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"Yeah, it's crazy", diz-nos Michael Fassbender. Fala do lugar de onde fala, fala do sítio onde está agora, de- pois de "Fome" e "Shame", filmes de Steve McQueen, e depois de uma série de outros papéis que lhe rasgam um sorriso de orelha a orelha: o psicana- lista Cari Jung em "Um Método Peri- goso", de David Cronenberg, o medi- tabundo victoriano Rochester de "Ja- ne Eyre", o mutante genético em "X-Men: First Class" -já foi escolhido por Ridley Scott para a prequela da série "Alien", "Prometeu", e vai co- protagonizar com Brad Pitt e Chiwetel Ejiofor "Twelve Years A Slave", o ter- ceiro filme de McQueen. "'Yeah, it's nuts'. É um sonho tra- balhar com tanta gente de topo. Te- nho esperança que isso se reflicta na qualidade do meu trabalho." Fitando com perscrutadores olhos verde-azulados, Fassbender, 34 anos, assume: "Steve simplesmente mudou a minha vida. 'Fome' [2008] chegou num período em que seria um golpe de sorte tremendo alguém apostar num desconhecido de 30 anos para desempenhar o papel principal. Um ano depois, a recessão bateu-nos à porta e, como é natural, as propostas de trabalho para um actor começa- ram a escassear. Desde 'Fome' que trabalho intensivamente, tendo-me sido permitido viver disto." O que agora fez, o retrato de um viciado em sexo em "Shame", é único, mas essa solidão não é novidade para o irlandês nascido em berço ale- mão. Em "Fome", perdeu 40 quilos para interpretar o activista do IRA Bobby Sands. Estava numa altura em que precisava de atrair as atenções sobre si. Hoje, estrela em ascenção, não se retraiu e voltou a depositar to- da a confiança na visão do britânico Steve McQueen. Porque, afinal, Mc- Queen foi o primeiro a arriscar nele. É uma "'love story' mútua", disse o realizador. E vai continuar. Brandon (Fassbender) é empregado na Manhattan empresarial, mas no escritório ou nas viagens de metro torna-se um predador à caça de carne feminina; mas o caçador é, se calhar, o caçado

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Page 1: Press Review page - ClipQuick€¦ · e masturbando-se depois de as suas conquistas sexuais o deixarem insa-tisfeito. Mas a sua mente entra numa espiral descendente com a visita da

"Yeah, it's crazy", diz-nos MichaelFassbender. Fala do lugar de ondefala, fala do sítio onde está agora, de-

pois de "Fome" e "Shame", filmes deSteve McQueen, e depois de uma sériede outros papéis que lhe rasgam umsorriso de orelha a orelha: o psicana-lista Cari Jung em "Um Método Peri-

goso", de David Cronenberg, o medi-tabundo victoriano Rochester de "Ja-

ne Eyre", o mutante genético em"X-Men: First Class" -já foi escolhido

por Ridley Scott para a prequela dasérie "Alien", "Prometeu", e vai co-protagonizar com Brad Pitt e Chiwetel

Ejiofor "Twelve Years A Slave", o ter-ceiro filme de McQueen.

"'Yeah, it's nuts'. É um sonho tra-balhar com tanta gente de topo. Te-nho esperança que isso se reflicta naqualidade do meu trabalho."

Fitando com perscrutadores olhosverde-azulados, Fassbender, 34 anos,assume: "Steve simplesmente mudoua minha vida. 'Fome' [2008] chegounum período em que seria um golpede sorte tremendo alguém apostarnum desconhecido de 30 anos paradesempenhar o papel principal. Umano depois, a recessão bateu-nos à

porta e, como é natural, as propostasde trabalho para um actor começa-ram a escassear. Desde 'Fome' quetrabalho intensivamente, tendo-mesido permitido viver disto."

O que agora fez, o retrato de umviciado em sexo em "Shame", é único,mas essa solidão já não é novidadepara o irlandês nascido em berço ale-mão. Em "Fome", perdeu 40 quilospara interpretar o activista do IRABobby Sands. Estava numa altura em

que precisava de atrair as atençõessobre si. Hoje, já estrela em ascenção,não se retraiu e voltou a depositar to-da a confiança na visão do britânicoSteve McQueen. Porque, afinal, Mc-Queen foi o primeiro a arriscar nele.É uma "'love story' mútua", já disseo realizador. E vai continuar.

