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ANTÓMO FEUÓ, VKX-REITOR E DRETOR DA IMPRENSA DA UNI VERSDADE DE USBOA TODAS AS PESJOAS SÃO UM COMPÓSITO DE SABER E IGNORÂNCIA' José Cabrita Saraiva [email protected] Hugo Alves (fotografias) [email protected]

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Page 1: Press Review page - ULisboa...Natural de Viana do Castelo, estu- dou em Lisboa e nos Estados Uni- dos, onde se doutorou. Escolheu li- teratura porque gostava de ler e hoje dirige a

ANTÓMO FEUÓ, VKX-REITOR E DRETORDA IMPRENSA DA UNI VERSDADE DE USBOA

TODAS AS PESJOASSÃO UM COMPÓSITO

DE SABERE IGNORÂNCIA'

José Cabrita [email protected]

Hugo Alves (fotografias)[email protected]

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Natural de Viana do Castelo, estu-dou em Lisboa e nos Estados Uni-dos, onde se doutorou. Escolheu li-teratura porque gostava de ler e hojedirige a recém- criada Imprensa daUniversidade de Lisboa, que já temoito títulos publicados, alguns deles'um pouco excêntricos'.

Dequem partiu a ideia

de criar esta editora?

Foi uma decisão do

reitor. Havia e há es-

colas que têm umaeditora Drónria. Dor

exemplo o Instituto de CiênciasSociais ou o Instituto SuperiorTécnico. Falámos com todas elasaté para aprender o modo comoestavam a operar, e foi decidido

que a editora da universidade, a

que foi dado o nome de Imprensada Universidade de Lisboa, deviacoexistir com todas. Portanto elascontinuam exatamente o que es-

tavam a fazer e nós fazemos tam-bém o nosso trabalho, não haverá

competição.E que tipo de livros publicam? Sfio

livros que se destinam aos alunos

ou a um público mais vasto?O público que visamos excede osestudantes. Gostaríamos que fos-

se um público inteligente médio.A Imprensa publicaria textos detrês naturezas: textos clássicosfundamentais nunca publicadosem português ou que, tendo sido

publicados em português, se en-contrem esgotados há demasiado

tempo; depois uma segunda cate-

goria de manuscritos inéditos nosvários domínios de saber que auniversidade cultiva, desde asciências exatas às ciências sociais

e às humanidades; e finalmenteuma terceira categoria, que é re-sidual, de projetos avulsos que po-dem ter interesse para a univer-sidade. Por exemplo, o primeirolivro que teve a chancela da Im-prensa é um livro sobre o patri-mónio material da universidade.

E publicam romances, por exemplo?Decidimos que não publicaríamosficção, embora interessantemen-te um dos volumes que vamos pu-blicar na primeira categoria dos

textos clássicos e fundamentais é

um texto do Diderot que poderiaser lido como uma ficção. Só quehá ficções que nos parecem sertextos tão determinantes da cultu-ra europeia ou da cultura ociden-tal que transcendem o estatuto da

ficção. Por exemplo, a Nova He-loísa, do Rousseau, é decisiva nacriação de uma sensibilidade mo-derna. É um romance, mas é maisdo que um romance.Tanto quanto sei, esse livro foi re-cebido quase com histeria [a pro-cura era tão grande que os exem-plares chegavam a ser alugados àhora e os leitores refuglavam-se em

lugares onde não fossem vistos porninguém, para poderem chorar à

vontade]...E nós olhamos para ele comoum nó decisivo na mudança desensibilidade. Mas não publica-mos ficção.Há algum livro que lhe dê especial

prazer ter no catálogo?Há muitos. Já temos oito livrosprontos. Um deles é as Cartas daRússia, do marquês de Custine,de 1837, que é a descrição queeste aristocrata francês faz dasua visita à Rússia. Muita genterefere-o como o equivalente paraa Rússia do que Tocqueville fezem relação aos Estados Unidoscom A Democracia na Améri-ca. É interessantíssimo porqueo marquês de Custine teve aces-so ao imperador, aos círculosaristocráticos de São Petersbur-

go, portanto é um documento

que eu penso que qualquer leitormédio achará interessante. Ou-tro livro que publicámos e que é

um pouco excêntrico - se estiver-mos a pensar em livros universi-tários no sentido estrito - são asmemórias da governanta doProust. Quem tenha lido os ro-mances do Proust ou se interes-se pelo Proust lerá com muito in-

