prefÁcio de o homem delinquente

124
O HOMEM DELINQUENTE ― PREFÁCIO DO AUTOR PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE César Lombroso César Beccaria, nos dias de arbítrio, disse ao homem: conhece a justiça; César Lombroso, na época em que se está aferrado às fórmulas clássicas do Direito Penal, disse à justiça: conhece o homem. http://meusacaros.blogspot.com

Upload: maristela-b-tomasini

Post on 10-Jun-2015

2.930 views

Category:

Documents


47 download

DESCRIPTION

Aqui a tradução integral do prefácio do autor à 5ª ed. Italiana e à 2ª Francesa da obra O HOMEM DELINQUENTE de CÉSAR LOMBROSO, a partir da edição francesa publicada por Felix Alcan em 1895, mesma obra que deu origem à edição comercial que apareceu no Brasil, em Porto Alegre, 2001, Ricardo Lenz Editor. Em anexo, ao final, também a tradução do prefácio escrito por Letourneau para a edição francesa de 1887, esta última baseada na 4ª edição italiana.

TRANSCRIPT

Page 1: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

O HOMEM DELINQUENTE ― PREFÁCIO DO AUTOR

PREFÁCIO DE

O HOMEM DELINQUENTE

César Lombroso

César Beccaria, nos dias de arbítrio, disse ao homem: conhece a

justiça; César Lombroso, na época em que se está aferrado às fórmulas

clássicas do Direito Penal, disse à justiça: conhece o homem.

Van Hamel

http://meusacaros.blogspot.com

Page 2: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

Nota:

Aqui a tradução integral do prefácio do autor à 5ª

ed. Italiana e à 2ª Francesa da obra O HOMEM

DELINQUENTE, a partir da edição francesa publicada por

Felix Alcan em 1895, mesma obra que deu origem à edição

comercial que apareceu no Brasil em Porto Alegre, 2001,

Ricardo Lenz Editor.

Como muitos ainda falam, comentam e citam

Lombroso, sem dúvida é oportuno que leiam o que ele

próprio pensava sobre suas descobertas, explicando seu

modo de observar o fenômeno criminal. Daí ocorrer-me a

idéia de disponibilizar parte da obra, tão conhecida quanto

pouco lida, sem omitir notas e comentários que têm por

objetivo atualizar e orientar o leitor frente a uma

terminologia e linguagem típicas do século XIX.

Estou certa de que não é uma leitura sem proveito,

inclusive porque Lombroso se comunicava bem, e porque

suas idéias, seja como for, foram idéias que transformaram

o mundo.

Em anexo, ao final, também a tradução do prefácio

escrito por Letourneau para a edição francesa de 1887,

esta última baseada na 4ª edição italiana.

2

Page 3: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

Uma contradição singular reina neste mundo: o juiz,

de um lado, separa de algum modo o delinquente do delito

para julgar, como se o delito fosse um fato completo em si

mesmo e como se formasse, na vida do agente, um incidente

que não suspeita repetir-se. O criminoso, de outro lado, faz

tudo o que pode para provar ao juiz precisamente o

contrário ― pela raridade do arrependimento, pela ausência

do remorso, pela reincidência reiterada de 30 a 55, até 80%.

Isso não é sem perigo e sem despesa para a sociedade, nem

sem humilhação para essa infeliz justiça que se transforma,

muito frequentemente, num jogo de esgrima ilusória contra

o crime. Em vão aqueles que se aproximam, ou que

estudam os delinquentes encontram-nos diferentes dos

outros homens, fracos de espírito e quase sempre incapazes

de se corrigirem; em vão, os alienistas declaram não poder,

na maioria dos casos, diferenciar o crime da loucura: os

legisladores persistem em não admitir, senão por exceção,

nos criminosos, as alterações do livre arbítrio e apenas

quando essas são assaz gritantes, de modo a constituírem a

alienação mental propriamente dita.

3

Page 4: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

As causas dessas contradições contínuas são muitas:

os legisladores, os filósofos, homens que têm a alma nutrida

de especulações, as mais sublimes do gênero humano,

julgam os outros de acordo com eles mesmos. Repugnando

ao mal, acreditam que todos o repugnam. Não querem nem

podem descer das nebulosas regiões da metafísica ao terreno

humilde e árido das casas penais. De seu lado, o juiz

sucumbe naturalmente a essas preocupações momentâneas

comuns a todos nós nas vicissitudes da vida e que nos

surpreendem de tal modo, por seu interesse atual, que nos

tiram a percepção de sua conexidade com as leis gerais da

natureza.

Eu acredito (e não apenas eu, mas Holtzendorf,

Thompson, Wilson, Despine têm acreditado comigo e antes

de mim) que, para reconciliar tantas divergências, para

resolver o problema de se existe ou não uma verdadeira

necessidade do crime e se o homem criminoso pertence a

um mundo todo seu, seria preciso deixar de lado todas as

teorias filosóficas e estudar, em suma, mais que o crime, os

criminosos.

Esse conhecimento não o poderíamos obter senão por

meio de pesquisas patentes e completas sobre as condições

materiais e morais desses infelizes, sobre suas faculdades

intelectuais, sobre suas disposições naturais, assim como

sobre a educação que eles recebem, sobre as influências

4

Page 5: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

físicas que sofrem e sobre as inclinações onde uma

hereditariedade malfazeja põe neles um germe tão fecundo.

