüência disso, braços nos centro de trabalhos, empurrando esses braços livres à procura de trabalhos em outros lados.

É tão inexorável o “metabolismo” da economia da produção mercantil que chega a desrespeitar a vontade dos homens que a desconhecem ou não a levam em

conta. Exemplo mais típico dessa, dir-se-ia, fatalidade é o caso dos riograndenses do sul que sempre tiveram uma agricultura e uma indústria doméstica modelares,

baseadas na produção familiar.

Com efeito, nossos gaúchos sempre endeusaram os seus “pagos” e a sua “querência”; quase não saíam de suas fronteiras nas proporções dos emigrantes

nordestinos.

Nossos dias, avalanches de emigrantes riograndenses do sul se espalham por todo o centro e grande norte brasileiro. Eles não puderam permanecer tranqüilos

e felizes nas suas “querências”, apesar de serem os brasileiros que mais tempo tiveram nas mãos as rédeas da República. Com efeito, nos 100 anos de vida

republicana, o Brasil tem sido governado, quase metade de um século, por gaúchos e muitos deles com plenos poderes, em regimes ditatoriais.

Hoje o Rio Grande do Sul consome até verduras e legumes produzidos nos grandes centros de moderna produção, por não ter podido absorver na agricultura

ou na indústria as massas desempregadas do campo.

A absorção de braços excedentes da agricultura foi um fenômeno normal na história econômica dos países mais desenvolvidos do século passado. É que a revolução industrial, nos seus primórdios, estava montada sobre uma tecnologia ainda pobre, limitada por uma mecânica consumidora de grandes massas de

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trabalhadores. Além disso, os braços excedentes da agricultura foram em grande parte absorvido também nas construções de canais e de numerosas estradas de ferro e nos esforços de expansão colonial.

Com o Brasil e com outro países do Terceiro Mundo de tardio desenvolvimento capitalista, a máquina penetrou na agricultura (expulsando do campo

populações rurais) na mesma época em que a fotocélula invadiu a indústria reduzindo suas necessidades de braços e impedindo dita indústria de cumprir seu clássico

papel de observadora de consideráveis porções de excedente de mão de obra rural.

Daí porque, dado a esse anômalo “metabolismo” do capitalismo tardio, no nosso país o migrante rural, ao chegar à cidade, é logo inserido não na indústria

(impossibilitada de absorvê-lo) e sim no Setor Terceário, ou seja, nos Serviços. Ele se incorpora ao comércio ambulante, ou como biscateiro de milhares de barracas

que proliferam marcando de cashbad, ou medinas orientais, os grandes centro urbanos. Outros migrantes de menor sorte, que não conseguiram incorporar-se nem à

industria nem aos Serviços, são no entanto, incorporados às fileiras da violência a que a fome e o desemprego geralmente induzem.

COADJUVANTES DA SOLUÇÃO

Os braços que a Agricultura e a Industria não puderam absorver têm que ser incorporados à produção de bens ou de serviços se não se quiser vê-los

engrossando, cada vez mais, as hostes da violência. Em duas palavras: ou são incorporadas ao trabalho, ou serão incorporados à violência.

Para isso dever-se-á preencher vastos espaços econômicos e sociais que requerem profissionais organizados em estruturas de produção e de serviços. As

coisas dos homens são feitas pelos homens. O dinheiro e a tecnologia nada fazem sem os homens; e os homens só fazem bem as coisas quando estão

adequadamente organizados para isso.

Todo mundo trem dor de cabeça quando necessita de um eletricista, ou de encanador, ou de um pintor, ou de um tipógrafo, ou de um cozinheiro, de um

carpinteiro, ou de um mecânico, ou de um pedreiro, ou de um alfaiate, de um protético, de artesãos de todo tipo; ou de um datilógrafo, ou de uma babá de velhos ou

inválidos; ou de uma simples empregada doméstica, ou de um jardineiro, de massagista, de professores, de tradutores e de tantos outros profissionais que não tem

trabalho ou operam ocasionalmente.

A dor de cabeça sobrevém pelo receio de contratar serviços de indivíduos que não estão apoiados em uma razão social, uma empresa, uma cooperativa, um

coletivo de trabalho ou de uma associação comunitária idônea.

Hoje, já se tem bem claro que os produtores remunerados só trabalham em cooperação quando estão ao redor de insumos indivisíveis, ou seja, ao redor

de meios de produção e de serviços postos à sua disposição ou em propriedades comum de todos os associados.

A pequena infraestrutura (o teto), o veículo, o telefone, a maquinaria simples, utensílios instrumentos e ferramentas de trabalho de propriedade e de uso

comunitárias sempre se consegue com a Comunidade Solidária, com a Secretária de Assuntos Comunitários da Presidência da República ou com outras instituições

similares a níveis estaduais e municipais.

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Sobram profissionais desempregados. Só as Forças Armadas, por exemplo, cada ano joga no mercado de trabalho entre 40 e 50 mil profissionais jovens,

formados durante o serviço militar, além de milhares e milhares de profissionais formados anualmente pelo SENAI, SENAC e por centenas de outras instituições

congêneres e universidades.

Como se vê, sobram profissionais. O que falta mesmo são instituições especializadas em “construir” estruturas organizativas capazes de incorporar os milhões

de profissionais sem trabalho. Faltam quadros organizadores de cooperativas de trabalho e de outras formas de cooperação que absorvem o desemprego. Para tanto,

há que criar-se uma instituição que seja o novo “bandeirante” da expansão do emprego dotada de centros de capacitação em organização dos produtores, com vistas

à expansão real do emprego (COPEERE), concebido pelo Instituto de apoio técnico aos países do Terceiro Mundo, ‘IATTERMUND’ de Brasília. Este mesmo instituto já

criou em vários Estados mais de dez sistemas de Participação Social na identificação de Projetos Geradores de Empregos e Renda, SIPGER mediante o método de

capacitação mas, livres dos Laboratórios Organizacionais utilizados por agencias da ONU e OEA em vários países da Europa Latinoamérica e África.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº68 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME V

ISSN 1517-5421

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NILSON SANTOS

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ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

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MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

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LITERATURA EM FRAGMENTOS ALBERTO LINS CALDAS

PRIMEIRA VERSÃO

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Alberto Lins Caldas LITERATURA EM FRAGMENTOS

Professor de Teoria da História - Centro de Hermenêutica do Presente – UFRO

[email protected] - www.unir.br/~caldas/Alberto

“... uma força espiritual que começa sua trajetória no sensível e dispensa a realidade.” Antonin Artaud

1 - incipit: A literatura só se entrega à literatura.

2 - A literatura é o fogo noturno [fogo-selvagem] que afasta as feras, o inominado, a morte, a escuridão, o inesperado, o esquecimento; atraindo os homens tanto à

solidão quanto a solidariedade, relacionando os gestos, as palavras, as emoções, os sonhos, o desejo e o corpo; reforçando e superando os ritos, as crenças, as

vozes, os corpos, os anseios, o riso, a lágrima, o sono; repetindo o conhecido, o esperado, o desejado, o sabido, o vivido cria um espaço vivo onde nada ainda foi;

reunindo corpo, palavra e vida numa mesma ascese circular, onde todos comungam o sagrado esquecimento de tudo aquilo que ameaça, está além, está antes,

está dentro e que num átimo poderia estar ali, entre nós, se o fogo cessasse, se o fogo não se mantivesse.

3 - A literatura é a caça-futura desenhada, pintada, soprada, talhada, inscrita, dançada, cantada, gemida, gritada, murmurada, soluçada, sonhada no fundo

de uma caverna: é sempre aquilo-que-virá, aquilo-que-reúne, que conjuga magicamente o ainda não completamente presente, o desejo de uma fome

presente somente para quem está na caverna (também reunião de uma fome coletiva) mas que será de todos no-futuro: a literatura antecipa e cria o

momento futuro, a caça futura: a leitura (puro ritual) é a carne dessa magia sendo devorada, fazendo existir tanto a magia quanto a carne da magia:

devorar antes de devorar devorando: o em-si trans-formado em para-nós. Por isso mesmo uma literatura antes de tudo é para o corpo, para os sentidos,

para os humores: uma literatura corporal: e toda a sua inteligência, todo o seu logos-falus, poda a sua possibilidade de análise advirá, sempre pos

festum, daí [sempre depois do festim da leitura: nunca um tiro “de verdade”: sempre de festim: a literatura só existe realmente no festim da leitura,

jamais em nenhum dos empachamentos críticos].

4 - A “obra de arte literária” é um espaço que, ao nos reposicionar, instaura campos de visão, de sensação, de reflexo e reflexão, de opinião, diferente daqueles que

normal e trivialmente utilizamos. Torna-se um instrumento insólito: ao nos curvarmos sobre ou com ele somos tragados para outro-lugar, outro-olho, outro-eu,

outra-língua, outro-nós; e desse não-lugar, desse ponto outro, reposicionamos e reformatamos a nós mesmos e ao mundo. Esse instrumento insólito, vindo dos

fluxos vivos da linguagem, nos arrasta para as próprias fundações do existir.

5 - A literatura deve ser um questionamento radical, um revolver os alicerces da existência; espaço onde todos os possíveis valores, olhares, percepções,

naturalizações podem ser de-batidos, ex-postos, examinados, sendo possível ver o não visto, abrindo e trazendo as contradições para uma forma de visibilidade e

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combate, uma materialização possível daquilo que deve ser visto, combatido, compreendido, superado; ao reunir na virtualidade vivenciada os pontos, os traços

daquela possível e futura virtualidade (a literatura como a “magia da caça futura”) a literatura tem no prazer estético, na compreensão radical e na crítica ao real e

na projeção do futuro suas razões maiores.

6 - Só há literatura quando há epifania, encantamento alimentando-se da própria essência, exercício vivo de magia, espaço encantatório e prazer enfeitiçado;

inquietação e ritual de passagem. Alterando o real numa suprema liberdade de gozo epifânico, criando o avesso da terra e do céu que ao mesmo tempo diz e

somente ela pode dizer o céu e a terra. Urdidura do ser na perseguição essencial.

7 - A literatura não reproduz “fatos singulares”, “acontecimentos”, “cotidianidades de jornal”, mas busca apreender tendências, tensões, dobras, movimentos da

virtualidade que criam hologramas que “antecedem o futuro”. A obra de arte literária concentra os nódulos tensos que estão dispersos na virtualidade, e que se

tornarão visíveis somente numa própria virtualidade futura.

8 - A “obra de arte literária” não pode ser unilateral, mas aberta às multiplicidades, seja das contradições, das vozes, das personas. Seu caminho não coincide com a

história (um dos transes da literatura brasileira: só se encontra o real ao se superar o real [esse conceito estritamente pequeno-burguês e ridículo que invadiu o

mundo nas mesmas “ondias” do mercado]), com a mídia, com a mercadoria, com as lógicas triviais, com as linguagens desgastadas, cheias de uma politicidade

restrita, uma inteligência localizada, uma sensibilidade paroquial.

9 - Não se desviar do centro, do eixo, das articulações, do essencial, do equilíbrio (estabelecendo a ação no desequilíbrio): se desviar do centro, do eixo, das

articulações, do essencial, do equilíbrio.

10 - A “obra de arte literária” é uma negação-radical, por isso ousa sobreviver: sua consciência servirá para um além do seu-momento, como obra-de-saber, dizendo

aquilo que somente ela poderia dizer, sendo o que somente ela poderia ser.

11 - Uma literatura cria o homem, antecipa o real, condensa o futuro no presente (na “literatura brasileira” o homem é criado a partir de discursos extraliterários,

imagens do poder, vícios da historiografia, deformações das letras, sem que haja, sem que tenha havido a absolutamente necessária “... ruptura entre as coisas e

as palavras”, in-vertendo Artaud).

12 - À literatura cabe sondar as tensões vivas, as contradições, o novo dentro do velho, as resistências do velho, as dissoluções, as dissonâncias. Sondar o mundo

através da linguagem, porque o mundo é linguagem alienada: conscientalizar não a linguagem, não a literatura, não os escritores: o centro da literatura não é ela

mesma: o centro é o homem concreto, real, vivo, mergulhado numa comunidade qualquer.

13 - Sendo o mundo cristalização viva das linguagens, linguagem alienada, cabe a literatura a missão de dizer o mundo de uma maneira que nenhuma outra

“linguagem” poderia dizer: sua matéria é a mesma que cria, faz circular e mantém o mundo: lembrar-nos nossa essência.

14 - Os dizeres normatizados, as falas institucionalizadas, as posições estabelecidas, os viveres cotidianizados não são a grande matéria do literário (a não ser como

paródia, ironia: jamais como crença, como um “dizer a realidade”), mas as falas alternativas, os dizeres não ditos, os falares calados, silenciados; o viver que não

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somente diz, mas contra-diz: o dizer que se diz todo dia está naquelas “literaturas do real”, como as revistas, os jornais, as telenovelas, os filmes: a literatura é o

dizer mal-dito: bem além do dizer trivial que invade tudo: e exatamente por ser assim desvenda o trivial do mundo e o trivial da própria linguagem.

15 - entresseio: Sem Deus, sem Natureza, sem Sociedade, sem Homem, sem História, sem Nação, sem Povo, sem Língua, sem Autor: somente assim a literatura pode

não somente dizer tudo isso criticamente como somente assim ela poder dizer: não sendo.

16 - A literatura não pode esconder os conflitos, as contradições, a vida que a gerou: sua grande missão é descristalizar o que esconde os conflitos: ex-pôr em devires.

É o afloramento das múltiplas línguas, falas, vozes, sussurros, gritos, silêncios, ao mesmo tempo, num tecido.

17 - Embate de forças vivas, contrárias, trágicas, tragicômicas, explícitas; luta de valores, visões, corpos, almas, diversas, dispersas, misteriosas; grandes sentimentos,

vozes singulares ou mergulhadas na gosma existencial e suas guerras particulares como demônios para mais afundarem ou submergirem. Nenhuma vidinha plana,

de classe média (o estranho campo de força da literatura e da crítica “pequeno burguesa”), servindo somente para um simples “contar história” (a literatura não é

jamais um contar história, um divertir narrativo). Sem grandezas, sem embate vivo das grandezas, não se consegue uma visão de mundo que possa se

transformar em literatura, que possa conquistar uma literatura. Sem esses choques de grandezas não podemos ter nem verdadeiros demônios, mergulhados no

lodo com desespero, nem anjos submergindo da lama do mundo, do pecado, do desejo, da culpa, do crime, da rotina; ou homens vivendo a vida como homens

(bem além dos estereótipos), além de anjo ou demônio, mas sem apagar tudo aquilo que cria realmente um anjo, um demônio, um homem.

18 - Mefisto, não o curupira; Hamlet, não Bentinho; Lady Macbeth, não Lucíola; Graograman, não Baleia; Édipo, não Vasco da Gama; Marcel, não (...).

19 - Espaço dialógico onde se cristalizam os inchaços, os tumores; onde se instalam os vômitos, as diarréias; onde transitam vozes contrapostas: espaço onde se

projetam os imaginários, os poderes, as crenças, as posições sociais e singulares.

20 - A literatura é o que atravessa as línguas, o que está sempre antes e depois, fluindo, em travessia, o que se faz apesar da língua, rotacionando como um

holograma interno que se constitui no passo da leitura, da audição, do tato e do sonho (holograma teatral, dialógico e polifônico, em movimento dispersivo; vácuo

que atrai toda matéria que o requer, reordenando-a, esclarecendo-a, questionando-a). Como é fratura, interstício, fenda (“buraco de coelho” denso, vivo, intenso,

aceso, arrebatado, desmedido: daí porque grande parte daquilo que chamam “literatura brasileira” não existir como literatura: não é a língua seu entrave: é

porque ainda não é literatura: parcamente alegórica, frugalmente grotesca, ligeiramente obsessiva: classe média demais, colonial demais, portuguesa demais),

move-se por um específico tribadismo que chamamos literatura [a literatura é o aquilo que é voltado para si mesmo, a volva latina (que vindo de volvere termina

em vulva: “nós” não voltamos nem entramos: continuamos a detesta-las: as tornamos sempre e somente grávidas, mães, jamais iguais: daí não sai o coelho nem

seu buraco e Alice é somente mais uma trabalhadora). O estojo vazio (o único vazio que satisfaz; único vazio que é; o único que ao não ser gera mundos, também

vazios: literatura: o sofrimento que diz o sofrimento do mundo)]. Gozo que não se localiza, não se estabelece: existe somente no flu-ir, no rot-acionar: rasgando a

carne, os ossos, a vida. A literatura é uma sensação densa em processo inqualificável, não é linguagem ou “sistema de signos”. Não se objetifica no livro, na

língua, no alfabeto, na cultura, na região, no povo: é uma resultante flu-indo, uma sensação holográfica.

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21 - A literatura, antes de ser um “compromisso com o real”, é uma “escrita branca”, “escrita inocente”, “indicativa”, “amodal”, “equação pura”, “linguagem

indefinida”, “estado neutro e inerte da forma” barthesianos. Mas é essa equação fria que pode desvendar e desventrar o real, as contradições do real, reunir os

traços do futuro no presente, o horror entranhado, apontar e despontar. As linguagens instituídas que se tornam um “contar histórias” literário não conseguem se

descolar dos seus limites, origens, objetos, ordenamentos, transes, imaginários. Localizar é matar a literatura.

22 - Aquilo que leio e gosto, e me diverte, e me distrai, e me ausenta, não é literatura; aquilo que ensina, instrui, educa, aperfeiçoa, não é literatura; aquilo que

comunga, reproduz, respeita, espelha, não é literatura; aquilo que alegra, contenta, embeleza, não é literatura; aquilo que é letra, palavra, frase, parágrafo,

gramática, linguagem, discurso, não é literatura.

23 - A literatura cria um vazio denso que atrai qualquer existente a um diálogo, a um confrontar-se, a um negar-se, a um desdizer-se.

24 - Para a “literatura brasileira” há que se levar em conta o “trabalho” colonial e sua construção hegemônica da língua portuguesa, em primeiro lugar. Mas não deixar

de refletir sobre essa mesma ação no fabular, na temporalidade narrativa, na relação entre literaturas, na relação entre real e literário, entre práxis e poíésis, na

feitura do texto e da textura do leitor. Que escritor?, que literatura?, que leitor?, que crítica? O “nosso texto literário” é muito menos tecido, textura, tessitura e

muito mais fazenda (Colônia, Império, República: o mundo paroquial, provinciano, pequeno-burguês: o “nosso” universo e verso): enquanto fazenda exige

determinada realidade, práticas e imagens que equilibrem a fazenda do real com a fazenda do texto (coisa de homem e não de mulher: essa masculinização

estúpida da literatura, a fazenda e não o tecido, o real e não o virtual). O sacerdote do texto (o escritor), o sacerdote do tecido literário, se transforma em Ministro

da Fazenda (Senhor de Engenho, Fazendeiro, Latifundiário e não a rendeira, a bordadeira, a costureira: escritores do tecido: emparedamos como incompetentes

pedreiros).

25 - Não há transparência na literatura: somente ela pode ousar a transparência. Luz que é treva; o que mostra escondendo e o que esconde mostrando. Esse lugar

sem lugar consegue luz e sombra de qualquer lugar.

26 - Como a literatura é um holograma, resultante de uma máquina insólita, mecanismo que deixa de existir ao gerar o holograma (e somente enquanto deixa de

existir), não é nessa materialidade enganosa que devemos buscar a literatura. Ela não está no-texto, na-língua, no-alfabeto, no-discurso, na-gramática: está

sempre depois. Esse depois, o holograma, deve ser o nosso campo de degustação, nosso lugar de brincadeira (o que alguns ainda chamam “objeto de estudo”).

27 - Esse holograma não reproduz, não espelha, não repete qualquer exterior; não explica, não conceitua nenhuma realidade; não parte de nenhuma história: nele

todo o possível pode se ver: seu vazio de ser atrai qualquer existente que nele se ad-mire (a não ser quando a literatura é raptada pela Nação, pelo Povo, pela

Cultura, pela Língua, pelo Poder, pela Mercadoria, pela Estupidez).

28 - O crítico ao se abismar nessa máquina insólita encontra somente a si mesmo e a água narsísica onde afundou e não sabe: o transe do significante é tão terrível

quanto o do significado: se não há natureza tudo é possível: a literatura não está onde sempre se procurou: e sempre se procurou como se ela fosse uma coisa,

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algo simplesmente extenso, temporal, corporal, lingüístico: sua instância é a do sagrado, a do alegórico, a do exemplar, a do arquetípico, ao do ser que só existe

ao não-ser, ao flu-ir como se não fluísse: essa ilusão tornou-se categoria, instância, saber: somente um se afastar. Ao conferir um sentido mais complexo, mais

profundo e mais rico a literatura re-vela o sentido tragicômico da existência, em vez de se abismar tanto no particular quanto no singular enquanto limite.

29 - Holograma em constante movimento. Produzi-lo faz desaparecer a máquina insólita, transformando-a em outra-coisa, a literatura. Que pode prescindir das

palavras, quando elas desaparecem e em seu lugar vigora, aparece, transcorre perceptivelmente não conceitos, idéias, esquemas, mas um derramamento físico,

corporal, indefinido, profundo, hipnótico (o holograma em construção no flu-ir da leitura). A preocupação com as palavras é sempre uma preocupação de “filólogo”

(de filisteu cultural como diria Nietszche) que nada tem a ver com aquilo que é a literatura: um nada que é tudo, um nada que desvenda um tudo.

30 - re-capitulação: A literatura é um rio sem margens, sem água, sem nascente e sem foz.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº69 - OUTUBRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME V

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 69

PRESERVAÇÃO AMBIENTAL E A EXPLORAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS

CLODOMIR MORAIS

PRIMEIRA VERSÃO

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Clodomir Santos De Morais

[email protected]

Professor de Sociologia Rural - UFRO

PRESERVAÇÃO AMBIENTAL E A EXPLORAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS

DEPREDAÇÃO DOS RECURSOS SELVÁTICOS

A vasta região que abarca o Alto-Paraguai e o Alto-Guaporé na qual se pretende compor o sistema integrado de desenvolvimento regional ( SIDER) do

extremo do Estado do Mato Grosso, se estende da área pantanosa dos Xaraes até as terras mais altas do divortium-acquario da chapada dos Parecis que delimita as

nascentes dos tributários do Tapajós, do Paraguai e do Rio Guaporé.

Correspondente aproximadamente a 50 mil Km2 habitados por um pouco menos de meio milhão de pessoas distribuída em 14 município: Indiavai,

Comodoro, Salto do Céu, Vila Bela da Santíssima Trindade, Figueirópolis, Pontes de Lacerda, Mirassol do Oeste, Rio Branco, Reserva do Cabacal,

Araputanga, São João do Quatro Marcos, Jauru, Porto Espiridião, e Cáceres. Este último e o município maia importante e para o qual confluem as vias de

comunicação dessa sub-região matogrossense.

Trata-se de pequenos núcleos populacionais que em forma ganglionar se multiplicaram nessa faixa de terra ao ritmo de uma colonização espontânea

desordenada e com a irracionalidade que caracteriza esta forma de expansão da fronteira agrícola.

O camponês indígena local e o adventício pequeno produtor, sempre disposto a reeditar a pequena economia familiar, constituem os protagonistas desse

processo que conduz à depredação dos recursos naturais do trópico úmido.

Com efeito, o secular sistema da “derrubação-roça-queima” não é mais do que o PEÃO QUATRO REI de uma partida de xadrez entre o homem e a natureza;

entre a Escologia Humana e a Ecologia Natural, na qual esta sempre sai perdendo.

É que uma vez aberto o céu com a derrubada dos gigantescos espécimes vegetais, os raiso solares passam a ser acessíveis até a vegetação de mais baixos

tetos. Aí então parece o pasto natural e atrás deste, como um corolário imediato, vem o gado.

Em área de difíceis comunicação e transporte para o mercado regional, o gado se apresenta, evidentemente, com a mercadoria ideal, pelo fato de conservar-

se por si mesma: de reproduzir-se por si mesma e por transportar-se a si mesma.

Na medida em que se estende a atividade pecuária, o gado vai empurrando o homem rumo ao coração das áreas selváticas e, assim, o gado e colonos

espontâneos, em poucas décadas mais, destruirão o resto da floresta do Além-Pantanal se não houver uma política adequada de conservação de recursos, aplicável a

curto e médio prazo. Fora disso é inevitável a depredação dos restos de matas dessa vasta e rica região.

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A MOBILIDADE ESPECIAL DA MÃO-DE-OBRA

Tem se observado que os deslocamentos contínuos ou intermitentes de população de área economicamente deprimida do Mato Grosso rumo as regiões

selváticas do Alto-Paraguai e Alto-Guaporé e em direção aos centros urbanos se apresentam na forma de um processo de drenagem demográfica como que submissa

à força de gravidade, e mais ainda como um mercado caráter seletivo da força de trabalho.

Nas áreas de economia deprimida, de uma produção familiar em desintegração lenta, porém contínua, permanecem apenas os anciãos, as crianças e as

mulheres. Rumo aos centro urbanos (alguns deles, formados em décadas recentes) marcham os homens que não tem oportunidades nas áreas de minifúndios de

terras esgotadas. Em direção às regiões de bosques lati-foleados-úmidos, em direção as matas virentes das cabeceiras do tributário do Alto-Paraguai marcham

também os pequenos produtores jovens na esperança de reeditar o ciclo da empresa familiar.

Desse modo, a colonização espontânea desordenada e predatória da selva, igual a marcha rumo aos centros urbanos, tem origem nas áreas de economia

deprimida. Logo, tanto os problemas sócio-econômicos das áreas de economia deprimida como os da depredação da selva e mais ainda os da periferia dos centros

urbanos, todos eles guardam uma íntima relação e uma inter-dependência que só se explica com a própria estrutura da economia regional prevalecente.

MEDIDAS INTEGRAIS: FORMAÇÃO DE QUADROS MÉDIOS

A análise dessa realidade indica que uma das medidas integrais para conjurar de certo modo os problemas derivados desses deslocamentos populacionais

radica fundamentalmente em programa de maximização do emprego rural nas identificadas áreas de economia deprimida e em medida de racionalização das

atividades produtivas da selva e dos centros urbanos.

Por esse motivo é que se propõe a adoção de programas com vistas a processos integrais de desenvolvimento, tendo como primeiro passo a formação de

recursos humanos acessíveis a modestas Prefeituras e Unidade de proteção dessa sub-região.

Supõe-se imprescindível para cada uma da municipalidade que comporão o SIDER a criação de um escritório encarregado de:

a) Planificação do emprego rural, mediante elaboração de projetos viáveis do ponto de vista financeiro;

b) Capacitação administrativo-gerencial das empresas agropecuárias de propriedade e produção mais susceptíveis de absorver mão-de-obra ociosa das áreas rurais,

sejam em atividades agrícolas, extrativas, pecuárias , de transformação e de serviços;

c) Estabelecimento de um sistema de participação social na identificação de profetos ecológicos geradores de emprego e renda familiar;

d) Montagem de eventos de capacitação massiva com vistas à estruturação de empresas associativas ou cooperativas de um Sistema Social Florestal assentadas na

racionalidade econômica e na conscientização ecológica.

PRÉVIO ESTABELECIMENTO DE “SANTUÁRIO ECOLÓGICO”

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Antes que o processo de depredação alcance e destrua as áreas de bosques dos divisores de água da Chapada dos Parecís ricos em germoplasma, urge o

estabelecimento de Áreas de Reserva da Biosfera, espécie de “Santuários Ecológicos” com propósito de perpetuação de seus recursos biótipos em toda a sua

variedade.

Evidentemente, para evitar que se tome a ecologia com um fim e não como um meio destinado a ajudar o desenvolvimento, deve-se estimular o estudo

científico e tecnológico que conduzam à adequada utilização das áreas de Reservas da Biosfera para desfrute dos que vivem na região.

Para tanto, é importante a adoção dos critérios primários (representatividade, diversidade, naturalidade e eficácia como unidade de conservação) e dos

critérios secundários (informação sobre a zona, espécies em riscos de extinção, importância histórica, etc.) que tecnicamente se aplicam para a escolha das áreas

destinadas ao estabelecimento de reservas da biosfera.

a) A representatividade se expressa no conteúdo da área selecionada para Reserva Biosfera definido pelo conjunto típico de ecossistemas que entra em

relações com biomas de claras afinidades com a vegetação autóctone ou original. Dado que nas cabeceiras dos tributários do Alto-Paraguai e do Alto-Guaporé é

reduzido o número de habitantes, torna-se possível adotar um sistema legal e correspondente infra-estrutura econômica antes que a colonização espontânea crie

novas situações consumadas. É o caso de se estruturar os seus esparsos em cooperativas que componham o Sistema Social Florestal, integrado por eles, e pelo

Estado, com o propósito de obter lucros mediante o aproveitamento racional de recursos bióticos, turismo, etc. - atividade esta muito rentável do que tradicional

sistema de agricultura trans-humante e da pecuária extensiva.

b) A diversidade se expressa na maior variedade de representação de ecossistema, comunidade e organismos e característicos da selva-diversidade dentro

de um mesmo tipo de biomas correspondente aos gradientes ecológicos, que variam segundo as atitudes e as condições edáficas e climatológicas da área.

c) A naturalidade advém da condição de uma área não modificada pelo homem. Nesse caso os regulamentos vedarão a introdução de espécies exóticas,

vegetais e animais, que rompam com a naturalidade de área de reserva.

E, finalmente, a eficácia como unidade de conservação se obtém nas grandes dimensões, ou seja, em superfícies suficientes para o desenvolvimento de

grandes vertebrados que se deslocam em amplos territórios. Superfícies dessas dimensões garante a atividade do germoplasma florestal e a proteção dos animais em

vias de extinção quase sempre sujeitos a forte pressão depredatória.

PROGRAMA DE REPOVOAMENTO DE RIOS E REFLORESTAMENTO CILIAR

Independentemente das ações de identificação de área de preservação dos recursos naturais se deve implementar projetos já em fase de negociação tais

como: o projeto do Pacú e Tambaquí e o projeto de Reflorestamento Ciliar concebidos e elaborados pela EMATER de Mato Grosso.

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O primeiro tem claros propósitos econômicos já que o que se persegue é montar uma enorme fonte de produção de proteínas brancas para exportar para o

resto do país e exterior, com efeito, a carne dos peixes pacú e tambaquí, espécies autóctonas das bacias do Paraguai e do Guaporé, são de grande aceitação no

mercado nacional e internacional.

O segundo projeto visa sobretudo a proteção dos cursos d’água a restituição do revestimento florístico de suas margens e também como forma de prevenir a

erosão provocada pelos desmoronamentos e degradação dos terrenos alcançados pelas cheias periódicas.

ORGANIZAÇÃO PARA A PRODUÇÃO NAS REGIÕES SELVÁTICAS: ORGANIZAR PARA PRODUZIR RENDA

Os milhares de pequenos produtores indígenas ou não-indígenas (“ladinos”), localizados nas fronteiras agrícolas do Alto-Paraguai e do Alto-Guaporé,

enfrentam uma crítica situação tanto pela carência de estruturas organizadas adequadas aos padrões culturais e às possibilidades produtivas das áreas. Daí porque é

necessário dar inicio imediatamente aos trabalhos de organização com vistas a certas atividades econômicas que permitam gerar ingressos monetários a curto prazo.

Isso servirá de estímulo aos participantes enquanto se estruturam os grandes projetos definitivos e de grande envergadura para o desenvolvimento da área

coberta pelo Sistema Integrado de Desenvolvimento Regional do Além Pantanal.

Nesse particular, é importante levar em conta que a organização, desde seus começos, vai inteiramente vinculada a programas de capacitação e

adestramento, pelo fato de organização mesma estar ligada a atividade que requerem transferência de tecnologia na atualidade não usadas pelos grupos de pequenos

produtores internados nas selvas.

É que inicialmente a produção estará em ralação com o aproveitamento de matéria-prima de maior abundância na região, tais como os diferentes tipos de

bio-massa que possam prestar-se como formas alternativas de produção energética.

Por outro lado, enquanto se desenvolvem os programas de organização para a produção baseada no aproveitamento de matérias-primas abundantes, a nível

local se deverá impulsionar a experimentação de cultivos de máximo rendimento por hectare e de fraca receptividade comercial tais como gengibre, ipecacuanha

(poaia), alhos, cebola e pimenta do reino a serem incorporados aos futuros planos de produção agrícola em escala social. Além da atividade extrativa de resinas de

látex e de fibras naturais, se deverá montar também programas de epífitas (orquídeas) tão abundantes nas matas daquelas bacias hidrográficas.

SISTEMA SOCIAL FLORESTAL

A organização das populações que vivem que vivem dentro de áreas selváticas deverá estar vinculada ao IBAMA e aos proprietários das áreas. Trata-se de um

modelo especial de associativismo com tríplice propósito: a sustentação material do produtor; a proteção de recursos naturais de áreas selváticas; e o rendimento

econômico das reservas de biosfera.

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Para cada um determinado conjunto de cooperativas florestais deverá funcionar uma unidade agro-industrial de transformação das matérias primas recolhidas

nos bosques, tais como: medicinas naturais, breu vegetal e breu mineral, látex, resinas, lenha, castanhas, cocos, cogumelos, etc. E por se tratar de atividade de

proteção e exploração dos bosques realizadas de forma social, a distribuição do produto deverá também ter um caráter social, ou seja, os lucros deverão ficar em

mãos dos associados da cooperativa florestal.

CAPACITAÇÃO PARA EMPRESA DE TIPO GRANDE: “LABORATÓRIOS ORGANIZACIONAIS” DE CENTRO

Dado o caráter social das atividades produtivas de Cooperativas Florestais, a capacitação dos produtores terá evidentemente que ser massiva para a formação

de quadros organizadores de empresas do tipo grande, ou seja, de processo produtivo socialmente dividido. trata-se de capacitação mediante “Laboratório

Organizacionais” com vistas à organização para a produção, independentemente do tipo de atividade produtivas que lhe permitam realizar: agrícola, silvicultura,

pecuária menor e agroindústria. Esta capacitação lhes permitirá inclusive a mobilização racional das potencialidades e capacidade de iniciativa dos grupos sociais no

sentido de coadjuvar as medidas que o Estado decida adotar para a proteção dos recursos naturais.

