floriÊnski, pável. premissas teóricas. in a perspectiva inversa

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  • co~rE,SI~

    Pvel Florinski .

    A PERSPECTIVAINVERSA

    TraduoNeide jallageas e Anastassia Bytsenko

    ApresentaoNeide jallageas

  • Depois dessa experincia malsucedida de meio mil-nio de histria, s cabe a ns reconhecer que a imagem pers-pctica do mundo no um fato da percepo, mas somenteuma exigncia em nome de algumas razesprovavelmente mui-tofortes, porm decididamente abstratas.

    E se recorrermos a dados psicofisiolgicos, faz-se ne-cessrio tambm reconhecer que os artistas cuja principaltarefa seja a fidelidade percepo no s nopossuem qual-quer fundamento, como tambm no ousam representar omundo segundo o esquema da perspectiva.

    2

    XIII

    91A perspectiva inversa

    No exposto acima comparamos uma srie de interpre-taes histricas. chegada a hora de fazer um balano eentrar no mrito do assunto, embora deixaremos para outrolivro o desenvolvimento das questes relacionadas anlisedo espao nas imagens.

    Deste modo, os historiadores da pintura, assim comoos tericos das artes plsticas, aspiram ou, pelo menos ain-da h pouco tempo, aspiravam persuadir aqueles que osescutam de que a imagem perspctica do mundo a nicacorreta, a nica que corresponde percepo original, poispresume-se que a percepo natural seja perspctica. Deacordo com essa premissa, o desvio da unidade perspctica considerado como uma traio verdade da percepo, isto, como uma distoro da prpria realidade, seja por causada ignorncia grfica do artista, seja em prol da subordina-o do desenho a objetivos predeterminados: ornamentais,decorativos ou, na melhor das hipteses, com positivos. Deuma ou de outra maneira, de acordo com as consideraesmencionadas, o desvio das normas da unidade perspcticaresulta em irrealismo.

    Todavia, tanto a palavra como o conceito de realidadepossuem peso suficiente para que os defensores de uma oude outra concepo do mundo fiquem indiferentes se a ditarealidade permanea em suas mos ou passe para as mosde seus oponentes. H de se pensar muito antes de fazer tal

    Premissas tericas

    Pvel Florinski90

  • 94 Rnin, Perspektiva [Perspectiva]' pargrafo 8, pp. 75-8. Rnin, Geo-metria descritiva, pargrafo 15, pp. 113-7. (N. do A.)

    concesso, caso ela se comprove inevitvel. E o mesmo seaplica palavra natural. Quem no ficaria lisonjeado porconsiderar o que seu como real e natural, isto , originrioda prpria realidade, sem interveno proposital? Os adeptosda concepo renascentista da vida tomaram e desgastaramessas preciosas palavras depois de t-las roubado do plato-nismo e de seus herdeiros medievais. Mas para ns isso nojustifica deixar os tesouros da lngua nos lbios de quemfaz mau uso deles: a realidade e a naturalidade devem sermostradas na prtica e no com declaraes pretensiosas einfundadas. O nosso propsito devolver essas palavras aosnetos dos seus legtimos proprietrios.

    Como havamos esclarecido acima, para desenhar epintar "naturalmente", isto , perspectivamente, necessrioque tanto povos e culturas inteiras quanto determinadosindivduos aprendam a faz-lo. Uma criana no desenhaperspectivamente, tampouco um adulto que pega um lpispela primeira vez at que esteja adestrado em determinadospadres. E mesmo aquele que havia estudado, e muito,comete erros com facilidade, e para ser exato, a franquezada espontaneidade s vezes supera os modos pomposos daunidade perspctica. Em particular, poucos iro representara imagem de uma esfera atravs de um contorno elptico oude uma colunata que se afasta paralelamente ao plano doquadro atravs de colunas que se alargam sucessivamente,embora exatamente isso exija a projeo perspctica.94 Se-ro raras as acusaes aos grandes pintores por seus errosperspcticos? possvel cometer tais erros sempre, especial-mente em desenhos de composio mais complexa, e de fatoso evitados somente quando o desenho mo substitudopelo desenho tcnico, com o traado de linhas auxiliares.

    93A perspectiva inversa

    95 Em latim, no original: "costume tirano". (N. da T.)

    96 E. Mach, Dlid tcheg tchelovieka dva glaza [Para que um homemprecisa de dois olhos], "Ensaios cientfico-populares", traduo de G. A. Ko-t1iar, Obrazovnie, 1909, p. 64. (N. do A.) [Ttulo original: W0zu hat derMenschzweiAugen?, 1866. (N. daT.)]

    Ento o desenhista representa no o que v fora ou dentrode si mesmo (formas imaginadas, no entanto, concretase no abstratamente pensadas), mas aquilo que requer oclculo de construes geomtricas; o que, na opinio detal desenhista, que se baseia no significado demasiadamentelimitado da geometria, um clculo natural e por isso onico admissvel. Ser possvel chamar de naturais aquelesprocedimentos de representao cujo domnio ningumaprende sem as muletas geomtricas do desenho tcnico,mesmo quem por muitos anos severamente treinou comeles o seu olho e a sua compreenso do mundo? E no serque esses erros de perspectiva mostram s vezes, no a fra-queza do artista, mas a sua fora, a fora da sua percepoautntica que rompe as amarras do condicionamento social?A aprendizagem da perspectiva um adestramento. Mesmoquando um principiante esfora-se voluntariamente para su-bordinar o seu desenho a suas regras, isso raramente significaque ele entendeu o significado, isto , o sentido pictrico--representacional das exigncias perspcticas. Voltando poca de sua infncia, ser que muitos no lembraro queconsideravam a perspectividade do desenho uma convenoincompreensvel, embora por algum motivo universalmenteimposta, um usus tyrannus,95 que deve ser obedecido nopor ser verdadeiro, mas porque todos fazem assim?

    A perspectiva, no entender de uma criana, umaincompreensvel e frequentemente absurda convencionali-dade. ''A vocs parece uma coisa sem importncia observarum quadro e captar a sua perspectiv', diz Ernst Mach.96

    Pvel Florinski92

  • Contudo, milnios se passaram antes da humanidade teraprendido essa coisa sem importncia, e muitos de ns con-seguiram chegar at ela somente graas educao. "Eu melembro bem" - continua Mach - "que com a idade deaproximadamente trs anos os desenhos que obedeciam sleis da perspectiva me pareciam uma imagem distorcidados objetos. Eu no podia entender por que o pintor haviarepresentado uma mesa to larga de um lado e to estreitado outro. Uma mesa de verdade me parecia to larga no seulado mais distante quanto no seu lado mais prximo, por-que o meu olho fazia seus clculos sem a minha colaborao.Que a representao de uma mesa sobre um plano no deveser observada como se observa uma superfcie plana cobertapelas tintas, que tal representao significa uma mesa e deveser representada prolongando-se at o fundo, era uma coisasem importncia que eu no entendia. Eu me consolavapensando que populaes inteiras no a entendiam".

    Esse o testemunho do positivista dos positivistas, queao que parece no podia de modo algum estar sob suspeitade propenso ao "misticismo".

