premissas (1)

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Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de S30 Paulo BIBLIOTECA Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional 33/2007 Patrimônio Arqueológico: o desafio da preservação ORGANIZAÇÃO Tania Andrade Lima

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Arqueologia

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  • Museu de Arqueologia e EtnologiaUniversidade de S30 Paulo

    BIBLIOTECA

    Revista do PatrimnioHistrico e Artstico Nacional n 33/2007

    Patrimnio Arqueolgico:o desafio da preservao

    ORGANIZAO Tania Andrade Lima

  • Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses

    PREMISSALP~A A FORMJll.AOD~~03.lLLCA~RLLCA5_EM-AlLQllLO LOG I A

    Em 1987 publiquei, nesta mesma revista,

    um artigo intitulado "Para uma poltica

    arqueolgica da Sphan".' De l para c, sob

    vrios aspectos, a arqueologia fez progressos

    no Brasil, seja na produo cientifica, na

    formao acadmica, no financiamento de

    projetos, nas exposies museolgicas, seja,

    tambm, na organizao institucional - o que

    inclui, sem dvida, a atuao do Iphan.

    Contudo, ainda h muito por fazer. No cabe,

    aqui, proceder a um balano em que as

    propostas por mim formuladas h quase duas

    dcadas fossem analisadas nas suas lacunas e

    acertos, no seu desenvolvimento, rejeio ou

    reorientao. Antes de qualquer outra

    motivao, mais que uma poltica do Iphan,

    trata-se agora de propor polticas pblicas em

    geral para a arqueologia. Alm disso, se

    continuo acreditando na pertinncia - no

    essencial - das propostas ento formuladas,

    ainda que carentes de revises e atualizaes,

    acredito, tambm, que a situao atual muito

    mais oportuna para aprofundar bom nmero

    das questes ento apontadas. Essa convico

    se deve ao fato de que os profissionais da

    arqueologia e do patrimnio cultural em

    geral vm-se preocupando cada vez mais

    em identificar problemas, critrios e

    encaminhamentos que orientem polticas

    pblicas. Por outro lado, parece consolidada,

    hoje - aps um trajeto dificlimo e prolongado

    _ a aceitao do patrimnio como fato social.

    Seria ocioso explicitar as muitas e amplas

    implicaes de tal entendimento,

    em especial para nosso tema. De sua parte,

    tpicos relativos gesto do patrimnioarqueolgico tm sido objeto de debates em

    encontros acadmicos (como, recentemente,

    o worksbop "Gerenciamento do patrimnio

    cultural- arqueologia", em Goinia, 2005)

    e em vrios tipos de publicaes. Dentre estas,

    saliento, pelo seu bom nvel e importncia,

    a coletnea organizada por Manuel Ferreira

    Filho e Mrcia Bezerra, Os caminhos do

    patrimnio no Brasil.2 Finalmente, cumpre

    registrar, ainda, a existncia de trabalhos

    acadmicos, como a recente dissertao de

    mestrado de Maria Lcia Pardi, sobre

    precisamente Gesio do patrimnio arqueol8iCO,

    com propostas operacionais pertinentes.'

    Dispenso-me, assim, de retomar questes

    que me pareceram de consenso quase geral.

    Preferi trabalhar apenas questes em aberto

    ou insuficientemente aprofundadas ou

    sujeitas a mal-entendidos. Com efeito, ainda

    so freqentes, entre ns, propostas bem-

    intencionadas e politicamente corretissimas,

    mas que no levaram em conta a

    complexidade das situaes e objetivos

    em causa, nem os melhores fundamentos

    e categorias de anlise. Tambm est fora

    de meu horizonte discutir questes

    z-e.

    37

  • .o.

    Pgma J6

    Acervo arqueolgico

    da Universidade

    Federal do Par,

    Belm/PA.

    roro: Tadeu Gollfel ~s

    Nt"""O:IDhQn

    .~

    -instrumentais e operacionais - no porque

    sejam menos importantes, mas porque

    dependem das preliminares.

    Em suma, no me pareceu adequado

    sugerir, agora, uma proposta propriamente

    dita de polticas pblicas para a arqueologia

    no Brasil, mas sim abrir espao para refletir

    sobre diretrizes de futuras propostas e

    avanar no seu arcabouo e fundamentos.

    POLTICAS

    PBLICAS:

    PODER PB

    I N T E R E S S EL I C O ,

    PBLICO

    diretos que a perspectiva paternalista

    (entre ns dominante) traz para a

    problemtica especfica do patrimnio

    arqueolgico.

    Elaborado por Tania Andrade lima,'

    um levantamento preciso, analtico, muito

    equilibrado e com perspectiva histrica

    sobre as relaes entre o poder pblico

    (concentrado no lphan) e a comunidade

    dos arquelogos (representada pela

    Sociedade de Arqueologia Brasileira _

    SAB), relaes particularmente belicosas

    na dcada de 1980, trouxe luz uma feroz

    disputa. Esta girou principalmente em

    torno da competncia do "governo",

    ao concretamente regular e intervir na

    prtica da pesquisa de campo, fixando-se

    tambm nos interesses dos profissionais

    ou da pesquisa arqueolgica, em suma,

    da "arqueologia". No nego a legitimidade

    dos contendores, na defesa de seus direitos

    e interesses respectivos, nem me compete

    julgar o autoritarismo de uns e o

    corporativismo de outros. Apenas me cabe

    acenar para os desvios que surgem a partir

    do momento em que se esquece o critrio

    impositivamente prioritrio para estabelecer

    o justo ponto nos desencontros: o interesse

    pblico. Vista de outro ngulo, a situao

    compreensvel: bem ou mal, estamos j

    no caminho de consolidar instituies

    e comportamentos democrticos,

    inclusive na conscincia de direitos e na

    possibilidade de reivindicar que eles sejam

    efetivados; j a conscincia das obrigaes

    do cidado, em referncia ao interesse

    social, ao bem comum - a conscincia

    republicana -, esta ainda permanece em

    embrio. preciso nos convencermos de

    IIf,~~

    If

    II

    II

    que democracia no coincide com

    um regime poltico, muito menos com

    possibilidades de participao poltica,

    mas, antes de tudo, se define pelo objetivo

    maior da poltica, que o bem comum.

