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Prefácio: Lea Tiriba Organização: Maria Isabel Amando de Barros

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  • Prefcio: Lea Tiriba

    Organizao: Maria Isabel Amando de Barros

  • Rio de Janeiro, julho de 2018.

    2 edio

    Desemparedamento da infncia A escola como lugar de encontro

    com a natureza

  • Essa publicao no seria possvel sem a contribuio de todas as pessoas, escolas e organizaes que generosamente compartilha-ram conosco suas experincias, prticas, imagens e referncias:

    Brigitta BlinkerCasa Redonda Centro de EstudosChildren & Nature NetworkEMEI Dona LeopoldinaEscola goraEscola Amigos do VerdeEscola da TocaEscola Rural Dend da SerraEscola SantiFundao Patio VivoGrupo Ambiente-Educao - PROARQ/FAU/UFRJInternational School Grounds AllianceLea TiribaMaria Farinha FilmesMatluba KahnProjeto Rede - Escola Municipal de Educao Infantil e de Ensino Fundamental Dulce de Faria Martins MiglioriniRede Municipal de Ensino de Novo Hamburgo Te-arte Criatividade InfantilEscola Vila Verde

    Agradecimentos

  • Com alegria recebo o convite para escrever este prefcio, cujo tema tem imensa importncia para a sade das crianas e da Terra, mas que ainda no foco de ateno da sociedade, nem se-quer dos meios acadmicos ou dos que se ocupam da formulao de polticas pblicas.

    O que ser de um planeta cuja infncia e juventude crescem distan-tes da natureza, sem a possibilidade de desenvolver sentimentos de amor e compreenso clara, existencial, do que so os processos de nascimento, crescimento e morte dos frutos da Terra? Na contra-mo da alienao de si e do mundo, preciso que as pessoas tenham vivncias amorosas para com a natureza para que possam trat-la amorosamente. Pois h relaes entre sentimento de pertencimento ao mundo natural e atitudes ambientais fundamentais sustentabi-lidade do planeta.

    Apaixonadas pelos espaos ao ar livre, atentas aos animais e seus filhotes, dispostas a encontrar-se com a gua - esse elemento to precioso que da origem vida - elas lutam o quanto podem pelo direito de brincar com a natureza... Que paixo essa? Quem no a v? Quem no a escuta? Ns, que somos seus educadores, em que medida favorecemos ou criamos obstculos potncia de agir das crianas sobre o universo que as afeta?

    Se a Constituio brasileira de 1988 declara as crianas cidads de direito, a escuta de seus desejos corresponde ao respeito a um prin-cpio democrtico. O compromisso com as interaes e as brinca-deiras com a natureza seria decorrente dessa escuta e implicaria em uma pedagogia do desemparedamento. Entretanto, elas permane-

    Prefcio cem horas a fio confinadas nas escolas, lugar obrigatoriamente fre-quentado por todas as crianas brasileiras a partir dos quatro anos de idade.

    Sim, verdade que nos ltimos anos, especialmente na educao infantil, os processos culturais ganharam importncia e abriram ca-minhos para mltiplas linguagens no processo de interao com a cultura. Entretanto, a leitura que se faz das diretrizes curriculares, que apontam as interaes e a brincadeira como norte do processo pedaggico, no inclui a natureza como sujeito dos processos in-terativos; apenas os humanos so considerados como referncia. Assim, no plano pedaggico, o ambiente natural entendido como possvel cenrio das brincadeiras infantis - no como lugar funda-mental constituio humana. E, progressivamente, no ensino fun-damental, mdio e superior, o distanciamento se impe de modos cada vez mais radicais.

    com base na ideia de universo como pano de fundo, cenrio para as movimentaes humanas, que se funda a concepo antropo-cntrica da natureza como simples objeto de anlise e interpreta-o racional, disponvel aos caprichos da espcie. essa concep-o que justifica o tempo, geralmente diminuto, em que as crianas permanecem em espaos ao ar livre, possibilidade muitas vezes com status de prmio - que depende exclusivamente da deciso das professoras e professores ou de quem organiza as rotinas escolares; que justifica tambm a quase inexpressiva utilizao do espao do entorno da escola, ou mesmo a falta de acesso ao mundo exterior atravs das janelas. Assim, de modo radical, a pedagogia dos dias atuais reproduz a premissa de separao entre seres humanos e na-tureza, conformando, de acordo com os interesses da sociedade do capital, um modo de pensar, sentir e organizar a vida em que os humanos melhor dizendo, alguns deles, os que se impem como donos dos bens que seriam de todos so entendidos como sujeitos

  • de direitos plenos; e os demais seres e entes humanos e no-huma-nos, como objetos de curiosidade, investigao, domnio e controle, matria prima morta, mo de obra para a produo industrial.

    Na contramo do esforo extremo de separar as crianas do mundo natural, os infantes humanos so seres da cultura cujo desenvolvi-mento se d em conexo com outros seres, humanos e no-huma-nos. De acordo com Spinoza, so modos de expresso da nature-za entrelaados com outros modos, que buscam um bom encontro porque reciprocamente se potencializam em estado de conexo. Ao desejar a proximidade, as crianas expressam o apetite e a cons-cincia da necessidade daquilo que as faz mais potentes. Assim, a filosofia de Spinoza nos leva a pensar que o desejo de afundar os ps na lama vem do fato de nossa espcie ser apenas uma entre outras, todas constitudas da substncia nica que a vida; que os elemen-tos do mundo natural no significam sujeira, doena, perigo, mas se constituem como lugares da liberdade, da criatividade, da autono-mia, da solidariedade; que a proximidade da terra, da gua, da areia no favor, no uma concesso, mas condio para a existncia saudvel. Se brincar na natureza um direito humano porque cor-responde necessidade de integridade do ser, esse direito se mate-rializaria como acesso ao universo que est para alm das paredes e dos muros escolares.

    Nessa ultrapassagem, a alegria potencializada porque, para desem-paredar, preciso dialogar com as pessoas, com os movimentos so-ciais, com o patrimnio ambiental, elementos do entorno da escola e da cidade que, ao vivo, deixam de ser objeto de pesquisa em separado do pesquisador - paisagem investigativa abstrata - para se constitu-rem como espao de vida cuja decifrao exige no apenas a racio-nalidade, mas outras dimenses humanas. Ainda mais quando esse movimento realizado como poltica pblica, numa ao comparti-lhada com as famlias, atravs de uma metodologia de participao

    democrtica em que as comunidades escolares so autoras; em que no h um padro pr-definido, no h um desenho arquitetnico, nem brinquedos idnticos a serem reproduzidos; em que as prticas de formao de educadores entrelaam apropriao terica, proximi-dade da natureza, vivncias sensoriais, criativas e artsticas.

    Como educadora que sou, recebo com alegria esta publicao que nos ajuda especialmente aos professores e gestores mas tambm aos familiares a agir no sentido de favorecer a retomada, pelas crianas, dos ptios escolares: espaos pblicos que a elas perten-cem! Porque se nas salas a situao de emparedamento assegurada graas imposio de mecanismos de controle que valorizam com-portamentos e valores individualistas e competitivos, nos ptios as crianas podero exercitar a democracia necessria s sociedades sustentveis e democrticas: em conexo com a natureza, livres em sua movimentao, potentes na alegria de brincar, criar, revolucio-nar! desses seres que o mundo necessita!

    Maro de 2018

    Lea TiribaEducadora Ambientalista, Professora da Escola de

    Educao da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); Coordenadora do Ncleo Infncias

    Natureza e Arte (NiNa/ UNIRIO) e do Grupo de Pesquisa Infncias, Tradies Ancestrais e Cultura

    Ambiental (GiTaKa/UNIRIO); membro do Movimento Interfruns de Educao Infantil do Brasil (MIEIB) e do

    Movimento Articulao Infncias (RJ).

  • Apresentao .............................................................................................10

    Movimentos ................................................................................................14

    Espao e tempo para a infncia ................................................................... 14

    Educao integral, territrios educativos e bem-estar da comunidade .........................................................................26

    Bases legais no Brasil ......................................................................................33

    Caminhos para o desemparedamento e para a implementao de ptios escolares naturalizados ..........................38

    Escuta das crianas .........................................................................................38

    Formao dos educadores .............................................................................42

    Envolvimento de outros territrios e articulao comunitria ..............................................................................49

    Ampliao do tempo .......................................................................................56

    Composio, organizao e uso dos espaos ........................................... 61

    Escolha dos materiais disponveis para as crianas ................................ 74

    Por que importante brincar e aprender com a e na natureza na escola? .....................................................78

    Escola lugar de experimentar-se em movimento ............................... 80

    Escola lugar de encontros e de sentir-se bem ......................................82

    Escola lugar de sentido, significado e interesse ...................................84

    Escola lugar de brincar ...............................................................................86

    Inspiraes .................................................................................................88

    Referncias bibliogrficas ....................................................................... 102

    Material de apoio ........................................................................................ 108

    Sumrio

  • 12 13DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    O programa Criana e Natureza uma iniciativa recente do Alana, mas segundo Ana Lucia Villela, fundadora e presidente da or-ganizao, o programa estava em seu corao e sonhos h muito tempo. Ele nasceu das suas lembranas de infncia, do seu sonho de que todas as crianas tivessem acesso a um quintal e a ambientes verdes, como ela teve.

    A deciso de investir em um programa que objetiva criar condies favorveis para que as crianas cresam em contato com a natureza foi pautada na percepo de que a criana est cada vez mais empa-redada e institucionalizada, e de que lhe falta tempo e liberdade para interagir com espaos mais amplos e com a natureza.

    Reconhecemos o brincar livre como intrnseco infncia, como lin-guagem essencial por meio da qual a criana descobre e apreende o mundo. Na natureza, a criana brinca atravs da inteligncia de seu corpo e est potente. Ao mesmo tempo, a natureza ninho e refgio para momentos de solitude e introspeco.

    A proposta de empreender um programa que busca resgatar o con-tato com a natureza em uma sociedade to desigual, predominante-mente urbana e com necessidades bsicas to urgentes parece in-coerente para muitos. Para ns, validar a interdependncia entre ser humano e natureza, contribuindo para a construo de outra viso de mundo, pautada pelo respeito a todas as formas de vida. a possibilidade de transformar realidades opressoras, de repensar a cidade, de oferecer alternativas s telas. Envolve apontar caminhos que vo desde fazer pequenas escolhas cotidianas que favoream um contato maior com a natureza no dia a dia, a polticas pblicas que

    Apresentao

    incentivem a criao, o usufruto e o acesso s reas verdes urbanas.