    Assim, a questo que a representao de um objetoest longe de ser, na qualidade de uma representao, tam-bm o prprio objeto. A representao no uma cpiado objeto, ela no duplica um cantinho do mundo, masaponta para o original como o seu smbolo. O naturalismono sentido da autenticidade externa, como imitao da rea-lidade, como fabricao de duplicatas de objetos, comoum fantasma do mundo, no s desnecessrio, segundoas palavras de Goethe sobre o cachorrinho da amada e arepresentao do cachorrinho, como simplesmente impos-svel. A verossimilhana perspctica, se que de fato existe averossimilhana, assim o no por causa da sua semelhanaexterna, mas por causa do desvio de si mesma, isto , no seusentido interno, pois ela simblica. Ademais, sobre qual

    "semelhan' podemos falar que h entre, por exemplo,uma mesa e a sua representao perspctica, j que os con-tornos evidentemente paralelos so representados por linhasconvergentes; os ngulos retos como agudos e obtusos; ossegmentos e os ngulos iguais entre si como tendo dimen-ses desiguais e as dimenses desiguais como iguais? A re-presentao um smbolo. Qualquer representao, tantoperspctica quanto no perspctica, qualquer que seja, umsmbolo. E as imagens das artes visuais sempre diferem umasdas outras, no porque algumas so simblicas e outras sosupostamente naturalistas, mas porque sendo igualmenteno naturalistas, no fundo, so smbolos de diferentes ladosde um objeto, diferentes percepes do mundo, diferentesgraus de sntese. As diversas formas de representao distin-guem-se uma da outra no como um objeto se diferencia dasua representao, mas sim no plano simblico. Algumas somais grosseiras, outras menos; algumas so mais perfeitas,outras menos; algumas so mais humanas, outras menos,mas a natureza de todas elas simblica.

    A perspectividade das representaes no , de modoalgum, a qualidade de todos os objetos, como se pensa nonaturalismo vulgar, mas constitui-se apenas em um proce-dimento de expressividade simblica. Trata-se de um dentreos possveis estilos simblicos cujo valor artstico est sujeitoa uma discusso especial, mas exatamente como tal, estalm das assustadoras palavras sobre a sua verossimilhana eda pretenso ao "realismo" patenteado. Por esse motivo, nadiscusso da questo da perspectiva linear ou inversa, monoou policntrica, torna-se obrigatrio, desde o princpio,partir das aes simblicas da pintura e de outras categoriasdas artes plsticas para entender que lugar a perspectividadeocupa entre os procedimentos simblicos, o que ela significaexatamente e para quais realizaes espirituais conduz. Oobjetivo da perspectiva junto aos outros meios artsticos

    94 Pvel Florinski A perspectiva inversa 95

  • s pode ser uma certa excitao espiritual, um impulso quedesperta a ateno para a realidade. Em outras palavras, aperspectiva, se ela tiver algum valor, ser o de ser uma lin-guagem, uma testemunha da realidade.

    Em que relao encontram-se as aes simblicas dapintura e as premissas geomtricas de suas possibilidades? Apintura e outras categorias das artes visuais submetem-seobrigatoriamente geometria, j que se relacionam comimagens e smbolos estendidos. Ento, aqui no se trata deadmitir a priori a perspectiva linear atravs de um raciocniosimples:

    Se a geometria for exata, ento a perspectiva irrefutvel.

    A geometria exata.Portanto, a perspectiva irrefutvel.

    Na questo acima ambas as premissas provocam mi-lhes de reflexes, e em algumas delimitaes de sua aplica-o, em algumas explicaes de seu funcionamento, neces-srio estabelecer com preciso as premissas geomtricas dapintura, se quisermos que a legitimidade, o sentido internoe os limites da aplicao de um ou de outro procedimentoe meio de representao possam obter uma base para seestabelecer.

    Deixando uma anlise mais profunda para um livroespecfico, sobre as premissas geomtricas da pintura, porenquanto notaremos apenas o seguinte: disposio dopintor est um recorte de superfcie plana - tela, tbua,parede, papel etc. - e tintas, isto , uma possibilidade dedar diferentes coloraes aos diversos pontos da superfciemencionada. Pela ordem de importncia, essa ltima - acor - pode no ter um sentido sensorial e deve ser entendi-da abstratamente; assim, por exemplo, o negro da tinta tipo-

    grfica numa gravura no entendido como uma cor preta,mas s como um sinal da energia do escultor ou ao contr-rio, a ausncia de tal energia. Mas psicofisiologicamente,isto , na base da percepo esttica, trata-se de uma cor.Para simplificar o raciocnio, podemos imaginar que h suma tinta preta ou um lpis. A tarefa do pintor representarsobre o plano mencionado, com as tintas especificadas, umarealidade que ele percebe ou imagina ser percebida.

    O que, do ponto de vista geomtrico, significa repre-sentar alguma realidade?

    Significa colocar pontos do espao percebido em cor-respondncia com os pontos de algum outro espao, nestecaso - um plano. Mas a realidade no mnimo tridimen-sional - mesmo se esquecermos a quarta dimenso, a dotempo, sem a qual no existe a arte -, e o plano, apenasbidimensional. Ser possvel este tipo de correspondncia?Ser possvel representar uma imagem de quatro dimensesou, para simplificar, de trs dimenses, sobre uma superfciebidimensional? Ter essa ltima pontos correspondentes aospontos da primeira, ou falando matematicamente: pode-secomparar a potncia da imagem tridimensional com aque-la da imagem bidimensional? - A resposta que natural-

    , I "C ~ " "Cmente surge a mente e: ertamente nao. ertamenteno, pois uma imagem tridimensional possui uma quanti-dade infinita de recortes bidimensionais e, consequente-mente, a sua potncia infinitamente maior do que a po-tncia de cada recorte isolado". Mas uma anlise atenta daquesto estabelecida na teoria da multiplicidade de pontosdemonstra que a questo no to simples como se apre-senta primeira vista e, alm disso, que a resposta dadaacima, aparentemente natural, no pode ser consideradacorreta. Decididamente: a potncia da imagem tri ou atpluridimensional igual potncia de qualquer imagem biou at mesmo, unidimensional. No apenas sobre um

    96 Pvel Florinski A perspectiva inversa 97

  • 97 Uma explicao elementar dos rermos das "teorias das multiplici-dades" - urilizados aqui como "multiplicidade", "correspondncia", "po-tnei', "equivalnei', "semelhana" ou "conformidade" etc. - pode serencontrada no artigo: P. A. F\orinski, "O smvolakh beskonitchnosti"["Sobre os smbolos de infinidade"), Nvi Put, 1904, setembro, pp. 173-235. (N. do A.)

    plano que possvel representar uma realidade quadri outridimensional, mas tambm sobre qualquer segmento deuma linha reta ou curva. Assim, possvel estabelecer talrepresentao atravs da quantidade infinita de correspon-dncias, tanto aritmticas ou analticas, quanto geomtricas.Como modelo das primeiras pode servir o procedimento deGeorge Cantor, e das segundas, a curva de Peano ou a cur-va de Hilbert.97

    Para esclarecer a essncia dessas investigaes e seusresultados surpreendentes, nos limitaremos ao caso da repre-sentao de um quadrado tomando um de seus lados comounidade de longitude em segmento retilneo que igual aum lado do quadrado mencionado, isto , trata-se de umcaso da representao do quadrado todo sobre seu prpriolado; todos os outros casospodem ser tratados com bastantefacilidade segundo este exemplo. E assim, George Cantorapontou um procedimento analtico que ajuda a estabelecera correspondncia entre cada ponto de um quadrado e cadaponto do seu lado. Isso significa que se determinarmos comduas coordenadas x ey uma localizao em qualquer pontodo quadrado, ento com um procedimento uniforme en-contraremos a coordenada z que determina o ponto de umlado do quadrado, ou seja, a representao do mencionadoponto do prprio quadrado; e ao contrrio, dado um pontolivre em um segmento da representao do quadrado, en-contraremos ento, por esse ponto, o ponto representadodo prprio quadrado. Assim, nenhum ponto do quadrado

    98 Em matemtica, rodnea (do grego rhodon, "rosa") ou rosa polar o nome que recebe qualquer membro de uma famlia de curvas de equaopor assemelhar-se a uma flor com ptalas. (N. da T.)

    99A perspectiva inversa

    permanece sem ser representado, e nenhum ponto da repre-sentao ficar vazio, correspondendo a nada: o quadradoserd projetado sobre seu lado. Do mesmo modo um cubo,um hipercubo e, em geral, uma forma geomtrica quadrada(um poliedro ou um prisma), de qualquer quantidade ouat mesmo de um nmero infinito de dimenses, pode serrepresentado sobre o lado do quadrado ou sobre o mesmoquadrado. E em termos gerais: qualquer formao ininter-rupta de qualquer nmero de dimenses e com qualquerrestrio pode ser representada em qualquer outra formao,tambm com qualquer nmero de dimenses e tambmcom qualquer delimitao. Em geometria, qualquer coisapode ser representada onde se queira.