teresse, pela descrição que fazdos últimos anos da sua vida emclausura, fechado num quartodurante oito anos. Esta gover-nanta foi a única pessoa que es-

teve com ele em permanência e

descreve tudo isso.E autores portugueses?Vamos editar um conjunto de trêslivros do historiador AlbertoSampaio. O primeiro é As Vilasdo Norte de Portugal, um gran-de clássico da historiografia por-tuguesa, que é associado a outrolivro do autor, As Póvoas Marí-timas do Norte de Portugal. Es-

tes livros já foram publicados,mas estamos a fazer edições talcomo o autor as tencionava fazerna forma definitiva.Os livros da Imprensa da Universi-dade estão à venda apenas aqui ou

também em livrarias?Estamos neste momento em con-versas com cadeias de distribui-ção. Só que os contratos têm de fa-

zer toda a tramitação da contra-tação pública e só quando issoestiver fechado é que os livros po-dem aparecer nas livrarias, o quedeverá acontecer, no mínimo, da-

qui a um mês.

0 mercado da edição não é um mer-cado saturado? Fizeram algum es-tudo nesse sentido?

Não fizemos um estudo. É ummercado um bocado saturado,embora essa saturação, se a de-

compusermos por tipo de publi-cação, é desigual. Se a ficção é umdilúvio de títulos que estão a ser

publicados, a não ficção é um pa-rente pobre. E quando entramosno domínio da não ficção, se ca-lhar podemos publicar coisas queos editores comerciais têm maisdificuldade em fazer. Aí podemos

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correr alguns riscos. Dou-lhe umexemplo: há alguns textos clássi-

cos greco-latinos para os quais emPortugal era muito difícil obterpublicação. Nós vamos agora teruma pequena Fileira de textos des-

sa natureza, mas isto coexistindocom muitas outras coisas, porquecomo a universidade é muito am-pla nos seus saberes, da economiaaos clássicos latinos, à filosofia...é uma latitude muito grande.Todos temos, nos nossos empre-gos, áreas mais estimulantes e ou-tras mais burocráticas ou maçado-ras. 0 trabalho aqui na reitoria temum lado administrativo que seja me-nos interessante, por assim dizer?Essa questão bate no nervo da ges-tão universitária. A equipa reito-ral é constituída pelo reitor, vice--reitores e pró-reitores. E muitodo nosso tempo é consumido comatividades de natureza adminis-trativa que não são propriamen-te aquelas de que mais gostamos.Segundo o decreto de fusão quecriou a 'nova' Universidade de

Lisboa, a universidade teria umestatuto de autonomia reforçadacorrespondente à sua dimensão e

que nos pudesse poupar uma sé-

rie de pesos. Temos o escrutíniodo Tribunal de Contas - e acolhe-mos muito bem esses escrutíniostodos - mas há uma série de tra-mitações que são demasiado labo-riosas e isso é frustrante. Não é

tanto a nossa frustração pessoal,é, a menor eficácia.Um intelectual norte-americano quetalvez conheça, Lewls Mumford,disse que as universidades se es-tavam a transformar em linhas de

montagem. Hoje, com os rankings,acha que há esse risco de a univer-sidade se tomar uma espécie de in-dústria do ensino?Os rankings são para muita genteum fetiche. Suponha que alguémnum país estrangeiro quer sabercom que universidade portuguesadeve falar. Vai aos rankings. Ago-ra, há dois modos de olhar paraeles. Um seria pensar 'vamos mo-delar toda a nossa atividade emfunção dos rankings'. Nesse caso

a natureza industrial da atividade

de que fala seria o melhor modo deacomodar a atividade ao ranking.Essa não é a nossa posição. A uni-versidade tem três fins centrais: o

ensino, que é crucial; a investi-gação; e a transferência para asociedade desse conhecimento,que muitas vezes é abusivamen-te tomada pelos poderes públi-cos como uma coisa central. Emvez de adequar a atividade aosrankings, o que está a fazer é arobustecer as atividades de base- que o ensino seja bom, que ainvestigação seja de qualidade,que a transferência se faça. Oreitor pensa sempre: se nós ro-bustecermos esta atividade, osresultados aparecerão, sem quenos preocupemos ostensivamen-te com isso. Eu acho que o reitortem razão.Disse noutra ocasião que as univer-sidades dos Estados Unidos, onde

estudou, davam possibilidade aosalunos de florescerem intelectual-mente. Acha que isso tambémacontece nas universidades portu-guesas?Se a compararmos com a univer-sidade italiana e até com algumasdo Norte da Europa, a universida-de em Portugal tem uma vitalida-de muito grande - está sempre emdiscussão o que pode ser, o quedeve ser, o que podemos fazer. Isso