O Laboratório Organizacional lhes ensinará (a nível individual ou de grupo) como atuar com eficácia em ações de escala social (divisão social do processo

produtivo, próprio das empresas de tipo grande) quer dizer, superior a uma escassa divisão social do trabalho.

Seja qual for a estrutura administrativa que se subordine ao marco institucional da cooperativa ou qualquer outro tipo de empresa de propriedade e produção

social, a capacitação que se oferecerá a esses produtores estará intimamente relacionada com a praxis organizativa que se gera dentro do próprio “Laboratório

Organizacional”.

Os primeiros “Laboratórios Organizacionais” para a formação de quadros organizadores de empresas do Sistema Social Florestal para Proteção e Exploração

dos Recursos Naturais Selváticos não poderão ser realizados em qualquer instalação física. É imprescindível que a localização do centro de capacitação esteja contígua

ou ao interior de uma Reserva de Biosfera a fim de possibilitar as aulas práticas. E que, além de algumas áreas de cultivos hortigranjeiros para a sustentação do

Centro de Capacitação, existam instalações suficientes para albergar uma centena de alunos que, procedentes de outras áreas florestais, virão ali participar dos

recursos de capacitação massiva dessa modalidade de “Laboratório Organizacional de Centro”.

CURSOS PARA FORMAR TECNICOS EM ECO-DESENVOLVIMENTO – TEDS: QUADROS INTERMEDIÁRIOS

É necessário que cada Prefeitura de Município dotados de Projetos Ecológicos para a Proteção de Recursos Naturais disponha de um Serviço de Planificação

(SERPLAN) composto de um Projetista, um Planificador Regional e um Técnico em Organização e Administração de Empresas. Todos esses Técnicos aprendem a

metodologia da Capacitação Massiva com vistas a criar e desenvolver estruturas organizadas de participação social. Para tanto, enquanto dure o curso, os alunos, no

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mínimo 40, viverão a experiência do Laboratório Organizacional de Curso, organizados em sua própria estrutura de participação social, a fim de que a vida organizada

lhes crie a consciência organizativa imprescindível ao entendimento e solução dos problemas das empresas autogestionadas do Sistema Social Florestal.

Trata-se de quadros intermediários e não de profissionais universitários. Esses quadros são formados com professores primários, contadores, finalistas do

segundo grau, práticos agrícolas ou de formação similar.

A capacitação destes priva de um especial conteúdo com os parâmetros ecológicos que devem ter os projetos, programas e políticos de desenvolvimento de

Regiões de trópicos úmidos dotados de reservas florestais.

O CURSO

O curso se desenvolverá durante noventa dias com atividades didáticas de oito horas cada dia e além disso a adoção de um programa de leitura obrigatória de

sessenta textos técnicos. Estima-se que pelo menos dez catedráticos e instrutores deverão colaborar nesse curso a serviço de instruções nacionais e internacionais que

operam com desenvolvimento dentro do marco ecológico.

Nos primeiros 15 dias, o curso se efetuará em um centro de capacitação para a formação de quadros organizadores de empresas do Sistema social Florestal,

nos moldes antes descritos. Os últimos 15 dias serão dedicados à elaboração de plenos e projetos a nível de terreno e bem assim na transferência de conhecimento e

de método para formar os auxiliares de Projetos Ecológicos (APE).

O período intermediário de 60 dias será dedicado a classes, primeiro de conhecimentos gerais e logo o ensino de análise e adaptação reais de áreas tropicais,

os hábitos culturais da população e o imperativo de gerar emprego dentrro do setor extrativista.

PROGRAMA DO CURSO

O curso para formação de técnicos em Ecodesenvolvimento contará com três ciclos:

CICLO A: Formação básica

CICLO B: Especialidades: Ecologia, Planificação e Avaliação de Projetos e Administração de Empresas, Organização da Participação Social.

CICLO C: Transferência de conhecimentos e métodos para a formação de Auxiliares de Projetos Ecológicos (APECO).

O Ciclo A de formação Básica, ao que deverá assistir o conjunto de todos os participantes, inclui temas relacionados com elementos de Ecologia, de Econômia

e de Sociologia da Organização referidos ao Trópico Úmido com os problemas e implicações da realidade rural.

O objetivo principal deste ciclo é dotar os participante de elementos que ampliem sua capacidade de compreensão da realidade dentro da qual trabalharão e,

ao mesmo tempo, familiarizá-los com sistemas categorias e conceptuais daquelas ciências e no uso de métodos de análise que facilitem a posteriori complementação

de sua formação básica.

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Inclui-se também uma Unidade de caráter instrumental através da qual se introduz a temática da planificação e se desenvolverão técnicas que

interessam à formação do conjunto de participantes (Técnicas de Pesquisas Sócio-econômicas e Elementos Básicos de Estatísticas).

O Programa específico do Ciclo A que terá uma duração de 4 semanas constará de:

UNIDADE 1: TEORIA DA ORGANIZAÇÃO SÓCIO- PRODUTIVA

-Fatores históricos do surgimento da mercadoria;

-A consciência organizativa como reflexo da atividade material;

-O papel dos “insumos indivisíveis” plasmados no Capital Constante;

-Mecanismos de combate aos vícios das formas artesanais de trabalho.

UNIDADE 2: INTRODUÇÃO À ECOLOGIA

-Os ecossistemas e suas interdependência;

-Reservas de Biosfera;

-Noções de Dialética da Natureza e Dialética do Desenvolvimento da Natureza Inorgânica.

UNIDADE 3: NOÇÕES ELEMENTARES DE ECONOMIA

-Conceito Básico da Economia;

-O funcionamento do Sistema Econômico;

-Introdução aos Problemas do Desenvolvimento.

UNIDADE 4: TEORIA E PRÁTICA DOS ASSENTAMENTOS RURAIS

-A função social da propriedade do solo;

-Diferença de Desenvolvimento Agrícola, Desenvolvimento Agrário e Desenvolvimento Ecológico;

-Política de Reforma Agrária; experiências históricas.

UNIDADE 5: INTODUÇÃO À PLANIFICAÇÃO

-Conceitos Básicos;

-Aspectos metodológicos;

-Formulação de Diagnósticos sócio-econômicos;

-Técnicas de pesquisas;

-Estatísticas.

O Ciclo B, que contempla a formação específica, de caráter eminentemente instrumental se administrará através de 4 especialidades:

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Especialidade B. 1: Planificação Agro-ecológica;

Especialidade B. 2: Noções de Sociologia da Organização;

Especialidade B. 3: Elaboração e Avaliação de Projetos.

O propósito buscado com esta divisão é o de permitir um tratamento mais profundo dos temas que conformam a base das disciplinas antes assinaladas. No

contexto anterior, esta parte do curso persegue a formação de equipes multidisciplinares de trabalhos para o desenvolvimento das tarefas concretas envolvidas no

processo de desenvolvimento, principalmente os aspectos de planificação.

Para cumprir com este propósito cada especialidade contará com o seguinte programa:

Especialidede B. 1: Planificação Agro-Ecológica

UNIDADE 6: PLANIFICAÇÃO

-Estratégia do Desenvolvimento;

-Problemas de Planificação;

-A formulação de planos e programas;

-As medidas complementares;

-O marco institucional da Planificação.

UNIDADE 7: PLANIFICAÇÃO DE ÁREAS ECOLÓGICAS

-Planificação regional: problemas e métodos;

-A Planificação do uso dos recursos naturais;

- A natureza como premissa da Planificação ecológica.

UNIDADE 8: PLANIFICAÇÃO DE EMPRESAS DO SISTEMA SOCIAL FLORESTAL

-Padrõe de assentamento em áreas florestais;

-Critérios e métodos para a Planificação do Sistema Social Florestal;

-Planificação de produção e dos investimentos;

-Técnicas de Avaliações.

Especialidades B. 2: Noções de Sociologia da Organização

UNIDADE 6: CAPACITAÇÃO PARA A ORGANIZAÇÃO

- O rol de “Insumos Indivisíveis” na Organização Social;

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- Condições Objetivas e Fatores Subjetivos que influem no processo de Organização Social;

-Didática do Ensino e Didática da Capacitação.

UNIDADE 7: MARCOS TEÓRICOS DA MODERNA ENGENHARIA SOCIAL

-O fator pedagógico da prática;

-A categoria da “Atividade Objetiva”;

-A capacitação guiada por “Fatores Objetais”;

-O papel das estruturas organizativas na ecologia social.

UNIDADE 8: CAPACITAÇÃO MASSIVA

-Formação de Formadores;

-Projetos Globalizadores de Capacitação Massiva;

- “Laboratórios Organizacionais” e a Auto-Capacitação.

Especialidade B. 3: Elaboração e Avaliação de Projetos

UNIDADE 6: O MARCO GLOBAL PARAM A ELABORAÇÃO DE PROJETOS

-Projetos de investimentos: conceitos e tipos;

-Etapas na formação de projetos;

-A análise das possibilidades de investimentos;

-Coordenação de planos e projetos: critério para o estabelecimento de prioridades.

UNIDADE 7: ELABORAÇÃO DE PROJETOS

- Informação Básica: técnicas e métodos de compilação e análise;

-Estrutura do Projeto;

I) análise do mercado;

II) tamanho de localização;

III) engenharia do projeto;

IV) custos e financiamento;

-Apresentação do Projeto.

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UNIDADE 8: SELEÇÃO E AVALIAÇÃO DE PROJETOS

-Efeitos do Projeto;

-Tipos de Avaliação;

-Critério de Avaliação;

-O método para a seleção de Projetos.

UNIDADE 9: ADMINISTRAÇÃO E EXECUÇÃO DE PROJETOS

-Organização para a administração do Projeto;

-Planificação de execução: noções de PERT.

Especialidade B. 3: Administração e planificação de Empresas

UNIDADE 6: CRITÉRIOS PARA A PLANIFICAÇÃO DE ASSENTAMENTOS AGRO-ECOLÓGICOS

-Padrões de assentamentos rural;

-Critérios físicos e socio-econômicos para a planificação de assentamentos agro-ecológicos;

-O desenvolvimento integrado de áreas rurais e a planificação de empresas do Sistema Social Florestal.

UNIDADE 7: MÉTODOS E TÉCNICAS DE PLANIFICAÇÃO DE EMPRESAS ASSOCIATIVAS AGRO-FLORESTAIS

-Etapa na Planificaçaõ e desenvolvimento de empresas associativas agro-florestais;

-A informação básica;

I) metodologia de diagnóstico;

II) técnicas e compilação e análises de informação; método de orçamento;

III) método de inventário do potencial nergético;

IV) relação de recursos naturais e beneficiários.

UNIDADE 8: FORMULAÇÃO DO PLANO DE EMPRESA AGRO-FLORESTAL

-O plano de exploração racional, objetivos, estruturas e funções;

-Formulação do Plano de Produção de Bens e de serviços;

-Planificação dos Recursos Naturais;

-Planificação dos Investimentos;

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-Planificação financeira.

UNIDADE 9: ADMINISTRAÇÃO E CONTROLOE DE EMPRESAS AGRO-FLORESTAIS

-Noções de Organização e Administração de Empresas;

-As empresas associativas e do Sistema Florestal; estrutura e formas de organização;

-Cooperativas de autogestão; estrutura e forma de organização;

-Contabilidade agro-florestal.

Esta especialidade terá a duração de 4 semanas.

Ciclo C - TRANSFERÊNCIA DE CONHECIMENTOS E DE MÉTODOS PARA A FORMAÇÃO MASSIVA DE AUXILIARES DE PROJETOS ECOLÓGICOS (APE)

Com o propósito de complementar a formação teórica dos Técnicos em Ecologia e Desenvolvimento e bem assim com o propósito de que eles

cooperem na formação dos Auxiliares de Projetos Ecológicos, o curso prevê a realização de trabalhos a nível de terreno durante 4 semanas.

Metade desse período será utilizado na elaboração de projetos realizados por equipes integradas de participante de cada especialidade.

Esta etapa do curso será de 3 semanas em estreita coordenação com os programas de trabalho das Prefeituras, cujos Municípios conformam o Sistema

Integrado de Desenvolvimento Regional (SIDER). Na mesma oportunidade as equipes de Técnicos em Eco-desenvolvimento (TDE) farão as entegras teóricas

necessárias à formação dos Auxiliares de Projetos Ecológicos na identificação de projetos agro-ecológicos geradores de emprego e renda de elaboração simples dos

seus respectivos perfis.

As atividades do Ciclo C serão concebidas de tal maneira que tanto os projetos elaborados e formação intensiva dos Auxiliares de Projetos Ecológicos (APE),

não só sirvam de exercício de capacitação dos participantes, senão atendam também às necessidades concretas das instituições beneficiárias, as Municipalidades

principalmente.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº70 - OUTUBRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME V

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 70

COMO: LITERATURA: COMO: LITERATURA ALBERTO LINS CALDAS

PRIMEIRA VERSÃO

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Alberto Lins Caldas

Professor de Teoria da História - Centro de Hermenêutica do Presente – UFRO

[email protected] - www.unir.br/~caldas/Alberto

COMO: LITERATURA: COMO: LITERATURA

incipit - O real, para nós, é desdobramento vivo, pulsante, significativo. Por não vivermos entre os limites de um simples imediato (onde o viver é fisgamento), mas

no presente e seus des-limites imaginários, criamos a nós mesmos e ao mundo mais profundamente do que supõe nossas passageiras Ciências e Filosofias. Natureza, história, Sociedade, Cultura, Corpo: fala e escrita: virtualidades holográficas: nosso meio, nosso existir: vivemos mergulhados nisso: somos, criamos e mantemos o real enquanto real: multidimencionalmente, em movimento, tenso, dispersivo, tribal, transformando a cada segundo o caos em cosmo, o nada em sujeito, a desordem em objeto, o imediato em tempo, o aqui em espaço, a dispersão em sociabilidade. Uni-verso, para nós, é inescapavelmente cosmo: algo através de nós: universo simbólico, mítico, sígnico e cínico, holograma que se estende além do traço do imediato: o dentro e o fora, o antes e o depois: dimensões de nós mesmos. A literatura é a partir deste ponto, sempre, mesmo sem saber: ao dizer-se diz a própria essência das coisas, principalmente porque todo real, toda práxis, é tão somente poíésis multialienada alienada.

1 - Consciência do valor autônomo da literatura: basta por si mesma: o resto é que não basta;

2 - A literatura não é simples jogo ou auxiliar da filosofia, da moral, da política, das mídias;

3 - A literatura não é um brinquedo de contar histórias mas o buscar e o encontrar o fundamento como o existir se faz;

4 - A literatura não está subordinada a nenhum conhecimento e não é nem pode ser desvendada senão por si mesma;

5 - A literatura tem como “objeto” absolutamente nada: seu “objeto” é criar vazios, vácuos que atraiam qualquer realidade numa resignificação profunda;

6 - A literatura não é um meio, não é um fim e não pode ser um princípio: a literatura não tem finalidades: o fim está sempre fora, antes, depois, aqui e não ali, posta

lá a funcionar, em nós e não ali: a literatura, em meio aos seres do mercado (e sua apresentação não pode mais escapar ao mercado), não é, não pode ser: seu

ser é não-ser, garantindo essência ao des-essencial do mundo: é um ponto de fuga, uma linha d’água;

7 - Mesmo inserida no mercado, a sutil função da literatura é desdizê-lo, é desvendá-lo, é tornar visível o invisível do seu papel demiúrgico, monstruoso e alienante, a

sua posição totalitária e exclusiva, como se o existente só existisse mercadológicamente;

8 - Por isso não cair na ilusão fundante da máquina insólita da literatura: é uma maneira da própria literatura fazer-se entender, mas esse entendimento não é teórico,

mas essencialmente literário: não é mímesis mas um contramundo que diz o mundo;

9 - O teórico, o analítico, é o olho e a mão da lógica do mercado posta sobre a literatura para fazê-la não falar, dizendo que somente assim ela se diz;

10 - Sem relações verdadeiras entre filosofia, moral, política e literatura, encontramos na vivência que se enriquece e vive mais uma das relações fundamentais da

literatura: o vazio essencial justifica-se a si mesmo: a relação da literatura com o mundo não é a que se tem com os conhecimentos e com os objetos, mas o

mesmo que se tem com o mitológico ou com o sagrado liberto do estritamente religioso: com o metafórico, o irônico, a paródia, o jogo, o ritual: sua condição de

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dizer sempre algo a partir do novo, do outro, não porque seja alguma coisa, mas precisamente porque não é nada-de-certa-maneira: refere sempre o que ainda

não é e está sendo a medida do meu ser, da minha busca, do meu encontro, das minhas obsessões, das minhas fomes;

11 - A literatura não ensina nem desensina, não moraliza nem imoraliza, não politiza ou despolitiza, não defende causas nem descreve vidas: na literatura não há

idéias: não “faz parte da história”, não “faz parte da geografia”, não “faz parte da língua”, não “faz parte da escrita”: não faz parte: só assim diz o ser na medida

do seu vir a ser: devires do devir;

12 - A literatura não é uma coisa útil, prática, psicológica, objetiva ou subjetiva, científica, filosófica, moral ou imoral, crítica ou acrítica: nada mais hostil que estes

conceitos aplicados à literatura;

13 - A literatura é um mistério do tempo e da singularidade: só há literatura porque não há o imediato: dimensão animal: literatura é, antes de tudo, uma viva

experiência do passado, voltada inteiramente para o futuro: neste apontar para o que virá, essencializa-se o imediato como um deslimite: fundada sobre

imaginários, inexistentes, a literatura diz o ser na medida do seu se fazer: e a singularidade em seu tender, mergulho no labirinto do viver sem saber o que será,

encontra nisso uma presença ao seu lado;

14 - Não há uma “linguagem literária”, um “discurso literário”, um “assunto literário”, uma “matéria literária”: tudo isso surge das teorias que se vergam sobre a

literatura: holograma singular intransferível que escurece o iluminado, asperiza o liso, desdiz os dizeres, desvê os vistos, desfala os falares, descrê das crenças, e

ri dos poderes: literatura é o que ri: aquilo que gargalha;

15 - A literatura é da ordem da virtualidade, não da ordem das coisas: é da ordem do negativo, não da língua: da ordem da desordem, não do progresso: do sonho

que desossa: do silêncio que é a poiésis fundante: o sempre antes e depois em ritual de criação na medida do fazer o mundo;

16 - Para que a literatura se realize é necessário não somente que o escritor sacrifique sua vida, seu sono, seu sangue, sua descendência, seu prazer e sua

normalidade, mas que imole uma humanidade inteira: sem essa lenha, sem esse fogo, não há literatura: para estar dentro é preciso estar além;

17 - A literatura não é do âmbito da Lingüística, que é instância do visível, da mercadoria, do articulável, do manipulável, do social, do político, do discursivo, do

escritural, do falável e do que circula; do teórico ou do prático; âmbito da cidade, da casa e do trabalho: a literatura é do âmbito da interioridade, da

singularidade e do ser na medida do seu fundamento, do seu se manter e do seu se fazer.

18 - A literatura não se esgota nem se apresenta na compra, na venda, no consumo ou na circulação. A ilusão do mercado atinge somente a matéria visível daquilo

que certa tradição diz ser literatura: a isca do teórico e do leitor ingênuo

.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº71 - OUTUBRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME V

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 71

CONTOS VEROSSÍMEIS – PEDRO BUNDA

CLODOMIR SANTOS DE MORAIS

PRIMEIRA VERSÃO

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Clodomir Santos de Morais Professor de Sociologia Rural

[email protected]

CONTOS VEROSSÍMEIS - PEDRO BUNDA

Quem é quem? Ele mesmo, coitado, só conheceu o irmão e a aparadeira. A mãe morreu no momento em que os gêmeos nasceram.

Do pai não se tem notícias. Um escravo talvez que fez mal a uma filha de lavadeira do Rio das Éguas. Hipótese conversa do povo.

- A finada Sabina Parto-Bom, qui deus conservou viva inté dispois de novecentos e trinta, sem volta nem arrudeios de mentira, cansou de falar do parimento

dos dois meninos. Eu mesmo não vi eles chorar no refugo da luz, mas dei banho neles pequeninim, traquim e eleijadim qui nem hoge cês conhece eles.

O velho João-Cego-do-Outro-Lado-Vizim-de-Agnelo, falava com a autoridade dos seus oitenta anos lúcidos. O pai fôra escravo e jagunço de Severino

Magalhães, o homem forte da vila de Conrrentina que incendiou Santa Maria da Vitória, no século passado. “Seu” João quando veio morar Do-Outro-Lado é porque já

não tinha mais lugar onde se socar. O pai e ele andaram meio século perseguidos por todos os gerais e cafundós da Bacia do Corrente. Viveram dez anos escondidos

na Tamarana, pertinho, légua e meia, do lugar onde se registrou o parto.

- A notícia correu, num arranco de cavalo brabo, pavorado, todo esse meio mundo da Correntina de São Sebastião dos gatos. Gente assombrada que não caiu

no mato, fez calo grosso de joelho na penitença das rezas. O espalhado espalhô que uma preta fugida tinha parido um bicho de oito pés e duas cabeças.

E continuando a narração, o velho João-Cego-do-Outro-lado-Vizim-de-Agnelo reforça:

-Castigo mais grande não carece. Cruz! Creindeuspad! De novecentos não passará! Era niquin se via dizer nessa ribeiras. Foi um Deus nos acuda.

A Véia Sabina Parto-Bom costumada com parimento, derna de bicho do mato inté passarim da casca de ovo, só não vingou salvar a mãe, mas os nascidos

escapou. Fôro que nagurou a bacia dela, de flandres, novinha em folha. Trabalhava dez anos com uma gamela de umburana já quase furada de lavar e raspar gosma

de parto. O restante era uma tesoura de cortar tripa, cordão, fumo e cachaça alcanforada pra amarração e cura de umbigo e toalha curada na fervura das folhas de

eucalípto. Era a mais confiante aparadeira daqueles tempos que os povos dos tabuleiro da Tamarana tinha.

Pensa que tinha nojo dos parto? Qual quê! Colhia os meninos que nem colhe algodão de flor, cuidando pra não ter só uma banda. E sempre dizia: todo trabaio

do mundo rende a mesma medida. A colheita da plantação só é alegre mode a semeia que é suada. Na dos viventes só é triste mode que no plantio só teve gozo.

Tudo que veve no escuro do ventre vê a luz mermo adispois de morto. se Deus não ajuda e Nossa senhora do Bom Parto dispensa.

Era preta sem leitura - e persignando-se com uma cuz mal traçada na testa -qui Deus proteja o céu. E continuou: mas, media bem os sentomas do mundo.

Quando chegou já fazia três noites que a nega gemia. Barrigão que ia lá fora: Bucho de menino homem. Derna seis meis que ouvia o chorim toda vez que eles

se mechiam.

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Na contage das luas com os disconti do cio, já tava fora de prazo.

Mãe-de-corpo já sem dor de gritar. Três horas de labuta com adjuntoro de trinchete.

“Seu” João fez aí uma pausa inconsciente de quem se mostra cansado. E passou o dedo na testa como quem procura suor. Mais uma vez continuou:

- Setestelo já tava em riba; galo cantando, noite caduca, quando Deus se fez servido.

Todo mundo se esconjurou tremente de medo e variante nas idéias más, quando viu aquele macaquinho de oito pés chorando pelas duas cabeças que ele

tinha. Santo Deus, orai pronóbis! Não era bicho nem nada. Vieram foi apregado, os dois, pela bunda de trás, só um lado, como Deus fez, na denúncia do pecado e do

mal-feito. Mãe morta pra assombro dos pecadô.

A mãe foi enterrada no canto da porta, pro nascido não chorar longe dela. Leite de duas pretas e de duas cabras paridas, mais chotão de farinha de mandioca

e rapadura, com a graça de Deus escaparo do mal-de-sete-dias.

Conhecente do mistério, Sabina Parto-Bom só deu por terminado o serviço e a caridade quando retaio os dois mambaços mode separar o apregado. Febre,

postema supurante sem reima, quandé-fé ficaro bom. Só vendo se crendo!

Mode que nasceram dia de São Pedro, a véia Sabina carculô logo que a mãe foi lotada no dia de São Migué pelo regulamento dos dias. Nove mês justo sem

tirar nem botar. Apois sim, no batismo, consoante, Pedo Migué e Migué Pedo: dois neguim de bunda estufada, um dum lado e outro do outro. Tudo aí vivim pra

mostrar o poder de Deus e da Virgem Maria.

Mais grande bigode, nascendo, vestido igual homem, de calça e casaco de Festa do Rosário Correntina, os capadócios, que não gosta de vê pobre vestido,

pelidaro Pedo de Pedo-bunda e Migué de Migué-Revórve, pelas parenças de ter uma arma nos quartos. E os coitadim inté hoje não tem outro assento de nome.

O certo é que essas duas criaturas vieram ao mundo como uma réplica cabocla de Chiang e Eng, que em 1811 saíram da Tailândia para assombrar Nova

Iorque. Não se tratava de irmão siameses o nosso caso teratológico. Tampouco de xipófagos.

O fato repercutiu em todo o São Francisco. Barqueiros, canoeiros, viajantes e ciganos que transitavam na área, se encarregaram de espalhar naquele meio de

mundo o estranho parto. Por pouco não se tornou legendário.

Para conhecê-lo melhor, não faltava visitantes ilustres. Dois naturalistas e aventureiros franceses, Charnac e Dr. Frot que, nas décadas de vinte e de trinta, por

lá andaram, pesquisando minérios, chegaram a dialogar com Sabina Parto-Bom acerca de seu sucesso cirúrgico. Este último, Frot, fez o jornalista Alfredo dos Anjos da

revista carioca A NOITE fotografar a parideira, na promessa de divulgar-lhe o feito e o nome prometendo, ainda, no retorno, nova visita, o que não ocorreu por ter

sido misteriosamente assassinado no Rio de Janeiro.

O padre Camile Taurend, mineralogista e taxidermista, membro da congregação do colégio “Padre Vieira”, de Salvador, na mesma época, andou no rasto dos

seus antecessores, a fim de sigilosamente, verificar a incidência de galena e de prata na Serra do Ramalho. Duas esposas muito impressionaram o padre Taured,

segundo registra Quinca Atayde, seu anfitrião. Um foi Elias Borba, tabaréu autodidata, que conhecia bem álgebra superior. A outra foi a aparadeira Sabina Parto-Bom

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por ter assistido, e com êxito, os partos mais esquisitos. Anotou, com riqueza de detalhes, o caso da Tamarana. Examinou pessoalmente os corpos de Pedro Bunda e

Miguel Revólver e achou razoável a operação, revelando evidentemente, a pobreza de recursos com o que se procedeu à seção dos ilíacos colados.

Os gêmeos, nessa época, já eram adultos, e desde a infância apresentavam temperamentos e caracteres diversos. Miguel Revólver, monossilábico, irascível e

truculento. Mesmo desarmado, era audacioso e parecia, graças aos defeitos de nasceça, portar enorme revólver quarenta e cinco. Veio daí, talvez, sua tendência à

valentia e às arruaças.

Pedro Bunda, ao contrário, sempre afável, pacato, habilidoso e comunicativo. Este extrovertido, aquele introvertido. Um, pobre de espirito, o outro, Pedro

Bunda, inteligente.

Essa virtude - quem sabe! - tenha permitido Pedro Bunda, na mocidade, desfrutar da importância da sua singular maneira de vir ao mundo. Pôde, inclusive

vivê-lo até com vaidade e orgulho, toda vez que gente importante dos lugarejos e de fora visitavam curiosos sua maloca.

Com a morte de Sabina Parto-Bom o fato perdeu atualidade e foi quase de todo esquecido. É que, por outro lado, se vulgarizou, em meio a outros casos

teratológicos surgidos na região.

O Pedro Bunda da década de quarenta atingira a maturidade de espírito quando já beirava os sessenta anos. Preto, careca, com um resto de carapinhas e um

cigarro de palha atrás da orelha; e precoce perda dos dentes e os beiços proeminentes e repuxados pelo longo uso do cachimbo de barro, agravavam seus traços de

prognato acentuado. O prognatismo sugeria simetria com os dois enormes papos que pendiam do pescoço como duas laranjas pretas e lisas. E como se já não lhe

fosse bastante ingrata, a natureza ainda entronchou-lhe o pé esquerdo vingando-se da perícia de Sabina Parto-Bom.

Cego de um olho, Pedro Bunda assumia, às vezes, gestos exclusivos dos que posam a Camões ou a Benjamim Franklin, sério solene, perscrutando, por trás de

óculo bifocal imaginário, o fio das conversas.

Se absoletando em uma cadeira de encosto cruzava infalivelmente a perna esquerda enquanto pendia a cabeça calva à direita, revezando de quando em

quando, as pernas, como se fosse a mercê de uma bengala apoiada ao joelho.

Abstraindo-se-lhe a cor; o olho cego, vidrado e branco, o prognatismo e o traje modesto de indumentária; a barba mal tratada e rala, ter-se-ia a cópia viva

desses velhos retratados de coronéis e de intelectuais posudos do império, que, tão freqüentemente, adoram as paredes dos tabaréus abastados. Essa postura fazia

com que se apercebessem os pés descalços de marcantes rachaduras nos calcanhares; os artelhos deformados e o labirinto infundável dos remendos mal cosidos

espalhados pela calça e camisa de pano rústico, amarrotado.

Podia ocorrer de, em uma luta mesa, Pedro Bunda, por cerimônia, recusar o melhor dos manjares, porém o palito nunca. Era formalista. Fazia parte da

personalidade que sua imaginação procurava criar. Como um homem fino, educado - parecia acreditar - não dispensaria, jamais, o palito para virgular as conversas

após refeição com um chichiar sibilante de canto de boca, na ilusão de que ainda lhe sobrava os dentes de há muito apodrecidos.

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Vaidoso e inteligentes como poucos Pedro Bunda tinha enorme facilidade em aprender e imitar os gestos e a postura de pessoas ricas, importantes, e, no

lugar, tidas como educadas. No tirar do chapéu de palha furado; no cruzar as pernas, os pés descalços; no riscar o artifício primitivo de silex, procurava dar a

impressão de estar o ostentando o melhor chapéu panamá; o isqueiro mais moderno; e o borzeguim mais delicado e permanentemente trêmulo, agitado, como se

quisesse mostrar a alegria dos pés, conforme pose dos antigos. E. aqui e acolá, buscava, solene, com os três dedos principais das mãos, um bigode e uma gravata

inexistentes.

Tivesse ele um relógio e ninguém melhor e com mais arte o arrancaria do bolso do colete para as consultas propositais de efeito, pois, na falta deste, Pedro

Bunda manejava hábil e constantemente uma verônica-medalha santa - que trazia no bolsinho do paletó e presa de cordão à lapela.

Possuía linguajar caipira, matuto dos mais atrasados, oscilante de “promode” ao “derna donde”, ao arrepio mesmo das tendências anormais das corruptelas

linguísticas. E tudo com mímica, expressão facial e flexão vocal inteligentemente copiada para a necessária aplicada ao prosear moderno a afluente, mas, não raro, em

estilo repassado de arcaismos seiscentistas de um dialeto, há três séculos, perdido entre o São Francisco e Goiás.

Após uma concorrida visita a estudante falastrão e espirituoso de Salvador que foi passar férias em casa de pai rico, Pedro Bunda se despedia cerimonioso,

sircunspecto, curvo, excessivamente recurvado, apertando com a direita a mão de futuro doutor, articulava grave a sua frase de sempre:

- Consoante forgo. E fazia uma pausa talvez para ouvir satisfeito o eco de suas próprias palavras. Queria dizer que folgava em conhecê-lo e, já, saía de si

para, na próxima esquina, comentar a visita com o primeiro conhecido, Adenor Mariano.

- Certo não sei, mode qui, pro via de sabença e pouca leitura, não divurgo; mais, porém, desses dotô novo, filho de Santa Maria e num arredado de vinte

léguas, o miozim, na ciênça dos livros mermo é minino do coroné Antoin. Zé Rosendo disse qui não, mais eu quero que - e olha para cima como quem calcula - que

pulo menos três línguas e uns dez idiomas ele já deve estar falano. Não intindi quaje nada, porém tô satisfeito.

No dia seguinte prosseguia o ciclo de visitas a recém-chegados das terras distantes: o viajante vagabundo daqueles rincões; um outro iniciante de ginásio, ou

o novo promotor da comarca. Cumpria, assim, nos três ou quatro dias que permanecia na cidadezinha, essas obrigações sociais tão comuns aos homens importantes

da região.

Não só julgava importante, mas também ele, Pedro Bunda, era tido como um homem civilizado, fino e instruído pelas almas simples, supinamente incultas e

miseráveis que habitavam o tabuleiro da Conceição, onde o nosso homem pontificava influência e celebridade.

Ouvia nessa via-sacra de visitas os assuntos mais variados e inacessíveis ao seu limitadíssimo conhecimento. Porém, traduzia facilmente, nos termos das

dimensões do seu pequeno mundo, tudo que lhe parecia compreensível e razoável. E carregando, repleto, essa enorme bagagem de três dias de palestras, rumava

dose léguas a pé, para, remoendo e traduzindo de maneira nem sempre inteligível, despejá-la, o resto do mês, na cabeça dos vizinhos obcecados com as “novidades

do porto” e do mundo

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Lá no seu mocambo se assistia ao inverso: o visitado era Pedro Bunda. Cumprimenteiro e envaidecido transmitia aos visitantes, que confluíam de uma e de

duas léguas de distância, todo um manancial de “causos”, fuxicos e comentários, e, não raro, com audaciosa incursões nos assuntos mais privativo dos doutores, do

padre e dos chefes políticos. Ouviam-no esparramado pelo chão ou sentados nas raízes do ambuzeiros frondoso da porta do mocambo, horas inteiras, estarrecidos,

admirando-lhe as tão elevadas relações sociais com viajantes da casa da Bahia, “coronéis” políticos e com os “dotô-estudantes”.

- Ô seu Pedro - aproveitava uma pausa o visitante –si mal pregunto, vancê falô da inleiçõa cum coroné Nezim, pai de nós tudo?

- Sem dificulidade, respondia Pedro Bunda. Esse termo dito triplicando-lhe o “a” e seguido de três balanços positivos da cabeça e uma longa pausa, deixava

maravilhado aquele auditório parco de raciocínio e rico de remendos.

E, por mais paradoxal que se afigure, essa palavra, “dificulidade”, soava aos ouvidos daquele infeliz como a mais bela da língua portuguesa.