O fruto dessas pesquisas está recolhido neste livro.

Este livro, todavia, parece-se com o humilde inseto

que transporta, sem saber, o pólen fecundante; não poderia

vivificar um germe, se não houvessem, talvez, conduzido

seus frutos por longos anos. Ele deu nascimento à nova

escola, graças aos trabalhos de Liszt, Kraepelin, Biliakow,

Troiski, Knecht, Holtzendorf, Sommer, Mendel, Pulido,

Echeverria, Brill, Kowalewshi, Likaceff, Minzloff,

Kolokoloff, Espinas, Letourneau, Tonnini, Reinach, Soury,

Sorel, Motet, Marandon, Fioretti, Le Bon, Bordier, Tarde,

Roussel, Heger, Albrecht, Warnott, Tamburini, Frigerio,

Laschi, Mayor, Majno, Benelli, Fulci, Pavia, Aguglia, Sergi,

Tanzi, Lessona C., Cosenza, Lestingi, Turati, Venezian, e,

sobretudo, graças a Laurent, Marro, Flesch, Benedickt,

Beltrani-Scalia, Virgilio, Morselli, Garofalo, Puglia,

Sighele, Ferri, a Senhora Tarnowski, Ottolenghi, Dotto,

Carrara, Roncoroni e Kurella, que completaram diversas

lacunas de minhas primeiras edições, ao mesmo tempo em

que determinaram aplicações práticas do ponto de vista

jurídico.

Eu não seria tão reconhecido se não fossem esses

ilustres sábios.

5

Page 6: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

Graças a eles, pela primeira vez, pude distinguir, com

exatidão, o criminoso nato1 do de ocasião, mais ainda, do

criminoso louco2 e do alcoólatra a quem consagrei

monografias especiais. Graças a esses sábios ainda, pude

estender minhas pesquisas sobre as formas primordiais do

crime entre os selvagens, as crianças e os animais,

1 CRIMINOSO NATO – Segundo a classificação dos criminosos de Ferri,

os criminosos natos seriam aqueles que apresentariam, em maior número, as

anomalias orgânicas e psíquicas descobertas pela antropologia criminal.

Precoces, reincidentes no crime, estariam preferencialmente entre os

assassinos e os ladrões, arrastados por tendências congênitas. Distinguir-se-

iam pela ausência ou fraqueza hereditária do senso moral, pela não

repugnância à idéia e à ação delituosa antes de cometê-la, pela falta de

remorso após a execução, pela imprevidência das consequências de seus

atos, pela imprudência, pela impulsividade, determinando a precocidade, a

reincidência e, finalmente, a incorrigibilidade. Em Principii di Diritto

Criminale, pg. 266, Turim, 1928, Ferri coloca que o criminoso nato

caracteriza-se, antes de tudo, pela grande vontade, isto é, por sua

impulsividade que, na fraqueza congênita das energias de inibição, passa

precipitadamente da idéia à ação e por motivos absolutamente

desproporcionados à gravidade do delito. Especifica-se pela falta ou

fraqueza do senso moral que, nos homens normais, é a força de repulsão ao

delito e não é um sentimento particular (de simpatia, como diria

BENTHAN), mas, sim, toda tonalidade sentimental do indivíduo que

determina seu modo pessoal de reagir aos estímulos do ambiente nas

relações sociais – daí eu preferir chamá-lo de “senso social”. Antônio

MONIZ SODRÉ de Aragão, As três escolas penais – estudo

comparativo, Livraria Freitas Bastos, 1955. (N. dos TT).2 CRIMINOSO LOUCO – Os criminosos loucos apresentariam muitas

variedades, entre elas o louco moral, vítima da imbecilidade moral de

6

Page 7: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

completando o estudo anatômico e começando o estudo

fisiológico, sobretudo no que toca às anomalias da

sensibilidade, da reação vascular e reflexa, fenômenos que

nos explicam essa superabundância paradoxal de saúde que

encontramos, bem frequentemente, entre indivíduos que,

todavia, são enfermos desde o nascimento, como os

criminosos natos.

Foi assim que pude demonstrar como a doença se

agrava neles pelo atavismo e que pude operar a fusão de

dois conceitos: do criminoso nato e do louco moral, fusão já

entrevista e afirmada por Mendel, Bonvecchiato, Sergi,

Virgilio, mas que não puderam admiti-la com certeza, pois,

por longo tempo, seus contornos permaneceram imprecisos,

faltando uma verdadeira descrição científica.

Se não posso senão louvar-me de meus críticos e de

meus colaboradores, não fui menos feliz com meus

PRICHARD, a loucura raciocinante (VERGA), etc. Teríamos aqui a

ausência ou a atrofia do senso moral, quase sempre congênita, às vezes

adquirida, coexistindo com uma aparente integridade do raciocínio lógico.

Psicologicamente, seriam idênticos ao criminoso nato. Além dos criminosos

verdadeiramente loucos que são o exagero do tipo do delinquente nato, essa

categoria compreende também os criminosos que, não sendo nem

completamente doentes nem completamente sãos, pertencem ao que

MAUDSLEY chamava zona intermediária. São distinguidos por

LOMBROSO sob o nome de matóides. Antônio MONIZ SODRÉ de

Aragão, As três escolas penais – estudo comparativo, Livraria Freitas

Bastos, 1955. (N. dos TT).

