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  • Gramtica

    do Crioulo

    da ilha de Santiago

    (Cabo Verde)

    elaborada por

    Jrgen Lang

    com a colaborao de

    Liliana Inverno Andr dos Reis Santos e

    Andreas Blum

    Jrgen Lang

  • Aviso importante

    A publicao desta Gramtica do Crioulo da ilha de Santiago (Cabo Verde) em formato eletrnico uma obra em curso. Existe, desde 2002, uma verso manuscrita completa em alemo que vai sendo revista e traduzida para portugus. Assim, a sua publicao na internet avanar ao ritmo a que avanarem a reviso e traduo para portugus do texto original em alemo.

    O leitor dispe, desde j, de um ndice Geral, pormenorizado para as partes publicadas e reduzido aos ttulos para os ca-ptulos que aguardam publicao. Para maior clareza, as par-tes publicadas aparecero sempre, no ndice Geral, sobre fundo cinzento. O leitor dispe tambm desde j de uma In-troduo, onde informamos sobre a finalidade, as caracters-ticas, as fontes, as bases tericas e os predecessores desta obra. E dispe tambm de listas de abreviaturas para fontes, lnguas e termos gramaticais. A bibliografia crescer junta-mente com a gramtica, em funo das novas entregas.

    inevitvel que a paginao da obra sofra algumas modifica-es ao longo da publicao. Assim, aos que quiserem citar ou mencionar alguma passagem desta gramtica recomenda-se, que remetam no para pginas mas para pargrafos, tal como faz o seu autor nas suas remisses internas.

  • Prefcio

    Quase um decnio depois do lanamento de Dicionrio do Crioulo de Santiago (Cabo Verde) com equivalncias de traduo em alemo e portugus, elaborado por Martina Brser e Andr dos Reis Santos, com a contribuio de Ekkehard Dengler e An-dreas Blum, sob a direco de Jrgen Lang (Tbingen: Narr 2002), iniciamos hoje, em verso eletrnica, a publicao da gramtica deste crioulo anunciada desde o prefcio do Dicion-rio.

    Motivos vrios nos obrigaram a adiar o incio da publica-o de um manuscrito que, poca, estava j quase concludo. O principal motivo foi ter-se revelado infrutfera a busca por uma pessoa de lngua materna portuguesa com uma boa formao lingustica, capaz e disposta a levar a cabo a reviso do por-tugus. Encontrmo-la finalmente na recm-doutorada linguista da universidade de Coimbra, Liliana Inverno, que j nos tinha dado provas dos seus excelentes dotes noutra ocasio. Sabendo por experincia que uma revisora de tais dotes no pode seno descobrir inmeros erros e incoerncias no nosso texto, con-tribuindo desta forma poderosamente para a melhoria do mesmo, consideramo-la no apenas revisora, mas colaboradora. Tal t-tulo convm ainda a duas outras pessoas: ao nosso colaborador alemo de longos anos, Andreas Blum, que leu boa parte do ma-nuscrito alemo, chamando a nossa ateno para tudo o que lhe parecia ambguo e duvidoso, e ao nosso colaborador cabover-diano, Andr dos Reis Santos, que forneceu milhares de frases exemplificativas para o nosso Dicionrio, as quais aprovei-tamos de novo nesta gramtica. Andr dos Reis Santos serviu-nos sempre de informante, a tal ponto que se pode dizer que antes de mais o seu crioulo que nesta gramtica se descreve.

    Esta gramtica , pois, o resultado de uma cooperao ger-mano-caboverdiano-portuguesa. Que todas as pessoas mencionadas e as inmeras outras que contriburam de forma mais indireta para tornar esta obra possvel, e entre as quais mencionamos apenas a nossa companheira Beate Gresser, encontrem aqui a expresso da nossa mais profunda gratido.

  • Indice geral

    0. Introduo

    0.1 Finalidade

    0.2 Caractersticas 0.2.1 Estado atual da lngua 0.2.2 Que variedade do crioulo de Santiago? 0.2.3 Fontes de informao 0.2.4 Uma gramtica abrangente 0.2.5 Bases tericas

    0.3 Predecessores 0.3.1 Francisco Adolfo Coelho (1880-1886) 0.3.2 Joaquim Vieira Botelho da Costa e Custdio Jos Duarte (1886) 0.3.3 Antnio de Paula Brito (1887) 0.3.4 Armando Napoleo Rodrigues Fernandes (anterior a 1938)

    0.3.5 Baltasar Lopes da Silva (1957) e Maria Dulce de Oliveira Almada (1961) 0.3.6 Jos G. Herculano de Carvalho e Mary Louise Nunes (1962)

    0.3.7 Donaldo Pereira Macedo (1979) 0.3.8 Izione S. Silva (1985) 0.3.9 Os nossos contemporneos

    0.4 Abreviaturas 0.4.1 Abreviaturas das fontes 0.4.2 Abreviaturas das classes de palavras 0.4.3 Outras abreviaturas 0.4.4 Smbolos

    0.5 Bibliografia

    I. SONS E ESCRITA

    1. Fontica e fonologia

    1.1. Unidades fnicas 1.1.0 Observaes preliminares 1.1.1 Frase 1.1.2 Palavra fnica 1.1.3 Grupo tnico ('p') 1.1.4 Slaba 1.1.5 Fonema 1.1.6 Texto exemplificativo com transcrio

  • 1.2 Fonemas

    1.2.0 Observao preliminar a respeito da nasalidade 1.2.1 Fonemas voclicos 1.2.1.1 Inventrio 1.2.1.2 Traos distintivos 1.2.1.3 Pares mnimos 1.2.1.4 Emprego das oposies semiaberto/ aberto para diferenciar categorias gramaticais 1.2.1.5 Traos no distintivos 1.2.1.5.1 Lbios 1.2.1.5.2 Cordas vocais 1.2.1.5.3 Altura 1.2.1.5.4 Durao 1.2.1.5.5 Tipos de nasalidade 1.2.1.5.6 Texto exemplificativo com transcrio 1.2.1.6 Neutralizaes 1.2.1.6.1 Neutralizaes do grau de abertura 1.2.1.6.2 Neutralizaes da oposio oral / nasal 1.2.1.7 Realizao dos (arqui)fonemas 1.2.1.7.1 Nas slabas livres 1.2.1.7.2 Nas slabas travadas 1.2.1.8 Combinatria dos fonemas voclicos 1.2.1.8.1 Hiatos 1.2.1.8.2 Ditongos 1.2.2 Fonemas consonnticos 1.2.2.1 Inventrio 1.2.2.1.1 O fonema // 1.2.2.1.2 Os fonemas consonnticos nasalizados 1.2.2.1.3 O estatuto de /v/, /z/, //, // (/v/, /z/, //, //) 1.2.2.2 Traos distintivos 1.2.2.3 Pares mnimos 1.2.2.4 Realizaes 1.2.2.4.1 Ponto de articulao 1.2.2.4.2 /c/ e // 1.2.2.4.3 /s/, /z/, // e // 1.2.2.4.4 /r/ 1.2.2.4.5 Nasalidade 1.2.2.5 Neutralizaes 1.2.2.6 Combinatria 1.2.2.6.1 Generalidades 1.2.2.6.2 Final da palavra 1.2.2.6.3 Incio da palavra 1.2.2.6.4 Interior da palavra 1.2.2.7 Mudana fnica no domnio consonntico 1.2.2.7.1 Queda do /b/ intervoclico 1.2.2.7.2 Vocalizao do /l/ diante de consoante 1.2.2.8 A fala de Nhu Lobu

  • 1.3 Fenmenos fnicos suprasegmentais 1.3.1 Estrutura fnica da slaba 1.3.2 Estrutura fnica da palavra 1.3.2.1 Estrutura mais usual 1.3.2.2 Tonicidade 1.3.2.2.1 Natureza do acento fnico 1.3.2.2.2 Palavras tnicas e tonas 1.3.2.2.3 Lugar da slaba tnica dentro da palavra 1.3.3 Grupo tnico 1.3.3.1 Prclise e nclise 1.3.3.2 Elises 1.3.4 Entoao

    2. Escrita

    II. ANLISE DO DISCURSO 3. Conversa, texto, frase, sintagma, palavra

    III. ESPCIES DE PALAVRAS: PALAVRAS LEXEMTICAS 4. Sintagma verbal e verbo

    5. Sintagma adverbial e advrbio

    6. Sintagma substantival e substantivo

    7. Sintagma adjetival e adjetivo

    IV. ESPCIES DE PALAVRAS: PALAVRAS CATEGOREMTICAS 8. Quantificadores

    9. Seletores

    10. Situadores

    V. ESPCIES DE PALAVRAS: PALAVRAS MORFEMTICAS

  • 12. Subordinadores de oraes

    13. Conjunes coordenativas

    14. Preposies

    15. Conjunes subordinativas

    VI. ESPCIES DE PALAVRAS: INTERJEIES 16. Interjeies

    VII. SINTAXE

    17. Negao e palavras de negao

    18. Interrogao e palavras interrogativas

    19. Ordem dos elementos da frase

    VIII. FORMAO DE PALAVRAS

    20. Formao de palavras

  • 0. Introduo

    0.1 Finalidade

    semelhana do nosso Dicionrio do crioulo da ilha de Santiago (Cabo Verde) (Brser et al. 2002), esta gramtica visa dois grupos de destinatrios.

    Visa, por um lado, os prprios caboverdianos, especialmente os habitantes da ilha de Santiago, que, nos mbitos da litera-tura, dos meios de comunicao, da administrao e da educao, lidam diariamente com o crioulo. Esperamos, por exemplo, que esta gramtica possa servir de ponto de partida elaborao de materiais didticos para o ensino da e na lngua materna.

    Por outro lado, esta gramtica visa tambm os linguistas que, um pouco por todo o mundo, se ocupam das lnguas que devem a sua existncia a um processo de crioulizao, com des-taque para aqueles que estudam os crioulos de base portugue-sa.

    Ambos os grupos necessitam de uma informao abrangente e fidedigna. No entanto, tm conhecimentos e dvidas espe-cficas e precisam, por conseguinte, de informaes em parte diferentes. Pedimos ao utilizador da gramtica que tome este aspeto em considerao, caso se impaciente ao ver-se confron-tado com informaes aparentemente suprfluas.