    Em um estudo sobre a relao entre a criana e a natureza no Brasil urbano, realizado pela VOX Pesquisas a pedido do Alana, a escola, em especial a pblica, foi apontada como lugar fundamental para estimular o contato das crianas com a natureza. Ela acaba sendo a esperana de vivncia de aspectos fundamentais da infncia, j pou-co possvel em outro ambientes.

    Aula de teatro em um anfiteatro ao ar livre.

  • 14 15DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    Em 2015, conhecemos a beleza da surpreendente trajetria de oito anos da Educao Infantil de Novo Hamburgo, RS, que em um cami-nho de reflexo e estudo sobre a prtica, percebeu a importncia de desemparedar as crianas e ressignificar o ptio escolar.

    Num mundo onde a educao, sobretudo escolar, continua em gran-de medida pautada pelo paradigma do desenvolvimento cognitivo, essa Rede Municipal de Educao Infantil, composta por 33 escolas e uma equipe de profissionais engajados, trabalhou em parceria com os pais, a comunidade e as crianas na construo de uma proposta alicerada na concepo de uma criana ativa, potente, produtora de cultura, que necessita e tem a possibilidade de viver em contato dirio com a natureza.

    Depois de Novo Hamburgo, conhecemos muitas histrias e relatos de experincias pedaggicas valiosas, no Brasil e em outros pases, no universo das escolas privadas e pblicas, que incluem o brincar livre e o aprendizado com a - e na - natureza como prioridade. Ape-sar de muitas vezes essas escolas serem vistas como lugares privi-legiados por seus espaos, recursos ou equipes, elas mostram ser possvel, mesmo com poucos meios e em condies precrias, ou-sar tirar bebs, crianas e jovens de dentro das salas para o grande mundo que h l fora.

    Embora o foco da publicao sejam os espaos escolares, iremos tambm considerar os espaos externos s escolas, uma vez que se influenciam mutuamente, configurando o territrio vivido de quem os frequenta. A esse conjunto dentro-e-fora chamaremos territrios educativos*. Simultaneamente, escolhemos contextualizar esse mo-

    * Conforme termo cunhado por Ana Beatriz Goulart de Faria em BRASIL. Ministrio da Educao. Secretaria de Educao Bsica. Caderno Territrios Educativos para Educao Integral. Braslia: MEC/SEB, 2012.

    vimento em sua relao com as experincias da educao integral, que compreende o sujeito em todas as suas dimenses e amplia as oportunidades de socializao e desenvolvimento. Tambm fizemos uma reviso das bases legais que subsidiam a presena da natureza nas prticas pedaggicas e no espao escolar.

    E, por fim, inspirados na publicao Construindo um Movimento Nacional por Espaos Escolares Verdes em Todas as Comunidades1, lanada pela Children & Nature Network em 2016, apresentamos al-gumas ideias e pesquisas sobre os benefcios do brincar livre e do aprendizado em ambientes naturais no contexto escolar.

    Nosso desejo de divulgar essas boas notcias e prticas foi a principal motivao desta publicao, cuja inteno sistematizar e descrever alguns caminhos que, em geral, fazem parte do processo de desem-paredamento e ressignificao dos espaos escolares. Apesar de sa-bermos que cada escola ou rede de ensino, a partir de sua realidade, constri a prpria histria, consideramos que esses caminhos so essenciais, j que podem contribuir para formarmos uma rede muito potente de experincias exitosas de ressignificao e requalificao dos espaos escolares e no-escolares, a partir da desregulao de sua natureza emparedada.

    Esse o nosso convite para embarcarmos juntos no movimento mundial que advoga por espaos mais amplos, mais verdes, mais na-turais, e tempo e liberdade para usufru-los na vida escolar de todas as crianas, de todas as idades.

    Las FleuryCoordenadora do programa Criana e Natureza

    APRESENTAO

  • 16 17DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    Espao e tempo para a infnciaA escola como encontro com a natureza para todas as crianas

    O distanciamento atual entre as crianas e a natureza emerge como uma importante crise do nosso tempo. Especialmente no contexto urbano, independente do tamanho da cidade, o mun-do natural tem deixado de ser visto como elemento essencial da infncia. As consequncias so significativas: obesidade, hiperati-vidade, dficit de ateno, desequilbrio emocional, baixa motri-cidade - falta de equilbrio, agilidade e habilidade fsica - e miopia so alguns dos problemas de sade mais evidentes causados por esse contexto. Alm destas, diversas consequncias menos reco-nhecidas tambm fazem parte desse cenrio.

    Panorama da Escola gora de Ensino Fundamental, em Cotia (SP), onde muitas atividades so desenvolvidas ao ar livre.

    MovimentosO jornalista Richard Louv, autor do livro A ltima Criana na Natu-reza2, cunhou o termo transtorno do dficit de natureza para des-crever esse fenmeno que incide nas nossas infncias. No se trata de um termo mdico, mas de uma forma eficaz de chamar a ateno para uma questo emergente. Simultaneamente, nos ltimos anos vi-mos surgir muitas pesquisas que sugerem o que alguns educadores, pais e especialistas atestam h dcadas: o convvio com a natureza na infncia, especialmente por meio do brincar livre, ajuda a fomentar a criatividade, a iniciativa, a autoconfiana, a capacidade de escolha, de tomar decises e de resolver problemas, o que por sua vez con-tribui para o desenvolvimento integral da criana. Isso sem falar nos benefcios mais ligados aos campos da tica e da sensibilidade, como encantamento, empatia, humildade e senso de pertencimento*.

    * Uma ampla reviso bibliogrfica sobre os benefcios do contato com a natureza na infncia pode ser lida em: CHAWLA, L. Benefits of Nature Contact for Children. Journal of Planning Literature, v.30, n.4, p.433-452, 2015. Para mais informaes sobre pesquisas e estudos sobre o tema, sugerimos as bibliotecas online do programa Criana e Natureza do Alana (www.criancaenatureza.org.br/biblioteca/) e da Children & Nature Network (www.childrenandnature.org/research-library/).

  • MOVIMENTOS

    18 19DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    Os sintomas e efeitos dessa desconexo compem um problema sistmico que est levando a profundos impactos em todas as geraes, especialmente crianas e idosos, afetando a qualidade de vida em todos os territrios. Os fatores responsveis por esse cenrio, como sade, planejamento urbano, mobilidade, uso de eletrnicos, desenvolvimento econmico e social, violncia, conservao da natureza e educao, so complexos e esto in-ter-relacionados. Esse cenrio, no entanto, varia de intensidade dependendo da classe social e da realidade especfica de cada um, e seus impactos so mais agudos e presentes nas cidades e bairros densamente habitados e de alta vulnerabilidade so-cial, onde as condies para uma infncia saudvel e plena esto muito ameaadas.

    necessrio refletir sobre o modo de vida e de desenvolvimento que estamos adotando nas cidades, tendo em vista que a urba-nizao um processo crescente no pas e no mundo. No Brasil, a concentrao da populao em cidades cresceu de 75,6% em 19913, para 84,7%, em 20154. Portanto, faz sentido pensar sobre a forma como o mundo atual, sobretudo urbano, est acolhendo as novas geraes. H diversas conquistas e avanos relacionados infncia em nosso pas, como o aumento da escolaridade, a re-duo da mortalidade e o combate explorao do trabalho in-fantil5. Mas no podemos deixar de considerar que os efeitos da urbanizao, entre eles o distanciamento da natureza, a reduo das reas naturais e a falta de segurana e qualidade dos espaos pblicos ao ar livre nos levam - adultos e crianas - a passar a maior parte do tempo em ambientes fechados e isolados, criando um cenrio que cobra um preo muito alto para o desenvolvi-mento saudvel das crianas.

    Atentos a isso, um nmero significativo de especialistas, educa-dores e pais no mundo todo, assim como no Brasil, vm se dedi-

    cando a entender o que est adoecendo e tornando as crianas nervosas, agitadas, infelizes e com dificuldades de aprendizagem e convivncia na escola. Um conjunto consistente de evidncias cientficas, em sua maior parte geradas fora do Brasil, sugere que um dos fatores seja o distanciamento entre as crianas e a na-tureza1,2. Isso porque ambientes ricos em natureza, incluindo as escolas com ptios e reas verdes, as praas e parques e os espa-os livres e abertos para o brincar, ajudam na promoo da sade fsica e mental e no desenvolvimento de habilidades cognitivas, sociais, motoras e emocionais.

    A escola como lugar de encontro com o outro e de reconhecer-se.

  • MOVIMENTOS

    20 21DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    Os sinais dados pelas crianas em sua relao com ambientes na-turais demonstram a capacidade que esses espaos tm de acolher tanto sua pulso expansiva, de movimento ou interao, quanto sua necessidade de introspeco e solido, e apontam para a ne-cessidade de mudanas em diversos campos como sade, famlia, educao e urbanismo.

    Acreditamos que uma das peas desse complexo panorama que precisa mudar so os espaos educativos escolares e urbanos e a forma como a criana e todos ns os habitamos. Assim, nos reuni-mos a um movimento mundial que procura dar luz importncia da naturalizao dos espaos escolares e ressignificao do seu uso.

    Segundo a arquiteta Mayumi Souza Lima,a escola o nico espao que as cidades oferecem universalmente como possibilidade de re-conquista dos espaos pblicos e populares domnio das ativida-des ldicas que as crianas e jovens perderam na cidade capita-lista e industrial 6. Para muitas famlias com dificuldade de prover o que consideram essencial, a escola torna-se uma aliada, sendo o nico lugar onde, bem ou mal, as crianas tero experincias tpicas da infncia. Em muitos casos, elas passam dez horas por dia no ambiente escolar.

    Algumas pesquisas7,32,33,40 nos do pistas de que as crianas tm pouco contato com a natureza nesses espaos. A razo mais apa-rente o fato de parte das escolas no possuir ambientes naturais ou espaos que potencializem o brincar e o aprender ao ar livre. De fato, notvel que em alguns casos os ptios escolares sofrem com a supresso dos seus espaos, seja por serem considerados de pouca importncia em termos pedaggicos, ou pelo aumento da demanda por vagas e outras infraestruturas. Porm, uma anlise mais profunda do processo educacional aponta a necessidade de refletirmos e requalificarmos tambm as prticas, a organizao,

    as rotinas e o tempo escolar, reconhecendo no valor do brincar e do aprender com a - e na - natureza um dos elementos centrais de uma educao vinculada com a prpria vida.

