premissas (1)
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ArqueologiaTRANSCRIPT
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Museu de Arqueologia e EtnologiaUniversidade de S30 Paulo
BIBLIOTECA
Revista do PatrimnioHistrico e Artstico Nacional n 33/2007
Patrimnio Arqueolgico:o desafio da preservao
ORGANIZAO Tania Andrade Lima
-
Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses
PREMISSALP~A A FORMJll.AOD~~03.lLLCA~RLLCA5_EM-AlLQllLO LOG I A
Em 1987 publiquei, nesta mesma revista,
um artigo intitulado "Para uma poltica
arqueolgica da Sphan".' De l para c, sob
vrios aspectos, a arqueologia fez progressos
no Brasil, seja na produo cientifica, na
formao acadmica, no financiamento de
projetos, nas exposies museolgicas, seja,
tambm, na organizao institucional - o que
inclui, sem dvida, a atuao do Iphan.
Contudo, ainda h muito por fazer. No cabe,
aqui, proceder a um balano em que as
propostas por mim formuladas h quase duas
dcadas fossem analisadas nas suas lacunas e
acertos, no seu desenvolvimento, rejeio ou
reorientao. Antes de qualquer outra
motivao, mais que uma poltica do Iphan,
trata-se agora de propor polticas pblicas em
geral para a arqueologia. Alm disso, se
continuo acreditando na pertinncia - no
essencial - das propostas ento formuladas,
ainda que carentes de revises e atualizaes,
acredito, tambm, que a situao atual muito
mais oportuna para aprofundar bom nmero
das questes ento apontadas. Essa convico
se deve ao fato de que os profissionais da
arqueologia e do patrimnio cultural em
geral vm-se preocupando cada vez mais
em identificar problemas, critrios e
encaminhamentos que orientem polticas
pblicas. Por outro lado, parece consolidada,
hoje - aps um trajeto dificlimo e prolongado
_ a aceitao do patrimnio como fato social.
Seria ocioso explicitar as muitas e amplas
implicaes de tal entendimento,
em especial para nosso tema. De sua parte,
tpicos relativos gesto do patrimnioarqueolgico tm sido objeto de debates em
encontros acadmicos (como, recentemente,
o worksbop "Gerenciamento do patrimnio
cultural- arqueologia", em Goinia, 2005)
e em vrios tipos de publicaes. Dentre estas,
saliento, pelo seu bom nvel e importncia,
a coletnea organizada por Manuel Ferreira
Filho e Mrcia Bezerra, Os caminhos do
patrimnio no Brasil.2 Finalmente, cumpre
registrar, ainda, a existncia de trabalhos
acadmicos, como a recente dissertao de
mestrado de Maria Lcia Pardi, sobre
precisamente Gesio do patrimnio arqueol8iCO,
com propostas operacionais pertinentes.'
Dispenso-me, assim, de retomar questes
que me pareceram de consenso quase geral.
Preferi trabalhar apenas questes em aberto
ou insuficientemente aprofundadas ou
sujeitas a mal-entendidos. Com efeito, ainda
so freqentes, entre ns, propostas bem-
intencionadas e politicamente corretissimas,
mas que no levaram em conta a
complexidade das situaes e objetivos
em causa, nem os melhores fundamentos
e categorias de anlise. Tambm est fora
de meu horizonte discutir questes
z-e.
37
-
.o.
Pgma J6
Acervo arqueolgico
da Universidade
Federal do Par,
Belm/PA.
roro: Tadeu Gollfel ~s
Nt"""O:IDhQn
.~
-instrumentais e operacionais - no porque
sejam menos importantes, mas porque
dependem das preliminares.
Em suma, no me pareceu adequado
sugerir, agora, uma proposta propriamente
dita de polticas pblicas para a arqueologia
no Brasil, mas sim abrir espao para refletir
sobre diretrizes de futuras propostas e
avanar no seu arcabouo e fundamentos.
POLTICAS
PBLICAS:
PODER PB
I N T E R E S S EL I C O ,
PBLICO
diretos que a perspectiva paternalista
(entre ns dominante) traz para a
problemtica especfica do patrimnio
arqueolgico.
Elaborado por Tania Andrade lima,'
um levantamento preciso, analtico, muito
equilibrado e com perspectiva histrica
sobre as relaes entre o poder pblico
(concentrado no lphan) e a comunidade
dos arquelogos (representada pela
Sociedade de Arqueologia Brasileira _
SAB), relaes particularmente belicosas
na dcada de 1980, trouxe luz uma feroz
disputa. Esta girou principalmente em
torno da competncia do "governo",
ao concretamente regular e intervir na
prtica da pesquisa de campo, fixando-se
tambm nos interesses dos profissionais
ou da pesquisa arqueolgica, em suma,
da "arqueologia". No nego a legitimidade
dos contendores, na defesa de seus direitos
e interesses respectivos, nem me compete
julgar o autoritarismo de uns e o
corporativismo de outros. Apenas me cabe
acenar para os desvios que surgem a partir
do momento em que se esquece o critrio
impositivamente prioritrio para estabelecer
o justo ponto nos desencontros: o interesse
pblico. Vista de outro ngulo, a situao
compreensvel: bem ou mal, estamos j
no caminho de consolidar instituies
e comportamentos democrticos,
inclusive na conscincia de direitos e na
possibilidade de reivindicar que eles sejam
efetivados; j a conscincia das obrigaes
do cidado, em referncia ao interesse
social, ao bem comum - a conscincia
republicana -, esta ainda permanece em
embrio. preciso nos convencermos de
IIf,~~
If
II
II
que democracia no coincide com
um regime poltico, muito menos com
possibilidades de participao poltica,
mas, antes de tudo, se define pelo objetivo
maior da poltica, que o bem comum.
