press review page - ulisboa · membro da sociedade portuguesa de psiquiatria e saúde mental. num...

6
? ,|iK- 4 num. i llili^«"lllr liemaijjj í 1 -*[¦" M-o*i^J

Upload: others

Post on 22-Oct-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • ? ,|iK- 4 num. i

    llili^«"lllrliemaijjjí 1 -*[¦" M-o*i^J •

  • O que nuncadizer a um amigoque tem umadepressãoP2a3

  • A sociedade"tem poucapaciênciapara pessoasque estãotristes"Como ajudar alguém com depressão? Não importatanto o que se diz, mas o que se faz. Estar "já éimenso". A doença afecta 7,9% dos portuguesesPor Natália Faria

  • dormempiores dias,

    I^^ I Lavra AntunesI I não conseguiaI I forçar-se a sair daI I cama. "Nos diasI em que conse-I guia, ficava nosofã. Ligava a te-

    levisão, mas não conseguia concen-trar-me no que via. Ficava a divagar",recorda esta psicóloga, de 48 anos.Incapazes de perceber os meandrosda depressão ("não há sangue, não

    há feridas à mostra"), familiares eamigos afadigavam-se em conselhosdo género: "Faz qualquer coisa queisso passa", "só tu é que te podes cu-rar", "anima-te", "tens de sair decasa", "estás a exagerar". São frases

    que todos já dissemos (ou ouvimos)e que visam resgatar quem se afunda

    num quadro depressivo. O efeito,porém, é inócuo ou até contrapro-ducente. Quando alguém atravessauma depressão, adianta o psiquiatraPedro Afonso, "é incapaz de perspec-tivar um futuro menos negro e invec-

    tivas como '"deixa lá isso' ou 'tensde reagir' só servem para confrontaro doente com a sua incapacidade".

    O que psicólogos e psiquiatrasaconselham a quem queira ajudarquem sofre de uma doença que afec-ta 7,9% dos portugueses (somos osegundo povo europeu mais depri-mido) são reformulações do género"sei que estás a sofrer, mas tambémtens em ti a capacidade para ultra-

    passar este momento", como sugereLucinda Bastos, psiquiatra no Hos-pital de Santa Maria, em Lisboa, e

  • membro da Sociedade Portuguesade Psiquiatria e Saúde Mental.

    Num manual a várias mãos quecontivesse sugestões práticas sobrecomo ajudar alguém com depressão,teriam de caber vários capítulos so-bre o que não dizer/fazer. "Não sedeve forçar a pessoa a conviver, por-que o isolamento social é um dos tra-

    ços da depressão", contribui PedroAfonso. "Os doentes com depressãojá sentem que estão a desiludir todaagente, logo não se deve exigir delescoisas que eles não conseguem dar,sob pena de estarmos a acentuar osentimento de que são incompreen-didos", acrescenta a psicóloga Isabel

    Leal, para quem é inútil nestes casos"tentar apelar à realidade, como sea realidade existisse e não fosse eiva-da da subjectividade de cada um".

    Um dos primeiros passos para aju-dar alguém com depressão é "aceitara revolta no caso da depressão nor-mal e compreender o queixume nadepressão patológica", aponta o psi-canalista Coimbra de Matos.

    Dizer a alguém deprimido quereagir é uma questão de força devontade "só vai aumentar a culpa-bilização da pessoa e, consequente-mente, agravar a sua depressão",acentua, por seu turno, Diogo TellesCorreia, médico psiquiatra e psico-terapeuta. Pedro Afonso deixa umacomparação que ajuda a perceber-mos exactamente do que é que seestá a falar: "Forçar a pessoa a con-viver numa circunstância dessas éo mesmo que pedir a alguém quetenha uma lesão grave numa pernapara fazer caminhadas."

    A frase "depressão não é doença"está também profundamente contra-indicada, ainda segundo DiogoTelles, que lembra que "existem pes-soas biológica e geneticamente mais

    predispostas a terem depressão", da

    qual, "por mais que tenham força devontade, não conseguem sair sozi-nhas". Logo, dizer-lhes "não vás ao

    psiquiatra porque não és maluco"equivale a vaticinar-lhes que se "man-tenham sozinhas no seu sofrimento",como lembra o também professor naFaculdade de Medicina de Lisboa.Uma em cada cinco pessoasA depressão pode ser muito inca-pacitante: as pessoas sentem von-tade de se fechar no quarto, persia-nas corridas, luzes apagadas. Dei-

    xam de dormir oudemasiado. O apetite deixa de com-portar comida ou torna-se voraz.Há uma persistente sensação decansaço e de tristeza.

