prescrição gramatical e uso - caso do pronome lhe

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ANAIS DO XV CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 p. 2398 PRESCRIÇÃO GRAMATICAL E USO: O CASO DO PRONOME LHE NO PORTUGUÊS BRASILEIRO Gilce de Souza Almeida (UFBA) [email protected] 1. Introdução O quadro pronominal do português brasileiro apresentado nas gramáticas normativas está longe de evidenciar o caráter multifuncional do clítico lhe no português brasileiro contemporâneo. Atendendo pelo ró- tulo de pronome oblíquo de terceira pessoa, cabe-lhe, na descrição tradi- cional, a representação do objeto indireto, porém, em muitos usos, revela comportamento sintático-semântico não previsto nessa função. Em parte, isso decorre da falta de precisão na definição daquilo que tradicionalmen- te se denomina objeto indireto, ao que se acrescenta o fato de lhe ser em- pregado como objeto direto, comutável pelos clíticos o/a (para a segunda e a terceira pessoa), você, senhor/senhora e te. Esse uso inovador de lhe em função acusativa tem sido apontado como consequência da reorganização do quadro pronominal do português brasileiro, provocada pela inserção, primeiramente, de você e, posterior- mente, de a gente. Neste trabalho, objetiva-se evidenciar a idéia da polissemia mor- fossintática de lhe, em oposição ao tratamento que lhe é dado pela gra- mática tradicional, reunindo observações e resultados de pesquisas empí- ricas que enfatizam o comportamento desse pronome como objeto direto no português brasileiro. 2. O pronome lhe pela gramática normativa O sistema de pronomes pessoais, ao menos em sua descrição tra- dicional, guarda vestígios dos casos latinos, de modo que há formas es- pecíficas para as funções de sujeito, objeto direto e objeto indireto. Quan- to às formas objetivas, na primeira e na segunda pessoa, os itens prono- minais me, te, nos, vos podem representar tanto o objeto direto quanto o objeto indireto. Na terceira pessoa, por sua vez, o mesmo sincretismo não se verifica, ao menos na ótica dos estudos tradicionais, uma vez que há

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Prescrição Gramatical e Uso - Caso Do Pronome Lhe

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  • ANAIS DO XV CONGRESSO NACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA

    Cadernos do CNLF, Vol. XV, N 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 p. 2398

    PRESCRIO GRAMATICAL E USO: O CASO DO PRONOME LHE

    NO PORTUGUS BRASILEIRO

    Gilce de Souza Almeida (UFBA) [email protected]

    1. Introduo

    O quadro pronominal do portugus brasileiro apresentado nas gramticas normativas est longe de evidenciar o carter multifuncional do cltico lhe no portugus brasileiro contemporneo. Atendendo pelo r-tulo de pronome oblquo de terceira pessoa, cabe-lhe, na descrio tradi-cional, a representao do objeto indireto, porm, em muitos usos, revela comportamento sinttico-semntico no previsto nessa funo. Em parte, isso decorre da falta de preciso na definio daquilo que tradicionalmen-te se denomina objeto indireto, ao que se acrescenta o fato de lhe ser em-pregado como objeto direto, comutvel pelos clticos o/a (para a segunda e a terceira pessoa), voc, senhor/senhora e te.

    Esse uso inovador de lhe em funo acusativa tem sido apontado como consequncia da reorganizao do quadro pronominal do portugus brasileiro, provocada pela insero, primeiramente, de voc e, posterior-mente, de a gente.

    Neste trabalho, objetiva-se evidenciar a idia da polissemia mor-fossinttica de lhe, em oposio ao tratamento que lhe dado pela gra-mtica tradicional, reunindo observaes e resultados de pesquisas emp-ricas que enfatizam o comportamento desse pronome como objeto direto no portugus brasileiro.