    Por isso, democracia sem Repblica corre

    o risco de reduzir-se a formalismos capazes

    de legitimar interesses de grupo,

    mascarados como se fossem da sociedade.

    Polticas pblicas, assim, deveriam

    articular direitos democrticos e

    responsabilidades republicanas.

    Em conseqncia, no se trata de esvaziar

    as responsabilidades do "governo" nem de

    terceirizar aquelas do "cidado" t

    transferindo-as ao poder pblico, sem

    assumir a parte que cabe sociedade e,

    sobretudo, sem procurar definir s claras

    e defender o interesse coletivo, os direitos

    da sociedade. Como se v, o problema

    das polticas pblicas visceralmente

    poltico em sua natureza. Sem categorias

    recortadas, explcitas e estveis, mas

    gerado num campo de ambigidades e

    conflitos, pressupe necessariamente a

    negociao. Em tal campo, muito mais

    fcil definir princpios abstratos do que

    dimensionar situaes. No entanto, preferi,

    aqui, ater-me aos princpios, no para

    refugiar-me num espao tranqilo, mas

    porque se deve saber de que princpios se

    parte para a caminhada. E, no seu curso,

    convm referir-se sempre a esses mesmos

    princpios, no para adapt-los s

    circunstncias, mas para saber se eles

    foram suficientemente explicitados e

    aproveitados para guiar o comportamento

    diante das circunstncias e novas situaes.

    Resta apenas dizer que se vem

    generalizando este ntendimento de que as

    polticas pblicas envolvem a definio de

    objetivos e caminhos de ao priorizados

    segundo o interesse pblico e compartilhados

    pelo poder pblico e pelos segmentos

    sociais interessados e envolvidos."

    No que toca aos arquelogos, se ainda

    h problemas pendentes, a forma com

    que eles so tratados hoje plenamente

    aceitvel e guarda distncia com as

    propostas corporativas da chamada

    "Carta de Goinia".

    Que implicaes tais posturas podem

    ecoar no campo da arqueologia?

    Nada que deva ser resolvido somente com

    diplomas legais, cdigos de tica, cartas de

    recomendaes e semelhantes. Trata-se,

    antes de tudo, de uma postura e de uma

    convico que devem permear todos os

    campos de concepo e atuao.

    Portanto, em todas as questes aqui

    levantadas h espao para guiar-se segundo

    o interesse pblico como critrio prioritrio.

    Por isso mesmo, no h interesse em reservar

    um item particular para discutir aqui essa

    dimenso especfica das polticas pblicas

    nos domnios da arqueologia.

    A primeira questo dessa agenda

    pouco complexa conceitualmente, mas

    nada fcil de irnplernentar, O ponto de

    partida definir qual a matriz adequada

    e quais os lugares das polticas pblicas.

    Num pas de secular tradio

    patrimonialista, em que predomina ainda

    a idia do Estado provedor e c1ientelista,

    o peso da sociedade muito leve, e fica claro

    que a expresso "polticas pblicas" quase

    sempre entendida como "o Estado em ao".

    Tal concepo, alis, est na origem desse

    campo de anlise acadmica e de

    reivindicaes sociais que so as polticas

    pblicas. No se trata, aqui, de discutir

    o modelo de Estado que nos convm

    (do Estado mnimo, do laissezjaire, ao

    Estado estatizante, passando pelo Estado

    arena de lutas ou mediador e civilizador,

    e assim por diante). Julgo, ao contrrio,

    que mais proveitoso prioritariamente

    acentuar as responsabilidades dos cidados

    e procurar perceber os inconvenientes

    39

    o o O I P H A NP A P E L

    Ainda que as polticas pblicas no se

    esgotem na atuao do poder pblico, como

    acabamos de acentuar, tem sentido refletir,

    desde j, sobre o papel do Estado em nosso

    campo, e dedicar espao apropriado ao Iphan.

    Nosso ordenarnento jurdico prev

    funes normativas, regulatrias e o poder

    de polcia que tm no lphan o instrumento

  • .o

    o.

    40

    especfico pelo qual a Unio atua. Todas as

    demais funes podem ser co-divididas com

    outros rgos pblicos (federais,

    estaduais/ distritais, municipais), entidades

    privadas e demais segmentos organizados

    da sociedade. Assim, mesmo a proteo

    legal e outros assuntos -- como educao,

    valorizao, fomento, preservao fsica e

    social etc. - teriam de receber resposta da

    sociedade. Por certo, isso no significa

    que a atuao do Iphan no deva ter marcas

    caractersticas nessas tarefas compartilhadas,

    nem que a colaborao ou iniciativas

    autnomas da sociedade dispensem traos

    determinados. Mas no se trata, a meu ver,

    de questes polmicas. Dentre estas,

    convm reexaminar duas, que me parecem

    muito sintomticas.

    PESQUISA

    A pesquisa o ponto de partida na

    gesto do patrimnio arqueolgico.

    No caso de outras esferas, sem dvida,

    as diversas aes a serem empreendidas

    dependem das informaes e conhecimento

    trazidos pela pesquisa. No caso, porm,

    do patrimnio arqueolgico a prpria

    existncia social dos bens que est

    condicionada pela pesquisa. Em outras

    palavras, uma estrutura arquitetnica,

    um espao urbano, uma coleo de obras

    de arte, uma paisagem, por exemplo,

    contam com existncia ernprica que os

    torna mobilizveis para insero imediata

    na vida sociocultural. J O patrimnio

    arqueolgico, por sua natureza ambiental

    e circunstncias dominantes, apenas vem

    luz, em princpio, pela intermediao da

    pesquisa e, sobretudo, da pesquisa de

    campo. Por certo, deve-se levar em conta

    escalas variadas mediando os extremos:

    a arqueologia histrica pode aproximar-se

    do plo oposto; uma coleo de artefatos

    fora de contexto (ambiental ou cognitivo)

    tCITI parte do acesso comprometido mas

    est disponvel, tanto quanto um stio

    superficial com vestgios flor do solo,

    e assim por diante. a situao-padro,

    porm, vale, ao menos como metfora,

    o paralelismo recalques/ arqueologia que

    Freud props para a presena escondida

    (embora produza conseqncias) de

    material psquico danificado e reprimido,

    nas profundezas do inconsciente e,

    de outro lado, a cura analtica que o libera.