7

Page 8: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

adversários, entre os quais não me furtaria de citar Tarde,

Baer, Manouvrier, Oettingen, Brusa, Ungern-Sternberg. É

bom ser combatido e mesmo ser vencido por tais homens.

Também acreditaria faltar a todas as conveniências, se não

tentasse lhes responder:

“Vós abusais muito, em vossas deduções, de fatos

isolados”, objetam-me esses sábios eminentes. “Se

encontrardes, por exemplo, um crânio assimétrico, orelhas

afastadas, etc., num indivíduo, vós vos apressaríeis em

concluir pela loucura ou pelo crime. Ora, eles não têm

qualquer relação direta com semelhantes anomalias”. ― Eu

não responderia que não encontrei jamais, no cristal

humano, uma formação anormal que não tivesse razão de

ser, sobretudo na parada de desenvolvimento. Eu não diria,

não mais, que existe uma escola de sábios alienistas que não

temiam fundamentar, muitas vezes sobre uma só dessas

anomalias, um diagnóstico de loucura degenerativa. Eu me

contentaria em observar que não faço tais deduções a priori,

mas só depois de havê-las visto em proporção maior entre

os criminosos do que entre os homens normais. Eu diria

que, para mim, as anomalias isoladas não são mais que um

indício, uma nota musical, da qual não pretendo nem posso

tirar um acorde senão após havê-la encontrado junto a

outras notas físicas ou morais.

8

Page 9: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

É verdade que me objetarão: “Como podeis falar de

um tipo entre os criminosos, quando, em vossos próprios

trabalhos, ele resulta faltar em 60% completamente?” ―

Mas a cifra de 40% não é de desdenhar. A passagem

insensível de um caráter a outro se manifesta em todos os

seres orgânicos. Manifesta-se mesmo de uma espécie a

outra, pela mais forte razão de que é assim no campo da

antropologia, onde a variabilidade individual cresce na

razão direta do aperfeiçoamento e da civilização, parecendo

apagar o tipo completo. É difícil, por exemplo, em 100

italianos, encontrar 5 que apresentem o tipo da raça; os

demais não têm senão frações que se manifestam apenas

quando se os compara a estrangeiros. Todavia, ninguém

pensa em negar o tipo italiano.

A meu ver, deve-se acolher o tipo com a mesma

reserva com que nos colocamos a apreciar as médias na

estatística. Quando se diz que a vida média é de 32 anos e

que o mês mais fatal à vida é o de dezembro, ninguém

entende por isso que todos os homens devem morrer aos 32

anos e no mês de dezembro.

Longe de levar a cabo a aplicação prática de nossas

conclusões, essa tarefa restringe-se a divisar o tipo. A

detenção perpétua, a pena capital, que são as últimas

expressões de nossas pesquisas, seriam impraticáveis ao ver

de um grande número de homens, enquanto se lhes pode

9

Page 10: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

muito bem aplicar a um número restrito e ver como um

indício de criminalidade a presença desse tipo entre os

indivíduos suspeitos.

Outra objeção grave que se ergue a propósito desse

tipo é que nós o deduzimos do exame de alguns milhares de

criminosos, enquanto que os malfeitores existem aos

milhões; e que uma lei não pode ser considerada como bem

fundamentada se não se apoiar sobre grandes números

(OEttingen).

Mas pode-se responder, com Ferri, que: “Em geral, os

dados biológicos da mais alta importância são aqueles que

experimentam as variações menos consideráveis: enquanto

que o comprimento dos braços pode variar, de homem a

homem, em vários centímetros, a largura da fronte não pode

variar senão alguns milímetros. Daí resulta com evidência

que, nas questões de antropologia, a necessidade de cifras

expressivas está na razão direta da variabilidade dos

caracteres estudados e, por consequência, na razão inversa

de sua importância biológica” (Sociologia criminelle, Paris,

1893).

As cifras mais fortes são úteis quando nos ocupamos

do que qualquer um pode registrar; mas, quando se trata de

conhecer, não o sexo, nem a idade, nem a profissão, mas o

caráter psíquico ou a conformação craniana de um grupo de

criminosos, é impossível jogar com cifras elevadas.

10

Page 11: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

Nessas questões delicadas, que exigem uma cultura

especial, os grandes números recolhidos pela estatística

oficial – tarefa consumada, a maior parte do tempo, por

empregados ignorantes – têm bem menor valor que as

observações, raras é verdade, mas dadas por homens

competentes. Aqui, a segurança das pesquisas vale bem

mais que sua quantidade.

Vejamos a que teve lugar, por exemplo, para um fato,

todavia muito simples de observar: a reincidência. Se nos

ativermos a uma estatística de mais de 80.000 condenados

empreendida por um homem, o mais competente da Itália

nesse gênero, Beltrani-Scala, ela se limitaria a 18% nas

prisões de forçados, a 27% nas prisões, cifras

prodigiosamente inferiores àquelas que fornece a França

(42%) e a Holanda (80%). E não é tudo: a reincidência

sempre – segundo esse sábio – pareceria perder terreno em

regiões da Itália onde se cometem mais crimes. Enquanto

encontramos, no antigo reino lombardo-veneziano, a

proporção de 59 a 51%, reduz-se, no Sul, a 10, a 14%.