    Por outro lado, diferentes curvas geomtricas podemser construdas de tal modo que a curva passe por qualquerponto do quadrado escolhido ao acaso (se voltarmos aonosso exemplo inicial), e assim fica estabelecida geometri-camente uma correspondncia entre os pontos do quadradoe os pontos da curva. Fazer com que os pontos dessa ltimacorrespondam aos pontos do lado do quadrado como espa-os unidimensionais j no difcil, e com isso os pontosdo quadrado sero representados sobre seu lado. A curvade Peano e a curva de Hilbert tm uma vantagem essen-cial diante do nmero incontvel de outras curvas com asmesmas propriedades (por exemplo, a trajetria de umabola de bilhar lanada a partir do ngulo contra o rebordo,incomensurvel com um: ngulo reto; as epicicloides nofechadas, quando os raios de ambas as circunferncias soincomensurveis; as curvas de Lissage; rodneas98 etc. etc.).A correspondncia entre os pontos das imagens bidimensio-

    Pvel F\orinski98

  • nal e unidimensional realizada por eles na prtica, assim ospontos correspondentes encontram-se facilmente, ao passoque por outras curvas a correspondncia estabelecida so-mente a princpio, mas na realidade seria difcil encontrarque ponto corresponde a outro. Sem entrar em detalhestcnicos das curvas de Peano, Hilbert e outros, notaremosapenas que a sinuosidade em forma de meandros de se-melhantes curvas preenche toda a superfcie do quadrado.Assim, qualquer ponto do quadrado, atravs de um ou deoutro nmero finito de meandros desta curva sistemati-camente acumulados, ou seja, segundo um determinadoprocedimento uniforme, ser inevitavelmente tocado pelasinuosidade da curva. Conforme foi explicado acima, se-melhantes processos so aplicados para a representao dequalquer coisa sobre qualquer coisa.

    Pois bem, asmultiplicidades contnuas so todas equi-valentes entre si. Mas, tendo a mesma potncia, elas nopossuem os mesmos nmeros "inelegveis" ou "ideais" nosentido que lhes dava Cantor, isto , no so "semelhantes"entre si. Em outras palavras, no possvel represent-lasuma dentro da outra sem tocar a sua estrutura. Ao estabe-lecer essa correspondncia, a continuidade da imagem re-presentada violada (isso quando se quer manter um nicosignificado mtuo do representado e da representao) ou onico significado mtuo entre uma e outra violado (quan-do mantida a continuidade do representado).

    Com o procedimento de Cantor a imagem transfe-rida ponto por ponto, de maneira que qualquer ponto daimagem corresponda apenas a um ponto da representaoe, por outro lado, cada ponto dessa ltima reproduza ape-nas um ponto daquilo que representado. Neste sentido,a correspondncia cantoriana atende noo habitual derepresentao. Mas a sua outra propriedade extremamen-te distante dessa ltima: como todas as outras correspon-

    99 Jacob Lroth (1847-1910), matemtico alemo. (N. da T.)

    100 Trata-se, possivelmente, do arquiteto russo Emmanuil Jrgens(1827-1880). (N. da T.)

    101 Rnin, Geometria descritiva. (N. do A.)

    101A perspectiva inversa

    dncias reciprocamente iguais, ela no preserva relaes deproximidade entre os pontos, no poupa sua ordem e suasrelaes, isto , no pode ser contnua. Se nos movemosmuito pouco no interior de um quadrado, a representaodo caminho percorrido j no pode mais ser contnua, e oponto que reproduz pula por toda a rea da representao.A impossibilidade de oferecer a correspondncia de pontosdo quadrado e de seu lado de um modo reciprocamenteunvoco e ao mesmo tempo contnuo foi demonstrada porThom, Netto e G. Cantor, mas devido a algumas objeesde Lroth99 foi demonstrada novamente em 1878 por E.Jrgens.100 Este ltimo se baseia na "proposta sobre o valorintermedirio". "Supondo que o ponto P de um quadradoe P' de um segmento retilneo correspondam um ao ou-tro, ento a uma linha AB de um quadrado que contmo ponto P deve corresponder um segmento inteiro sobreum segmento retilneo que contm, por sua vez, um pontoP'. Consequentemente, em virtude do suposto significadonico da correspondncia de outros pontos de um qua-drado em torno do ponto P, j no lhes pode correspondernenhum ponto na linha nas proximidades do ponto P',de onde claramente e evidentemente segue a impossibili-dade da representao unvoca e contnua entre os pontosda linha e do quadrado." Assim a prova de Jrgens. Poroutro lado, a correspondncia de Peano, Hilbert etc. nopode ser reciprocamente unvoca como foi comprovadopor Lroth, Jrgens101 e os demais, de modo que o pontode uma linha nem sempre representado com um ponto

    ,

    Pvel Florinski100

  • nico de um quadrado e, alm do mais, esta conformi-dade nem contnua por completo. Em outras palavras,a representao de um quadrado sobre uma linha ou deum volume sobre uma superfcie transfere todos os pontos,mas incapaz de transmitir a forma do representado comoum todo, como um objeto internamente definido na suaestrutura: transmite-se o contedo do espao, mas no a suaorganizao. Para representar um espao com todo o seucontedo de pontos necessrio, falando metaforicamente,ou tritur-lo em p ilimitadamente fino e, ao mistur-locuidadosamente, espalhd-lo sobre o plano da representaode maneira que da sua organizao inicial no sobre nemum rastro, ou cort-lo em mltiplas camadas, de maneiraque sobre algo da forma, sendo, no entanto, essas camadasarranjadas por um lado com a repetio dos mesmos ele-mentos da forma, e, por outro, com a penetrao mtuadesses elementos, um atravs do outro, cujo resultado sera encarnao de alguns elementos da forma nos mesmospontos da imagem representada. No raro ouvir que portrs das consideraes matemticas expostas acima esto os"princpios" do divisionismo, complementarismo etc., queforam encontrados pelas correntes da arte de esquerda102

    independentemente da matemtica. Por meio deles a artede esquerda destrua a forma e a organizao do espao,sacrificando-as ao volume e materialidade.

    102 LEF (Frente Esquerda das Artes) foi um grupo artstico e literrio

    que surgiu em Moscou entre 1922 e 1929, liderado pelo poeta Vladmir

    Maiakvski. O artista construtivista Aleksandr Rdtchenko (1891-1956) e

    o terico da OPOlaZ (Sociedade de Estudos da Linguagem Potica) Viktor

    ChkIvski (1893-1984) tambm fizeram parte do grupo. Os tericos do

    LEF afirmavam que o Futurismo no era s uma escola de arte, mas um

    movimento social. Os adeptos mais ardorosos do Futurismo relacionavam-

    -no diretamente com o Marxismo. (N. da T.)

    Em resumo: possvel representar o espao sobre umplano, mas somente destruindo a forma do representado. En-tretanto, exatamente a forma e s a forma que interessas artes visuais. E, consequentemente, pronuncia-se umveredicto final para a pintura e as artes em geral, pois elaspretendem oferecer um simulacro da realidade: o naturalismode uma vez por todas impossvel.