    O patrimnio arqueolgico, assim, pode

    permanecer apenas em estado virtual,

    at que a pesquisa o torne atual.

    Alm disso, O carter ambiental do

    registro arqueolgico, j apontado,

    faz com que a identidade dos bens

    arqueolgicos s se configure na

    integrao de dados diversificados que

    no se produzem forada pesquisa.

    Nessas condies, deveria o lphan, para

    cumprir seus objetivos, transformar-se em

    instituio de pesquisa? O quadro acima

    exposto j por si denuncia a impossibilidade

    dessa alternativa. A considerao do fato

    arqueolgico na sua multiplicidade intrnseca

    exige articulao das cincias ambientais,

    das cincias exatas e das cincias sociais,

    que s a universalidade da universidade

    capaz de suprir no n vcl desejvel. Por sua

    vez, as instituies de pesquisa podem definir

    linhas prioritrias de investigao e nelas

    investir, mas um rgo gue deve cobrir todo

    o territrio nacional no pode Iruir deste

    privilgio E, por cima, a responsabilidade

    instituinte do lphan a preservao em

    todas as suas dimenses."

    Imaginando-se 'luc (como se viu, no

    caso da arquitetura, de ncleos urbanos ou

    de bens mveis) a pesquisa no Iphan no o objeriro, mas um indispensvel insumo para

    a ao (e o gue ultrapassasse esse nvel

    esrritamente utilitrio seria levado conta

    dejrinae benejt, seria ento cabvel, quanto

    arqueologia, terceirizar a pesquisa, passando

    o rgo federal a depender dos institutos

    cientficos, pois neles a pesquisa uma das

    metas? Levada s suas conseqncias mais

    radicais, tal distino entre urna "arqueologia

    acadmica" e urna "arqueologia

    preservacionista" produziria burocratizao

    inaceitvel e irrcmissvel. Para ficar num s

    exemplo, como tomar decises nos pedidos

    de autorizao de pesquisa, se dela s se tem

    conhecimento por mediaes sucessi vas

    e de toda sorte? Naturalmente, seria ingnuo

    contrapor-se necessria especializao defunes. Todavia, trs condies, penso eu,

    poderiam ser propostas:

    1_ A especializao no pode

    desmobilizar nem o rigor da formao,

    nem as responsabilidades sociais de ambos

    os espaos funcionais;

    2. As tarefas de pesquisa cientfica

    e de atuao preservacionista exibem

    --peculiaridades e prioridades respectivas

    que no podem romper ou debilitar o crculo

    solidrio e absolutamente nterdependentc

    em que se integram;

    3- Devem-se recusar hierarquias e

    privilgios derivados das peculiaridades dessas

    tarefas institucionalmentc diversficadas.

    Do exposto tem-se que o arquelogo

    no lphan deve ser um arguelogo de direito

    pleno, com experincia plena nesse domnio

    e, portanto, participante de pesquisas de

    campo e laboratrio. As modalidades

    variam, mas seria recomendvel integrar-se

    (formalmente, mediante convnios)

    a grupos de pesquisa acadmica. Tambm

    nada impede, conceitualmentc, que o rgo

    federal desenvolva algwls projetos prprios

    especficos, como j ocorre no domnio da

    arqueologia histrica, mas seria sempre

    desejvel incorporar, tambm nisso,

    pesquisadores acadmicos. De qualquer

    modo, preciso lembrar que, a esse

    respeito, o problema das empresas de

    arqueologia contratual no muito

    diferente, pois elas tambm no

    dispem de laboratrios, articulaes

    multdscplnares permanentes,

    bibliotecas adequadas, depsitos,

    espaos de exposio e outros recursos.

    Finalmente, embora o caminho adequado

    j esteja implcito no que se disse acima,

    no seria demais explicitar um aspecto

    problemtico que persiste ainda hoje.

    Se necessrio que os tcnicos do Iphan

    tenham experincia em todos os passos

    e instncias da produo do conhecimento

    cientfico, jamais tal pressuposto poderia

    servir de libi para descuidar-se das

    responsabilidades institucionalmente

    prioritrias de gesto do patrimnio

    arqueolgico e dedicar-se pesquisa

    como se, na instituio) ela no devesse ser,

    antes de mais nada, a condio de qualificar

    as aes de preservao. Ainda mais se

    tal desvio acarreta atrasos ou negligncia

    nas prestaes de "servio ao pblico" -

    o.

    41

  • 'I

    .o.

    42

    o que deveria definir a postura do

    "servidor pblico".

    Esses problemas todos tm correlao

    com os dilemas da formao. Pela sua

    especificidade, no tem cabimento discuti-

    Ias aqui. Mas tm de constar da agenda

    de questes controversas, merecedoras

    de debate. No se trata apenas de analisar

    as alternativas de formao do arquelogo,

    dos gestores culturais (dos mestrados

    profissonalizantes), do muselogo,

    dos guardas-parques, dos guias, etc.

    Mas, igualmente, de examinar casos

    comparveis, como os do cnico!tecnlogo,

    do pesquisador/professor, dos

    administradores de pesquisa nas agncias

    de fomento, do mdico e do paramdico

    e categorias assemelhadas. Muitas vezes tais

    temas so discutidos a partir de ticas

    puramente corporativas. Assim, o que

    poderia parecer, de incio, combate

    a uma postura elitista, que assume

    mascaradamente a quintessncia do elitismo.

    indispensvel, repito, ter presente que a

    nica matriz legtima das distines precisa

    estar nas tarefas e no nos agentes.