    O Grupo Ambiente-Educao (GAE), ligado ao Programa de Ps--Graduao em Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urba-nismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROARQ/FAU/UFRJ), defende a ideia de que os ptios escolares sejam pensados como elementos do sistema de espaos livres das cidades8. Enten-de-se que espaos livres urbanos so os vazios urbanos ou as reas livres de edificaes: quintais, jardins privados ou pblicos, praas, parques, ruas, avenidas, rios, florestas, mangues, praias ou sim-plesmente vazios urbanos9.

    A complexidade e a diversidade de funes e categorias do sistema de espaos livres urbanos justificam o interesse em entender o papel e a importncia dos ptios escolares como ambientes de lazer e socializa-o - absorvendo funes antes atribudas s praas de vizinhana - e como protagonistas o processo educativo - o que implica reconhecer a influncia do entorno e de suas caractersticas socioespaciais 10.

    E, assim, os ptios escolares vm resistindo como lugares de so-cializao, de troca, de convvio, bem como de experimentao e explorao, sendo redutos da circulao de saberes, hbitos, cos-tumes, rituais e brincadeiras que fazem parte da cultura da infn-cia e que tm sido transmitidas entre pares por geraes. Se para os educadores o lcus central do processo educativo a sala de aula, para os estudantes o ptio. Pois l que eles praticam e atualizam o motivo principal que os faz estarem ali, na escola: o encontro com o outro, com os outros 10.

    Brincar na areia, participar de piqueniques sombra das rvores, pendurar-se nelas, encantar-se com o canto dos pssaros ou com

  • MOVIMENTOS

    22 23DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    a beleza das flores, tomar banho de chuva, cultivar uma horta, criar uma escultura a partir de um galho e descobrir como a vida se desenvolve so experincias importantes que colocam a crian-a frente beleza e ao mistrio da vida. Simultaneamente, a quali-dade sistmica da natureza oferece criana a noo de comple-xidade e interdependncia, valores fundamentais para pensar sua ao no mundo e as prprias relaes sociais, incluindo reflexes sobre o paradigma antropocntrico. Portanto, se esses momen-tos no tiverem lugar na escola ou em outros territrios educati-vos, talvez no aconteam na vida de grande parte das crianas, empobrecendo o repertrio de experincias que elas podem (e devem) vivenciar. Experincias estas que permitem criana se misturar ao mundo construindo aprendizagens significativas e subjetividades.

    Temos um pas de dimenses continentais, com uma riqussima e generosa diversidade ambiental e climtica, bem como tradies culturais e heranas ancestrais ancoradas na natureza. Temos ins-piraes e uma histria rica em experincias pioneiras de apro-ximao entre a educao e a natureza, como foram os parques infantis estruturados pelo Departamento de Cultura da cidade de So Paulo na dcada de 1930, sob a direo de Mrio de Andrade, implementados em diferentes bairros operrios como forma de complementar a educao pblica infantil no contraturno escolar11. Ou, ainda, a Escola de Aplicao ao Ar Livre Dom Pedro II, a qual se estabeleceu como instituio de ensino experimental localizada no interior de um parque pblico (atual Parque da gua Branca, em So Paulo) e que tinha como objetos centrais de sua pedago-gia a educao fsica e a natureza12. E, finalmente, h a experincia pioneira e inspiradora da Escola Parque em Salvador, ou do Centro Educacional Carneiro Ribeiro que, dentre as muitas realizaes de Ansio Teixeira, foi a que alcanou maior repercusso no Brasil e em diversos pases.

    Essas experincias do passado e tantas outras que esto aconte-cendo agora, algumas das quais apresentadas no Captulo 4, Ins-piraes, e muitas outras sistematizadas na plataforma A Criana e o Espao13, nos mostram que com criatividade, coragem, polticas pblicas que incentivem e regulamentem inovaes e a participa-o de todos, poderemos superar as dificuldades e desempare-dar as infncias, conforme nos inspira Lea Tiriba14: fundamental investir no propsito de desemparedar e conquistar os espaos que esto para alm dos muros escolares, pois no apenas as salas de aula, mas todos os lugares so propcios s aprendizagens: terreiros, jardins, plantaes, criaes, riachos, praias, dunas, descampados; tudo que est no entorno, o bairro, a cidade, seus acidentes geogr-ficos, pontos histricos e pitorescos, as montanhas, o mar... Alm de se constiturem como espaos de brincar livremente e relaxar, esses lugares podem tambm ser explorados como ambiente de ouvir his-trias, desenhar e pintar, espaos de aprendizagem em que se traba-lha uma diversidade de conhecimentos.

    O programa Criana e Natureza produziu diversos vdeos que so timos recursos complementares a essa publicao, incluindo Verdejando o Aprender (disponvel em: http://bit.ly/2GU3fGA) e a entrevista de Lea Tiriba sobre desemparedar as crianas na escola (disponvel em: http://bit.ly/2GSRSPf).

  • MOVIMENTOS

    24 25DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    Quem jogou as laranjas no cho?

    Na EMEI A Bela Adormecida, em Novo Hamburgo, onde o espa-o para as crianas viverem a natureza era bastante reduzido, as professoras buscaram e encontraram uma forma de amenizar essa situao: fizeram uma parceria com a igreja vizinha, que dis-pe de um lindo gramado rodeado de laranjeiras e bergamoteiras. Passaram ento a frequentar esse espao para fazer piqueniques, para ler e ouvir histrias e, como uma escola principalmente de crianas ainda bem pequenas, para brincar ao ar livre vivendo e sendo natureza.

    Escola tambm lugar de comer fruta do p.

    O incio das visitas coincidiu com o perodo final do ciclo das frutas e, como elas no haviam sido colhidas, havia muitas laranjas cadas pelo cho. Cadas de maduras, como di-zemos popularmente. As crianas ficaram inconformadas, quase re-voltadas, questionando:

    Por que as laranjas esto no cho? Quem fez isso?

    Para ns, adultos, especialmente aqueles que tiveram uma infncia marcada pelas brincadeiras de subir em rvore e comer a fruta do p, a resposta bvia: As laranjas caram porque esto maduras demais.

    Entretanto, para alm da ingenuidade engraada, se olharmos essa cena com um pouco mais de profundidade, perceberemos a denncia das prprias crianas sobre quanto perderam: perderam a oportunidade de conhecer o doce/azedo das laranjas, de arra-nhar a pele ao colh-las, e de sentir o doce perfume das flores se tivessem chegado mais cedo. Perderam as flores se transforman-do em frutos, os frutos crescendo e amadurecendo. Perderam a experincia, em seu paladar, do melhor momento para colher as laranjas. Perderam a oportunidade de partilhar com os familiares e amigos o excesso da colheita. Perderam o direito interao com a natureza, empobrecendo a experincia do ser humano na rela-o e mistura com o mundo, nesse belo processo de construo de si mesmos.

  • MOVIMENTOS

    26 27DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    Uma rede de experincias de naturalizao dos espaos escolares: Aliana Internacional de Espaos Escolares (International School Grounds Alliance - ISGA)*

    A ISGA uma organizao que articula uma rede de instituies ao redor do mundo que propem melhorias para o aprendiza-do e para as experincias das crianas, por meio de mudanas na forma como os espaos escolares so desenhados e usados. Se-gundo essa concepo, o bem-estar das crianas e a diversidade - ecolgica e fsica - dos espaos escolares esto intrinsecamen-te relacionados ao aprendizado.

    Os princpios que norteiam a ressignificao e o redesenho dos espaos escolares so:

    Nutrir o desenvolvimento e o bem-estar dos estudantes em suas dimenses fsica, social e emocional

    Proporcionar oportunidades significativas para o aprendizado pela prtica

    Refletir e abarcar a ecologia local, social e o contexto cultural Assumir o risco como componente essencial do aprendizado

    e do desenvolvimento da criana Conceber espaos escolares pblicos e abertos, acessveis

    para suas comunidades

    * O programa Criana e Natureza faz parte do Conselho de Liderana da ISGA.

    A maior parte das experincias articuladas por essa aliana composta por iniciativas que investiram na retirada da pavimen-tao dos ptios escolares, no desnivelamento do relevo dos terrenos, criando desafios para o desenvolvimento fsico das crianas, e no paisagismo que proporciona conforto, bem-estar e recantos mais privados.

    Assim, a ISGA prope que o espao escolar contenha elementos naturais que favoream o aprendizado por meio de experincias prticas, do livre brincar, do descanso e da contemplao, do en-contro e da liberdade.

    Chegar adiante, ir alm do movimento j dominado, descobrir-se forte e capaz.

    O vdeo A natureza como espao de acolhimento (disponvel em: http://bit.ly/2IumWCn) mostra depoimentos de especialistas ligados ISGA e exprime alguns dos seus valores e ideias.

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    28 29DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    Educao integral, territrios educativos e bem-estar da comunidadeConectando espaos e ampliando o acesso natureza

    O que afinal o espao escolar? O que ele nos conta sobre a concepo de educao adotada por cada escola? Como po-demos relacionar os espaos de aprender com a educao integral dos alunos? Qual o dilogo possvel entre a escola e a cidade? E entre as escolas e as reas verdes das cidades?

    Estrutura simples de ser implantada que traz mudanas no relevo do ptio escolar, proporcionando desafio, diversidade de movimentos e tambm um cantinho privativo. Construda com a participao das famlias.

    A arquitetura dos espaos escolares reflete muito a concepo de conhecimento, de aprendizagem e de sociedade que em-basa o projeto poltico-pedaggico de cada instituio. Ainda hoje, grande parte das escolas considera a sala de aula como o lugar de aprender, a via cognitiva como a forma privilegiada para a constru-o de conhecimento e o ptio escolar como exclusivo recreao ou como ambiente de transio, e no como um espao educativo e de interao. Alguns tericos, como Michel Foucault, identificam grandes semelhanas entre os espaos escolares e os espaos dos presdios, hospcios e hospitais, nos quais as estruturas e o funcio-namento so marcados por formas de controle e punio15. Alm disso, a escola, historicamente, bastante associada preparao de crianas e jovens para o mercado de trabalho, para o negcio ou negar o cio e para a aceitao e adequao ao status quo.