Pdro Bunda era o único cristão do Tabuleiro da Conceição que se dava o luxo de frequentar, mês sim, mês não, o porto de Santa Maria da Vitória. E não só

isso, mas também participava da sociedade local, já que se mostrava íntimo do “coronel” Fulano-de-tal, do capitão Beltrano, de dona Cicrana, etc. Ademais, tinha

sempre o cuidado de trazer alguma folha de jornal, não o nome. Ninguém daqueles cafundós sabia ler. E se alguém pagasse o jornal, era para se admirar do

estonteante formigueiro de letras miúdas que só Pedro Bunda e o povo da cidade decifram. Do teste ele habilmente se furtava alegando “vista turva e sem

divurgação” em fase da idade. Entretanto, para aqueles absolutamente incultos, fingia ler as notícias que, às vezes, estavam de cabeça para baixo. A presença de uma

gazeta fosse qual fosse a data ou o ano, na sua tapera, lhe imprimia autoridade e cunho de veracidade às novas que trazia do porto.

Naquele mundo de tiradores-de-mel e de jacas-tatu do tabuleiro distante, Pedro Bunda era, de fato, um homem importante. Quando não o fosse pelo dinheiro

- e isto, então, não possuía-, admitiam-nos os seus vizinhos pela sua capacidade de falar e de ser entendido por pessoa do “mundo-de-lá-de-fora”.

E aqueles cinqüenta ou cem vizinhos superpobres que se espalhavam dentro de um raio de cinco léguas, se sentiam, como isso, menos inseguros e até

protegidos por ter alguém que os ligava aos demais exemplares civilizados de espécie.

Nisso, e somente nisso, residia a sua ascendência sobre os vizinhos, pois era tão pobre quanto o mais miserável deles. Casebre de pau-a-pique coberto de

cascas, cercado de um pequeno terreiro arenoso e quase inculto, era todo o bem de raiz que Pedro Bunda possuía.

Nem caiá-lo pôde algum dia. Os móveis - se assim os podemos chamar - se resumia em uns três caixões velhos de querosene para guardar os “trens”; dois

bancos rústicos; uma forquilha de três braços sobre o que se apoiava um pote desbeiçado e sujo; duas esteiras-de-tábua e uma rede de embiras que serviam de

cama; meia dúzia de tocos de madeira enfiados aqui e acolá, nas paredes frágeis para servirem de cabides a um facão velho, uma cabaça, um surrão furado e aos

trapos da indumentária miserável. Os “trens”, utensílios íntimos da cozinha e da mesa (mesa no sentido figurado), não iam além de uma gamela e pratos de pau, uns

coités, panelas de barro, dois “flandes” para beber água e uma colher de sopa meio enferrujada para doses de remédios e uso de visita cerimoniosa, a espingarda

pica-pau, co de guarda-chuva, Pedro Bunda possuía. Usava, às vezes, um bodoque com arco de pau-pereira para matar passarinho do mesmo modo que espalhava

raras arapucas com que aprisionava algumas rolinhas incautas.

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Se bem que vivesse no século da eletricidade, a sua choça conhecia apenas a lamparina de óleo de mamona e o rolo de cera de abelha que se acendiam em

caso de necessidade, de vez que normalmente, ele e a esposa, a velha Leocádia, se deitavam à boquinha da noite.

Viviam sós, Pedro Bunda e a velha Leocádia, devidamente casados no religioso e, por influência dos vizinhos, na velhice, casados também no fogo de São

João. Até trinta e oito havia mais gente na sua tapera; Nucência, sua filha, e netinhos barrigudos, prenhes de lombrigas.

Depois que esses parentes se foram, o casal de pretos se viu cercado apenas do que Pedro Bunda chamava de “criaçãozinha besta”, expressão muito usada,

por modéstia, entre os pequenos fazendeiros de até cem cabeças de gado. A “criaçãozinha besta” de Pedro Bunda, no entanto, não ia além de um galo e uma galinha;

uma choca, uma pondo e outra com meia dúzia de pintos verruguentos.

O cachorro magro e raquítico nem se podia incluir na paisagem do lar miserável pois vivia mais - légua vai légua vem - de casa em casa dos vizinhos mais

próximos, onde eram menos raros os escassos restos de comida.

Pedro Bunda era toda via um solitário dos gerais. Raros os dias que não aparecia um conhecido para prosear sob a fronde do umbuazeiro. Não só porque o

homem atraía os apreciadores de “causos” e novidade do Porto, mas também pelo fato de seu mocambo estar localizado entre a Conceição e a cidadezinha de

Correntina, para cuja feira e comercio animados acorriam os matutos da região. A passagem pela casa de Pedro Bunda era, pois, quase obrigatória.

Logo cedo, pela manhã, Pedro respondia ao primeiro:

- Lovado seja nossinhô Jesuscristu, seu Pedru Bunda.

_ para sempre seja lovado nóis tudo. De manhãzinha assim, né seu Bertulameu? - e lá ia encompridando a costumeira saudação a fim de segurar o viajor para

um bate-papo.

- Né tão cedo, seu predu. Condi eu sai de casa inda tava iscuro, inhô sim, mais tive que fazê um rudeio pula vage de cumpad Manézim de Filó modi piá o

carralu qui anda sôrto sem chucái, vaiaco e infuluído nas éguas dos ôtus, nã discuidano na idade mostrante nos dentes das presa, qui já conta vinte era, sem tirá nem

botá dois mêis qui nã mamô, modi que a mãe, inté novinha ainda, morreu de espinhaço quebrado, cedo, no boqueirão das lage, inhô sim. Consoante sem mistério,

derna qui sofrente de tombo di dismintido di ispinha nã si cunhece nem meizinha, nem reza forte de curá criação, munto mênu carralo e égua qui Deus feiz, nã di

tudo, cuma bem fraco das pernas, apois morreu, pra si tê notiça trêis dia dispois.

Era suficiente. Bastava esse dedinho de conversa para Pedro Bunda inteligentemente indagar sobre o cavalo e, desde logo, apresentar-se fidalgo.

- Vamos abancá meu fii. Ô Locada trais um banquim aí modi Bertolameu de Zuina de Remunda tê um aliveio da viage.

- Quero sentá não, seu Predu Bunda. Essa leguinha não ismurece ninguém não.

- Ochent! Mode quê! Cê vai é pegá um istupôro no aruvaio, - Deus livre! - cedim sem sol. Jeromi de sá Filipa, asturdia, levou aruvaio na caixa dus peito na ida

e só vortô muntado cum adjuntoro do jegue de Henrique de Baraúna; istuporô e sentoma de rematismo disviado do cangote.

É o tempo em que velha Leocádia traz um banco e distribui o seu.

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- Nossasenhora l’abençoe meu fii. Adeusim, como vamu? Remunda tá mió?

- Abaixo de di Deus vamu tudo bem - e levanta um pouquinho o chapéu - sem suberba do mundo, cuma bem, sem privança de resguardo da pecaconha.

Quelementina continua fazeno vermimi cum lumbriga a cabra di sangui. Na razão do mastruço tá sintino miora das cólcas.

- Acocha, seu Berta, cum simente de abobra seca, di manhã in jijum. Abasta meio coité. Nã carece mais. É um santo remédio. Mata as lumbriga tudo.

- Quem haverá di dizê! Simente de abobra! Veja a inguinorânça cuma é, né Pedru Bunda? Jirimum ou abobra de porco?

- Quarqué uma - volta siá Leocádia, i u resguardu mermo é contra vê foia verdi sol arto, no dia qui toma o remédio. Rijume de cumida leve sem feijão nem

farinha. Chá cum bulacha ou frito. Doce? Nem vê! Mas antes de sol entrano, bota das miudinhas inté as solitara.

- Assunta! E nóis quebrano a cabeça cum remédio de casca di manga mastruço inchada! A inguinorança, né seu Pedru Bunda?

- É e nã é, e quandé-fé-é. E soltava uma baforada de cachimbo de barro com canudo de mamona, calmamente, sem pressa de prosseguir, certo de que o

inicio da resposta tem efeito fulminante sobre o interlocutor, que se limita, ante o enigma, a dizer, conformado e tímido:

- Inhô sim.

Pedro Bunda, já cavalheiro, completa:

- Nem tudo qui Deua vê o homem divurga nas cienças do dotô. O contrareio dos mato só tá na farta da sabença dos iscundidos das fulô, das simentes e das

raiz, cuma bem os contrareio das reza tá nas pronunça das incumenda supricante.

Nã vê, prinsempru, o resguardo da batata de burga? Nos cárcul dos home uma sumana; no regulamento dos dotô quaje não travessa o dia.

Deus condi feis as coisas, feiz, bem feito, meu fii, cum dispensa de lavra e sem caricimento de indireita, nem aparo. O contrareio tá no capricho dos home

quinem conteceu com véi Simão de Fostina que deu veneta modi indireitá o pé torto do fio mais novo e triminou alejando a canela toda do bichim.

Os remédios tão aí mermo nos mato.

Não tem um mato, uma rama sem valia de conseio. As doença vem da terra e da tremosfera ...

- Qui é tremosfera, seu Pedru Bunda?, indaga já atônito seu Bartolomeu. Deus mi defenda!

- Tremosfera, na língua dos dotô, é os are.

- Inhô sim. Vê a inguinorança. Magine gente, qui eu cumprindi no prano de argum bicho bruto esse tal ... - e preferiu não aventurar pronunciá-lo.

- Apois é dos are, esse mermim, qui faiz fartá o fôrgo, inhô sim, e qui só é cativo pros passarim voar.

Cuma dizia, as duenças vem da terra e dos are cum bastança di miricimento. E é conhecente disso que os pés de pau guerreia cum meizinha de chá e de

tintura, derna o fundo do chão, in baixo de nóis, inté in riba, na tremosfera.

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Tanto qui condi o ciúme é grande a tremosfera arriune redimunho de vento que arranca foia e pau cum raiz e tudo. Ele passa o verão todim assim pruveitando

qui os coitado dos mato tão mais fraco, carente do verde. Certa da hora que as água vem pra modi oxiliá os bichim - não vê a arenga é grande lá nas nuve. E os are

macumana comandita de ventania, relampre, truvão, rai-curisco - Deus livre! - dos lugá pra pressegui as chuvas cum zuadeêro e mangação de assubeio.

- É de vera! responde convicto seu Bartolomeu, a essas altura sentado e esfarinhando com as palmas das mão o fumo do cigarro em preparo. A lúcida axplica

acerca da mecânica celeste que acabou de ouvir o fez esquecer as sete léguas a pé que tinha pela frente ainda.

A velha Leocádia ouviu todo esse oxórdio futucando o cachimbo de barro com o velho grampo de cabelo. Com dois pipocos de suas bochechas murchas e o

recuo dos dois papos de meio quilo cada, o cheiro brabo de sarro anunciou o inicio dacuspideira. Apesar de sonoros e abiformes, os cuspes dos dois cachimbos e de

cigarros de palha não mais atraía os dois pintos pelados e magros que sempre rondavam par ali à procura de desjejum.

Mais dois dedos de prosa já estão passando os dois meninos de Epifânio de Siá Viríssima, mal trapilhos e sujos de um mes sem banho, puchando uma cabra

leiteira que amamentava os filho de Jeremias-de-Baixo.

- Bença padim; bença sá Locada; bença seu homi! e, à medida que os dois meninos disparavam por toda a banda ao mesmo tempo, as “ benças”, os

abençoantes desejavam os “ Deus potreja”, os “ Deus faça feliz” de uma só vez , fazendo com que as mãos cruzes mal arranjadas e sem pontaria, a esmo, para não

perder o fio da conversa.

- Já vortô, seu Predo Bunda? É Januário-da-ponte-de João-Grilo que, na passagem, freiou o cavalo para uma conversinha ligiera. Distribuiu em seguida “ bom-

dia” nominalmente a cada um, cruzou a perna por sobre o cabeçote a fim de se sentar mais comodamente na cangalha.

- Bom dia, vamo apiá seu Jinuaro.

- Posso não. Vô na Correntina inda mode tá aqui antes da boquinha da noite, inhor sim, se Deus quisé. Meu interesse é pouco, pru quanto qui visita o mermo

velho li fazê de amanhã a oito, tempo qui acabo a cerca do chiquêro.

- Ô Locada , percura aí otro banquim...

- Carece não. Cuma vai vançê, sá Locada?

- Pulejando, cum a graça do céu, amém nóis tudo. Dismonta, vamu homi, abanca nem qui seja um tiquim! Nem toda carrêra é pressa e olhando para o lado

de “seu” Bartolomeu - nã é gente? Onde já se viu?!

- Deixa de avexame, homi!

- Posso não, seu Predu. è avexame di pricisão. Vô vê se Remundo Sales mi fia vinte minréis mode perpará a safra de mío. Aqui in riba nã se presumi nem se

adiquere.

- É de vera. Os tustãozim qu’eu juntei mal deu mode interá as compras. Qu’essa caristia nã truxe mais de duas capanga, bisaquim, de trem pula metade. Fim

de mundo! Condi mi alimbro qui, na quadra de vinte, cum uma pataca de argodão descaderava um jegue, - né Leocada? - quem avera. É a incrise de caristia, gente.

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- Verdade! - considera o cavaleiro, já desanimado com o insucesso da insinuação.

- Lá no porto já falava das inleição? É sé condi chove umdinherim aqui pru riba,nos mato, mode vieti e matá a fome dos pobi, graças a São Bom Jesus da Lapa

e os home da situação.

Pra gulora e disaperto dos piqueno, pobi de pobreza, mais porém rico da graça de Deus, a felicidade é que o coroné Antoin nã deixa fartá nada. De um tudo

dá, é um chapéu, uma roupa, um bruzeguim. Ninguém vai nu pra rua mode votá.

A incrise - prossegue - é qui nem praga, deu inté nas inleição. Magine que as lezes do gunverno cumpre que as inleição, dorinvante, é no mêrmo dia ni todos

lugá das Nação.

Consoante, prus inleitô nã votá duas veis, só projudica os piqueno e potreje os grande.

Cansemo de votá na Santa Maria e , na mêrma sumana, votá cum o coroné Féli da Correntina, cum o coroné João Duque nos cocos de Carrinhanha, inda

caminhá qu’esse povo todo, trinta eleitô, quarenta légua mode votá no coroné Chico Fulô, ni Santana dos Brejos, vortando tudo satisfeito pras roça, cada um cum

dois, treis liforme, inchada e foice. Agora quero vê! Hum! Ninguém é Santantonho, mode tá na mêrma hora, sofragante, ni dois lugá.

- Quem é besta, né sá Locada, né seu Berta, mode s’infuluí? Tudo, tudo é qui nem aconseia seu Predu, tudo é no prepósito de prejudicá os pobizim qui abaixo

de Deus quem salva é a inleição. Quá! Se a cuiêta desse anos fô qui nem a do ano passado qui o feijão quemô fulorano e os mío bunecano, - Quá! - Tô mais aqui não.

Só si fô pru castigo dos pecado. Arribo cus meus tudo pru Guaiáis. Dusenta léguas pr’onde tá seu Martiniano Cavarcante de Dona Arabela, ni Goiana de Anápli qui, no

tempo qui morava aqui, nunca viu tropêço mode oxiliá os meu. Não dano certo aí - hum! tenho medo de anda nã - mais dezenta légua mode chegá no garimpo de

Lagiado do Mato Grosso, cum Deus na frente.

Ano trasa arrecebi carta de Sarapião de Noca, meu afiado, qui isgravatô esse mundo todo e agora tá rico, pissuindo pra mais de cem arquêre de terra de

ragadio e abondança de madêra de leis. Ochent! Tô pulejando aqui nã pru ismuricimento nem pru falença de corage, não.

Só não astrevi - nã é seu Predu, vancê mêrmo sabe e nã deixa mintí nem rudiá - só nã me astrevi tarefa de arribada mode conceio seu e promessa de miora

dos home de situação. Mas quem nã feiz na fulô dos ano, na veíce tem obrigação, dizia os antigo. Certo ô errado, errado ô certo, cobra quinã anda não ingole sapo e

água quinã corre tremina chupada pru fundo da terra.

Pedro Bunda calculadamente deixou seu Januário-da-ponte-de-João-Grilo descarregar a revolta. Admitia o dasabafo. Com efeito, era de causar até protesto a

notícia de uma só data para as eleições em todos os municípios. Na verdade, sempre fora assim. Ocorre, no entanto, que nenhuma fiscalização existia até então. Ou,

se existiam esta era burlada pelo poderio dos donos dos lugares. e os vizinhos de Pedro Bunda - o povo de “seu” Pedro Bunda, como chamavam os chefes políticos -

eram aliciados à base, ora de roupas, ora de par de botinas ou de borzegueins, ou chapéus para votar em vários municípios onde as atas das seções eleitorais eram

redigidas com a data atrasada.

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Não podendo votar mais que uma vez, reduziam-se as possibilidades de dar indumentárias àquela pequena comunidade de miseráveis, extremamente,

atrasados que, a exemplo do que acorria no resto do maio rural do País, se deixava inconcientemente subornar.

Para aquela gente que trabalhava o ano todo na agricultura e mal conseguia modesta roupa nova para a festa do Rosário, em Correntina, e festa do Divino,

em Santa Maria, as eleições, de fato, eram consideradas uma benção dos céus.

E era somente através das eleições e dos impostos que aquela gente tinha conhecimento do governo, pois nem o recenseamento decenal chegava àqueles

ermos do Tabuleiro da Conceição.

Pedro Bunda ouviu pacientemente a arenga, intercalando, aqui e acolá, um “é de vera”! ou um “ assunta”!

- Nã tem dificulidade não, seu Jinuaro. Nem carece arribá. Condi Deus tarda é que já vem no camim. Pru contrareio do “Sujo” - e fez uma cruz na boca - ,

tarvêis cumpad Remundo Sales teja no bom apurado mode adjutorá os pobe.

- Cum feindeus e a Vige Maria. Adeusim pro cêis tudo! Vô descendo mode vortá cedo. Deusim! Resignando e se inclinando para consertar a espora do pé

direito, deu marcha ao seu cavalo esquipador.

A prosa não se estendeu muito porque, logo, minutos depois, “seu” Bartolomeu resolvia também enfrentar o orvalho do amanhecer. A pé, o banho era

inevitável no trilho sinuoso a que ficou reduzido o estradão dos carros de bois. O fedegoso, o mata-pasto, a malva e outros matos de beira de estrada mais metro,

desde que brotaram da terra com as primeiras chuvas de outubro. Deles, com qualquer toque, desabavam pencas de orvalho frio. Mesmo ensopados até a cintura,

Bartolomeu de Raimunda “ruminava” no cérebro as conversas de Pedro Bunda. Seu Pêdo é quaje dotô, era de sê dotô e coroné, causo nã nascesse preto qui nem

anum e apregado ni Migué Revórve qui só tem afobação.

As novidades e os conhecimentos bebidos em dois dedos de prosa dixaram-no de cabeça cheia e ansioso para retornar à sua família antes que esquecesse

tantas tantas lições. Na volta era certo, presentearia a Pedro Bunda um bocadinho de sal ou de fumo.

Pedro Bunda, na realidade, não se achava tão necessitado de uma coisa ou outra. As visitas feitas em Santa Maria lhe renderam suprimento para mês e meio,

e ainda com sobras para se fazer de grande, na exibição de um cafezinho e dois foguetes nas ladainhas com o que calculadamente reunia aquela pobre gente dentro

de seu mocambo e em torno de uma gravura velha de um santo qualquer aproveitado de alguma folhinha de Biotônico Fontoura ou do Capivarol.

É que os familiares dos seus visitados, em Santa Maria, ou em Correntina, nunca esqueciam de acrescentar à mochila de Pedro Bunda uns torresmos, litros de

farinha, arroz, feijão, sal, café e, nã raro, alguns cruzados. Era a maneira de uns garatir elogios e outros os votinhos nos dias de eleições.

Pedro Bunda atravessou a existência assim, às custas de sua inteligência: um misto de filósofo, de cicerone, de político, de “ relações públicas” e de médico.

Foi, talvez, o único baiano a reunir tantas habilidades...

Prisão do Quartel do Regimento de Obuses, Olinda - PE, Agosto de 1964.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº72 - OUTUBRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME V

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 72

QUESTÕES DE LITERATURA ALBERTO LINS CALDAS

PRIMEIRA VERSÃO

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Alberto Lins Caldas

Professor de Teoria da História - Centro de Hermenêutica do Presente – UFRO

[email protected] - www.unir.br/~caldas/Alberto

QUESTÕES DE LITERATURA

“... é preciso ser visionário, tornar-se visionário. O poeta se torna visionário através de um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos. (...) o poeta é um verdadeiro ladrão de fogo. (...) Inspecionar o invisível e ouvir o inaudível (...). Anotava o inexprimível, fixava vertigens.” Rimbaud

1 - Uma literatura na contra-mão: que não combine, que não se pareça com o aparecer: que não está aí: literatura endaimoniada: literatura que rapte o

concreto por baixo, no seu fluxo vivo, no seu sempre a se fazer, no seu fazendo: uma literatura que busque uma sintonia especial, uma sintonia fina, sintonizada com

quem a requer, com quem a busca, com quem a exige para se descompreender e descompreender o mundo, com quem o sonhe com outros sonhos, com outros

olhos, outro corpo: para quem quer pôr o universo em devires descarnados: carne de sonho, imaginária, corpo que se quer somente corpo: mundo esquecido que é

somente cobertura do caos: literatura que desmonta e refaz o percurso imaginário, os programas, que tece esta vestimenta cósmica reificada: mimético – mas dos

devires, da virtualidade, dos fluxos, dos a-vires: a imagem da palavra, a palavra enquanto metáfora: a palavra enquanto ausência, vazio, vácuo: quase-espelho, o que

não somente reflete mas reflete qualquer coisa e coisa alguma sem o olho: literatura sem palavras: carnal, sensível, o viver da vida: o sonho congregando a poeira-

palavra, essa palavra viva: a literatura falando tão baixo que, ao tentarmos escutá-la, ouçamos nossa própria voz, as vozes do mundo daquele que lê: vozes

entrecruzadas entre tempos, espaços, corpos, experiências múltiplas: vozes que ao não dizerem podem ousar dizer algo: somente o não-ser pode se transformar em

todos os seres;

2 - Os objetos exigem denominações: as tecnologias exigem marcas, funções: as modas exigem visibilidade: os costumes exigem idéias, gestos, rituais,

comunicações, falares: a língua exige sintaxe, gramática, tradição: os homens exigem nomes, linhagens, histórias: as famílias exigem ramificações, parentescos,

hierarquias: as classes exigem códigos, lugares, ocupações: as literaturas exigem escolas, mestres, modelos, cânones, origens: os corpos exigem sexos, nomes: tudo

exige natureza, universalidade: - a literatura começa depois de tudo isso, sem alardear nada disso, sem dizer nada disso: a literatura não é sociologia, não é

economia, não é antropologia: resistência;

3 - Num universo cheio, saturado, brutalmente visível, comercial e industrial a literatura é aquilo que ainda se fará, que ainda não é no ato da compra, ainda

não é no ato do consumo (da mesma maneira que a literatura não se “produz”, não se “consome”), ainda não é: somente quando deixa de ser aquilo-que-é é que

começa a se formar o fluxo do que é ou pode ser o literário: será sempre um antes, um não realizado, um sempre a espera, um para o outro dia, quando houver caça

(a literatura é o desejo da caça que sempre virá: um animal do desejo, do sonho, da metáfora), quando se realizar o ato que não se realizará porque o ato realizado já

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é outra coisa: a literatura está no momento antes e no momento depois: na ansiedade, no sonho, no desejo, na imaginação, no devaneio: não numa matéria, numa

escrita, numa lógica, num discurso (podendo ser raptado por analíticas), mas numa móvel virtualidade interior;

4 - A literatura não nasce do “estilo”, da “língua”, da “tradição”, da “influência”, da “força de um povo”, da “maturidade pessoal e coletiva”, da “experiência

pessoal”, da “história de vida”, da “vida e da efervescência social e econômica”, da “criatividade”, da “história de um povo”, da “língua”: é a criação daquilo que será,

que ainda não é, daquilo que não poderá ser, daquilo que terá existência somente numa inflexão de fome, de desejo, de carência, de ausência, de buscares, de não

encontrares, de vazios e sementes de vazio que deixam passar o ser na medida do seu se fazendo: mas esse nada é sempre vestido pela tradição para significar, para

materializar-se, para poder ser apreendido;

5 - A literatura é sugerir, é destraçar (des-tramar, des-trançar, des-travar), é indicar, é desvanecer, é margear, é a magia e seus movimentos interiores; a vida

das imagens sem a presença da força e a força da presença, sem a presença dos poderes, sem a presença: a literatura se faz por dentro, como-se-não;

6 - A leitura desta literatura exige uma deleitura: a leitura corre nos trilhos, feita de tradição e costume, cercada de teorias e conceitos: a deleitura faz, exige,

pede, clama a literatura antes de tê-la nas mãos, nos olhos, no olfato: e ela se fará sem se fazer, dentro e não durante, depois e não antes, dele e não do outro,

nosso e não dele, sempre para depois, sempre para nada: a fome e os imaginários da fome, não a comida ou a saciedade;

7 - Para a literatura não há uma botânica, uma zoologia, uma sociologia, uma medicina, uma numismática, uma filologia: há somente o vazio do ser, a

ausência que diz, a generalidade que marca, que significa, que se espraia e agarra, pesca, viola, desnuda e mergulha, solta, virginiza, cobre e flui;

8 - “Esse veneno vai ficar em nossas veias (...). Isto começou com uma certa náusea e acaba assim (...), - isto termina numa fuga de perfumes.” A literatura:

são os devires e os a-vires desta “fuga de perfumes” que começa com “uma certa náusea” que “acaba assim” (esse apontar para nada essencial e para o essencial do

nada enquanto des-vendador do ser enquanto cobertura alienada do caos: cobertura sempre literária), buscando a literatura, seja para deixá-la passar (o autor é

somente a brecha heideggeriana), seja para iniciar a deleitura, seja para simplesmente tentar degustá-la por costume, sem conseguir: literatura não enche barriga;

9 - Como aquilo que cobre o caos é essencialmente literário: a literatura é aquilo que pode cortar, des-tecer, r-emendar, re-fazer o tec-ido para compreender o

feito, o se fazendo e o a se fazer: o ser no seu ninho, na sua cova, na sua favela, no seu palácio, nas suas palavras: o real por dentro;

10 - Embaralha fronteiras: comunga o isolado e isola o comungado: irrupção de transe e possessão: sub-versão: desterro; desconcerto: holograma em

transito, em transe: dispersão rotacional e veloz: deslizamentos, fricções, clivagens;

11 - Literatura não se faz no “livro”, no “autor”, no “tempo”, na “língua”, no “leitor”: a literatura se faz entre-nós: e esse entre-nós é um holograma vivo seja

dos gestos da leitura, seja do “eu”, seja dos fluxos da linguagem, seja do corpo: entre-nós;

12 - Literatura não se faz com palavras: esse é um dos seus “artifícios materiais”: a literatura é a dispersão contida entre-nós de um onírico holograma: seu

“corpo” não é a resultante das palavras, não nasce somente através das palavras: aquilo que as analíticas descobrem como literatura é uma ilusão da dobra material

que é uma ilusão daquilo-que-escapa: não é o nódulo material que cria a literatura, mas o inverso;

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13 - A literatura não trata do real no real: o desvenda dizendo-o por dentro (o de fora que é o dentro): dizendo antes e depois: jamais para os olhos, como

uma coisa-descrita (uma descrição é “impossível” na literatura);

14 - A literatura é a des-compressão da densa presença da mercadoria, do domínio da coisa, das relações reificadas, e da imposição de certos tipos de sujeito

e identidade: a literatura acon-tece além da cidade, da comunidade: no lugar sem lugar onde a própria comunidade se tece e destece;

15 - A “virtualidade de computador”, as “novas tecnologias”, não devem se traduzir em literatura (a literatura das máquinas a vapor, dos trens, dos carros, dos

eletrodomésticos, dos supermercados e shoppings): serão descrições, histórias integradas, descritivas, fincadas num determinado momento que não diz nada sequer

desse momento. Mas as “novas tecnologias” abrem outras grades perceptivas, outros corpos, alargando limites e fronteiras: a literatura “sempre foi”, por ser muito

próxima da maneira como o ser-do-mundo se cria/circula/se reproduz e se mantém, virtual, sem limites, fluxo vivo de virtualidades, vozes, imaginários: apreendendo

traços no seu ritual da eterna caça futura (aquele que jamais será devorada);

16 - Não há nenhuma relação entre a experiência (histórica, do autor, do leitor, da língua, da cultura) e a literatura;

17 - O espaço na literatura é um espaço impossível, improvável, antes um vazio, um vácuo, uma impressão, a sempre nada a ser preenchido (espaço que

desvenda a alma do espaço: feitos e ocupados da mesma maneira, o espaço literário desenovela o espaço geográfico); o tempo não é o tempo do leitor, do autor, do

tempo da escritura nem da escritura no tempo: o tempo literário é (assim como a do espaço) uma ilusão hologramática do leitor, que os cria por não saber criar essa

“vida” de outra maneira;

18 - O autor é uma dobra exausta: uma concreção “objeto de estudo” de Ciências: uma “máscara” sem novidade: uma peça mil vezes encenada mantida e

reforçada: não pode ser o autor aquele que põe em fluxo a literatura (ilusão jurídica): fora dessa ilusão jurídica há um pervertidor de fluxos que em muito ultrapassa

essa coisa autor: a literatura é sempre o muito além da personae: é o que fluiu depois que a personae estourou, vazou por todos os rasgões, brechas, invaginações,

intumescências, raízes, desagradouros: a “origem da obra”, o “sentido da obra” não é o autor, a classe social, o tempo, a sociedade, a história, o indivíduo: uma

possível “origem” ou “sentidos” estariam nessa permissão, nessa permissividade, nesse deixar entrara e sair, nesses desaguares, no prazer insatisfeito de ser tudo

para nada, em ver o invisível, em substituir o certo, o correto, o gozo pelo indistinto ritual que nada garante ou ensina;

19 - A literatura aponta para o mistério do desmedido, do incontido, do alem do limite, da origem da função, do controle: a literatura fura o real:

somos livres: sem natureza tudo é possível: a literatura é o desnatura: a literatura restitui a magia a um viver reificado;

20 - Uma força de dissociação, uma reclusão no segredo, na transparência e na ofensa contra a “alma comunitária” (a “alma danada” contra o

“santo guerreiro”): ambigüidade, fluidez, indiferença, sabor por absoluta falta de sabores: a literatura é um sexo latejando dentro de um coração vivo:

suavemente: erguida dentre os mortos, sussurra em permanente alvoroço: existência angélica é, antes de tudo, carnívora: carne arrepiada num estranho

fremir: contravozes (contraluzes) em turbilhão;

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21 - Sempre me guerra: guerrilha: terrorismo: a literatura é essa voz posta na escuridão ou no banco dos réus: uma voz que não é escutada, não é

lida, não é percebida;

22 - A vida levada a galope: os troncos vivos na correnteza do rio: no riso aberto por dentro da carne: na alegria sonolenta depois do gozo: contra o

ódio, a melancolia, o remorso, a burrice, a insensibilidade: a literatura é o vinho de Mefisto – de uma única garrafa cai na taça de cada um o vinho

escolhido: a literatura são fios que “...deslizam sem serem vistos...”, atraindo “... o espírito para fora...”: “... um quê de maldade e insatisfação...”;

23 - O que move a literatura não é um desejo-de-gozo, mas um desejo-de-prazer: aquele que mesmo gozando busca o mais-prazer, o prazer que

não aceita findar em gozo;

24 - A estética não é o ponto de partida: a indignação, a vergonha, o medo, a humilhação, a impotência, o silêncio, a conivência: a literatura não

muda o mundo (sua “função” não é nem pode ser revolucionária ou política): não vale mais que um prato de sopa quente depois de dias de fome: a

literatura é o antes da fome, o depois da fome: jamais a fome: sua decisão não alimenta, sua palavra não completa, sua carne não esquenta;

25 - A deleitura exige um buscador e não um consumidor: um aventureiro, não um comprador: um sedutor, não um masturbador;

26 - A literatura é o imediato-do-presente: escrito por ele, para ele, por ele, com ele: abre-se às virtualidades e é aberta por elas: o presente é sua

substância: aquele que é a totalidade temporal: o antes e o depois do imediato: a literatura é confluência e abertura: fonte, leito e delta;

27 - O “eu”, essa voz inflamada (essa inflexão selecionada e escolhida por outros), essa “história de vida” (essa lógica imposta como discurso), esse

“drama familiar” (invasão da natureza na virtualidade), é um casulo com um cadáver no centro (a literatura não é a voz desse cadáver): na periferia de um

uma imensa rede polidimensional que se articula em todos os seus pontos com outras redes: vibrações atravessam as redes em todas as direções

(construindo as redes em seus devires: as redes são construídas por essas vibrações: elas não “servem de suporte” para o movimento: os fluírem são as

redes): deixar-passar essas vibrações formando redes vibratórias (sem dizer o cadáver ou descrever o casulo e suas circunvizinhanças) que dizem a floresta

de redes - o escritor: as redes holográficas da floresta de redes – a literatura: aquele que momentaneamente deixa criar em-si os hologramas é o que se

chama leitor, apesar deste termo só se aplicar bem a um tipo “artesanal”, descritivo de literatura – contadora de história (analiticamente posta e esperada):

uma literatura exige um deleitor: uma literatura clama um deleitor;

28 - Transformar a dispersão viva das vozes no turbilhão das multidões num lugar denso onde todas essas vozes não se percam, mas se afinem

numa arma de dizer o sonho da comunidade no sonho daquele que sonha sozinho o desejo de todos;

29 - A literatura é da instância da magia, não das técnicas, das sociabilidades, das historicidades ou dos elementos manipuláveis.