    2. O pronome lhe pela gramtica normativa

    O sistema de pronomes pessoais, ao menos em sua descrio tra-dicional, guarda vestgios dos casos latinos, de modo que h formas es-pecficas para as funes de sujeito, objeto direto e objeto indireto. Quan-to s formas objetivas, na primeira e na segunda pessoa, os itens prono-minais me, te, nos, vos podem representar tanto o objeto direto quanto o objeto indireto. Na terceira pessoa, por sua vez, o mesmo sincretismo no se verifica, ao menos na tica dos estudos tradicionais, uma vez que h

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    formas exclusivas para cada uma dessas funes: o/a/os/as e lhe/lhes, respectivamente.

    No que tange ao cltico pronominal lhe, oriundo do dativo illi, fi-gura na maioria das gramticas a ideia consensual de que esse item lin-gustico representa essencialmente [o] objeto indireto (CUNHA & CINTRA, 2002, p. 146). Se h certo consenso nessa classificao, o mesmo no se pode dizer em relao definio do que seja a categoria objeto indireto.

    Em latim, a questo do complemento verbal estava bem demarca-da, uma vez a representao das funes sintticas era atendida por um sistema de casos, dentre os quais estavam o acusativo objeto direto em portugus , para representar o ser afetado pela ao verbal, e o dativo o objeto indireto , para indicar o beneficirio ou destinatrio da ao. Na passagem ao portugus, o sistema casual foi substitudo pela ordem fixa na sentena e as preposies passaram a designar os valores antes estabe-lecidos pelas declinaes. Assim, o objeto indireto passou a ser indicado pela preposio. Decorre da a ideia de que todo complemento verbal re-gido de preposio, independentemente de indicar o ser a que se destina a ao verbal ou em cujo proveito ou prejuzo se realiza, deva ser includo na categoria objeto indireto. essa a definio que se verifica em Cunha e Cintra (2002, p. 137), onde se l que objeto indireto o complemento que se liga ao verbo por meio de [qualquer] preposio. A essa defini-o seguem-se os exemplos:

    (01) Duvidava da riqueza da terra. (02) Necessitamos de uma cabea bem firme na terra, fincada na terra!

    Tal descrio admite que os termos destacados acima e aqueles que representam o beneficirio ou o destinatrio so igualmente objeto indireto.

    Rocha Lima (2006) e Bechara (2003) expressam certa concordncia entre si ao definirem o objeto indireto como o complemento que se refere quase sempre a um ser animado, introduzido pela preposio a e, mais raramente, para e que expressa o papel de beneficirio, destinatrio, sendo comutvel pelo pronome pessoal lhe/lhes. Usos como os de (01) e (02), em que o argumento introduzido pela preposio (a, de, em, com, para, por etc.) no cliticizvel em lhe, so denominados por esses autores complementos relativos.

    Quanto quase exclusividade da preposio a como introdutora de objeto indireto no portugus brasileiro, defendida pelos autores, sabe-

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    se que as pesquisas com base em amostras de lngua falada apontam seu decrscimo em favor de para.

    Ao tratar o lhe particularmente como complemento indireto, a descrio tradicional admite que esse cltico seja um argumento selecionado pelo verbo em frases como (03) e (04), a seguir.

    (03) Coloquei-lhe na mo um bilhete.

    (04) Tenho-lhe imenso respeito.

    Nos dois exemplos, essa ideia questionvel. Algumas gramticas, em especial as pedaggicas, tm atribudo ao lhe as funes de adjunto adnominal em (03) e complemento nominal em (04), apresentando, porm, explicao pouco elucidativa. No primeiro caso, levam em conta a possibilidade de substituio do cltico pelo pronome sua/seu, dele/dela, o que torna evidente a ideia de posse e a relao com o nome. Para explicar o segundo exemplo, os compndios escolares baseiam-se na possibilidade de ser o item pronominal comutvel por a algum e de a preposio no estar ligada ao verbo, mas ao nome.