    Segundo a arquiteta Beatriz Goulart os espaos de nossas escolas tm sua histria ligada histria da educao brasileira [...escola tradicional, escola nova, escola tecnicista, escola crtica...]. Para cada momento histrico, a respectiva tendncia educacional e os respec-tivos modelos arquitetnicos. O fato que, por mais que as formas desses edifcios tenham mudado, seus respectivos programa, organo-grama e fluxograma seguem praticamente os mesmos h quase 200 anos: a centralidade da ao educativa focada na sala de aula e na figura do adulto-professor 16. Prevalece a ideia de que s se aprende com o corpo parado. De que movimento, expanso e aprendizado no combinam, o que gera um conjunto de rotinas que tm como objetivo disciplinar o corpo para o exerccio intelectual. Uma sobe-rania do referencial cognitivo em detrimento da experincia como construtora de conhecimento.

    Para pensarmos no desenvolvimento integral das crianas, em suas mltiplas potencialidades social, emocional, intelectual e espiri-tual -, necessrio superarmos essa concepo de educao esco-

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    30 31DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    lar apartada da educao formal e informal, como se a criana-aluna no fosse a que tambm a criana-filha ou a criana-cidad. Nessa perspectiva, outros saberes e dimenses, tais como a arte, a tica, a cidadania, a sensibilidade e a natureza, tornam-se to importantes quanto o conhecimento cientfico. A educao integral aqui enten-dida de maneira mais ampla do que o regime de horrio oferecido pelas escolas ou da composio de atividades em turno e contratur-no. A ideia de educao integral tem por base favorecer o desenvol-vimento integral do estudante, por meio da diversificao de ativida-des oferecidas nos tempos e espaos escolares e no-escolares.

    Goulart prope que, a essncia dessa proposta parte do princpio que, para garantir uma educao bsica de qualidade, preciso consi-derar que a concretude do processo educativo compreende fundamen-talmente a relao de aprendizagem das crianas e dos adolescentes com sua vida e com a vida da comunidade. Para dar conta dessa qua-lidade, necessrio que o conjunto de conhecimentos sistematizados e organizados no currculo escolar tambm inclua prticas, habilidades, costumes, crenas e valores que esto na base da vida cotidiana e que, articulados ao saber acadmico, constituem o currculo necessrio vida em sociedade. A educao integral precisa da escola, mas tambm de seu entorno, da comunidade, do bairro, de toda cidade 16.

    Como nos inspira um provrbio africano, para educar uma crian-a preciso toda uma aldeia. Todos os espaos, tempos, pes-soas e oportunidades da aldeia. Mas, para isso, a escola tambm precisa se reorganizar em seus tempos, espaos e relaes. Para que uma escola se proponha a desenvolver a educao integral, necessrio que ela repense os espaos educativos disponveis aos estudantes, seja ela uma escola de educao infantil, ensino fundamental ou mdio. preciso levar os espaos escolares para alm das salas de aula e potencializar um uso pelos estudantes que transcenda as tradicionais funcionalidades da instituio es-

    colar. Faz-se tambm necessrio ampliar a concepo de que o aprendizado s ocorre dentro dos espaos escolares, especial-mente as salas de aula, e valorizar todo e qualquer espao da es-cola, interno ou ao ar livre, assim como os espaos extramuros. Tudo potencialmente territrio educativo e, portanto, sujeito a acolher a intencionalidade pedaggica.

    Os territrios educativos so, portanto, constitudos por comunida-des de aprendizagem formadas por atores que esto dentro e fora da escola. O conceito de comunidade de aprendizagem pressupe um dilogo intersetorial em torno de um projeto educativo e cultural prprio para educar a si (a comunidade de aprendizagem), suas crian-as, seus jovens e adultos, graas a um esforo endgeno, cooperativo e solidrio, baseado em um diagnstico no apenas de suas carncias mas, sobretudo, de suas foras para superar essas carncias 17. Signifi-ca potencializar agentes educativos enquanto instituies formado-ras, incluindo na escola as prticas comunitrias, bem como articular os saberes acadmicos com os espaos de educao no formal.

    Na comunidade de aprendizagem, o territrio urbano passa a ser potencialmente educativo. Nesse sentido, a cidade compreendi-da como territrio vivo, permanentemente concebido, reconcebi-do e produzido pelos sujeitos que a habitam. Trata-se de associar a escola ao conceito de cidade educadora, pois a cidade, no seu conjunto, oferecer intencionalmente s novas geraes experin-cias contnuas e significativas em todas as esferas e temas da vida16.

    Consequentemente, o conceito de educao integral aliado ao de territrio educativo faz com que a prpria cidade tenha que se repensar, adaptando os espaos pblicos para melhorar a mo-bilidade ativa de crianas e adolescentes, constituindo-se como uma cidade mais amigvel infncia. Quando as crianas e ado-lescentes tentam sair dos muros da escola e usufruir os espaos

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    32 33DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    da cidade, percebemos o quanto isso dificultado pelo fato de as estruturas urbanas serem pensadas para os adultos e para o flu-xo de veculos, do trabalho e do consumo, impondo desafios para que se possa experimentar a cidade como local de convivncia e de uso democrtico. Vale lembrar que o poeta Mrio de Andra-de, nos idos de 1935, props que as crianas fossem parmetro de urbanidade. Para ele, a infncia no seria completa sem o seu entorno, e o crescimento da criana e da cidade deveriam ser equivalentes e estar harmonizados18.

    Experincias de polticas pblicas no Brasil como o Bairro Escola, na Rede Municipal de Nova Iguau (RJ), e a Escola Integrada de Belo Ho-rizonte (MG), so exemplos de como possvel fazer uma articulao intersetorial para aumentar a diversidade de oferta de atividades aos alunos. Esses projetos de educao integral levantaram os espaos ociosos, em seus territrios, que pudessem inicialmente ser usados em oficinas no contraturno (por exemplo igrejas, praas, clubes), bem como aproximaram-se da comunidade prxima s escolas para a identificao de saberes locais que foram valorizados e oferecidos em prticas educacionais. Inspirado por essas experincias, surge em 2007 o Programa Mais Educao do Ministrio de Educao, sis-tematizando uma poltica nacional de educao integral que chegou a ser implantada em 60 mil escolas pblicas em todo o Brasil*.

    Assim, nesse contexto, os parques e as praas tambm so ter-ritrios educativos, bem como os espaos escolares podem ser considerados um incremento do sistema de reas verdes das ci-dades. Nos Estados Unidos, os distritos escolares (equivalentes s delegacias de ensino no Brasil) esto entre os maiores proprietrios de terras do pas19. No Brasil no h dados sistematizados sobre essa

    * Para saber mais, visite o site do Centro de Referncias em Educao Integral.

    relao, mas possvel inferir que as escolas representam uma par-cela significativa das reas pblicas em uma cidade. Afinal, a maioria das comunidades tem uma escola. E toda escola tem algum tipo de ptio. Muitos so cobertos de concreto e fechados para a populao. Poucos so usufrudos em sua plenitude pelos estudantes. Esses es-paos representam uma incrvel perda de oportunidades para todas as crianas, especialmente aquelas de comunidades vulnerveis.

    Ento faz sentido perguntar:

    O que pode acontecer quando o espao escolar quebra o cimento e ganha terra, areia e rvores? Teramos uma rede de espaos livres dentro da cidade se tornando mais naturais, mais verdes, impac-tando positivamente toda a comunidade.

    Num mundo onde, at 2030, 60% da populao viver em cida-des20, cada metro quadrado de rea verde conta, j que as reser-vas que temos so raras, preciosas e muitas vezes inacessveis para

    Alunos da EMEI Dona Leopoldina, em So Paulo, percorreram a p o trajeto entre a escola e a feira do bairro, explorando as ruas da vizinhana e esse local de venda de alimentos in natura.

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    34 35DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    grande parte das pessoas. A cidade de So Paulo tem 2,6 m de rea verde por habitante. A Organizao das Naes Unidas (ONU) recomenda 12 m de rea verde por habitante21. Imagine o impac-to nesse nmero se pudssemos contabilizar os espaos escolares como reas verdes!

    E o que pode acontecer quando uma escola se associa a uma igreja, praa ou parque, e passa a levar as crianas diariamente para brinca-rem e aprenderem por l? A experincia e o senso comum, bem como teorias e pesquisas22,23, mostram que, medida em que esses terri-trios so ocupados, a violncia e a depredao declinam. E espaos pblicos naturais trazem vrios benefcios relacionados sade a ao bem-estar para toda a comunidade: as pessoas andam mais e com isso tornam-se mais ativas, reduzindo a incidncia de obesidade24; a con-vivncia social aumenta, bem como o sentimento de pertencimento25; e, mais, alguns estudos comprovam que pessoas que habitam lugares arborizados tm menos queixas de sade e mais bem-estar mental do que pessoas que moram em locais no arborizados26.

    Para a maioria das crianas vivendo em grandes centros urbanos, h poucas reas verdes disponveis e a segurana uma barreira real para exploraes, vivncias e brincadeiras em ambientes pblicos ao ar livre. Essas crianas e suas famlias vivem em bairros onde quase tudo ao redor est pavimentado e ocupado por construes ou trfego. Nessas comunidades, ns precisamos fazer mais do que conservar a frao de natureza que restou. Ns temos que criar mais. Os espaos escolares so um bom lugar para comear.

    Bases legais no BrasilO que est previsto e como pode orientar mudanas

    O artigo 227 da Constituio Federal assegura com absoluta prioridade o direito vida, sade, alimentao, educao e ao lazer, entre outras condies que oferecem dignidade, respei-to e protegem a infncia de toda forma de negligncia, explorao e maus tratos. A lei ainda salienta que a garantia desses direitos dever de diversos setores da sociedade, da famlia e do Estado, conforme defende o programa Prioridade Absoluta do Alana.

    Acreditamos que as crianas tm o direito de experimentar, aprender, brincar, explorar, se esconder e se encantar com a - e na - natureza, e que os esforos para que isso de fato acon-tea devem ser de responsabilidade dos diferentes setores da nossa sociedade, incluindo as escolas. Para assegurar que as crianas usufruam desse direito durante o tempo que passam na escola, o primeiro passo entender o que a legislao no Brasil garante, de forma a embasar as mudanas que sonhamos.

    No mbito da educao infantil, o reconhecimento da necessi-dade de movimento e experincias sensoriais diversas trouxe a reflexo sobre a arquitetura dos espaos escolares. O reconhe-cimento da necessidade das crianas de tomar sol, estar ao ar livre, desenvolver-se fisicamente, expandir-se em movimento, bem como outros aspectos emocionais e sociais, fez com que os espaos externos ultrapassassem o aspecto do paisagismo e tambm fossem considerados importantes para o uso e a circu-lao de crianas em escolas de educao infantil.