Por isso, democracia sem Repblica corre
o risco de reduzir-se a formalismos capazes
de legitimar interesses de grupo,
mascarados como se fossem da sociedade.
Polticas pblicas, assim, deveriam
articular direitos democrticos e
responsabilidades republicanas.
Em conseqncia, no se trata de esvaziar
as responsabilidades do "governo" nem de
terceirizar aquelas do "cidado" t
transferindo-as ao poder pblico, sem
assumir a parte que cabe sociedade e,
sobretudo, sem procurar definir s claras
e defender o interesse coletivo, os direitos
da sociedade. Como se v, o problema
das polticas pblicas visceralmente
poltico em sua natureza. Sem categorias
recortadas, explcitas e estveis, mas
gerado num campo de ambigidades e
conflitos, pressupe necessariamente a
negociao. Em tal campo, muito mais
fcil definir princpios abstratos do que
dimensionar situaes. No entanto, preferi,
aqui, ater-me aos princpios, no para
refugiar-me num espao tranqilo, mas
porque se deve saber de que princpios se
parte para a caminhada. E, no seu curso,
convm referir-se sempre a esses mesmos
princpios, no para adapt-los s
circunstncias, mas para saber se eles
foram suficientemente explicitados e
aproveitados para guiar o comportamento
diante das circunstncias e novas situaes.
Resta apenas dizer que se vem
generalizando este ntendimento de que as
polticas pblicas envolvem a definio de
objetivos e caminhos de ao priorizados
segundo o interesse pblico e compartilhados
pelo poder pblico e pelos segmentos
sociais interessados e envolvidos."
No que toca aos arquelogos, se ainda
h problemas pendentes, a forma com
que eles so tratados hoje plenamente
aceitvel e guarda distncia com as
propostas corporativas da chamada
"Carta de Goinia".
Que implicaes tais posturas podem
ecoar no campo da arqueologia?
Nada que deva ser resolvido somente com
diplomas legais, cdigos de tica, cartas de
recomendaes e semelhantes. Trata-se,
antes de tudo, de uma postura e de uma
convico que devem permear todos os
campos de concepo e atuao.
Portanto, em todas as questes aqui
levantadas h espao para guiar-se segundo
o interesse pblico como critrio prioritrio.
Por isso mesmo, no h interesse em reservar
um item particular para discutir aqui essa
dimenso especfica das polticas pblicas
nos domnios da arqueologia.
A primeira questo dessa agenda
pouco complexa conceitualmente, mas
nada fcil de irnplernentar, O ponto de
partida definir qual a matriz adequada
e quais os lugares das polticas pblicas.
Num pas de secular tradio
patrimonialista, em que predomina ainda
a idia do Estado provedor e c1ientelista,
o peso da sociedade muito leve, e fica claro
que a expresso "polticas pblicas" quase
sempre entendida como "o Estado em ao".
Tal concepo, alis, est na origem desse
campo de anlise acadmica e de
reivindicaes sociais que so as polticas
pblicas. No se trata, aqui, de discutir
o modelo de Estado que nos convm
(do Estado mnimo, do laissezjaire, ao
Estado estatizante, passando pelo Estado
arena de lutas ou mediador e civilizador,
e assim por diante). Julgo, ao contrrio,
que mais proveitoso prioritariamente
acentuar as responsabilidades dos cidados
e procurar perceber os inconvenientes
39
o o O I P H A NP A P E L
Ainda que as polticas pblicas no se
esgotem na atuao do poder pblico, como
acabamos de acentuar, tem sentido refletir,
desde j, sobre o papel do Estado em nosso
campo, e dedicar espao apropriado ao Iphan.
Nosso ordenarnento jurdico prev
funes normativas, regulatrias e o poder
de polcia que tm no lphan o instrumento
-
.o
o.
40
especfico pelo qual a Unio atua. Todas as
demais funes podem ser co-divididas com
outros rgos pblicos (federais,
estaduais/ distritais, municipais), entidades
privadas e demais segmentos organizados
da sociedade. Assim, mesmo a proteo
legal e outros assuntos -- como educao,
valorizao, fomento, preservao fsica e
social etc. - teriam de receber resposta da
sociedade. Por certo, isso no significa
que a atuao do Iphan no deva ter marcas
caractersticas nessas tarefas compartilhadas,
nem que a colaborao ou iniciativas
autnomas da sociedade dispensem traos
determinados. Mas no se trata, a meu ver,
de questes polmicas. Dentre estas,
convm reexaminar duas, que me parecem
muito sintomticas.
PESQUISA
A pesquisa o ponto de partida na
gesto do patrimnio arqueolgico.
No caso de outras esferas, sem dvida,
as diversas aes a serem empreendidas
dependem das informaes e conhecimento
trazidos pela pesquisa. No caso, porm,
do patrimnio arqueolgico a prpria
existncia social dos bens que est
condicionada pela pesquisa. Em outras
palavras, uma estrutura arquitetnica,
um espao urbano, uma coleo de obras
de arte, uma paisagem, por exemplo,
contam com existncia ernprica que os
torna mobilizveis para insero imediata
na vida sociocultural. J O patrimnio
arqueolgico, por sua natureza ambiental
e circunstncias dominantes, apenas vem
luz, em princpio, pela intermediao da
pesquisa e, sobretudo, da pesquisa de
campo. Por certo, deve-se levar em conta
escalas variadas mediando os extremos:
a arqueologia histrica pode aproximar-se
do plo oposto; uma coleo de artefatos
fora de contexto (ambiental ou cognitivo)
tCITI parte do acesso comprometido mas
est disponvel, tanto quanto um stio
superficial com vestgios flor do solo,
e assim por diante. a situao-padro,
porm, vale, ao menos como metfora,
o paralelismo recalques/ arqueologia que
Freud props para a presena escondida
(embora produza conseqncias) de
material psquico danificado e reprimido,
nas profundezas do inconsciente e,
de outro lado, a cura analtica que o libera.