    Diferentemente, Rocha Lima (2006), Cunha e Cintra (2002) e Bechara (2003) no adotam essa classificao, mas, no primeiro caso (04), reconhecem valor possessivo do pronome. Para Cunha e Cintra (2002, p. 305) esse carter possessivo de lhe corresponde ao dativo latino de posse. Bechara (2003) utiliza a designao dativos livres, que so para ele construes especiais de objeto indireto, mas reconhece que no esto ligados ao verbo. Para o autor, os dativos livres so representados pelos: a) dativo de interesse (dativus commodi et incommodi) a quem aproveita ou prejudica a ao verbal: beneficirio (Ele s trabalha para os seus); b) dativo tico variedade do anterior, representa aquele pelo qual o falante tenta captar a benevolncia do seu interlocutor na execuo de um desejo (No me enviem cartes a essas pessoas); c) dativo de posse exprime o possuidor (Doem-me as costas); d) dativo de opinio exprime a opinio de uma pessoa (Para ns, ela a culpada).

    Com essa exposio breve e despretensiosa, pretendeu-se demonstrar que algumas gramticas tm tratado o pronome lhe maneira simplificada, desconsiderando, por exemplo, seu uso como objeto direto.

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    3. Sobre o uso de lhe como acusativo ou o chamado lhesmo

    Estudos realizados sob diferentes perspectivas tericas apontam, de maneira consensual, o desuso de lhe no portugus brasileiro em sua funo prototpica, o que levou alguns estudiosos a apontarem, equivocadamente, seu desaparecimento no portugus brasileiro. Defende-se aqui que o pronome mantm-se vigoroso, contrariamente ao que tem acontecido com os clticos o, a, os, as, mas experimenta e no uma tendncia atual um sincretismo de pessoa e de funo tendo em vista que alterna entre a segunda e a terceira pessoas e entre o dativo e o acusativo.

    No obstante seu uso regular como forma dativa, encontram-se, j no portugus arcaico, exemplos do uso de lhe como objeto direto, con-forme assinala Nascentes (1953), referindo-se ao Cancioneiro da Vatica-na, do qual se extraram os exemplos abaixo:

    (05) rogu eu a Deus, que end o poder, que mi a leixe, se lhi prouguer, veer.

    (06) Defendi-lh'eu que se non fosse d'aqui, ca todo meu ben perderia per i.

    Francisco Evaristo Leoni (1858, p. 198), em Gnio da Lngua Portugueza ou Causas Racionaes e Philologicas, destacou o uso de lhe como objeto direto no portugus clssico: Nossos antigos escriptores serviam-se da frma lhe do pronome pessoal elle para denotar o accusa-tivo do mesmo. Os exemplos a seguir mencionados pelo autor so extra-dos de dois textos clssicos: o famoso romance de cavalaria Palmeirim de Inglaterra (sculo XVI), de Francisco de Morais, e Histria do Des-cobrimento e Conquista da ndia pelos Portugueses, de Ferno Lopes de Castanheda:

    (07) A duqueza que em extremo lhe amava e com todos estes aggravos o nao podia tirar da vontade quiz ver se por manha o poderia haver mo (Mo-raes, Palm. d'Ingl. T 1, P. 2, C. 74, p. 500.)

    (08) E quiz Deos que ho Catual nao ousou de matar Vasco da Gama, nem os seus, que bem quizera fazel-o por amor dos mouros que lhe peitavam. (Fer-no Lopes de Castanheda. Histria da ndia. L. 1 C. 21)

    Leoni (1858), por fim, conclui que:

    Esta frma a que nossa lingua no podia repugnar por ser analoga do ca-so correspondente illum, am, ud, foi, todavia, rejeitada, e, para empregarmos o mesmo pronome em accusativo, precisamos dizer a elle, a ella, ou ento mu-dar de pronome e usar do determinativo o, a (LEONI, 1858, p. 198).

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    Cadernos do CNLF, Vol. XV, N 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 p. 2402

    A gramtica tradicional, de fato, no deu legitimidade forma lhe como objeto direto, excluindo-a de sua descrio dos clticos acusativos; no entanto esse uso, como j assinalado, notrio na fala dos brasileiros.