    Neste quadro, as tarefas triviaisdo quotidiano afiguram-se tão ár-duas quanto escalar uma montanha.Não é à toa que, entre baixas médi-cas e de produtividade, tempo detrabalho perdido e medicação, a de-pressão está a tornar-se na maiorcausa de incapacidade em todo omundo, com custos que, em 2010,já atingiam os 92 mil milhões de eu-ros na União Europeia. Dados maisrecentes da Organização Mundial deSaúde (OMS) mostram que, em 2015,representava 7,5% de todos os anosvividos com incapacidade. É tam-bém a doença que mais contribuipara as mortes por suicídio: 800 milDeath and the MaidenEgon Schiele, Belvedere, Viena

    "0 maisimportanteé saber ouvire estar atentosem serdemasiadointrusivo"por ano, segundo a OMS, cujos da-dos relativos a 2017 apontam para aexistência no mundo de 300 mi-lhões de pessoas com depressão.

    Apesar do que dizem os compên-dios médicos, nem sempre é fácil aum médico distinguir entre a tris-teza normal e reactiva, desencadea-da por adversidades como a mortede alguém, um divórcio ou o desem-

    prego, e a tristeza patológica. "Umdos elementos difcrcnciadorcs podeser a intensidade da tristeza. Numquadro depressivo, a tristeza é in-capacitante, e a pessoa deixa deconseguir trabalhar, estudar ou con-viver. O segundo elemento diferen-ciador é a duração. É normal queuma pessoa se sinta triste peranteuma adversidade; todavia, se essatristeza perdura no tempo, pode-mos estar perante um quadro pato-lógico", distingue o psiquiatra Pe-

    dro Afonso."Além do humor depressivo, na

    depressão está também presente umsintoma que se chama anedonia (quevem do grego e significa sem prazer)que corresponde à incapacidade queos pacientes têm em obter prazeratravés de coisas e situações que an-tes eram prazerosas", diagnosticatambém Diogo Telles.

    Em Portugal, a depressão alastra.O primeiro (e último) estudo epide-miológico sobre saúde mental, pu-blicado em 2013, no âmbito do WorldMental Health Survey da OMS, situa-va os portugueses como sendo dos

    povos mais deprimidos da Europa,logo a seguir à Irlanda do Norte: asperturbações depressivas atingiam7,9% da população e as perturbaçõesde ansiedade 16,5%. Ainda segundoeste estudo coordenado pelo psiquia-tra Caldas de Almeida, mais de umaem cada cinco pessoas apresentarauma perturbação psiquiátrica nos 12meses anteriores.

    São prevalências elevadas e cujagravidade se agudiza se considerar-mos que, segundo o mesmo estudo,

    quase 65% das pessoas com pertur-bação psiquiátrica não tinham tidoqualquer tratamento nos 12 mesesanteriores às entrevistas. "A medianado tempo de espera para início detratamento é de quatro anos nos ca-sos de depressão major e de dois atrês anos nos casos de perturbaçãode pânico e de perturbação de an-siedade generalizada", precisavamos autores.

    Poder-se-á sempre lembrar, comoa psicóloga Isabel Leal, que o estudofoi feito no pico da crise social e eco-nómica. "Se tivéssemos feito umestudo deste género nos anos 90,em que toda a gente tinha dinheiro

    para compras e ia de férias para oBrasil, os resultados seriam outros",admite, baseando-se na relação queexiste "entre a qualidade de vidapercebida e a sensação de mal-estare desconforto" . Mas a verdade é queo Relatório de Primavera 2019, doObservatório Português dos Siste-mas de Saúde, mostra que as pres-crições de antidepressivos não têmparado de aumentar desde 2000 atéaos dias de hoje. Na lista de paísesda OCDE, Portugal surge na terceiraposição. No que diz respeito ao con-sumo de ansiolíticos, aparece em

  • primeiro lugar.'Estar já é imenso"O que nenhum destes estudos expli-ca é por que é que os portuguesessão dos povos mais deprimidos daEuropa. "Poderá dever-se a caracte-rísticas próprias de uma personali-dade lusitana desenvolvida ao longode séculos? Poderá dever-se às váriascrises económicas que o país tematravessado e que comprovadamen-te se relacionam com uma reduçãoda qualidade de vida e da saúde men-tal?", questiona Diogo Telles Correia.Mais assertivo, o psicanalista Coim-bra de Matos atribui este facto à "ex-pansão acelerada da desigualdadesocioeconómica" .