Felizmente, casos pouco numerosos, é verdade, mas

absolutamente seguros, fazem conhecer o malfeitor e

lançam grande luz sobre as associações de criminosos,

permitindo corrigir aqui, como Oettingen já o fez na Rússia,

11

Page 12: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

o erro que cometeríamos baseando-nos unicamente sobre os

grandes números3.

“Vós negais – objeta-me Tarde – que haja a menor

analogia entre o criminoso nato e o alienado; e depois, vós

acabais por confundir o primeiro com o louco moral. Mas,

assim, vós perdeis de vista o atavismo que nada tem haver

com a doença”4. – Não há contradição. O louco moral nada

tem em comum com o alienado. Não é, para dizer a

verdade, um enfermo real, mas um cretino do senso moral.

De resto, nesta edição, demonstrei, além de caracteres

verdadeiramente atávicos, os adquiridos e completamente

patológicos: a assimetria facial, por exemplo, que não existe

no selvagem, o estrabismo, a desigualdade das orelhas, a

discromatopsia5, a paresia6 unilateral, os impulsos

irresistíveis, a necessidade de fazer o mal pelo mal, etc. e

essa alegria sinistra que se faz notar na gíria dos criminosos

e que, alternada com uma certa religiosidade, encontra-se

tão frequente entre os epilépticos. Acrescentem-se as

meningites, os amolecimentos do cérebro que não provém,

3 GAROFALO, Archivio di psichiatria e scienze penali, VII, fasc. IV,

1886.4 TARDE, em seu belo livro Criminalité compareé. – Paris, Alcan, 1886.5 Discromatopsia – Cegueira parcial para as cores. (N. dos TT.).6 Paresia – paralisia de nervo ou músculo que não perdeu completamente a

sensibilidade e o movimento; paralisia incompleta; desfalecimento. Indica,

quase sempre, existência de lesões dos nervos ou dos centros motores.

Enciclopédia Brasileira Mérito (N. dos TT.).

12

Page 13: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

certamente, de atavismo. É por isso que venho a relacionar

o louco moral e o criminoso nato na família dos epileptóies7.

De resto, o atavismo é, desde já, um fenômeno

doentio.

7 Em sua obra a respeito de Medicina Legal – psicopatologia forense –

Afrânio Peixoto discorre sobre epilepsia. Destacamos: “O problema da

epilepsia é talvez o mais sério e difícil da medicina pública: porque a doença

é muito divulgada; porque os doentes, nos intervalos de suas crises, às vezes

espaçadas, gozam de uma mentalidade aparentemente regular; porque ainda

numerosos deles conseguem posições elevadas nas letras, na política, na alta

administração e valem-se ainda de numerosos exemplos ilustres na história;

porque todos eles estão na iminência de mal fazer, o que lhes cria uma

degeneração que corrompe o corpo e o caráter, sem que existam ou possam

talvez existir os recursos sociais contra a possível e eventual temibilidade

deles.” E prossegue o ilustre catedrático, cuja tese de doutoramento

intitulou-se “Epilepsia e Crime”. – “É já de emprego vezeiro em psicologia

mórbida essa expressão: caráter epiléptico. Que é isso? Esses doentes têm

um humor vário, incoerente, móvel. Otimistas, entusiastas, generosos,

passarão por pouco ao pessimismo do cansaço, ao egoísmo dos desiludidos,

à perversidade requintada. Alegres, ruidosos, gentis, num momento

próximo, são desconfiados, grosseiros, sombrios, odientos, impulsivos.

Obstinados numa idéia, cedem-na por pouco, quando não lha disputam;

religiosos com fervor ou hipocrisia, irão do zelo ardente e da mais crua

mortificação ao tartufismo impudente; altivos até a arrogância, de cima de

um orgulho intratável, caem numa submissão humilde, numa adulação

mesquinha, comprazendo-se em contrastes. Contudo essa imobilidade é

muitas vezes combatida no epiléptico por uma pertinácia incansável em que

a vontade tenaz colabora com o esforço irredutível. Tudo neles é porém

13

Page 14: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

“A incapacidade – escreve Nordau8 - de coordenação

da atividade muscular é chamada de ataxia pela Medicina.

Entre as crianças, corresponde a um estado natural e são.

Essa mesma ataxia é uma doença grave quando aparece no

adulto como sintoma principal de lesões da medula espinal.

A identificação da ataxia doentia e da ataxia sã da criança

de peito é tão completa que o Dr. S. Frenkel pode

fundamentar, sobre ela, um tratamento que consiste,

essencialmente, em que os doentes aprendam de novo a

caminhar e a manter-se de pé9. Veja-se, pois, que um estado

pode ser, ao mesmo tempo, patológico e, não obstante, o

simples retorno a uma maneira de ser originalmente normal.

É uma leviandade culpável acusar Lombroso de

contradição, vendo, às vezes, a degenerescência e o

atavismo no instinto criminal. O lado doentio da

degenerescência consiste, precisamente, em que o

organismo não percorre penosamente o nível de evolução já

atingido pela espécie, mas pára num nível qualquer situado

mais ou menos abaixo. A recaída na degeneração pode ir

violento: o desejo, o sentimento, a idéia, como o tédio, a depressão, a

impulsão: culminam as provas na história dos comiciais célebres, sejam

César, Mahomet, Napoleão ou Calígula, Torquemada, Iwan, o Terrível”.