é uma coisa virtuosa, quer dizer

que aquela instituição que eu co-nheci há muitos anos, perfeita-mente cristalizada, desapareceu,explodiu. O único problema quetemos, de que o reitor deu recente-mente expressão de um modo mui-to claro, é que a autonomia das

universidades não é suficiente-mente respeitada pelos partidos. >«

Se os alunosfossem sempre

piores do que noano passado,já estávamos

no nível do

NeandertalAcho que

humilhar umcerto tipo de

pseudoconhe-cimento

é uma coisaque faz bem às

pessoasÉ uma ilusãopensar que a

minha geraçãoera uma grande

coleçãode leitores.Muitos dos

meus colegasnão liam»

> Há por vezes intromissões do Es-tado nas universidades que nãosão as melhores. E não dizemosisto por purismo. É porque, naprática, a autonomia é um aspetodecisivo da instituição. A institui-ção só floresce - para usar essetermo - na liberdade intelectual,na escolha dos seus currículos, e

nós vemos por vezes que há umapressão dos órgãos da tutela quevai fazendo uma erosão dessa au-tonomia. Mas acho que neste mo-mento a universidade é uma coi-

sa muito viva onde os estudantes

podem florescer.

E o seu despertar, o seu florescerintelectual, como foi?Foi uma coisa muito simples.Desde miúdo gostava de ler. Nãoera propriamente um miúdo quesó lesse - também jogava futeboltodas as tardes, tinha interessesdesse tipo. Mas gostava muito deler sobre todo o tipo de coisas.Desde o jornal diário até livrossobre isto e aquilo.

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Livros que os seus pais tinham emcasa?Sim. Depois ia lendo mais coisas.Tinha interesse em várias coisas,em perceber. Depois nunca tivepensamento nenhum de carreira.Pensava: 'Vou optar por uma li-cenciatura que durante uns anosme permita ler porque é isso quese espera que um aluno daquilofaça'. E depois a pessoa acaba e

pensa: 'Por que não fazer agorauma pós-graduação?'. Foi mais oumenos assim.Isso parece uma coisa quase ca-sual...Depois de acabar o ensino secun-dário estive num liceu americanodurante um ano, num subúrbiode Washington DC. Depois vimpara Direito, estive dois anos emDireito, e fui para Letras, para Li-teratura, na altura chamava-seEstudos Anglo- Americanos.Mantém a ligação aos EUA? Aindalá vai com frequência?Cheguei a ser professor visitante

Ia e ate ha uns anos ia com fre-

quência quase anual. Nos últimoscinco, seis anos não tenho ido.Porque está mais absorvido pelotrabalho na universidade?Sim. A minha vida aqui na reito-ria é muito absorvente e muitasvezes as férias também são usa-das para trabalhar. Não há tantadisponibilidade. Mas continuo ater imensos contactos e acompa-nho os acontecimentos muito pro-ximamente. Aliás, acabo de vir de

uma aula de Literatura e CulturaNorte-americana do Século XIXque dou neste semestre na Facul-dade de Letras. Até acabei cincominutos mais cedo para ter a cer-teza de que estava aqui a horas

para o receber.

São alunos de licenciatura?Estou a dar uma cadeira a alunosde licenciatura, que é normal-mente o curso em que mais gostode dar aulas, e no semestre se-

guinte dou um seminário de pós-

graduação a mestrandos e douto-randos. Na equipa reitoral todosdamos aulas. Nunca faltamos e,

se for necessário mudar algumacoisa no calendário, mudamosaqui na reitoria para não pertur-bar as aulas.Nunca se aborrece ou se exasperacom os alunos?E uma boa questão. Eu gosto de

explicar uma coisa complexa e se

acontece um aluno dizer - ou mos-trar - que não percebeu, isso nun-ca me exaspera. Gosto de ouvirisso porque dá-me o ensejo de ex-

plicar outra vez e fazer com queele perceba. Há um jogo intelec-tual nisto. E também gosto de pe-gar numa coisa muito complexa e

começar no rés-do-chão, de modo

paulatino, passo a passo, até quea coisa muito complexa no fim es-

teja dissolvida. Outra coisa quegostava de fazer há uns anos eraentrar na biblioteca um quarto dehora antes da aula, abria o Times