    Entretanto, notvel e preocupante ao mesmo tempo que essa dis-cusso no Brasil no tenha se estendido com a mesma qualidade

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    36 37DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    O que a lei assegura?

    As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil deixam claro que o espao para a educao infantil deve propiciar os deslocamentos e movimentos amplos das crianas nos es-paos internos e externos s salas de referncias das turmas e instituio27. Nesse sentido, os ptios escolares tm o papel fundamental de propiciar possibilidades de movimento e tambm de aprendizado.

    No documento Critrios para um Atendimento em Creches que Respeite os Direitos Fundamentais das Crianas28, a garantia da natureza no espao escolar expressa como um direito - nos-sas crianas tm direito ao contato com a natureza - e detalhada em elementos e experincias como gua, areia, canteiros, pas-seios em parques, estar ao ar livre.

    As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Am-biental29 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Edu-cao Infantil apontam que, alm dos espaos da escola, o trabalho educativo deve levar em considerao o contexto e o entorno em que a escola est inserida como ambiente de apren-dizado: os biomas e territrios em que se situam e a diversidade sociocultural dos estudantes.

    Outro documento tambm serve como referncia para a concep-o dos espaos escolares, os Parmetros Bsicos de Infraes-trutura para Instituies de Educao Infantil. Ele destaca que os espaos na educao infantil devem ser variados de forma a fa-vorecer diferentes tipos de interao e que o professor tem papel importante como organizador dos espaos onde ocorre o proces-

    so educacional. Tal trabalho baseia-se na escuta, no dilogo e na observao das necessidades e dos interesses expressos pelas crianas, transformando-se em objetivos pedaggicos30. Este do-cumento recomenda que o espao deve ser promotor de aventu-ras, descobertas, criatividade, desafios e aprendizagem, e tambm favorecer a interao criana-criana, criana-adulto e criana-am-biente. Deve se constituir como espao ldico, dinmico, vivo, brin-cvel, explorvel, transformvel e acessvel para todos30.

    O Instituto Brasileiro de Administrao Municipal recomenda que a rea construda corresponda a 1/3 da rea total do terre-no da escola e no ultrapasse 1/231. Essa uma tima referncia para que as escolas de educao bsica sejam pensadas incluin-do os espaos ao ar livre como parte do seu projeto poltico-peda-ggico e arquitetnico. E quanto maior for a presena da natureza, mais benefcios haver para as crianas.

    Tanto os Parmetros Bsicos para Infraestrutura quanto as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educao Infantil des-tacam que os espaos escolares e as propostas pedaggicas devem adaptar-se s condies geogrficas, climticas, econmi-cas e socioculturais de cada contexto. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Ambiental orientam que as propos-tas pedaggicas devem considerar o respeito idade e especi-ficidade das fases em que a criana se encontra. Compreendendo que respeitar as especificidades da infncia significa respeitar a necessidade de brincar e conhecer o mundo atravs de todos os sentidos, faz-se fundamental desemparedar as crianas para os espaos externos sala de aula e escola, a fim de favorecer que a interao com o ambiente seja mais diversificada e, portanto, mais rica em termos de aprendizado e desenvolvimento.

  • 38DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    aos nveis dos ensinos fundamental e mdio. O levantamento da documentao oficial, que oferece parmetros para a infraestru-tura e o uso dos espaos escolares, muito restrito educao in-fantil, como atesta o box a seguir, mesmo depois da implantao do ensino fundamental de nove anos em 2001. Nossa anlise permite apontar que h muito a avanar no sentido de assegurar s crian-as maiores e aos jovens seu direito de aprender, explorar, brincar e encontrar-se com a - e na - natureza no ambiente escolar.

    Maria Leonor de Toledo nos alerta e provoca ao mesmo tempo: os documentos por si s no geram mudanas. Eles expressam polticas e ajudam a materializ-las, mas no mudam a prtica. O que , en-to, preciso fazer para mudar essa situao? Como fazer com que a realidade das escolas se aproxime do que est escrito nos documen-tos? Essa pesquisadora conclui que necessrio agir em diferen-tes eixos, articulados entre si, que deem conta da multiplicidade de fatores envolvidos na questo 32.

    Em nossos estudos sobre diversos casos onde essas mudanas es-to acontecendo na prtica, identificamos alguns desses fatores, cujo detalhamento procuramos descrever no prximo captulo.

    Todas as crianas, grandes e pequenas, tm o direito de viver experincias de contato direto com os elementos da natureza no ambiente escolar.

  • 40 41DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    Escuta das crianasAs crianas expressam onde e como desejam brincar e aprender. Vamos ouv-las?

    Em seu estudo fundamental, no qual tenta entender as relaes entre o visvel estado de desequilbrio ambiental e o aprisio-namento das crianas nas instituies de cuidado e escolarizao, Lea Tiriba faz a seguinte provocao: o que seria possvel em ter-mos de inovao pedaggica se os adultos se permitissem acompa-nhar as crianas, seguir a trilha dos desejos delas 33?

    Segundo Tiriba, as crianas tm verdadeiro fascnio pelos espaos externos porque eles so o lugar da liberdade 33, onde as vivncias tm fruio, onde o adulto no controla seus corpos e o desenvol-vimento integral a prioridade, e no apenas o desenvolvimento das capacidades intelectuais.

    fundamental ouvir as crianas por meio de suas diversas lin-guagens, afinal so elas que vo de fato habitar o espao escolar. Perguntar e sobretudo observar onde, como, quando, com quem e com que materiais elas brincam levar a muitas pistas de como o espao pode ser melhor aproveitado. As crianas podem (e de-sejam!) contribuir com a transformao ou desenho dos espaos

    Caminhos para o desemparedamento e para a implementao de ptios escolares naturalizados

    escolares. Para isso, precisamos reconhecer e escutar suas outras formas de expresso que vo muito alm da palavra, como os ges-tos, os grafismos, o brincar e tambm as narrativas orais e escritas. Trabalhos como os do programa Territrio do Brincar, do Alana; do pesquisador Gandhy Piorski34; do Mapa da Infncia Brasileira (MIB); do Projeto Infncias; e do Criacidade so alguns exemplos que podem servir de inspirao de como observar, registrar e dar voz aos dizeres das crianas e inclu-las no processo de mudana do espao e das rotinas. Essa postura exige acreditar que a criana sabe o que bom para si e que tambm competente e tem su-ficiente intimidade consigo mesma para ser protagonista do seu prprio processo de aprendizagem. E, claro, necessrio que o adulto tenha uma concepo de conhecimento e de aprendizagem que supe um encontro de aprendizes, educador e criana juntos, na grande aventura de viver35.

    E o que elas dizem?

    A pista de triciclos da EMEI Dona Leopoldina em So Paulo foi um pedido das crianas.

  • 43DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    CAMINHOS PARA O DESEMPAREDAMENTO

    42DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    Nas pesquisas sobre como os alunos se sentem depois que suas escolas so reformadas, desenvolvidas pelo Grupo Ambiente-E-ducao (PROARQ/FAU/UFRJ), os pesquisadores notaram que as crianas de uma creche subiam nas cadeiras perto das janelas para olhar o mundo l fora e desenhavam com muito mais fre-quncia as esquadrias dessas janelas do que os espaos externos, dando pistas aos adultos sobre sua sensao de enclausuramento dentro das salas36.

    J um estudo sobre as infncias tupinambs37 mostra que, para as crianas indgenas, o mundo natural e o mundo humano so parte de um s universo, e que os seres humanos no so to separados dos demais seres vivos como as culturas ocidentais acreditam. Nas palavras das crianas, quando perguntadas sobre para que a natureza serve, muito bonito ver como h uma preocupao com seu prprio ser, uma condio da biofilia promovida pelo contato muito prximo e ntimo com o mundo natural. O papel que a escola tem no processo educacional das crianas tupinam-bs no representa uma ruptura entre o conhecimento formal e o conhecimento indgena, mas sim uma continuidade no desen-volvimento de seu senso de pertencimento natureza e a toda a comunidade de seres vivos.

    Devemos ouvir o que as crianas tm a dizer sobre os espaos es-colares e procurar incorporar seus desejos e suas percepes, qua-lificando-os e tornando-os melhores para elas e para os demais membros da comunidade escolar. Nesse caminho, os ptios e toda a escola podem ser espaos de alegria, que instigam a descoberta e a experimentao e propiciam a construo de conhecimentos e o desenvolvimento humano.

    Ao chegar na EMEI Dona Leopoldina, em 2012, encontrei uma escola sem projeto poltico-pedaggico definido, com espaos abandonados: brinquedos quebrados, tanques de areia vazios, sem ambientes organizados para as crianas, com uma rotina centrada no adulto e pautada apenas no cuidar e em atividades entre quatro paredes. A primeira ao da equipe gestora foi ouvir as crianas e a comunidade escolar sobre a escola que queriam, os sonhos que tinham. A partir das falas de todos, construmos nosso projeto poltico-pedaggico. E criamos o Conselho Mirim para dar fora voz das crianas, pois a tica da criana muito diferente da tica do adulto. Assim, as crianas passaram a ter poder de deciso igualmente aos adultos nas discusses do fazer cotidiano. Passaram a exercer protagonismo e autoria. Suas ideias e necessidades foram transformadas em realidade: andar descalo, subir em rvores, mexer com terra, mesinhas pra brincar de fazer bolinho perto do tanque de areia, uma quadra de futebol menor, pista para triciclos e at uma casa na rvore que foi desenhada pelas crianas foi implantada com ajuda da comunidade. Marcia Covelo HarmbachDiretora da EMEI Dona Leopoldina, So Paulo (SP)

  • 44 45DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    CAMINHOS PARA O DESEMPAREDAMENTO

    Formao dos educadores preciso relembrar e permitir espaos e tempos de encantamento

    Quando falamos em formao de professores, corremos o risco de sugerir o uso de receitas ou privilegiar modismos. Sabemos que no h uma soluo que contemple toda a com-plexidade que envolve os processos de formao de educadores. Entretanto, desejamos chamar a ateno para alguns aspectos que tratam da transformao do olhar do educador para os espa-os escolares, uma sensibilizao para a potncia das experin-cias de vida, portanto educacionais, que acontecem nos ptios e em outros territrios educativos naturais. Acreditamos que h muito a ser feito no sentido de reconhecer esses espaos como lugares que favorecem diversos aprendizados e compreender o papel dos educadores no processo de desemparedamento de crianas, adolescentes e jovens.