    0.2 Caractersticas

    0.2.1 Estado atual da lngua

    O autor desta gramtica interessa-se vivamente pela criou-lizao do portugus em Santiago e pela histria do crioulo santiaguense. Contudo, o que aqui prope uma gramtica es-tritamente sincrnica do estado atual do crioulo de Santiago, ignorando propositadamente a sua histria. A razo para este facto a seguinte: uma interpretao do funcionamento atual da lngua a partir da sua histria facilmente nos levaria a deixarmos passar despercebidos factos do crioulo atual e/ou

  • no facilmente explicveis a partir desses antecedentes hist-ricos. Tais omisses mutilariam a prpria histria que se pre-tende honrar, pelo que melhor seguir a ordem contrria: um bom conhecimento do funcionamento atual da lngua, no distor-cido por preconceitos inspirados pela histria, uma das con-dies prvias para, no futuro, se poder enfrentar com possi-bilidade de xito a reconstruo da histria da lngua. Apenas falaremos de formas modernas e formas mais antigas de uma ex-presso, quando a sua convivncia no crioulo santiaguense atual o justificar.

    0.2.2 Que variedade do crioulo de Santiago?

    A ilha de Santiago tem apenas 55 Km de comprimento, 29 Km de largura, e uma superfcie de 991 km2. Apesar disso, apresenta uma considervel variao lingustica interna. Tivemos, pois, de escolher uma variedade particularmente representati-va. Tentmos fazer das fraquezas foras, ao escolher como pon-to de referncia o crioulo de Andr dos Reis Santos, que duran-te seis anos colaborou, em Erlangen, na elaborao do nosso Dicionrio. Tudo aquilo que lhe era familiar foi aceite sem re-serva; o que lhe era pouco familiar ou desconhecia por completo apenas foi aceite aps confirmao por um nmero suficiente de outras fontes.

    Nascido em 1964 em Joo Teves dos rgos (Concelho de Santa Cruz), Andr dos Reis Santos viveu nessa localidade at idade de treze anos. Em 1977 entrou para o seminrio, na Praia, ci-dade onde tambm frequentou o liceu. Mais tarde, obteve na Escola de Formao de Professores uma licenciatura em Estudos Caboverdianos e Portugueses, apadrinhada pela Universidade de Lisboa, antes de se juntar, em fevereiro de 1994, ao grupo de trabalho de Erlangen (Alemanha), cidade onde atualmente conti-nua a residir.

    A localidade de Joo Teves est situada junto estrada principal que atravessa a ilha da extremidade sudeste, onde est a capital, Praia, at extremidade noroeste, onde se encontra a estao balnear do Tarrafal. Se comearmos na Praia a viagem pela ilha montanhosa, chegamos a Joo Teves aps cerca

  • de 25 Km. Aproximadamente 15 Km mais adiante encontramos a As-somada, uma importante vila comercial no planalto central da ilha. Contando com, sensivelmente, dois mil habitantes, Joo Teves, embora nitidamente rural, no de forma alguma remota ou provinciana. Em consequncia, o crioulo que Andr dos Reis Santos fala um crioulo que no chamar a ateno nem na capital, nem no interior da ilha. H povoaes mais remotas (por exemplo, no Concelho de Santa Catarina) onde se fala um crioulo m ui to mais fundo, arcaico e regionalmente circun-scrito, enquanto que na Praia existe uma burguesia urbana que fala um crioulo leve, muito mais influenciado pelo portu-gus da vida pblica. Entre estes dois extremos, o crioulo de Andr dos Reis Santos ocupa uma posio intermdia, neutra.

    0.2.3 Fontes de informao

    As fontes de informao nas quais se baseia esta gramtica continuam a ser as utilizadas na elaborao do nosso Dicio-nrio, complementadas por algumas publicaes mais recentes. De facto, nenhum falante conhece toda a sua lngua. Esta afirmao vale no s em relao ao conjunto das variedades da lngua histrica que fala, mas at mesmo relativamente variedade des-sa lngua que mais usa. Para alm disso, nenhum informante con-segue, mesmo sendo bom linguista, sentar-se simplesmente a uma me-sa e descrever a prpria lngua. Como tal, foi foroso compilar um corpus lingustico tematicamente diferenciado e complet-lo, posteriormente, com a ajuda de Andr dos Reis Santos.

    As fontes que foram sistematicamente analisadas pertencem, sem exceo, ao discurso oral e dividem-se em trs tipos: gra-vaes (31 entrevistas efetuadas pelo autor e colaboradores desta gramtica, nomeadamente Andr dos Reis Santos e Maria do Carmo Massoni), transcries levadas a cabo por Andr dos Reis Santos (44 das anedotas de Nastsi Lpi disponveis em cas-sete), e material j transcrito e publicado por outros auto-res (os mais de 100 contos tradicionais transcritos na sua maioria por professores e editados por Tom Varela da Silva sob o ttulo Na bka noti, Vulumi-I, Sigundu Idison, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, Praia 2004, e os contos de Un bes tinha Nhu Lobu ku Xibinhu e de Karlus Magnu di Pasaji pa Kabu Verdi, organizados e coordinados por Humberto Lima e

  • publicados, nos anos 2000 e 2005 respetivamente, pelo Institu-to Nacional de Investigao Cultural, na Praia, que em 2005 tinha passado a Instituto da Investigao e Patrimnio Cultu-rais). Apenas esporadicamente foram consultadas outras fontes. o caso de quatro longos contos populares assentes por Luzia Semedo e de alguns textos literrios, como por exemplo as mais de duzentas pginas do romance Odju d'agu, de Manuel Veiga (2a edio, Praia: Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro 2009, primeira ed. de 1986), os contos de Natal y kontus, de Tom Varela da Silva (Praia: Instituto Caboverdiano do Livro 1986) e os de Lagoa Gmia, de Danny Spnola, publicados pela primeira vez em 2004.

    Cientes de que, no seu estado atual, esta gramtica est ainda longe de responder a todas as perguntas que lhe podem di-rigir os intelectuais caboverdianos e os crioulistas do mundo, convidamos todos os falantes e investigadores do crioulo de Santiago a contriburem para o seu aperfeioamento advertindo-nos sobre possveis erros ou lacunas. Esforar-nos-emos por le-var em conta tais advertncias numa eventual reviso.

    0.2.4 Uma gramtica abrangente

    Como j dissemos no prefcio ao nosso Dicionrio, no que diz respeito extenso do seu vocabulrio e da sua gramtica, no h lnguas pequenas. Como tal, no correto continuar a tratar as lnguas que so pequenas em termos do nmero de falantes, como o caso da generalidade das lnguas crioulas, como sendo lnguas inferiores em termos lexicogrficos ou gra-maticais. Eis uma das razes pela qual desejmos que esta gramtica fosse muito mais abrangente que qualquer das suas antecessoras. Outro aspecto que a distingue destas a vasta quantidade de frases exemplificativas (fornecidas, sem exce-o, por falantes de crioulo) das afirmaes que contm. A re-flexo que nos levou a proceder desta forma foi a seguinte: por vezes, os exemplos, quando suficientemente numerosos, po-dem compensar, at certo ponto, lacunas ou deficincias na descrio.

  • 0.2.5 Bases tericas

    As bases tericas subjacentes nossa gramtica so, alm, evidentemente, da multissecular tradio gramatogrfica oci-dental, um estruturalismo esclarecido de cunho europeu e a re-cente corrente de pragmtica lingustica, que inclui a teoria dos atos de fala.

    Quanto ao estruturalismo, isto significa, em primeiro lu-gar, elevar a funo comunicativa a critrio para a distino entre o que so meras variantes (por ex. alofones, alomorfes, etc.) daquilo que so unidades lingusticas (por ex. fonemas, morfemas) distintas. Significa tambm admitir que as unidades lingusticas formam oposies diretas ou indiretas e que as diretas so muitas vezes de carcter inclusivo, isto , opem um membro marcado a outro no marcado que pode, em determina-das circunstncias, aparecer em lugar do marcado. Assim, por exemplo, no nos surpreender observar que, em muitos dos con-textos onde a 'imperfetividade' do processo no interessa ou resulta claramente do contexto, a partcula verbal ta do san-tiaguense, que indica precisamente 'imperfectividade', no aparea (cf. 4.3.3). De facto, a oposio entre knta e ta knta no entre 'perfetividade' e 'imperfetividade', mas uma oposio inclusiva entre uma forma verbal morfolgica e seman-ticamente no marcada e outra marcada para a 'imperfetividade. A 'perfetividade' no mais do que a leitura revelia da forma no marcada:

    A oposio inclusiva faz parte daqueles princpios econ-micos da organizao lingustica que nos permitem, em muitos casos, no especificar mais do estritamente necessrio.

    Em conformidade com a nossa opo terica, a perspetiva adotada ser geralmente semasiolgica e no onomasiolgica. Quer dizer que partiremos dos morfemas gramaticais da lngua, aclarando qual a sua funo (o seu 'significado'), quais os

    knta ta knta

  • seus usos mais comuns e os correspondentes 'efeitos de senti-do'. A razo que nos leva a proceder desta forma que o nme-ro destes morfemas e os limites entre os seus significados va-riam de uma lngua para outra, pelo que adotar a perspetiva inversa, a onomasiolgica, implicaria partir no de significa-dos lingsticos, mas de efeitos semnticos contextuais. Ora bem, o nmero destes efeitos contextuais , em princpio, in-finito.

    Na seco 4.3.3, diremos, por exemplo, que a partcula verbal ta significa ou marca 'imperfetividade' e que tal si-gnificado a habilita para a designao de processos futuros, presentes e passados, processos em progresso, processos habi-tuais e hipotticos, etc., segundo os contextos lingusticos e situacionais onde o verbo precedido da marca ta se insira. Isto , ta no apresenta um caso de homonmia. 'Futuro', 'pro-gressividade', 'habitualidade' etc. so apenas efeitos semn-ticos contextuais das formas verbais imperfetivadas.

    Se, pelo contrrio, inclussemos um captulo intitulado 'futuro' para nele dizer que o futuro se forma antepondo a partcula ta ao verbo, daramos azo a uma dupla confuso. O leitor poderia pensar que o crioulo de Santiago tem um futuro morfolgico imagem das lnguas europeias, sendo precisamente a ausncia de tal futuro uma das caractersticas mais notveis do crioulo santiaguense. Para alm disso, o leitor ficaria desorientado quando noutro captulo, intitulado Habitualis, aprendesse que o habitualis se forma do mesmo modo que o 'fu-turo'. Outro exemplo: ajuda realmente aprender que o santiaguense oferece quatro possibilidades para 'realizar' o 'condicional': ta + verbo, verbo + ba, ta + verbo + ba e l + verbo + ba (cf. Thiele 1991: 62)? Se no ajuda, ser porque no santiaguense no h condicional e os seus falantes no 'formam o condicional'. Regra geral, a inutilidade didtica de uma descrio do funcionamento sincrnico de uma lngua indcio da sua desadequao terica.