    Estas, claro, em si e nas suas

    circunstncias, impem caractersticas

    diferenciadas e, sobretudo, responsabilidades

    diferenciadas. Mas no legitimam, como j

    se disse, a transferncia de responsabilidades

    - sejam as cientficas, sejam as de

    preservao, educao e todas as demais.

    No se pode pensar num produtor de

    conhecimento e, em seguida, numa simples

    cadeia de transmisso desse conhecimento

    j produzido a profissionais sem qualquer

    autonomia, puros membros executivos de

    aes cujo controle cognitivo Ihes externo.

    As escalas de responsabilidade cientfica

    e cultural podem ser diferentes

    e institucionalmcnte especializadas,

    mas precisam associar-se solidariamente

    c no linearmente.

    Nesta altura, cabe inserir o problema

    das autorizaes de pesquisa. No creio

    haver divergncia quanto legalidade elegitimidade da indispensvel autorizao

    para a pesquisa de campo arqueolgica.

    As normas legais so claras e simples ao

    concederem tal competncia ao Iphan (nos

    casos de terrenos de marinha, ao respectivo

    ministrio). Os fundamentos de tal exigncia

    tambm so cristalinos: no somente se trata

    de bens da Unio, como, ainda, a pesquisa de

    campo completa elimina, obrigatoriamente,

    parte considervel do referencial

    arqueolgico. Nessas condies, se a poltica

    pblica se pautar pelo interesse pblico,

    uma poltica pblica arqueolgica

    recomendaria alteraes na formulao

    do primeiro item do Cdigo de tica da

    Sociedade de Arqueologia Brasileira (no

    restante, diga-se de passagem, bastante

    bom), datado de 1997. Com efeito, ao

    garantir aos arquelogos o privilgio do

    "pleno exerccio da pesquisa e acesso s

    fontes de dados, bem como liberdade

    no que se refere terntica, metodologia

    e ao objeto de investigao", parece-me que

    se ultrapassou indevidamente a barreira do

    interesse pblico. No teria cabimento,

    nas autorizaes exigidas por lei, proceder

    a uma triagem ideolgica, terica, ou da

    probidade pessoal e cientfica do pesquisador

    e sua carreira, nem limitar sua liberdade de

    opes intelectuais. Mas como assegurar

    pleno acesso a um recurso pblico no

    reciclvel e de destinao social, sem julgar

    a accitabilidade das condies de uso em

    causa? O lphan no pode arvorar-se em

    simulacro de um Conselho Federal de

    Arqueologia, mas tem de atuar como o

    representante do interesse social.

    Como consta do j mencionado relato

    de Tania Andrade Lima, um dos pontos

    fundamentais da disputa entre o Iphan

    e a SAB foi a exigncia, por aquele, de

    um "plano de trabalho cientfico".

    Tendo participado da redao da minuta da

    Portaria n" 7/1988 do lphan, que instituiu

    tal exigncia, pude, ao longo dos ltimos

    quase vinte anos confirmar sua pertinncia.

    De outra forma, como avaliar, seno pelo

    mrito, os riscos, convenincias e outros

    objetivos referentes salvaguarda do

    interesse pblico? Ou a autorizao de que

    fala a Lei n" 3.924/1961 se converteria em

    questo meramente formal, a postular to s

    um carimbo homologatrio, em benefcio,

    no da coisa pblica, mas de interesses

    particulares? A opo exclusivamente formal

    foi a que predominou, em tempos passados,

    na recusa dessa exigncia, sob alegao de

    que uma portaria no poderia sobrepor-se

    a uma lei, e a lei em questo no inclura

    literalmente o projeto de pesquisa entre

    os requisitos obrigatrios. Certamente

    a hierarquia dos diplomas legais no pode

    ser subvertida, mas a questo no me

    parece to simples como foi apresentada.

    bem verdade que, no caso de

    particulares, a lei prev o estabelecimento

    de "condies a serem observadas no

    desenvolvimento das escavaes e estudos"

    (art.l O). J no caso das instituies

    cientficas especializadas da Unio,

    dos Estados e dos municpios, prev,

    explicitamente, to s a prvia comunicao

    e posterior smula dos resultados obtidos

    e destino do material coletado (art.16).

    Mas, se a interpretao da lei deve levar

    em conta o objetivo para o qual O legislador

    a orientou, como respeitar o alvo maior,

    estabelecido no art. 10, que assegurar

    aos "monumentos arqueolgicos ou

    pr-histricos" a guarda e proteo do

    poder pblico? Ora, quando se trata de

    uma interveno potencialmente

    destrutiva, a vinculao institucional dos

    agentes pode constituir uma presuno

    de aceitabilidade, porm, no, uma

    comprovao. Inexistindo exame de mrito

    (que tem no projeto de interveno

    cientfica sua melhor referncia), os

    objetivos da preservao somente se

    contemplariam no exerccio do poder de

    polcia (como nos embargos), quando j

    houvesse dano efetivo ou risco iminente,

    ou ento nos procedimentos punitivos?

    Que serventia preservacionista maior teria de

    julgar o mrito exclusivamente a posteriori]

    interessante que, na seqncia,a legislao de proteo ambiental

    e os Iicenciamentos ambientais tornaram

    palatvel a apresentao de projetos

    de pesquisa. Estes ingressam no campo

    da arqueologia pela porta lateral, como

    tambm ocorreu com a apresentao de

    relatrios consistentes e outras obrigaes,

    como as de carter educacional. Tambm

    no se poderia esquecer o que acontece

    em outras reas do patrimnio cultural,

    em que a apresentao de um projeto

    de pesquisa de rigor. Assim, hoje em dia,

    penso, no h arquelogo que recuse a

    Oc,

    .o.