    Ento tomamos de vez o caminho do simbolismo erenunciamos a todo contedo de pontos triplamente esten-dido, por assim dizer, ao recheio das imagens da realidade.Distanciamo-nos, com um nico golpe, da essncia maisespacial das coisas e concentramo-nos (pois estamos falandosobre a transferncia do espao por pontos) em sua pele: jque sob as coisas esto no as prprias coisas, mas somenteas suas superfcies que diferenciam as reas do espao. Pelaordem naturalista isto certamente a traio definitiva dapalavra de ordem da verossimilhana: substitumos a reali-dade por sua casca, que tem somente a importncia simb-lica, que s alude ao espao, sem oferec-lo de imediatoponto por ponto. Ser possvel agora representar tais "coisas"ou, mais precisamente, as peles das coisas em um plano? Aresposta, afirmativa ou negativa, depender do que enten-dido pela palavra representar. possvel estabelecer a cor-respondncia reciprocamente unvoca entre os pontos deuma imagem e os pontos da representao, de maneira que,com isso, a continuidade de um ou de outro ser, filandoem termos gerais, preservada; mas s em termos gerais, isto, para "a maioria dos pontos". No seria oportuno entrarno sentido exato dessa expresso. Mas com esta correspon-dncia, qualquer que seja a maneira pela qual ela foi inven-tada, so inevitveis algumas rupturas assim como algumasviolaesda univocidade recproca das conexes em pontosque esto separados ou que compem algumas formaescontnuas. Em outras palavras, a sequncia e a correspon-

    102 Pvel Florinski A perspectiva inversa 103

  • dncia da maioria dos pontos da imagem numa representa-o sero mantidas, mas isto est longe de significar a inva-riabilidade de todas as propriedades do representado, atmesmo as geomtricas, quando ele transferido atravs dacorrespondncia sobre um plano. Na verdade, ambos osespaos, tanto o representado quanto o representante, sobidimensionais e, neste aspecto, afins entre si; mas a suacurvatura varivel, e, alm disso, no representado ela no constante, modificando-se de um ponto a outro; impos-svel sobrepor um ao outro, at mesmo desdobrando umdeles, e a tentativa de tal sobreposio levar a inevitveisrupturas e pregas de uma das superfcies. No possvelcolocar a casca de ovo ou at um fragmento dela sobre oplano de uma mesa de mrmore: para conseguir isso sernecessrio deform-la, reduzindo-a a um p fino. Pelo mes-mo motivo impossvel representar com preciso um ovosobre um papel ou uma tela.

    A correspondncia de pontos em espaos de curvaturasdiferentes pressupe necessariamente o sacrifcio de algumaspropriedades do representado. Certamente, aqui estamosfalando apenas sobre a transferncia de algumas proprie-dades geomtricas para a representao: todo um conjuntode propriedades geomtricas do representado no pode estarpresente na representao de modo algum e, sendo apenasparcialmente semelhante ao original, a sua representao inevitavelmente diferente em muitas outras partes. A re-presentao sempre se diferencia mais do original do quea ele se assemelha. Mesmo o caso mais elementar, como arepresentao de uma esfera sobre o plano que reproduzum esquema geomtrico da cartografia, resulta ser extre-mamente complexo e permitiu a inveno de dezenas deprocedimentos diferentes, tanto projetivos, com a ajudade raios retilneos que partem de algum ponto, quanto noprojetivos, realizados atravs de construes mais complexas

    ou baseados em clculos numricos. Entretanto, cada umdesses procedimentos, buscando transferir para um mapaalguma propriedade do territrio traado, com seus objetosgeogrficos, deixa escapar e distorce muitas outras proprie-dades no menos importantes. Cada procedimento servea um objetivo estritamente definido, mas torna-se intilquando os objetivos estabelecidos so diferentes. Em outraspalavras, o mapa geogrfico e no uma representaocomo tal. Ele no substitui a verdadeira imagem da terra,nem em abstrao geomtrica; serve apenas para indicaralguns de seus atributos. Ele representa, j que atravs delee por sua mediao nos dirigimos espiritualmente ao repre-sentado, e como no conduz para fora de seus limites, norepresenta, mas retm a ateno para si como se fosse umafalsa realidade, um simulacro da realidade, e tem a pretensode possuir uma importncia autnoma.

    Aqui trata-se de um caso mais elementar. Porm, asformas da realidade so infinitamente mais diversas e com-plexas do que uma esfera; respectivamente, os procedimen-tos de representao de cada uma dessas formas podem serinfinitamente mais variados. Se forem levadas em consi-derao a complexidade e a diversidade da organizao deuma ou de outra rea espacial no mundo real, ento a nossamente se perde nas incontveis possibilidades de transmissodesta rea pela representao: perde-se no abismo da prprialiberdade. Normalizar matematicamente os procedimentosda representao do mundo: essa uma tarefa de excessi-va autoconfiana. E quando tal normalizao, como di-zem, tem a pretenso de ser matematicamente provada e,alm disso, aspira ser nica e excepcional e aplicada semposteriores consideraes para a mais particular das corres-pondncias, ser que isso no provoca o riso? A imagemperspctica do mundo nada mais do que um dos mtodosde desenho tcnico. Se algum deseja proteg-lo em nome

    104 Pvel Florinski A perspectiva inversa 105

  • XIV

    dos interesses da composio ou de alguns outros sentidospuramente estticos, entraremos em outra discusso; embo-ra, a propsito, no saibamos de tentativas para proteger aperspectiva neste aspecto.

    Mas no h que se referir nem geometria nem psi-cofisiologia; nessa defesa, exceto pela refutao da perspec-tiva, nada pode ser encontrado.

    Pois bem, qualquer que seja o princpio para se esta-belecer a correspondncia entre os pontos do objeto repre-sentado e os pontos da representao, inevitavelmente a re-presentao s significa, aponta e insinua a ideia do original,mas nunca oferece essa imagem no formato de cpia ou demodelo. Da realidade no quadro, no sentido da semelhana,no h nenhuma ponte: aqui o hiato transposto pela pri-meira vez atravs da mente criativa do artista e, depois, pelamente que reproduz criativamente em si mesma o quadro.

    Este ltimo, repetimos, no s no nenhuma dupli-cao da realidade em sua plenitude, como tambm no capaz de oferecer a semelhana geomtrica da pele dascoisas: ele necessariamente um smbolo do smbolo, poisa prpria pele s um smbolo da coisa. De um quadro oobservador passa para a pele da coisa, e da pele da coisa paraa prpria coisa.

    Mas, com isso, para uma determinada pintura abre--se um campo ilimitado de oportunidades. Esta amplitudedepende da liberdade para estabelecer a correspondnciaentre os pontos da superfcie das coisas e os pontos da tela,por motivos bem diferentes. Mas nenhum princpio de cor-respondncia oferece uma representao adequada, aindaque do ponto de vista geomtrico, ao representado e, con-

    107A perspectiva inversa

    103 Riemann sugeriu distinguir as propriedades do ilimitado e do in-

    sequentemente, diferentes princpios so aplicveis, cadaum a seu modo, com suas vantagens e suas falhas, sem quenenhum deles tenha qualquer possvel (e nica) prioridadepara ser um princpio de adequao. Dependendo da neces-sidade interna da alma, no pressionada por foras externas,um certo princpio de correspondncia escolhido pela po-ca ou at pela criatividade individual conforme os objetivosde determinada obra, e logo, automaticamente, decorremdele todas as suas caractersticas, tanto _positivas quantonegativas. Um conjunto dessas caractersticas estratifica aprimeira formao daquilo que denominamos em arte estiloe maneira. Na escolha dos princpios de correspondnciainflui o carter primrio que determina a atitude do artistacriador para com o mundo e, consequentemente, determinatambm a profundidade da sua compreenso do mundo eseu sentido da vida.

    A representao perspctica do mundo um dos in-meros possveis caminhos para estabelecer a mencionadacorrespondncia e, alm disso, um caminho muito estrei-to, extremamente restrito, limitado por incontveis con-dies adicionais que determinam a sua possibilidade e oslimites de sua aplicao.