    A nossa posio no exclui a possibilidade de dois ou at mais significados diferentes corresponderem a um significante, isto , no nega que existam casos de homonmia. forma pro-cltica do pronome pessoal tono da terceira pessoa do singu-lar e forma no marcada do verbo cpula, por exemplo, cor-

  • responde em santiaguense o mesmo significante e e no h moti-vos para pensar que, na realidade, se trata de uma forma com um nico significado. O mesmo vale para o significante kntu ao qual correspondem dois significados completamente diferen-tes, aproximadamente 'quando' e 'quaqnto', etc. Mas no caso de ta no h motivos para supor a existncia de dois ta, um ta de 'futuro' e outro de 'habitual', pois evidente que o que ain-da no comeou, a fortiori ainda no acabou, sendo, portanto, 'imperfeito' no sentido etimolgico da palavra. E evidente que o que se faz habitualmente ainda no acabou de se fazer, sob pena de ter deixado de ser hbito. Resulta, pois, que, no crioulo de Santiago, 'futuro' e 'habitualis' so apenas leitu-ras da 'imperfetividade' em contextos onde se fala do futuro ou do que habitual. Sem tal contexto, E ta knta expressa 'imperfetividade' sem precisar se se trata de uma ao futura ou habitual.

    Quem defende que os significados dos instrumentos gramati-cais de uma lngua so imprecisos ou que o nmero dos seus significados que infinito, e no o nmero dos seus possveis efeitos de sentido, ter de nos explicar como os locutores conseguem desambiguar as suas mensagens usando tais significa-dos.

    Por sua vez, a pragmtica ensina-nos, por exemplo, que as frases servem para realizar atos de fala e que elas prprias constituem textos (que, muitas vezes, fazem parte de outros textos mais vastos). Ao construir frases no atendemos pois apenas sua funo descritiva (dando-lhes uma 'estrutura re-presentativa'), mas tambm sua funo interpessoal e textual (dando-lhes uma 'estrutura modal', que aponta para o ato de fala que pretendemos realizar, e uma 'estrututa temtica' ou 'textual', destinada a facilitar a sua receo pelo interlocu-tor). Isto faz com que tenhamos de contar, numa frase, no s com os elementos conhecidos da gramtica tradicional, isto , com expresses nominais (os chamados 'complementos actan-ciais') que designam as 'coisas' implicadas, com uma expresso que designa o comportamento destas 'coisas' ou a relao entre elas (o chamado 'sintagma verbal') e com expresses que situam todo o estado de coisas no espao, no tempo e em relao s modalidades para ele concebveis (os chamados 'complementos

  • circunstancias'). Temos de contar ainda com estratgias (in-verses, deslocaes, etc.) e expresses (partculas, pala-vras, grupos de palavras) que precisam o tipo de ato que pre-tendemos executar (pergunta, pedido, ordem, suposio, afirma-o, juramento, oferta, etc.), o seu tema ou tpico e a sua relao com os atos precedentes (objeo, rectificao, resu-mo, etc.) ou subsequentes (introduo, antecipao, etc.).

    No desvalorizamos fatos descobertos por defensores da chamada gramtica gerativa, mas rejeitamos as bases tericas dessa corrente por consider-las inadequadas ao objeto da lin-gustica. Contamos, evidentemente, como os defensores dessa corrente, com a existncia de princpios universais de estru-turao do discurso, mas os nossos no so os da gramtica ge-rativa. Alguns exemplos ajudaro a compreender a nossa posi-o.

    No decurso de uma palestra a que assistimos sobre aquisi-o de primeira lngua por crianas, a conferencista confron-tou os ouvintes com a gravao de um texto numa lngua extica que ningum dos presentes dominava, pedindo-lhes que tentassem acertar no nmero de frases contido pelo texto. Aps vrias audies, uns disseram trs, outros quatro. A ningum ocorrera perguntar se os textos da lngua em questo continham ou no frases. Ora bem, os linguistas continuam a procurar uma defi-nio universalmente aceite do conceito de 'frase' e muitas vezes nem concordam na delimitao de frases em textos concre-tos. Apesar disto, no podemos imaginar um falar numa lngua qualquer que no consistisse, pelo menos em parte, em tomadas de posio ante 'proposies', isto , em afirmar, negar, exi-gir, prometer, pr em dvida, etc. a existncia de determina-dos estados, eventos, aes. E sabemos que esta necessidade tem qualquer coisa que ver com o conceito intuitivo de 'fra-se'. A frase, no sentido que acabamos de precisar , pois, um universal lingustico.

    ainda um universal lingustico o que nos permite atri-buir a uma frase do tipo O Joo pinta a mulher diante da jane-la pelo menos trs significados, segundo os contextos em que ocorrer. De facto, o que se situa diante da janela pode ser o Joo, a mulher ou o estado de coisas 'O Joo pinta a mulher'. Isto porque o homem comum sabe de forma intuitiva que um sin-

  • tagma com possibilidade de situar algo pode situar, pelo me-nos, uma das vrias 'coisas' (aqui pessoas) que participam no 'estado de coisas' ou todo o 'estado de coisas'.

    O nosso saber lingustico universal pois fundamental pa-ra o funcionamento das lnguas: se no procurssemos frases no que ouvimos, no poderiamos identificar os atos de fala que o falante pretende executar. E se no soubssemos que existem as referidas alternativas de interpretao, no seramos capaz de elegir a que concorda com o respetivo contexto situacional e/ ou lingustico. Seramos, portanto, incapazes de entender.

    Pelo contrrio, no h, por exemplo, nenhuma necessidade de admitir que todas as lnguas tenham de ser basicamente 'pro -drop' ou no. Porque no usaria uma lngua pronomes de sujei-to tonos nuns contextos e noutros no? E porque se trataria de um 'dropping' nos contextos onde no usa os pronomes? Tra-ta-se de duas generalizaes gratuitas: primeiro porque eleva indevidamente a prottipos das restantes as lnguas que os usam quase sempre ou as lnguas que quase nunca os usam.; se-gundo porque postula um 'dropping' onde no h necessidade de o fazer. Quanta bibliografia sobre a questo de saber por que razo esta ou aquela lngua neste ou naquele momento da sua histria no se encaixa perfeitamente num dos dois prottipos ou passa, supostamente, de um a para o outro! Isto no equiva-le a negar que muitos destes trabalhos tm o mrito de enume-rarem de forma bastante exaustiva os casos onde aparece o pronome sujeito e os casos onde este no aparece.

    0.3 Predecessores

    No queremos encerrar esta introduo sem passar revista s descries mais ou menos abrangentes do crioulo de Santiago que apareceram durante os primeiros cem anos desde o trabalho pioneiro de Fransisco Adolfo Coelho (1880). Temos dois motivos para o fazer. Por um lado, todos estes trabalhos contriburam para uma crescente valorizao do crioulo caboverdiano (cf. Veiga 2006) sem a qual a nossa gramtica no encontraria lei-tores. Por outro lado, no teremos mais ocasio, salvo conta-das excees, de voltar a estas obras meritrias porque a qua-

  • lidade da informao que fornecem costuma ser inferior das obras que apareceram depois de 1980.

    Na nossa sucinta histria da gramatogafia do santiaguense, notaremos a incidncia dos grandes movimentos intelectuais, sociais e polticos que marcaram aqueles cem anos, movimentos para os quais as obras em questo contriburam elas mesmas, ainda que modestamente: sonhos de imperialismo colonial, toma-da de conscincia de uma individualidade cabo-verdiana, desco-lonizao, independncia. Mencionemos de passagem que as mais antigas destas obras fornecem por vezes informaes sobre es-tados de lngua ultrapassados, possibilitando desta forma uma reconstruo pelo menos parcial da histria do santiaguense, e que noutros casos, descobertas mais recentes reabilitam obser-vaes dos nossos predecessores que tiveram de resultar mais ou menos incompreensveis aos seus contemporneos.

    0.3.1 Francisco Adolfo Coelho (1880)

    Com o seu ensaio Os Dialectos Romnicos ou Neo-Latinos na frica, sia e Amrica, publicado no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, em volume que corresponde ao ano de 1880, Francisco Adolfo Coelho (1847-1919) abriu, para Portugal, um decnio de intenso estudo de variedades coloniais e crioulos romnicos, com destaque para os crioulos de base portuguesa. Ao ensaio de 1880 seguir-se-o ainda, na mesma revista, umas Notas Complementares e Novas Notas Complementares, em volumes que correspondem aos anos de 1882 e de 1886. Na introduo ao ensaio de 1880, Coelho menciona um "estudo que publicamos" do dialecto crioulo de Santo Anto, baseado em materiais forneci-dos por um falante nativo daquela ilha, Cesr Augusto de S Nogueira, e anuncia uma "Gramtica e vocabulrio do indo-por-tugus", baseada em materiais fornecidos pelo seu amigo, o rev. R. H. Moreton (cf. 1880, 1967: 3/4). No conseguimos ob-ter mais informaes respeitantes a estes dois trabalhos.

    sabido que arrancam do ano de 1881 as publicaes de Hu-go Schuchardt sobre os crioulos, e precisamente com uma rese-nha, na Zeitschrift fr romanische Philologie, da tude sur le patois crole mauricien de C. Baissac e dos Dialectos Romni-

  • cos ou Neo-Latinos de Coelho. Coelho, que dominava o alemo, trocou cartas com Schuchardt e leu artigos do linguista de Graz. As motivaes dos dois linguistas para se debruarem so-bre os crioulos no foram, porm, exatamente as mesmas. No h dvida de que Coelho estava vivamente interessado nos poss-veis contributos dos estudos crioulos para a lingustica ge-ral. As suas Consideraes Gerais no final do ensaio de 1880 do ampla prova dessas preocupaes (cf. 1880, 1967: 94-108 e Andrade/Kihm 1997). Mas se tal foi o interesse quase exclusivo de Schuchardt, o mesmo no vale para Coelho.