    Consideramos que, independentemente dos caminhos da formao, fundamental que os educadores tomem contato com sua memria de infncia e com as relaes que construram com a natureza nesse perodo. possvel que, a partir dessas lembranas repletas de sig-nificados e vivncias, os educadores constatem que muitas delas so impraticveis nos dias atuais. Pode surgir ento a vontade de com-partilhar com as crianas com quem convivem e trabalham um pou-co do que viveram. Ento, os ptios escolares surgem como espaos privilegiados para fazer da escola um lugar de viver a infncia.

    Alm disso, as experincias vivenciadas na infncia costumam in-fluenciar fortemente a postura que assumimos em relao s ex-perincias das crianas no ptio e nos demais espaos escolares. Tomemos como exemplo nossas memrias em relao s brinca-

    deiras que envolviam algum tipo de risco, como subir em rvores ou fazer uma fogueira. Se conseguimos acessar como esses mo-mentos foram importantes, divertidos e ricos para ns, talvez pos-samos vencer o medo e permitir que as crianas sob nossos cuida-dos tambm vivenciem experincias parecidas.

    Saber avaliar riscos fundamental, e a infncia um tempo precioso para esse aprendizado. A escola precisa reconhecer seu papel nesse processo.

  • 47DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    CAMINHOS PARA O DESEMPAREDAMENTO

    46DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    O risco no brincar e no aprendizado

    As crianas so capazes e competentes e se beneficiam imen-samente de oportunidades de exercer sua pulso de explorar, ir alm, buscando novos desafios que desejam vencer. Nesse pro-cesso, desenvolvem e aprimoram suas habilidades em lidar com riscos e com o imprevisvel. De fato, exatamente isso que as manter seguras ao longo da vida: chances de se tornar mais com-petentes, de aprender a avaliar quais riscos querem ou no correr.

    Um dos significados da busca pelo risco dar espao tanto para o sucesso quanto para o fracasso. Nesse processo, as crianas vivenciam acidentes de pequena consequncia para, com eles, aprender a evitar os grandes acidentes no futuro. Isso no quer dizer que as crianas devem ser expostas a perigos cujas conse-quncias comprometam sua integridade, como produtos qumi-cos, balanos quebrados ou brincar onde os carros passam. Edu-cadores e pais devem permitir os riscos benficos, nos quais as crianas se engajam por livre escolha e conseguem dimensionar as consequncias e lidar com elas.

    H um amplo movimento mundial que defende a importncia do risco no brincar e no aprendizado. Em setembro de 2017, a Aliana Internacional de Espaos Escolares (International School Grounds Alliance ISGA) divulgou uma declarao, endossada por 38 or-ganizaes de 16 pases e 6 continentes, na qual defende que oportunidades de correr riscos so um componente essencial de espaos escolares voltados para o desenvolvimento integral da criana. Adultos e instituies tm a responsabilidade de usar o bom senso ao proporcionar e permitir s crianas e jovens ativida-des que envolvam assumir riscos38.

    Assim como o desemparedamento das crianas essencial, o de-semparedamento dos educadores em formao uma necessi-dade e uma consequncia. As atividades de sensibilizao e de experimentao podem e devem ganhar espao crescente nos processos de formao. Afinal, se o lugar de aprender e viver o lado de fora, isso tambm se aplica s formaes de professores, que podem ser realizadas num piquenique, nos espaos da escola ou em parques da cidade.

    E, finalmente, destacamos a importncia de valorizar a dimenso ldica, de mobilizar e desenvolver o talento brincante dos edu-cadores, para que eles possam garantir o direito ao brinquedo e brincadeira. Esse um dos papis dos cursos de formao inicial e continuada de professores39.

    preciso que, em cada encontro, uma brincadeira, uma msica, uma memria de criana, a explorao de materiais diversos, na-turais e no naturais, ajudem a manter essa dimenso acesa no corpo e no corao de cada professor. Como conclui a pesquisa-dora Maria Leonor de Toledo, h que se incluir o afeto. Encantar os educadores pela natureza tal qual as crianas, e ajud-los a acreditar que um mundo mais justo e sustentvel possvel 40.

    Para mais informaes sobre o risco no brincar e no desenvolvimento das crianas, assista entrevista A criana que se sente capaz (disponvel em: http://bit.ly/2En6OA8), com o instrutor de educao ao ar livre Fabio Raimo e ao vdeo Quando o risco vale a pena (disponvel em: http://bit.ly/2HaQTIa).

  • 48 49DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    CAMINHOS PARA O DESEMPAREDAMENTO

    O encontro da educao ambiental com o brincar

    Na educao infantil de Novo Hamburgo, o desemparedamento foi um processo construdo ao longo das formaes de edu-cadores que nasceu do encontro de duas frentes principais: o es-tudo do tema brincar e a implantao de uma proposta de educa-o ambiental e sustentabilidade.

    A equipe percebeu que era necessrio pensar uma forma concreta de envolver as crianas na proposta de educao ambiental, uma vez que conceitos como reciclagem, conservao e at mesmo natureza eram muito abstratos para elas. Ento, uma pea funda-

    A escola lugar de viver experincias muito importantes da infncia. Os educadores precisam estar sensveis a elas.

    mental nesse caminho foi prestar ateno s cenas das crianas e refletir longamente sobre elas, s vezes at mais do que a teoria que acompanhava essas sesses de estudo.

    Com o amadurecimento das reflexes, ficou cada vez mais clara a necessidade de levar as crianas para o lado de fora, ou seja, para os espaos externos, abertos e ricos em natureza. As crianas in-dicavam esse caminho em suas palavras, reaes e aprendizagens.

    Uma histria de criana

    Essa fala de um menino de dois anos de idade, narrada pela me dele sua professora na EMEI Pica-Pau Amarelo, em Novo Hamburgo:

    Me O que voc quer dar de presente para a professora no dia dela?Menino Uma coba! (referindo-se a uma minhoca).Me Uma minhoca? Mas isso a professora no vai gostar.Menino Vai gostar sim!Me Eu no iria gostar de ganhar uma minhoca.

    Seguem os dois nessa discusso, quando depois de imaginar vrias coisas, a me pergunta:

    Mas por que voc acha que a professora vai gostar de ganhar uma minhoca?

    Ao que ele responde:

  • 51DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    CAMINHOS PARA O DESEMPAREDAMENTO

    50DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    Porque a profi vai colocar na planta, a planta vai dar flores e ela vai ficar feliz!

    Essa criana, apesar de to pouca idade, embasada em sua pr-pria experincia consegue propor algo to simples e ao mesmo tempo to complexo: ela diz no ao consumismo e sim vida, ao cuidado, amorosidade e beleza.

    Saber que as crianas, ao participarem cotidianamente do manejo da composteira (que elas chamam de casa das minhocas), conse-guem compreender um processo complexo e ainda relacion-lo a outros aspectos do seu dia a dia mostrou equipe que esse era o caminho. Antes de ser apresentada aos problemas ambientais, a criana precisa experimentar a natureza em sua plenitude e beleza, tornar-se ntima dela, vincular-se afetivamente. Ficou claro que a educao ambiental precisa passar pela experincia direta, livre e ancorada no brincar, e que somente quando nos sen-timos ntimos da natureza iremos adotar atitudes que contribuam para uma sociedade sustentvel.

    Envolvimento de outros territrios e articulao comunitria No h espao aberto, rvores e terra? Olhe ao redor e procure parceiros!

    A primeira coisa que pensamos quando falamos sobre inserir experincias naturais no dia a dia escolar que preciso ter muito espao fsico e recursos naturais diversos. Entretanto, vrias experincias nos mostram que basta ter um pouco de criatividade, iniciativa e um novo olhar no qual o brincar e o aprender na na-tureza so essenciais e possveis - para empreender verdadeiras mudanas no sentido de desemparedar as crianas.

    Conforme tratamos anteriormente, um caminho ampliar o en-tendimento do lugar-escola, considerando o sistema de espaos livres e outros equipamentos pblicos ou privados da cidade como territrios educativos e parte inseparvel dos lugares pedaggicos. Simultaneamente, possvel articular uma rede de saberes que se constituem a partir da formao de uma comunidade de aprendi-zagem. Nessas comunidades, os saberes de jardineiros, cozinhei-ros, pintores e de outras pessoas que atuam nas escolas tomam uma dimenso educativa, e a participao de estudantes em par-tes desses processos cotidianos pode ser uma forma de ampliar as ofertas de aprendizado na escola e fora dela.

    Vejam que relatos inspiradores!

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    CAMINHOS PARA O DESEMPAREDAMENTO

    EMEI Bela Adormecida, Novo Hamburgo (RS) a escola tinha seu ptio bastante reduzido e, por essa razo, fez uma parceria com a igreja vizinha e teve autorizao para frequentar, regularmente, o quintal da mesma, composto de um gramado com muitas rvores frutferas, onde as crianas tm experincias que no seriam possveis no ptio da prpria escola.

    Escola Santi, So Paulo (SP) situada ao lado da Avenida Paulista, no corao do caos urbano, essa escola est implantando o projeto Escola sem Paredes, em parceria com a Universidade Aberta do Meio Ambiente e da Cultura de Paz UMAPAZ, que tem levado algumas turmas para ter aulas no Parque Ibirapuera, trocando a sala de aula por um espao aberto. Segundo sua diretora, Adriana Cury: estamos do lado do Ibirapuera, ento por que no levar as crianas at l?

    Alunos da Escola Santi visitam a UMAPAZ, no Parque Ibirapuera, em So Paulo.

    Quintal da Mrcia, em Nova Iguau (RJ) a Escola Municipal Profa. Irene da Silva Oliveira usa o quintal de uma moradora do bairro para fazer oficinas de educao ambiental. A Mrcia, dona do quintal, acabou se envolvendo tanto que passou a desempenhar papel de educadora e no de emprestadora de quintal. Outra coisa interessante que, a cada dois meses, os pais vivenciam um dia de oficina, igualzinho ao de seus filhos41.

    EMEI Prof. Ernest Sarlet, Novo Hamburgo (RS) transpor seus muros e habitar a praa vizinha era o desejo dessa escola. Embora a praa fosse ao lado, era preciso fazer um trajeto longo, principalmente para os bebs, que ainda no caminham. Para facilitar o acesso, a escola abriu um porto que d liberdade para as crianas transitarem entre os dois espaos. Posteriormente, escreveu um projeto e captou recursos para a compra de um brinquedo de madeira para a praa, que pode ser usado tanto pelos alunos como pela comunidade escolar, num dilogo com a cidade.