    O psiquiatra Pedro Afonso arriscaduas explicações, a partir de algunsestudos que fez e da sua própria prá-tica clínica: a privação crónica dosono é uma delas, o facto de se tra-balhar demasiadas horas, outra. "Em

    Portugal trabalha-se muitas horas. Eeste excesso de carga horária aumen-ta o desgaste físico e psíquico, logohá mais risco de as pessoas desen-volverem depressão", lembra PedroAfonso, aludindo ainda à "enormepressão para atingir objectivos e re-sultados" a que muitos trabalhadoresestão sujeitos, de médicos a jornalis-tas, passando por advogados.

    O facto de os portugueses dedica-rem cada vez menos horas ao sonoagrava este quadro. "Dormimos umamédia de sete horas por noite, o queé insuficiente para a maioria das pes-soas. E esta privação crónica do sonoaumenta o cansaço e as dificuldadesde concentração e provoca altera-

    ções de humor e irritabilidade, crian-do exaustão física e psíquica queculmina num quadro depressivo."

    Os sintomas (e a falta de disponi-

    bilidade para ajudar) podem agra-var-se numa sociedade que, comocaracteriza Isabel Leal, "tem poucapaciência para pessoas que estãotristes". "Se a tristeza perdura - ese não perdurar não é depressão -,é natural que as pessoas à volta aca-bem por se sentir desconfortáveiscom uma carga negativa que é muitogrande", lembra a psicóloga, consi-derando que é difícil a quem nuncaatravessou uma depressão sentir anecessária empatia. "Quando sãoconfrontados com algo a que nãoconseguem dar resposta, [os amigos]sentem-se frustrados e a situaçãopode tornar-se muito desgastante",concorda Lucinda Bastos.

    Aos amigos ou familiares de al-guém deprimido, o que a psiquiatraprescreve é paciência. "Saber ouvire estar atento sem ser demasiado in-trusivo", sublinha. "Obviamente quea recusa em fazer a higiene diária temde ser contrariada, até porque a pes-soa se sentirá melhor se for travadaneste desprezo pelo cuidado pessoal.Num quadro de recusa alimentar, a

    pessoa também tem de ser levada aomédico. No resto, não adianta forçarmuito", acrescenta, insistindo que oimportante mesmo é "estar ao lado,com um ombro disponível". "Às ve-zes, é quanto basta para que a pessoaconsigam mobilizar os seus recursosinternos para lidar com a situação".Nesse sentido, reforça Leal, "estar jáé imenso".

    Nos casos mais graves, em que oamigo sente que deixou de conseguirajudar, o melhor, além de insistir nanecessidade de ir ao médico, é par-tilhar o fardo. "Quem está a ajudartambém tem que respeitar os seuspróprios limites. E, se for uma situa-ção com alguma gravidade, mais valeser sincero, dizer 'Já não sei como te

    ajudar' e, ao mesmo tempo, falarcom outra pessoa da rede [de rela-ções] com quem possa partilhar aresponsabilidade", aconselha aindaLucinda Bastos.

    Para Pedro Afonso, os que estão àvolta de um deprimido devem calarquaisquer perguntas sobre ideiassuicidas. "Mas se o doente expressavontade de se suicidar, isso nuncadeve ser menosprezado", alerta opsiquiatra, para quem competirá aomédico avaliar se "tal verbalizaçãoesconde uma ideação suicida estru-turada" . Quando a referência à von-tade de morrer surge acompanhadade planos ("já sei como me vou ma-tar"), Diogo Telles admite que a pes-soa possa ser encaminhada até umserviço de urgência. "Em casos mui-to graves, em que os doentes perdema noção da realidade e mantêm aideia de pôr termo à vida, pode sernecessário recorrer ao internamentocompulsivo."

    Independentemente de haver ounão ideação suicida, nunca, masmesmo nunca, se pode "desprezaro significado e valor do sentimentodepressivo", conclui Coimbra deMatos.

    "Muitos acham que é só cansaço edizem coisas do género: 'Recuso-mea tratar-te como uma coitadinha, por-que tu tens de reagir.' Nós sabemos

    que temos de reagir! O problema é

    que não conseguimos", explica Lav-ra Antunes, para concluir que aquiloque mais ajuda quem, como ela, atra-vessa os dias com o colete-de-forçasda depressão, é haver quem saibaouvir. "É bom podermos falar semmedo de estarmos a dizer algumacoisa de que possam não gostar."

    [email protected]