Brandon (Fassbender)é empregado na Manhattanempresarial, mas no escritórioou nas viagens de metrotorna-se um predador à caçade carne feminina; maso caçador é, se calhar, o caçado

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O caçador e o caçadoFassbender é um impostor autode-preciativo, nos antípodas do estatutode novo "sex symbol" com que têmtentado rotulá-10. Um homem comoele nunca iria encaixar num molde,por conseguinte a sua carreira emHollywood tem progredido de formasinuosa. Sempre se considerou umhomem baixo, razão pela qual traba-lha o físico para interpretar homensde acção como Stelios em "300" ouum guerreiro romano em "Centu-rion". (Papéis a que ninguém ligou.)Mesmo "Fome" foi visto por unsquantos. Para ajudar, não o reconhe-cemos no tarantinesco "Sacanas semLei", onde compôs o tenente ArchieCox. Por isso, sabia que só um "blo-ckbuster" de aposta segura como "X-Men" poderia revelá-lo ao mundo.Depois de acções promocionais cor-riqueiras para "X-Men" e "Jane Eyre",o lançamento no circuito comercialde dois filmes com a marca "sexo" emvários lados, "Shame" e "Um MétodoPerigoso", testaria a coragem de Fas-

sbender. E as palmadas de Cari JungFassbender na sua paciente Sabina

Spielrein/Keira Knightley foram ape-nas uma demonstração envergonha-da perante a classificação para maio-res de 18 de "Shame" nas salas ame-ricanas.

"Vamosà procurade contacto -isto é, de sexo-, um impulsoabsoluto,urgente, mas

depois há umsentimentode vergonha,de desprezopor nóspróprios.Paracombaterisso, o quese faz?Volta-se asair e a fazero mesmo. E avergonha aamontoar-se,a amontoar-se"

"A maioria de nós faz sexo, não per-cebo por que preferem fingir que nãoe reprimi-lo", indignou-se Fassbender

perante o "Huffington Post". "'Sha-me' é um filme sério que merece sertratado enquanto tal. Metade de nóstem um pénis e a outra metade pro-vavelmente já viu um. Por que raioentão são normais no cinema as de-

capitações e o uso de armas de fo-go?"

"Shame" explora os recessos mais

negros da psique humana. Brandon(Fassbender) é charmoso e bem em-pregado na Manhattan empresarial,mas no escritório (onde guarda ma-

terial pornográfico) ou nas viagens demetro torna-se um predador à caçade carne feminina, que nada deixa

por expor: vemo-lo num demoradonu integral, fazendo sexo sem parar(contra a parede de vidro, com vista

para o Hudson, do Standard Hotel),e masturbando-se depois de as suas

conquistas sexuais o deixarem insa-tisfeito. Mas a sua mente entra numaespiral descendente com a visita dairmã (papel que Carey Mulligan ga-nhou à custa de muito suor).

O estilo de vida do Brandon resu-me-se a sair e dormir com muita •*

"O que meagrada emBrandoné o factode ele seguiros seusimpulsos,não osreprimir, masperceber queestá doente epor isso estarem guerraconstanteconsigomesmo"

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4- gente. "Apesar de bem-sucedido,nada extrai desse comportamentocompulsivo desprovido de alegria.Até concluir estar doente, iniciandoo combate à dependência. É essa re-sistência que me agrada nele. Embo-ra sofra, não adopta uma posiçãomasoquista." Nada de "donjuanismo"por aqui: "Don Juan divertia-se, nãoé? E Brandon nem é o caçador, é o