30 - A literatura surfa nas ondas da virtualidade, nos fluxos vivos da mesma matéria da “comunidade”, da mesma substância do presente, da mesma

dinâmica perversa do imediato, na mesma fonte que alimenta o concreto;

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31 - A forma do literário (a sua teoria e visão do mundo: aquilo-que-espelha-o-mundo: mundo que corre por baixo) não existe antes na “realidade

social” (tomada em seu sentido naturalesco, existente como coisas em relação, existência alienada aparecendo como exterioridade independente e

material). É possível que traços dessa ainda não evidência concorra para a composição, mas o que existirá no mundo que deverá se parecer com o

“fantasma do texto”, com a forma textual, só terá existência completa pos festum, enquanto a forma literária é sempre um instável a priori que, servindo

aos elementos de “compreensão do real histórico”, parecerá refletir o existente, quando ele foi aquilo que o pré-sentiu num além do seu próprio ser;

32 - A migração estrutural da “exterioridade”, da “realidade social” para o texto, a linguagem, não pode esconder a exterioridade e suas

multiplicidades em rotação em “estilo”, “virtualidade”, “discurso”, “fluxo narrativo”: a literatura virtual desse momento não deve ser um mergulho mortal na

linguagem e nas desplugagens, mas um novo enfrentamento do mundo social na medida da sua criação, ocultamento e revolução, principalmente porque “o

real” é virtualidade viva, holograma em movimento, manutenção e mudança.

33 - Não adianta mudar a literatura-do-trem-de-ferro para a literatura-do-computador: expressar o mundo não é inscrever um rol de lavadeira no

mundo estabilizada das linguagens: nos cabe manter e fazer fluir a literatura;

34 - A literatura não é uma dimensão da obra, do autor ou do leitor, mas dos fluxos narrativos, dialógicos, polifônicos, metafóricos da palavra. Nesse

sentido a literatura “está” entre-nós, na comunicação entre as consciências, no espaço social enquanto devires que irrompem em formações provisoriamente

tangíveis, mas que ao serem “tocadas”, se põem em movimento. Essa a sua “natureza”, “substância”, “matéria”: movimento dialógico inapreensível por

“ciências literárias”. Esse fluxo vivo que se cristaliza também, diante de olhares metodológicos, numa Literatura historiográfica, antropológica, sociológica,

jornalística não é literatura: dentro delas, com certeza, há momentos dessa literatura, mas elas não são literatura, mas seu avesso, sua dimensão covarde,

ocultamento literário de si mesmo e do mundo;

35 - A literatura não está na Literatura: não está normalmente naquilo que é escrito para ser literatura, como literatura: ela pode atravessar

qualquer momento da fala em fabulação, da escrita em escritura;

36 - A literatura é o vestígio inútil de um gesto mágico de uma caçada que jamais se realizará.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº73 - NOVEMBRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME V

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 73

CONTOS VEROSSÍMEIS - JOÃO MUITO-EMBORA

CLODOMIR SANTOS DE MORAIS

PRIMEIRA VERSÃO

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Clodomir Santos de Morais

Professor de Sociologia Rural

[email protected]

CONTOS VEROSSÍMEIS – JOÃO MUITO-EMBORA

- Seu João é quem mais podia falar sobre isso aqui. Era o mais velho desses velhos de Santa Maria da Vitória. Minto. Não era o mais velho do que a siá velha

Gulóra; do que o velho Chico do caixão; ou do que o velho João Cego Do-Outro-Lado-Vizim-de-Angelo. Era não. Mas desses, era quem mais se alembrava dos

princípios da cidade e dos antigos dessas ribeira do Corrente.

O nome de seu João mesmo é João Salustiano. Não-sei-de-Quê. Só depois de uma viagem que ele fez na Lapa, faz muitos anos, é que voltou com esse

sobrenome de Muito-Embora. Foi pagar uma promessa ao São Bom Jesus e voltou falando difícil, como os viajantes que vêm da Bahia e de Belo Horizonte. Não falava

dois nomes pra não dizer Muito Embora. E os capadócios caíram de cima dele, mocinho ainda, moderno. De João Muito Embora a João Muito-Embora, lá sei. Hoje é o

velho João Muito-Embora. Não escapou ninguém da família. A mulher e os filhos, tudo é Muito-Embora. E, assim, até hoje.

Na festa de Santa Luzia, ele sempre vinha da Germânia, descendo o rio Formoso pra comprar velas de espermacete e foguete no comércio. Fazia novenas e

promessas todos os anos.

- Seu João, tem chovido lá pras suas bandas?

- Tem nada, meu filho - respondia remetendo o chapéu pr’atrás e coçando a cabeça com os dedos entrevados da enxada -, tem nada. Este ano não caiu nem

um pinguim de chuva, muito embora o riacho, quando estourou lá em riba, derribou os giraus, num aguaceiro que levou tudo.

E esse tudo, dizia com uma tristeza que vinha de dentro, chega de morava!

Se, por outra, lhe perguntavam: como é, seu João, a Nocência já pariu?

- Pariu nada, seu Antônho. Pariu o quê! Muito embora o velho aqui já esteja com a casa cheia de netos. É um desespero. Desespero mesmo - completava.

Imagina que, em três anos de casada, sete meninos: dois mambaços de cada vez e uma ninhada de três, no último parto, muito embora só escaparam quatro.

Mode essa civilidade de falar difícil, ficou com o Muito-Embora até hoje. Mas é quem mais podia se alembrar dos antigos da Santa Maria. Bastava pegar ele

com a língua solta e disposta a falar das missões e das políticas dos Afonsos, de Severino Magalhães e do tempo da primeira Reculuta da Guerra do Paraguai. Hum!

Era negócio pra varar três dias e três noites. Não escapava nem o barulho da rua do fogo, nem os casamentos do tempo do lençol furado.

Verdade que siá velha Gulóra é bem mais velha que seu João. Mas a velha não se rcorda de nada. Está avançada. Passa o dia todo, torta que nem um anzól,

com o nariz enfiado na almofada de fazer franja, aqui e acolá, caducando com umas cantorias de bendito e Kreleizón, que ninguém se lembra mais. Quem pode?

Basta dizer que, desde o tempo de moço, moderninho ainda, que vejo o povo chamar siá Gulóra de siá velho Gulóra. É só medir. A primeira filha dela, não. Mas a do

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meio se casou com o finado Zé-Bras-Fazedor-de-Tacho, mãe da mulher de Luiz Bodeiro; dela já saiu Belinha que já é avó de netos. Assunta! Só ai já vai pra lá de

tataravó e tataraneto. Sei lá! Deus me defenda! já está criando pena nas costas. Vai ficar pra semente. Deus me livre de viver tanto. Quero o quê! Ochent! Ter que ser

tratado que nem menino, seja pra dormir, pra comer ou pra ir no mato. Quero não. Prefiro morrer como o finado Pezim, conversando, dizendo o tamanho do caixão e

a fundura da cova; dando benção pros filhos e parentes bons e esconjurando quem não prestam. Assim é bom morrer, antes de caducar.

Também, siá velha Gulóra, coitada, não pode estar se lembrando de tudo se a história do marido da mãe dela é um precipício que não tem fim. Ele era

estrangeiro como Seu Minas e sem alforria. Tanto era assim que veio se esconder aqui nesse fim de mundo. Quem bem conhecia a história dele era o velho Larião, pai

de Maecelino Cabeça-de-Fósforo. Dizia que o marido de siá velha Gulóra se chamava Genovês Galhardo, de um reino estrangeiro onde havia guerra. E que ele estava

brigando muitos anos; que abusou da guerra; já não tinha mais saúde e resolveu fugir. É justo porém, o chefe, um tal de Garibaldi, que comandava o cangaço, queria

continuar brigando. Só sei que - segundo seu Larião - aranjou um parceiro, pegou uma canoa, de noite, e fugiu para um navio de retirantes.

Andaram muitas semanas sem ver terras. Êta diacho! Vê só o tamanho do mar. Inda tem quem duvida do Dilúvio. É muita água. Dizem que dá mais de dez

Rio São Francisco dentro. Vigia que São Francisco já é água muita. Quando sobe, a água barrente encarde o rio corrente até aqui perto, no Porto novo. Tem lugar que

dá mais de três léguas de largura. A valência é que tem lugar estreito. Senão, quem é doido de bater remo três léguas sem ver terra? Só navio!

Pois bem, eram italianos os dois. Jogaram a farda n’água e vieram bater na Bahia. E, certamente, não estavam fôrros, por isso, meteram o pé no mundo e

vieram se esconder nesses descampados daqui.

Sim, porque naqueles tempos tudo era deserto ainda. Santa Maria só tinha uma dúzia de casas. O comercio mesmo era Brejo do espírito Santo, arredado

daqui a três léguas. Tinha feira no sábado e padre uma vez por ano. Era a melhor localidade. Lá mandavam os Nery e os avós de compadre Zé Grande. Comerção

animado de couro de gato, caititu, boi e veado, feijão, farinha, rapadura e ouro do rio das éguas.

Os dois italianos, muito tempo zanzando pra cima e pra baixo, quand’é-fé ganharam dinheiro e se casaram.

Foi um tal de aparecer Filardi e Galhardo por todo canto: aqui, na Santana dos Brejos, no Porto Novo, no Do-Outro-Lado e na Cana Brava. Uns ficaram ricos,

gente grande, como bem o finado Argemiro Filardi-de-Dona Mosina, que em vintoito foi prefeito de Santa Maria. Em cinqüenta e cinco, outro ficou prefeito de Santana

dos Brejos.

Só mesmo os Galhardos não subiram. Falta de sorte - quem sabe! Mesmo assim, deram Cadú de Chico Coimbra, neto de siá velha, alfaiate, barbeiro,

marceneiro, vereador e tocador de clarinete na “ 6 de Outubro” .

Jesuíno. Tá! É quem poderia escrafunchar melhor as antiguidades velhas desses povoados todos. Se já não passou, está beirando os noventa. De-mais-a-mais,

é homem de muita gramática, fotógrafo como é hoje, e sacristão de toda a freguesia, no tempo de rapazinho. Já está surdo, coitado. E quase cego. Não por

desavença de Deus, mas por causa da máquina de fazer retrato. Todo mundo que fica com as vista na máquina de fotografia termina com o olho turvo, e, por isso,

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divulga pouco. Não viu o que aconteceu com Juvenal de Justino? Começou bater retrato, com pouco sentiu as vistas curtas. Se não abandonasse a arte é bem possível

de hoje estar que nem Jesuíno. Felizmente.

Mesmo assim, Jesuíno ainda lê as gazetas, as revistas e as bulas dos remédios que ele usa pra retratar os fregueses. usa uma lente pra adjuntar a vista.

O filho que tem em São Paulo, o sargento Óton, do Exército, já se ofereceu operar os olhos de Jesuíno. Mas ele quer saber de viajar nesta idade, o quê? Quer

nada! Também, para o caso dele, óculos não resolve mais não. O doutor de São Paulo que examinou as receitas de doutor Josefino-de-Bom Jesus da Lapa, disse que

Jesuíno carece de ter, no lugar das vistas turvas, dois olhos de defunto novo. Vou-tê! Já pensou? Onde já se viu tamanho castigo? Misericórdia! Quando me alembro

das carreiras que o viajasnte deu no povo daqui com um olho de vidro, hum! Avalie, Jesuíno com olho de defunto.

Cruz credo! E olhe que se Calmon, segundo dizia, escolheu o olho que achou melhor e mais bonito nas lojas da Bahia. E Jesuíno, coitado, ter que ter as vistas

de um defunto que nunca viu! Excomungo! Prefiro morrer cego, como Raimunda Cega, que já nasceu. Prefiro. Juro!

Se bem que, como o-povo-de-lá-diz, povo que se assombra termina se acostumando. Não viu o que houve em novecentos e dez com a professora Minervina?

Perdeu os dentes bebendo água do rio da Correntina. Dentes bonitos e certos como sementes de abóbora. Tudo branquinho. Foi apodrecendo um por um. Outros

caíram como os de menino que está de muda. Que água fresca, hein! Não adiantava jogar em riba do telhado com os “Mourão, Mourão, toma seu dente podre e me

dá meu são” . Não adiantou nada. Caíram todos. Passou muito tempo banguela e sem idade pra murchar as bochechas; madura de trinta anos.

Quando é um dia que ela veio da Bahia, o povo da Correntina se assombrou todo. Era a dendadura da professora Minervina. De postiça. As primeiras vistas só

demorava cinco minutos. Outras vista nem apareceram na casa dela. Foi um deus nos acuda. Quem queria? Por mais que ela explicasse, todo mundo achava os

dentes igualzinho aos da finada Suzana que, um ano, tinha morrido na Bahia. Até o dente de ouro era parecidinho. Tirante o marido, que era homem sem mofineza e

instruído nas coisas da capital, ninguém se aventurava entrar no quarto dela, de manhã ou de noite, pra ver a dentadura dentro do copo d’água, rindo com gengiva,

céu da boca e tudo mais. Arrenego! Mas veja o que é o atraso é a mãe de todas as ignorâncias e medo besta. Depois a gente perde o pavor e se acostuma. Com mais

um pouco se acabou a livosia da dentadura da professora Minervina. Acabou-se. Toda gente quando se encontrava com ela só queria saber da dentadura. Bastava rir,

pras mulheres ficarem cheias de inveja, cochichando os bocadinhos: - Quem diz? Parece obra de Deus. - É de vera!

Aí é que começaram os atrapalhados. Era uma que pedia pra ver; outra que queria ver na mão e as amigas banguelas ainda faziam exprimenta, pra ver se

dava certo na boca, na certeza de encomendar uma igualzinha pelo primeiro viajante .

Garanto que se Jesuíno trouxer dois olhos de defunto pro povo conhecer, com mais um pouco não vai haver cego nem zarolho na Santa Maria. O povo se

acostuma e perde o flátulos.

Jesuíno, como dizia, - não se assuste com o meu emendamento de assunto, não. Gente daqui não sabe falar de outro jeito. Fala de fulano quand’é fé escapole

pela vida de Sicrano, Beltrano e Romano. Tenho que amarra a língua e segurar o pensamento, se não daqui a pouco, mistura os bate-boca de Martiniano Doido com

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as manjarras de Justino Belo. Só é como sei conversar: é subindo o rio no fio das questões e entrando nos tributários dos “corgos”, dos riachos seco ou com água,

indo até a s cabeceiras dos assuntos.

Quem não tem leitura, nunca leu escritura. Porém, no sacudir das cabeças tem sempre um tiquinho d’água dentro. Demais não creio nas estórias dos livros,

não. Estórias mesmo, só de boca. Não carece de papel nem de muita ciência mode guardar, ainda que seja com uma enxurrada de atalhos de aliás e por sinal. Gosto

de sermão de padre que fala do Santo do dia e envereda pela vida de Cristo e de todos os Apóstolos, sem escapar os milagres e as doenças, contando de miudinho os

pecados dos bons e dos maus.

Jesuíno, dizia eu, com noventa ano, tem muita coisa que contar dos antigos. Pode não saber dos começos do povoado. Não é doutor, mas é de muita

sabença. É fato que não nasceu nesses barracos do Corrente. Chegou aqui rapazote, ele e as irmãs e o padre Othon, pai deles todos. Vieram de Santa Rita do Rio

Preto. Tudo de muda definitiva, sem retorno. Vieram de muito longe, umas cem léguas. Da Serra da Ribeira lá dá mais de sessenta.

É muito chão. Por isso vieram por água. Quand’é fé chegou uma barca carregada de gente, bagagem, mobília e louças. Isso foi uma dose, no comecím do

século. Era o padre Othon de Lima, carregado de filhos. Não veio só fazer desobriga, como os outros padres. Veio pra ficar padre da freguesia.

Foi uma afobação danada mode arranjar acomodação nas casas dos outros com tanto trem e tanta gente. Uns diziam que vaio corrido de perseguição política.

Outros diziam que deu febre de ir embora nos povos de Rio Preto. Na pedra de amolar, por exemplo, não só o padre como bem todos os comerciantes e os pobres

abandonaram o lugar de uma só vez levando gato e cachorro pros garimpos de Goiás.

Uma coisa ou outra, verdade é que naquele mundo do Rio Preto a política é braba e consumição de pecado pra muita gente. Quem tem menos, tem

quatrocentos homens de jagunçagem e mais de mil lazarinas escondidas nas furnas das pedreiras. Não viu Chico Leobas de Remanso? Quando sentiu que não podia

mais com os Albuquerques de Pilão Arcado, brigando de um lado e do outro do São Francisco, subiu o Rio Preto e se enfurnou com mais de trezentos homens no

Jalapão de Goiás, fronteira com Piauí.

O padre Othon preferiu vim pro Corrente. Mais longe e seguro. Foi até bom. Faltava padre aqui e de missa ninguém se lembrava mais, a não ser do Rosário.

Ele era forte e pessoado. Parecia de muito dinheiro e de muita seriedade. De forma qu ninguém pôde mangar do sintoma dos filhos. Padre, doutor e rico não

tem defeito. Mas se o pobre imita, cai na língua do povo que nem os ossos escapam. Deus me livre!

Por adjutório de Deus, as filhas eram bonitinhas, brancas e de civilidade muita. Tanto é que se casaram com rapazes da melhor situação, filhos do povo rico e

remediado de Santa Maria.

Naninha se casou com Quinca Atayde; Noêmia, com Quinca Afonso; Claudemira com seu Honor e dona Loló com Antônio de Bruno. Uns e outros da Guarda

Nacional, com dinheiro e posses. Só seu Honor não tinha patente, mesmo assim era mecânico de máquinas de costura, roda d’água e de cinema de carboreto. Um

outro filho do padre, Jesuíno, ficou sacristão, viajando com ele por todos os cafundós, batizando, casando e rezando missa, dez léguas aqui, vinte léguas acolá, de

cima do lombo do burro. Passava o ano todo fazendo as desobrigas, pois tem santo todo dia e os mais conhecidos exigem festas com missa, benção de tantoergo

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todo dia. É nossa senhora do Rosário, na Correntina, São Félix no Do-Outro-lado, São Pedro em Açudina e ainda os de Coribe, São Lourenço, Barreiros, Gatos,

Santantonho, São Geraldo, macacos que na falta de padre, só carecem de novenas e ladainhas.

O padre Othon era forte, resistente e não media consumição pra atender a freguesia. Eu mesmo, no tempo de moderno, acompanhei o padre na desobriga.

Quase me acabei de tanto viajar, foi uma desgraceira. Voltei com um pé desmentido, constipado e ameaçado de nó nas tripas, que, só no velho Binigo, com

beberagem de jurubeba e meizinha de folha de alecrim, misturada com reza e resguardo comprido, que fiquei estabelecido da doença.

Homem! Foi uma penitência infeliz. Vinte dias de viagem. Viajão danado.

Saimos amontados daqui do porto cedinho, na barra do dia. O padre Othon, como vigário, Jesuíno, como sacristão, eu, como bagageiro do padre e um burro,

manco da mão e sestroso da orelha, carregando dois baús grandes, cheios de trem de missa.

A mula que o padre montava era muito boa, viajeira acostumada a travessia sem água e estirada de dez léguas. Mas porém, velhaca quando solta, coiceira na

hora do arreio e sestrosa de rabo no botar o rabicho. Boa no passo de viagem e desenvolvia rochão de doze légua num dia. O defeito que possuía era na uretra, se

mal emprego. Não podia pisar as patas n’água pra não mijar. Jegue inteiro nem cavalo influente chegava perto dela. Se estava no cio, ninguém sabia. Foi feita pra

padre mesmo. Animal que chegasse perto dela, era coice por toda banda e dentada de arrancar orelha.

No princípio, quando novinha, Zé Severino-Amansador-de-Burro botou o nome de castanha. Aprendeu o passo viageiro, com armação de carretel e argola na

barrigueira e nos cascos traseiro, em quinze dias. Só vendo! Com pouco, estava esquipando, sem carecer de chicote nem de espora de roseta grande.

Um dia que o padre Othon chegou, tarde da noite, de uma viagem das quinze léguas de Inhaúmas, não teve tempo de mandar botar a castanha do capinzal

do Domingão do Justino Bedocha. Duas léguas então, o criado deixou ela aí mesmo, quase na rua. Foi a conta. Estragou a mula. O que aprendeu em três meses, de

passo, rojão e esquipado, no amansamento de Zé Severino, perdeu numa noite na roça de Zé Carretão. O jegue dele. Aquilo é um escumungado. Olhe, aquele jegue,

enquanto teve inteiro, só prestou amarrado de peia e cabresto. Era um labóro toda semana. Saltava cerca de coivara, cerca de espinha de peixe, cerca de dez fios de

arame farpado pra lota a égua de Pedro de Catulino-Seleiro e a jumenta de Damião-de-Siá Gertrudes. Era um castigo. E quando descia aqui na rua - Deus me

defenda! - incomodava até os bois dos carro-de-bois com uma sem-vergonhice que as mulheres fechavam as janelas e botavam as filhas moças pra dentro de casa.

Excomungado! Era o Cão em couro e osso, descadeirando tudo quanto é bicho fêmea que encontrasse e sentisse cheiro. Rinchava tão alto que parecia o apito do

vapor “Saldanha Marinho”. Obstante os coices por todo canto e dentada que leveve, só sessegava depois de se lambusar na luxúria sem respeito.

Uma vez, nas missões, foi uma latomia dos infernos. O povo todo estava na missa campal do pé do Cruzeiro Grande. Gente muita que rodeava o oitão da

igreja. A cidade não era cercada como hoje, com doze fios de arame e mourão de mussambê. A criação andava solta pelas ruas. Soflagrante, na horinha da missa, só

se viu o estouro do rincho do jegue de Zé Carretão, correndo atrás daégua de Catulino-Seleiro. Foi um Deus nos acuda e vige-Nossa-Senhora! Homem, esparramou

gente pelo beco da “Vantajosa” e beco de Manoel Coelho que o areião da praça ficou coberto de véu de missa e chale de mulher velha. Mesmo os que não arredaram

o pé do altar se escusaram do mistério do sacramento, porque o jegue botou a confissão e a abstinência de véspera com o pecado mais feio.

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Pois foi quem desgraçou a mula do padre Othon, novinha, mansa e com oito palmos de altura. Bastou uma noite de correrias na manga de Zé Carretão.

Depois disso, jogar o arreio nela pelo lado dos quartos perigava levar coice que avoava a sela dez metros de distância. Por causa disso, botaram o nome de “

Serepente” e ficou batizada até morrar.

De viajeiro, foi o melhor animal daquela quadra. Trinta léguas pra ela era impleitada besta de dois dias. Mas, voltando pro assunto da viagem, onde é que eu

estava? Assunta! Estou que-nem o velho Epifânio, na hora da morte. Chamou os filhos pra fazer o testamento e terminou falando da caçada da onça que mais

compadre Manoel Cândido do Quebra-Botão e dos bate-boca dos dias de eleição do Império. Mas morreu bem, sem dor, falando já sem a luz dos olhos.

Eu fiquei na viagem, não foi?

O sol veio aparecer quando cruzamos o riacho do Pau-de-Colher, no rumo de São Pedro do Açude. O estradão de carro de bois, carregado de rapaduras dos

brejos, estava ainda fresco, sem andamento de gente e de criação. Todo bordado de ponto em cruz, dos rastros de pomba de bando, juriti e arribação que se cevam

nos desperdiços dos viajantes. Debaixo das umburanas, angico e outros pé-de-árvore, peneirando os raios de sol, o grameal verdinho e ensopado de orvalho delatava

que a terra dormiu bem, noite de noiva, enxertada de sereno. Os passarinhos, num bete-boca de feira, uns mangando, outros perraçando de ciúme - como os “fogo-

pagô”, periquitinhos e baitacas, tavam num lutrimento de beijo de bico - fora dos ninhos.

Eu mesmo nuca tinha acompanhado o padre em desobriga. Antes só foi uma fugudinha, na Santa Quilara, pra bençoar o pai de Siana de Chico Vaqueiro que

estava morrendo com baticúm no coração e postema na virilha.

Sempre arreneguei viagem de padre, pra não ouvir conselho de falação dos pecados e esconjuramento de amancebados. Gosto não. Tenho os meus defeitos,

mas não sou senvergonho, tão pouco não me meto na vida alheia dos outros. Nasci solto e crio meus filhos-homem soltos, sem ferir a lei de Deus. Quem tiver as suas

fêmeas que amarre no curral. Gosto de padre e doutor que fala de tudo, da política e religião, sem atravessar o batente da porta do quarto de dormir. Daí pra dentro

é Deus quem cuida.

Estimei muito como o padre Othon tratou das coisas do Cuscuzeiro, daí uma leguinha. Mal foi chegando, distribuindo benção pros meninos, lavou o rosto,

tomou café e se aprontou no preparo dos batizados e casamentos. A maioria, mancebados: por carência de vigário na freguesia, dois anos seguido. Naquele tempo,

ninguém se aventurava casar na lei civil. Lei da maçonaria e da República, era lei do Cão e mal-do-Século. Outros já amasiados, com filho grande, não arriscavam

casamento, com medo do sermão dos missionários. Só sei que o padre Othon casou todo mundo depois de confissão sem muita penitência de reza ajoelhada. Era só ir

dizendo os mistério da língua de Deus e Jesuíno respondendo amém. Ninguém tremia de medo, de vergonha. Até João Carreiro-da-Serra-das-Lapinhas , que viu o filho

se casar primeiro e, mesmo assim encabulado, acertou o dedo da velha dele no bota da aliança. Saiu desabafado e vazio de pecado. Jesuíno recebeu ordem de só

cobrar dinheiro de quem tinha. De vinte casamento só sete renderam. Os outros eram pobres. Uns nem aliança de flandres possuíam. Os batizados ficar de graça.

Menino de peito, muito que encheram de choro de água benta fria as três casas do Cuscuzeiro. É que saiu gente de todo buraco: das Lapinhas, do Poço-da-Pedra, do

Pau-de-Colher, do Domingão e da Lavoura. Uma casa aqui, outra daí a meia légua.

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Tudo foi feito com avexame mode alcançar São Pedro do Açude. Assim mesmo o padre fez um explicado do dever cristão. Com pouco mais, o povo se

espalhou, amontado e de pés, pelas estradas e atalhos.

Seguimos viagem. Quando havera da gente subir, cortando à esquerda pelo Retiro, a Serra do Pedreiro, no propósito de chegar cedo, o padre quis ir por

baixo. Era pra passar pela Gruta do Menino Deus onde havia romaria de romeiros sem sabença, pois o bispo da Barra já havia excumungado o lugar, arengando

heresia de fariseu. De fato que descobriram a gruta em lugar abismo, onde o riacho de Santo Antônio entra por de baixo do chão, se enfurna pra só aparecer daí duas

léuas. Fica perto do nascente da casa de Carrim de Dolorosa. Lugar feio e perigoso como um caldeirão de pedra, cavado no rumo dos grogomim da terra como quem

vai descendo pro inferno. Duas léguas de gruta, avalie! Fim de mundo! É de vera que não é uma só. Tem um magote, que-nem casa de abelha. As mais grandes dão

mais de três tarefas semeadas de pedra-vela, que nascem de baixo como descem de cima, pingando água fria e quente. Outras têm lagoas da cor do arco-íris gelando

as vantanias dos corredores e precipícios. Tem hora que a gente escuta o riacho por dentro da pedra, de baixo dos pés. Outra hora, o riacho já está em cima da

cabeça, cachoeirando sem ninguém ver. Os caçadores, é só eles que furam as duas léguas por dentro do rochão, mode que, sem cachorro de faro bom, ninguém deve

se astrever. Perigoso. A mãe-da-terra guarda lá dentro a famiação e a fiação dos caiporas, pés-de-garrafas, romãosim e espírito de caboclo, de arrepiar os cabelos.

Te’s-conjuro! O povo é quem diz que até os nêgos-d’água do Rio Corrente nascem e se criam na Gruta do Menino Deus. O preto Bilau já viu uma fieira de nêgos-

d’água descer o riacho rumo da Cana-Brava pra mergulhar no Corrente, destinantes de atentar os pobrezim dos pecadores. Não duvido não. Duvido o quê! Não vê? É

só de quem cachorro de caçador tem medo: é do nêgo-d’água. Pode enrolar uma coleira de fumo nele. Não confia. Chega na beira do rio - ali nas Perdeiras então!

Hum - faz olho vidrado de medo e refuga. Não atravessava. É o nego-d’água, virador de canoa e espantador de peixe. Moça que toma banho de noite, escondida, nos

escuros das Pedreiras, deita com o nêgo. No outro dia está dama, fora de casa, na rua da confissão, ou então escapole pra fazer a vida na Festa da Lapa. No mato, o

malfeitor é o pé-de-garrafa, mas no rio e nas lagoas é o nêgo-d’água.

Pois bem, tem lugar nas grutas que os cachorros dos caçadores choram de medo como dabaixo da onça e fogem subindo no pescoço do dono. Não adianta

perseguir no escuro porque o nêgo-d’água apaga o facho de fogo, o rolo de cera, a binga, o isqueiro-de-artifício e até vela benta de espermacete. É um castigo!

Quando a cheia é grande, o riacho vomita da boca do nascente cabaças pintadinhas, maracás, rosários de sementes, bugigangas muitas, polidas pelo caboclo que

vivem socados nas grutas. Deus me proteja!

Mas só usaram a gruta da entrada, que tem feitio de altar bem acabado, lavrado pela mão da natureza. Não faltou quem trocasse uma quarta de feijão por

um Menino Deus, do fabrico de seu João Imaginário, e colocasse no fundo da gruta pra atrair romaria sem benção: Menegildo Reza- tudo. Foi um tal de chegar gente

de todo canto que não acabava mais. Té das bandas da Bahia e Macaúbas veio aleijado e cego procurando cura. Pegou parelha com a gruta do Bom Jesus da Lapa.

Não faltou as filarmônicas de musicas de Santa Maria e de Santana dos Brejos. Mas a influência foi curta. Durou pouco tempo; formou um comicím pequeno de vender

beiju de tapioca, carne seca e armarinho de igreja. Sumiu logo. O bispo esconjurou o culto, carecente de benzimento na imagem, sem agravar os milagres já feitos. A

vida é assim mesmo: o homem mancha e Deus desmancha. O padre Othon parece que não gostou do lugar, não. Chegou nem desapeou e nem tirou o chapéu, como

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nós todos respeitantes do sagrado. Procurou pela imagem e o guia, Juvenço, disse que ela estava dentro da gruta, encantada, e que o desencanto dela só era no fim

do mundo, quando o riacho virar fogo como cocho de mel pelando, desabando o vão das grutas.

O vigário só foi puxando as rédeas e dizendo:

-Vambora s’imbora, que ainda temos uma légua de viagem.

Chegamos no São Pedro meidia-a-pino. Por falta de espaço, onde mora Sinhozinho Escrivão, travessamos o açude pro povoado do Santantonho, mode assistir

na casa do capitão Justino Belo. Eu mesmo assisti na casa da finada Zuína de Zé Piau, assim do lado da casa onde, hoje, mora Dissón de Arlindo Cego.

Cheirão de rapadura invadia as ventas do povo. Engenho de rapadura de madeira, outros de ferro. Tudo, tudo moendo de boi cansado.

Gente muita na igreja. Tudo brejeiro dos brejos. Uns de pé no chão, chinelo de couro e chinelo de trança, precatas; outros de botina e burzeguím. Roupas de

brim de linforme, sem falar nas calças de pano-grosso, tecido mesmo, e os zefír de um cruzado. As mulheres, alprecatas e pé no chão. Com esforço se via sapato-

entrada-baixa e sapatina, tanto nos homens como nas mulheres.

Quem tinha, e até de botina e burzeguím, carregava pelos dedos, mode não estragar na areia. Só calçavam na hora da missa.

Santantonho e São Pedro foram tirados da mesma fôrma: uma pracinha e uma igreja pequena. Um, vizinho do outro, e separados pelo riacho. Consoante,

quem soltasse foguete de cima do açude de pau, servia pros dois santos, sem ciúmes nem agravos das imagens.

Boca da noite, confissão de casamento e benção de tartoego, com incenso e sino batido. De um lado e do outro. No outro dia, missa simples no São Pedro e

no Santantonho, missa cantada de domivobisco e perônia seclora, virtude ser na data do padroeiro mesmo, inhô sim!

Três dias pra casar e batizar o povo e os meninos.

O festeiro Justino Belo matou três bois pra dar de comer o mundaréu de gente. Homem rico de boas posses e posição: moagem de três engenho de pau,

alambiques de barro e mais de trinta meeiros com trabalhador de alugado.

De noite, só vendo! Galo cantando fore de hora, dalatando furto de moça de noivado perdido. Noite gemida de moenda de engenho e chorada de cocão dos

carros de bois carregados de rapadura. Cheiro de mel e catinga cheirosa de cachaça quente. Zuada de porco fuçando monturo e de cavalo e boi mastigando olho de

cana. Resmungo de gente pecando no escuro, pra Deus nem a lua não ver e o povo não falar.

Cazuza Almanaque, lambendo a palha do cigarro, se intrometeu nas bestagens dos meninos de “ bença lua, mim dá um pedaço de sabão pr’eu lavar meus

gatím qui tão sujo de carvão”. Homem de muita sabença, Geografia e outras humanidades; que lê as gazetas e fas conta saltiada, soletrando a taboada das regra-de-

três e a jometria das cumieiras de casa. Foi logo descrevendo na ciência:

- A lua é que nem mulher. Não se ajunta de dia. Se é nova ou crescente não quer saber de macho por fingimento. Passa a noite toda correndo pra detrás das

nuvens até se esconder nas serras, mode o sol não ver. Depois de cheia ou minguante, acaba a pirraça e o acanhamento, se mostra o dia todo, o resto é mistério da

lei de Deus. É!...

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Acendeu o cigarro e deixou todo mundo batucando com a cabeça.

No dia seguinte, ainda houve alguns casamentos de gente do Baixão, Cafundó de Dentro, Alagoinhas e Pinhengo.

Costurado um loro da sela do padre, que no pisar da caçamba se repetiu-se, viajamos de novo, no rumo do riacho da Água Quente pra rezar missa na festa do

Brejo do Espírito Santo.

Dois dias de viagem com a demora na Água Quente, São Lorenço de São Augusto, Maranhão dos Ramos e São Joaquim dos Leite. Correu tudo como no

Cuscuzeiro, com a diferênça das dormidas simples e as dormidas de muito de-comer.

Brejo do Espírito Santo, festão danado também. Festa do Divino com Bandeira de tirar esmolas, acompanhado de zabumba e pife de taboca. A “Seis de

Outubro” , foi do porto. A influência foi do Brejo ainda era grande. Com o tempo é que foi morrendo, morrendo e, até hoje, o Divino se mudou pra Santa Maria. Agora

a Festa é feita aqui mesmo.