    Embora no inclua lhe no paradigma de segunda pessoa, a descrio tradicional prev seu uso como cltico dativo de voc. Segundo Galves (2001), a subida de lhe para essa posio est ligada introduo de voc no paradigma pronominal, que faz o verbo perder a marcao de segunda pessoa, criando, assim, um contexto favorvel ao deslocamento do cltico. Tais alteraes repercutem nos clticos acusativos e no possessivo seu/sua, que passam a alternar tambm entre a segunda e a terceira pessoas.

    De acordo com Freire (2005, p. 02), o item lhe passa por um processo de especializao e [...] estaria deixando de ser uma forma tanto de terceira quanto de segunda pessoa para figurar exclusivamente na referncia segunda pessoa, seja na funo dativa seja na acusativa. Pelos estudos de Ramos (1999) e Lucas (2008), usa-se lhe no portugus brasileiro tambm como complemento direto anafrico de terceira pessoa: [...] quando o falante do portugus brasileiro preenche a posio de objeto [...], ele o faz usando ou o pronome tnico ele [...] ou a forma dativa lhe, estratgia menos usada (RAMOS, 1999, p. 16).

    possvel aventar a hiptese de que esse emprego do cltico no portugus brasileiro seja mais frequente em situaes de fala monitorada e na escrita, configurando-se uma tentativa de evitar o preenchimento do objeto, por um lado, com o pronome lexical ele/ela, estigmatizados, e, por outro, com o cltico cannico o/a, tambm estigmatizado por indicar pouca naturalidade.

    Possenti (2002) destaca que emprego de lhe como objeto direto est presente no apenas na fala do indivduo comum, mas em todos os espaos mais ou menos cultos. O exemplo a seguir, reproduzidos do au-tor, foi extrado da coluna do Dr. Scrates, da revista Carta Capital.

    (09) J no era to jovem, sua fora de vontade estaria prova por longos e cansativos meses. A delicada cirurgia exigiria mos habilidosas para voltar a exercer, em plenas condies, o ofcio que tanto lhe apaixona.

    notrio, como afirma Possenti (2002), que o autor da coluna quis evitar o emprego de ele, considerado inadequado para o tipo de tex-to, e, na tentativa de encontrar a forma correta, recorreu a lhe. Isso su-gere o elevado grau de desuso das formas cannicas do acusativo na ln-gua.

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    Ainda ilustrando o emprego do pronome objeto lhe como acusati-vo na escrita reproduz-se, a seguir, um exemplo de escrita mais monito-rada. Trata-se do trecho de um trabalho acadmico. A inteno eviden-ciar que, de fato, o uso de lhe acusativo parece estar a invadir todos os espaos.

    (10) Nas correspondncias trocadas com o tio, Sr. Principal de Almeida, Lavradio tambm se manifesta a esse respeito, comentando a situao vivida por seus antecessores e o possvel futuro que lhe esperava (MARCOTLIO, 2008, p. 169).

    Ramos (1999) sublinha que, no portugus brasileiro, assim como nas variedades africanas e no galego onde tambm se verifica o empre-go de lhe como nos casos exemplificados acima, o trao [+humano] do antecedente condicionaria o uso do cltico. A autora adverte que, no caso do portugus brasileiro, o estranhamento quando o lhe tem um referente [-humano] mais evidente na lngua falada e na escrita espontnea do que na lngua falada e escrita monitoradas.

    4. O pronome lhe como objeto direto pela tica das pesquisas lingusticas

    Apesar de no se tratar de uma tendncia atual na lngua, como visto, poucos estudos se empenharam na tarefa de empreender uma anli-se sistemtica sobre a questo do dito lhesmo brasileiro.

    Nascentes (1953), na primeira metade do sculo passado, j havia registrado a existncia do uso de lhe, em todo o pas, para pronominalizar o objeto direto de segunda pessoa, comparando-o ao lhesmo em espa-nhol e Marroquim (1996registrou o fenmeno na regio Nordeste, parti-cularmente nos estados de Alagoas e Pernambuco.