O patrimnio arqueolgico, assim, pode
permanecer apenas em estado virtual,
at que a pesquisa o torne atual.
Alm disso, O carter ambiental do
registro arqueolgico, j apontado,
faz com que a identidade dos bens
arqueolgicos s se configure na
integrao de dados diversificados que
no se produzem forada pesquisa.
Nessas condies, deveria o lphan, para
cumprir seus objetivos, transformar-se em
instituio de pesquisa? O quadro acima
exposto j por si denuncia a impossibilidade
dessa alternativa. A considerao do fato
arqueolgico na sua multiplicidade intrnseca
exige articulao das cincias ambientais,
das cincias exatas e das cincias sociais,
que s a universalidade da universidade
capaz de suprir no n vcl desejvel. Por sua
vez, as instituies de pesquisa podem definir
linhas prioritrias de investigao e nelas
investir, mas um rgo gue deve cobrir todo
o territrio nacional no pode Iruir deste
privilgio E, por cima, a responsabilidade
instituinte do lphan a preservao em
todas as suas dimenses."
Imaginando-se 'luc (como se viu, no
caso da arquitetura, de ncleos urbanos ou
de bens mveis) a pesquisa no Iphan no o objeriro, mas um indispensvel insumo para
a ao (e o gue ultrapassasse esse nvel
esrritamente utilitrio seria levado conta
dejrinae benejt, seria ento cabvel, quanto
arqueologia, terceirizar a pesquisa, passando
o rgo federal a depender dos institutos
cientficos, pois neles a pesquisa uma das
metas? Levada s suas conseqncias mais
radicais, tal distino entre urna "arqueologia
acadmica" e urna "arqueologia
preservacionista" produziria burocratizao
inaceitvel e irrcmissvel. Para ficar num s
exemplo, como tomar decises nos pedidos
de autorizao de pesquisa, se dela s se tem
conhecimento por mediaes sucessi vas
e de toda sorte? Naturalmente, seria ingnuo
contrapor-se necessria especializao defunes. Todavia, trs condies, penso eu,
poderiam ser propostas:
1_ A especializao no pode
desmobilizar nem o rigor da formao,
nem as responsabilidades sociais de ambos
os espaos funcionais;
2. As tarefas de pesquisa cientfica
e de atuao preservacionista exibem
--peculiaridades e prioridades respectivas
que no podem romper ou debilitar o crculo
solidrio e absolutamente nterdependentc
em que se integram;
3- Devem-se recusar hierarquias e
privilgios derivados das peculiaridades dessas
tarefas institucionalmentc diversficadas.
Do exposto tem-se que o arquelogo
no lphan deve ser um arguelogo de direito
pleno, com experincia plena nesse domnio
e, portanto, participante de pesquisas de
campo e laboratrio. As modalidades
variam, mas seria recomendvel integrar-se
(formalmente, mediante convnios)
a grupos de pesquisa acadmica. Tambm
nada impede, conceitualmentc, que o rgo
federal desenvolva algwls projetos prprios
especficos, como j ocorre no domnio da
arqueologia histrica, mas seria sempre
desejvel incorporar, tambm nisso,
pesquisadores acadmicos. De qualquer
modo, preciso lembrar que, a esse
respeito, o problema das empresas de
arqueologia contratual no muito
diferente, pois elas tambm no
dispem de laboratrios, articulaes
multdscplnares permanentes,
bibliotecas adequadas, depsitos,
espaos de exposio e outros recursos.
Finalmente, embora o caminho adequado
j esteja implcito no que se disse acima,
no seria demais explicitar um aspecto
problemtico que persiste ainda hoje.
Se necessrio que os tcnicos do Iphan
tenham experincia em todos os passos
e instncias da produo do conhecimento
cientfico, jamais tal pressuposto poderia
servir de libi para descuidar-se das
responsabilidades institucionalmente
prioritrias de gesto do patrimnio
arqueolgico e dedicar-se pesquisa
como se, na instituio) ela no devesse ser,
antes de mais nada, a condio de qualificar
as aes de preservao. Ainda mais se
tal desvio acarreta atrasos ou negligncia
nas prestaes de "servio ao pblico" -
o.
41
-
'I
.o.
42
o que deveria definir a postura do
"servidor pblico".
Esses problemas todos tm correlao
com os dilemas da formao. Pela sua
especificidade, no tem cabimento discuti-
Ias aqui. Mas tm de constar da agenda
de questes controversas, merecedoras
de debate. No se trata apenas de analisar
as alternativas de formao do arquelogo,
dos gestores culturais (dos mestrados
profissonalizantes), do muselogo,
dos guardas-parques, dos guias, etc.
Mas, igualmente, de examinar casos
comparveis, como os do cnico!tecnlogo,
do pesquisador/professor, dos
administradores de pesquisa nas agncias
de fomento, do mdico e do paramdico
e categorias assemelhadas. Muitas vezes tais
temas so discutidos a partir de ticas
puramente corporativas. Assim, o que
poderia parecer, de incio, combate
a uma postura elitista, que assume
mascaradamente a quintessncia do elitismo.
indispensvel, repito, ter presente que a
nica matriz legtima das distines precisa
estar nas tarefas e no nos agentes.