    Convm lembrar que foi no decnio dos anos oitenta do s-culo XIX que os sonhos coloniais de Portugal de compensar a perda do Brasil com novas aquisies na sia e na frica atin-giram o seu apogeu - para logo cair em runas com o ultimatum ingls de 1890. Coelho queria contribuir, como linguista, para a realizao destes sonhos. Em 1887 assinou, junto com outros, um projecto de Curso Colonial Portugus, reeditado em 1890, junto com o projeto ainda mais ambicioso para a criao de um Instituto Oriental e Ultramarino Portugus de Guilherme de Vasconcelos-Abreu (cf. Morais-Barbosa 1967: XIII-XVII). Estes projetos previam o ensino de lnguas faladas nas colnias por-tuguesas, nas respetivas instituies, e o segundo at o dos crioulos portugueses falados na frica e na ndia. Coelho contava certamente com a possibilidade de um dia ensinar numa instituio deste tipo. Parece sintomtica a sua insistncia, em 1887/1888, ao apresentar os trabalhos de Botelho da Costa/ Duarte e de Paula Brito no Boletim, no seu papel de pioneiro no domnio dos estudos crioulos. E no nos parece menos sinto-mtica a sua desistncia destes estudos a partir de 1890.

    Os complementos de 1882 e 1886 no ampliam as importantes informaes acerca do crioulo de Santiago que abrem o artigo de 1880. Naquele artigo, Coelho d primeiro trs cartas redi-gidas por "pessoas instrudas que falam bem o portugus, mas conhecem bem o crioulo rachado" (1880/1967: 5). Seguem Frases diversas (que terminam tambm com recortes de cartas), Adivi-nhaes, Observaes fonticas, Observaes morfolgicas, Observaes lexicolgicas, uma lista de Nomes hipocorsticos ou nomes de casa e, finalmente, outra carta, ditada "por uma negra de Santiago" (1880/1967: 32).

  • No sabemos at que ponto os trs tipos de Observaes so efetivamente da autoria de Coelho, pois ele mesmo fala do "pa-radigma [verbal] que nos enviou o nosso informador" (1880,1967: 15). Este paradigma (cf. 1880, 1967: 18/19) est cheio de erros. Cf. por ex.

    Perfeito composto Eu ten sido Eu tenho sido Bu ten sido Tu tens sido l, ten sido Ele tem sido Nos, nu ten sido Ns temos sido s tn sido Eles tm sido

    em vez de In ten sido (ou: Mi in ten sido) Bu ten sido (ou: Bo bu ten sido) ten sido (ou: l ten sido) etc.

    tudo isto admitindo que formas em ten sido fossem efeti-vamente crioulas. As Observaes no servem, pois, para uma descrio fidedigna do crioulo de Santiago atual, e nem sequer para uma do estado em que se encontrava este crioulo cerca de 1880. Devidamente interpretadas, as frasas soltas e os textos fornecidos por Coelho podem, pelo contrrio, ser aproveitados, em combinao com as informaes de Paula Brito, para a recon-struo de traos lingusticos ultrapassados do santiaguense.

    0.3.2 Joaquim Vieira Botelho da Costa e Custdio Jos Duarte (1886)

    No mesmo ano 1886 do Boletim em cujo n 12 apareceriam as Novas Notas Complementares de Coelho, aparecera anteriormente, no n 6, O Crioulo de Cabo Verde. Breves estudos sobre o crioulo das ilhas de Cabo Verde oferecidos ao Dr. Hugo Schu-chardt, da autoria de Joaquim Vieira Botelho da Costa (1824-1898) e Custdio Jos Duarte (1841-1893). Uma verso manuscri-ta destes estudos j chegara s mos de Schuchardt no ms de

  • Julho de 1884 (cf. Schuchardt 1887: 134), o qual s depois da impresso dos Breves estudos se decidiu a publicar a sua rese-nha no Literaturblatt fr germanische und romanische Philolo-gie 8 (1887), 131-142. Ambos os autores eram nativos de Portu-gal, mas morreriam em So Vicente, Cabo Verde, depois de longa estadia no arquiplago, o primeiro como director da alfndega e como mdico-poeta o segundo. Podemos consider-los cabo-ver-dianos por opo. Ambos eram homens de pluma. Botelho de Costa escreveu relatrios ao que parece altamente apreciados pelos seus superiores e publicara j um ensaio intitulado A ilha do Fogo de Cabo Verde e o seu Vulco. Duarte, alm de poesias pu-blicara j um tratado sobre a Responsabilidade Mdico-Cirrgi-ca (1865). As suas funes tero levado os dois homens a co-nhecer muitas das ilhas habitadas do arquiplago. Botelho da Costa vivera alguns anos no Fogo, terra natal da sua mulher, Ana Barbosa. muito provvel que Botelho da Costa e Duarte sejam aqueles amigos de Antnio de Paula Brito, a quem, segun-do Brito, Schuchardt e outros tinham pedido elementos para a composio de uma gramtica do crioulo (ver mais adiante).

    Pode ter sido um pedido de Schuchardt, que j dispunha de bastantes informaes sobre a variedade de Santiago, que levou os dois autores a quererem abarcar simultaneamente as varieda-des de todas as ilhas, para satisfazer a curiosidade do lin-guista de Graz. Isto apesar de terem conscincia das "diferen-as que se notam embora o tronco seja comum nos dialectos de cada uma delas" (1886/1967: 237). Convm, porm, lembrar que o trabalho de Botelho da Costa e de Duarte anterior toma de conscincia do pblico em geral (e de muitos linguis-tas) do facto que no s os significantes, mas tambm os significados variam de um idioma para outro, razo pela qual o tratamento dos elementos de variedades diferentes no mesmo apartado, como se fossem equivalentes, leva necessariamente a confuso. Coelho intura-o e, consequentemente, informara se-paradamente sobre as diferentes variedades insulares nos seus Dialectos Romnicos ou Neo-Latinos e elogiaria depois Paula Brito por se ter concentrado na variedade de Santiago. De fac-to, a infeliz deciso dos dois cidados do Mindelo torna o seu trabalho muito problemtico.

    O sistema adotado para tratar simultaneamente de todas as

  • variedades foi o seguinte: "Para facilitar este estudo, e evi-tar repeties enfadonhas, usaremos, a fim de designar o gru-po, ou as ilhas a que pertencem os exemplos apresentados, das seguintes abreviaturas: Grupo de Sotavento Sot., Grupo de Barlavento Barl., Ilha de Santiago St., Ilha do Fogo F., Ilha Brava B., Ilha de Santo Anto S.A., Ilha de S. Nicolau S.N., Ilha da Boa Vista B.V. Os exemplos onde as mesmas no figuram so gerais a todo o arquiplago" (1886/ 1967: 239). Uma primeira sondagem limitada aos exemplos atri-budos ao Fogo e a Santiago nos leva a supor que estes refle-tem bastante fielmente as caractersticas das variedades da-quelas ilhas na poca em questo.

    Interessantssima, para ns, a seguinte observao justi-ficativa da ausncia de quatro ilhas habitadas, da lista de abreviaturas: "Nas ilhas do Maio, S. Vicente, Santa Lucia e Sal no h crioulo prprio. Na primeira fala-se, com ligeiras alteraes, o da ilha de Santiago; na segunda o de todas as ilhas; na terceira o de S. Nicolau, na quarta e ltima o da Boa Vista" (1886/1967: 239). No temos motivos para duvidar de que, tendencialmente, fosse efetivamente assim, naquela poca.

    Note-se que os dois autores, ao contrrio do que acontece com Francisco Adolfo Coelho, esto realmente familiarizados com o uso das formas. Ser suficiente, para o demonstrar, a contraposio do que dizem este e aqueles sobre o uso de tn e tn:

    Coelho 1880/1967: 20: "Ten (ter). No presente de indicati-vo tn para todas as pessoas no paradigma escrito pelo nosso informador; mas nas cartas 2.a e 3.a h tn como forma funda-mental, ". Botelho da Costa/Duarte 1886/1967: 272: "O verbo ter, quando se refere a coisa alheia, ou que esteja em lugar determinado, diz-se tn e no tn; exemplos: El qui tn brinco di nha 'ela que tem os seus brincos', El tn di-nhro rib'al meza (F.) 'ele tem o dinheiro em cima da mesa.'" provvel que informaes tiradas de outras fontes venham a aumentar a nossa admirao pelo acervo de informaes corretas reunido pelos dois portugueses naturalizados cabo-verdianos.

    O trabalho de Botelho da Costa e Duarte termina com uma coleo de textos: a incluso das utilssimas verses da Par-bola do filho prdigo em todas as variedades insulares tidas

  • em conta responde a um pedido explcito de Schuchardt (cf. Schuchardt 1887: 134); as listas de Diversos anexins usados em Cabo Verde e de Idiotismos so menos teis para o linguista por ficar sem indicao da sua provenincia geogrfica.

    0.3.3 Antnio de Paula Brito (1887)

    No mesmo decnio apareceram ainda, tambm no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, em volume que corresponde ao ano de 1887, mas que apenas saiu em 1888, os Apontamentos para a Gramtica do Crioulo que se Fala na Ilha de Santiago de Cabo Verde, de Antnio de Paula Brito. No seu Prefcio a esta obra, Coelho apresenta-nos o seu autor como sendo falante deste crioulo desde a sua infncia (1887/1967: 333). Em 1890, Paula Brito, naquela altura 'director do correio e recebedor parti-cular do Concelho da Praia', publicou ainda uns Subsdios para a corografia da Ilha de So Tiago de Cabo Verde (Lisboa: Im-prensa Nacional), nos quais se mostra cabo-verdiano muito com-prometido com o progresso da colnia e anuncia um Album cabo-verdiano, de caractersticas similares s dos Subsdios, que devia abranger todo o arquiplago, mas que nunca apareceu.

    Em misso de servio em Lisboa, Paula Brito ainda introdu-ziu, na sua gramtica, importantes modificaes que lhe foram sugeridas por dois dos mais afamados linguistas portugueses do momento, Francisco Adolfo Coelho e A. R. Gonalves Viana. En-tretanto, Brito tinha tambm tomado conhecimento das contri-buies publicadas por Coelho (em 1880 e 1882) e por Botelo da Costa e Duarte (em 1886) no Boletim. Parece que estas modifi-caes consistissem fundamentalmente no acrscimo de um con-junto de textos sob o ttulo de Variedades crioulas ao final da gramtica e de notas de rodap que a acompanham. Concorda com esta observao o facto de os comentrios s Variedades Crioulas e todas as notas acrescentadas ao p das pginas terem ficado sem verso crioula (cf. os prargrafos seguin-tes).

    O crioulo de Santiago no fica reduzido, nesta gramtica, ao papel de lngua descrita, funciona ainda como lngua de descrio, pois a gramtica propriamente dita (com exceo das

  • notas e dos comentrios s Variedades Crioulas redigidos ex-clusivamente em portugus) aparece em verso bilingue, crioula na coluna da esquerda e portuguesa na da direita.