AFRÂNIO PEIXOTO, Medicina Legal, vol. II, Livraria Francisco

Alves, 1938. (N. dos TT.). 8 Dégénerescence, por MAX NORDAU. – Paris, Alcan, 1894.9 DR. S. FRENKEL, La thèrapeutique des troubles ataxiques du

mouvement (Gazzette hebdomadaire médicale de Munich, nº 52, 1892).

14

Page 15: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

até a mais vertiginosa profundidade. Do mesmo modo que

decai, somaticamente, até a escala dos peixes, mais ainda,

até aquela dos artrópodes e mesmo dos rizópodes, não ainda

sexualmente diferenciados, quando se renova, pelas fissuras

do maxilar superior, nos lábios sêxtuplos dos insetos, pelas

fístulas do pescoço, nas brânquias dos peixes, precisamente

os mais inferiores, pelos dedos em excesso (polidactilia),

nas barbatanas múltiplas dos peixes talvez mesmo pelo

hermafroditismo, a assexualidade dos rizópodes. Assim,

renova-se intelectualmente, no melhor dos casos, como

degeneração superior, o tipo do homem primitivo da Idade

da Pedra Bruta. No pior caso, como idiota, aquele de um

animal muito anterior ao homem.10”

10 PARADAS E ATRASOS DE DESENVOLVIMENTO PSÍQUICO:

IDIOTIA, IMBECILIDADE, DEBILIDADE MENTAL. – Afrânio

Peixoto (op. Cit.) define-os como “distúrbios da evolução cerebral durante a

concepção ou nos primeiros anos de vida acompanhados de numerosas

anomalias somáticas e que produzem um déficit intelectual mais ou menos

considerável segundo o tipo clínico estudado: idiotia, imbecilidade,

debilidade mental.” Quanto à sintomatologia e o comportamento dos

indivíduos afetados por essas condições, deve-se considerar, principalmente,

nestas agenesias e disgenesias cerebrais, a gradação que vai da idiotia

absoluta à imbecilidade, à debilidade mental ou pobreza de espírito

congênitas ou adquiridas nos primeiros anos, por uma causa que impediu ou

retardou o desenvolvimento cerebral. Somaticamente, revelam-se por vícios

de conformação de toda ordem, desproporção, deformidade, pequenez da

cabeça, talhe, membros, anomalias dos olhos, orelhas, dentes, órgãos

genitais. Além das alterações elementares das funções psíquicas, várias

desordens patológicas se enxertam, como a surdo-mudez, vícios de elocução,

15

Page 16: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

À objeção muito justa de Tarde, de que os selvagens

não são sempre morenos nem de uma altura elevada, e de

que a fosseta occipital se pode encontrar entre povos pouco

inclinados ao crime, como os árabes, e falta entre outros

mais bárbaros, já a respondi, em citando esta lei sobre a qual

os antropólogos deveriam melhor meditar.

tiques, movimentos coreiformes, hemiplegia, paraplegia, paralisia,

convulsões, epilepsia. As primeiras manifestações revelam-se pela

dificuldade de tomar o seio, pelo caráter violento, contínuo e infundado dos

gritos e choro, impossibilidade de fixar o olhar, falta de expressão na

fisionomia, atrofia da atenção, retardo do crescimento, da marcha, da

palavra, do sistema piloso (SOLLIER). O movimento é pobre e

estereotipado (MEYERSON). Intelectualmente, domina a impossibilidade, a

dificuldade e a instabilidade, nos graus mais atenuados, de fixar a atenção.

A memória é fraca, infiel, sujeita a cada momento a falsificações, seja pela

impressão do momento, seja pela sugestão. Em relação aos reflexos dessa

constelação de anomalias na vida psíquica do indivíduo, constataríamos

sério prejuízo das funções de crítica e juízo, de sorte que a aceitação das

idéias estranhas, por sugestão, é extrema. Os falsos testemunhos, as ações

malévolas podem ser facilmente aceitas e executadas por ordem ou imitação.

As funções éticas não têm vestígios: a indiferença moral é completa; não há

pudor, decência, noção do dever; apenas a imitação atua em casos restritos

pela memória limitada das experiências congêneres. A irritabilidade é

considerável. Em uma palavra, a situação psíquica dos idiotas e imbecis é

inferior a dos animais superiores, na maior parte das funções intelectuais;

nos débeis, elas se esboçam todas numa pobreza de relevo em que apenas os

excedem. Todavia – observa o autor – já se viu alguns idiotas e imbecis

possuírem faculdades superiores: os talentos musical e matemático têm-se

encontrado em mais de um desses degenerados, incapazes de outras e mais

simples operações do espírito. A vaidade é sua fraqueza: ela os conduz “às

16

Page 17: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

As anomalias atávicas não se encontram todas, com a

mesma abundância, nas raças mais selvagens, mas, mais

frequentes, não obstante, entre eles que entre os povos mais

civilizados, elas variam na proporção e podem faltar em

parte, sem que sua ausência ou sua presença possa ser vista

como uma marca de maior superioridade ou inferioridade da

últimas humilhações para obterem um arrebique de toilette, uma

condecoração, um título nobiliárquico, um lugar decorativo. As mulheres

vendem-se por uma jóia; e, por uma fita na botoeira do casaco, por um

baronato, por uma cadeira no parlamento, por um simples cargo de juiz de

confraria, os homens submetem-se a toda sorte de imposições degradantes e

a todos os exageros das despesas. A vaidade fá-los ter na maior estima a

faculdade de mandar, de que sempre abusam, torturando os que são forçados

a obedecer-lhes. Os imbecis são quase sempre prepotentes” (JÚLIO DE

MATTOS). São muito irritáveis e dados a cóleras violentas que terminam às

vezes nas impulsões das vias de fato: conheço um, de boa roda,

elegantíssimo, que se presume das melhores capacidades e que por pouco se

excede em ímpetos desproporcionados, pelo desforço muscular. Gaba-se,

depois, de resolver a muque todas as discussões em que se empenha.