Estas, claro, em si e nas suas
circunstncias, impem caractersticas
diferenciadas e, sobretudo, responsabilidades
diferenciadas. Mas no legitimam, como j
se disse, a transferncia de responsabilidades
- sejam as cientficas, sejam as de
preservao, educao e todas as demais.
No se pode pensar num produtor de
conhecimento e, em seguida, numa simples
cadeia de transmisso desse conhecimento
j produzido a profissionais sem qualquer
autonomia, puros membros executivos de
aes cujo controle cognitivo Ihes externo.
As escalas de responsabilidade cientfica
e cultural podem ser diferentes
e institucionalmcnte especializadas,
mas precisam associar-se solidariamente
c no linearmente.
Nesta altura, cabe inserir o problema
das autorizaes de pesquisa. No creio
haver divergncia quanto legalidade elegitimidade da indispensvel autorizao
para a pesquisa de campo arqueolgica.
As normas legais so claras e simples ao
concederem tal competncia ao Iphan (nos
casos de terrenos de marinha, ao respectivo
ministrio). Os fundamentos de tal exigncia
tambm so cristalinos: no somente se trata
de bens da Unio, como, ainda, a pesquisa de
campo completa elimina, obrigatoriamente,
parte considervel do referencial
arqueolgico. Nessas condies, se a poltica
pblica se pautar pelo interesse pblico,
uma poltica pblica arqueolgica
recomendaria alteraes na formulao
do primeiro item do Cdigo de tica da
Sociedade de Arqueologia Brasileira (no
restante, diga-se de passagem, bastante
bom), datado de 1997. Com efeito, ao
garantir aos arquelogos o privilgio do
"pleno exerccio da pesquisa e acesso s
fontes de dados, bem como liberdade
no que se refere terntica, metodologia
e ao objeto de investigao", parece-me que
se ultrapassou indevidamente a barreira do
interesse pblico. No teria cabimento,
nas autorizaes exigidas por lei, proceder
a uma triagem ideolgica, terica, ou da
probidade pessoal e cientfica do pesquisador
e sua carreira, nem limitar sua liberdade de
opes intelectuais. Mas como assegurar
pleno acesso a um recurso pblico no
reciclvel e de destinao social, sem julgar
a accitabilidade das condies de uso em
causa? O lphan no pode arvorar-se em
simulacro de um Conselho Federal de
Arqueologia, mas tem de atuar como o
representante do interesse social.
Como consta do j mencionado relato
de Tania Andrade Lima, um dos pontos
fundamentais da disputa entre o Iphan
e a SAB foi a exigncia, por aquele, de
um "plano de trabalho cientfico".
Tendo participado da redao da minuta da
Portaria n" 7/1988 do lphan, que instituiu
tal exigncia, pude, ao longo dos ltimos
quase vinte anos confirmar sua pertinncia.
De outra forma, como avaliar, seno pelo
mrito, os riscos, convenincias e outros
objetivos referentes salvaguarda do
interesse pblico? Ou a autorizao de que
fala a Lei n" 3.924/1961 se converteria em
questo meramente formal, a postular to s
um carimbo homologatrio, em benefcio,
no da coisa pblica, mas de interesses
particulares? A opo exclusivamente formal
foi a que predominou, em tempos passados,
na recusa dessa exigncia, sob alegao de
que uma portaria no poderia sobrepor-se
a uma lei, e a lei em questo no inclura
literalmente o projeto de pesquisa entre
os requisitos obrigatrios. Certamente
a hierarquia dos diplomas legais no pode
ser subvertida, mas a questo no me
parece to simples como foi apresentada.
bem verdade que, no caso de
particulares, a lei prev o estabelecimento
de "condies a serem observadas no
desenvolvimento das escavaes e estudos"
(art.l O). J no caso das instituies
cientficas especializadas da Unio,
dos Estados e dos municpios, prev,
explicitamente, to s a prvia comunicao
e posterior smula dos resultados obtidos
e destino do material coletado (art.16).
Mas, se a interpretao da lei deve levar
em conta o objetivo para o qual O legislador
a orientou, como respeitar o alvo maior,
estabelecido no art. 10, que assegurar
aos "monumentos arqueolgicos ou
pr-histricos" a guarda e proteo do
poder pblico? Ora, quando se trata de
uma interveno potencialmente
destrutiva, a vinculao institucional dos
agentes pode constituir uma presuno
de aceitabilidade, porm, no, uma
comprovao. Inexistindo exame de mrito
(que tem no projeto de interveno
cientfica sua melhor referncia), os
objetivos da preservao somente se
contemplariam no exerccio do poder de
polcia (como nos embargos), quando j
houvesse dano efetivo ou risco iminente,
ou ento nos procedimentos punitivos?
Que serventia preservacionista maior teria de
julgar o mrito exclusivamente a posteriori]
interessante que, na seqncia,a legislao de proteo ambiental
e os Iicenciamentos ambientais tornaram
palatvel a apresentao de projetos
de pesquisa. Estes ingressam no campo
da arqueologia pela porta lateral, como
tambm ocorreu com a apresentao de
relatrios consistentes e outras obrigaes,
como as de carter educacional. Tambm
no se poderia esquecer o que acontece
em outras reas do patrimnio cultural,
em que a apresentao de um projeto
de pesquisa de rigor. Assim, hoje em dia,
penso, no h arquelogo que recuse a
Oc,
.o.
43
-
exigncia de apresentao de um projeto
formal de pesquisa, com o rigor cientfico
que sua formulao pressupe.