    Falta, nesta gramtica, uma parte sintctica que o autor se propunha acrescentar depois de recolher textos de falantes monolingues do crioulo em diferentes pontos da ilha. Por outro lado, fornece, alm da gramtica propriamente dita, as mencio-nadas Variedades Crioulas que consistem numa lista de nomes de casa, uma coleo de ditos populares, uma poesia de E.A. Vidal e outra de Bruno de Seabra em verso original e com traduo para o crioulo feita por Paula Brito, alguns fragmentos de textos de batuque, uma coleo de adivinhaes, uma centena de frases soltas, e um vocabulrio de algumas pginas. Parece provvel que parte destas rubricas se inspire nOs dialectos Romnicos ... de Francisco Adolfo Coelho, que, como j vimos, tambm trazem Frases diversas, Adivinhaes e Nomes hiporsti-cos ou nomes de casa de Santiago.

    Ficam por extrair informaes muito valiosas dessa primei-ra gramtica do crioulo de Santiago, apesar das incoerncias do texto e apesar do estudo que j lhe consagrou Nicolas Quint (Quint 2008). Derivam, em primeiro lugar, da originalssima escrita que Paula Brito inventou para o seu crioulo. Refletin-do uma tima intuio fonolgica, no deturpada por preconcei-tos tericos moda, fornece argumentos de peso para as con-trovrsias acerca da fonologia do crioulo de Santiago. Invoc-la-emos com este fim em 10.1.3.2. Em segundo lugar, encontra-mos no crioulo escrito e/ou descrito por Paula Brito desvios sistemticos em relao ao santiaguense atual que informam sobre o estado deste crioulo h quase sculo e meio (cf. 1.2.2.7.1).

    0.3.4 Armando Napoleo Rodrigues Fernandes (anterior a 1938)

    Depois dos trabalhos pioneiros dos anos oitenta do sculo XIX, tanto internacionais (Francisco Adolfo Coelho, Hugo Schu-chardt, Lucien Adam, etc.) como cabo-verdianos (Joaquim Vieira Botelho da Costa e Custdio Jos Duarte, Antnio de Paula Brito), as publicaes sobre os crioulos passaram a escassear

  • escala mundial e cessaram quase por completo em relao ao santiaguense at depois da Segunda Guerra Mundial. Mas falta de publicaes no equivale a falta de interesse. Pelo menos um cabo-verdiano, Armando Napoleo Rodrigues Fernandes, nasci-do na Brava, cuja vida decorreu precisamente nesta poca (1889 -1969), passou boa parte do seu tempo livre (trabalhou - como Botelo da Costa - na alfndega) a reunir materiais para um di-cionrio e uma gramtica do cabo-verdiano. Quem escreve conhe-ce relativamente bem o seu Lxico do dialecto crioulo do Ar-quiplago de Cabo Verde, publicada pela filha Ivone Aida Lopes Rodrigues Fernandes Ramos (Grfica do Mindelo, s.a., mas em 1971), mas deve todas as informaes a respeito da vida e da gramtica (at hoje sem publicar) de Napoleo Fernandes a uma contribuio, tambm sem publicar, de Dominika Swolkien (cf. Bibliografia).

    Segundo as informaes fornecidas por Dominika Swolkien, o manuscrito da Gramtica de Armando Fernandes consiste em 105 pginas redigidas e retocadas pelo prpio autor at 1938. O manuscrito est dividido em trs partes: fonologia (1-11), morfologia (12-78) e sintaxe (79-105). Se, como afirma Domini-ka Swolkien, a maior parte das informaes desta gramtica diz respeito variedade de Santiago, Armando Fernandes poderia ser o ltimo autor a testemunhar, para esta variedade, a acen-tuao dos verbos na ltima slaba (por exemplo: m brinc cheu, na p. 68). As grafias arguem, farso, etc., em vez das expectveis alguem, falso, etc. sugerem, porm, que se poderia tratar da variedade do Fogo, onde tal acentuao se conserva at hoje. De qualquer forma, esta Gramtica merece um estudo pormenorizado, tanto pelas informaes que nos pode fornecer como pelo seu alto valor simblico.

    0.3.5 Baltasar Lopes da Silva (1957) e Maria Dulce de Oliveira Almada (1961)

    Os ttulos das obras em muitos aspetos gmeas destes dois autores, O Dialecto Crioulo de Cabo Verde de Baltasar Lopes da Silva e Cabo Verde. Contribuio para o estudo do dialecto fa-lado no seu arquiplago, de Maria Dulce de Oliveira Almada,

  • poderiam levar a pensar que constituem, entre outras coisas, importantes achegas ao conhecimento da gramtica do crioulo de Santiago. Limitamo-nos aqui a explicar, para quem nunca as consultou, porque no assim.

    Apesar de ambos os ttulos se referirem a todo o arquip-lago e ambas as obras mencionarem frequentemente particulari-dades das variedades do Sotavento e de Santiago, devido s biografias de seus autores, ambas partem de variedades do Bar-lavento. Trata-se da variedade de So Nicolau, no caso de Bal-tasar Lopes da Silva (cf. 1957/1984: 37) e da variedade de So Vicente, no de Maria Dulce de Oliveira Almada (cf. 1961: 12 e 14).

    Alm disso, no se trata de descries sincrnicas. Ambos os autores, aluno de Rodrigo de S Nogueira na Universidade de Lisboa o primeiro e de Manuel de Paiva Bolo na de Coimbra a segunda, esforam-se sobretudo por derivar as palavras e formas crioulas de palavras e formas do portugus. Em ambas as obras h milhares de ocorrncias do smbolo < usado em lingu-stica histrica para indicar a relao de um som ou de uma forma com o seu antecessor num estado anterior da mesma lngua ou numa 'lngua me' desta. Trata-se pois de gramticas hist-ricas do cabo-verdiano. Mas como tais so forosamente muito incompletas, precisamente por quererem abarcar tambm, mesmo que s de forma secundria, as variedades de todas as outras ilhas.

    impossvel, nestas circunstncias, formar-se uma ideia clara, a partir destas obras, sobre o funcionamento de um se-tor da gramtica do crioulo de Santiago. Baste um exemplo para aclarar o que queremos dizer: nos dois pargrafos consagrados aos pronomes pessoais Baltasar Lopes da Silva distingue entre 'pronomes sujeito' ( 203) e 'pronomes complementos' ( 204), mas no entre pronomes tnicos e tonos, nem, para os tonos, entre proclticos e enclticos. No menciona, para Santiago ou Sotavento a srie tnica com o a- anteposto (ami, abo, ...) e apresenta, supomos que por simples erro, as formas nho e nha do Sotavento, junto com nhos e nhas, como formas de plural.

    Maria Dulce Almada estava consciente de que, pelos dois motivos mencionados, a sua obra no podia aspirar ao ttulo de 'gramtica': "Longe de ns a pretenso de fazer uma gramtica

  • do crioulo, como a subdiviso acima referida [em trs partes: Fontica, Morfologia e Sintaxe, J.L.] poder fazer pensar. Quisemos apenas render uma modesta homenagem s ilhas que so nossa terra natal ..." (1961: 29). Mas no h dvida de que, sob outros pontos de vista, a redao e publicao destas duas obras, num momento em que praticamente todas as colnias euro-peias salvo as portuguesas iam aceder independncia, foi al-tamente significativa.

    0.3.6 Jos G. Herculano de Carvalho e Mary Louise Nunes (1961-1963)

    Entre 1961 e 1963 apareceram trs artigos de temtica e orientao terica afins. Trata-se, por um lado, de uma 'ho-nours thesis' apresentada em 1961 no Radcliffe College and Harvard University e reproduzida sob o ttulo de The phonolo-gies of Cape Verdean dialects of Portuguese (1962/1963), da autoria de Mary Louise Nunes, de descendncia cabo-verdiana, e, por outro lado, de dois ensaios intitulados, respetivamen-te, Sincronia e diacronia nos sistemas voclicos do crioulo caboverdiano (1962) e Le vocalisme atone des parlers croles du Cap Vert (1961), redigidos por um dos melhores linguistas portugueses do momento, Jos G. Herculano de Carvalho, da Uni-versidade de Coimbra.

    O trabalho de Mary Louise Nunes surgiu em parte por insa-tisfao com a obra de Baltasar Lopes: "I found, however, that Mr. da Silva's lack of training in modern descriptive methods constituted an obstacle to his achieving the aim of a scienti-fic description of these dialects. His system of transcribing phonetic features was extremely complex, and, from the point of view of a phonematic analysis, could have been simplified considerably. In addition, his presentation of the data would have been more efficient had it been organized as a series of parallel studies indicating the individual speech characteris-tics of each dialect" (1962/1963: 5).

    Consequentemente, a autora limitou-se a uma descrio ri-gorosamente sincrnica e separada da fonologia de apenas qua-tro variedades: a de Santo Anto, a da Boa Vista, a do Fogo e

  • a da Brava. Nas suas descries, que se baseiam em entrevistas gravadas com falantes nativos, segue um plano rigoroso, que inclui informaes sobre o papel fonolgico do acento, a es-trutura silbica e a distribuio dos fonemas (inclusive uma enumerao dos grupos consonnticos e voclicos encontrados). Nem todas as quatro descries parecem ter a mesma qualidade, mas lamentamos muito que falte uma da variedade santiaguense porque visto o rigor metodolgico da autora poderia ter sido facilmente melhorada caso apresentasse alguns erros de porme-nor. O trabalho de Mary Luise Nunes tem sido injustamente cri-ticado, desde uma posio generativista, por Donaldo Pereira Macedo como "not extensive enough to provide a global view of Capeverdean phonological structures and the rules that govern them" (cf. Macedo 1979: 87 e abaixo seco 0.3.7).

    Jos G. Herculano de Carvalho aproveita os trabalhos de Baltasar Lopes da Silva e Maria Dulce de Oliveira Almada e dispe de dois informantes de Santo Anto que estudavam naque-la altura na Universidade de Coimbra. Ao contrrio de Mary Luise Nunes, trata apenas do vocalismo, mas f-lo em ambos os aspetos, sincrnico e diacrnico. Pretende descrever a filia-o dos sistemas voclicos do Sotavento, So Nicolau e So Vi-cente/Santo Anto. Apesar de todas as suas fontes informarem melhor sobre as variedades do Barlavento, para o Sotavento chega ao mesmo sistema de fonemas voclicos tnicos orais que propomos para Santiago (ver mais adiante 1.2.1.1). Apresenta-o sob a forma seguinte (cf. Carvalho 1962a: 46):

    A salientar a disposio retangular do sistema segundo a

    qual os e abertos ostentam o mesmo grau de abertura

    que o a aberto, e os e e o fechados o mesmo que o

    fechado. Quanto oposio a/ afirma: "O fonema // apa-

    rece apenas na terminao dos verbos correspondentes primei-

    ra conjugao portuguesa - /saRb/ 'salvar', /am/ 'chamar'.