caçado. Não há alegria nele." E dácomo exemplo uma das sequênciasmais polémicas do filme (há quemconsidere que McQueen não tinhanecessidade de a filmar, que a sequên-cia é uma facilidade porque mostraaquilo que já sabíamos): uma aventu-ra "gay" de Brandon, como se inflin-gisse a si próprio uma punição. "Elesente a necessidade de se colocar emcenários... não sei qual a palavra cer-ta... de deboche. E esse bar onde elevai é realmente extremo. A sexuali-dade de Brandon está distorcida. Eele precisa de a satisfazer. Há um tipodo outro lado da rua, porque não? 0que é relevante na cena não é tantoo facto de ser uma cena homossexu-al, mas o facto de revelar o estadomental de Brandon. Ele força-se aapanhar pancada, está a tentar sentir

alguma coisa, quanto mais não sejador. Não gosta dele próprio e quer ser

castigado de alguma forma. Acontecemuito nessas situações, homens queestão em relações heterossexuais ou

que são casados, acabarem em luga-res como esses - uma necessidade decontacto com alguém, independen-temente de ser homem ou mulher.

Depois desse bar, ele vai ter com du-as raparigas. É qualquer coisa de im-

placável."Fassbender pensa existir hoje uma

nuvem moralizante sobre as pessoasque sofrem com este comportamen-to. Ao "Hollywood Repórter", McQue-en disse mesmo que a ausência nalista dos nomeados ao Oscar de umactor como Fassbender, "que só apa-rece uma vez numa geração", se deveao "medo do sexo" que a Américasente.

"É por termos medo de lidar como assunto?", interroga Fassbender."Só nos EUA existem 24 milhões de

pessoas que padecem desta doença.Percebi que o vício é igual ao da co-mida, do álcool ou das drogas, depoisde ter falado e ouvido alguns destesindivíduos".

Um método perigosoTudo começou há cerca de três anos,numa conversa entre McQueen e asua co-argumentista, Abi Morgan,num hotel em Nova lorque, o Stan-dard, o tal que pede aos clientes parase absterem de estarem nus perto das

paredes de vidro dos quartos paranão darem espectáculo para o MeatPacking District, lá em baixo - é o ce-nário, aliás, de uma das cenas maisexplícitas do filme. Falaram sobre se-xo e net, durou três horas, nasceu aideia para o filme. Seguiu-se uma fase

de pesquisa longa, conversa com psi-cólogos e homens cuja vida se conso-me nos sites pomo, "one night stan-ds", clubes de sexo e casas de banho

do escritório durante as pausas paracafé. Nessa pesquisa, feita pelo actore pelo realizador, a palavra que maisvezes se intrometia no relato era "ver-

gonha". Por isso McQueen assim in-titulou o filme, mesmo que essa pa-lavra não apareça nos diálogos.

"Vamos à procura de alguém, deum contacto - isto é, de sexo -, umimpulso absoluto, urgente, mas de-

pois há um sentimento de vergonha,de desprezo por nós próprios. Paracombater isso, o que se faz? Volta-sea sair e a fazer o mesmo. E a vergonhaa amontoar-se, a amontoar-se. Mas,aos poucos, esse desconforto vai-setornando familiar. A intimidade é quecontinua a ser um problema. Lembro-me de um tipo me contar que haviaalguém que lhe era próximo e que oestava a abraçar e que isso era a últi-ma coisa que ele queria sentir, queriaera fugir daquele abraço. É o que se

passa entre Brandon e a irmã, Sissy(Carey Mulligan), quando ela o abra-

ça... para ele, é de mais. Ela está a

trazer a sua própria história para omundo dele, ela precisa de ser efusi-

va com as suas emoções, mas ele é o

oposto disso."Há um momento em que Sissy diz

ao irmão: "Nós não somos más pes-soas". É um momento crucial, até

porque evita a explicação sobre o pas-sado das personagens, mas ficam nu-vens de dor e angústia. Os actoresinventaram uma biografia para as •*

Fassbenderem "Fome"(2008), emque interpretaBobby Sands,militante doIRA, e na suasegundacolaboraçãocom SteveMcQueen,"Vergonha"

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Ele (só) quercontar histórias