Teve cavalhada de Rei Mouro e Rei Cristão com o furto da princesa na véspera e o batismo do Rei na data. Só não foi mais animada porque, como hoje,

transtorno, havia morrido a mãe de siá Felisbverta Santeira que toma conta da igreja. Altareira desde mocinha. Mordida de cobra. Foi. Só bateu o dente no pé, com

meia hora, a velha estava morta. Morreu sem labuta, falando e sentindo uma dormência no corpo. Norato Fechador-de-corpo, mandado chamar na ponta da rua, inda

chegou com sobra pra espremer e benzer a ferida. Amarrou as pernas de Zabelê, com chocalho de cascavel no pescoço da velha. Quando foi represar o sangue da

perna, com cipó de tipí, ela vodrou os olhos. Cobra quatro-venta, prenha.

Morreu bendizendo o nome de Jesus e lembrando a dilha de não esquecer de botar os ovos no ninho que a galinha de pescoço pelado já estava choca.

Foi quem ensinou a filha dos puchamento de terço e ladainhas de Nossa Senhora e de Todos os Santos, tanto na conversa do povo como no mistério da língua

do padre. Era espichada, bem verdade sem leitura, nas ciências e arte da crença.

Morreu santa, sem pecado. Abasta dizer que passou a vida toda fazendo azeite de mamonan e vela de sebo de carneiro. Na falta de sebo, fazia rolo de cera

de abelha jataí. Tudo mode lumiar os santos e as imagens.

Organizava as procissões de penitência e as preces de fazer chover. Ninguém sabia mais do que ele do jejum de abstinência e da hora da leluia mode econder

a matraca e repicar o sino na descoberta dos santos enlutados, luto-fechado de pano roxo-defunto. Além do mais, não tinha mais grande pra conduzir em segunda

voz a cantoria das incelenças e o Ofício de Nossa Senhora, na beirada da cama de um moribundo ou mesmo de defunto passado.

Mas a festa, mesmo assim e tirante isso, foi muito animada. Matança de quatro bois; meia dorma de cachaça; mais de trinta girade de foguetes; uma dança

de umbigada, de zabumba e harmônica, e baile da dança agarrada na casa do festeiro, com a gente que foi de Santa Maria.

O desconsolo da festa, mesmo, só foi a bizarrice de Liodoro de siá Prizilina. Veio de São Paul, muito metido a selebesquepe. Importante, de três dentes de

ouro, lenço amarrado de aliança, no pescoço, e botina de polaina pregada. Casemira azul de jaquetão, com lencím no bolso embutido.

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Liodoro era menino carregador d’água, sem emprego e dador de trabalho pra siá Levina de Zeca-de-Quintino, que criava ele. Um dia já rapazote, abusou do

paradeira daqui e foi pra São Paulo, na influência de ganhar dinheiro.

Voltou, dez anos depois, lorde como os sobrinhos do coronel Quelemente. Fez figura! Educado e falando de industria de fábricas de trem de ferro e da

dinheirama que se ganha em Bauru, muito pra lá da Bahia. Mostrou cabedal! Viveu com alemão, japonês, carioca, paulista, italiano e outras nações que fazem derriba

pra lavoura de café e algodão. E, pra completar a civilidade, voltou músico de coreto de praça, mais ensaiado do que os dicípulos de Jão Guará, que era melhor

regente da época. Demais disso, trouxe um tambone niquelado de prata, que quase virou a cabeça das moças da Carinhanha. Com mais um pouco, acabava com os

noivados do povo rico.

No Brejo, no malhor do baile de agarrado, o negro não mediu a qualidade e ofereceu uma modinha á filha do finado Deusdethe de Raimundinha. Foi a conta.

A moça até já se desmanchava de fererice quando ele tocou. Deusdethe, pra não passar pela desmoralização, exigiu o casamento e Lidoro não quis, arengando

civilidades de São Paulo. Quebrou o trombone dele no joelho eno mourão de amarrar burro e ainda deu um surra na filha, voltando pra casa.

Liodoro considerou a distância e quietou, virtude tratar de gente clara, possuída de fazenda e gado muito. Obrou bem.

O fuxico foi grande. Não pela saliência da moça, mas pelo enxerimento do nego Liodoro, que quis passar os pés diante das mãos porque veio de São Paulo.

Ví quando Deudethe procurou o padre Otho pra aconselhar. O padre estava acabando de jantar na casa de seu Onofre Neri, assim de uma banda da praça.

Foi entrando e foi dizendo:

- Reverendo padre, não falo com orgulho pra Deus não se fazer rogado. Mas, filha minha, enquanto eu for vivo, não arreda o pé da Santa Maria. Vai não.

Derna que a República e a maçonaria tomou conta de lá, o povo está remanchando na moral e nos costumes da religião, sem purga nem castigo.

O padre botou comida pro lado da boca, mode responder, quando o capitão Rufino d Brejão, trocando a perna cruzada, deu seguimento:

- Não é orgulho não, compadre Deusdethe. As minhas filhas só estão aí no baile porque o festeiro é o compadre Onofre. O povo de Santa Maria, depois do

casamento civil, atolou-se na maçonaria e no pecado. O comitê dos logistas só é lei que eles respeitam. Falam da República, sem cruz na boca, e os meninos

registrados no civil, choram no batismo por nascer excomungado já na inocência.

A última invenção do cão, nas idéias da República, é essa dança de agarrado. Onde já se viu? É a vergonhice mais discarada do mundo. Diabo solto. Deus me

defenda ! Derna o dia em que compadre Onofre me disse que vinha filarmônica e moça de Santa Maria pra festa do Divino Espírito Santo do Brejo, que eu

encomendei dois rosários, um de manhã e outro de noite, com essa velha Rita de Jeremias, qu’istá aqui e não me deixa mentir.

Siá Rita, que já estava doida pra se meter na conversa, tirou o cachimbo do queixo sem dente, traçou na carra e no peito um “ nome-do-padre” , virando os

olhos pro telhado e disse: Cordeiro de Deus que a mentira não desmente, amém Jesus. Pra não fala adjutório inda rezo, no meio dia, cinco penitênça de confite de

Eu-Pecadô solto, sem ave-maria e nem jaculatória. E piscou duas vezes os olhos, que nem jia velha pelancuda de beira de cacimba, pra dizer:

- Fora disso, só Deus do Sacramento pode, amém, Jesus.

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- Devo mais duas pacatas, siá Rita, por ignorar o agravo - disse o capitão Rufino, metendo a mão no bolsím do colete pra tirar o dinheiro, chegando ainda a

tempo do - “ Deus lhe favoreça e dê mais, na vida e na morte, amém, Jesus” , de siá Rita.

O padre Othon já tinha decido o bocado com gole de café, mode entrar no assunto, mas Deusdethe não quis dá ouvido, não. Resmungou durante todo tempo

em que o padre explicou os costumes de São Paulo e da Corte, onde oferecer uma modinha não ofende e nem tira pedaço.

- Costumes novos, dizia ele.

- Saliência de nego enxerido, respondia Deusdethe. Essa peincesa Isabel merecia uma surra pra não pensar mais alforria de negro. Taí o que deu: casemira

azul marinho, dente de ouro, conversado dificil e trombone niquelado de prata que não mareia. Isso é coisa da República.

O padre ainda labutou um bocado de tempo, na explicação bendizente da República e da alforria dos escravos, mas sem resultado.

Tive no Brejo um namorím ligeiro com uma branquinha de beiço grosso e cabelo de sedém castanho. Namoro de longe. Namoro de olho como santa de altar

que não se deve pegar, nem pensar mal. Faiscava os olhos de coroço de pinha. Olhos pidão de olho de choro pra quem quer pecar só no venial dos desejos.

Primeiro, foi no largo da feira, em frente da igreja. Depois na esquina do Velho Jão inglês, descida do cemitério, e no cilêncio da igreja. O namoro da feira foi

sem combinação nem procura; no acaso das cabeças. Tomei até susto numa nesguinha de tempo. Ela baixou as pestanas num canto do chão, olhante vazio de longe.

Parecia me querer ver de novo sem mirar. Vista baixa. Não conseguiu. Que, quando ela levantou as pestanas, me sentiu, na tocaia, avoou no ar com alegria de

menino apanhando borboleta. Variei de febre-repente, quando, aí, ela fez beiço de riso e entrou pra dentro que a mão chamava.

Na tarde do dia seguinte eu vi bem de perto, pertinho mesmo, o brilho dos olhos e o gangote macio de juriti. Tição de angico fez labareda na boca e nas

orelhas. Cacei entendimento das vistas sapecadas de borralho sem imagem de pecado. No fisgar dos olhos, um instante só, a linha esticou como ferrada de peixe

mantrinchã. Senti frio doce na espinha e fraqueza nas pernas. Medo sem sabença. Inda bem que ela derreiou as vistas pro lado da irmã até passar os incômodos.

Na esquina do velho João Inglês e de Satu, ela passou pertím de mim. Mistura de medo com vontade: sintoma de passarinho novo, quando a rama treme no

ninho. Vi o baticum do coração no pé da goela. Medo de vergonha, com doçura do sangue e no pensamento. Apois, por causa disso, o canto do galo chorou nos meus

ouvidos a viagem toda. Só Deus sabe.

No dia seguinte rumamos viagem pra Inhaúmas, de madrugadinha, fim de não cansar os animais na travessia de dez léguas sem água.

Geraisão bruto, crivado de coco, tucum rasteiro, cajuí, timbó, pequí, araticum-cagão apelidado cascudo.

Deixamos o vale do riacho coberto com um fiapo de algodão de névoa. Era um véu de missa nas cabeças das árvores até as cinturas dos canaviais. Melhor

ainda, quando subimos a tabuleiro. Espiando pra baixo eu senti, no derradeiro cantar dos galos, que só ela e o lugar pedia pra voltar, pois o povo todo dormia, longe

do mundo e longe da saudade.

A arribação foi quem primeiro descobriu o dia, quando já tínhamos rompido uma légua. Só depois é que o orvalho brilhou nas moitas de folhagem dormida.

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Nos gerais, o sol não nasce. É entregue, como menino Deus, já vestido nos panos vermelho e azul das nuvens. E vem por cima da cabeça um bando de

papagaios, araras e passarím de toda espécie, como os pastores anunciando a nascença.

Tudo é grande e alegre na natureza dos gerais. Os pé-de-paus perecem gente daqui mesmo: tudo mediano e dançando com os primeiro pigos, no dia de São

Miguel. A terra dos gerais bebe toda chuva, pode ser o chuveirão maior do mundo. É sede de goela seca. Não dá poça. E o cheiro de terra molhada, quando invade as

ventas da montaria, o bicho não sabe de suspira ou relincha; sacode as crinas e morde a brida satisfeito.

Na tempestade e outras brutalidades de fim de mundo, a chuva labora tarefa de dilúvio, molhando as matas por previnimento, mode o raio não queimar o

gerais todo. Já vi um corisco rasgar o céu dos gerais em duas bandas. Homem! Rachou, se despregou rachaduras como garrafão de cachaça quente. Olha o estouro!

Vi os cacos de estrelas debulhadas por esse meio de mundo. Foi de turvar as vistas. Briga de corisco com sol por causa da lua.

A sorte é que a chuva chegou de parelha com o trovão pra evitar a desgraceira toda. Onça entrou dentro da toca sem escolher a porta; bacurau, desse dia,

não cantou mais; passarim, que não morreu de susto, ficou mudo pro resto da vida. E tatu está cavando o chão até hoje. Dia de Juízo, sem tempo pra remissão.

E o vento cirandou em redimuinho? Fez o quê! Hum! Foi pegando desprevinido, nos p´lanos dos gerais, sem tempo de esconder. Descarreirou nu, sem roupa

de poeira, nomeio da chuva, correndo, tropeçando nas árvores, procurando boqueirão pra se esconder.

Cacei o cachorro, cadê? Rabo entre as pernas, tremendo, parecia chorar com pena do mundo. Mãe de Deus!

Depois que tudo passa desce uma tristeza nos pés-de-árvore. O gerais fica encabulado como quem recebeu pito. Reina silêncio e só se escuta os pingos que

descem das folhas que nem lágrimas de choro. Mas isso é calundú de menino fingido. Dura pouco, pouquinho mesmo. Com qualquer nesguinha de sol, o gerais avoa

serpentina de arco-íris no céu e mão cheia de passarím das alegria. Treita dos gerais. Mal secreto. Quando se passa nos grotões é que a gente vê mesmo o

escondimento da dor. As vaias estão sangradas, derramando o sangue vermelho da água barrenta.

Sol a pino, o burro bagajeiro começou remanchando com desculpa de comer capim verde de beira de estrada. Cansaço. Também já estava na hora de se

forrar a barriga. Paramos debaixo de um jatobazeiro. Do lado assim, um pesím de juá, cercado de moita de cajuí e uns pés de açoita-cavalo. Areis fria. Só trouxemos

as ciabarrigueiras mode ventilar os panos. Dado milho e rapadura pros animais, fomos esgotar os alforges, sentados na areia, pra quando o sol descambasse, arribar

de novo, gerais a dentro.

Com dois dedos de conversa na comida, Jesuíno revirou, mais o padre Othon, porção de assunto instruído que o povo ignorante ignora. Gente daqui só foi na

Lapa ou na Carinhanha. Não conhece a Santa-Casa-de-Roma, que fica na Bahia pra dentro não sei quantas léguas. Chão muito! Além das Europas. Só indo de navio

ou de trem de ferro. Burro não aguenta, não. Travessia de duzentas léguas, daí pra mais. Cidades muitas e de muitas políticas, tanto as da lei de Deus como as da

República e da Maçonaria. Fartura de ateu herege, que seguem as políticas dos protestantes e a religião dos comitês dos lojistas.

Homem de pouca leitura, mesmo assim eu desfrutei o aprendizado da conversa.

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O resto da viagem pra Inhaúmas foi um salto. Com pouco mais, mudou a constança dos ventos e uma campina de légua e meis delatou o cheiro do rio dos

Angicos. Inhaúmas não está longe. Nuvens de arara passando debocham de quem não sabe voar alto e, por causa disso, o choro das siriemas em cada canto. Os

animais deram sintoma de animação e forçaram o rojão. Até a “Serepente”, mula do padre estrumou fora de hora: tamos chegando!

O sol-entrando, sol sem vento. Bandeijão de ouro e sangue, gema de ovo grande minguando, de pedacim em pedacim, uma banda toda, na linha do infinito.

Sol-entrando no sossego das aves e na cantoria das cigarras tristes e dos grilos que não param mais. O céu é uma asa de arara sem tamanho, com pena amarela,

azul, verde e coe-sem-nome, que a Natureza pinta sem tinta de raiz e nem brocha de canela-de-ema. As cigarras cantam pouco tempo. Os grilos é que botam

sentinela, chorando só e de magote, a noite toda, medo do sol não voltar mais.

Nas cumieiras das matas os buritís solteiros se espicham dando adeus ao sol e as carnaúbas ajeitam os cabelos como mulher que se preparam pra dormir com

o mormaço. Sol-entrando, tristeza gostosa de quem quer divulgar longe. Distante mesmo. Mil léguas sem rumo, de saudade entrançade de três cordas: dor, alegria e

desejo contrariado.

Sol-entrando, o gerais é um ninho só, onde tudo vai dormir e cochichar namoro. ol-entrando, tudo é mais longe pras vistas e pra o pensamento. A gente se

sente só de saudade, peito apertado e com vontade de ir também com o sol pro fim do mundo, pra lá dos gerais, pra lá da terra, nas cabeceiras dos rios.

Quando a primeira estrela pisca de mentira, já está tudo escuro pro “Camim de Santiago” .

Seu João era quem melhor conhecia os gerais, tanto no pronunceio das estórias, como bem no riscado das trilhas, arrodeios, atalhos e variantes das estradas

reais. Devia de atender por João-dos-Gerais. Agaranto que era mais certo do que João Muito-Embora. Garanto. É bem verdade que só na Inhaúma tem uns três: João

dos gerais-de-Riba, João dos Gerais-de-Baixo e João dos Gerais-da-Malhada. Se caçar nos outro cantos, encontra mais uns dez.

Nas sentinelas dos outros, ele rompia a noite contando os “Causos” dos gerais: briga de onça com sucruiú, anta encantada da aguadas, vara de caititús

rasgando nas presa bois perdidos, e armadilha, mundéu de pegar gato do mato.

Andou cinqüenta anos dos gerais pra Rua; da Rua pros gerais. Seu joão deu banho, ou carregou nos braços, a maioria dos homens-feitos e velhos da Santa

Maria. Mesmo morando lá nos gerais dos cocos, tinha ciência dos fuxicos e brigas, dasavenças e bizarrice do povo do Rio Corrente.

- Quero não, seu Arnaldo. Nasci nos gerais, sou geraliano e não tenho lugar mais bom pra viver, não. Deus me livre de ser enterrado no cemitério do porto,

encostado em defunto que não gosto, nem apreceio. Quero não. Lugar bom mesmo de se dormi, nos sete palmos de fundura, só tem nos gerais, fora dos sotaques

dos homens. Daqui só saio pro céu, se lá tiver paz e Natureza.

Parece até castigo de soberba. Deus sabe o que faz e desfaz. Com as éras na espinha, o velho encutou a distância, vindo morar na Germânia, pra vender mais

perto o feijãozim da safra.

Caducava, chorando saudade dos gerais e remexendo o passado do povo antigo.

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Tenho pena dele. Assunta, eu não tive coragem ainda de levantar o lenço. Levanto não. Pra mim, ele tá aí em cima da cama. Quando seu Hermino Maleiro,

Hermino-de-siá-Didi, veio tomar medida do tamanho, mode fazer o caixão, eu tive vontade de ver o rosto do velho, mas refuguei. Gosto não. Como refuguei também

de dar banho no corpo. Inventei que água morna, esperta, nessa noite de frio, ameaça estupor e deixei com siá Bertulina siá Divirge e Pezim Coveiro o cumprimento

da caridade. Lavaram, vestiram e amarraram o cordão de São Francisco na cintura. Na hora do enterro, me encontram na alça direita da cabeça; a mais pesada. O

meu adjutório mesmo é “ causos” e carreto.

Deus me Perdoe. Não é medo, não. É flatulência derna de menino. Vivo, cuido; morreu, nem mexo. Seu João Muito-Embora sabe disso. Se é verdade que a

alma fica perto do corpo, ele está aí me assuntando dizer a verdade e conferindo as antiguidades velhas do meu relato, sem tirar e nem botar. Creio quê!

Ás oito horas da manhã, um caixão de cedro, sem enfeites, saiu da rua do Riacho. O velho João Muito-Embora dava sua ultima viagem.

Nemezio de Joana-de-seu-João-da-Velho-Rita-preta, mais conhecido por Nemezo Contador - de “Causo”, ia, penso, com o peso do defunto. De um lado, o

chapéu de palha e, na outra mão, a alça cortando os dedos.

No retorno do cemitério, vinha desafogado de pecados. Cumprira o adjutótio: “causo” e carreto.

Casa de detenção do Recife, 16/12/64

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº74 - NOVEMBRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME V

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 74

CIÊNCIA E EDUCAÇÃO SUPERIOR NA AMAZÔNIA

WALTERLINA BRASIL

PRIMEIRA VERSÃO

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Walterlina Brasil

Professora do curso de Pedagogia - UFRO

[email protected]

CIÊNCIA E EDUCAÇÃO SUPERIOR NA AMAZÔNIA

A preocupação em se discutir sobre em quais marcos poderão se dar as experiências e proposições que venham a fortalecer o surgimento de iniciativas que

articulem efetivamente Educação Superior, a Ciência e o Desenvolvimento Regional, com uma perspectiva local, é hoje mundial.

É um fato hoje que estes elementos vêm ocupando espaços importantes nos debates internacionais e são fundamentais na busca de uma reflexão que

orientem ao encontro da eficiência nas ações e alternativas de cooperação internacional, entre outros aspectos, destacamos o âmbito da temática geral proposta para

este evento.

Penso que uma contribuição inicial seria trazer alguns aspectos do que seria o componente institucional nisto tudo, revelando, desde logo, um limite discursivo

que não pretende partir para o envolvimento prático das iniciativas específicas das experiências em zonas costeiras, mas, com a abordagem do viés institucional,

ratificar a importância da dimensão da pertinência da educação superior como uma condição importante para avançar nos compromissos de cooperação pretendidos.

Na verdade trata-se de compreender um pouco mais qual o papel das instituições que promovem a educação superior e ciência no Brasil, problematizando se estariam

as Universidades sendo efetivamente pertinentes para a tarefa de associar educação superior, pesquisa e desenvolvimento local. Por outro lado, pretende-se tornar

um pouco mais complexo a dimensão das experiências sobre o desenvolvimento local, em termos conseqüentes e factíveis; especialmente se apostamos na

cooperação para isto.

Embora os conceitos estejam sendo alterados à uma velocidade “cibernética”, penso que a Pertinência possui, enquanto conceito, uma condição de ser

inerente a proposta deste seminário, uma vez que permite estabelecer alguns horizontes na redefinição da atuação social e científica das instituições que se

propuserem a construir um processo de integração regional cada vez mais consolidado.

A Pertinência, por ser um conceito amplo, quando analisado se destaca por reunir aspectos inerentes as condições de obtenção da qualidade institucional, e

nisto, cooperação e financiamento; indicando grande complexidade quanto sua expressão de forma concreta. Exige diretamente uma compreensão sobre o valor e

função social da universidade como instituição, que incorpora em seu que-fazer a sociedade, na qualidade de beneficiária; o conhecimento, como nova moeda para o

capital social; e o serviço cultural, delimitado pelo contexto, enredado a partir das necessidades de desenvolvimento humano e sustentado.

O documento relativo a Declaração Mundial sobre a “Educação Superior no século XXI: Visão e Ação” no que tange a Pertinência considera-a relacionada com:

1) o processo de avaliação do ensino superior; 2) o reforço aos serviços e compromissos sociais; 3) a contribuição com o conjunto do sistema em seu ciclo educacional

sistêmico e sistemático; 4) uma proposta mais ampla de sociedade. Este itens, na verdade possuem raízes em uma discussão pautada no que se tratou de indicar

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como pertinência social, expressa a partir da Conferência de Havana em novembro de 1996, onde consta que “una definición de pertinencia radica en el papel que

cumple y el lugar que ocupa la educación superior en función de las necesidades y demandas de los diversos sectores sociales”1. Neste sentido, os dois primeiros

aspectos (avaliação e funções do ensino superior) revelam que a pertinência integra uma capacidade geral que a instituição universitária deve ter em sensibilizar-se

perante os requerimentos sócio-ambientais, e os dois seguintes (contribuição com o sistema e uma proposta de sociedade), apontam para comportamentos decisivos

destas instituições ante as pautas econômicas e que diferem de modo indubitável os grandes blocos econômicos que, de certo modo, ignoram a posição da América-

Latina, as opções que possa adotar e as respostas que possa dar ante este cenário.

Embora a pertinência social se constitua em um orientador valioso no contexto do debate sobre a Educação Superior, em termos de compreensão da

exeqüibilidade das condições de existência destes fins, penso que a questão da pertinência pode ser discutida no âmbito da sua capacidade de inserção acadêmico-

científica, ou seja, a condição na qual se integram o conhecimento (reflexionando-o nas lições qualitativas e quantitativas das produções universitárias) à própria

região e as conseqüências disto para o desenvolvimento.

Uma questão que tenho notado com certa freqüência é que às vezes ocorre imediatamente é tornar a pertinência sinônimo de relevância. Não me pareceu

esta ser a intenção descrita nos documentos elaborados quando da Conferência de Paris. Porém alguns textos divulgados após o evento, sobre o tema, tratam de

indicar que distinguir relevância e pertinência é uma daquelas filigranas semânticas que não ajudam muito a resolver ou operacionalizar as ações educativas e

científicas, por sua vez reservadas ao nível mais elevado da condição interna do próprio sistema educacional.

Ao meu ver pertinência e relevância não são idéias sinônimas e ao não sê-las, quando tornadas, passam a admitir uma adulteração na condução de

importantes ações em direção à consolidação de experiências que inspirem políticas de desenvolvimento regional (como as que são tratadas neste evento) que sejam

integradoras e que contem com a participação das instituições de educação superior; ou implodem até as experiências que visam assegurar que o esforço de tempo e

recursos humanos e financeiros (estes majoritariamente recursos públicos, diga-se de passagem), se conduzam sempre persistentes ante ao desgaste da burocracia

institucional2. Posso incitá-los a pensar sobre isto exemplificando com o papel que a universidade se ocupa em formar licenciados em massa hoje. Nos moldes em que

presta este serviço e segundo as características que o sistema educacional brasileiro está caracterizado, pode-se refletir que formar professores para o ensino

fundamental e médio, como o fazem as instituições universitárias atualmente, pode ser compreendido como relevante – ainda que no estreito ponto de vista da

conquista social do acesso ao ensino superior, em pautas individuais – mas com poucos indícios de que seja pertinente. Talvez seja necessário somar-nos aos que

desconfiam um pouco sobre se o tipo e funcionamento dessa instituição consiga, na tarefa da graduação, incorporar outros níveis de formação como o exigido para a

pesquisa e produza os conhecimentos requeridos para influenciar nas decisões sobre desenvolvimento humano equânime e sustentado.

1 Destacado na exposição de Carlos Tünnermann Bernheim na Conferência da Organização Universitária Internacional-OUI, em reunião em outubro de 2001. http://www.oui.ca/congresso 2 Na burocracia alguns procedimentos ocorrem mais para tornarem localizaveis as iniciativas que surgem internamente, dentro de uma noção elementar de formalismo da política desenvolvida através dos governos centrais, do que para compreender a pertinência dessa atividade como produção científica.

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Tenho, portanto, em construção, a idéia de que o elo de interligação possível entre educação superior, ciência e desenvolvimento local, admitindo-se um

diálogo coerente e consequentemente a análise destes componentes, seria considerar a pertinência como o conjunto de ações institucionais que respondam por uma

capacidade de geração de conhecimente referenciada em valores, culturas e conhecimentos identitários que impulsionem e desenvolvam uma educabilidade política e

motivação para uma produção de uma ciência nacional3. Tratando por partes, vejamos:

� Pertinência envolve ações institucionais, porque evoca uma compreensão sobre as conseqüências coletivas e os interesses corporativos que sustentam a tarefa do

estudo e da pesquisa, em todos os seus níveis;

� Pertinência responde por uma capacidade de geração de conhecimentos, porque admito na atitude científica uma condição específica de explorar as

conexões criativas que gerem produtos, processos e serviços que produzam vantagens competitivas nacionais;

� Pertinência está referenciada em valores, culturas e conhecimentos identitários, como propulsores motivacionais, porque a condição de desenvolvimento

humano e sustentado importa na admissão das diferenças e pela realização de tarefas que envolvam e respeitem o reconhecimento de uma ecologia humana

dinâmica e marcadamente endógena;

� Por fim, pertinência desenvolve educabilidade política, pois este modo de ser humano (a educabilidade) tem como possibilidade gerar compromissos éticos e

morais que podem elevar o sentimento de pertencimento local, relativizando as referências globais.

Nesta composição, o que se produz institucionalmente através da capacidade instalada local possui dimensão científica nacional válida, devendo ser tratada,

neste sentido, como um compromisso que repercute a partir das condições de eficiência científica que são permitidos as instituições susbsistirem. A pertinência

científica possui evidência práticas de ser metainstitucional.

A Pertinência Científica da educação superior (que pode ser portanto uma outra dimensão da pertinência geral ou social, como a entendo) se estreita com

sua capacidade de gerar desenvolvimento quando, à luz de uma ação de sustentabilidade ecológica, obtem intercâmbios entre a pesquisa e o ensino que extrapolem

as fronteiras da própria condição institucional e do Estado-Nação4, aí bem localizada a importância fundamental que ocupa os processos de cooperação e a

necessidade de compreender muito bem a quais compromissos estas iniciativas respondem.

É certo que os debates sobre desenvolvimento regional, por sua vez, circundam necessariamente as razões econômicas assoladas pelas políticas dos grandes

blocos e mercados, notoriamente articulados com os fenômenos da globalização. Inserir o debate sobre pertinencia nas universidades neste cenário parece impor que

3 Aqui, concordando com Carlos Tünnermann Bernheim (p.9) que inscreve que mesmo a Globalização, expressa como espaços fragmentários e seletivos “coexiste com espacios nacionales en los cuales se realiza la maior parte de las transaciones económicas y se genera el proceso de desarrollo”. 4 Conforme nota acima (no.6), encaminho então a idéia de Estado-Nação pelos evidentes comportamentos nacionais, sendo transnacionais somente os aspectos econômicos e em poucos casos educacionais e seguem comportamentos burocráticos-regulamentares que tão bem os caracterizam no âmbito da gestão política.

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se encontre respostas ante o fato consumado do novo contexto internacional, ainda que se admita que “la globalización sera lo que nosotros hagamos de ella. No hay

fatalidad en la materia”5, para fazer alusão a Conferência de Madrid, em 2000, que tratou de discutir este panorama.

Tratar dessa relação Pertinência Científica da educação superior e desenvolvimento regional implica também em considerar a redefinição do papel das

universidades, sem que para isto se antecipe sua morte, especialmente a partir dos indicadores oficiais, como tem optado fazer as políticas para o ensino superior

brasileiro. Tais políticas vem abandonando uma análise mais criteriosa sobre o papel da educação superior a partir das ponderações regionais e a capacidade de

inserção local, ignorando que são as universidades as instituições que consolidam uma dimensão nacional das políticas de desenvolvimento científico e tecnológico

para o país e representam importante conteúdo de seu patrimônio público e social.

A Educação Superior, especialmente na Amazônia, não está associada à formação de profissionais para a ciência. Não se tem como falar de cientistas a partir

das instituições universitárias. É necessário dizer que faz sentido afirmar que o sistema de educação superior brasileiro não permite integração de propósitos científicos

de forma organizada, coerente e significativa. Em números absolutos, o número de programas de intercâmbio e seus resultados em projetos cooperativos ainda tem

sido pouco expressivos; por outro lado tem sido usual a geração de distorções orçamentárias - especialmente quanto ao apoio as agências de fomento a pesquisa

(lembremos a atual disputa do CNPq por assegurar um orçamento para o próximo ano pelo menos igual ao do ano de 2001) e adoção de medidas e reformas que

tratam o assunto no país pela tangente, como no caso dos fundos setoriais.

Apesar do que afirmei, admito que por força de nosso modelo organizacional, coberto como um estatuto legal, as Universidades ainda são o locus onde se

abrigam as iniciativas de produção científica e aqueles que desejam dedicar-se a esta tarefa. Isto não está posto em discussão. O problema é que não se faz

pesquisadores a partir de práticas essencialmente docentes. Por outro lado, não se pode prejulgar a instituições da Amazônia como predestinadas a ser meros centros

de ensino. As condições a que submergimos possuem profundas marcas na tradição histórica como esta região foi pensada para ser ocupada. Este fato se dá a

medida em que a adoção das políticas públicas para o setor se veem comprometidas por adoções mecânicas de modelos pouco interpretados a partir das dinâmicas

regionais. Em última análise a região, tal qual a própria instituição podem ser entendidas como “una unidad histórica y cultural”. As Universidades são, de longe, as

mais significativas em termos de função social articulada com a pesquisa. Os protestos, em termos de relação comparativa do investimento do governo, não divergem

deste princípio.

Há visível e histórica concentração de Universidades públicas federais em regiões cuja horizonte histórico está encrustado à própria conjuntura política

nacional, significando portanto que pode não haver distinção alguma entre a razão de ser das instituições amazônicas e quaisquer outras, salvo os mecanismos de

concessão e adoção dos critérios de apoio por discriminações positivas. Felizmente, os pronunciamentos na abertura de ontem e as pessoas presentes neste evento

demonstram que as alternativas de intercâmbio, que sempre estiveram evidentes a partir de nossas próprias fronteiras (e estas nunca estiveram de frente para o

mar), encontram ressonância prática.

5 Esta análise foi decorrente da Conferência em Madrid em dezembro de 2000 que tratou de orientar uma reflexão sobre a globalização.

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No sentido que nos interessa, destaca-se que temos um sistema educacional financiado preponderantemente com recursos públicos em um sistema de

atendimento prepronderantemente privado, ainda que neste segundo se apresente uma queda de cerca de 150 mil vagas anuais não preenchidas. Em termos

regionais, conforme publicado no livro Assimentrias Regionais, Vários Brasis e suas Conseqüências, em Diniz e Guerra, 2000 pela Editora da UFPA, “de cada 100

jovens, entre 18 e 24 anos, que tentam igressar no ensino superior nas regiões Norte e Nordeste, em números redondos, apenas 6 são bem sucedidos no Nordeste e

9 no Norte”, além disto a distribuição das vagas, segundo dados do INEP 2000, estão evidentemente concentradas nas demais regiões que somadas representam

43.84%, dentre o pouco mais de 40% da demanda atendida pelo ensino superior público.

Por sua vez, além da importante caracterização federativa, em termos de cobertura, as Universidades públicas da Amazônia brasileira e os diversos institutos

de pesquisa locais apresentam-se com uma forte tendência para atuar distribuidos prioritariamente no interior dos Estados, se consideramos que apenas as

universidades mais recentes demonstram ainda pouca expansão. Uma análise mais cuidadosa nesta composição da educação superior provavelmente indicará uma

questão fundamental a ser revisada é a relação direta entre a capacidade instalada nas Universidades e seu envolvimento na produção científica, a partir da

mobilidade e organização de uma “comunidade científica” universitária. Considerando-se, por exemplo, no quadro de doutores (2000) em função do ensino por

exemplo, a exigência pleiteavel seria uma relação aluno/docente e aluno/doutor que dobram em 50% (15:1 e 30:1, respectivamente) que deveria proporcionar uma

taxa de crescimento de 10% no acesso. Abandonando-se as taxas de migração acadêmica, ainda tão comuns entre o corpo docente da região Norte - especialmente

após obterem melhor qualificação e o índice de alunos pesquisadores, quais seriam os padrões aceitáveis para compreender uma Pertinência das instituições em

função da Pesquisa acadêmica? Quais fatores efetivamente incidem na consolidação da tarefa universitária que a exponenciem como agências motrizes do

conhecimento científico? Estas seriam algumas preocupações gerais que podem instigar um pouco mais nosso trabalho.

Além das questões básicas do funcionamento da educação superior brasileira, considerando-se a abordagem sobre o desempenho da pesquisa e o debate

sobre ciência e tecnologia no país, há que notar-se a complexidade que envolve o tema da vinculação da pesquisa com o desenvolvimento6.