  • etc." (1962a: 46). Esta afirmao no deve ser interpretada como indcio de que a slaba tnica dos verbos em a fosse ainda a ltima, em Santiago, nos tempos de Herculano de Carvalho. Mostra, pelo contrrio, que as suas informaes em relao ao Sotavento provm de facto, no de Santiago (onde 'salvar' e 'chamar' se dizem 'salb e 'com, mas das

    outras ilhas do Sotavento onde tal padro de acentuao se mantm at hoje. Quanto a fonemas voclicos nasais, o linguis-ta de Coimbra s admite a sua existncia em posio final ab-soluta de palavra (cf. mais adiante 1.2.0). No interior das palavras interpreta toda a vogal foneticamente nasal a nvel fonolgico como uma sequncia de vogal oral seguida de um ar-quifonema consonntico nasal homossilbico ou de um fonema consonntico heterossilbico (cf. 1962a: 45). A primeira parte desta interpretao teria muito sucesso. Os que a adotaram estenderam-na alis s vogais foneticamente nasais em final de palavra (cf. de novo mais adiante 1.2.0).

    Em relao ao vocalismo das slabas tonas ser suficiente reproduzir a seguinte passagem: "Dans les syllabes atones le nombre des units phonmatiques se trouve assez rduit. Dans toutes les positions, la finale excepte, on ne trouve que cinq phonmes /I e a o u/, /e/ et /o/ tant raliss comme des

    voyelles ferms [ ], /a/ comme la voyelle centrale ferme []

    So Nicolau, mais, comme nous verrons ensuite, comportant diverses ralisations dans le parler de Santo Anto. Dans la finale, le nombre des phonmes vocaliques est encore rduit trois /i a u/ dans les les dites de Sotavento (Santiago, surtout), o /i u/ ont ce qu'il parat une ralisation g-nralement assourdie" (1962b: 4). Apesar da referncia a So Nicolau e a Santo Anto, tudo o que se diz aqui vale para Santiago. De facto, no se pode resumir melhor a fonologia do vocalismo tono da variedade de Santiago. Contentar-nos-emos mais adiante em matizar ligeiramente a afirmao de Carvalho relativamente ao ensurdecimento dos [-i] e [-u] finais (cf. 1.2.1.5.2).

  • 0.3.7 Donaldo Pereira Macedo (1979)

    Em 1979, Donaldo Pereira Macedo obteve um doutoramento na Boston University School of Education apresentando uma tese intitulada A linguistic approach to the Capeverdean language, reproduzida, em 1980, em Ann Arbor pela University Microfilms International. Depois de uma introduo terica sobre a gnese dos crioulos, dedica a maior parte do seu trabalho anlise fonolgica da 'lngua caboverdeana'. Termina reproduzindo qua-tro textos crioulos.

    Baltasar Lopes da Silva, Maria Dulce de Oliveira Almada e Mary Louise Nunes haviam considerado o crioulo de Cabo Verde como um dialeto ou conjunto de dialetos do portugus. Pelo contrrio, Donaldo Macedo, que escreve numa altura em que Cabo Verde acabava de aceder independncia, insiste sobretudo no estatuto de lngua independente. Talvez fosse tambm a ideia de unidade nacional que levou o nosso autor a cometer novamen-te a imprudncia de querer abranger todo o cabo-verdiano numa s descrio (distinguindo apenas nalgumas partes da sua obra entre Barlavento e Sotavento).

    Comea o pargrafo 2.2.1 Vowels com estas palavras: "There are a total of six basic oral vowels and a series of allopho-nic variations in the Capeverdean language. All of these vo-wels have a nasal counterpart" (88). Se a primeira destas afirmaes fosse correta, a variedade de Santiago no faria parte do caboverdiano, pois tem oito 'basic oral vowels', das quais s trs podem ser tendencialmente equiparadas com os /i/, /u/ e /a/ de Macedo. certo que o autor tenta, at certo ponto, levar em conta a variao dentro do arquiplago, opon-do, especialmente no captulo Phonological Rules, Barlavento a Sotavento. O captulo trata de regras do tipo: "/kume/ 'to eat' in Sotavento is realized as /kme/ in Barlavento" (1979: 130).

    No vamos entrar na problemtica de tais regras. Bastar dizer que Macedo, nascido na ilha de Brava mas cedo levado pa-ra Boston pelos pais, no tinha uma ideia clara da variao entre ilhas. Chega a apresentar um texto em crioulo de Santo Anto, extrado de Negrume, de Lus Romano, como representati-vo do crioulo de So Vicente (cf. 1979: 183). Esta falta de

  • clareza em Macedo talvez provenha do facto de as diferenas entre as diferentes variedades insulares tenderem a perder-se na comunidade cabo-verdiana de Boston. Em caso de dvida, Ma-cedo ter optado pelo seu prprio crioulo (cf. p. 88: "Being, myself, dominant in the Capeverdean language, I used my speech as a sample, as well.").

    O mesmo autor publicaria ainda em 1989 Aspects of Capever-dean phonology. Aqui se tratava simplesmente de mostrar que, apesar do seu ttulo abrangente, o trabalho de 1979 no serve como fonte de informao para a nossa gramtica do crioulo de Santiago.

    0.3.8 Izione S. Silva (1985)

    Encerramos este resumo de 100 anos de gramatografia refe-rente ao crioulo de Santiago aludindo brevemente a um autor cujas contribuies j no entram no marco temporal que tnha-mos traado. Seis anos depois de Donaldo Pereira Macedo, outro cabo-verdiano residente nos Estados Unidos obtm um doutora-mento pela Georgetown University. A sua dissertao intitula-se Variation and change in the verbal system of Capeverdean crioulo. Dispomos apenas de um resumo deste trabalho que in-clui o seu ndice de matrias (cf. Dissertation abstracts in-ternational, 1986, 47 (1): 168A). O resumo no indica o lugar de nascimento do autor, mas poderia ser tambm da Brava. Apro-veita fontes de informao semelhantes s de Donaldo Pereira Macedo: 40 falantes nativos "now living in Massachusetts and Rhode Island", os contos contidos em Folk-lore from the Cape Verdean Islands de Elsie Clews Parsons, e "my native speakers intuition". Tal como Donaldo Pereira Macedo mostra-se influen-ciado por Derek Bickerton ("Capeverdeans Crioulo's tense/as-pect system is described in terms of Bickerton's paradigm") e distingue apenas entre dois "major regional dialects", Barla-vento e Sotavento. Porm, interessa-se mais pela variao (cf. o ttulo da sua dissertao), tanto entre ilhas, como intra-ilhas (considerando diferentes faixas etrias) e diacrnica (comparando com textos recolhidos nos primeiros decnios do sculo). Estuda com particular ateno a concorrncia de for-

  • mas de passado dos verbos ten e tene (tenba, teneba, tinha, tenha, tive, teve). Explica a variao encontrada basicamente como refletindo diferentes graus de descrioulizao.

    Em 1990, Izione S. Silva publicaria ainda um interessante artigo intitulado Tense and aspect in Capeverdean Crioulo, na coletnea Pidgin and creole tense-mood-aspect systems, editada por John Victor Singler.

    0.3.9 Os nossos contemporneos

    Acabamos de passar revista s obras mais importantes que, entre 1880 e 1980, aproximadamente, tentaram fornecer descri-es completas ou parciais da variedade do caboverdiano falada na ilha de Santiago. Fizemo-lo, repetimos, porque todas con-triburam para o valorizar e porque no teremos muitas oca-sies de voltar a falar delas nesta gramtica.

    Pelo contrrio, no poderemos descurar nesta publicao as obras mais recentes, publicadas por autores nossos contempor-neos, todos cientes de que a descrio de uma variedade insu-lar (se no mesmo de uma variedade particular dentro de uma ilha) deve forosamente preceder a sua comparao com outras variedades. Alis, falamos de obras cujos autores perseveram atualmente nos seus esforos por contribuir para a descrio da variedade santiaguense. T-las-emos em conta, principalmen-te nos casos onde a nossa descrio ou interpretao difere das suas. Trata-se, fundamentalmente, de obras publicadas por Petra Thiele (sobretudo 1991), Manuel Veiga (sobretudo 1982 e 1996), Nicolas Quint (nomeadamente 2000), Malyse Baptista (so-bretudo 2002) e Fernanda Pratas (sobretudo 2004) (cf. Biblio-grafia).

  • 0.4 Abreviaturas

    0.4.1 Abreviaturas das fontes

    (231/25) = pgina 231, linha 25; quando os nmeros no vm precedidos de nenhuma abreviatura referem-se invariavelmente a Tom Varela da Silva (ed.), Na bka noti, Volumi I, Un libru di strias tradisional organizdu y prizentdu pa T.V. da S., Praia: Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro 2004.

    BB = Badiu Branco, Kunba, Praia: Instituto Cabover- diano do Livro e do Disco 1993.

    inf. = exemplo/informao fornecidos por informantes caboverdianos

    LS = transcrio de quatro contos populares feita por Luzia Semedo, manuscrito.

    NL = transcrio feita por Andr dos Reis Santos de 44 anedotas em cassete, de Nastsi Lpi, manus-crito.

    NyK = Tom Varela da Silva, Natal y kontus, Praia: Instituto Caboverdiano do Livro 1986.

    Oda = Manuel Veiga, Odju d'agu, Praia: Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro 2009. RS = exemplo/informao fornecidos por Andr dos

    Reis Santos. Spnola = Danny Spnola, Lagoa Gmia, Kontus 2004.