Ao assinar "Vergonha", Steve McQueen afasta-se do cinema expandidoe da instalação vídeo, para abraçar o cinema, com as suas personagens, históriase formas de recepção. E com esse gesto, tentado mas não totalmente conseguidoem "Fome", afasta-se de outros artistas e deixa-nos uma pergunta: como explicar

a resistência e a atracção do cinema narrativo? José Marmeleira

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Quando Steve McQueen(1969) revelou no Festival deVeneza de 2011, que gostava de"experimentar com as histórias,com o contar uma história", é

provável que a "confissão" tenhasoado invulgar aos ouvidos demuitos artistas, curadores ecríticos de arte. Não que o próprionão tenha lidado antes comhistórias (como quase todos osseus companheiros de geração).Desvelando os traumas que elasescondiam: o suicídio colectivodo povo Caribe das Antilhas, naqueda de um homem, em "Carib 'sLeap" (2002). Interrogando aforma como eram construídasno cinema, em "Deadpan" (1997),uma reencenação de um famoso

gag de "Steamboat Bill Jr": afachada da casa que tombasem beliscar Buster Keaton,salvo por uma janela aberta.Ou abordando questões de

tempo e duração ("Stage" e, denovo, "Deadpan"). A instalaçãovídeo, numa sala escura, era omeio que usava para envolvero espectador, sem o confinar aorectângulo do enquadramentoe às imposições da narrativa.Curtos, os seus filmes permitiamuma imersão crítica nas imagens,furtavam-se à espectacularidadeda tecnologia, mesmo quandoocupavam a totalidade da parede.

Nem por isso facilitavama identificação de assuntos.Durante algum tempo, houvequem falasse em corpo ounegritude (a propósito de "Bear"de 1993, onde dois homensnegros, nus, trocam olhares e

gestos) ou pós-colonialismo("Western Deep", de 2002,que descreve a descida às

profundezas de uma minana África do Sul). Mas o maissaliente, e que a partir dos finaisdos anos 90 partilhou comDouglas Gordon, Stan Douglas,Pierre Huyghe ou MatthewBuckingham, tem a ver com aexperiência do cinema: algumas

das suas obras foram exibidasem salas devolutas ou emespaços a que o historiador dearte Gregor Stemmrich chama decinemas provisórios.

Nada, contudo, fazia prever umencontro tão fulgurante com asconvenções do cinema narrativo,momento tão sedutor quantolamentável na opinião silenciosade boa parte dos artistas quetrabalham com imagens emmovimento. McQueen, entretanto,vai afirmando que o cinema é

apenas um meio entre outrose que a passagem pela TischSchool em Nova lorque, ponto deencontro com o ensino da artecinematográfica, não se fez semdesilusões. Mas "Fome" (2008) e

"Vergonha" (2011) afastam-se do

cinema expandido, do pós-cinemaou de "outro cinema". Mais: rejeitam(ou esquecem) o ataque movidopelo filme estruturalista ou devanguarda à Hollywood do cinemaclássico. Não procuram expor osmecanismos da sua produção oua sua base ideológica, não isolam,nem fixam momentos cinemáticoscomo Douglas Gordon ou PierreHuyghe. Podíamos até dizer queassinalam o esgotamento de ummodelo crítico.

Falar sobre as personagensPara além de contar histórias,o cinema permite, nas palavrasde McQueen, alargar o debate,torná-lo mais público, o queé sintomático de uma crença(talvez ingénua) na sobrevivênciade uma esfera pública nummundo saturado de imagens(estado de coisas para o qual aarte contemporânea tambémcontribuiu). Ainda assim,compreende-se o argumento.Com ou sem cinefilia, mortoou vivo, fragmentado ou não,o cinema ainda constrói novossujeitos e subjectividades numarelação vívida com o quotidiano.Diga-se que McQueen não foi e

não é o único artista a colocar-se por trás de uma câmara e aconfrontar-se com o trabalhocolectivo e as limitações materiaise conceptuais do cinema. Mas é

indiferente às "teses" de PeterGreenaway, às alegorias de ShirinNeshat ou à arte "pompier" deMatthew Barney. E ao contráriode Douglas Gordon, parece hojemenos interessado em discutir asimagens do que as personagens.