    Um simples porto permite que as crianas tenham acesso praa ao lado da EMEI Prof. Ernest Sarlet. E, assim, seu mundo cresce!

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    54DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    As crianas da EMEI Branca de Neve, em Novo Hamburgo, foram passear no parque onde a escola est inserida e, no caminho, experimentaram mexer num cupinzeiro na companhia do guarda responsvel pela segurana da rea.

    Entre os exemplos citados, encontramos processos no qual a edu-cao compreendida como responsabilidade de todos. Encontra-mos tambm inspirao sobre revitalizao e apropriao de es-paos pblicos que trazem pertencimento e senso comunitrio. E, ainda, a sugesto de envolvimento de outros aprendizes no papel de educadores.

    Fazer arranjos e combinados territoriais uma maneira de am-pliar o raio de ao, movimento e aprendizado das crianas.

    Escolas da Floresta42,43*

    Essa abordagem pedaggica, voltada quase sempre para a edu-cao infantil, teve origem nos pases do norte da Europa e, a partir dos resultados obtidos com suas experincias, se expandiu para diversos pases, especialmente Inglaterra e Estados Unidos.

    Nas Escolas da Floresta, as crianas passam a maior parte do tempo em uma rea aberta, geralmente um parque pblico, acompanhadas de um grupo de educadores. Na maioria dos casos a escola conta com uma pequena base, muitas vezes apenas um depsito ou uma sala pequena, para armazenar equipamentos,

    * Para mais informaes sobre as Escolas da Floresta sugerimos o site da Forest School Association (UK), da Forest School for All (EUA) e o filme Do Lado de Fora: Lies de um Jardim da Infncia na Floresta (www.schoolsoutfilm.com).

    Como ser um Boa Praa

    A praa mais prxima da escola, aquela que seria tima para le-var as crianas, est suja, maltratada e sem equipamentos? Que tal incentivar as famlias e os vizinhos do bairro a cuidarem e manterem esse espao para que as crianas e todos possam usu-fruir de seus benefcios? Para ajudar nesse movimento, o programa Criana e Natureza e o Movimento Boa Praa elaboraram o manual Como ser um Boa Praa (disponvel em: http://bit.ly/2GUODaR), com dicas e orientaes para ocupar e revitalizar espaos pblicos.

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    CAMINHOS PARA O DESEMPAREDAMENTO

    ferramentas, materiais de apoio, livros e recursos para os primei-ros socorros. Essa base pode funcionar como ponto de encontro, abrigo para chuva intensa e banheiro. Outras escolas levam as crianas para a floresta uma parte do dia e possuem uma sede institucional regular prxima rea natural. Entre os fundamentos das Escolas da Floresta esto:

    Brincar livre e autnomo as crianas se inspiram nas pr-prias ideias, escolhem seus prprios caminhos e tm liberda-de para explorar e experimentar desenvolver aquilo que as mo-tiva. So elas quem aponta como ser cada encontro.

    Uso de material solto, ferramentas e fogo as crianas dispem de ferramentas e utenslios, alm de todos os re-cursos naturais presentes no ambiente, como gua, tron-

    No dia a dia das Escolas da Floresta no existe tempo ruim, existe a a roupa certa.

    cos, paus, pedras, folhas etc. Esses materiais inspiram crianas e educadores a criarem infinitos arranjos e proje-tos em conjunto. J o fogo usado em diversos momentos, para aquecer, cozinhar e tambm pelo simples prazer de fa-zer uma fogueira.

    Educadores capacitados para observar e dar suporte para as iniciativas das crianas, ajudando-as a aprender com a experincia e criando um ambiente de aprendizagem cola-borativo e seguro. Os planejamentos so realizados no final do dia ou do perodo quando, aps refletir sobre as informa-es e registros, o professor elabora possveis propostas, identifica e organiza os materiais compatveis com o mo-mento do grupo.

    No existe tempo ruim, apenas roupas inadequadas as Escolas da Floresta surgiram em pases com clima tem-perado, onde durante grande parte do ano muito frio. Esse fato no visto como uma dificuldade ou empecilho para as crianas irem para fora e passarem horas ao ar livre. O se-gredo est numa boa preparao, que inclui roupas e equi-pamentos adequados.

    As Escolas da Floresta so um exem-plo muito inspirador sobre o aprovei-tamento de reas naturais pblicas (parques urbanos) por atividades edu-cacionais regulares, em um modelo que se mostra benfico tanto para o parque quanto para a comunidade es-colar envolvida.

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    Ampliao do tempo Leva tempo um tempo livre, no cronolgico para se (re)conhecer

    A extenso e a qualidade do tempo que as crianas permane-cem ao ar livre tambm um elemento fundamental para o desemparedamento. Como se d o acesso das crianas ao ptio? Quanto tempo por dia elas passam fora da sala? O que elas fa-zem quando esto l fora? Podem correr? De que grau de liber-dade usufruem? Afinal, os ptios, os quintais e as reas externas podem ser o lugar onde a natureza se faz presente na escola.

    Essa questo est muito relacionada s rotinas escolares, bem como ao equilbrio entre atividades dirigidas e o brincar livre. Acontece que o tempo cronolgico diferente do tempo do ritmo da criana brincar. A palavra brincar tem como origem etimolgica o termo latim brinco, referente noo vinculum. Brincar seria, assim, a capacidade humana de criar vnculo com as pessoas e as coisas do mundo. A criao de vnculo tem como mola propulsora o desejo de cada um, sendo o desejo um dos sentimentos humanos mais espontneos. Entretanto, sentir a pulsao do desejo e a manifestao do vnculo por meio do brincar demanda tempo. Mas no um tempo cronolgico e sim um tempo ligado noo grega de kairs: momento oportuno. Momento oportuno para a descoberta e para o vnculo com o outro, momento oportuno para brotar o desejo e o gesto espon-tneo de apreender o mundo com um propsito singular. Nesse sentido, preciso requalificar os tempos e rotinas escolares, de forma a possibilitar que as crianas pequenas e grandes te-nham um tempo bem maior do que os quinze ou vinte minutos de recreio para usufruir os ptios escolares.

    Pensar na organizao do tempo e na ampliao das possibilidades de brincar livre influencia tambm nesse papel to importante que j foi da rua e da famlia estendida e hoje parte essencial da escola: o lugar de reunio, de identificao com o outro, de aceitar diferen-as, de construir igualdades, de compartilhar regras, de dividir res-ponsabilidades, de sair do convvio familiar e tornar-se ser social, ou seja, de exercitar a convivncia saudvel e necessria construo de nossa individualidade na referncia essencial da presena do outro 44.

    Nesse sentido, cabe refletir sobre o papel de educador nesse ce-nrio: cada vez menos o de controlador e cada vez mais o de ob-servador, espectador ativo e presente, de corpo e alma, dos gestos e desejos espontneos das crianas, que precisam de tempo para apreender o mundo por meio do brincar, para fazer contato con-sigo mesmas atravs da introspeco e para relacionar-se com o outro atravs da experincia coletiva.

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    H que se ter tempo para o encontro com o outro.

    Uma alternativa na organizao das rotinas a eliminao das es-calas para uso do ptio, pois usualmente cada turma tem um tempo pr-determinado para frequent-lo, evitando, inclusive, o encon-tro entre crianas de diferentes idades. Segundo Raquel Alles Ku-plich, coordenadora pedaggica da EMEI A Bela Adormecida, em Novo Hamburgo, onde essa estratgia foi implantada: os grupos cumpriam, com rigor, uma escala de ptio em que as turmas no se encontravam. Aos poucos, essa concepo foi desconstruda, dando lugar compreenso de que o tempo da escala diferente do tempo do encontro com os amigos, com os cheiros, com o sol, com o frio, com as rvores... Ir para fora no apenas um recreio, conhecer a vida e para isso preciso de mais tempo do que o tempo da escala.

    Sem essa liberdade, como aproveitar o inusitado? necessrio liber-dade para olhar o cu e, percebendo que vai chover, levar as crianas para o ptio antes da chuva ou, ento, prepar-las para o banho de chuva. Como conhecer o vento se no for possvel sair para o ptio no momento em que venta, simplesmente porque no o seu hor-rio de ptio? Como observar a construo de um ninho por um novo habitante do ptio, se aquele no o seu dia de ir para fora?

    Greice Weber, professora da EMEI Aldo Pohlmann, em Novo Ham-burgo, conta sobre outros benefcios inesperados dessa nova forma de organizao: de um tempo para c, quando paramos de fazer a escala de horrio para uso do quintal, avanamos muito. As crianas se integram mais, irmos tm oportunidade de se encontrar. Tam-bm foi um trabalho de amadurecimento do grupo de professores, eles foram percebendo que no podem estar distrados numa rodi-nha, mas que precisam estar muito atentos s crianas.

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    62DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    E se o clima est frio e chuvoso?

    O inverno frio e com perodos prolongados de chuva e por isso as crianas, s vezes, passam longos perodos sem poder ir para o ptio com o argumento de que podem adoecer. Mas todas as crianas precisam de espaos amplos para dar vazo ao seu impulso de expanso e movimento e, ao mesmo tempo, tm gran-de prazer em experimentar as novas possibilidades que a chuva traz para o brincar como as poas, cursos dgua etc. J o frio um timo convite para atividades com fogo, para se aquecer.

    Com base em evidncias que sugerem que o risco de infeco me-nor em crianas que ficam mais tempo ao ar livre do que em salas de aula mal ventiladas45, e que seu sistema imunolgico beneficiado pela exposio ao ambiente natural46, a equipe de Novo Hamburgo enfrentou essa questo e alcanou avanos. Mesmo quando cho-ve muito a gente vai para fora porque as crianas tm necessidade de explorar esse espao, relata Camila da Rocha Gomes, diretora da EMEI Lpis Mgico, Novo Hamburgo.

    Composio, organizao e uso dos espaos Ninhos, cabanas, troncos altos, gua: desejos de nossas almas

    No texto Um Espao que Favorea a Infncia, Maria Amlia Pe-reira escreve, com base nos mais de trinta anos de experin-cia na Casa Redonda Centro de Estudos, que precisamos pensar em espaos para alm das reas estanques que ns, adultos, te-mos oferecidos s crianas. Esses espaos devem permitir que elas exeram seu fazer mais espontneo, o brincar, explorando e expe-rimentando, em intensa movimentao fsica e psquica, num pro-cesso incrvel de crescimento e consequente aquisio das quali-dades humanas que guardam em si47.