Tenho uma especial predileção por trabalhar com a interpretação dos documentos. Os documentos, em certa medida, são as instituições. Eles tem a

propriedade de trazer uma materialidade sobre os compromissos que puderam ser admitidos em um tempo específico. São testemunhos sobre o que pôde ser dito em

um momento dado. Vejamos que estamos volta e meia nos referindo a documentos. Os momentos históricos aqui mencionados e o tempo que eles representam, a

depender do cuidado que lhe são oferecidos podem facilmente ser identificados como as “vozes que não calam” dentro das políticas públicas.

Os Relatórios, Moções, Declarações, Tratados são os mais recentes tipos de documentos que sintetizam os desejos, vantagens e compromissos que podem ser

exigidos sobre um tema ou sobre algo, em compromissos de escalas muito distintas em termos, inclusive, das políticas internacionais. Vão se construindo e se

reformulando e quando vistos de forma encadeada, quando lidos cuidadosamente, quando dialogados com os contextos em que são produzidos, revelam uma

6 Schwartzman, Simon em 1980 onde aborda o “subdesenvolvimento e tecnologia”, além disto os estudos mais atuais sobre ciência e inovação tecnológica onde ele descreve um pouco o sistema de Pesquisa. Se possível incluir no texto ou deixar na revisão do primeiro capítulo.

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arqueologia da instituição e da ação política que o produziu. Por isto, a Declaração das Nações Unidas para Educação Superior, o Tratado de Kioto, a Agenda 21 para a

Amazônia, a Declaração de Jontiem, o Tratado de Cooperação Amazônica, por exemplo, são alguns documentos que – se não são bem objeto de uma tese – são

referencias confiáveis e que as inspiram. São todos documentos que pretendem compromissos de longo prazo. Todos estes documentos trazem em comum as

evidências de analisar-se os ganhos possíveis quanto ao desenvolvimento através da regionalização vantajosa para todos, jamais um regionalismo subordinado. Nada

disto porém terá sentido se os resultados gerados pela disposição de todos não permita uma respeitabilidade real ao fato de que aqui devem estar as vantagens,

inclusive econômicas, sobre nosso conhecimento.

Dito isto, quero tornar conclusiva minha participação identificando, por justiça, um outro documento que, se não trouxesse uma raiz pautada no regime

político de baixa participação popular à época e quase inaudível participação das instituições da Amazônia, em 1985 (lembremos que aqui só havia UFAC, UFAM, UFPA

– a UNIR estava com três anos), foi feita uma análise que incorreu em recomendações para uma reforma para o ensino superior brasileiro. Este documento foi

produzido através de um grupo de especialistas - conhecido como GERES - onde já naquele momento se declarava aspectos práticos sobre a atividade de pesquisa,

tais como que “professores pesquisadores não recebem estímulos financeiros e reconhecimento diferenciados e adequados a seu desempenho. (...) Há o

relacionamento problemático entre a pesquisa, a pós-graduação e os cursos de graduação”, e que o ensino de graduação deveria ser prospectivo (na linguagem

atual), ou seja estar atento as necessidades presentes e futuras. Questões que atualmente está na onda do debate sobre pertinência.

Assim, seria talvez importante considerar que o marco de nossa pertinência científica possa ser compreendido com a profunda revisão dos princípios que

orientam a educação superior no país considerando, para nós, como soluções criativas aquelas que resultaram em atitudes efetivas de não silenciar, como tem sido –

apesar de todas as dificuldades – a criação da Associação das Universidades da Amazônia-UNAMAZ, um evidente sistema de rede interuniversitária de cooperação, o

Protocolo Interuniversitário das Universidades da Amazônia Legal-PIUAL, como ancoradouro político da nossa capacidade de articulação local, bem como as iniciativas

próprias a cada uma das instituições desejosas que seus pesquisadores sobrevivam ante as estratégias tirânicas da convivência atual do ambiente universitário,

criando seus centros de pesquisa e integrando-os em valorosos trabalhos interdisciplinares. O importante é que estas reflexões podem inspirar a vigilância permanente

do nosso nível de pertinência, para não permitir, mais uma vez, que nossa boa fé venda o país.

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EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

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TODAS AS VOZES

CARLOS MOREIRA

PRIMEIRA VERSÃO

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Carlos Moreira

Professor de Literatura

[email protected]

TODAS AS VOZES

“E o princípio do seu reino veio a ser Babel.”

O Senhor é capaz de infinitas maldades. Há uma versão, hoje apócrifa, do livro do Gênese, que diz que, ao confundir a língua dos construtores de Babel, para

que eles desistissem do sonho, Deus não os teria espalhado pela face da terra, mas os amaldiçoado com a imortalidade e os emparedado vivos, cada um no seu

devido lugar, como uma abelha rainha que vedasse cada losango da infinita colméia. E lá ficaram eles, dizendo cada um a sua língua, pela eternidade. Reza o texto

que alguns homens, ao se depararem com a Torre de aparente silêncio, seriam capazes da finura possível, da infinita delicadeza e horror, de ouvir, através do tempo e

da argamassa, fragmentos de discursos das infinitas vozes e que, mesmo não sendo capazes de traduzi-las, poderiam repetir partes de cada monstruosidade dita por

aqueles demônios que um dia sonharam ascender a anjos, mesmo que contra a vontade do fazedor de anjos e demônios. E que, mesmo partindo da imensa treva,

algo atingiria a luz.

O que esta alegoria não esclarece é o resultado dessa audição, o monstro de palavras gerado por essa escuta subterrânea, ela mesma uma monstruosidade.

Que tipo de narrativa abarcaria um dizer tão múltiplo e incomum, uma carga tão grande de imagens que ultrapassaria, provavelmente, as encontradas em boa parte

dos textos? O que Alberto Lins Caldas alcança com “Babel” (contos, Editora Revan, Rio de Janeiro, 2001), é exatamente isso: um salto para o interior de um código

de imagens e vozes narrativas como nunca antes visto em livro algum. O turbilhão conseqüente é uma síntese do supra-sumo da literatura: só um leitor-ideal (e,

portanto, virtual) seria capaz de detectar todo o contato com outros textos e vozes, a cada linha, a cada página, a cada conto. O resultado assusta não apenas pela

erudição (normalmente sinônimo de chatice), mas pela força e exasperação de um livro feito de outros livros, um imenso palimpsesto em si mesmo autônomo, mas

urdido de outros dizeres, de outros olhares. O próprio termo “babel” auxilia nessa compreensão, sendo definido como “confusão, mistura de línguas, algazarra,

tumulto, reunião de elementos, cumplicidade”. Se o conceito dá a idéia de caos, assusta a simetria clássica da parte (cada conto) e do todo (o Livro de livros), como

se de fato o símbolo que melhor representasse o conjunto fosse a Torre apontando contra o céu, esquinas e escadas e varandas e portais e janelas em um milhão de

ângulos perfeitamente ajustados. Há uma condensação da forma raramente vista nos últimos duzentos anos de escrita (talvez os últimos a conter demônios tão bem

tenham sido os autores do Fausto).

Essa obsessão pela multiplicidade angustiante de imagens, apelidada de Surrealismo e/ou Expressionismo no século XX, pode dar a impressão de ser o texto

mais um caleidoscópio do inconsciente, uma espécie de escrita automática antiteticamente corrigida à exaustão. Uma leitura média um pouco mais apressada pode

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querer ver marcas de influência onde há só confluência rara. Não adianta dizer que “lembra” um Kafka metamorfosiano, um Borges da biblioteca da mesma babel, um

Lautréamont dos cantos ou mesmo o fantástico e pouco lido Murilo Rubião. Não adianta. “Babel” se faz de elementos também estes, mas está além, ou aquém,

olhando por trás da nuca das narrativas desses autores, concebendo algo que eles não puderam conceber. Ou seja: “Babel” é amaldiçoadamente Pós-Moderno.

A obra só se entrega na última página, o que remete de volta ao início do enigma. O último conto, “Criador”, é a chave de compreensão das ficções que, na

verdade, fracassam no intento original de compor O Livro: “Aquilo não era um Livro, mas um monstro: nascera de outros livros, da sua vida mais íntima e da cruel

memória do mundo”. Mas saber disso antes de enfrentar os corredores e as vozes não adianta: o espanto é o mesmo. “Babel” é um questionamento sobre a própria

literatura, mas sem cair na já quase estafada obsessão pela metalinguagem, outra marca pós-moderna (como se a literatura não pudesse falar de mais nada exceto

de si mesma). Porque se o Livro nasce de livros, cada conto é autônomo. A pergunta matriz só é suscitada no final: como dizer o não dito? Se, como diz o narrador do

conto “Sombra e Escuridão”, “se por um Deus, um Demônio, por má formação de caráter ou por simples necessidade lógica, não importa porque na origem e no fim

tudo se parece”, como ainda ter a ilusão de ser original em nossos tempos? Mas ao mesmo tempo que suscita a angústia definida por Harold Bloom como “da

Influência”, “Babel” é a melhor resposta que se poderia dar, exatamente porque é um haver-se de altíssima competência com os maiores índices, símbolos e alegorias

da cultura “ocidental” e além, uma espécie de “zerar o jogo”, em que o resultado é um Frankenstein verbal que, ainda que dotado de coração e cérebro e impecável

estética, sabe-se um monstro. Aos autores de agora restaria então o recomeço, a busca de outros caminhos e outros símbolos, de outros modos de contar em que as

antigas imagens e estilos e gêneros não poderiam mais influir. “Babel” é o enfrentamento e a libertação, e é irônico que tenha nascido “no Brasil” de uma “língua

portuguesa”, como querem os donatários do Cânone. Prova de que a literatura se faz em um não-lugar e o que quer que venha a dizer pode ser dito em qualquer

língua. “Babel” é morte e alforria. Agora é só começar. Ou aceitar a tragédia imposta pela academia e pela visão beatificante, reacionária e bíblica de que “tudo está

dito”.

Para os que não estão preocupados com conceitos e debates literários, nem por isso a ficção de “Babel” perde sua força. A multiplicidade das imagens, o

incomum dos desfechos, a força de cada conto, o humor, a ironia, o asco são ingredientes da exasperação. Porque literatura é antes de tudo a criação de um

holograma: o verdadeiro texto é pessoal, incomunicável, e está além do texto, como se a página e sua “mensagem” fossem apenas modos de conectar a visão do

leitor com o extratexto. Algo próximo da técnica do “olho mágico” em que o visto é rito de passagem para o que se verá. E o que se vê em “Babel” é um bestiário

único: dragões, tigres, condenados, velhas crianças, poetas, cegos, astrônomos, astrônomos cegos, anjos, plantas, todo o orbe divino e imundo dessa nossa quarta

dimensão. A sensação desse mundo por trás das imagens é que é literatura.

O fluxo que atravessamos na leitura é um fluxo de vozes que se intercambiam, cada uma um universo contendo outros tantos, a dança do macro-micro se

devorando mutuamente (aliás, uma das imagens mais reincidentes é a da devoração, ao lado do labirinto, dos monstros, da arte, do livro e do tempo). Em “Babel”

livro é corpo: o verbo fez-se carne e habita entre nós (de linguagem). É a Bíblia da pós-modernidade e sua maior ironia. O sonho de criar o Livro dos Livros, um

substituto perfeito do Cântico dos Cânticos, que contivesse todos os homens em seus respectivos espaços e tempos e vozes. Por isso a

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coleta/metamorfose/apropriação. “O ser do ser é o caos”, “O presente é a eternidade”. É preciso que se façam leituras específicas desse multi-texto. Ler a polifonia, a

imagética, a filosofia, a estética e a visão de mundo específicas desse livro que, mesmo amaldiçoando a si mesmo enquanto narrativa e fracasso, diz o que todos

precisávamos ouvir. Se o sujeito que teve a sintonia fina para ouvir as emparedadas vozes da Torre infinita (que nós mesmos construímos e na qual nos aprisionamos)

escreveu o que acredita ter ouvido apenas para se livrar de uma culpa, de um peso ou de um daimon pessoal, não importa. O resultado final é literatura. O que mais

se pode pedir de um texto?

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº76 - NOVEMBRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME V

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 76

ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL E SAÚDE

CARLOS ALBERTO PARAGUASSU CHAVES

PRIMEIRA VERSÃO

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Carlos Alberto Paraguassu Chaves

Professor do curso de Geografia – UFRO

[email protected]

ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL E SAÚDE

A conservação e promoção da saúde devem colocar-se no centro das inquietudes sobre ambiente e desenvolvimento. Sem receio de afirmar, só em raras

ocasiões a saúde recebe um alto grau de prioridade nas políticas ambientais e nos planos de desenvolvimento vinculados ao meio ambiente. Ambiente,

Desenvolvimento e Saúde integram um tríade que tem de permanecer em um equilíbrio harmônico pelas inter-relações existentes entre eles; assim o desenvolvimento

que não considera a preservação do ambiente resultará inevitavelmente um dano à saúde humana, em tanto que um ambiente ou saúde inadequados limitarão o

desenvolvimento.

Os problemas ambientais ocupam cada vez um maior espaço no interesse mundial, pelo que se têm elaborado ferramentas científicas para medir a incidência

dos projetos de desenvolvimento no meio natural, entre as que se encontra a Avaliação de Impacto Ambiental ou Estudo de Impacto Ambiental (EIA), que pode ser

utilizado em qualquer atividade proposta que provavelmente produza um efeito negativo considerável no meio ambiente, estando sujeita à decisão de uma autoridade

nacional competente. Tem-se destacado o feito de que nestas avaliações a saúde não ocupa o lugar que lhe corresponde, e tem-se priorizado os problemas do meio

ambiente.

Esta necessidade tem conduzido ao desenvolvimento da Avaliação de Impacto Ambiental e Saúde (EIAS) com a qual se obtém a informação de impactos

ambientais prováveis e de possíveis alternativas e medidas mitigadoras antes da tomada de decisões sobre um projeto de um empreendimento potencialmente

causador de impacto ambiental.

Nos EIAS tem-se tomado em conta elementos importantes para vincular a saúde com a avaliação de projetos, ao estudar os efeitos das perturbações

antropogênicas no ambiente e o homem, que permitem aos especialistas uma valorização mais acertada dos riscos, porém esta, ainda carece de uma metodologia que

complete integralmente a avaliação da saúde. É de assinalar que todo os projetos requerem um EIAS completo, algumas só necessitam uma análise ambiental limitado

e outros não estão sujeitos ao exame do impacto ambiental, pelo menos é que prever a legislação vigente no país.

A metodologia para a avaliação e o manejo dos riscos, desenvolvida nas últimas décadas, aponta enfoques e ferramentas que podem incorporar-se aos EIAS

para seu enriquecimento, feito que não tem sido suficientemente explorado.

A cada dia toma maior importância a função que desempenham os grupos interessados e a população que pode ser afetada pelos projetos, pelo que se faz

necessário identificar a ditos grupos e conhecer como vão reagir ante as distintas etapas do projeto.

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Ao menos do ponto de vista burocrático ou administrativo tem-se adotado princípios para enfrentar os problemas ambientais do desenvolvimento nos que se consigna

a política do país e o Estado, e se estabelece como um direito elementar dos cidadãos o desfrutar de um meio ambiente sadio e de uma vida saudável e produtiva em

harmonia com a natureza, onde se situam os seres humanos como o objetivo essencial do desenvolvimento.

Ao realizar-se uma avaliação de impactos ambientais, os especialistas considerados como expertos que abordem os aspectos relacionados com a saúde, tem de

incorporar-se desde seu início, e participar nas etapas e passos que se mostram no documento 1. Estes expertos aportarão os danos que permitam fazer uma predição

do impacto ambiental em saúde e seu significado na qualidade de vida e a economia, o que demonstrará a aceitabilidade dos riscos e do impacto. Um EIA que integre

esta informação realça o papel da saúde, a coloca no centro das inquietudes sobre o ambiente e o desenvolvimento, e de fato se converte em uma Avaliação de

Impacto Ambiental e Saúde (EIAS).

A não aceitabilidade dos riscos associados com o impacto ambiental do projeto, de ordinário conduzem à inclusão de medidas de mitigação, com alternativas

de intervenção que permitam a redução dos impactos negativos sobre o ambiente e o realce dos impactos positivos que este possam ter. A decisão final sobre qual

delas se empregará, resulta da capacidade que se tenha em controlar os impactos potenciais adversos sobre a saúde.

É importante, ao iniciar um EIAS, conhecer uma série de aspectos que resultam básicos e imprescindíveis para a análise da problemática ambiental e de saúde, que

são os seguintes:

• Principais problemas de saúde presentes de apresentar-se e grau de susceptibilidade da população potencialmente exposta.

• Fatores ambientais relacionados com os problemas de saúde identificados.

• Vias de exposição da população aos agentes patogênicos e contaminantes químicos e físicos.

• Tamanho, localização e características das populações existentes na zona de impacto.

• Informação sobre o ambiente físico local e as condições sociais.

Etapas e passos em que tem de participar os expertos do setor de saúde no processo de EIAS

Aspectos de etapas do projeto

Passos Aportes do setor

1. Descrição do projeto • Informação sobre o pessoal diretamente vinculado ao projeto e atividade que realizam.

• Inventário de substância perigosa.

Dados complementares ao processo regular de um EIAS

2. Identificação de impacto • Impactos primários, secundários e terciários sobre parâmetros ambientais e trajetórias de efeitos à saúde.

Conhecimentos epidemiológicos e toxicológicos.

3. Descrição da situação inicial • Quantificação e características das populações expostas a cada grupo de fatores ambientais impactados e dos grupos sujeitos a riscos.

Censos e conhecimento sobre a saúde ambiental e a epidemiologia

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4. Predição de impacto • Ponderação de parâmetros ambientais impactados com efeitos conhecidos sobre a saúde.

• Cálculo de exposição. • Predição de morbilidade e mortalidade.

Resultados de estudos sobre riscos naturais e antropogênicos à saúde.

5. Significação dos impactos • Definição dos riscos aceitáveis ou dos impactos significativos à saúde

Critérios técnicos e institucionais sobre a qualidade de vida em sua relação com os aspectos econômicos.

6. Medidas de mitigação • Identificação das medidas eficientes para reduzir impactos significativos à saúde.

Alternativas de intervenção que incorporem a melhoria das condições ambientais, redução da exposição e proteção de grupos de risco.

7. Seleção de alternativas • Decisão final Sim Não

As autoridades estão satisfeitas com as medidas propostas para controlar os impactos sobre à saúde. Existem dúvidas de que as medidas de mitigação propostas garantam o não impacto final sobre a saúde.

Para completar a informação para os EIAS se requer de dados básicos que permitam realizar uma valorização integral da situação saúde-meio ambiente; os

principais são:

• Dados de estudos geológicos, hidrológicos e hidrogeológicos. • Resultados de monitoramento ambiental relativo a: 1. Condições meteorológicas (por exemplo: temperatura média anual, umidade relativa, direção e velocidade do vento, regime de chuva e freqüência de inversões

térmicas). 2. Caudais de água superficiais e subterrâneas, e drenagem superficial. 3. Níveis atuais de contaminação: ar, água, solo e ruído. 4. Informação topográfica da zona. 5. Investigações sobre o saneamento básico, destaca-se aqui a disposição de lixos e os conhecimentos e as atitudes da população. 6. Aspectos do quadro epidemiológico das populações potencialmente expostas, como: • Análise das causas principais de morbilidade e mortalidade, e dos fatores ambientais de possível associação. • Identificação dos grupos de população de maior exposição e particularmente susceptíveis aos efeitos adversos associados com as modificações ambientais

previstas. • Investigações sobre riscos laborais e seu manejo em indústrias similares existentes. • Informação dos centros de saúde da área do projeto como os diagnósticos de saúde.

Particular atenção tem de prestar os expertos em saúde, atendendo aos aspectos antes relacionados, à qualidade sanitária do ambiente, e em primeiro lugar com

o saneamento básico (controle da água, dos resíduos líquidos e seu reuso, dos resíduos sólidos e dos vetores), à contaminação do ar e aos riscos físicos ambientais.

Também à morbilidade e mortalidade característica da população da zona e daquela que se incorpora pelo projeto (construtores, trabalhadores, técnicos); especial

atenção deve apresentar-se aos riscos atuais e tendências de problema de saúde como as doenças de transmissão sexual, gravidez precoce, alcoolismo, consumo de

drogas, homicídios, suicídios, violência e acidentes. Há de ter-se em conta a cobertura dos serviços de saúde na área para valorar sua possível ampliação ou

reorientação e as características da população (distribuição geográfica, por idades e sexo e atividade social que desempenha).

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Uma vez integrada a informação à análise de cada etapa, se chega a um momento crítico dos EIAS: a seleção das alternativas e a tomada de decisões.

Para selecionar as alternativas de um projeto é importante criar grupos interdisciplinares, se terá em conta além da participação ativa da comunidade, que tem

este direito por ser tributária dos benefícios ou prejuízos associados com o projeto. Esta equipe de avaliação estabelecerá os critérios de decisão, que se elaboram a

partir da informação básica ambiental, socioeconômica e de saúde. A informação resultante conformará o documento final da análise.

Existem tantos procedimentos de impacto ambiental como países se hajam dado à tarefa de realizar EIAS. Em geral, um procedimento depende da disponibilidade

de recursos econômicos, de informação e de pessoal preparado para sua elaboração, assim como da organização governamental, das leis e dos regulamentos (se

incluem normas e lineamentos ambientais) com que conta o país.

Com se aprecia, a legislação existente no país e seu desenvolvimento, favorecidas pela política e gestão ambiental do Estado contribuem a favorecer elementos

oportunos para acometer verdadeiros EIAS e levar os funcionários do setor saúde a envolver-se de uma forma mais decisiva nestas.

Os expertos em saúde que integrem o grupo de um EIAS devem incorporar os elementos básicos apresentados no presente trabalho para que os aspectos da

saúde sejam envolvidos em sua justa dimensão nas diferentes etapas do projeto e em tomada de decisões, e dê passo à compreensão da importância de um EIAS.

Só grupos interdisciplinares e intersetoriais com participação comunitária podem realizar uma correta avaliação de alternativas dentro da análise de um projeto

submetido a um EIAS.

BIBLIOGRAFIA

SORDIA, D. S. R & DÍAZ, V. I. P. Critérios de Salud en la Evaluación del Impacto Ambiental de Proyectos de Desarrollo. In: Higiene y Epidemiología. Revista Cubana.

Volumen 37 Número I enero/abril, Havana, 1999.

ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD. Nuestro planeta, nuestra salud: Informe de la Comisión de Salud e MedioAmbiente de la Organización

Mundial de la Salud. Washington, 1993 (publicación cientítica).

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº77 – DEZEMBRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME V

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 77

PRECONCEITO SEXUAL E O NOVO CÓDIGO CIVIL: BONS AMIGOS

Luciano Olavo da silva

PRIMEIRA VERSÃO

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Luciano Olavo da Silva

Aluno do curso de Directo - UFRO

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PRECONCEITO SEXUAL E O NOVO CÓDIGO CIVIL: BONS AMIGOS

Igualdade é tratar com desigualdade os desiguais, na medida em que se desigualam. Rui Barbosa

Pode-se observar, hoje, que as condutas sociais, buscando harmonia e conciliação entre os diversos grupos que formam a heterogenia das sociedades,

rendem-se ao que foi estabelecido (nem sempre é possível saber por quem) como “politicamente correto”. De início, o politicamente correto era apenas um

movimento surgido nos meios intelectuais americanos, buscando, principalmente, defender as minorias. Sua ação resumia-se a promover uma espécie de

“higienização” lingüística, na tentativa de anular a força ideológica que a linguagem carrega. Fez isso promovendo uma série de eufemismos que alteravam o símbolo

(a palavra), mas deixavam intacto o objeto simbolizado (pessoa ou situação discriminada). Não obstante, a idéia influenciou outras áreas e outras ações foram se

desencadeando, de maneira que as pessoas, apesar de não haver nenhuma proibição legal, viam-se forçadas a praticar ou deixar de praticar alguns atos, sob a pena

de serem consideradas “politicamente incorretas”.

É claro que, mantido em limites socialmente saudáveis, tal movimento pode dar voz a minorias que não seriam ouvidas de outra forma, no entanto, levado ao

radicalismo, substitui um preconceito por outro (observe a tentativa de estabelecer cotas raciais nas empresas e universidades), e gera uma coerção que caberia

apenas ao ordenamento democraticamente instituído segundo os métodos e critérios consuetudinários, legislativos e/ou jurisprudenciais. A esse respeito, é possível

citar atos produzidos quando comunidades fortes – como os homossexuais da Califórnia – interferem em roteiros de filmes, ou quando figuras históricas são

condenadas tendo por base critérios morais fora de sua época - na Luisiana resolveu-se que nenhuma escola pública poderia ostentar o nome de quem tivesse

possuído escravos.

O perigo que o politicamente correto contém, é que, não raro, descamba em autoritarismo e se torna tão ou mais intolerante quanto a intolerância que se

propõe a combater. O escritor Norman Mailer e outros intelectuais revolucionários, tanto na arte como na política, em seu tempo diagnosticaram que a paranóia sexual

nos Estados Unidos é apenas uma variante do movimento politicamente correto. “Ambos começaram como movimentos em favor da decência da sociedade e

protetores dos mais fracos. Ambos degeneraram em fascismo”, diz Mailer7. Talvez Mailer tenha dito isto por levar em conta que, os princípios filosóficos do

politicamente correto, podem ser encontrados numa realidade histórica tão dirigista e autoritária quanto a de Hitler: a China de Mao Tsé-Tung. A idéia de carimbar um

7 Eurípedes Alcântara. Veja, 26 de agosto de 1998.

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adversário político ou qualquer pessoa indesejável ao regime com o selo de politicamente incorreto foi um poderoso instrumento de dominação ideológico utilizado por

Mao. Outro perigo, e talvez até mais importante, dada a envergadura de suas conseqüências, é que o politicamente correto, munido de emocionalismo aliado ao poder

das mídias hoje disponíveis, tem a capacidade de levar suas idéias prontas (muitas vezes estruturas com um simplismo impressionante) a milhões de pessoas que as

aceitam sem se darem ao trabalho de um exercício analítico e filosófico que lhes testem o racionalismo, a tolerância e a inserção harmônica numa realidade social

extremamente diversificada e complexa.

Quando milhões de pessoas se rendem, de forma instantânea e descompromissada, a esses movimentos politicamente corretos, viram massa de manobra nas

mãos dos que disso se aproveitam com fins políticos, eleitoreiros, ideológicos, econômicos, etc. Muitas vezes acabam apoiando ações extremamente contraditórias e

preconceituosas; outras, dada a força de sua representatividade, forçam essas ações e até as institucionalizam.

É sob essa luz que analisarei uma inovação do novo Código Civil Brasileiro: a impossibilidade de anulação do casamento por motivo de defloração da

mulher, ignorado pelo marido.

O atual Código Civil Brasileiro está em vigência desde 1916, no entanto, a sociedade que o acolheu sofreu inúmeras transformações quantitativas e,

sobretudo, qualitativas. O machismo, por exemplo, já não é um valor que detém a anuência da lei.

Atualmente, qualquer negócio jurídico8 (e o casamento é um negócio jurídico) pode ser anulado quando a vontade geradora do negócio estiver eivada de erro

substancial (C.C.9, art. 86). “Tem-se igualmente por erro substancial o que disser respeito às qualidades essenciais da pessoa, a quem se refira a declaração de

vontade” (C.C., art. 88). Seguindo esse princípio, ao tratar das relações de família, o código vigente diz que o casamento é anulável “se houver por parte de um dos

nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro” (C.C., art. 218). Ainda nesse sentido, é elucidado que se considera erro essencial sobre a pessoa do

outro cônjuge, “o defloramento da mulher, ignorado pelo marido” (C.C., art. 219, IV).

Ao conceder, exclusivamente, essa prerrogativa ao marido, o direito deixou de observar a igualdade, logo, deixou de ser justo. “A essência da justiça consiste

em dar a outro o que lhe é devido, segundo uma igualdade” (simples ou proporcional), acolhendo a definição de São Tomás10. Sendo assim, pode-se destacar três

componentes formadores da justiça: o “dar a outro” pressupõe uma necessária alteridade de pessoas (componente 1), o “que lhe é devido” pressupõe um débito

(componente 2), e o “segundo uma igualdade” pressupõe uma igualdade na relação (componente 3). Quando a lei exigiu a virgindade antenupcial apenas da

mulher, deixou de existir a igualdade na relação, extinguiu-se a justiça.

8 Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, Vol. I, Rio de Janeiro, Ed. Freitas Bastos, 2000, p. 422: “O negócio jurídico é um negócio de declaração de vontade, por força do qual se declara querer a produção de determinado efeito jurídico, incumbindo à ordem jurídica fazer com que esse efeito se realize, por ser ele querido pelo seu autor. São, assim, declarações de vontade para o ordenamento das relações jurídicas do declarante”. 9 C.C é a abreviatura adotada para Código Civil. 10 São Tomás: “Ratio Justitiae in hoc consistit quod alteri reddatur quod ei debetur secundum aequalitatem”. A citação encontra-se traduzida por Franco Montoro em sua “Introdução ao Estudo do Direito”, p. 129.

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Com o avanço social no sentido do aumento das liberdades individuais, os movimentos feministas e politicamente corretos, com toda a razão, denunciaram

essa relação injusta, pressionaram os legisladores e condenaram qualquer iniciativa ou discussão que não concluísse como necessária a alteração de tal disposição

legal. Todo mérito possível deve ser reconhecido aos que lutaram contra o machismo que, por tanto tempo, institucionalizou, valendo-se da lei, o preconceito e a

injustiça.

Aceitando como ponto pacífico que tamanho disparate realmente devia ser corrigido, a questão que se coloca é a seguinte: No afã de atender às

crescentes vozes que se colocavam como politicamente corretas e defensoras de tão nobre causa, que solução nossos legisladores encontraram

para o caso?

Um novo Código Civil Brasileiro, desde 1975, estava sendo apreciado pelo congresso, que, após tão longo período de análise, finalmente o aprovou em 2001.

O referido Código deverá entrar em vigor em 2003, trazendo várias inovações em relação ao que hoje está em vigência.

No que se refere ao caso que aqui trato, antes mesmo da aprovação do novo Código, muitos juristas consideravam que tal dispositivo já estava revogado,

tendo em vista que a Constituição de 1988 declara homens e mulheres iguais em direitos e obrigações (C.F.11, art. 5º,I), no entanto, tal entendimento não é unânime.

Prova disso é que grandes doutrinadores do Direito Civil, como Waschington de Barros, Sílvio Rodrigues e Maria Helena Diniz, não fazem qualquer ressalva sobre a

regra do Código Civil em seus livros. Outros, como a professora de Direito Civil Maria Alice Lotufo, da PUC-SP, defendem que o dispositivo não foi revogado, ao invés

disso, “quando for possível comprovar que o homem não casou virgem, a mulher poderá pedir a anulação do casamento”. Além do mais, alguns juizes e

desembargadores continuam acatando o dispositivo e decidindo a favor do marido pedinte da anulação. Esse é o caso do desembargador José Eduardo Grandi

Ribeiro, que em 1998 assim decidiu:

Comprovado nos autos através do laudo de exame de conjunção carnal o defloramento da mulher, o que era ignorado pelo marido, acertada a decisão

que anula o casamento, na forma prevista nos arts. 218 e 219, inc. IV, do Código Civil, por erro essencial sobre a pessoa do cônjuge, já que a ação foi

proposta antes de dez dias da celebração do enlace”12.

O novo Código Civil, com o objetivo de por fim às divergências, encara o fato de maneira mais direta. Também assume o erro essencial quanto a pessoa

como elemento anulador do negócio jurídico, e afirma que “são anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que

poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio” (novo C.C., art. 137), diz ainda que um erro é substancial quando

“concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante” (novo C.C.,

art. 137, III). Até aqui, tanto o futuro quanto o atual Código Civil estão de acordo.

11 C.F. é a abreviação adotada para Constituição Federal. 12 Tal decisão encontra-se registrada no 1º Boletim de Jurisprudência – outubro de 1998 (Tribunal de Justiça do Espírito Santo). Pode também ser acessada através do endereço http://netpage.em.com.br/ibdfam/47.htm.

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Ao transportar esses princípios para o Direito de Família, e, portanto, especificamente para o negócio jurídico do casamento, o novo Código Civil afirma que “o

casamento pode ser anulado por vício de vontade, se houve por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro” (novo C.C., art.

1.555). Mais adiante, ao descrever o que considera erro essencial sobre a pessoa do outro, não cita o defloramento pré-nupcial da mulher, desconhecido pelo marido,

como erro essencial; não obstante, afirma como erro essencial (portanto passível de anular o casamento) sobre a pessoa do outro cônjuge “aquilo que diga respeito

à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado” (novo C.C.,

art. 1.556, I).

Ao retirar do novo Código Civil a exigência da virgindade pré-nupcial especialmente dirigida à mulher, o legislador atendeu às vozes politicamente corretas,

eliminou uma injustiça, mas, em sua solução, como veremos, entregou-se ao simplismo e, desta forma, terminou por criar outra injustiça.

Como foi supra citado, o erro essencial continua valendo como anulador do negócio jurídico. Apesar disso, o que o novo Código Civil nos diz, por intermédio

da simples eliminação da exigência feita à mulher, sem que nada mais, no que tange a esse assunto da virgindade, fosse registrado, é que, se uma pessoa, por seu

livre arbítrio, chega ao entendimento de que, devido suas convicções filosóficas, religiosas ou políticas, deve casar-se virgem com um nubente também virgem, essa

pessoa, seja ela homem ou mulher, não terá seu interesse protegido por lei. Não há um dispositivo que assegure a um cônjuge exigir a virgindade pré-nupcial do

outro, mesmo que, atendendo ao princípio da igualdade, formador da justiça, ofereça a sua própria virgindade como condição e, quanto a isso, concorde o outro. O

que a lei nos diz é que tal vontade não deve ser respeitada, já que, como notamos, ela não chega nem a ser considerada.

Quando foi dado à lei a prerrogativa de escolher que valores são certos e que valores são errados? Quem delegou à lei a prerrogativa de assegurar apenas aos

que não dão valor à virgindade pré-nupcial o direito de ter a sua vontade respeitada? A lei pode dirigir as culturas? Essa é a postura que deve adotar um Estado que

se diz democrático? Não há, aqui, um problema axiológico?