Então o que resta da arte naobra cinematográfica de SteveMcQueen? Em "Fome, aindase pressentia algo de exterior,deslocado e por isso perturbador.Uma respiração de texturasa bater nos olhos e no corpo(a pele, as fezes nas paredes),reminiscente dos efeitos dainstalação-video (nas primeirassessões, houve espectadoresque tropeçaram à saída), umapelo ao sentido háptico. Já

"Vergonha", parafraseado ocrítico Serge Daney, aposta naimobilidade dos espectadores ena sua sensibilidade à mobilidadedo mundo, da ficção e de outros

corpos, que não os seus. Nessesentido, é mais cinema.

É verdade que logo a abrir, o

Steve McQueennão é o único artistaplástico a colocar-se

por trás de untacântara. Mas é

indiferente às "teses"

de Peter Greenaway,às alegorias de ShirinNeshat ou à arte"pompier"de Matthew Barney

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plano de Brandon, meio cobertopelos lençóis azuis, tem o efeito deum "trompe 1'oeil" e a sequênciade destruição das revistasabala, por instantes, a diegese(e podíamos ainda acrescentara sequência do jogging, pelaforma como estende o espaço eo tempo). Só que as memóriasque dominam "Vergonha" sãoas do cinema, em particular, as

de "Taxi Driver", "Polícia SemLei", "Psicopata Americano","The Panic in Needle Pare" ou"Cruising" (sim, Nova lorque é acidade de "Vergonha"). Porqueé que isto acontece? PorqueSteve McQueen permite quenos identifiquemos com aspersonagens, que nos alinhemos

com o ponto de vista da câmarae que, enfim, entremos no campoda narrativa.

Pode parecer estranho verum artista que questionoua experiência do cinematradicional, recorrendo anarrativas não lineares e adiscursos polimórficos, naesteira do cinema experimental,abraçar "o inimigo". Mas o quesubvertem hoje as imagensfragmentadas, anti-narrativas,dessa herança crítica? Nãoparticipam elas do mesmo"espectáculo"? Não terá o seupotencial arrefecido? Na ediçãode Outubro de 2011 da revista"Frieze", a artista canadianaMelanie Gilligan, resumia assim

a sua posição, no âmbito de umaconversa sobre a reapreciaçãoa que, nos últimos anos, osartistas britânicos têm sujeitadoo cinema e a televisão: "É

habitual dizer-se que a qualidadeimersiva do cinema narrativoé um dos aspectos que o torna'ideológico', ao impedir umdistanciamento crítico. Mas paramim é importante ter um tipo dedistanciamento crítico que nãoesteja separado de respostasafectiva e até emocionais. E anarrativa é uma forma de trazeruma audiência para um espaçoonde afectos e emoções podemacontecer em simultâneo com o

pensamento através das ideias".

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"Em termosdas nossas'partenaires,tambémé duro,

porque nãoqueremosque elassintam queestamos aaproveitam-os dasituação.cHá problemaem tocar osteus seios?"'4- suas personagens. Ela está ausentedo filme - e continuará ausente dos

espectadores, porque pertence porinteiro ao trabalho de construção deFassbender e Mulligan.

"É óbvio que há algo de pouco usu-al nesta relação. Há aquela cena emque ela está nua em frente a ele e elelhe dá uma toalha e ela responde ati-rando-lhe a toalha... Não está no ar-

gumento, mas, para nós, as persona-gens vêm de um 'background' musi-cal, quando eram crianças, decidimos

que Brandon era muito bom a tocarpiano. Mas porquê, então, isso desa-

pareceu da sua vida? Isso, para mim,é o revelador de uma tragédia."

0 que é que Freud e Jung, já agora,diriam do "método perigoso" de Bran-don? "Depende de como se olhar pa-ra a biografia que construí para a per-sonagem", responde o actor, aceitan-do o desafio. "Talvez eles tivessem deolhar para o meio, a sociedade, em

que Brandon vive. Este é, definitiva-mente, um filme do nosso tempo.Com toda esta exposição mediática e

fácil acesso ao excesso - penso quefoi assim que Steve colocou a questão.Numa altura em que comunicamosatravés da tecnologia como nuncaantes e podemos falar com pessoasde todo o mundo sem deixarmos onosso quarto, a cozinha ou a parte dacasa em que está o computador." E

é, definitivamente, um retrato ondeFassbender, como qualquer especta-dor, se reconhece.