    43

  • exigncia de apresentao de um projeto

    formal de pesquisa, com o rigor cientfico

    que sua formulao pressupe.

    Quero crer, por isso mesmo, que o

    desconforto efetivo da SAB nos anos 80

    e posteriores no estivesse nos argumentos

    acima debatidos. Mas na desconfiana

    representada pelo lphan , cuja omisso de

    servio, na rea, foi ento considervel,

    embora no deixasse de estar presente

    no exerccio implacvel e prepotente de

    sua autoridade, diante de uma comunidade

    acadmica com maior experincia. Esse

    desconforto , sim, pertinente, e merece,pois, considerao.

    Os profissionais do quadro do Iphan

    (e isso vale para os demais nveis do poder

    pblico, claro) devem ter a mesma

    competncia de base que seus colegas

    na academia ou empresas especializadas."

    Isso, todavia, no basta para solucionar

    os problemas previsveis. Se o poder de

    polcia requer mecanismos mais geis e a

    ao de indivduos cujas responsabilidades

    estejam claramente definidas, as decises

    de mrito como as relativas pesquisaarqueolgica demandariam a segurana de

    decises colegiadas. Na atual sistemtica

    do lphan, sobretudo em funo de prazos,

    a mobilizao do Conselho Consultivo

    problemtica, mas poderia ser suprida com

    comits assessores especializados,

    tais como nas agncias de pesquisa,

    prevendo-se, ainda, as instncias recursais

    apropriadas. Outras solues, sem dvida,

    podero ser at mais efetivas. No, porm,

    as que invertam a prevalncia do interesse

    pblico sobre o privado. Nem sob a

    alegao de que "quem autoriza no

    44

    executa", pois ela carece de fundamento

    tico, poltico, legal ou administrativo.

    Caso contrrio, como poderia, por

    exemplo, o prprio lphan cumprir a lei

    ao autorizar e, ao mesmo tempo, executar

    intervenes em bens arquitetnicos,

    paisagsticos e urbansticos? O princpio

    tico outro: "no cabe decidir em

    causa prprta". Como decorrncia, no caceitvel pensar em autorizaes ex.-1Jicio

    para os quadros domsticos, com dispensa

    da apresentao de projetos e de seu

    julgamento, avaliao dos resultados,

    obrigao de publicao cientfica etc.

    A competncia do rgo no coincide com

    a competncia de cada um de seus agentes.

    Outra questo correlata quelas a da

    arqueologia por contrato. De novo,

    insidiosamente, tem-se falado numa

    antinomia entre uma "arqueologia acadmica"

    e uma "arqueologia empresarial". No fundo,

    trata-se de um deslocamento, nas condies

    excepcionais de risco e urgncia dos

    impactos ambientais e casos de salvamento,

    para justificar a reduo da pesquisa

    arqueolgica a mero levantamento de

    informaes primrias. Seria ignorar

    que dado bruto no irormao e que

    informao matria-prima do

    conhecimento, mas no se confunde com ele.

    Parece que estamos regredindo a discusses

    que desperdiaram tanta energia em meados

    do sculo passado. Era quando se postulava

    como essencial distinguir disciplinas

    nomotticas (a verdadeira cincia ... ) das

    idiogrficas e se julgava possvel, por

    exemplo, isolar a etnologia da etnografia,

    a "descrio" da "interpretao" e assim por

    diante: de novo, so os critrios

    prioritariamente corporativos (portanto de

    poder e

  • .o.

    oc,

    a exemplo do que existe em vrios pases,

    realizasse servios, providenciasse formao,

    fornecesse assessoria e informaes

    e tambm funcionasse como uma

    referncia-padro na rea.

    Uma outra tarefa a documentao,que precisa estar centralizada no lphan.

    A documentao um indispensvel

    instrumento de gesto. Assim, h vrios

    tipos de informao que instituies,

    empresas, profissionais, colees,

    antiqurtos so obrigados (por lei)

    a prestar ao poder pblico, o que refora

    a importncia de um Banco de Dados

    (informatizado, claro). Mas a

    documentao vai muito alm desses

    limites. Alm disso, se a pesquisa alimenta

    a gesto patrimonial, a documentao

    retroalimenta a pesquisa. J h atividades

    nucleadas no rgo federal, a partir do

    Cadastro Nacional de Stios Arqueolgicos

    e com vistas ao Sistema Nacional de

    Informao Arqueolgica' Entretanto,

    uma comparao com rgos similares

    em outros pases, como o Istituto Centrale

    per iI Catalogo e Ia Documentazione

    (Itlia), poderia ser proveitosa para divisar

    outras tarefas, como a norrnatizao de

    nomenclatura e padres tcnicos,

    identificao dos objetos da documentao,

    dos instrumentos de data retrevol aos

    corpora e repertrios temticos (dataes

    radiocarbnicas e outras, manifestaes

    rupestres, fases e tradies etc.),

    das colees (no pas e no exterior,

    de interesse para a arqueologia brasileira).

    E, ainda, os critrios de relevncia e

    avaliao de danos, os critrios e condies

    de acesso informao c assim por diante.

    Vale notar que a importncia da

    documentao justificaria que ela fosse

    objeto de projetos especficos de curta

    e longa durao.

    VALORIZAO

    Apenas duas questes me pareceram

    exibir traos controversos, de modo a

    justificar, aqui, a sua incluso: a educao

    e o turismo. Uma terceira questo -

    as formas de compartilhamento das aes

    de promoo cultural com a sociedade -

    teria de ser discutida em mbito geral,

    fora de nosso horizonte imediato.

    Alm disso, apesar de dificuldades

    operacionais de monta, ela no apresenta

    dissenses graves quanto s premissas.

    EDUCAO

    Este um campo crucial, de que

    depende grande parcela da eficcia que

    qualquer outro encaminhamento pode

    gerar. Todavia, um domnio que norecebeu, ainda, a devida ateno, nem

    como reflexo, nem como prtica -

    embora alguns projetos recentemente

    desenvolvidos ou em desenvolvimento

    tenham apontado rumos aproveitves, I.