Quero crer, por isso mesmo, que o
desconforto efetivo da SAB nos anos 80
e posteriores no estivesse nos argumentos
acima debatidos. Mas na desconfiana
representada pelo lphan , cuja omisso de
servio, na rea, foi ento considervel,
embora no deixasse de estar presente
no exerccio implacvel e prepotente de
sua autoridade, diante de uma comunidade
acadmica com maior experincia. Esse
desconforto , sim, pertinente, e merece,pois, considerao.
Os profissionais do quadro do Iphan
(e isso vale para os demais nveis do poder
pblico, claro) devem ter a mesma
competncia de base que seus colegas
na academia ou empresas especializadas."
Isso, todavia, no basta para solucionar
os problemas previsveis. Se o poder de
polcia requer mecanismos mais geis e a
ao de indivduos cujas responsabilidades
estejam claramente definidas, as decises
de mrito como as relativas pesquisaarqueolgica demandariam a segurana de
decises colegiadas. Na atual sistemtica
do lphan, sobretudo em funo de prazos,
a mobilizao do Conselho Consultivo
problemtica, mas poderia ser suprida com
comits assessores especializados,
tais como nas agncias de pesquisa,
prevendo-se, ainda, as instncias recursais
apropriadas. Outras solues, sem dvida,
podero ser at mais efetivas. No, porm,
as que invertam a prevalncia do interesse
pblico sobre o privado. Nem sob a
alegao de que "quem autoriza no
44
executa", pois ela carece de fundamento
tico, poltico, legal ou administrativo.
Caso contrrio, como poderia, por
exemplo, o prprio lphan cumprir a lei
ao autorizar e, ao mesmo tempo, executar
intervenes em bens arquitetnicos,
paisagsticos e urbansticos? O princpio
tico outro: "no cabe decidir em
causa prprta". Como decorrncia, no caceitvel pensar em autorizaes ex.-1Jicio
para os quadros domsticos, com dispensa
da apresentao de projetos e de seu
julgamento, avaliao dos resultados,
obrigao de publicao cientfica etc.
A competncia do rgo no coincide com
a competncia de cada um de seus agentes.
Outra questo correlata quelas a da
arqueologia por contrato. De novo,
insidiosamente, tem-se falado numa
antinomia entre uma "arqueologia acadmica"
e uma "arqueologia empresarial". No fundo,
trata-se de um deslocamento, nas condies
excepcionais de risco e urgncia dos
impactos ambientais e casos de salvamento,
para justificar a reduo da pesquisa
arqueolgica a mero levantamento de
informaes primrias. Seria ignorar
que dado bruto no irormao e que
informao matria-prima do
conhecimento, mas no se confunde com ele.
Parece que estamos regredindo a discusses
que desperdiaram tanta energia em meados
do sculo passado. Era quando se postulava
como essencial distinguir disciplinas
nomotticas (a verdadeira cincia ... ) das
idiogrficas e se julgava possvel, por
exemplo, isolar a etnologia da etnografia,
a "descrio" da "interpretao" e assim por
diante: de novo, so os critrios
prioritariamente corporativos (portanto de
poder e
-
.o.
oc,
a exemplo do que existe em vrios pases,
realizasse servios, providenciasse formao,
fornecesse assessoria e informaes
e tambm funcionasse como uma
referncia-padro na rea.
Uma outra tarefa a documentao,que precisa estar centralizada no lphan.
A documentao um indispensvel
instrumento de gesto. Assim, h vrios
tipos de informao que instituies,
empresas, profissionais, colees,
antiqurtos so obrigados (por lei)
a prestar ao poder pblico, o que refora
a importncia de um Banco de Dados
(informatizado, claro). Mas a
documentao vai muito alm desses
limites. Alm disso, se a pesquisa alimenta
a gesto patrimonial, a documentao
retroalimenta a pesquisa. J h atividades
nucleadas no rgo federal, a partir do
Cadastro Nacional de Stios Arqueolgicos
e com vistas ao Sistema Nacional de
Informao Arqueolgica' Entretanto,
uma comparao com rgos similares
em outros pases, como o Istituto Centrale
per iI Catalogo e Ia Documentazione
(Itlia), poderia ser proveitosa para divisar
outras tarefas, como a norrnatizao de
nomenclatura e padres tcnicos,
identificao dos objetos da documentao,
dos instrumentos de data retrevol aos
corpora e repertrios temticos (dataes
radiocarbnicas e outras, manifestaes
rupestres, fases e tradies etc.),
das colees (no pas e no exterior,
de interesse para a arqueologia brasileira).
E, ainda, os critrios de relevncia e
avaliao de danos, os critrios e condies
de acesso informao c assim por diante.
Vale notar que a importncia da
documentao justificaria que ela fosse
objeto de projetos especficos de curta
e longa durao.
VALORIZAO
Apenas duas questes me pareceram
exibir traos controversos, de modo a
justificar, aqui, a sua incluso: a educao
e o turismo. Uma terceira questo -
as formas de compartilhamento das aes
de promoo cultural com a sociedade -
teria de ser discutida em mbito geral,
fora de nosso horizonte imediato.
Alm disso, apesar de dificuldades
operacionais de monta, ela no apresenta
dissenses graves quanto s premissas.
EDUCAO
Este um campo crucial, de que
depende grande parcela da eficcia que
qualquer outro encaminhamento pode
gerar. Todavia, um domnio que norecebeu, ainda, a devida ateno, nem
como reflexo, nem como prtica -
embora alguns projetos recentemente
desenvolvidos ou em desenvolvimento
tenham apontado rumos aproveitves, I.