Literary Supplement e tinha lá um

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poema. Olhava para o poema e eraenigmático. Fazia uma fotocópiapara os alunos, levava para a aulae estávamos todos no mesmo bar-co: não sabemos o que é isto, ago-ra vamos tentar decifrar. Isso dá

aquele corpo a corpo com o texto.E há momentos em que o profes-sor pode dizer: 'Também não sei o

que isto quer dizer'. Isso em sitambém é pedagógico.Não o fragfliza perante os alunos?Acho que não, porque eles perce-bem que aquilo é feito de ummodo sério. Daquele texto eu nãotenho que saber - estamos todosface a ele. Por outro lado, tam-bém acho que falar sobre litera-tura deve ser uma coisa mais pro-saica do que aquilo que se faz. Osalunos de literatura têm tendên-cia para fugir para termos técni-cos. Aparece uma coisa difícil edizem: 'Isto é uma metáfora'. E aminha reação é sempre: 'Pois,mas o que quer dizer?'. E tam-bém faço isso a mim próprio. Su-

ponha que há uma coisa que não

parece clara. Só que essa coisa

que não parece clara eu possotentar estabelecê-la como clara.Mesmo que não consiga, o traba-lho é muito grande, e os alunosestão a vê-10.Uma das ideias que temos hoje é

que os alunos sfio pouco cultos - ou

até mesmo bastante ignorantes.Que noção tem acerca disso?Achamos sempre isso em con-traste com o que achamos que é

o conhecimento de gerações an-teriores, nomeadamente a nos-sa. E tendemos a assumir que o

conhecimento da nossa é supe-rior ao da atual. Há colegas meusa quem pergunto como são osalunos este ano, e dizem-me sem-

pre que os alunos são piores do

que no ano passado, o que dá aentender que o nível já devia es-tar no Neandertal (risos). Nãoconcordo nada com isso. Todasas pessoas ignoram coisas e sa-bem coisas - e são um compósitodisso, de ignorância e de saber.Se acontece um aluno ou alunamostrar desconhecer algumacoisa, sou capaz de dizer 'isso é

assim', só para que ela disponhado dado e eu poder continuar afalar. Se é uma coisa que perce-bo que outros também não sa-bem, sou capaz de parar e dizer:'Vamos lá ver isso'.. O interesseé transformar isso numa coisaque seja um ganho cognitivo.Diz-se que as novas geraçõeslêem muito menos do que nomeu tempo. Isto é falso, porquerepare: as novas gerações agoraestão a ler em permanência, por-que estão com o iPad...Podem estar a ler o post do Face-book da amiga!Isso é verdade. Mas por outro ladoé uma ilusão pensar que a minhageração era uma grande coleçãode leitores. Muitos dos meus cole-

gas não liam. Outros liam coisas

que se calhar não eram tão inte-ressantes assim, como o jornaldesportivo, por exemplo. Não se

pode mitificar o estado de saberda geração anterior, aliás essa ge-ração é a que normalmente ouvi-mos dizer certas coisas no debatepúblico e pensamos 'como é pos-«

Agustina temum romance em

que as duaspersonagens

principais são oPascoaes e oPessoa. Para

ela, Pascoaesexcede Pessoaff

sivel?! . Alias, as pessoas ignoramque na minha geração éramos 5 %

da corte geracional que podia irpara a universidade.Era uma seleção.Agora estamos nos 3040% . Só isso

é um ganho extraordinário.Então a ignorância dos alunos nun-ca é um obstáculo para a comuni-

cação nas aulas?Acho que não.