  • 0.4.2 Abreviaturas das classes de palavras

    adj. adjetivo adv. advrbio, adverbial art. def. artigo definido art. indef. artigo indefinido conj. conjuno conj. coord. conjuno coordenativa conj. subord. conjuno subordinativa interj. interjeio loc. locuo loc. adv. locuo adverbial loc. conj. locuo conjuntiva loc. prep. locuo prepositiva num. numeral part. partcula prep. preposio, prepositivo pron. pronome pron. dem. pronome demonstrativo pron. indef. pronome indefinido pron. interr. pronome interrogativo pron. pess. pronome pessoal pron. poss. pronome possessivo pron. rel. pronome relativo s. substantivo v. verbo, verbal

  • 0.4.3 Outras abreviaturas

    abrev. abreviatura, abreviado ACBLPE Associao de Crioulos de Base Lexical Portuguesa e Espanhola al. alemo ant. antigo, antiquado antn. antnimo aum. aumentativo bras. brasileiro cf. confer (lat.), confronte cr. crioulo cr. f. crioulo fundo cr. l. crioulo leve deriv. derivao dim. diminutivo ed. edio, editado, editor eds. editores esp. espanhol et al. et alii (lat.) 'e outros autores' expr. expresso expr. idiom. expresso idiomtica fam. familiar fig. figurado fr. francs gram. gramatical ib. ibidem (lat.) 'no mesmo lugar' idiom. idiomtico ingl. ingls ital. italiano lat. latim onom. onomatopaico ort. ortogrfico p. pgina pej. pejorativo p. ex. por exemplo p. ext. por extenso pg. portugus pl. plural prov. provrbio s.v. sub verbo (lat.) 'no artigo' sin. sinnimo sg. singular SPCL Society of Pidgin and Creole Linguistics tb. tambm var. variante, variedade

  • 0.4.4 Smbolos

    /.../ transcrio fonolgica [...] transcrio fontica nos exemplos e nas citaes: omisso ou comentrio explicativo forma especfica para seres do sexo feminino forma especfica para seres do sexo masculino # introduz um exemplo ... > ... ... converte-se em ... ... < ... ... provm de ...

    0.5 Bibliografia

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  • I.

    SONS E ESCRITA

  • 1. Fontica e fonologia

    1.1 Unidades fnicas

    1.1.0 Observaes preliminares

    Diferentes critrios permitem distinguir, na interveno de um interlocutor (ingl. 'turn') diferentes tipos de unidades fnicas que sero sempre, ao mesmo tempo, unidades funcionais. Estes tipos de unidades formam uma hierarquia. Comeando pelas unidades do mais alto nvel, temos, em linha descendente, pelo menos, os seguintes tipos de unidades: frases (cf. 1.1.1), pa-lavras fnicas (cf. 1.1.2), grupos tnicos ou 'ps' (cf. 1.1.3), slabas (cf. 1.1.4) e fonemas (cf. 1.1.5). Na seco 1.1.6 ilustramos cada uma destas unidades atravs de um curto texto.

    Uma unidade de determinado nvel abrange uma ou vrias unidades do nvel imediatamente inferior. Uma unidade de um determinado nvel pode, assim, funcionar, por si s, como uma unidade do nvel imediatamente superior. Segundo este princ-pio, podem dar-se casos em que uma unidade do mais alto nvel, isto , toda a interveno de um interlocutor, consta de uma s unidade do nvel mais baixo, isto , de um s fonema: cf. pg. ! como resposta a uma pergunta do tipo verdade que o Joo e a Maria se separaram?

    1.1.1 Frase

    A frase um ato de fala mnimo, mas nem todo o ato de fa-la mnimo uma frase, pois qualquer sequncia fnica mnima proferida com a inteno reconhecvel de atuar sobre o inter-locutor constitui j um ato de fala mnimo.

    Assim, existem pelo menos dois outros tipos de atos de fa-la mnimos, alm das frases: a exclamao (por ex. Av! 'Cre-do!')a e o vocativo (por ex. Nhu Rumldu! 'Senhor Rumldu!').

    a Neste captulo de fontica e fonologia indicamos para cada expresso crioula apenas um dos seus significados contextuais.

  • Por meio das exclamaes, que constam de uma interjeio ou de uma locuo interjetiva, os falantes

    - manifestam sentimentos, como a alegria, a surpresa, o horror, etc. (cf. Av! 'Credo!', Oi nha mai! 'Meu Deus!', etc.),

    - incitam a aes (cf. X! 'X!', Paxnxa! 'Pacincia!'), ou

    - imitam rudos (cf. Pu! 'Zs!', Flupu! 'Chape!')

    sem descreverem tais sentimentos, aes ou rudos. Atravs dos vocativos (cf. Nhu Rumldu! 'Senhor Ruml-

    du!'), os falantes visam atrair a ateno de outros para si e, de forma indireta, para aquilo que lhes querem dizer, mostrar, etc.

    So frases os atos de fala mnimos onde um falante se re-fere a um estado de coisas ou a uma relao entre estados de coisas para os afirmar, para exigir a sua existncia, para perguntar pela sua existncia, etc. (cf. Bu txa livro 'Encon-traste o livro', txa livro! 'Encontra o livro!', Bu txa liv-ro? 'Encontraste o livro?', etc.). Tais atos de fala mnimos chamam-se tambm atos ilocutrios. A nvel fnico, confia-se a um determinado contorno entoacional a tarefa de garantir a unidade da frase.

    Uma frase pode ser muito longa e apresentar uma estrutura interna complexa. Impe-se, portanto, distinguir nela unidades de nvel inferior.

    1.1.2 Palavra fnica

    Por analogia com os textos escritos, onde as palavras sur-gem separadas por espaos, chamamos palavra fnica (fr. mot phontique) a qualquer sequncia fnica contnua que, na fala pausada, pode ficar entre duas pausas. Tambm a uma palavra fnica corresponde um contorno entoacional prprio. E por ser a palavra fnica a unidade mais pequena que dispe de um con-torno entoacional prprio, h autores que preferem cham-la de

  • 'unidade entoacional' (ingl. intonation unit, cf. Fox 2000: 338). Quando uma frase contm vrias palavras fnicas, os seus contornos entoacionais subordinam-se ao contorno entoacional da frase que as engloba.

    Entre as entidades que costumam constituir palavras fni-cas prprias mencionaremos apenas, a ttulo de exemplo, as pa-rentticas, os 'tpicos' ou 'temas' deslocados esquerda ou direita, as oraes relativas explicativas, as aposies e os aditamentos que determinam o ato de fala enquanto tal (cf. 3.3.1.3). Eis um exemplo para cada um destes cinco casos:

    Parenttica: ..., kundu el txiga la kel knpu (ainda boi k'odja-l),

    dj'el odj boi la lonji ta kum (233/22) '..., quando chegou quele campo (o boi ainda no o avistara), j viu o boi l longe a comer.'

    Tpico deslocado: Ab, rapasinhu?!... E'fla-l: - Am, nha mai dexa-m pa N po

    panla riba, agra fs dja perde-m, ... (147/4). 'Voc [aqui], rapaz? [O rapaz] Respondeu: Eu, a minha me permitiu-me que comeasse a cozinhar, s que j perdi os fsforos, ... .'

    Orao relativa explicativa: Pasarinha, ki vi ms bunitu di Kuberdi, ten biku bur-

    medju ku sa azul. 'A passarinha, que a ave mais bo-nita de Cabo Verde, tem o bico vermelho e as asas azuis.'

    Aposio: Pasarinha, vi ms bunitu di Kuberdi, ten biku burmedju

    ku sa azul. 'A passarinha, a ave mais bonita de Cabo Verde, tem o bico vermelho e as asas azuis.'

    Aditamentos que determinam o acto de fala enquanto tal: Na fundu, bu disizon foi dretu. (RS) 'Na verdade, a tua

    deciso foi acertada.

  • Pela presena de tais elementos, muitas frases constam de vrias palavras fnicas.

    1.1.3 Grupo tnico ('p')

    O critrio utilizado para delimitar os grupos tnicos, que em potica recebem o nome de 'ps', o acento fnico. Quando falamos, destacamos determinadas slabas por meio da intensi-dade ('acento dinmico'), da altura ('acento musical') ou da durao ('acento quantitativo'). Regra geral, estas slabas acentuadas ou 'tnicas' renem todas estas qualidades, embora uma delas seja normalmente predominante (em francs predomina a altura, no crioulo de Santiago a intensidade).

    Um grupo tnico constitudo por uma slaba acentuada e por todas as slabas no acentuadas ou 'tonas' que eventual-mente a acompanhem. Pode, portanto, ser constitudo por uma ou vrias slabas.

    As palavras plurissilbicas costumam apresentar apenas uma slaba tnica (cf. cs. dispnsa 'despensa', kontribuison 'con-tribuio', bbra 'abbora', etc.), pelo que constituem um s grupo tnico. So excees a esta regra, no portugus e no crioulo de Santiago, alguns compostos (cf. por ex. pg. quebra-cabea, cs. kebra-kabsa) e os advrbios terminados em mente, menti (cf. pg. diretamente, cs. dirtamenti, etc.).

    As palavras tonas, isto , as palavras desprovidas de acento fnico prprio, apoiam-se sempre em alguma palavra t-nica subsequente ou precedente. Todas as palavras tonas que se apoiam na mesma palavra tnica formam com ela um s grupo tnico. As que se encostam a uma palavra tnica subsequente encontram-se em posio 'procltica' ou em 'prclise'; as que se apoiam numa palavra tnica precedente esto em posio 'en-cltica' ou em 'nclise'. Uma palavra fnica pode ser consti-tuda por um ou vrios grupos tnicos consecutivos.

    O nmero de grupos tnicos numa palavra fnica corresponde ao nmero de slabas acentuadas que a compem. Contudo, nem sempre fcil identificar com preciso os limites de cada um dos grupos tnicos. Por isso, dispensamo-nos de o fazer nas transcries do texto exemplificativo sob 1.1.6 O problema

  • que, muitas vezes, faltam critrios fnicos infalveis para se decidir se uma determinada palavra tona deve ser considerada encltica relativamente a uma palavra tnica precedente ou procltica relativamente a uma palavra tnica subsequente. Os linguistas socorrem-se nestes casos de critrios sintticos, agrupando a palavra tona em questo com a palavra tnica que ela determina. Se aplicarmos este critrio a uma das palavras fnicas do pargrafo anterior, podemos segment-la da seguinte forma:

    ..., ki vi ms bunitu di Ku berdi, ... Na verdade, podem obter-se limites ligeiramente diferentes

    dependendo de se a segmentao se faz apoiando-se em critrios fonticos ou em critrios fonolgicos (cf. 1.1.4).

    1.1.4 Slaba

    Sob 1.1.3 j falmos das slabas. O critrio para a conta-gem de slabas numa unidade fnica de nvel superior dado pelas alternncias do grau de sonoridade ou percetibilidade na fala. O termo 'percetibilidade' indica que no se trata de um valor objetivamente mensurvel. So os ouvintes (e os falantes so, geralmente, ao mesmo tempo tambm ouvintes) que percebem a cadeia fnica como sendo uma sequncia de picos e vales de percetibilidade. Fatores vrios contribuem para esta perceo. Alm das variaes da intensidade, trata-se sobretudo de va-riaes ao nvel dos obstculos que a corrente de ar tem de ultrapassar durante o seu percurso desde a laringe at ao ex-terior. Assim, so mais percetveis os sons sonoros do que os surdos, os sons fricativos mais do que os oclusivos, as vogais abertas mais do que as fechadas, e, sobretudo, as vogais mais do que as consoantes (pelas razes indicadas a em 1.1.5).