    Em Bangladesh, Matluba Khan, arquiteta vinda de uma famlia de edu-cadores, debruou-se sobre como o planejamento do ptio escolar e a insero de diversos elementos organizados de forma intencional poderiam aumentar no s as possibilidades do brincar, como tam-bm a qualidade do ensino curricular matemtica, cincias, escrita e a motivao dos alunos e professores em engajar-se no processo de ensino e aprendizagem. Sim, o lado de fora pode ser uma sala de aula incrvel, onde aprender inclui movimento, pesquisa e interao.

    Uma tendncia acreditar que o tamanho o principal fator para que o ptio seja esse espao mas, na verdade, as experincias vi-vidas e tambm as pesquisas1 apontam que elementos como rvo-res, sombras, galhos soltos, sementes, flores, terra, gua, cordas e a maneira como esto organizados exerce grande influncia nas atividades e no desejo de permanncia no ptio, tanto por parte dos alunos quanto dos educadores.

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    64DESEMPAREDAMENTO DA INFNCIA: A ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO COM A NATUREZA

    Cada escola pode adaptar, organizar e usar seu espao de acordo com seu terreno, recursos financeiros e, principalmente, de acor-do com sua trajetria pedaggica. Muitas vezes, as escolas contam tambm com a participao das famlias nesse processo, por meio de doao de materiais e de mutires para a organizao dos espa-os e a construo de brinquedos e outras estruturas.

    Nesse caminho, os ptios passam a mostrar as marcas e vestgios48 das crianas, indicando que sua presena brincando, construindo, explorando, escalando, aprendendo, se sujando e se molhando, intencional e sua apropriao e transformao desse territrio legtima e desejada.

    Assim, a organizao, a composio e o uso dos espaos da escola deixam de ser processos estanques, com comeo, meio e fim, para se tornarem processos vivos, que refletem a trajetria, o momento de vida e a diversidade da comunidade escolar que o habita. Das experincias vividas pelas crianas e adultos nascem novas ideias, estruturas, cantinhos, rituais, atividades e projetos que vo com-por aquele espao que deve ser simples, harmnico, belo e vivo.

    Conforme mencionado anteriormente, h um crescente e din-mico movimento internacional articulado pela Aliana Internacio-nal de Espaos Escolares (International School Grounds Alliance - ISGA) em torno da criao de espaos escolares mais verdes, de-safiadores e repletos de experincias diversas. Ao mesmo tempo, possvel reconhecer ricas experincias nesse sentido no con-texto brasileiro, entre elas a concepo dos espaos externos da Escola gora.

    Recomendaes para a concepo dos espaos escolares(adaptado de Kahn, 201749)

    Diversidade: o planejamento da composio e organizao dos espaos deve ser feito pensando em proporcionar oportunidades para diferentes demandas, desde o brincar barulhento, movimen-tado e ativo e at a contemplao, o descanso, a calma, o encon-tro e a solitude. fundamental prever espaos que atendam s necessidades de expanso e contrao que podem surgir, sem deixar de ter em mente que cada cantinho pode servir para mlti-plas funes. Atentar tambm para a incluso de locais que per-mitam a amplitude do olhar para alm do ptio (paisagens).

    Conexo: os espaos devem ser conectados por caminhos que formam uma rede que , em si, um componente espacial relevan-te. Isso estimula movimento entre os espaos, circulao dos materiais por diferentes ambientes e a privacidade entre os dife-rentes cantinhos. Quanto mais desnvel existir entre os espaos melhor. Exemplos de caminhos-conexo: percurso de discos de madeira ou pedra, trilhas ou um tnel de arbustos altos.

    Ambientes naturais: quanto mais natureza melhor! Nas escolas com espaos amplos, deve-se plantar rvores, cultivar jardins e hortas e organizar tanques de areia. Uma composteira tambm fundamental. Incluir corpos dgua e uma rea para fogueira, na medida do possvel.

    Ambientes mistos: reas onde brinquedos e outras estruturas so combinados com elementos naturais. Idealmente, os brin-

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    CAMINHOS PARA O DESEMPAREDAMENTO

    quedos (ex. balanos, casinha) ou estruturas (ex. quadras) devem ficar prximos a uma rea natural ou, se no houver, rvores e plantas podem ser incorporadas a esses espaos.

    Espaos para encontros em grupos grandes e pequenos: deve haver um espao onde uma turma possa se reunir com seu pro-fessor, como um anfiteatro ao ar livre, e tambm cantinhos mais reservados onde um pequeno grupo possa se encontrar para con-versar e brincar com mais privacidade e recolhimento, como pr-golas e pracinhas.

    Apresentao teatral em um anfiteatro ao ar livre.

    Esconderijos: criar ou aproveitar cantinhos escondidos e som-bras que ofeream s crianas momentos de isolamento, privaci-dade, sonho, contemplao e brincar solitrio.

    Riscos e desafios: fundamental que as crianas disponham de ambientes com elementos desafiadores, como relevo acidenta-do, ladeiras, escadas e escaladas, assumindo que o risco benfico aquele cujas consequncias so aceitveis um componente essencial no processo de desenvolvimento da criana. Idealmen-te, as crianas devem ter liberdade para circular nesses ambien-tes de forma autnoma, sem a superviso direta de adultos.

    Beleza: todos ns temos direito ao belo, ao harmnico, e a infn-cia um perodo da vida particularmente sensvel aos valores da beleza inerente natureza e arte. Cada flor, cada planta, pedra ou outro elemento natural ajuda a trazer a dimenso do belo ao cotidiano da criana e do jovem.

    Cantinho que pode servir para encontros e tambm para momentos de repouso.

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    Ambientes / Elementos

    Detalhamento

    reas naturaisrvores frutferas, perenes ou caduciflias, trepadeiras em cercas ou muros, arbustos, grama

    Horta / JardimHortalias, leguminosas, plantas medicinais, ornamentais, flores com perfume, flores coloridas, ervas aromticas, plantas sensitivas

    Composteira No cho, minhocrios

    Anfiteatro Lugar para sentar, palco, lousa

    guaTorneira externa acessvel s crianas, peixes, plantas aquticas, cisterna

    Pedras Grandes, coloridas, cascalho, cristais

    Terra Cho batido, areia, terra para fazer barro

    Materiais soltos

    Baldes, potes, ps, rastelos, cestas, redes, tecidos, caixotes, giz, ferramentas reais de jardinagem e de construo, bolinhas, cordas, sementes, paus, troncos, folhas, conchas

    Campo aberto Grama, cho batido, cimento, cascalho, pedra

    Brinquedos e equipamentos

    Balanos, gangorra, trepa-trepa de bambu, casinha, escorregador, bancos, tocos de rvore, pracinha

    FogoLugar para fogueira no cho ou tacho de cobre para fazer a fogueira em cima

    Sugesto de composio dos espaos escolares

    Basta uma corda e alguns pneus para transformar um barranco no cantinho mais legal do ptio.

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    CAMINHOS PARA O DESEMPAREDAMENTO

    Os espaos da Escola gora(Ensino Fundamental, Cotia, SP)

    Descrio com base na apresentao dos espaos feita pelos alunos50:

    1. Na Grcia Antiga, gora era uma praa onde aconteciam reu-nies; essa escola um lugar onde h muita interao entre as pessoas: aulas, reunies e diversas brincadeiras.

    2. Pode parecer apenas tocos de madeira colocados em forma de roda, mas muito mais do que isso. Os banquinhos so um lugar onde os alunos podem conversar, estudar, pensar, refletir, relaxar, criar, compartilhar memrias, contar histrias, reviver momentos.

    3. Cabanas: as crianas entre 7 e 12 anos tm um forte instin-to de expandir sua rea de explorao para alm do ambiente domstico e seguro, geralmente construindo para si refgios e esconderijos secretos no mundo natural51. Nesse bosque de pi-nheiros, crianas e jovens do primeiro ao nono anos vm cons-truindo cabanas h trinta e dois anos, numa articulao exclusiva entre pares, sem interferncia ou ingerncia de adultos.

    4. As salas de aula s tm trs paredes e no tm porta e, assim, os alunos conseguem olhar ao redor. Isso cria um sistema interes-sante para as crianas aprenderem autocontrole: elas ouvem os barulhos mas sabem que tm uma tarefa a fazer e, ento, deva-gar, aprendem a se concentrar para fazer seu trabalho.

    5. Mangueira: ponto de encontro, importante referncia para to-dos os alunos que em seus galhos sobem, brincam, conversam e se equilibram.

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    MAPA ELABORADO POR UMA EX-ALUNA, A PARTIR DOS USOS ANTIGOS E ATUAIS DOS ESPAOS

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    CAMINHOS PARA O DESEMPAREDAMENTO

    Exemplos de usos dos espaos da Escola gora em projetos e atividades

    Amarelinha maluca

    Os espaos abertos possibilitam a realizao de diversas ativi-dades de contagem e desenvolvimento de noes espaciais. A aprendizagem que passa pelo corpo, articulando sentidos e inte-lecto, muito significativa nas sries iniciais. Uma das propostas vivenciadas pela turma do segundo ano a amarelinha maluca: um aglomerado de formas circulares ou ovais contendo, cada uma, numerais da famlia do dez, desordenados em termos de se-quncia. O desafio das crianas percorrer a amarelinha pisando apenas nas casas combinadas: sequncias corretas crescentes ou decrescentes com intervalos de dez em dez, por exemplo.

    Medies

    Um dos projetos realizados pelo quinto ano est relacionado ao estudo das medies: como os povos antigos criaram unidades de medida, a evoluo das mesmas, clculo de superfcie, rea, volume, massa e dimensionamento de grandes objetos e alturas. Os alunos criam suas prprias unidades de medida, testam-nas, avaliam seu grau de preciso convertendo-as ao padro mtrico e investigam maneiras de ajust-las. A quadra, as salas de aula e as rvores da escola esto entre os objetos cujas dimenses so investigadas.

    Procurando palavras pela escola

    O espao da gora repleto de informaes e significados para as crianas que o exploram intensamente nas brincadeiras de hora

    livre, como chamado o recreio: rvores, plantas, bichos, minerais, construes, brinquedos confeccionados pelos prprios alunos, alm de aconteciment