Entretanto, podem ser tímidos, medrosos, vingando-se nas fanfarronadas –

“um dos aspectos de sua vaidade” (JÚLIO DE MATTOS). São crédulos e

desconfiados, “aceitam o maravilhoso e o sobrenatural, não prestam adesão

aos resultados das ciências. Os inventores de milagres e os charlatães

recrutam entre os imbecis – que aliás não acreditam em micróbios – uma

larga e segura clientela. São matéria amorfa nas mãos de exploradores de

toda ordem, seja política, religiosa ou mercantil. Mas não os prejudica

menos a irraciocinada desconfiança que sempre experimentam em face das

coisas novas, que neles atinge as proporções de uma fobia: misoneísmos.”

(JÚLIO DE MATTOS). A preguiça, a imprevidência com que facilmente

vão à mendicidade e à prostituição, depois de parasitas e vagabundos, não

17

Page 18: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

raça. Assim, duas anomalias atávicas, aquela do osso dos

incas e a da fosseta occipital, encontram-se juntas em raças

semicivilizadas, como a americana, e são raras nos negros,

todavia mais bárbaros (Anoutchine, Bull. Soc., Moscou,

1881).

lhes priva de um rudimento de vontade, obstinada às vezes, numa tenacidade

que nada pode vencer e por isso não é nem lógica nem contingente.

“Conheço um – prossegue Afrânio Peixoto – que adquiriu um posto

científico, inventando, enredando, corrompendo, agradando, sem poupar

esforços, sem atender a razões, tanto que, afinal, para se verem livres dele,

houve uma convergência de esforços para o satisfazerem, isto é, para a paz

de cada qual. Esta obstinação é de tal força que, um outro, teimando em

submeter-se às provas de um concurso para o professorado, decorou, com

um inaudito esforço, páginas e páginas de compêndios que reproduziu mal,

num psitacismo que iludiu alguns dos juízes, conseguindo o que pretendia,

isto é, a aprovação. Agora já não se lembra de nada, pois que essas

aquisições passaram, no esquecimento fácil; mas ele lá está vitorioso.”

Aplicações Forenses – Com essa ausência de imaginação, juízo, crítica,

senso moral, sujeitos ao domínio dos reflexos e do automatismo

subconsciente, não são raros os atos violentos – incêndios, estupros, furtos –

praticados por esses deficientes: em qualquer hipótese, a estas ações faltará

premeditação, preparo, ajuste, pois exigem operações de espírito que lhes

fazem falta. Às solicitações corporais – de fome, sede, apetite de álcool ou

de fumo – eles obedecem procurando a mais pronta satisfação, pelo furto, se

é o caso, sem qualquer embaraço por uma reflexão das consequências que

não existe. A satisfação sexual tampouco os detém: masturbam-se ou

dirigem propósitos obscenos sem resguardo. Um débil mental, por ocasião

de obras e reparos no Hospício Nacional, e que escapara à vigilância num

momento, entrou na sala comum dos enfermos, pouco depois, a mostrar

18

Page 19: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

De resto, sem reiterar que a doença, bem

freqentemente, obscurece todo traço de atavismo, é

necessário lembrar que, quando se reencontram as leis do

atavismo nos fenômenos humanos, mesmo onde eles são

menos estáveis, na embriologia, por exemplo, há risco

frequente de nos extraviarmos. É como em certos contornos

figurados nas nuvens que desaparecem quando se os olha de

muito perto; ou como esses quadros modernos: vistos de

perto, eles vos dão a impressão de crostas sobrecarregadas

de tinta; à distância, apresentam admiráveis retratos. Em

ambos os casos, todavia, a linha existe, somente que, para

vê-la, é preciso recuar o ponto de vista. Quereis a prova?

Adotai esta opinião e vereis, no mesmo instante, abrirem-se

diante de vós milhares de novas vias que se iluminam umas

às outras, iluminando, ao mesmo tempo, o tema, enquanto

umas moedas de níquel que obtivera por ter tido relações com um

trabalhador: dizia inocentemente o que fizera, ou que provocara. Assim

tantas e tantas se prostituem por pouco ou coisa nenhuma; muitos violam até

as próprias irmãs com quem convivem (IDELER, FRIEDREICH, GIRAUD,

KRAFF-EBING). A irritabilidade fácil e as cóleras incoercíveis, agressivas

e desproporcionadas podem levá-los à violência, às lesões corporais, ao

homicídio, ao incêndio. CASPER cita a observação de um até antropófago.

Finalmente, uma sugestionabilidade fácil, por desprevenida simplicidade,

torna-os capazes de se prestarem, admirados e dóceis, às incitações alheias

(os imbecis formam a corte dos paranóicos: JACOBY), como os expõe a

vítimas de muitos delitos. AFRÂNIO PEIXOTO, Medicina Legal, vol. II,

Livraria Francisco Alves, 1938. (N. dos TT.).