    Para entender a orientao vital onde nasce necessaria-mente a perspectividade das artes plsticas, necessrio ex-por, enumerando, as premissas do artista perspectivista queesto subentendidas silenciosamente em cada movimentodo seu lpis. Eis a essncia:

    Em primeiro lugar: a crena de que o espao do mun-do real o espao euclidiano, isto , isotrpico, homog-neo, infinito e ilimitado (no sentido da diferenciao deRiemann),103 de curvatura nula, tridimensional, que oferece

    Pvel Florinski106

  • finito. A ilimitabilidade do espao no implica a sua infinitude. Por exemplo,os espaos de curvatura positiva constante (espaos de Riemann) so ilimi-tados, mas so finitos. A esfera um exemplo de tal espao. Ver BernhardtRiemann, ber die Hypothesen, welehe der Geometrie zugrunde liegen [Dashipteses que se baseiam na geometria], 1868. (N. da T.)

    a possibilidade de traar um nico paralelo para qualquerlinha reta, nica, atravs de qualquer um de seus pontos.Um artista perspectivista est convencido de que todas asconstrues da geometria que ele estudou durante a infncia(e desde ento felizmente esquecidas) so no apenas umdentre outros possveis esquemas abstratos, como constru-es do mundo fsico, no s realmente existentes, mas,inclusive, observveis. O tipo de artista que examinamosacredita na retido do feixe de raios que vai do olho ato contorno do objeto. Essa uma ideia que, a propsito,provm de uma viso da Antiguidade segundo a qual a luzno vem do objeto at o olho, mas parte do olho at o ob-jeto. Ele acredita, ademais, na invariabilidade da rgua demedio ao transferi-la no espao de um lugar para outro eao vir-la numa ou noutra direo etc. etc. Resumindo, eleacredita na organizao euclidiana do mundo e na percep-o kantiana do mundo. Isso est em primeiro lugar.

    Em segundo lugar: o artista, a despeito da lgica ede Euclides, mas conforme o esprito kantiano da com-preenso do mundo, onde o sujeito transcendental reinasobre o mundo ilusrio da subjetividade (e pior, de manei-ra forada), pensa, dentre todos os pontos absolutamenteiguais do espao infinito, segundo Euclides, em um pontoexclusivo, nico, especial por seu valor, por assim dizer, umponto monrquico. Mas a nica definio deste ponto que ele o lugar onde se encontra o prprio artista ou,mais precisamente, o seu olho direito, o centro ptico doseu olho direito. Todos os lugares do espao, em semelhante

    109A perspectiva inversa

    concepo, em sua essncia, so lugares sem qualidade eigualmente sem cor, exceto este nico, que absolutamentepredominante, premiado para ser a residncia do centroptico do olho direito do artista. Este lugar nomeado decentro do mundo: ele pretende representar espacialmenteo significado kantiano, absoluto e gnosiolgico do pintor.Em verdade, ele v a vida "do ponto de vist', mas sem aposterior definio, pois esse ponto elevado ao absoluto emnada se diferencia de todos os outros pontos do espao, e asua elevao acima dos outros no tem justificativa, comotambm, pela essncia de toda a viso de mundo analisada,no pode ser justificada.

    Em terceiro lugar: este rei e legislador da natureza "doseu ponto de vist' considerado caolho como um ciclope,pois seu segundo olho, competindo com o primeiro, trans-gride a singularidade e, consequentemente, o carter abso-luto do ponto de vista, revelando dessa maneira a falsidadedo quadro perspctico. Em essncia, o mundo todo nem serelaciona com o artista observador, mas s com o seu olhodireito e, alm do mais, apresentado por um nico ponto:o centro ptico. Este centro quem dita as leis do universo.

    Em quarto lugar: o legislador acima mencionado assim concebido para toda a eternidade e indissoluvelmentepreso ao seu trono: se ele descer deste lugar absoluto ou atse mover nele, toda a unidade de construes perspcticasir ruir e toda a perspectividade se despedaar. Em outraspalavras, o olho que v, nesse sentido, no o rgo deum ser que vive e trabalha nesse mundo, mas uma lente dacmera escura.

    Em quinto lugar: o mundo inteiro concebido comoabsolutamente imvel e bastante imutdvel. Nem a histria,nem o crescimento, nem dimenses, nem movimentos, nembiografia, nem desenvolvimento da ao dramtica, nemjogo de emoes no mundo sujeito representao perspc-

    Pvel Florinski108

  • tica, podem e devem existir. Caso contrrio, a unidade pers-pctica do quadro novamente se rompe. Esse um mundomorto ou dominado pelo sono eterno, invariavelmente omesmo quadro em sua imobilidade congelada.

    Em sexto lugar: todos osprocessos psicofisiolgicos do atode ver so excludos. O olho mira imvel e impassvel, se-melhante lente ptica. Ele no se mexe, no pode, no temnenhum direito de se mexer, a despeito da condio bsicada viso - a atividade, a reconstruo ativa da realidade naviso como atividade de um ser vivo. Alm disso, esse mirarno acompanhado nem pelas memrias, nem por esforosespirituais e nem pelo reconhecimento. Esse processo apa-rentemente mecnico, em ltimo caso fsico-qumico, nun-ca aquilo que se chama de viso. Todo o momento psqui-co e at fisiolgico da viso est decididamente ausente.

    E assim, se todas as seis condies mencionadas foramcumpridas, ento, e s ento, torna-se possvel a correspon-dncia entre os pontos da pele do mundo e os pontos darepresentao que o quadro perspctico deseja proporcio-nar. Se pelo menos uma dessas seis condies citadas aci-ma no for cumprida plenamente, ento essa espcie decorrespondncia torna-se impossvel e a perspectiva serinevitavelmente destruda em um grau maior ou menor. Oquadro se aproxima da perspectividade na medida em que asmencionadas condies so cumpridas. E se elas no foremcumpridas, pelo menos parcialmente, e se a legalidade desua violao at mesmo local admitida, a perspectividadedeixa de ser uma exigncia incondicional imposta sobre oartista e torna-se somente um procedimento aproximado derepresentao da realidade, um entre muitos outros; almdisso, o grau e o local da sua utilizao em uma determinadaobra definido pelos objetivos especficos dessa obra e de seudeterminado local, porm no se aplica a todos os aspectosde qualquer obra como tal.

    Mas suponhamos temporariamente que as condiesda perspectividade foram plenamente satisfeitas e, por con-seguinte, a unidade perspctica da obra foi executada compreciso. A imagem do mundo, dada nessas condies, iriaparecer uma fotografia que reproduziu instantaneamente acorrespondncia entre a placa fotossensvel da cmera e arealidade. Deixando de lado a questo das caractersticas doprprio espao e dos processos psicofsicos da viso, pode-mos dizer que, em relao contemplao efetiva da vidareal, esta fotografia instantnea um diferencial e, ademais,um diferencial de um grau superior ou pelo menos de se-gunda ordem. Se queremos obter atravs dele uma imagemverdadeira do mundo, ser necessrio integr-lo repetidasvezes - segundo o tempo varivel do qual dependem tantoas alteraes da prpria realidade quanto os processos de ob-servao e, segundo outras variveis - massa aperceptivamutvel etc. No entanto, mesmo se tudo isso fosse feito, aimagem integral obtida no coincidiria com a rigorosamen-te artstica, por causa da falta de correspondncia entre aconcepo de espao e o espao da obra de arte, organizadoscomo uma unidade autolimitada e completa.

    fcil reconhecer em tal artista perspectivista a encar-nao do pensamento passivo e condenado a toda passivida-de, pensamento este que num instante olha o mundo comose estivesse espionando de maneira ladina, furtiva, atravsda fresta dos limites subjetivos, inanimado e imvel, incapazde capturar o movimento, mas que pretende que seu lugare seu momento de espia tenham carter divino e incondi~cional. Esse o observador que de si prprio nada traz parao mundo, nem mesmo pode sintetizar todas as suas impres-ses isoladas, que sem entrar em contato vivo com o mun-do e sem viver nele, no tem conscincia da prpria reali-dade, embora em seu arrogante isolamento do mundo jul-gue-se a ltima instncia e por sua experincia furtiva cons-

    110 Pvel Florinski A perspectiva inversa 111

  • trua toda uma realidade sob o pretexto da objetividade,encaixando-a dentro do prprio diferencial observado.Precisamente assim nasce, no solo renascentista, a concep-o de mundo de Leonardo, Descartes e Kant, como tam-bm surge o equivalente artstico e plstico dessa concepode mundo: a perspectiva. Aqui, os smbolos artsticos devemser perspcticos porque esse o modo de unificar todas asconcepes do mundo, de maneira que este entendidocomo uma rede nica, indissolvel e impenetrvel de rela-es kantiano-euclidianas, concentradas no EU que con-templa o mundo, mas de maneira que esse EU seja inerte eespelhado, um certo foco imaginrio do mundo. Em outraspalavras, a perspectividade um procedimento que obriga-toriamente resulta dessa concepo de mundo onde se re-conhece como verdadeiro fundamento dos objetos-ideiassemirreais uma subjetividade desprovida de realidade. A pers-pectividade expresso do meonismo104 e do impersonalis-mo. Esta corrente de pensamento normalmente chamadade naturalismo e humanismo - aquilo que surgiu com ofim do realismo e do teocentrismo medieval.