    Cada pico de percetibilidade constitui o centro de uma s-laba. Consequentemente, contam-se num grupo tnico e numa pa-lavra fnica tantas slabas quantos picos de percetibilidade for possvel distinguir neles. Cada uma destas slabas esten-de-se de um ponto mais baixo de percetibilidade at ao prxi-mo. Chama-se parte explosiva de uma slaba parte em que a percetibilidade vai em crescendo e parte implosiva quele em

  • que vai diminuindo. Como as vogais so, por definio, mais percetveis do que as consoantes, pode dizer-se que o centro de uma slaba sempre mais voclico, ao passo que o seu in-cio e o seu fim so sempre mais consonnticos.

    Por conseguinte, numa consoante intervoclica podemos dis-tinguir duas fases. Uma primeira, implosiva, que faz parte da slaba precedente, e uma segunda, explosiva, que pertence slaba seguinte.

    S a nvel fonolgico, quer dizer, aps a anlise da ca-deia fnica em fonemas (cf. 1.1.5) e da classificao destes em fonemas consonnticos e voclicos, faz sentido falar em s-labas que comeam ou terminam por vogal ou que comeam ou terminam por uma ou vrias consoantes. A uma consoante inter-voclica que, a nvel fontico, tem uma parte que pertence slaba precedente e outra que pertence slaba seguinte, cos-tuma corresponder, portanto, a nvel fonolgico, uma consoante que pertence a apenas uma das duas slabas (geralmente s-laba seguinte).

    As slabas que terminam em vogal chamam-se livres ou aber-tas, as que terminam em consoante, chamam-se travadas. Sequn-cias de duas ou trs vogais no interior de uma slaba formam 'ditongos' e 'tritongos' (para estes, cf. 1.2.1.8.2).

    1.1.5 Fonema

    No interior de uma palavra fnica e no interior de um gru-po tnico h poucos limites claramente percetveis (ocluses, golpes de glote, etc.). A impresso que se tem a de um con-tnuo com transies graduais. Esta afirmao vale ainda mais para as slabas, visto os poucos limites claros no interior das unidades de nvel mais alto coincidirem com os limites en-tre slabas. A nvel fonolgico, cada slaba consta, porm, de um, dois, trs, quatro ou cinco fonemas (raramente mais).

    A anlise de unidades de mais alto nvel em fonemas no possvel sem recorrer aos significados, visto os fonemas serem definidos como sendo as unidades fnicas mnimas com capacida-de de distinguir significados. Esta capacidade demonstra-se atravs de provas de comutao e de permutao. As provas de

  • comutao podem levar identificao de 'pares mnimos' (cf. 1.2.1.3 e 1.2.2.3), que tornam particularmente evidente que dois sons devem ser considerados como realizaes de fonemas diferentes. As provas de permutao podem impor uma anlise mono ou bifonemtica de uma sequncia de sons (em cs. h [d] em midju s. 'milho', etc., mas no h *[d], devendo, por isso, a sequncia [d] ser analisada como realizao de um nico fo-

    nema //; pelo contrrio, h [rk] em brku s. 'barco', etc., mas h tambm [kr] em sukri s. 'acar', etc., impondo-se, portanto, uma anlise bifonemtica /rk/ da sequncia [rk]).

    Uma 'lngua funcional', isto , a variedade de uma lngua histrica como o portugus, o alemo, etc. que uma determinada camada da sociedade utiliza, numa determinada localidade e num determinado tipo de interao verbal, dispe de um nmero de-terminado de fonemas. Nas lnguas europeias, este nmero cos-tuma situar-se entre 20 e 40 (atualmente 24 no espanhol euro-peu padro, 33 no francs padro, etc.).

    Muitos autores exigem a existncia de pelo menos um par mnimo, isto , um par de palavras cuja pronncia s difere num nico ponto (ex. cs. parti [prti] v. 'quebrar' vs. prti

    [parti] s. 'parte'), para reconhecer valor distintivo a uma

    determinada diferena fnica (no exemplo anterior diferena

    entre [] e [a]) e, portanto, para aceitar a existncia de de-

    terminados fonemas (aqui a existncia de // e de /a/). No partilhamos desta opinio. O critrio decisivo deve ser o sen-tir dos falantes. Se estes consideram que um determinado con-traste fnico contribui para distinguir significados noutros

    casos, por exemplo em pares como parti [prti] v. 'quebrar'

    vs. prtu [partu] s. 'parto', ento os sons correspondentes

    devem ser considerados como sendo representantes de fonemas diferentes da sua lngua, mesmo no existindo nenhum par 'm-

    nimo' do tipo [prti] / [parti].

    H ainda um outro mal-entendido amplamente difundido. Con-siste em pensar que qualquer introduo, eliminao ou modifi-cao de um trao distintivo num fonema de uma palavra a

  • transforma noutra palavra ou ento numa palavra que no existe na lngua ou variedade em questo. Na realidade, no h razes para que a realizao de uma palavra varie s dentro dos es-treitos limites de uma srie invarivel de fonemas que a com-pem. Ocorre frequentemente, especialmente nas lnguas sem tradio escrita, que um mesmo falante realize uma determinada palavra nas mesmas circunstncias de modo to diferente di-zendo, por exemplo, umas vezes rakonhesedu 'grato, reconheci-do', mas outras rekonhesedu, rakonhesidu, rekonhesidu, rako-nhisedu, rekonhisedu, rakonhisidu ou rekonhisidu - que pre-ciso admitir variantes fonologicamente distintas para esta. Ao que parece, a palavra em questo dispe de um contorno fnico global que a mantm reconhecvel apesar de tais variaes.

    Em resumo: Postulamos fonemas com base na sua funo po-tencial de distinguir significados, o que no implica que exeram sempre esta funo em todos os contextos. No obstan-te, parece no haver dvidas de que os pares mnimos so par-ticularmente teis para ilustrar essa funo distintiva, e, portanto, para ilustrar a existncia de oposies fonolgicas entre fonemas justamente porque constituem casos onde dois significantes diferem apenas num nico ponto. Por isso, nas sees 1.2.1.3 e 1.2.2.3, recorreremos aos pares mnimos para ilustrar o mximo de oposies entre fonemas. Onde tal no for possvel, utilizaremos pares 'quase mnimos' (na medida em que diferem em mais de um ponto da cadeia fnica).

    O critrio para a distino entre fonemas voclicos e con-sonnticos fontico: as vogais mais fechadas do sistema fo-nolgico de uma lngua so ainda assim mais abertas do que to-das as suas consoantes, isto , o ngulo que formam os maxila-res superior e inferior maior quando pronunciamos uma vogal do que quando pronunciamos uma consoante, e o falante no cria obstculos que dificultem a passagem do ar como faz quando pronuncia uma consoante. Do carter aberto e geralmente sonoro das vogais resulta um alto grau de percetibilidade que as pre-destina a assumir a funo de picos silbicos. As consoantes, por seu lado, com o seu menor grau de percetibilidade, encon-tram-se preferencialmente nas margens das slabas.

    Os fonemas consonnticos so 'sonoros' ou 'surdos' conso-ante a corrente de ar faa ou no vibrar as cordas vogais

  • sua passagem pela laringe. Na maior parte dos sistemas fonol-gicos h sries inteiras de fonemas que se distinguem apenas pela presena ou ausncia dessa sonoridade (cf. 1.2.2.1). Os fonemas voclicos, por seu lado, costumam ser sonoros. Apenas em slabas extremamente tonas se encontram realizaes surdas de vogais (cf. 1.2.1.5.2).

    1.1.6 Texto exemplificativo com transcrio

    Encerramos este seco 1.1 sobre as unidades fnicas ilus-trando as nossas explicaes atravs da anlise de um texto crioulo. No conto no. 3 da coletnea Na bka noti (2a edio de 2004, p. 38, linhas 20-21), uma mulher fica escandalizada quando o curandeiro lhe diz que o seu marido no est doente, mas simplesmente preguioso.

    - Si nhu ka kre nxina-m ramdi, ka nhu nxina ... M fla-m ma nha maridu ka sta duenti e fase trsa-l mi y txoma-m nha maridu di dodu! ...

    - 'Se no quer recomendar-me nenhum remdio, no recomende Mas dizer-me que o meu marido no est doente fazer troa de mim e chamar o meu marido de doido. ...'b

    Esta interveno constituda por duas frases, separadas na escrita por trs reticncias. primeira palavra fnica se-gue-se uma vrgula. A terceira palavra fnica comea depois das reticncias. Os limites entre a terceira, quarta e quinta palavras fnicas situam-se em ... duenti / e fase ... e em ... trsa-l mi / y txoma-m ... . A ltima pausa poderia ser omiti-da. Neste caso, a interveno da mulher seria constituda ape-nas por quatro palavras fnicas.

    Seguem-se duas transcries desta interveno. A primeira d o texto na transcrio fontica relativamente larga que utilizaremos ao longo desta gramtica. As frases esto separa-das por barras duplas, as palavras fnicas por barras simples.

    b Na 2a edio de 2004 l-se kr, na 1a de 1987 kre. Tanto o nosso colabo-rador caboverdiano Andr dos Reis Santos como Emanuel de Pina, da Universi-dade de Cabo Verde, pronunciam o verbo com [e] fechado. Por isso substitu-mos kr por kre.

  • As slabas tnicas vo precedidas de apstrofo, apesar da im-possibilidade de indicar o seu incio com preciso numa trans-crio fontica (cf. 1.1.4). evidente que diferentes falan-tes poderiam preferir realizar como tnicas determinadas sla-bas que, na nossa transcrio, no surgem acentuadas, ou rea-lizar como no acentuadas determinadas slabas que apresenta-mos como tnicas. Os smbolos so os da Association Phontique Internationale (API). Representam sons, mais precisamente ti-pos de sons reais.

    Transcrio fontica:

    [siukkrin rmdi

    kin

    mafl mmridukstdwenti

    efsitrslmi

    icom mridudidodu]

    Na transcrio quase fonolgica que se segue, o uso das barras e do apstrofo continua a ser o mesmo que na transcri-o fontica precedente. Os smbolos continuam a ser os de As-sociation Phontique Internationale (API), mas desta vez re-presentam fonemas e no alofones. Com uma exceo: os 'arqui-fonemas', dos quais falaremos sob 1.2.1.6 e 1.2.2.5, no se transcrevem como tais (como s vezes se faz, usando maiscu-las). O smbolo que aparece em seu lugar representa o alofo