19

Page 20: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

que o contrário é que se deveria produzir, caso se tratasse de

ilusão pura.

Eu responderei, agora, a uma outra acusação que

consinto, com Turati (Archivio, III), encontrar bem singular:

“Esta escola – dizem alguns adversários – foi fundada por

homens estranhos à ciência do Direito, por verdadeiros

intrusos”. – Mas esses contraditores que censuram os

médicos legistas de haverem aplicado a Medicina Legal, os

antropólogos de haverem aplicado a Antropologia às

questões sociais ou jurídicas, esquecem que os químicos

fizeram a indústria, os mecânicos, a hidráulica e a

tecnologia. Eles esquecem que, pela primeira vez, Buckle e

Taine fizeram a História positiva, quando a fundamentaram

na cronologia histórica, na economia política, na etnologia

comparada e na psicologia. Eles esquecem, enfim, que a

fisiologia moderna não é outra coisa senão uma série de

aplicações da ótica, da hidráulica, etc.! Enquanto os mesmos

críticos protestam contra toda tentativa feita para suprimir o

perigo de legislar sem haver estudado o homem e sem

conhecê-lo – e isso unicamente por horror a uma aliança

com uma ciência estranha – vemos a maior parte deles

suportar, mesmo procurar, não apenas uma aliança, mas a

ditadura de uma ciência alheia ao Direito e talvez alheia

ainda a todas as outras ciências: vou falar da Metafísica. E

têm eles a coragem de estabelecer sobre ela, mesmo sobre

20

Page 21: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

suas hipóteses mais combatidas – aquela do livre arbítrio,

por exemplo - as leis das quais depende a segurança social!

Aqui, vejo-me embaraçado por outros juristas que me

censuram haver reduzido o Direito Criminal a um capítulo

da Psiquiatria e de arruinar a penalidade, o regime das

prisões! Isso não é verdade senão em parte. Para os

criminosos de ocasião, conformo-me com a esfera das leis

comuns e contento-me em reclamar seu alcance a métodos

preventivos. Quanto aos criminosos natos e loucos morais,

as mudanças propostas por mim não fariam senão aumentar

a segurança social, pois reclamo, para eles, uma detenção

perpétua.

A novidade de nossas conclusões mais combatidas é

assim tão grande? Não de todo. Vós encontrareis

conclusões análogas na antiguidade, em Homero quando fez

o retrato de Thersite, em Salomão (Ecles., XIII, 31) quando

proclamou que o coração muda a feição dos malvados.

Aristóteles e Avicena, G. B. Porta e Polemão descreveram a

fisionomia do homem criminal. Os dois últimos foram

mesmo mais longe que nós. Citarei ainda provérbios que,

veremos adiante, chegaram a conclusões bem mais radicais

que as minhas e nos vêm, evidentemente, dos antigos?

Há séculos já o povo sinalou a incorrigibilidade dos

culpados, sobretudo dos ladrões, e a inutilidade das

prisões11.11 Archivio di psichiatria, III, pág. 451.

21

Page 22: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

Aquelas de nossas teorias que parecem mais ousadas

foram mesmo postas em prática em tempos bem distantes de

nós. Valerio e Loyseau citam um édito medieval

prescrevendo: no caso de dois indivíduos serem suspeitos,

aplica-se a tortura ao mais feio dos dois. A Bíblia já

distingue o criminoso nato e ordena sua condenação à morte

desde a juventude. Solon encontrou no Dictérion um

preventivo social contra a violação e a pederastia.

Observemos que, para todas essas descobertas, como

de resto para tudo o que é verdadeiramente novo no campo

experimental, nada pior que a lógica, o senso comum, o

maior inimigo das grandes verdades. É que, nos estudos

iniciais, deve-se trabalhar bem mais com o telescópio do

que com a lupa.

Com os silogismos e a lógica, com o senso comum,

vós provaríeis que é o Sol que se move e a Terra permanece

fixa. E foram astrônomos que se enganaram!

Manouvrier nos diz, com efeito, numa lógica muito

segura (Actes du Congrès d’Anthropologie Criminelle,

Paris, 1890), que não se deveria comparar os criminosos aos

soldados, porque estes já passaram por uma seleção; mas se

esquece de que comparamos os criminosos aos estudantes e

às pessoas comuns; que Marro os comparou aos operários

da cidade de Turin e que a Senhora Tarnowsky pôs em

paralelo as mulheres criminosas, as camponesas e as damas

22

Page 23: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

russas. Ultimamente, Brancaleone-Ribaudo comparou

soldados criminosos a soldados honestos da mesma região.

É bem verdade que nos dizem que deveríamos fazer nossa

comparação com homens virtuosos, mas poderíamos

responder que a virtude, neste mundo, é já uma grande

anomalia. Eu não precisaria senão citar Charcot, Legrand

de Saulle e eu mesmo (se me permitem juntar-me a eles) no

Homme de Génie (pág. 180), para provar que a santidade –

que é a virtude mais completa – não é senão, bem

frequentemente, histeria ou ainda loucura moral.

Vós vereis que, à força da lógica, nós nos

encontraremos como o pai, o filho e o asno da fábula, na

impossibilidade de fazer qualquer escolha e de avançar um

só passo.