    104 Meonismo [meonizm] um conceito cunhado pelo poeta e escri-tor russo Nikolai Minski, pseudnimo de Nikolai Maksmovich Vilinkin(1855-1937) em sua obra luz da conscincia: reflexes e sonhos sobre a fi-nalidade da vida [Pri svitie svesti: msli e metchti o tsli jzm], publicada emPetersburgo em 1890. A palavra deriva de "meone" (do grego J.!1 v, "noente" ou "no existente") e traduz a ideia de que o desgnio da vida humanaencontra-se fora do mundo dos fenmenos e que este no pode satisfazer anecessidade do absoluto que caracteriza a alma humana. Este absoluto foinomeado "meone" por se caracterizar na negao de tudo o que pode sercompreendido pelo pensamento. O que o homem poderia fazer seria somen-te aspirar a viver o xtase. "Meone" tambm era identificado com a origemda criatividade humana. Tal termo e seus derivados ("meonismo", "menico"etc.) alcanaram grande sucesso entre os representantes da Sodedade Reli-giosa e Filosfica de Moscou, qual pertencia Florinski. (N. da T.)

    xv

    Mas a pergunta : em que medida podemos duvidar docarter fundamental das seis premissas da perspectividadecitadas acima? Em outras palavras: ser que a representaoperspctica, embora seja apenas uma entre as possveis ma-neiras abstratas de representar o mundo, na prtica a ni-ca (devido existncia das condies expostas para torn-lapossvel)? Ou seja, vital a concepo kantiana renascentis-ta do mundo? Se descobrssemos que as condies da pers-pectividade so violadas na experincia real, a importnciavital desta compreenso seria refutada.

    Pois bem, examinaremos passo a passo as condiesque apresentamos.

    Em primeiro lugar: acerca da questo do espao domundo temos a dizer que no prprio conceito de espaodistinguem-se trs camadas que esto longe de ser idnticas.Isso , a saber: o espao abstrato ou geomtrico, o espaojlsico, e o espao fisiolgico, sendo que neste ltimo, por suavez, diferenciam-se o espao visual, o espao ttil, o espaoauditivo, o espao olfativo, o espao gustativo, o espao dosentido orgnico geral etc., com as suas subsequentes divi-ses mais sutis. Sobre cada uma dessas divises do espao,grandes e fragmentadas, possvel, falando abstratamente,pensar bem diferente. Imaginar que um conjunto inteirode questes extremamente complexas pode ser desviadopor uma simples referncia doutrina geomtrica sobre asemelhana das figuras no espao tridimensional euclidia-no significaria sequer tocar nas dificuldades do problemaestabelecido. Antes de mais nada, deve ser destacado que asrespostas para diferentes itens da pergunta aventada sobreo espao resultam ser, como natural, bem variadas. Emtermos abstratamente geomtricos, o espao euclidiano apenas um caso particular entre os variados espaos hete-

    112 Pvel Florinski A perspectiva inversa 113

  • rogneos com caractersticas que so inesperadas dentro doensino elementar da geometria, mas muito explicativas emsua relao direta com o mundo. A geometria de Euclides uma entre incontveis geometrias, e no temos fundamentospara dizer que o espao fsico, o espao de processos fsi-cos um espao euclidiano. Esse s um postulado, umaexigncia para pensar assim o mundo e ento conformar aesta exigncia todas as outras ideias. A prpria exignciaderiva da suaf predeterminada nas cincias naturais fsico--matemticas de uma certa compleio, isto , com umprincpio de continuidade, com um tempo absoluto, comcorpos absoluramente slidos etc.

    Mas suponhamos temporariamente que de fato o es-pao fsico satisfaa a geometria de Euclides. Disso no re-sulta ainda que um observador imediato do mundo o per-ceba dessa mesma maneira. Independentemente de comoaquele que habita o espao fsico gostaria de conceb-lo,ainda assim o espao fisiolgico no faz parte dele, por maisque considere necessrio construir o restante de suas ideiasde acordo com a composio euclidiana do espao externo,ajustando o espao fisiolgico ao esquema euclidiano. Semfalar nos espaos olfativos, gustativos, trmicos, auditivos etteis que no tm nada em comum com o espao de Eucli-des, pois, neste sentido, sequer esto sujeitos discusso. impossvel evitar o fato de que at o espao visual, o menosdistante do euclidiano, revela-se profundamente diferentedele; mas precisamente este est nas bases da pintura e dagrfica, embora em casos diferentes possa submeter-se aoutros tipos de espao fisiolgico e ento o quadro ser umatransposio visual de percepes no visuais. 105* "Se per-guntarmos agora o que, de fato, o espao fisiolgico tem emcomum com o espao geomtrico, encontraremos pouqus-

    105* Incio do trecho censurado na edio russa de 1967. (N. da T.)

    simos traos comuns" - diz Mach. - "Tanto um quantooutro representam uma multiplicidade de trs dimenses.A cada ponto do espao geomtrico A, B, C, D ... corres-pondem P:, B', C', D' ... do espao fisiolgico. Se C estentre B e D, ento C' est entre B' e D'. possvel tambmdizer assim: ao movimento contnuo de algum ponto noespao geomtrico corresponde um movimento contnuode um ponto dentro do espao fisiolgico. J comprovamosem outro lugar que esta continuidade adotada por comodi-dade no deve ser necessariamente uma continuidade realnem para um, nem para o outro. Caso se aceite que o espa-o fisiolgico nos inerente, ele revela pouqussimas seme-lhanas com o espao geomtrico que possibilitem observaruma base suficiente para o desenvolvimento a priori da geo-metria (no sentido de Kant). Com esse embasamento possvel, no mximo, construir uma topologia. Se esta faltade semelhana entre o espao fisiolgico e o geomtrico nosalta aos olhos das pessoas que no se ocupam especialmen-te dessas pesquisas, se o espao geomtrico no lhes parecealgo monstruoso, alguma falsificao do espao inato, issopode ser explicado ao observar de perto as condies de vidad I . d "106 M "e esenvo VImento e uma pessoa. as mesmo quan-

    do h uma aproximao maior do espao de Euclides, oespao fisiolgico ainda diferencia-se muito dele. Uma pes-soa ingnua supera facilmente a diferena entre direita eesquerda, dianteiro e traseiro, mas no supera to facilmen-te as diferenas entre alto e baixo, devido resistncia que

    'd ." 107exerce neste senti o o geotropIsmo .

    106 E. Mach, Pozndnie i zablujdinie: tcherki po psikholgui isslido-vania. [O conhecimento e o equvoco: ensaios sobre a psicologia da pesquisa],1909, p. 346. (N. do A) [Ttulo original: Erkenntnis und [rrtum: Skizzenzur Psychologie der Forschung, 1883. (N. da T.)]