    Este tambm um domnio em que a ao

    da sociedade, sob muitos aspectos, pode

    ser mais eficaz que a ao do poder

    pblico. Finalmente, preciso acrescentar

    que a legislao relativa a intervenes

    capazes de provocar impactos ambientais

    trouxe combustvel precioso, ao incluir,

    como contrapartida obrigatria, aes

    educacionais patrocinadas pelos

    empreendedores; e levou tambm,

    algumas vezes, a improvisaes que

    revelam a necessidade de avaliar algumas

    premissas e posturas.

    Desse modo, sem pretender dar conta

    dos aspectos essenciais de uma ao

    educacional nos quadros de uma poltica

    arqueolgica, abordei to somente aqueles

    tpicos muito presentes na bibliografia

    brasileira, nos quais, por seu teor

    problemtico, vejo interesse em rediscutir

    fundamentos e implicaes. este o caso

    do lugar da educao (e da formao

    profissional), da educao (e da formao

    profissional), da educao como formao

    crtica e as ambigidades da memria, da

    identidade e do relativismo cultural."

    Como tem sido reconhecido, O tema

    envolve a educao formal e a informa!.

    Por certo, sempre mais fcil fazer

    propostas que incluam novas disciplinas

    (como educao patrimonial) ou temas nas

    disciplinas curriculares (como em histria,

    geografia, estudos do meio, etc.).

    Nada a opor a tais escolhas, salvo que sua

    eficcia depende de variveis de controle

    difcil - a principal das quais a situao

    geral negativa em que se encontra nosso

    ensino fundamental e mdio, assim como

    O preparo de docentes.

    No interior da prpria comunidade

    arqueolgica e do patrimnio, porm, h

    questes e posturas que merecem reflexo.

    Talvez valha a pena chamar a ateno para

    o inconveniente de fazer da identidade e da

    memria objetos de outorga ou induo,

    o 'lue por vezes beira a doutrinao. Seria

    salutar, para desencorajamento, um contato

    com os descaminhos no muito longnquos

    dos Centros Populares de Cultura, da dcada

    de 1960, que se transformaram numa

    arregimentao popular para um projeto

    paterna lista de intelectuais militantes.

    E concluir, como fez Teixeira Coelho Neto:

    De um modo ou de outro, pacifico que a aocultural ou uma operao sociocultural ou noexiste. A1esmo assim, uma concepo mais radical

    da ao cultural, e acaso mais diana, a que

    aposta na tese sepundo a qual o objetivo da ao

    cultural no construir um tipo determinado de

    sociedade, mas provocar as conscincias para que

    se apossem de si mesmas e criem as condies para

    a totalizao, no sentido dia/tico do termo. de um

    novo tipo de vida, derivado do erifrentamento

    aberto das tenses e conflitos SUT8idos na prtica

    social concreta. 12

    H outras questes 'lue devem ser levadas

    em conta, para superar uma viso smplista

    dos problemas em causa. As cincias sociais

    contam hoje com vasto arsenal de estudos

    (em que se distinguem os de psicologia social,

    sociologia e antropologia). Tais estudos

    demonstram cabahnente a natureza

    ideolgica, processual e situacional dos

    processos identitrios e dos mecanismos da

    memria, que podem legitimamente servir

    de armas de luta poltica, mas no podem ser

    concebidos como essncias reificadas,

    transferveis de fora e implantados como

    trilhos a serem percorridos.

    Assim, convm ter presente 'lue a

    memria no pode ser objeto de "resgate",

    pois ela no deve ser confundida com os

    referenciais pelos quais os indivduos,

    grupos e sociedade constroem e

    continuamente reconstroem (sempre em

    funo das necessidades impostas pelas

    oc,

    ~

    o

    zo

    ~ "

    47

  • o I ~I

    - I i ~I

    ~ I

    o

    situaes) uma auto-imagem de estabilidade

    e permanncia. Trata-se de um processo

    historicamente mutvel, de um trabalho,

    e no de algo objetivado ou de um pacote

    fechado de recordaes induzidas.

    Alm disso, mais 'lue mecanismo de registro

    e reteno, depsito de informaes,

    conhecimento e experincia, a memria

    um mecanismo de esquecimento programado.

    por'lue a memria se constri filtrando e

    selecionando 'lue ela pode tambm ser

    induzida - mas legtimo induzir memria?

    Da mesma forma, a identidade no uma

    quintessncia imanente e imutvel, imune

    s transformaes (os cones e os artefatos

    "tpicos" to comuns em taxonomias

    arqueolgicas e museolgicas correm o risco,

    se no tratados devidamente, de congelar tais

    essncias fora da histria). Por outra parte,

    os processos identitrios - tambm eles

    extremamente sensveis s situaes -

    definem-se mais pelas diferenas 'lue

    procuram marcar do 'lue pelas semelhanas

    consigo mesmos. Em outras palavras,

    tais processos precisam ser entendidos, antes

    de mais nada, como estratgias de excluso,

    em funo de um "eu" (individual ou social)

    'lue se define sempre em confronto com um

    outro, do qual busca distinguir-se.

    Identidade e memria so ingredientes

    fundamentais da nterao social, presentes

    em tantos de seus domnios - e, por isso,

    no poderiam em hiptese alguma estar

    ausentes do quadro da educao.

    A identidade e a memria garantem a

    produo e reproduo da vida biolgica,

    psquica e social. Do suporte a um eixo

    de atribuio de sentidos sem os 'luais a vida

    se fragmentaria num permanente salto no

    escuro. Contudo, memria e identidade

    no so fenmenos eticamente neutros,

    nem automaticamente bons: 'lue o digam

    os conflitos identitr ios na frica, no

    Oriente Mdio, nos Blcs, na Irlanda ou no

    Pas Basco, ou em outras partes do mundo

    contemporneo, em que os atos mais cruis

    so justificados por memrias e identidades.