E faltas de educação?Ouço histórias de que existem,mas comigo não. Quando andavano liceu, havia um lado de guerralarvar entre alunos e professores.Os alunos tentavam ser indisci-plinados mas mediam o professore viam logo o limite. Lembro-mede um grande professor que, malentrou na aula - e fisicamente nãoera uma pessoa impositiva -, to-dos percebemos que não havianada a fazer desse ponto de vistada indisciplina. Acho que é umaquestão de trato.De autoridade natural?Também. E se coloca os alunosnum certo nível de interlocução,eles percebem que têm de respon-der a esse nível. Se os tratar comocrianças, está tudo perdido. O me-lhor é tratá-los como adultos quesão. E eles rapidamente adotamesse registo. Mas estou a falar dauniversidade. Se calhar os meuscolegas do ensino secundário têmmais dificuldades.Mas mesmo aqui na universidadenão tem alunos mais impertinentes,mais desafiadores, mais provoca-dores?Se a provocação é intelectual, seé em relação ao que eu digo, issoé bem-vindo, porque dá-me en-sejo para responder. O únicotipo de provocação que achoinadmissível é de maneiras, de

educação. Mas a provocação in-telectual é salutar - e até podeser provocação mesmo provoca-ção, em que sinto que estou a sertestado, em que ele me quer le-var para um domínio em queacha que eu vou estar em difi-culdades.Ou colocar-lhe uma rasteira...Isso acho admissível, não tenhoproblema nenhum com isso. Ogozo aí é expô-lo e fazê-lo perce-ber que percebi o jogo e que nãovale a pena. Há sempre um alu-no inteligente que me vem falardo princípio da incerteza do

Heisenberg. E a minha respostaé sempre: 'De que é que estamosa falar? Você sabe definir densi-dade em física?' O nosso desco-nhecimento é tão aquém que eujá sei o que ele me vai dizer sobre

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o princípio da incerteza. Masisso interessa-me pouco. É ape-nas um modo luxuoso de dizeruma coisa. E acho que, por exem-plo, humilhar esse tipo de pseu-doconhecimento é uma coisa quefaz bem às pessoas, para perce-berem que estamos só a usar no-mes próprios que são sonantes -normalmente os mais sonantessão em alemão - para dizer umacoisa muito mais simples.Teve professores marcantes?Sim, sim. Tive. Independente-mente do grau de ensino. Talvezo professor mais marcante quetive na minha vida tenha sido oda terceira classe. De um pontode vista didático e pedagógico e

no modo como o fazia nunca vininguém com um talento assim,em lado nenhum do mundo, emnenhum domínio.Os seus colegas também achavamIsso ou havia uma empatia especialconsigo?Os meus colegas também perce-biam que estavam perante al-guém especial. No Portugal sala-zarista os miúdos da terceira clas-

se eram de origem social diversa,e era muito interessante consta-tar a igualdade de tratamento queele dava a todos. Fazia torneios decálculo mental, com oitavos de fi-nal, meias finais e final. Ou anun-ciava um torneio de capitais paradali a 15 dias. Um miúdo que ti-vesse acesso a uma agenda esta-va em circunstâncias de igualda-de com outro de uma retaguardafamiliar mais forte - mas ele fa-zia justamente para que essaigualdade estivesse assegurada.Mantém a diversidade de leiturasde que me falava há pouco?Sim. Aliás, à medida que o tem-po passa, a pessoa fica melancó-lica porque já não tem tempo físi-co para ler os livros que tem em

casa. Mesmo que tenha uma lon-gevidade muito grande, já não te-nho essa capacidade. E se umapessoa tem livros de toda a natu-reza... Posso pensar que aindahei de ler aquela obra, mas real-mente é impossível dizer se vouler ou não, porque quando me en-contrar em situação de poder es-colher nessa altura o interesse é

imprevisível. Pode ser a obra queestá noutra sala ou outra coisaque nem está em casa.Neste momento o que está a ler?Leio mais do que uma coisa aomesmo tempo. Neste momento es-

tou a ler uma antologia das líri- >

> cas portuguesas do José Régio e

os poemas que ele escreveu. Maspodiam ser coisas completamen-te diferentes.

Li uma afirmação sua em que dizia

que Teixeira de Pascoaes foi um

poeta tão importante quanto Fer-nando Pessoa. Isso tinha um ladode provocação?Não...

Nem de suscitar o debate?Desse ponto de vista, sim. O Pas-

coaes tem uma obra muito lon-

ga. Enquanto o Pessoa morreucom 47 anos, o Pascoaes viveuentre 1877 e 1952. E sempre pro-dutivo. Essa obra pode-se entrarde modos muito diversos. Outrodia estive num júri de doutora-mento de uma tese sobre Pas-coaes e foi muito engraçado ou-vir os membros do júri dizeremcomo começou o seu interesse.No seu caso como foi?