    107 Mach, idem, p. 349. (N. do A.)

    114 Pvel Florinski A perspectiva inversa 11;

  • Em outra obra, o mesmo pensador esboa alguns tra-os desta diferena. "J foi assinalado mais de uma vez oquo fortemente se diferencia o sistema das nossas percep-es espaciais, ou por assim dizer, o espao fisiolgico, doespao geomtrico, do espao de Euclides. [... ] O espaogeomtrico em todo lugar e em todas as direes igual; ele ilimitado e infinito (no sentido de Riemann).108* O espa-o visual limitado e finito e at, como mostra a observaoda plana 'abbada celeste', possui uma extenso desigualem todas as direes. A reduo das dimenses dos corposquando do afastamento, assim como a sua ampliao quan-do da aproximao, mais relaciona o espao visual com al-gumas representaes metageomtricas do que com o espa-o de Euclides. A diferena entre 'alto' e 'baixo', 'frente' e'trs' e, para ser exato, 'direita' e 'esquerda', existe tanto parao espao tangvel quanto para o visual. Para o espao geo-mtrico tal diferena no existe".109 O espao fisiolgicono homogneo, no isotrpico. Isso se manifesta nasdiversas avaliaes das distncias angulares, nas diversas dis-tncias a partir do horizonte, na estimativa varivel de com-primentos subdivididos e no subdivididos, na mutvelsutileza da percepo realizada pelas diferentes partes daretina etc. etc. 11O

    Deste modo, pode-se e deve-se duvidar que o nossomundo encontra-se no espao euclidiano. Mas mesmo seeliminarmos essa dvida, ainda assim provavelmente novemos e, em geral, tampouco percebemos o mundo eucli-diano-kantiano. Ns s pensamos sobre ele como sendo

    108* Final do trecho censurado. (N. da T.)

    109 Idem, p. 354. (N. do A.)

    110 E. Mach, Anliz oschuschnii [A anlise das sensaes], Moscou,1908,pp. 157-8.(N. do A.) [Ttulo original: Die Analyse der Empfindungenund das Verhdltnis des Physischen zum Psychischen, 1886.(N. da T.)]

    algo visvel por fora das exigncias tericas. Entretanto,o trabalho do pintor no escrever tratados abstratos, maspintar quadros, isto , representar aquilo que ele realmentev. Mas o que ele v, pelo prprio funcionamento do rgovisual, no absolutamente o mundo kantiano e, conse-quentemente, deve representar algo que de forma algumaobedece s leis da geometria euclidiana.

    Em segundo lugar. nenhuma pessoa em s conscinciaconsidera seu ponto de vista como nico .e reconhece cadalugar, cada ponto de vista, como um bem que oferece umaspecto particular do mundo que no exclui, mas confirmaoutros aspectos. Alguns pontos de vista so mais substan-ciais e caractersticos, outros menos, e ainda cada um suamaneira, mas no h nenhum ponto de vista absoluto. Emconsequncia, o pintor tenta olhar o objeto por ele repre-sentado a partir de pontos de vista diferentes, enriquecendosua observao com novos aspectos da realidade e reconhe-cendo-os como mais ou menos equivalentes.

    Em terceiro lugar: tendo o segundo olho, isto , tendoao mesmo tempo pelo menos dois pontos de vista diferen-tes, o pintor possui um constante corretivo do ilusionismo,pois o segundo olho sempre demonstra que a perspectivi-dade uma fraude, e alm do mais uma fraude malograda.Alm disso, com dois olhos o pintor v mais do que podever com um e, ainda: com cada olho v de forma distinta,de modo que na sua conscincia a imagem visual se com-pe sinteticamente como binocular o que, em todo caso, uma sntese psquica, mas que no pode assemelhar-se fotografia monocular e mono-objetiva sobre a retina. Nocabe nem aos defensores da perspectiva, nem aos adeptos dateoria da viso de Helmholtz,lll referir-se insignificncia

    111 Hermann Fetdinand Ludwig von Helmholtz (1821-1894),m-dico e fisiologista alemo. (N. da T.)

    116 Pvel Florinski A perspectiva inversa 117

  • da diferena entre os quadros oferecidos por um ou poroutro olho: esta diferena, segundo a sua prpria teoria, bastante suficiente para se ter a sensao de profundidade,e sem tal diferena no seria possvel reconhecer a profun-didade. Em consequncia, notando uma diferena entrerepresentaes no olho direito e esquerdo, esses defensorese adeptos destroem a razo pela qual o espao percebidocomo tridimensional.

    Todavia, esta diferena no to pequena como podeparecer primeira vista. Por exemplo, fiz o clculo de umcaso em que uma esfera de 20 cm de dimetro observadaa uma distncia de meio metro, sendo que a distncia hipo-ttica entre as pupilas de 6 cm. Supondo que o centro daesfera encontra-se na altura dos olhos, ento aquela adiodo arco equatorial da esfera que est invisvel para o olhodireito, mas visvel para o esquerdo, aproximadamenteigual a um tero do arco do mesmo equador visvel parao olho direito. Durante a observao imediata da esfera,a relao daquilo que o olho esquerdo v adicionado aoque est visvel ao olho direito, e ser maior do que s umtero. Esses valores, com os quais temos que lidar nas con-dies normais da viso, por exemplo, quando observamoso rosto humano, mesmo em menores graus de preciso,no podem ser considerados como valores passveis de sermenosprezados.

    Em geral, se denominamos a distncia entre os olhosde s, o raio da esfera observada de r ea distncia do centroda esfera at o centro da distncia entre os olhos de I, entoa relao x do arco equatorial adicional somado ao mesmoarco do olho direito pelo olho esquerdo, observado peloolho direito, se expressa com bastante preciso pela seguinteequao:

    x=-------

    119A perspectiva inversa

    112 Em latim, no original: "o quadrado com o redondo". (N. da T.)

    s

    21 arc cos r

    Em quarto lugar. o pintor, ainda que sentado num lu-gar, move-se o tempo todo, movimenta sem parar os olhos,a cabea, o tronco e o seu ponto de vista muda incessante-mente. Aquilo que deveria ser chamado de imagem artsticavisual a sntese psquica de uma infinidade de percepesvisuais de distintos pontos de vista e, alm do mais, a cadavez so duplicadas; esse o resultado integral de duas ima-gens em uma. Pensar nele como um fenmeno puramentefsico significa nada entender sobre os processos da viso econfundir, quadrata rotundis, 112 o mecnico com o espiri-tual. Aquele que no assimilou como um axioma a naturezaespiritualmente sinttica das imagens visuais da natureza,nem sequer chegou perto da teoria da viso, principalmenteda teoria da viso artstica.

    Por outro lado, em quinto lugar, as coisas variam, mo-vimentam-se, voltam os seus diferentes lados para o especta-dor, crescem e diminuem. O mundo a vida e no a imobi-lidade glacial. E, por conseguinte, aqui novamente o espritoartstico do pintor deve sintetizar, formando integrais dosaspectos particulares da realidade, seus cortes instantneosna coordenada do tempo. O artista no representa uma coi-sa, mas a vida de uma coisa segundo a sua impresso dela. Epor isso, falando em termos gerais, um grande preconceitopensar que a contemplao deve produzir-se na imobilida-de e com o objeto contemplado em sua imobilidade. Poistrata-se do tipo de percepo do objeto que necessrio

    Pvel Florinski118

  • representar, em um ou em outro caso, seja a partir da fendana parede de uma priso ou a partir de um automvel. Porsi s, nenhum tipo de atitude frente realidade pode serrejeitado a priori. A percepo definida pela atitude vitalfrente realidade, e se o pintor deseja representar o resultadodaquela percepo obtida enquanto ele prprio e os objetosse movem mutuamente, necessrio somar as impressesdurante o movimento. Entretanto, essa a mais habitual ea mais vital percepo da realidade e aquela que oferece, ri-gorosamente, o mais profundo conhecimento da realidade.A expresso pictrica de tal cognio uma tarefa naturaldo pintor. Ser que ela possvel?