Entendo o Direito como “um conjunto de regras obrigatórias, que determinam as relações sociais, tal como a consciência coletiva do grupo as

representa a cada momento13”. Se assim não for, se o Direito ao invés de determinar as relações sociais segundo a consciência coletiva, o fizer segundo a

consciência que ele impõe, então devo concordar com os marxistas e aceitar que o Direito é apenas uma máquina de dominação nas mãos dos que detêm o poder

estatal, pois ele não está considerando que, como dizia Marx, “o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos”.

Aos que pensam que a lei não mencionou a possibilidade de ambos os cônjuges concordarem em exigir a virgindade pré-nupcial por entender que tal vontade

já não existe na sociedade, lembro que o novo Código entrará em vigor exatamente num momento em que o culto à virgindade ressurge entre os jovens. Nos Estados

Unidos foram identificados, em 1993, cerca de 2,5 milhões de jovens que aderiram à virgindade ao adiar sua iniciação sexual para o casamento. O movimento, desde

13 H. Lévy-Bruhl, “Les Sources du droit. Les Méthodes. Les Instruments du travail”, in Introduction a l`étude du droit, Paris, Ed. Rosseau, 1951, p. 253. Traduzido por Franco Montoro em sua “Introdução ao Estudo do Direito (os grifos meus).

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então, tem se expandido, atingindo várias igrejas, escolas, grupos comunitários e convencendo inúmeras celebridades14 (parece que no mesmo local onde brotou a

lógica da liberdade sexual politicamente correta, está brotando o novo culto à virgindade). Na internet vários “sites” divulgam esses princípios e proporcionam

encontros, em “chats”, às pessoas virgens por convicção. No Brasil, a cantora Sandy divulga abertamente sua opção pela virgindade. Muitos já começam a imitá-la.

Nos Estados Unidos, pesquisa realizada entre 1994 e 1996, com 110 mil consultas produzidas ao longo de 18 meses (para evitar mudanças de comportamento) e

abrangendo pais, alunos e professores, revelou que a posição pró-virgindade nada tem a ver com moralismo artificial ou imposição legal. Trata-se da filosofia de vida

de grupos que entendem como importante a postergação do sexo, visando bens como prévio amadurecimento psicológico e prevenção de saúde, bem como a

gravidez indesejada15.

O legislador estava atento a todos esses movimentos sociais ou simplesmente entregou-se ao simplismo politicamente correto? Essas vontades não devem ser

protegidas pela lei? O seu valor moral deve ser rechaçado pelo ordenamento jurídico?

A forma justa de lidar com a situação, seguramente passa pela tolerância. As pessoas que julgam irrelevante a conduta sexual anterior ao casamento e

declaram assim sua vontade, não poderiam, uma vez casados, declarar erro dessa vontade para anular o casamento; não obstante, os que, de livre arbítrio,

consideram essa questão fundamental e assim o declaram mutuamente, têm o direito de, uma vez casados, ver a sua vontade negocial (lembre-se de que o

casamento é um negócio jurídico) protegida contra eventual erro ou contra o dolo enganador do outro. O que deveria ser feito é consentir tal direito, em termos

facultativos16 , aos cônjuges que, de comum acordo, o considerem relevante. Também é importante lembrar que, segundo a igualdade, e, portanto a justiça, ambos os

cônjuges deveriam possuir legitimidade para solicitar a anulação do casamento.

Quanto à possibilidade de prova da não castidade masculina, devo ressaltar que deveriam valer os mesmo meios já previstos no novo Código: confissão,

documento, testemunha, presunção e perícia (novo C.C., art. 211, I a V). Não difere em nada dos meios possíveis de se comprovar, de forma aceitável, a castidade

feminina.

Ao desprezar a análise racional, entregando-se, na confecção das leis, aos sensos tidos como politicamente corretos, o legislador despreza Kant (a liberdade

do arbítrio de um pode subsistir com a liberdade de todos os outros segundo uma lei universal – que é a lei da razão) e adota um antigo inimigo da democracia, Otto

Von Bismarck: “Ah, se as pessoas soubessem como se fazem as leis e as salsichas!”

BIBLIOGRAFIA

14 José Pastore, Jornal da tarde, Virgindade por Opção, 22/08/2001. 15 Peter S. Bearman e Hannah Bruckner, American Journal of Sociology, “Promissing the future: virginity pledges and first intercourse”, Vol. 106 nº 4, janeiro de 2001. 16 Direito facultativo é o que não é obrigatoriamente imposto pelo Estado, mas, optando por usá-lo, o sujeito recebe, por parte do Estado, a mesma garantia de efetividade do seu cumprimento que este dá à norma cogente.

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BOBBIO, Norberto. A ERA DOS DIREITOS. Rio de Janeiro, Campus, 1992.

CAHALI, Yussef Said (org.). CÓDIGO CIVIL, CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, CONSTITUIÇÃO FEDERAL. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2001.

LOPES, Miguel Maria de Serpa. CURSO DE DIREITO CIVIL. Rio de Janeiro. Freitas Bastos, 2000.

MONTORO, André Franco. INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº78 - DEZEMBRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME V

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 78

PRESERVAÇÃO AMBIENTAL E A EXPLORAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS

CLODOMIR SANTOS DE MORAIS

PRIMEIRA VERSÃO

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Clodomir Santos de Morais

Professor de Sociologia Rural

[email protected]

PRESERVAÇÃO AMBIENTAL E A EXPLORAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS

A vasta região que abarca o Alto-Paraguai e o Alto-Guaporé na qual se pretende compor o sistema integrado de desenvolvimento regional ( SIDER) do

extremo do Estado do Mato Grosso, se estende da área pantanosa dos xaraes até as terras mais altasdo divortium-acquario da chapada dos Parecis que delimita as

nascentes dos tributários do Tapajós, do Paraguai e do Rio Guaporé.

Correspondente aproximadamente a 50 mil Km2 habitados por um pouco menos de meio milhão de pessoas distribuída em 14 municípios: Indiavai, Comodoro,

Salto do Céu, Vila Bela da Santíssima Trindade, Figueirópolis, Pontes de Lacerda, Mirassol do Oeste, Rio Branco, Reserva do Cabacal, Araputanga, São João do Quatro

Marcos, Jauru, Porto Espiridião, e Cáceres. Este último e o município maia importante e para o qual confluem as vias de comunicação dessa sub-região

matogrossense.

Trata-se de pequenos núcleos populacionais que em forma ganglionar se multiplicaram nessa faixa de terra ao ritmo de uma colonização espontânea

desordenada e com a irracionalidade que caracteriza esta forma de expansão da fronteira agrícola.

O camponês indígena local e o adventício pequeno produtor, sempre disposto a reeditar a pequena economia familiar, constituem os protagonistas desse

processo que conduz à depredação dos recursos naturais do trópico úmido.

Com efeito, o secular sistema da “derrubação-roça-queima” não é mais do que o PEÃO QUATRO REI de uma partida de xadrez entre o homem e a natureza;

entre a Escologia Humana e a Ecologia Natural, na qual esta sempre sai perdendo.

É que uma vez aberto o céu com a derrubada dos gigantescos espécimes vegetais, os raios solares passam a ser acessíveis até a vegetação de mais baixos

tetos. Aí então parece o pasto natural e atrás deste, como um corolário imediato, vem o gado.

Em área de difícil comunicação e transporte para o mercado regional, o gado se apresenta, evidentemente, com a mercadoria ideal, pelo fato de conservar-se

por si mesma: de reproduzir-se por si mesma e por transportar-se a si mesma.

Na medida em que se estende a atividade pecuária, o gado vai empurrando o homem rumo ao coração das áreas selváticas e, assim, o gado e colonos

espontâneos, em poucas décadas mais, destruirão o resto da floresta do Além-Pantanal se não houver uma política adequada de conservação de recursos, aplicável a

curto e médio prazo. Fora disso é inevitável à depredação dos restos de matas dessa vasta e rica região.

A Mobilidade Especial da Mão-de-Obra

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Tem se observado que os deslocamentos contínuos ou intermitentes de população de área economicamente deprimida do Mato Grosso rumo as regiões

selváticas do Alto-Paraguai e Alto-Guaporé e em direção aos centro urbanos se apresentam na forma de um processo de drenagem demográfica como que submissa à

força de gravidade, e mais ainda como um mercado caráter seletivo da força de trabalho.

Nas áreas de economia deprimida, de uma produção familiar em desintegração lenta, porém contínua, permacem apenas os anciãos, as crianças e as

mulheres. Rumo aos centro urbanos (alguns deles, formados em décadas recentes) marcham os homens que não tem oportunidades nas áreas de minifúndios de

terras esgotadas. Em direção às regiões de bosques lati-foleados-úmidos, em direção as matas virentes das cabeceiras do tributário do Alto-Paraguai marcham

também os pequenos produtores jovens na esperança de reeditar o ciclo da empresa familiar.

Desse modo, a colonização espontânea desordenada e predatória da selva, igual a marcha rumo aos centros urbanos, tem origem nas áreas de economia

deprimida. Logo, tanto os problemas sócio-econômicos das áreas de economia deprimida como os da depredação da selva e mais ainda os da periferia dos centro

urbanos, todos eles guardam uma íntima relação e uma inter-dependência que só se explica com a própria estrutura da economia regional prevalescente.

Medidas Integrais: Formação de Quadros Médios

A análise dessa realidade indica que uma das medidas integrais para conjurar de certo modo os problemas derivados desses deslocamentos populacionais

radica fundamentalmente em programa de maximização do emprego rural nas identificadas áreas de economia deprimida e em medida de racionalização das

atividades produtivas da selva e dos centros urbanos.

Por esse motivo é que se propõe a adoção de programas com vistas a processos integrais de desenvolvimento, tendo como primeiro passo à formação de

recursos humanos acessíveis a modestas Prefeituras e Unidade de proteção dessa sub-região.

Supõe-se imprescindível para cada uma da municipalidade que comporão o SIDER a criação de um escritório encarregado de:

a) Planificação do emprego rural, mediante elaboração de projetos viáveis do ponto de vista financeiro;

b) Capacitação administrativo-gerencial das empresa agropecuárias de propriedade e produção mais susceptíveis de absorver mão-de-obra ociosa das áreas rurais,

sejam em atividades agrícolas, extrativas, pecuárias , de transformação e de serviços;

c) Estabelecimento de um sistema de participação social na identificação de profetos ecológicos geradores de emprego e renda familiar;

d) Montagem de eventos de capacitação massiva com vistas à estruturação de empresas associativas ou cooperativas de um Sistema Social Florestal assentadas na

racionalidade econômica e na conscientização ecológica.

Prévio estabelecimento de “Santuário Ecológico”

Antes que o processo de depredação alcance e destrua as áreas de bosques dos divisores de água da Chapada dos Parecís ricos em germoplasma, urge o

estabelecimento de Áreas de Reserva da Biosfera, espécie de “Santuários Ecológicos” com propósito de perpetuação de seus recursos biótipos em toda a sua

variedade.

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Evidentemente, para evitar que se tome a ecologia com fim e não como meio destinado a ajudar o desenvolvimento deve-se estimular o estudo científico e

tecnológico que conduzam à adequada utilização das áreas de Reservas da Biosfera para desfrute dos que vivem na região.

Para tanto, é importante a adoção dos critérios primários (representatividade, diversidade, naturalidade e eficácia como unidade de conservação) e dos

critérios secundários (informação sobre a zona, espécies em riscos de extinção, importância histórica, etc.) que tecnicamente se aplicam para a escolha das áreas

destinadas ao estabelecimento de reservas da biosfera.

a) A representatividade se expressa no conteúdo da área selecionada para Reserva Biosfera definido pelo conjunto típico de ecossistemas que entra em relações com

biomas de claras afinidades com a vegetação autóctone ou original. Dado que nas cabeceiras dos tributários do Alto-Paraguai e do Alto-Guaporé é reduzido o

número de habitantes, torna-se possível adotar um sistema legal e correspondente infra-estrutura econômica antes que a colonização espontânea crie novas

situações consumadas. É o caso de se estruturar os seus esparsos em cooperativas que componham o Sistema Social Florestal, integrado por eles, e pelo Estado,

com o propósito de obter lucros mediante o aproveitamento racional de recursos bióticos, turismo, etc. - atividade esta muito rentável do que tradicional sistema de

agricultura trans-humante e da pecuária extensiva.

b) A diversidade se expressa na maior variedade de representação de ecossistema, comunidade e organismos e característicos da selva-diversidade dentro de um

mesmo tipo de biomas correspondente aos gradientes ecológicos, que variam segundo as atitudes e as condições edáficas e climatológicas da área.

c) A naturalidade advém da condição de uma área não modificada pelo homem. Nesse caso os regulamentos vedarão a introdução de espécies exóticas, vegetais e

animais, que rompam com a naturalidade de área de reserva.

E, finalmente, a eficácia como unidade de conservação se obtém nas grandes dimensões, ou seja, em superfícies suficientes para o desenvolvimento de

grandes vertebrados que se deslocam em amplos territórios. Superfícies dessas dimensões garante a atividade do germoplasma florestal e a proteção dos animais em

vias de extinção quase sempre sujeitos a forte pressão depredatória.

Programa de Repovoamento de Rios e Reflorestamento Ciliar

Independentemente das ações de identificação de área de preservação dos recursos naturais se devem implementar projetos já em fase de negociação tais

como: o projeto do Pacu e Tambaqui e o projeto de Reflorestamento Ciliar concebidos e elaborados pela EMATER de Mato Grosso.

O primeiro tem claros propósitos econômicos já que o que se persegue é montar uma enorme fonte de produção de proteínas brancas para exportar para o

resto do país e exterior, com efeito, a carne dos peixes pacu e tambaqui, espécies autóctones das bacias do Paraguai e do Guaporé, são de grande aceitação no

mercado nacional e internacional.

O segundo projeto visa, sobretudo a proteção dos cursos d’água a restituição do revestimento florístico de suas margens e também como forma de prevenir a

erosão provocada pelos desmoronamentos e degradação dos terrenos alcançados pelas cheias periódicas.

Organizar para Produzir Renda

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Os milhares de pequenos produtores indígenas ou não-indígenas (“ladinos”), localizados nas fronteiras agrícolas do Alto-Paraguai e do Alto-Guaporé,

enfrentam uma crítica situação tanto pela carência de estruturas organizadas adequadas aos padrões culturais e às possibilidades produtivas das áreas. Daí porque é

necessário dar inicio imediatamente aos trabalhos de organização com vistas a certas atividades econômicas que permitam gerar ingressos monetários a curto prazo.

Isso servirá de estímulo aos participantes enquanto se estruturam os grandes projetos definitivos e de grande envergadura para o desenvolvimento da área

coberta pelo Sistema Integrado de Desenvolvimento Regional do Além Pantanal.

Nesse particular, é importante levar em conta que a organização, desde seus começos, vai inteiramente vinculada a programas de capacitação e

adestramento, pelo fato de organização mesma estar ligada à atividade que requerem transferência de tecnologia na atualidade não usada pelos grupos de pequenos

produtores internados nas selvas.

É que inicialmente a produção estará em ralação com o aproveitamento de matéria-prima de maior abundância na região, tais como os diferentes tipos de

bio-massa que possam se prestar como formas alternativas de produção energética.

Por outro lado, enquanto se desenvolvem os programas de organização para a produção baseada no aproveitamento de matérias-primas abundantes, a nível

local se deverá impulsionar a experimentação de cultivos de máximo rendimento por hectare e de fraca receptividade comercial tais como gengibre, ipecacuanha

(poaia), alhos, cebola e pimenta do reino a serem incorporados aos futuros planos de produção agrícola em escala social. Além da atividade extrativa de resinas de

látex e de fibras naturais, se deverá montar também programas de epífitas (orquídeas) tão abundantes nas matas daquelas bacias hidrográficas.

Sistema Social Florestal

A organização das populações que vivem que vivem dentro de áreas selváticas deverá estar vinculada ao IBAMA e aos proprietários daquela áreas. Trata-se de

um modelo especial de associativismo com tríplice propósito: a sustentação material do produtor; a proteção de recursos naturais de áreas selváticas; e o rendimento

econômico das reservas de biosfera.

Para cada um determinado conjunto de cooperativas florestais deverá funcionar uma unidade agro-industrial de transformação das matérias primas recolhidas

nos bosques, tais como: medicinas naturais, breu vegetal e breu mineral, látex, resinas, lenha, castanhas, cocos, cogumelos, etc. E por se tratar de atividade de

proteção e exploração dos bosques realizadas de forma social, a distribuição do produto deverá também ter um caráter social, ou seja, os lucros deverão ficar em

mãos dos associados da cooperativa florestal.

Capacitação Para Empresa De Tipo Grande

Dado o caráter social das atividades produtivas de Cooperativas Florestais, a capacitação dos produtores terá evidentemente que ser massiva para a formação

de quadros organizadores de empresas do tipo grande, ou seja, de processo produtivo socialmente dividido. Trata-se de capacitação mediante “Laboratório

Organizacionais” com vistas à organização para a produção, independentemente do tipo de atividade produtivas que lhe permitam realizar: agrícola, silvicultura,

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pecuária menor e agro-indústria. Esta capacitação lhes permitirá inclusive a mobilização racional das potencialidades e capacidade de iniciativa dos grupos sociais no

sentido de coadjuvar as medidas que o Estado decida adotar para a proteção dos recursos naturais.

O Laboratório Organizacional lhes ensinará (a nível individual ou de grupo) como atuar com eficácia em ações de escala social (divisão social do processo

produtivo, próprio das empresas de tipo grande) quer dizer, superior a uma escassa divisão social do trabalho.

Seja qual for à estrutura administrativa que se subordine ao marco institucional da cooperativa ou qualquer outro tipo de empresa de propriedade e produção

social, a capacitação que se oferecerá a esses produtores estará intimamente relacionada com a práxis organizativa que se gera dentro do próprio “Laboratório

Organizacional”.

Os primeiros “Laboratórios Organizacionais” para a formação de quadros organizadores de empresas do Sistema Social Florestal para Proteção e Exploração

dos Recursos Naturais Selváticos não poderão ser realizados em qualquer instalação física. É imprescindível que a localização do centro de capacitação esteja contígua

ou ao interior de uma Reserva de Biosfera a fim de possibilitar as aulas práticas. E que, além de algumas áreas de cultivos hortifrutigranjeiros para a sustentação do

Centro de Capacitação, existam instalações suficientes para albergar uma centena de alunos que, procedentes de outras áreas florestais, virão ali participar dos

recursos de capacitação massiva dessa modalidade de “Laboratório Organizacional de Centro”.

Cursos para Formar Técnicos em Eco-Desenvolvimento

É necessário que as Prefeitura de cada município dotados de Projetos Ecológicos para a Proteção de Recursos Naturais disponha de um Serviço de

Planificação (SERPLAN) composto de um Projetista, um Planificador Regional e um Técnico em Organização e Administração de Empresas. Todos esses Técnicos

aprendem a metodologia da Capacitação Massiva com vistas a criar e desenvolver estruturas organizadas de participação social. Para tanto, enquanto dure o curso, os

alunos, no mínimo 40, viverão a experiência do Laboratório Organizacional de Curso, organizados em sua própria estrutura de participação social, a fim de que a vida

organizada lhes crie a consciência organizativa imprescindível ao entendimento e solução dos problemas das empresas autogestionadas do Sistema Social Florestal.

Trata-se de quadros intermediários e não de profissionais universitários. Esses quadros são formados com professores primários, contadores, finalistas do

segundo grau, práticos agrícolas ou de formação similar.

A capacitação destes priva de um especial conteúdo com os parâmetros ecológicos que devem ter os projetos, programas e políticos de desenvolvimento de

Regiões de trópicos úmidos dotados de reservas florestais.

O curso se desenvolverá durante noventa dias com atividades didáticas de oito horas cada dia e além disso a adoção de um programa de leitura obrigatória de

sessenta textos técnicos. Estima-se que pelo menos dez catedráticos e instrutores deverão colaborar nesse curso a serviço de instruções nacionais e internacionais que

operam com desenvolvimento dentro do marco ecológico.

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Nos primeiros 15 dias, o curso se efetuará em um centro de capacitação para a formação de quadros organizadores de empresas do Sistema social Florestal,

nos moldes antes descritos. Os últimos 15 dias serão dedicados à elaboração de plenos e projetos a nível de terreno e bem assim na transferência de conhecimento e

de método para formar os auxiliares de Projetos Ecológicos (APE).

O período intermediário de 60 dias será dedicado a classes, primeiro de conhecimentos gerais e logo o ensino de análise e adaptação reais de áreas tropicais,

os hábitos culturais da população e o imperativo de gerar emprego dentrro do setor extrativista.

Programa do Curso

O curso para formação de técnicos em Ecodesenvolvimento contará com três ciclos:

CICLO A: Formação básica

CICLO B: Especialidades: Ecologia, Planificação e Avaliação de Projetos e Administração de Empresas, Organização da Participação Social.

CICLO C: Transferência de conhecimentos e métodos para a formação de Auxiliares de Projetos Ecológicos (APECO).

O Ciclo A de formação Básica, ao que deverá assistir o conjunto de todos os participantes, inclui temas relacionados com elementos de Ecologia, de Econômia

e de Sociologia da Organização referidos ao Trópico Úmido com os problemas e implicações da realidade rural.

O objetivo principal deste ciclo é dotar os participante de elementos que ampliem sua capacidade de compreensão da realidade dentro da qual trabalharão e,

ao mesmo tempo, familiarizá-los com sistemas categorias e conceptuais daquelas ciências e no uso de métodos de análise que facilitem a posterior complementação

de sua formação básica.

Inclui-se também uma Unidade de caráter instrumental através da qual se introduz a temática da planificação e se desenvolverão técnicas que interessam à

formação do conjunto de participantes (Técnicas de Pesquisas Sócio-econômicas e Elementos Básicos de Estatísticas).

O Programa específico do Ciclo A que terá uma duração de quatro semanas constará de:

UNIDADE 1: TEORIA DA ORGANIZAÇÃO SÓCIO-PRODUTIVA:

-Fatores históricos do surgimento da mercadoria;

-A consciência organizativa como reflexo da atividade material;

-O papel dos “insumos indivisíveis” plasmados no Capital Constante;

-Mecanismos de combate aos vícios das formas artesanais de trabalho.

UNIDADE 2: INTRODUÇÃO À ECOLOGIA:

-Os ecossistemas e suas interdependência;

-Reservas de Biosfera;

-Noções de Dialética da Natureza e Dialética do Desenvolvimento da Natureza Inorgânica.

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UNIDADE 3: NOÇÕES ELEMENTARES DE ECONOMIA:

-Conceito Básico da Economia;

-O funcionamento do Sistema Econômico;

-Introdução aos Problemas do Desenvolvimento.

UNIDADE 4: TEORIA E PRÁTICA DOS ASSENTAMENTOS RURAIS:

-A função social da propriedade do solo;

-Diferença de Desenvolvimento Agrícola, Desenvolvimento Agrário e Desenvolvimento Ecológico;

-Política de Reforma Agrária; experiências históricas.

UNIDADE 5: INTRODUÇÃO À PLANIFICAÇÃO:

-Conceitos Básicos;

-Aspectos metodológicos;

-Formulação de Diagnósticos sócio-econômicos;

-Técnicas de pesquisas;

-Estatísticas.

O Ciclo B, que contempla a formação específica, de caráter eminentemente instrumental se administrará através de quatro especialidades:

Especialidade B. 1: Planificação Agro-ecológica

Especialidade B. 2: Noções de Sociologia da Organização

Especialidade B. 3: Elaboração e Avaliação de Projetos

O propósito buscado com esta divisão é o de permitir um tratamento mais profundo dos temas que conformam a base das disciplinas antes assinaladas. No

contexto anterior, esta parte do curso persegue a formação de equipes multidisciplinares de trabalhos para o desenvolvimento das tarefas concretas envolvidas no

processo de desenvolvimento, principalmente os aspectos de planificação.

Para cumprir com este propósito cada especialidade contará com o seguinte programa: Especialidade B. 1: Planificação Agro-Ecológica

UNIDADE 6: PLANIFICAÇÃO

-Estratégia do Desenvolvimento;

-Problemas de Planificação;

-A formulação de planos e programas;

-As medidas complementares;

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-O marco institucional da Planificação.

UNIDADE 7: PLANIFICAÇÃO DE ÁREAS ECOLÓGICAS

-Planificação regional: problemas e métodos;

-A Planificação do uso dos recursos naturais;

- A natureza como premissa da Planificação ecológica.

UNIDADE 8: PLANIFICAÇÃO DE EMPRESAS DO SISTEMA SOCIAL FLORESTAL

-Padrões de assentamento em áreas florestais;

-Critérios e métodos para a Planificação do Sistema Social Florestal;

-Planificação de produção e dos investimentos;

-Técnicas de Avaliações.

Especialidades B. 2: Noções de Sociologia da Organização

UNIDADE 6: CAPACITAÇÃO PARA A ORGANIZAÇÃO

- O rol de “Insumos Indivisíveis” na Organização Social;

- Condições Objetivas e Fatores Subjetivos que influem no processo de Organização Social;

-Didática do Ensino e Didática da Capacitação.

UNIDADE 7: MARCOS TEÓRICOS DA MODERNA ENGENHARIA SOCIAL

-O fator pedagógico da prática;

-A categoria da “Atividade Objetiva”;

-A capacitação guiada por “Fatores Objetais”;

-O papel das estruturas organizativas na ecologia social.

UNIDADE 8: CAPACITAÇÃO MASSIVA

-Formação de Formadores;

-Projetos Globalizadores de Capacitação Massiva;

- “Laboratórios Organizacionais” e a Auto-Capacitação.

Especialidade B. 3: Elaboração e Avaliação de Projetos

UNIDADE 6: O MARCO GLOBAL PARAM A ELABORAÇÃO DE PROJETOS

-Projetos de investimentos: conceitos e tipos;

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-Etapas na formação de projetos;

-A análise das possibilidades de investimentos;

-Coordenação de planos e projetos: critério para o estabelecimento de prioridades.

UNIDADE 7: ELABORAÇÃO DE PROJETOS

- Informação Básica: técnicas e métodos de compilação e análise;

-Estrutura do Projeto;

I) análise do mercado;

II) tamanho de localização;

III) engenharia do projeto;

IV) custos e financiamento;

-Apresentação do Projeto.

UNIDADE 8: SELEÇÃO E AVALIAÇÃO DE PROJETOS

-Efeitos do Projeto;

-Tipos de Avaliação;

-Critério de Avaliação;

-O método para a seleção de Projetos.

UNIDADE 9: ADMINISTRAÇÃO E EXECUÇÃO DE PROJETOS

-Organização para a administração do Projeto;

-Planificação de execução: noções de PERT.

Especialidade B. 4: Administração e Planificação de Empresas

UNIDADE 6: CRITÉRIOS PARA A PLANIFICAÇÃO DE ASSENTAMENTOS AGRO-ECOLÓGICOS

-Padrões de assentamentos rural;

-Critérios físicos e socio-econômicos para a planificação de assentamentos agro-ecológicos;

-O desenvolvimento integrado de áreas rurais e a planificação de empresas do Sistema Social Florestal.

UNIDADE 7: MÉTODOS E TÉCNICAS DE PLANIFICAÇÃO DE EMPRESAS ASSOCIATIVAS AGRO-FLORESTAIS

-Etapa na Planificaçaõ e desenvolvimento de empresas associativas agro-florestais;

-A informação básica;

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I) metodologia de diagnóstico;

II) técnicas e compilação e análises de informação; método de orçamento;

III) método de inventário do potencial nergético;

IV) relação de recursos naturais e beneficiários.

UNIDADE 8: FORMULAÇÃO DO PLANO DE EMPRESA AGRO-FLORESTAL

-O plano de exploração racional, objetivos, estruturas e funções;

-Formulação do Plano de Produção de Bens e de serviços;

-Planificação dos Recursos Naturais;

-Planificação dos Investimentos;

-Planificação financeira.

UNIDADE 9: ADMINISTRAÇÃO E CONTROLOE DE EMPRESAS AGRO-FLORESTAIS

-Noções de Organização e Administração de Empresas;

-As empresas associativas e do Sistema Florestal; estrutura e formas de organização;

-Cooperativas de autogestão; estrutura e forma de organização;

-Contabilidade agro-florestal.

Esta especialidade terá a duração de 4 semanas.

Ciclo C - TRANSFERÊNCIA DE CONHECIMENTOS E DE MÉTODOS PARA A FORMAÇÃO MASSIVA DE AUXILIARES DE PROJETOS ECOLÓGICOS (APE)

Com o propósito de complementar a formação teórica dos Técnicos em Ecologia e Desenvolvimento e bem assim com o propósito de que eles cooperem na

formação dos Auxiliares de Projetos Ecológicos, o curso prevê a realização de trabalhos a nível de terreno durante 4 semanas.

Metade desse período será utilizado na elaboração de projetos realizados por equipes integradas de participante de cada especialidade.

Esta etapa do curso será de 3 semanas em estreita coordenação com os programas de trabalho das Prefeituras, cujos Municípios conformam o Sistema

Integrado de Desenvolvimento Regional (SIDER). Na mesma oportunidade as equipes de Técnicos em Eco-desenvolvimento (TDE) farão as entegras teóricas

necessárias à formação dos Auxiliares de Projetos Ecológicos na identificação de projetos agro-ecológicos geradores de emprego e renda de elaboração simples dos

seus respectivos perfis.

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As atividades do Ciclo C serão concebidas de tal maneira que tanto os projetos elaborados e formação intensiva dos Auxiliares de Projetos Ecológicos (APE),

não só sirvam de exercício de capacitação dos participantes, senão atendam também às necessidades concretas das instituições beneficiárias, as Municipalidades

principalmente.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº79 - DEZEMBRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME V

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 79

HISTÓRIAS DE INFÂNCIA

EUGÊNIA CORREIA KRUTZEN

PRIMEIRA VERSÃO

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Eugênia Correia Krutzen

Professora de Psicanálise – Universidade Potiguar - RN

[email protected]

HISTÓRIAS DA INFÂNCIA

A infância abandonada é uma questão que gera espanto, indignação, revolta, ao lado de uma igualmente apaixonada recusa a encarar a questão como um

problema passível de superação.

Propomo-nos aqui acolher este fato, inclusive nas ocasiões em que é veementemente denegado. Neste sentido é que procuramos a área da História Social da

Infância e da Família, esperando encontrar esclarecimentos a respeito de como, na atualidade, nos tornamos – aparentemente - tão indiferentes à infância

abandonada.

Em relação a outros problemas, as ONGs brasileiras encarregadas de crianças são significativamente numerosas, conforme Correia (1999). Esperamos, com

este estudo, contribuir para que se esclareça o sentido contemporâneo de infância, razão de ser do trabalho que realizam aquelas organizações.

Handke (1990) começa sua História de uma infância descrevendo o lugar que já guardava para seu filho ou filha, antes que ele ou ela nascessem. Ao lado

de duas outras expectativas para o futuro, a criança era acalentada junto ao sonho da amada, que ele descreve como alguém que lhe seria destinado e da vida

profissional que lhe daria acesso a uma liberdade digna de um ser humano. O ponto fundamental da narrativa, para nós, ele sublinha na primeira página: em seus

sonhos, esses três anseios não apareceram sequer uma única vez unidos numa só imagem.

Procurando uma ilustração brasileira, ocorreu-nos o filme “Central do Brasil”, dirigido por Walter Salles, que trata justamente desse tema, e não exibe, em

nenhum fotograma, a imagem dos filhos junto a pais e mães, fato ressaltado por Ariès (1973/198673) como novidade no século XVII.

As narrativas de Handke e Salles delineiam uma característica instigante da infância contemporânea: o questionamento à sua naturalidade em relação à

família. Vivemos um tempo em que parece plausível afirmar uma infância que não supõe uma família. Para compreender essa situação, procuramos períodos

anteriores, quando estes dois termos encontravam-se naturalmente relacionados.

Século XVII: A Família e a infância como novidades Ariès, P. (1973/986) e Badinter (1980/1985) afirmam que a família enquanto grupo privado vai surgindo, no ocidente, ao lado da infância a ser protegida e

preservada dos perigos do meio, durante o século XVII.

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Antes dessa época, fils, valets, garçons, eram palavras do vocabulário das relações feudais ou senhoriais de dependência. Um petit garçon não era

necessariamente uma criança, mas um empregado. Da mesma forma, o termo família referia-se à fidelidade dos servos a um senhor, sem nenhuma conotação

sentimental ou natural.

À princípio, pode parecer difícil imaginar que essa instituição, das mais sólidas em nosso imaginário, possa ter uma história onde seu próprio surgimento

indique um período em que não existia. Sua dissolução, entretanto, parecia fácil de conceber nos anos sessenta, em uma conotação quase pejorativa para este

conceito: na TFP (“Tradição Família e Propriedade”, um movimento civil de direita, dos anos 60); na Máfia; no seu papel de consolidação das heranças e das

ideologias, como sublinha o marxismo, ou nas neuroses, conforme a Psicanálise. Mas esses elementos fortaleciam, como perigos a evitar, o espaço onde a família

constituía o circuito aconchegante de afeto e segurança. ´E justamente esta conotação de reduto afetivo que alguns historiadores vão desnaturalizar.

Além dos quadros de Rubens (1609), outros indícios são recortados por Ariès (1973/1986, p. 65) como características de um sentimento de infância: elas

começam a receber nomes próprios, a saber quantos anos têm, assim como os pais passam a considerar importante saber quantos são os seus filhos. Há um

reconhecimento da especificidade deste período da vida, expresso pelos novos lugares que lhe são determinados nos cômodos das casas, na dimensão dos móveis,

nas atividades que lhe seriam proibidas. E há também um lugar entre os saberes, justificando uma medicina especializada, uma pedagogia que lhe sejam próprias.

Ressaltemos: assim como a infância existia mas não justificava um lugar, um saber próprios, também havia união homem-mulher, que, entretanto, não

constituíam necessariamente uma família, não motivava produções culturais específicas. A novidade moderna consiste em unir essas concepçõesi.