    Segundo Nascentes (1953) o funcionamento de lhe como objeto acusativo est correlacionado sua diminuio como dativo e analogia com os pronomes me, te, nos, vos, que podem funcionar na frase como objeto direto e como objeto indireto. O autor destaca ainda a correlao entre o desaparecimento do cltico acusativo o/a e o uso de lhe como a-cusativo. Em relao a essa ltima questo, Abaurre e Galves (2002, p. 290) afirmam que o pronome de terceira pessoa lhe se alinhou no resto do paradigma uma vez desaparecido (ou em vias de desaparecerimento) o cltico o/a.

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    Cadernos do CNLF, Vol. XV, N 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 p. 2404

    No Atlas Lingustico-Etnogrfico da Regio Sul ALERS (KOCH; KLASSMAN; ALTENHOFEN, 2002), a carta 62, que corres-ponde questo 09 do questionrio morfossinttico, registra o uso de lhe lhe (picou) como objeto direto em alternncia com (picou) voc e te (picou). Pelos dados apresentados, a variante preferida te em todas as capitais, seguida de voc.

    Lucas (2006) investiga a expresso do lhe acusativo na escrita de jovens da zona urbana do Distrito Federal com base em mensagens pos-tadas no site de relacionamentos Orkut e registra 25,8% de lhe nessa po-sio. O fenmeno tambm foi investigado por Nascimento (2001) em cartas escritas por jovens escolarizados e peas teatrais de autores alago-anos, observando-se os condicionamentos ao emprego de lhe para repre-sentar o objeto direto.

    Ramos (1999) examina o uso dos clticos de terceira pessoa le/lhe como acusativo no portugus brasileiro e no Espanhol Peninsular, com vistas a determinar as semelhanas do fenmeno nas duas lnguas. A au-tora atribui o fenmeno no portugus brasileiro tenso do sistema pro-nominal e, admitindo a necessidade de um estudo mais abrangente sobre a questo, descreve a existncia de trs comportamentos distintos em re-lao ao uso de lhe como acusativo no portugus brasileiro, que, em sua abordagem gerativa, trata como trs gramticas:

    i) Gramtica A: usa-se voc como expresso universal de tratamento, lhe para a expresso do dativo de segunda pessoa numa relao de respei-to/cortesia e te para o trato mais familiar e informal. A autora refere-se a esta gramtica como sendo a do eixo Rio-So Paulo.

    ii) Gramtica B: voc a forma de tratamento generalizada e o lhe substi-tuiu o te como acusativo e como dativo. O lhe, nessas regies, no limitado s situaes de formalidade, respeito/cortesia, mas estende-se ao tratamento familiar e informal. Esse uso corresponde, segundo a autora, aos estados de Macei, Recife, Salvador e Joo Pessoa;

    iii) Gramtica C: manteve-se a distino tu-voc para tratamento nti-mo/familiar e de respeito/cortesia, respectivamente. O uso de te e lhe obedece a essa mesma distino. Usa-se o primeiro como cltico de tu e este ltimo como cltico de voc, senhor/senhora, tanto para o dativo como o acusativo. Esta gramtica inclui a regio Norte e o estado do Maranho.

    O Nordeste do Brasil identificado nos estudos como a rea em que o fenmeno ocorre com mais intensidade, de modo que passa a ser esse uso de lhe descrito por alguns pesquisadores como marca dialetal no portugus brasileiro. Esses estudos ratificam a ideia presente em Oliveira (2004), onde se l que o pronome lhe para verbos transitivos um fen-

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    meno presente em diferentes regies do pas, embora seja mais evidente em dialetos nordestinos. A autora assume a hiptese de que o uso de lhe para pronominalizar o objeto direto deriva da reanlise do objeto direto preposicionado, que favorecido pelo trao [+humano] do objeto no s-culo XIX. Segundo a pesquisadora, no sculo XIX, o ndice de objeto di-reto preposicionado na Bahia era muito alto, ao contrrio da tendncia geral do portugus, o que explicaria a alta produtividade de lhe como ob-jeto direto nessa regio.