    Sabemos que o movimento representvel, ainda queseja o galope de um cavalo, o jogo de emoes sobre umrosto ou o desenvolvimento da ao de eventos. Conse-quentemente, no h nenhuma base para reconhecer comoirrepresentvel a percepo vital da realidade. A diferena que, em um caso mais comum, os objetos em movimentoso representados com mais frequncia estando o pintorrelativamente imvel, enquanto aqui pressupe-se um mo-vimento mais significativo do pintor, ao mesmo tempo emque a prpria realidade pode ser quase ou at absolutamenteimvel. Isso resulta nas representaes de uma casa com trsou quatro fachadas, nas superfcies complementares de umacabea e em outros fenmenos semelhantes que conhecemosna arte antiga. Tal representao da realidade correspon-der ao monumentalismo imvel e ao peso ontolgico domundo, junto atividade do esprito cognitivo que vive etrabalha nesses baluartes da ontologia.

    As crianas no sintetizam a imagem imediata de umapessoa, mas colocam os olhos, o nariz, a boca etc. separa-damente e de forma descoordenada sobre o papel. O pintorperspectivista no sabe sintetizar uma sequncia de impres-ses instantneas e as coloca de forma descoordenada nas

    diferentes pginas do seu lbum. Mas tanto um quantooutro atestam somente a passividade do pensamento quese dispersa em impresses elementares, incapazes de captu-rar com um nico ato contemplativo - e, portanto, coma nica forma que lhe corresponde - alguma percepocomplexa, fracionando-a cinematograficamente em instan-tes e momentos. Contudo, h casos em que no possvelevitar essa sntese e ento o mais fervoroso perspectivista obrigado a renunciar s suas posies ..Nenhum pintornaturalista congelar em sua imaginao os giros de umpio, a roda de um trem em marcha ou a ligeira bicicletaem movimento, uma cascata ou uma fonte, mas transmitira percepo sumria do jogo de impresses que conflueme encadeiam-se umas com as outras. Porm, a fotografiainstantnea ou a viso, ao esclarecer esses processos ilumi-nando-os, evidenciar algo completamente diferente doque foi representado pelo pintor, e aqui ser revelado que aimpresso nica detm o processo e oferece um diferencial,mas a percepo comum integra esses diferenciais. Porm,se todos esto de acordo com a legitimidade de tal integra-o, onde est o obstculo para a aplicao de algo equiva-lente em outros casos, quando a velocidade do processo um pouco menor?

    E finalmente, em sexto lugar. os defensores da perspec-tiva esquecem que a viso artstica um processo psquicobastante complexo de fuso de elementos psquicos, acom-panhado por ressonncias psquicas: imagem reconstrudano nosso esprito acrescentam-se as memrias, as respostasemocionais para os movimentos internos e, prximo daspartculas daquilo que obtido sensorialmente, cristaliza--se o contedo psquico efetivo da personalidade do pintor.Todo este conjunto se expande e possui um ritmo prprio,atravs do qual se manifesta a reao do pintor realidadepor ele representada.

    120 Pvel Florinski A perspectiva inversa 121

  • Para ver e examinar um objeto, e no somente olharpara ele, necessrio transfirir gradualmente, e em partesseparadas, a sua representao sobre a mancha sensvel daretina. Isso significa que a imagem visual no dada cons-cincia como algo simples, obtido sem trabalho e esforo,mas construda por partes sucessivamente anexadas umass outras, sendo que cada uma delas percebida mais oumenos de seuprprio ponto de vista. Alm disso, uma face somada outra face atravs de um ato psquico particulare, em geral, a imagem visual fOrmada sucessivamente e novem pronta. Na percepo, a imagem visual no obser-vada a partir de um s ponto de vista, mas, na essncia daviso, uma imagem de perspectiva policntrica. Somandoainda aqui as superfcies adicionais unidas pelo olho es-querdo a uma imagem do olho direito, devemos reconhecera semelhana de qualquer imagem visual com as cmarasde arquitetura antiga, e de hoje em diante s pode haverdiscusso sobre a medida e o grau desejvel desse policen-trismo, mas no mais sobre a sua aceitao generalizada. Aseguir inicia-se a exigncia de uma mobilidade ocular aindamaior por causa da sintetizao forosamente condensadaou a exigncia de manter imvel o olho quando se buscauma viso fracionada, sendo que a perspectiva atrapalha essaanlise visual. Contudo, a pessoa, enquanto viva, no podecaber por completo nesse esquema perspctico, e o prprioato de ver com o olho imvel e fixo (esqueamos do olhoesquerdo) psicologicamente impossvel.

    Diro: "Mas no possvel ver ao mesmo tempo trsparedes de uma casa!". Se esta objeo fosse correta, haveriade ter continuidade e ser consequente. No s impossvelver trs, mas tambm no possvel ver duas paredes deuma casa e at mesmo ver uma. De imediato ns vemossomente um nfimo e insignificante fragmento de parede, enem a esse vemos imediatamente, o que vemos de pronto

    Esse o caminho mental aproximado das premissas donaturalismo at as caractersticas perspcticas da pintura decones. Talvez essa compreenso da arte seja completamentediferente do caminho do naturalismo, mas para o autor,pessoalmente, a compreenso da arte mais prxima aquelaque deriva de um preceito fundamental sobre a indepen-

    DanIef 'Nanderson FflmIia

    literalmente nada. No de imediato, mas seguramente aca-baremos por obter a imagem de uma casa de trs ou quatroparedes, tal e qual a imaginamos. Na imaginao viva ocorreum fluxo contnuo, transbordamento, alterao e luta. Talfluxo incessantemente joga, cintila, pulsa, mas nunca se de-tm na contemplao interna do esquema morto da coisa. E precisamente com essa pulsao interna, brilho, jogo, quevive na nossa imaginao uma casa. O pintor deve e poderepresentar sua ideia de casa e no transferir a prpria casapara uma tela. Esta vitalidade de sua ide ia, seja ela de umacasa ou de um rosto humano, ele capta, escolhendo entre aspartes da ideia a mais expressiva e, em vez da ebulio ps-quica contnua, ele nos oferece um mosaico imvel de seusmomentos isolados mais impressionantes. Durante a con-templao de um quadro, o olho do espectador, transitandosucessivamente por esses traos caractersticos, reproduz emseu esprito a imagem da representao temporal prolonga-da que brilha e pulsa, mas agora mais intensa e mais coesado que a imagem da prpria coisa, pois aqui os momentosmais reluzentes observados em diferentes momentos sodados em estado puro e compacto e no requerem o esforopsquico para eliminar suas arestas. Como sobre um rologravado de um fongrafo, a viso aguada desliza ao longodas linhas e superfcies de um quadro com seus sulcos, eem cada parte dele o espectador sente a incitao de suasprprias vibraes. Exatamente essas vibraes compem oobjetivo de uma obra de arte.

    123A perspectiva inversaPvel Florinski122

  • 113 Em latim, no original: "O destino guia os que quetem set guiadose arrasta os que no quetem". Ttata-se de um pteceito estoico, de auto tiade Sneca, filsofo romano do ptimeiro sculo depois de Cristo, e constadas Cartas Morais a Luclio [Epistulae morales ad Lucilium] (107, 11,5). Htericos que afirmam que Sneca teria traduzido para o latim a frase gregaatribuda a Cleante (c. 330 a.c.). (N. da T.)

    dncia espiritual. No terreno dessa compreenso nem selevanta a questo sobre a perspectiva, e ela permanece toalheia conscincia artstica como todos os outros tipos eprocedimentos do desenho tcnico. Nas presentes reflexes,deveramos superar, a partir do seu interior, o carter limi-tado do naturalismo e mostrar como [ata volentem ducunt,nolentem trahuntl13 at a libertao e a espiritualidade.

    124 Pvel Florinski