    Alm disso, h um dado novo 'lue no

    pode ser ignorado: o 'lue os especialistas

    tm denominado de cultural tum (virada

    cultural), 'luer dizer, a tendncia cada vez

    mais acentuada nas cincias sociais de

    concentrar na cultura, 'luase sempre de

    forma redutora, fenmenos 'lue deveriam

    manter seu contorno prprio - por

    exemplo, de natureza econmica, poltica

    ou social. E no se trata de uma ocorrncia

    apenas no meio acadmico, mas de um modo

    de ver generalizado na sociedade. E 'lue se

    manifesta no apenas nas polticas pblicas,

    mas tambm nas polticas das grandes

    corpo raes (cuja imagem vetar

    fundamental de reproduo e expanso),

    na indstria cultural e nos meios de

    comunicao de massa, no universo de

    consumo, em movimentos minoritrios

    (feminismo, minorias sexuais, conflitos

    religiosos e tnicos). O campo do patrimnio

    arqueolgico no se exclui da tendncia.

    Os crticos da "virada cultural", cada vez mais

    numerosos, no deixaram de observar um

    dado altamente significativo para nossa

    anlise: as reivindicaes denominadas

    redistrtbuvas (que se referem excluso

    econmica e social), outrora predominantes,

    esto sendo substitudas por reivindicaes

    de reconhecimento, isto , aquelas cujo foco

    a identidade - muitas vezes com marcas

    de lugares sociais distintos. Haja vista as

    manifestaes e movimentos de massa,

    ocorridos na Frana em 2005 e no corrente

    ano, primeiro com cidados filhos de

    imigrantes e moradores das periferias

    (de carter nitidamente identitrio) e,

    depois, as dos jovens de classe mdia

    contra lei reguladora do primeiro emprego

    (de carter explicitamente econmico).

    Mas, h ainda questes em aberto:

    na tica com 'lue tem sido focalizada,

    a identidade em causa s deveria dizer

    respeito ao patrimnio ernoarqueolgico

    de comunidades indgenas remanescentes.

    Ou aos quilombolas e casos semelhantes,

    principalmente os vinculados arqueologia

    histrica. O 'lue, obviamente, um filo 'lue

    no pode ser descartado, mas representa

    parcela reduzida dos benefcrios potenciais

    dessas aes educativas. Infelizmente no

    podemos dizer "nossos antepassados tupis-

    guaranis", da forma como Astrix motivou

    os franceses a dizer nos anctres Ies SQu/ois.

    Oarcy Ribeiro repetia incessantemente 'lue

    os ndios esto presentes no povo brasileiro

    por excluso! possvel mudar o processo

    daqui por diante, no reconstru-Ia para trs.

    Da mesma maneira, no se pode dizer, como

    acontece, que o povo brasileiro no tem

    memria: no se pode ter memria alheia,

    salvo por violncia. Benedct Anderson criou

    uma categoria, hoje muito repetida,

    de ima8ined communities para explorar a

    origem e a difuso do nacionalismo Na sua

    esteira, lan Russell" estuda no turismo e nas

    representaes do passado arqueolgico

    as imagined arcboeoioqical commun ues.

    Mas possvel tambm reconhecer,

    como faz Alexandre Corra," 'lue esteja

    ocorrendo um "retorno do recalcado",

    com a ampliao de espao dos "patrimnios

    no consagrados", vinculados s memrias

    sociais das etnias, dos imigrantes, dos negros

    e indgenas e consideradas materiais

    reprimidos. certamente possvel, mas,

    no caso da parecia maior de nosso

    patrimnio arqueolgico, vejo dificuldade

    em seguir a linha do reprimido at seus

    sucessores nossos contemporneos.

    De todo modo, ainda 'lue no se possa

    integrar o poltico com o cognitivo, nessa

    reabilitao da presena esquecida dos

    diversos contingentes humanos formadores

    de nossa sociedade, a arqueologia fornecer,

    sempre, material para tornar inteligvel o

    fenmeno da transformao das sociedades -

    e isto seria um caminho frtil para ser

    explorado na educao.

    Diante dessas consideraes todas,

    o 'lue significaria, ento, uma ao educativa

    no tocante ao patrimnio arqueolgico?

    Colaborar na construo ou reforo e

    valorao das identidades e memrias,

    essncias puras (ou, quando impuras,

    'lue se impe purificar)? Pior ainda: propor

    aos outros a memria e os contedos

    identitrios que so de meu interesse,

    supondo 'lue deveriam ser do interesse

    dos "educandos"? O caminho mais fcil,

    imediato e de resposta rpida. Mas tambm

    de novo enredar-se complacentemente

    numa miragem ideolgica, ainda quando se

    julgue 'lue se trate de "boa" e "democrtica"

    ideologia. Educar no poderia ser entendido

    corno ao indutora de modelos de homem

    e sociedade. Convm sempre lembrar a

    diretriz essencial de John Oewey: educar

    garantir ao indivduo condies para 'lue ele

    .o.

    49

  • continue aeducar-se. Em outras palavras,

    educar pomover a autonomia do ser

    consciente '1ue podemos ser - capazes de

    proceder a escolhas, hierarquias alternativas,

    formular e ROS guiar por valores e critrios

    ticos, de~r convenincias mltiplas e seus

    efeitos. reeenhecer erros e insuficincias,

    propor e ropropor direes. indispensvel

    lembrar q", sem autonomia, no pode

    haver auto-estima.

    vivel educao que no tenha como

    eixo a for.ao crtica? Estou seguro ele

    que no. A capacidade crtica ,

    precisameJlle, a capacidade de separar,

    distinguir, mcunscrever, levantar

    diferenas" avali-Ias, situar e articular

    os nmeres fenmenos que se entrelaam

    na compIeriMde da vida de todos os dias e

    nas transfonnaes mais profundas de

    tempo rp" ou lento. com o objetivode formaot crtica que o patrimnio

    cultural p,*ria trabalhar as questes da

    memria e 010 patrimnio. Nessa linha,

    seria poss.d evitar os escolhos do

    relativismo cultural e o tratamento

    inadequado tio problema da diferena.