Este tambm um domnio em que a ao
da sociedade, sob muitos aspectos, pode
ser mais eficaz que a ao do poder
pblico. Finalmente, preciso acrescentar
que a legislao relativa a intervenes
capazes de provocar impactos ambientais
trouxe combustvel precioso, ao incluir,
como contrapartida obrigatria, aes
educacionais patrocinadas pelos
empreendedores; e levou tambm,
algumas vezes, a improvisaes que
revelam a necessidade de avaliar algumas
premissas e posturas.
Desse modo, sem pretender dar conta
dos aspectos essenciais de uma ao
educacional nos quadros de uma poltica
arqueolgica, abordei to somente aqueles
tpicos muito presentes na bibliografia
brasileira, nos quais, por seu teor
problemtico, vejo interesse em rediscutir
fundamentos e implicaes. este o caso
do lugar da educao (e da formao
profissional), da educao (e da formao
profissional), da educao como formao
crtica e as ambigidades da memria, da
identidade e do relativismo cultural."
Como tem sido reconhecido, O tema
envolve a educao formal e a informa!.
Por certo, sempre mais fcil fazer
propostas que incluam novas disciplinas
(como educao patrimonial) ou temas nas
disciplinas curriculares (como em histria,
geografia, estudos do meio, etc.).
Nada a opor a tais escolhas, salvo que sua
eficcia depende de variveis de controle
difcil - a principal das quais a situao
geral negativa em que se encontra nosso
ensino fundamental e mdio, assim como
O preparo de docentes.
No interior da prpria comunidade
arqueolgica e do patrimnio, porm, h
questes e posturas que merecem reflexo.
Talvez valha a pena chamar a ateno para
o inconveniente de fazer da identidade e da
memria objetos de outorga ou induo,
o 'lue por vezes beira a doutrinao. Seria
salutar, para desencorajamento, um contato
com os descaminhos no muito longnquos
dos Centros Populares de Cultura, da dcada
de 1960, que se transformaram numa
arregimentao popular para um projeto
paterna lista de intelectuais militantes.
E concluir, como fez Teixeira Coelho Neto:
De um modo ou de outro, pacifico que a aocultural ou uma operao sociocultural ou noexiste. A1esmo assim, uma concepo mais radical
da ao cultural, e acaso mais diana, a que
aposta na tese sepundo a qual o objetivo da ao
cultural no construir um tipo determinado de
sociedade, mas provocar as conscincias para que
se apossem de si mesmas e criem as condies para
a totalizao, no sentido dia/tico do termo. de um
novo tipo de vida, derivado do erifrentamento
aberto das tenses e conflitos SUT8idos na prtica
social concreta. 12
H outras questes 'lue devem ser levadas
em conta, para superar uma viso smplista
dos problemas em causa. As cincias sociais
contam hoje com vasto arsenal de estudos
(em que se distinguem os de psicologia social,
sociologia e antropologia). Tais estudos
demonstram cabahnente a natureza
ideolgica, processual e situacional dos
processos identitrios e dos mecanismos da
memria, que podem legitimamente servir
de armas de luta poltica, mas no podem ser
concebidos como essncias reificadas,
transferveis de fora e implantados como
trilhos a serem percorridos.
Assim, convm ter presente 'lue a
memria no pode ser objeto de "resgate",
pois ela no deve ser confundida com os
referenciais pelos quais os indivduos,
grupos e sociedade constroem e
continuamente reconstroem (sempre em
funo das necessidades impostas pelas
oc,
~
o
zo
~ "
47
-
o I ~I
- I i ~I
~ I
o
situaes) uma auto-imagem de estabilidade
e permanncia. Trata-se de um processo
historicamente mutvel, de um trabalho,
e no de algo objetivado ou de um pacote
fechado de recordaes induzidas.
Alm disso, mais 'lue mecanismo de registro
e reteno, depsito de informaes,
conhecimento e experincia, a memria
um mecanismo de esquecimento programado.
por'lue a memria se constri filtrando e
selecionando 'lue ela pode tambm ser
induzida - mas legtimo induzir memria?
Da mesma forma, a identidade no uma
quintessncia imanente e imutvel, imune
s transformaes (os cones e os artefatos
"tpicos" to comuns em taxonomias
arqueolgicas e museolgicas correm o risco,
se no tratados devidamente, de congelar tais
essncias fora da histria). Por outra parte,
os processos identitrios - tambm eles
extremamente sensveis s situaes -
definem-se mais pelas diferenas 'lue
procuram marcar do 'lue pelas semelhanas
consigo mesmos. Em outras palavras,
tais processos precisam ser entendidos, antes
de mais nada, como estratgias de excluso,
em funo de um "eu" (individual ou social)
'lue se define sempre em confronto com um
outro, do qual busca distinguir-se.
Identidade e memria so ingredientes
fundamentais da nterao social, presentes
em tantos de seus domnios - e, por isso,
no poderiam em hiptese alguma estar
ausentes do quadro da educao.
A identidade e a memria garantem a
produo e reproduo da vida biolgica,
psquica e social. Do suporte a um eixo
de atribuio de sentidos sem os 'luais a vida
se fragmentaria num permanente salto no
escuro. Contudo, memria e identidade
no so fenmenos eticamente neutros,
nem automaticamente bons: 'lue o digam
os conflitos identitr ios na frica, no
Oriente Mdio, nos Blcs, na Irlanda ou no
Pas Basco, ou em outras partes do mundo
contemporneo, em que os atos mais cruis
so justificados por memrias e identidades.