"Quando li o argumento, foi assus-tador mas ao mesmo tempo fez-me

perceber que se tratava de um filmerelevante. Quem for honesto encon-trará semelhanças [entre a sua vida e

a da personagem]. O que me agradaem Brandon é o facto de ele seguir os

seus impulsos, não os reprimir, masperceber que está doente e por issoestar em guerra constante consigomesmo. Pretendi que Brandon, porvezes, inspirasse repulsa e noutrasvezes fosse vulnerável. Mesmo quetenha viajado a lugares extremos, não

procurei que o sexo fosse o foco des-

sas excursões", diz.É difícil ter temporariamente a al-

ma de Brandon? "Detesto quando os

actores dizem: 'Foi o papel mais exi-

gente fisicamente'. Mas para ser ho-

nesto, foi duro. Talvez porque eu es-

tava a trabalhar há um ano e filmámosem cinco semanas. Cheguei à roda-

gem e logo na primeira noite havia 23

páginas de argumento para filmar,uma única cena... A câmara move-se,mas tão subtilmente que nem se nota.É preciso focarmo-nos de forma com-pleta, porque, com Steve, cada por-menor é importante e estamos a lidarcom coisas perturbadoras, sombrias...Em termos das nossas 'partenaires,também é duro, porque não quere-

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mos que elas sintam que estamos a

aproveitar-nos da situação. 'Há pro-blema em tocar os teus seios?' Hámuita pressão e ansiedade, mas tam-bém nos divertimos e tentamos dizerpiadas. Mas, quando acabámos, sen-ti que tinha de parar por uns tempos,e é o que estou a fazer agora."Ex-acólitoDitos estranhos, e talvez não, para umex-acólito. O que é que Josef, o painascido na Alemanha, e Adele, a mãenorte-irlandesa, pensam sobre isso?

"Ah, são porreiros. O meu pai foi à

estreia, e viu, como eu, pela primeiravez o filme. Se calhar não o devia terfeito", ri-se. "A minha mãe era paranos ter acompanhado, mas não pôde.Talvez tenha sido melhor. Eu disse aomeu pai para se preparar para cenasbastante intensas. Ao que ele me res-

pondeu: 'Olha, um artista como tutem de fazer o que é preciso.'"

Fassbender cresceu num seio fami-liar liberal, mesmo no que toca à re-ligão. "Ia à igreja e fui acólito por de-cisão própria. Quis envolver-me, por-que me aborrecia na missa. Atraiu-me

a componente teatral de subir a umpalco perante uma congregação quese importava com as coisas que fazia,era mais interessante do que ficar sen-tado a ler concentrado nas escrituras.O padre Galvin, Deus o guarde, eraum homem muito bom e fascinante.Para além disso, os meus amigos tam-bém estavam lá e convivíamos."

Apesar de ter sido dado à luz emHeidelberg, só viveu em solo germâ-nico durante os primeiros dois anos,passando a parte maior da infânciana Irlanda do Norte. "Eu comecei afalar alemão antes de começar a falar

inglês, mas o meu alemão está bas-tante enferrujado."

Cresceu em Killarney, porque eradesejo dos pais que ele e a primogé-nita Catherine fossem criados no cam-

po, onde os pais tinham um restau-rante. Josef cozinhava. A propósitodisto, nota que o pai "tinha uma éticade trabalho muito alemã". Hoje sol-teiro, depois de um relacionamentocom a cantora australiana MaikoSpencer, que o ajudou a recuperar abrutalidade de peso perdido em "Fo-me", levando-o para Sydney, a sua

cidade natal, tem vivido desde entãorelações de curta duração. "Sou ro-mântico e adoro a ideia de constituirfamília", contou à edição britânica da"GQ Magazine". "Mas preciso de darum passo atrás em relação a tudo isto.Não é justo fazer esperar alguém, por-que sabemos que, com esta profissão,as pessoas passam longos períodoslonge uma da outra."