    A cultura o Iocus da diferena, sim.

    O direito adtura o direito diferena.Isso no eqlivale, entretanto, a jogar a

    cultura na a comum do relativismo

    cultural, to em moda no ps-modernismo,

    em que tu vale conforme critrios

    relativos, gtsados no interior de si mesmos.

    Nem estou mncebendo a cultura como

    empreendimento subjetivo e voluntarista,

    nem, ainda, como territrio imune tica

    e suas impoes de fazer e no fazer,

    imposies 'fIe a conscincia moral de

    nossos tempos ainda define num patamar

    5

    de universalidade (como aquele dos direitos

    humanos). Quero apenas dizer que a cultura,

    no sendo produto de programao gentica

    da espcie humana, mas produo histrica,

    mutvel e dependente de interesses

    subordinados a inmeras variveis, precisa

    ser enunciada, proposta, ensinada e

    aprendida, principalmente por intermidio

    das prticas. Pode ser recusada, transformar-

    se em contracultura, pode fragmentar-se em

    subculturas, pode gerar aculturao ou

    deculturao e assim por diante. Mas nada

    justifica a doutrinao ou o paternalismo.

    Para resumir: a diferena que marca

    a cultura e mesmo nos contextos

    fundamentalistas, a importncia dos

    mecanismos repressivos e da obsesso com

    a ortodoxia revela a ao sempre presente

    da diferena. Da a cultura ser, por essncia,

    domnio confltuoso, domnio poltico.

    Isso nos obriga a tratar brevissimamente

    do problema do multiculturalismo - to

    maltratado em propostas educacionais.

    Ao contrrio do que parece dizer o

    vocbulo, multiculturalismo muitas vezes,

    como no tm deixado de observar os

    socilogos e antroplogos, filsofos e

    cientistas polticos que trataram do assunto

    (Birkhu Parekh, Charles Taylor, por

    exemplo), uma cortina de fumaa em

    que o universalismo - que paradoxalmente

    permite a diversidade - mascara normas,

    valores e interesses etnocntricos. Por isso,

    muitos especialistas tm procurado distinguir

    dois conceitos no coincidentes: diferena

    cultural e diversidode cultural, Homi Bhabha

    um dos mais incisivos." Diz ele que a tradio

    liberal (particularmente no rclativismo

    filosfico e antropolgico) tornou pacfica

    e generalizada a idia de que aS culturas so

    diversas e de que de certo modo a diversidade

    das culturas algo em si bom e positivo e

    deveria ser encorajada. Assim, lugar-comumdas sociedades democrticas dizer que

    incentivam e acomodam a diversidade

    cultural. Na verdade, porm, como ele bem

    demonstra, o sinal de urna atitude "civilizada",

    nas sociedades ocidentais, a habilidade de

    apreciar culturas diversas, mas como num

    "museu imaginrio". Quando as culturas saem

    do museu e a diferena cultural (e no mais

    apenas a diversidade cultural) passa a ser um

    dos componentes ativos das tenses sociais,

    o encorajamento da diversidade cultural se

    acompanha de mecanismos ele conteno da

    diferena cultural. Em outras palavras: tem

    ocorrido, com os mesmos sujeitos, que

    a diversidade cultural possa ser grandemente

    apreciada nos museus e nas prticas

    educacionais, embora rejeitada na interao

    social. A reao diante de traos culturais

    (como no patrimnio arqueolgico)

    e diante dos prprios portadores da cultura

    pode no coincidir ..

    Acredito que um dos fios condutores para

    orientar com segurana o papel da educao

    nas polticas pblicas em arqueologia prop-Ia, de preferncia, como parte da

    educao ambiental, desfazendo a nefasta

    dicotornia de natureza/ cultura ou, pior

    ainda, patrimnio natural/patrimnio

    cultural. Do que se ocupa, em ltima

    anlise, a arqueologia, seno da construo

    ela paisagem? E toda paisagem herana:a paisaBem sempre herana em todo o sentido

    da palavra: herana de processosJIsioBrficos e

    bioloqicos e patrimnio coletivo dos pmoos que

    historicamente as herdam como territrio de

    atuao de suas comunidades. Mais do que simples

    espaos territoriais, os povos herdam paisagens e

    ecolooas, pelas quais certamente so responsveis,

    mas todos tm uma parcela de responsabilidade

    permanente de uma herana nica que a

    paisaaem terrestre (Ab'Saber)."

    E o que a cultura material - ponto

    gravitacional de toda arqueologia -, seno

    o segmento da natureza fsica socialmente

    apropriado? Com isso se desfaz o conceito

    to negativo que faz da cultura material um

    conjunto, ou at mesmo um sistema de

    artefatos numa embalagem de "contexto" -

    conceito insuficiente para apreender

    a dimenso fsica, sensorial, espacial

    da produolreproduo social.

    Nesse quadro, possvel explorar duas

    matrizes de valores que o patrimnio pode

    representar: a pertena e o trabalho

    humano investido. Apesar dos emaranhados

    ao longo da evoluo da espcie humana,

    no deixamos de ser marcados pela

    territorialidade, pois no vivemos em

    levitao mas nos enraizamos em espaos

    determinados, espaos que vm assim a

    funcionar como suporte de comunicao, de

    inter-relao, de oraanizao de sentido e,

    erifim, de fecundidade e ao: terra matriz e

    motriz. O homem pertence a um espao. Ser

    de um certo lugar no expressa vnculo de

    propriedade, mas uma rede de relaes. 17 o

    que certas lnguas expressam com termos

    especficos. como o francs appartenance ou

    o ingls belonaina;" j os vocbulos

    portugueses pertena, perlencimento so

    menos fortes.

    Se, com a memria, explora-se a dimenso

    temporal do homem, com a pertena est em cena

    o contedo espacial da existncia. Ora, sou o que

    o.

    o~.-e