Alm disso, h um dado novo 'lue no
pode ser ignorado: o 'lue os especialistas
tm denominado de cultural tum (virada
cultural), 'luer dizer, a tendncia cada vez
mais acentuada nas cincias sociais de
concentrar na cultura, 'luase sempre de
forma redutora, fenmenos 'lue deveriam
manter seu contorno prprio - por
exemplo, de natureza econmica, poltica
ou social. E no se trata de uma ocorrncia
apenas no meio acadmico, mas de um modo
de ver generalizado na sociedade. E 'lue se
manifesta no apenas nas polticas pblicas,
mas tambm nas polticas das grandes
corpo raes (cuja imagem vetar
fundamental de reproduo e expanso),
na indstria cultural e nos meios de
comunicao de massa, no universo de
consumo, em movimentos minoritrios
(feminismo, minorias sexuais, conflitos
religiosos e tnicos). O campo do patrimnio
arqueolgico no se exclui da tendncia.
Os crticos da "virada cultural", cada vez mais
numerosos, no deixaram de observar um
dado altamente significativo para nossa
anlise: as reivindicaes denominadas
redistrtbuvas (que se referem excluso
econmica e social), outrora predominantes,
esto sendo substitudas por reivindicaes
de reconhecimento, isto , aquelas cujo foco
a identidade - muitas vezes com marcas
de lugares sociais distintos. Haja vista as
manifestaes e movimentos de massa,
ocorridos na Frana em 2005 e no corrente
ano, primeiro com cidados filhos de
imigrantes e moradores das periferias
(de carter nitidamente identitrio) e,
depois, as dos jovens de classe mdia
contra lei reguladora do primeiro emprego
(de carter explicitamente econmico).
Mas, h ainda questes em aberto:
na tica com 'lue tem sido focalizada,
a identidade em causa s deveria dizer
respeito ao patrimnio ernoarqueolgico
de comunidades indgenas remanescentes.
Ou aos quilombolas e casos semelhantes,
principalmente os vinculados arqueologia
histrica. O 'lue, obviamente, um filo 'lue
no pode ser descartado, mas representa
parcela reduzida dos benefcrios potenciais
dessas aes educativas. Infelizmente no
podemos dizer "nossos antepassados tupis-
guaranis", da forma como Astrix motivou
os franceses a dizer nos anctres Ies SQu/ois.
Oarcy Ribeiro repetia incessantemente 'lue
os ndios esto presentes no povo brasileiro
por excluso! possvel mudar o processo
daqui por diante, no reconstru-Ia para trs.
Da mesma maneira, no se pode dizer, como
acontece, que o povo brasileiro no tem
memria: no se pode ter memria alheia,
salvo por violncia. Benedct Anderson criou
uma categoria, hoje muito repetida,
de ima8ined communities para explorar a
origem e a difuso do nacionalismo Na sua
esteira, lan Russell" estuda no turismo e nas
representaes do passado arqueolgico
as imagined arcboeoioqical commun ues.
Mas possvel tambm reconhecer,
como faz Alexandre Corra," 'lue esteja
ocorrendo um "retorno do recalcado",
com a ampliao de espao dos "patrimnios
no consagrados", vinculados s memrias
sociais das etnias, dos imigrantes, dos negros
e indgenas e consideradas materiais
reprimidos. certamente possvel, mas,
no caso da parecia maior de nosso
patrimnio arqueolgico, vejo dificuldade
em seguir a linha do reprimido at seus
sucessores nossos contemporneos.
De todo modo, ainda 'lue no se possa
integrar o poltico com o cognitivo, nessa
reabilitao da presena esquecida dos
diversos contingentes humanos formadores
de nossa sociedade, a arqueologia fornecer,
sempre, material para tornar inteligvel o
fenmeno da transformao das sociedades -
e isto seria um caminho frtil para ser
explorado na educao.
Diante dessas consideraes todas,
o 'lue significaria, ento, uma ao educativa
no tocante ao patrimnio arqueolgico?
Colaborar na construo ou reforo e
valorao das identidades e memrias,
essncias puras (ou, quando impuras,
'lue se impe purificar)? Pior ainda: propor
aos outros a memria e os contedos
identitrios que so de meu interesse,
supondo 'lue deveriam ser do interesse
dos "educandos"? O caminho mais fcil,
imediato e de resposta rpida. Mas tambm
de novo enredar-se complacentemente
numa miragem ideolgica, ainda quando se
julgue 'lue se trate de "boa" e "democrtica"
ideologia. Educar no poderia ser entendido
corno ao indutora de modelos de homem
e sociedade. Convm sempre lembrar a
diretriz essencial de John Oewey: educar
garantir ao indivduo condies para 'lue ele
.o.
49
-
continue aeducar-se. Em outras palavras,
educar pomover a autonomia do ser
consciente '1ue podemos ser - capazes de
proceder a escolhas, hierarquias alternativas,
formular e ROS guiar por valores e critrios
ticos, de~r convenincias mltiplas e seus
efeitos. reeenhecer erros e insuficincias,
propor e ropropor direes. indispensvel
lembrar q", sem autonomia, no pode
haver auto-estima.
vivel educao que no tenha como
eixo a for.ao crtica? Estou seguro ele
que no. A capacidade crtica ,
precisameJlle, a capacidade de separar,
distinguir, mcunscrever, levantar
diferenas" avali-Ias, situar e articular
os nmeres fenmenos que se entrelaam
na compIeriMde da vida de todos os dias e
nas transfonnaes mais profundas de
tempo rp" ou lento. com o objetivode formaot crtica que o patrimnio
cultural p,*ria trabalhar as questes da
memria e 010 patrimnio. Nessa linha,
seria poss.d evitar os escolhos do
relativismo cultural e o tratamento
inadequado tio problema da diferena.