    Almeida e Deus (2011), investigando a expresso da segunda pes-soa em cartas dos sculos XIX e incio do XX, escritas por brasileiros cultos e semicultos estes, em sua maioria, baianos chamam a ateno para o comportamento do cltico lhe, especialmente entre os dados da amostra dos falantes semicultos. Nessas cartas, com frequncia, lhe apa-rece em funo acusativa tanto para pronominalizar o objeto direto de segunda pessoa como o de terceira. As autoras observam que, entre os remetentes cultos, o uso de lhe como acusativo irrelevante (1,7%) e s acontece na terceira pessoa, o que sugere maior preservao dos clticos anafricos, dativo e acusativo, nessa modalidade. Os falantes semi-cultos revelam 23,3% de uso de lhe como forma acusativa contra 76,7% do uso dessa forma como dativo, destacando-se que, das 13 ocorrncias, 10 fo-ram de lhe como pronome interlocutrio e 3 como acusativo de terceira pessoa.

    Embora Almeida e Deus (2011) no tenham feito uma anlise a-curada da presena do objeto direto preposicionado, referem-se ao uso recorrente dessa estrutura nas cartas analisadas, o que pode sustentar a hiptese da reanlise do cltico.

    Almeida (2009) realizou um estudo sistemtico sobre as formas de representao do objeto direto de segunda pessoa em Salvador, desta-cando o uso de lhe, que aparece em evidente concorrncia com te. Nos dados dessa pesquisa, a autora encontrou 251 ocorrncias de lhe e 247 de te. Os dados pesquisados evidenciaram que fatores como faixa etria e sexo do informante, grau de monitoramento, paralelismo discursivo con-dicionam a variao.

    A varivel faixa etria mostrou-se um fator significativo, apon-tando a conservao do lhe entre os falantes mais velhos (75 a 85 anos) e o uso de te entre os mais jovens (25 a 35 anos), sobretudo entre as mu-lheres. Na faixa intermediria (45 a 55 anos), houve neutralidade na es-colha das formas.

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    Cadernos do CNLF, Vol. XV, N 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 p. 2406

    Considerando o sexo do informante, o uso de lhe se manteve entre os homens, que se mostraram mais conservadores ao preferirem a varian-te mais antiga e mais formal na comunidade, e foi pouco evidente entre as mulheres. Na conjugao dos grupos de fatores sexo e faixa etria, os resultados ratificam a importncia da idade para explicar a variao, a-pontando para a preferncia de lhe entre homens e mulheres da faixa 3. Na faixa 2, tambm foi visvel a preferncia masculina por este pronome, ao passo que na faixa 1 a atuao deste grupo foi neutra.

    O controle da varivel escolaridade revelou ausncia de estigmati-zao da forma em Salvador, ou seja, a presso normatizadora da escola parece no atuar sobre o uso lhe. Os falantes, de modo geral, ao empre-garem o pronome em contextos de objeto direto, no tm cincia de que esto infringindo uma norma da gramtica e por isso no se policiam em relao ao seu uso.

    A anlise do fator monitoramento da fala demonstrou que h uma diferenciao estilstica das variantes em Salvador. A forma lhe revelou-se caracterstica das situaes em que se dispensa maior ateno fala. A revitalizao de te na comunidade pode estar conduzindo o falante a especializar o lhe como variante de estilos monitorados.

    Camargo Jnior (2007) investiga a realizao do objeto direto em referncia ao interlocutor em textos escritos de estudantes paulistas da 5 8 srie, observando a escolha do pronome em funo dos registros formal e informal. O autor parte da hiptese de que os clticos te e lhe so usados, respectivamente, em contextos informal e formal e que o aluno adquire o cltico lhe via aprendizagem escolar.

    No registro escrito aparecem maior uso de te e o, para os registros formal e informal, contradizendo a expectativa inicial de que o estaria em desuso para a segunda pessoa e lhe seria a opo para o registro formal. Segundo o autor, este cltico tem baixa produtividade como objeto direto nos textos analisados, permanecendo como objeto direto de segunda pessoa.

    5. Concluso

    Este trabalho reitera que a funo do pronome lhe no portugus brasileiro no se restringe quela estabelecida pela tradio gramatical, podendo aparecer em todo o Brasil como objeto direto, porm com maior incidncia em estados do Nordeste.

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