Foi através das cinco biografiasque o Pascoaes escreveu. SãoPaulo, S. Jerónimo e a Trovoa-da, O Penitente, sobre CamiloCastelo Branco, Napoleão e San-to Agostinho. Eu ia escreveruma introdução a uma delas e lias cinco. E percebi que as cincoeram uma coisa única em Portu-

gal - de uma audácia especulati-va, poética, uma prosa monu-mental, uma coisa extraordiná-ria. E portanto fiquei apanhadopor aí. Onde a poesia parece di-

fusa, depois de ler as biografiaspercebe-se que há um sistemamuito preciso, que não tem nadade difuso, e de uma audácia ina-creditável. Estou agora a escre-ver uma introdução a um roman-ce da Agustina Bessa Luís, que é

um romance extraordinário, em

que as duas personagens princi-pais são o Pascoaes e o Pessoa.Para ela, Pascoaes é o grandepoeta, excede Pessoa.

Isso é curioso, porque estamos ha-bituados a ver o Pessoa como o lí-

der incontestado do século XX.Em certo sentido, isso é verdade.O Pessoa é um poeta de uma mag-nitude extraordinária. Isto é o

lado cruel do tempo. O Pascoaes,na sua morte, em 52, era o grandeautor.Como se chama esse romance?O Susto. Vai agora sair pela Re-

lógio d'Água. A Agustina temuma intensa admiração pelo Pas-

coaes, põe o Pessoa em cena e falada relação entre eles. Ela tinha só

alguns indícios do que teria sidoessa relação, mas fez uma análi-se finíssima e percebeu coisas

profundíssimas.Havia uma relação de uma certaemulação?E de antagonismo. Especialmen-te do Pascoaes em relação ao Pes-

soa, mas na fase inicial, em 1912-

-13, o nome maior para o Pessoa é

Pascoaes, e é o nome com quemele se quer medir. No caso do Pas-

coaes fica sempre com uma pedrano sapato.

Porquê?No fim da vida - em 1952 - deuuma entrevista ao O Primeiro de

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Janeiro. O Pessoa tinha morri-do em 35 e, em 52, já estava a teruma voga expressiva porque ti-nham saído vários livros da Áti-ca. E então perguntam ao Pas-

coaes o que ele acha do AlbertoCaeiro. E ele diz: 'O Caeiro?Aquilo não é nada. Um homemcuja poesia consiste fim dizerque uma pedra é uma pedra...'.Por sua vez, o Pessoa, nos poe-mas do Alberto Caeiro, tem umcontra o Pascoaes. 'Há poetasque dizem que as árvores cho-ram e que as pedras sentem. Istoé um disparate'.Como é que o professor, no meiodos seus afazeres, tem tempo paraler as cinco biografias do Pas-coaes?Evidentemente às vezes é um bo-

cado temerário conciliar coisastão diferentes - não há tempo fí-sico - e"\ima pessoa acaba pornão ter férias ou ter poucas fé-rias.- Até porque se a pessoa querescrever sobre um livro tem deconhecer a obra mais ampla do

autor. Dou o exemplo de um au-tor muito negligenciado, um au-tor maior do século XX portu-guês, que é o José Régio. Estive

agora a ler a obra toda do José

Régio, que éuma coisa monu-

mental, muito acima das críti-.cas que depois lhe fizeram. Masimplica esse esforço de conhecer

a totalidade desse universo. Issosai do corpo, porque a pessoatem de ir ler, mas ao mesmo tem-

po tem um lado interessante,que é entrar no interior de umcerto domínio e de uma certapersonalidade.E compensa o sacrifício?Não é sacrifício, porque estamosa lidar com uma inteligência su-

perior, excecional, e com umaprosa de príncipe. O Régio guar-da-se muito e às vezes é de maisdifícil acesso do que o Pessoa. E

pensamos que o juízo da posteri-dade foi injusto. Se eu acho isso,

compete-me dizer: 'Olhem paraisto, que é grande'.«

O professorassumir 'não sei

o que isto querdizer' também ó

pedagógicoSe tratar os

alunos comocrianças está

tudo perdido. Omelhor étratá-los

como adultosque são

O Rógio guarda--se muito

e às vezes é demais difícil

acesso do queo Pessoa.

E pensamosque o juízo da

posteridade foiinjusto. Se eu

acho isso,compete-medizer: 'Olhem

para isto,que é grande'ff

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