Este viajante voraz, para além deadorar conduzir o seu BMW, passouo Verão, depois de despachada a ma-ratona de filmes, a percorrer de motaa Europa com o pai e o melhor amigo."Tem a ver com o imediatismo domundo de hoje. É muito fácil arranjarum avião e aparecer noutro lado do

planeta. Mas, para mim, andar de mo-ta é uma experiência muito mais gra-tificante. Trata-se de merecer cadaquilómetro percorrido, enquanto dei-

xas o rasto do esforço atrás de ti. Foialgo que precisei de fazer depois

de tantos filmes."

Tradução de Bruno SousaVillar

O actor com o realizador,com quem vai filmar"Twelve Years A Slave"

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New YorkNew York

VascoCâmara

A intensidadede Nova lorque,

a turbulênciadas suas

personagens - eo seu secreto

desejo depurificação A América tem medo de sexo, por isso

"Vergonha" não foi nomeado para os Óscares,afirmava Steve McQueen ao "HollywoodRepórter". Estava indignado por ter sido

ignorado um actor "que surge uma única vezem cada geração", o "seu" Michael Fassbender.

O puritanismo americano é chão que continua a dar

uvas, e às vezes continua a dar filmes, mas se calharpassou-se com "Vergonha" algo de mais simples, queao mesmo tempo é mais complexo: tal como foramos franceses de "O Artista" a dizer, no Kodak Theater,as palavras "Douglas Fairbanks", o que deve soar jádistorcido para os americanos (até porque o sotaquefrancês arrasta bizarros maravilhamentos), é umbritânico, cineasta, artista plástico, a mostrar ao cinemaamericano aquilo que ele parece ter esquecido ou que é

já incapaz de reconhecer e trabalhar - o seu património.- It's a shame. Enquanto

Martin Scorsese se

"améliepoulaniza" com o seu

"Hugo" e com a facilidadebasbaque da "homenagem","Vergonha" põe-nos a pensarnele, Scorsese, nos idos de 70

(e em Friedkin, no Friedkinde "A Caça", por exemplo).Sem nostalgia (ajuda o factode McQueen ter vindo "de

fora", das artes plásticas),muito naturalmente, este

filme, este cineasta e esta

personagem fazem seu umpatrimónio: o dos cineastas

que se alimentaram, porque~~ ali viviam, da intensidade de

E um britânico,cineasta, artistaplástico, a mostrarao cinema americanoaquilo que ele pareceter esquecido ou queéjá incapaz dereconhecer e trabalhar- o seu património

Nova lorque, da turbulência das suas personagens - e doseu secreto desejo de purificação.

Numa das cenas centrais de "Vergonha", a

interpretação de "New York New York" pela personagemde Carey Mulligan (sem cometer o pecado da atitudeverificadora: cenas assim dizem que há aqui cineasta...),McQueen dá todo o tempo à personagem para falaratravés de uma canção, tal como num musical. É

daquelas sequências que na maior parte dos filmesfuncionam como "ruído" de fundo, apenas a introduçãoe depois corte para os outros episódios, para não cansaro espectador... McQueen escolhe "New York New York"

menos, na verdade, para sinalizar o filme de Scorsese

(o Scorsese em "Vergonha" será o de "Taxi Driver")do que por ser uma canção que fez a iconografia deuma era. E também se arrisca a filmar - a aventura deFassbender pela cena gay "hard" - algo que já não existena cidade, como registou a imprensa norte-americana

presente em Veneza 2011. É que a Nova lorque de"Vergonha" é um túnel de tempo que se alarga paraintegrar, sem actualizações mas também sem jogos"retro" de reconstituição, todas as Nova lorque. Porquese trata, fundamentalmente, da relação com umaestirpe de personagens e com uma atitude em vias de

extinção ou já extinta: a de, sob a capa de uma gritanteexplicitação física e sexual, estar interessado, sobretudo,no silêncio, no interior das personagens. Um filme de umvigoroso pudor, afinal, como "O Último Tango em Paris"

(Bertolucci, 1972), uma possível "linhagem" europeiapara o cinema de "Vergonha". É que não são só os

americanos que perderam a mão para o cinema adulto.It's a shame.

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