Um fator presente nesta mudança é o espírito cartesiano, separando as idéias claras e distintas, contribuindo para consolidar representações de crianças

separáveis das de adultos, fortalecendo a família também como unidade distinta, lugar de proteção e isolamento onde os filhos podem ser educados à luz da razão. A

obra de Rousseau também pode ser representativa desta fase, quando predomina o interesse em prover à infância formação e cuidado.

Mello e Martinez (1998) elaboram um instigante histórico da noção de criança classificando referências filosóficas em três grandes períodos: o primeiro deles

associa infância a pecado original, como em Santo Agostinho. Um outro entendimento é efetuado por Descartes, associando infância a erro, ressaltando a

suscetibilidade infantil às influências da paixão e da crença. Um terceiro período, também marcado pelo racionalismo iluminista, vincula infância a desperdício, à

prevalência do princípio do prazer de Freud. À sucessão histórica pecado-erro-máquina, corresponde a expiação-tutela-utilização.

Lembrando da situação de um segmento considerável de crianças habitantes de grandes cidades contemporâneas que podem ser vistas como referência da

possibilidade, vislumbrada por determinados adultos, de se desenvolverem com um tipo de tutela limitada a alimento e abrigo, ousamos propor um ponto a mais no

histórico de Mello e Martinez (1998): à criança como pecado-erro-máquina, seguir-se-ia a criança-estorvo, tendo como contrapontos expiação-tutela-utilização e

pertencimento.

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Mello e Martinez (1998) também criticam a derivação da idéia de criança, ou seja, a tendência a tomá-la como um desdobramento de outras categorias.

Propomos, entretanto, que por nossa condição evolutiva de fragilidade ao nascer, seja impossível considerar uma autonomia entre maternagem e filiação, o que,

inevitavelmente inclui um terceiro, para que a simbiose se desfaça. Considerar uma tríade indissociável é, portanto, diferente de derivar um termo do outro. Um

histórico da infância, assim, vai nos levar a uma construção relativa à família, (considerando-se infinitas possibilidades de organização familiar), como figura e fundo, e

é nesse próprio eixo que se pode incluir o fenômeno atual da criança que sobrevive, aparentemente, destituída deste grupo. A família definida pela naturalidade

destaca, por contraste, a abjeção constituída por sua ausência: pais que supõem dispensável, opcional, sua ação junto ao filho. Nestes casos, não é que a família

deixe de existir: trata-se de uma forma de abandono e isenção que segue paralela, concomitante, às outras formas.

Em outra direção, o Direito Napoleônico, de que somos herdeiros, define criança como aquele ser que, além de não trabalhar, não tem responsabilidade sobre

seus atos, sua assinatura não vale nada, qualquer ato seu exige o acompanhamento de um adulto.

Como sucedâneo desta fragilidade, faz-se um investimento em um amor materno, tão natural que daria conta, sozinho, da consolidação da família. A

fragilidade em termos físicos de qualquer bebê humano situaria como natural uma suposta tendência da mulher a proteger o filho, justificando, inclusive, que seja

regra geral, no caso de separações de casais, que seja a mulher a ficar com a guardaii. Os dados antropológicos e históricos, assim como as pesquisas com infância

abandonada, entretanto, são claros na relativização desta certeza.

Elisabeth Badinter (1980/1985 p. 9) comenta no prefácio a uma edição revisada do seu polêmico livro História de um amor conquistado: o mito do amor

materno, o impacto causado por sua proposta de que o amor materno seja tão histórico quanto qualquer outro sentimento: A julgar pelas reações apaixonadas que

este livro provocou – e que me surpreenderam, confesso – a maternidade é, ainda hoje, um tema sagrado.(...)

A autora observa que esta reação ocorre em países avançados ou não, demonstrando que ninguém sai imune da leitura de estudos onde se torne evidente

que o sentimento supostamente o mais puro e genuíno, aquele que situa a mãe acima de todas as coisas, pode ser situado historicamente.

Para a autora, entretanto, é fundamental debelar preconceitos, inclusive esses mais arraigados, pois, na medida em que alguém é destituído desta quota

mínima inicial, haveria alguma coisa sinistra e mórbida já no início de sua história, legitimando-se, assim, estereótipos negativos sobre crianças abandonadas. Diz a

autora:

Se é indiscutível que uma criança não pode sobreviver e desenvolver-se sem uma atenção e cuidados maternais, não é certo que todas a mães humanas

sejam predestinadas a oferecer-lhe este amor de que ela necessita. Não parece existir nenhuma harmonia preestabelecida nem interação necessária entre as

exigências da criança e as respostas da mãe. Nesse domínio, cada mulher é um caso particular. Algumas sabem compreender, outras menos, e outras ainda nada

compreendem. E talvez aí o mal metafísico, uma das causas essenciais da infelicidade humana. Mas será possível pensar em fugir desse mal negando sua existência?

(Badinter 1980/1985 p. 18)

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Tão pouco os pais, acrescentemos - o elemento masculino da parentalidade –, seria naturalmente informado de sua função, mas este reconhecimento não

causa tanto efeito quanto aquele discutido por Badinter.

A “naturalidade” da infância pobre

Além da questão da “naturalidade” da infância em relação aos pais, uma outra nuance evidencia-se, na discussão contemporânea sobre crianças de rua. O

reconhecimento da dependência da criança em relação aos pais é diferente, quando se trata da criança proveniente de famílias empobrecidas. A própria

denominação se modifica para “menor”, situando automaticamente uma referência civil, legal, impensável para as outras crianças, e sugerindo uma vinculação

direta ao Estado.

Uma concepção genuína, tanto do amor materno quanto de uma infância definida por si, é ressaltada por Kramer (1992) como produzida pelas classes

dominantes, que divulgam uma infância universal, caracterizada pela idade e pela dependência aos adultos, mas que, de fato, se diferencia inteiramente em função da

classe social.

Observamos, novamente, uma distinção possível entre desconhecimento e ignorância. A partir da literatura examinada, além das entrevistas do estudo

exploratório, não nos parece possível que educadores contemporâneos desconheçam um sentimento cuja origem remonta ao século XVII: aquele que associa, à

infância, a necessidade de proteção e educação. Tratando-se de crianças pobres, entretanto, as propostas de Ariès adquirem outra conotação.

Há homens que desconhecem os filhos que têm, tanto no que se trata de registro no cartório quanto de reconhecimento da importância da função paterna

junto a eles, tal como supomos haver acontecido antes do século XVII.

A literatura a respeito, por exemplo, Catela (1997) e as entrevistas do Projeto Axé, registra o quanto é freqüente que as crianças de rua não saibam quantos

anos têm, não portem documentos, sendo registradas pelos programas de assistência, demonstrando, assim, que a infância não é uma fase igualmente natural para

todos os seres humanos, nem a História constitui um fio linear onde os séculos se sucedam igualmente para todas as classes sociais.

Século XIX / XX

Kramer (1992 p. 24) desenvolve seu trabalho a partir de uma concepção afeita ao ponto de vista marxista, que para nós, constitui, junto ao campo freudiano,

as principais referências teóricas dos autores que inspiraram nossa Oficina. Para a autora:

O princípio fundamental é o de que a criança deve ser concebida em função da sociedade de classes, não existindo em si mesma. Encarar a infância dentro da

sociedade de classes significa que não existe “a” criança, mas sim indivíduos de pouca idade que são afetados diferentemente pela sua situação de classe social.

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A autora vai ressaltar então o discurso oficial, onde a infância genericamente definida em padrões universais serve de parâmetro para uma variação carente,

deficiente, inferior, em função das diferenças exibidas em relação ao padrão. Esta deficiência, por sua vez, dará margem aos programas de educação compensatória,

cujos efeitos ampliam e intensificam o não-reconhecimento da diferença, da diversidade cultural, fortalecendo a suposição de que os fortes e esforçados auferem os

louros a que fazem jus. Assim, haveria famílias, e suas respectivas crianças, socialmente situadas em função do acesso ao capital econômico, tal como propõe a teoria

marxista.

Ao contrário da autora, Vogel e Melo (em Fausto e Cervina 1991) posicionam-se favoravelmente à consideração de uma infância universalmente definida,

partindo do tipo de relação entre dois sujeitos envolvidos: um deles ocupando uma função materna e outro, a posição de filho. Para os autores a distinção conceitual

da infância em função das classes sociais é um absurdo que deve ser evitado nas discussões, defendendo, assim, que a infância encontre elementos definidores em

qualquer classe social.

Para nós, uma das formas de tornar visível este elemento universalizante, almejado tanto pela crítica de Kramer quanto pela defesa de Vogel e Melo, pode ser

resumido pela indissociabilidade dos três termos: o filho situado pelas funções paterna e materna. Estas funções variam histórica e culturalmente, o que permite a

visibilidade daquilo que não se modifica e é imprescindível para o desenvolvimento infantil: a importância de serem funções distintas, mutuamente reconhecidas.

Corroborando essa proposta, além de Ariès, (1973/1986), Badinter (1980/1985), Kramer (1992), Sluzki (1997), Dauster (1992 em Brauer 1994) e Fonseca (em

Brauer 1994) são unânimes em ressaltar como é fácil e igualmente falsa uma concepção universal tanto de família quanto de infância. Seus estudos são favoráveis à

conclusão de que aquilo que não varia, no decorrer da História, é o tabu do incesto, formulado em torno das relações de parentesco, que embora tomem as mais

diversas formas, sempre vão caracterizar o paradoxo da nossa natureza cultural. Essa conclusão indica a indissociabilidade ressaltada entre os termos, pois um tabu é

como um chiste, exige uma composição de, no mínimo, três elementos.

Resumindo nosso percurso: infância abandonada supõe alguém que não abandone, o que remete ao grupo familiar. Este por sua vez, supõe uma tríade inicial,

viabilizando a transmissão de um pertencimento. Esta maneira de conceber o problema nos leva ao campo fundado por Freud, onde é possível acrescentar à proposta

de Kramer: assim como há diferentes infâncias em função de diferentes classes sociais, há diferentes infâncias em função de diferentes tipos de função paterna e

materna.

Para nós, a perspectiva freudiana esclarece a discussão, enriquecendo os argumentos de Kramer (1994) e Campos (1992), que definem criança de rua como

um produto do capitalismo selvagem. Uma das formas de ampliar essa formulação pode ser uma preferência pelo termo criança socialmente abandonada, ao invés de

socialmente excluída, pela implicação que o termo promove em relação aos adultos supostamente responsáveis, envolvendo uma tomada de decisão frente ao fato,

irredutível à selvajaria do capital. Alguém pode ignorar que tem um filho, independentemente da classe social em que esteja incluído, e até mesmo

independentemente do fato de reconhecer este filho juridicamente. É possível, neste sentido, que uma herança econômica seja garantida, mas não a transmissão

simbólica de um significante afeito ao pai.

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Trata-se assim, de ressaltar que, mesmo intra-classes, há diferentes tipos de paternidade e de maternidade, que nos parecem irredutíveis ao fator econômico.

Sob o ângulo psicanalítico, há crianças abandonadas nas classes média e alta, e há famílias pobres que conservam seus membros unidos de maneira saudável. Esta

união ocorre em torno de um eixo ético, simbólico, onde alguma coisa própria àquela família se transmite ou se dissipa entre as gerações.

Esta interpretação enfoca o lugar encontrado pelo sujeito em uma cena, o contexto edípico, onde se desenrola o romance familiar de que ninguém escaparia,

e que não pode ser flexionado em função da posição sócio-econômica de um sujeito, mas sim do capital afetivo traçado antes mesmo de seu nascimento. Deste modo,

a criança é definida como aquele ser que herda uma determinada posição no contexto edípico, podendo em seguida aceitar ou não, mas jamais ignorar esta

configuração inicial de sua existência. Um dos modos de compreender o abandono contemporâneo da infância em risco social remete à posição em que os pais situam

sua própria função nesta cena, acreditando que possam ser dispensáveis. Trata-se, assim, de um modo de encadear a História Social da Criança, partindo do

sentimento apontado por Ariès. Ao ser considerada relevante a formação de uma criança, admite-se, ao mesmo tempo, a necessidade de um adulto responsabilizar-se

por essa formação, confirmando a importância de ser discutida a noção de família.

Chegando a este mesmo ponto, Sluzki (1997) intitula “Rede, família e narrativas” o capítulo do seu livro em que elabora um histórico das terapias de redes,

destacando quatro grandes fases: na primeira o foco era mantido no problema; na segunda, a família passa a constituir a unidade trabalhada; na terceira, o próprio

terapeuta – sua participação na observação e condução familiar do problema - passa a constituir o centro do processo; até que na quarta fase do histórico das

terapias de rede, o autor passa a enfatizar a narrativa como elemento fundamental: o foco passa a ser o modo como o problema é descrito, narrado.

A família então, é delimitada pelo campo das histórias em comum, compartilhadas pelos seus membros, observando que ser parte de uma família implica em

compartilhar histórias, descrições, valores, ideologias, mitologias. Trata-se, portanto, de tornar visível – por meio do conceito de família - uma valorização da

transmissão desses elementos por meio de narrativas, onde o sujeito encontre seu lugar.

Essa consideração nos levou ao campo dos personagens que promovem identificações, e daí à literatura como pretexto para a construção de um espaço onde

novas identificações se fizessem acessíveis através das tramas, dos personagens e movimentos que a própria literatura provocasse.

Em suma: antes do século XVII “família” remetia à fidelidade dos servos e “criança” era definida como um adulto em miniatura. Durante aquele século,

instaura-se uma nova associação entre a criança, que precisa de proteção e formação, e a família, grupo voltado, entre outras coisas, para a missão de proteger e

educar seus membros. No final do século XX aparece outra novidade, aqui ilustradas pela histórias de Handke e Salles: cada vez há menos “filhos” e mais “crianças” e

as “famílias” são facilmente desfeitas em prol dos interesses individuais de cada membro do casal.

Retomemos a história de Handke e a típica família monoparental contemporânea. Podemos então compreender a perplexidade desse escritor diante da

maneira como “a mulher” posicionava-se frente à “criança”, sempre movida pela opinião dos pedagogos e pediatras, destituindo, a ambos os pais, da possibilidade de

transmitirem um estilo de “criação” à filha recém-nascida.

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Ela se atinha aos livros e às regras de conduta dos especialistas a quem, por mais experiência que tivessem, ele desprezava em sua totalidade. Chegavam-lhe

mesmo a provocar indignação, na qualidade de interventores ilícitos e insolentes no mistério que havia entre ele e a criança.”

Ou referindo-se também à ocasião do nascimento da filha:

Por trás do vidro, o que lhe apresentavam não era uma “filha”, tampouco um “descendente”, mas uma criança (....). (Handke 1993 p. 11)

Uma característica de nosso tempo seria a substituição da propriedade humana de se projetar no mundo por meio dos filhos, defendendo uma forma de

pertencimento próprio do ideal de cada um , pelas regras de cuidado e criação de filhos estereotipadas e universalizadas. O aumento de tantas crianças em situação

de abandono, explícitas ou não, nos autorizam a supor como um dos traços deste final de século, um tipo de infância – pobre ou não - entregue a instituições que

também prosseguem o mesmo discurso da desresponsabilização.

Filhos de um saber sem sujeito, sem autor, sem desejo, destituídos do “dom”; movimentando-se em rotinas flexibilizadas pelos cálculos custo/benefício, esta

orfandade reconhecida em cartório e legitimada pela ciência seria uma das faces mais expressivas da miséria do nosso tempo.

BIBLIOGRAFIA

Ariès, P. História social da infância e da família. Rio de Janeiro, 1973.

Badinter, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1980.

Brauer. J.F. A criança no discurso do outro. São Paulo: Iluminuras, 1994.

Catela, F. A Clínica de rua: reflexões sobre uma intervenção clínica com crianças e adolescentes em situação de rua. Dissertação de Mestrado, Universidade

de Brasília, Brasília. 1977.

Correia Matallo, Eugênia. Do risco à escritura. Tese de doutorado. Universidade de Brasília. Instituto de Psicologia, 1999.

Fausto & Cervini (orgs) O trabalho e a rua: crianças e adolescentes no Brasil urbano dos anos 80. S.Paulo, Unicef/FLACSO/CBIA/Cortez, 1991.

Handke, P. História de uma infância. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

Kramer, R.S. A política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce. São Paulo, Cortez, 1992.

Vigotski, L.,Luria, A.R., Leontiev, A.N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo, Ícone, 1988.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº80 - DEZEMBRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME V

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 80

LITERATURA INFANTIL E HUMOR

NAIR GURGEL

PRIMEIRA VERSÃO

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ISSN 1517 - 5421 115

Nair Gurgel

Professora do Departamento de Letras - UFRO

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LITERATURA INFANTIL E HUMOR

“O riso é conseqüência de uma desarmonia para a qual concorre algo de ligeiramente atentatório à vida social. A

repercussão do cômico é sem fim, porque gostamos de rir e todos os pretextos nos servem”. (Bergson, 1980)

A Literatura Infantil constitui-se um gênero que considero relevante para pesquisar a subjetividade, especialmente se vier carregada de uma boa dose de humor. Neste

texto, pretendo juntar coisas como: literatura infantil, humor, marcas da subjetividade, polifonia, com a finalidade de demonstrar um sujeito trabalhando, sobretudo, um sujeito

construindo lugares de dizer que o distingam dos demais, que o faça singular no plural. Que a singularidade lhe permita demonstrar a pluralidade social, ideológica, lingüística e

discursiva.

A Literatura Infantil sempre foi vista como uma forma literária menor em função de seu atrelamento à pedagogia-utilitária. Além disso, a produção infantil sempre esteve

ligada à sociedade de consumo e ao “modo de ser” do adulto. Todos esses fatores influenciaram sobremaneira as obras destinadas ao público infantil que refletiam uma imposição

literária com vistas a representar certa verdade social.

Naturalmente que não queremos reproduzir o modelo capitalista de organização social, onde a criança é vista apenas como um ser dependente e, portanto, a relação

estabelecida tende a ser a de dominados e dominantes. Esperamos e desejamos que essa fase da Literatura Infantil já tenha passado; se não, que, pelo menos, nós professores,

tenhamos consciência da sua perversidade e possamos levar para a sala de aula textos verdadeiramente literários. Porque entendemos que a Literatura Infanto-Juvenil17 é arte, da

mesma forma que a Literatura em geral e, enquanto arte, revela o homem.

Antes de adentrar na questão da subjetividade propriamente dita, algumas questões se impõem necessárias, especialmente quando nos voltamos para a Literatura Infantil

e, deliciados, sorrimos diante de um texto para criança. Que segredos há nos livros infantis que divertem as crianças? Que sabedoria há por trás da ingênua linguagem da

literatura infantil, que nos faz coniventes, como adultos, e envolvidos, como crianças? Para tentar responder às questões acima, precisaremos nos deter sobre a categoria do humor

como procedimento e examinar suas realizações em algumas dessas obras da Literatura Infantil.

17 Refiro-me à Literatura Infantil escrita para crianças, sem o ranço do didatismo presente especialmente nos primeiros textos, cuja finalidade era passar algum tipo de moralismo..

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ISSN 1517 - 5421 116

O objetivo deste estudo, portanto, é refletir sobre a presença do riso na Literatura Infanto-Juvenil e experimentar as várias possibilidades de abordagens críticas deste

fenômeno. Não se trata, pois, de uma abordagem exaustiva. Nosso maior intuito é trazer à baila algumas reflexões sobre o tema controverso e sedutor da repercussão do humor na

Literatura e um conseqüente marco no papel do sujeito enquanto autor dos textos que produz; já que o humor é um dos fios a partir dos quais é tecida a rede de sentidos. Ele

evidencia uma atitude intelectual do autor, que produz o seu texto com uma postura reflexiva e consciente em relação à Literatura Infantil. Esta atitude revela um distanciamento

crítico do material que ele utiliza: os textos que cria. Portanto, a Lingüística, enquanto ciência da linguagem, deve debruçar-se também sobre a Literatura Infanto-Juvenil, com

seriedade, e promover um mergulho profundo na obra, revelando um mundo que se revela nas dobras do texto. Desta forma, pode-se garantir o lugar e o respeito que a Literatura

Infanto-Juvenil merece.

Mesclando vários discursos, o autor de textos humorísticos executa o método socrático de destruir qualquer opinião isolada por colocá-la em contato com um contexto

mais amplo ou estranho, que, neste caso, é a literatura infantil em suas diversas manifestações e o contexto social no qual ela se insere.

Bakhtin (1999), numa perspectiva antropológica, vai falar do riso decorrente do processo de carnavalização, tomando como suporte para seu estudo sobre Rebelais, a

Idade Média e o Renascimento. As manifestações da cultura popular – ritos, espetáculos, festas, obras cômicas orais e escritas, vocabulário familiar e grosseiro - baseados no

princípio do riso, traduzem uma visão de mundo específica, marcada pela subversão dos valores oficiais, pelo caráter renovador e contestador da ordem vigente.

Se o riso continua sendo a marca do homem adulto, já sufocado pelas imposições da cultura, limitado pelas amarras sociais, angustiado pelo peso das preocupações, que

dizer então do riso solto da infância, genuína explosão de prazer. Parece, portanto, bastante fértil trilhar o caminho da Literatura Infantil brasileira a partir do riso, uma vez que ele

permeia o gênero. O riso adulto para acontecer exige, geralmente, uma maior elaboração de idéias e palavras, encontrando expressão plena nos chistes e nas piadas; o riso infantil

encontra-se bem próximo do popular, manifestado através da inversão e subversão da ordem vigente. Fazer as coisas às avessas faz rir a criança que, desta forma, desmonta a

seriedade do adulto. Por outro lado, se o riso no adulto tem o sabor de memória, o que diz Bergson (1980), sobre o riso em geral, aplica-se também ao infantil, pois sabe-se que o riso

é uma forma de subverter padrões.

Em O riso (1980), Bergson defende a tese de que o riso é provocado pela rigidez mecânica, pelo automatismo. A vida e a sociedade exigem do ser humano uma atenção e

uma elasticidade do espírito e do corpo para se adaptar às constantes mudanças de situação. O riso é, portanto, uma espécie de gesto social que reprime as excentricidades e procura

corrigir certa rigidez do corpo, do espírito e do caráter que a sociedade gostaria de eliminar dos seus membros. Dentro desta ótica, faz sentido a máxima latina: “ridendo castigat

mores”18

Bergson (1980) vai buscar na infância, depositária da maioria de nossos sentimentos alegres, as leis fundamentais do cômico. É observando os brinquedos infantis: o boneco

de mola; o fantoche a cordões; a bola de neve, que o filósofo elabora os processos fundamentais do riso: a repetição, a inversão, a interferência de séries e a transposição.

18 “Rindo se castiga os costumes”.

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Outra é a direção de Freud (1969) que, em sua teoria psicanalítica, vincula o riso ao princípio do prazer. Freud, ao dedicar-se à interpretação dos sonhos, percebeu que havia

estreita semelhança entre a linguagem dos sonhos e a dos chistes. Em seu estudo O chiste e sua relação com o inconsciente, através de vários exemplos, ele comprova que os

processos de condensação e deslocamento, presentes na elaboração onírica, também fazem parte da elaboração do chiste.

As possibilidades mais simples de se inventar estórias cômicas nascem do aproveitamento do erro. Rimos das pessoas que caem porque elas não se comportam segundo a

norma humana. As primeiras estórias são mais gestuais que verbais. De um gesto errado nascem estórias às quais são acrescentadas personagens também erradas.

Numa retrospectiva na história da literatura infantil brasileira, percebemos que, assim como na literatura para adultos, é no Modernismo que o riso vai ser redescoberto.

Alcântara Machado (1970), escritor modernista que soube muito bem explorar o riso, manifestou-se a respeito: “um dos maiores benefícios que o movimento moderno trouxe foi

justamente esse: tornar alegre a literatura brasileira. (...) Até então no Brasil a preocupação de todo escritor era parecer grave e severo. O riso era proibido. A pena molhava-se no

tinteiro da tristeza e do pessimismo”.19

É na obra de Monteiro Lobato que o riso se firma como presença viva e constante, instaurando uma nova concepção a respeito da criação de obras para crianças,

anteriormente conhecida pelo didatismo que permeava os escritos destinados ao público infantil. O caminho aberto por Lobato, com seu primeiro livro publicado para crianças, A

menina do narizinho arrebitado (1921), vai ser retomado na literatura infantil brasileira, com plena consciência de opção, a partir da década de 60. Podemos dizer que uma das mais

fortes lições de Lobato – o riso - mantém viva hoje das paródias aos contos de fadas tradicional, no reaproveitamento das narrativas populares, manifestando-se no cômico de

situações, de personagens ou de linguagem. Monteiro Lobato soube muito bem representar o inconformismo, a desobediência e a irreverência, falando pela voz do “outro”, a voz de

Emília, a boneca de pano com idéias avançadíssimas para a época, quanto inovar, subverter, utilizando recursos lingüísticos, desmontando as regras e fazendo uso de metáforas.

O humor, segundo Fanny Abramovich (1996), pode surgir de várias formas na literatura infantil: a) Através de uma idéia engraçada; b) Ironizado no tédio e no

aborrecimento; c) Mostrado no mau humor e na irritação; d) Marcado pelas queixas, lamúrias e lamentações; e) Reforçado na incompetência adulta; f) No saudável deboche às

instituições; g) Nos sustos e nos espantos.

O humor tomado como uma brincadeira é o humor lúdico, baseado no jogo com as palavras. A polifonia e os vários sentidos das palavras e das expressões vão determinar

o grau de comicidade existente no texto. A criatividade aqui é sinônimo de ‘pensamento divergente’, isto é, de capacidade de romper continuamente os esquemas da experiência.

Considera-se ‘criativa’ uma mente que trabalha, que sempre faz perguntas, que descobre problemas onde todos só vêem respostas satisfatórias, que recusa o codificado, que

remanuseia conceitos, que não tem medo do perigo, do novo e não se deixa inibir pelo conformismo.

Rodari (1982), disse a seguinte frase: “Todos os usos da palavra a todos”. Parece um bom lema, sonoramente democrático. Não exatamente porque todos sejam artistas,

mas porque ninguém é escravo; um bom exemplo de que o papel do sujeito fica garantido na produção discursiva, desde que se queira intervir e modificar.

19 In: MACHADO, Luís Toledo. Antônio de Alcântara Machado e o Modernismo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970. p. 19.

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O processo mais utilizado nessa categoria (brincadeira) é a condensação. Acontece quando o autor, estrategicamente, utiliza o que chamamos gramaticalmente de

palavras homógrafas, ou seja, é a repetição de palavras com a duplicidade de idéias. Significado e significante se interpõem num constante exercício de criatividade. Estão

presentes os usos de metáforas e o trabalho com a ambigüidade, como recurso de subjetividade.

Um bom exemplo de livro que retrata o humor-brincadeira é O menino maluquinho de Ziraldo. O livro é o que podemos chamar de tratado da inter-relação entre o código

visual e o escrito. Ao descrever as características físicas do personagem central, o autor faz um revezamento dos códigos, entrelaçando o código escrito com o código visual.

Enquanto o código escrito dá ao leitor o sentido metafórico da palavra, o código visual dá o sentido literal, sem se chocarem ou confundirem o leitor, ao contrário, dão um toque

de humor e versatilidade ao livro.

Para demonstrar sua preocupação com a liberdade, Ziraldo faz opção pelas ilustrações em preto e branco, deixando os leitores inventarem cores para as personagens e suas

cenas discursivas. O leitor de todas as idades se encontra no Menino Maluquinho, pois ele nos lembra de nossa infância e nos faz olhar para nossos filhos com olhos de criança. O

Menino Maluquinho é um livro para crianças crescidas, crianças pequenas, crianças de todas as idades. Comparemos agora alguns trechos do livro, através de uma análise verbal e

visual:

“Ele tinha o olho maior que a barriga”.

A expressão “ter o olho maior que a barriga” é considerada um ‘dito popular’ e polifonicamente pode também significar “ser guloso”, desejar comer além da capacidade

física, levado a esse impulso, geralmente, pela aparência do alimento.

Ziraldo, numa brincadeira com as palavras e seus vários sentidos, representa, literalmente, a expressão, (através do desenho) como podemos perceber acima. Não é uma

simples opção pelo sentido literal ou pelo sentido figurado; é, antes de tudo, uma opção consciente, um desvio das regras, uma estratégia discursiva, cuja finalidade humorística

demonstra uma relação de cumplicidade autor-texto-leitor.

“Tinha fogo no rabo”

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Nem rabo, nem fogo representam o que a ilustração, comicamente, nos mostra. “Ter fogo no rabo” é também uma expressão popular muito utilizada para crianças inquietas,

que não sossegam. Ter fogo no rabo quer dizer não conseguir sentar-se por muito tempo, como se algo estivesse queimando as nádegas, o bumbum, a bunda, enfim, o rabo mesmo.

Fogo e rabo são duas simbologias ligadas ao ‘diabo’ ao ‘capeta’, o que nos permite buscar nas vozes da História e na interpretação do leitor a voz do autor. O menino maluquinho é

uma criança muito danada, esperta, sagaz, inquieta, enfim, “endiabrada”.

Por que é que Ziraldo preferiu utilizar-se de provérbios ao invés das gírias? Não seriam estas mais próximas das crianças e aquelas mais apropriadas para os mais velhos?

Esta é apenas uma das muitas descontinuidades existentes no texto. Obra do acaso? Ou recurso consciente de manipulação da palavra? Subjetividade ou assujeitamento? A Análise

do Discurso tem mostrado que a ideologia e a história não destroem o sujeito, apenas o orientam para uma escolha adequada.

A experiência da leitura é, no livro de Ziraldo, uma conversão do olhar que, segundo Larossa (2000:106), “tem a capacidade de ensinar a ver as coisas de outra maneira”.

Ler, no sentido etimológico de ‘re-colher’ remete a ver-se na leitura feita, refletido de si mesmo, embriagado de prazer pelas sombras do leitor no texto. Ou como diria De Certeau

(1994:271), “a leitura se caracteriza pelos avanços e recuos, pelas táticas e pelos jogos com o texto”.

“E macaquinhos no sótão (embora nem soubesse o que significava macaquinho no sótão)”

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Essa expressão, menos conhecida popularmente, talvez pela palavra ‘sótão’ tem como um dos seus sentidos a fertilidade imaginativa e bem humorada da criança: macacos

são animais divertidos e um tanto quanto engraçados, irresponsáveis, inquietos – responsáveis pela constante efervescência da imaginação infantil; sótão representa a parte superior

de uma casa, geralmente, onde se guarda apetrechos pouco utilizados. Aqui, o sótão pode significar o cérebro, parte, supostamente, pensante do ser humano. Logo, ter macaquinhos

no sótão significa estar em constante ebulição, em permanente processo de criação. Resumindo, o menino maluquinho “era um menino impossível”, pois ser guloso, ágil, inquieto e

imaginativo é tudo que há de mais produtivo em uma criança saudável.

O autor encontra brechas na língua, apresenta alternativas ao leitor de ler nos entremeios, brinca com as palavras, joga com os sentidos. O leitor preenche (ou não) as

brechas deixadas pelo autor, abre outras e, se for professor, multiplica as possibilidades de leitura, oferece novos caminhos. Somente as condições de produção do discurso, ou o

contexto onde acontece a cena enunciativa, podem precisar os efeitos de sentido provocados em ambos os interlocutores. Entretanto, a intencional ambigüidade provocada por uma

intencional escolha de palavras faz do autor um sujeito intencional, estrategista de seu discurso.

Se nós, professores de língua, soubermos utilizar textos ‘interessantes’, estaremos de alguma forma possibilitando a prática discursiva em sala de aula, uma vez que, a partir

dos textos, poderemos refletir a respeito de ideologia, da subjetividade e do contexto histórico-social, além, é claro, de estar propiciando prazer no saber.

Para que aconteça o humor é preciso inovar, não ter medo de mudar, romper com as normas, desmontando as regras, romper com idéias velhas, inovando. O humor

subversivo representa o inconformismo, através da irreverência e da desobediência, pois são os desobedientes que movimentam o mundo. Fazer as coisas ao avesso, faz a criança rir,

desmonta a seriedade do mundo dos adultos. Os autores infantis que conseguem esse tipo de visão são os que levam a novas formas de perceber velhas coisas, sem preconceitos, sem

estereótipos, sem repetir o já sabido.

Concluímos que nas obras de Literatura Infantil o humor não visa a um único significado, mas forma um ciclo de sentidos, uma cadeia significante que desafia a unidade e

estabelece a diversidade. Assim é que o sério e a brincadeira, o sonho e a realidade, o real e o aparente, se situam no mesmo contexto. Carregado de humor, o livro infantil se

constitui como forma dialética de produção de sentido que coloca em questão a unidade, instala a diversidade e relativiza as certezas, abrindo caminho para o dialogismo.

Existem autores com visível bom humor na Literatura Infantil e Juvenil brasileira. São aqueles que, através de suas obras, conseguem fazer rir perante um acontecimento.

Tais escritores merecem destaque por serem sempre divertidos no que escrevem, não apenas pelo bom humor, mas, sobretudo pelo inusitado, pelo inesperado e, por isso, muito

inteligente. Pena que não podemos falar de cada um!!!

BIBLIOGRÁFIA

ABRAMOVICH, Fany. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. S. P.: Scipione, 1989.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 3.ed.,São Paulo, Hucitec, 1986.

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____________. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rebelais. S. P: HUCITEC; Brasília, Editora da UnB, 1999.

BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro; Zahar Editores, 1980.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: as artes do fazer. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. RJ: Imago, 1969.

LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Trad. Alfredo Veiga Neto. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

MACHADO, Luís Toledo (1970). Antônio Alcântara Machado e o Modernismo. Rio de Janeiro: José Olympio.

POSSENTI, Sírio. Pelo humor na lingüística. In: D.E.L.T.A, vol. 7, nº 2, 1991, 491-519.

_____________ Os humores da língua. Campinas, SP: ALB: Mercado de Letras, 1998.

____________. Sujeitos Trabalhando (para bom entendedor, meia palavra bos...) In: JELL/ Mal. Cândido Rondon – 09/98, 1998.

RODARI, Gianni. Gramática da fantasia. Trad. Antônio Negrini. SP: Summus, 1982.

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se consigo falar comigo é porque falo consigo antes

como se por auto- falantes falasse a um passo

do teu ouvido (paraíso perdido

entre quatro quadrantes)

nem adianta fingir dizer que é só um risco

persigo teu olho e tua sombra

deita onde eu piso e faço saltar teu cisco

para o centro do disco solar

CARLOS MOREIRA