A cultura o Iocus da diferena, sim.
O direito adtura o direito diferena.Isso no eqlivale, entretanto, a jogar a
cultura na a comum do relativismo
cultural, to em moda no ps-modernismo,
em que tu vale conforme critrios
relativos, gtsados no interior de si mesmos.
Nem estou mncebendo a cultura como
empreendimento subjetivo e voluntarista,
nem, ainda, como territrio imune tica
e suas impoes de fazer e no fazer,
imposies 'fIe a conscincia moral de
nossos tempos ainda define num patamar
5
de universalidade (como aquele dos direitos
humanos). Quero apenas dizer que a cultura,
no sendo produto de programao gentica
da espcie humana, mas produo histrica,
mutvel e dependente de interesses
subordinados a inmeras variveis, precisa
ser enunciada, proposta, ensinada e
aprendida, principalmente por intermidio
das prticas. Pode ser recusada, transformar-
se em contracultura, pode fragmentar-se em
subculturas, pode gerar aculturao ou
deculturao e assim por diante. Mas nada
justifica a doutrinao ou o paternalismo.
Para resumir: a diferena que marca
a cultura e mesmo nos contextos
fundamentalistas, a importncia dos
mecanismos repressivos e da obsesso com
a ortodoxia revela a ao sempre presente
da diferena. Da a cultura ser, por essncia,
domnio confltuoso, domnio poltico.
Isso nos obriga a tratar brevissimamente
do problema do multiculturalismo - to
maltratado em propostas educacionais.
Ao contrrio do que parece dizer o
vocbulo, multiculturalismo muitas vezes,
como no tm deixado de observar os
socilogos e antroplogos, filsofos e
cientistas polticos que trataram do assunto
(Birkhu Parekh, Charles Taylor, por
exemplo), uma cortina de fumaa em
que o universalismo - que paradoxalmente
permite a diversidade - mascara normas,
valores e interesses etnocntricos. Por isso,
muitos especialistas tm procurado distinguir
dois conceitos no coincidentes: diferena
cultural e diversidode cultural, Homi Bhabha
um dos mais incisivos." Diz ele que a tradio
liberal (particularmente no rclativismo
filosfico e antropolgico) tornou pacfica
e generalizada a idia de que aS culturas so
diversas e de que de certo modo a diversidade
das culturas algo em si bom e positivo e
deveria ser encorajada. Assim, lugar-comumdas sociedades democrticas dizer que
incentivam e acomodam a diversidade
cultural. Na verdade, porm, como ele bem
demonstra, o sinal de urna atitude "civilizada",
nas sociedades ocidentais, a habilidade de
apreciar culturas diversas, mas como num
"museu imaginrio". Quando as culturas saem
do museu e a diferena cultural (e no mais
apenas a diversidade cultural) passa a ser um
dos componentes ativos das tenses sociais,
o encorajamento da diversidade cultural se
acompanha de mecanismos ele conteno da
diferena cultural. Em outras palavras: tem
ocorrido, com os mesmos sujeitos, que
a diversidade cultural possa ser grandemente
apreciada nos museus e nas prticas
educacionais, embora rejeitada na interao
social. A reao diante de traos culturais
(como no patrimnio arqueolgico)
e diante dos prprios portadores da cultura
pode no coincidir ..
Acredito que um dos fios condutores para
orientar com segurana o papel da educao
nas polticas pblicas em arqueologia prop-Ia, de preferncia, como parte da
educao ambiental, desfazendo a nefasta
dicotornia de natureza/ cultura ou, pior
ainda, patrimnio natural/patrimnio
cultural. Do que se ocupa, em ltima
anlise, a arqueologia, seno da construo
ela paisagem? E toda paisagem herana:a paisaBem sempre herana em todo o sentido
da palavra: herana de processosJIsioBrficos e
bioloqicos e patrimnio coletivo dos pmoos que
historicamente as herdam como territrio de
atuao de suas comunidades. Mais do que simples
espaos territoriais, os povos herdam paisagens e
ecolooas, pelas quais certamente so responsveis,
mas todos tm uma parcela de responsabilidade
permanente de uma herana nica que a
paisaaem terrestre (Ab'Saber)."
E o que a cultura material - ponto
gravitacional de toda arqueologia -, seno
o segmento da natureza fsica socialmente
apropriado? Com isso se desfaz o conceito
to negativo que faz da cultura material um
conjunto, ou at mesmo um sistema de
artefatos numa embalagem de "contexto" -
conceito insuficiente para apreender
a dimenso fsica, sensorial, espacial
da produolreproduo social.
Nesse quadro, possvel explorar duas
matrizes de valores que o patrimnio pode
representar: a pertena e o trabalho
humano investido. Apesar dos emaranhados
ao longo da evoluo da espcie humana,
no deixamos de ser marcados pela
territorialidade, pois no vivemos em
levitao mas nos enraizamos em espaos
determinados, espaos que vm assim a
funcionar como suporte de comunicao, de
inter-relao, de oraanizao de sentido e,
erifim, de fecundidade e ao: terra matriz e
motriz. O homem pertence a um espao. Ser
de um certo lugar no expressa vnculo de
propriedade, mas uma rede de relaes. 17 o
que certas lnguas expressam com termos
especficos. como o francs appartenance ou
o ingls belonaina;" j os vocbulos
portugueses pertena, perlencimento so
menos fortes.
Se, com a memria, explora-se a dimenso
temporal do homem, com a pertena est em cena
o contedo espacial da existncia. Ora, sou o que
o.
o~.-e