Manouvrier nos acusa de não haver exibido senão

criminosos monstruosos “que não provam que os

criminosos sejam monstros anatômicos”.

Verdadeiramente, é estranha tal censura da parte de

um anatomista tão distinto quanto Manouvrier, porque,

como no mundo nada ocorre por acidente, do mesmo modo,

não há monstros na natureza, e todos os fenômenos são

efeito de uma lei - os monstros talvez mais que os outros,

porque não são senão o efeito destas mesmas leis

exageradas.

23

Page 24: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

Mas estas censuras, aliás, caem logo que se passa à

segunda crítica, pela qual: “relatei muitos exemplos sem

havê-los selecionado”.

Nesse reproche há, entretanto, verdades. É certo que,

em progredindo, vimos que não há um só tipo de criminoso,

mas muitos tipos especiais (o ladrão, por exemplo, o

escroque, o homicida), e que as mulheres criminosas têm

um mínimo de anomalias degenerativas – quase tantas

quanto as honestas.

É ainda verdadeiro que reuni (estudando crânios e

cérebros) as observações de muitos sábios assaz

discordantes entre elas. Tais diferenças se explicam muito

bem, porque cada observador detém-se com predileção

sobre algumas anomalias e negligencia outras. Foi apenas

depois que Corre chamou a atenção sobre a assimetria,

Albecht sobre o apêndice lemuriano da mandíbula e depois

que sinalei o orifício occipital médio, que a atenção dos

antropólogos se dirigiu a essas anomalias que se observam

entre os criminosos. É sempre a análise que precede a

síntese. Poderiam bem me acusar de má-fé, se eu houvesse

esquecido todos os meus antecessores.

Manouvrier esquece, a seu turno, que, dando

importância aos resultados de outros observadores, tive em

conta 617 crânios de criminosos que analisei eu mesmo,

24

Page 25: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

reportando todos os detalhes em cifras na 1ª edição italiana

de meu Homme Criminell. Foi a esses crânios que dei mais

importância.

Mas Manouvrier ignora também que, para os vivos,

nossos estudos, longe de se restringirem a alguns monstros,

aplicam-se já a 27.915 criminosos comparados a 28.021

normais.

E ele não é exato ao afirmar que não se estudou o tipo

particular de cada espécie de criminoso. Eu não o fiz, é

verdade, senão de passagem; mas Ferri, o primeiro, depois

Ottolenghi, Frigério e, sobretudo, Marro e, na Rússia, a

Senhora Tarnowsky, fizeram-no com uma abundância de

detalhes verdadeiramente maravilhosa.

É natural que, nos primeiros trabalhos, não se visse

senão o conjunto de linhas e que, apenas depois,

estudássemos os subgrupos de cada espécie. É assim toda

criação: passamos sempre do simples ao composto, do

homogêneo ao heterogêneo.

O Professor Magnan combate minha opinião segundo

a qual, desde a infância, há uma predisposição natural ao

crime. Com tal objetivo, começa por enumerar duas ou três

páginas de Meynert sobre as sensações da criança recém

nascida. Verdadeiramente, tais citações são inúteis, porque

não há, nos primeiros dias de vida em que estudei a criança,

25

Page 26: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

tendências criminosas. Há então um estado vegetativo que

se poderia de todo comparar àquele dos zoófitos, sem

qualquer analogia com os criminosos. Depois de insistir

numa comparação que em nada influi aqui, Magnan, a

seguir, tangencia sobre duas palavras a propósito de outro

período sobre o qual deveria deter-se.

A criança – diz ele – da vida vegetativa passa à vida

instintiva. Roguei-lhe que desenvolvesse um pouco as idéias

que resumiu nestas duas linhas, pois encontraria a chave do

enigma. Encontraria, com Perez, entre as crianças, a

precocidade da cólera que as conduz a bater nas pessoas, a

tudo destruir de modo semelhante ao selvagem que enfurece

quando mata o bisão.

Ele ouvirá Moreau dizer que muitas crianças não

podem esperar um instante por aquilo que vos pediram sem

cair numa cólera extraordinária. Ele encontrará nelas o

ciúme, a ponto de exibirem uma faca a seus genitores,

porque matam seus rivais; encontrará crianças mentirosas,

sobre a quais Bourdin escreveu uma obra notável;

encontrará, em todas, uma emoção que dura alguns

momentos e se desvanece a seguir; encontrará, com La

Fontaine, que esta idade é sem piedade. Encontrará, com

Broussais, que se comprazem em ferir animais, em

atormentar os fracos. Encontrará, entre elas, tudo como

entre os criminosos, a mais completa preguiça que não

26

Page 27: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

exclui a atividade, desde que se trate de seu prazer ou de

suas brincadeiras, e a vaidade que as torna ufanas de suas

botinas, de seus chapéus novos, de sua mínima

superioridade.

Eis o que Magnan deveria encontrar e não encontrou

em Perez, Moreau, Bourdin, Broussais, Spencer e Taine,

que disseram tudo isso bem antes de mim: os impulsos

cruéis, as sevícias dirigidas contra os animais não se

encontram senão nas crianças completamente más,

desequilibradas.

Naturalmente, nas crianças degeneradas, taradas por

herança, tais tendências se manifestam com toda intensidade

e durante toda vida: elas eclodem na primeira ocasião e bem

antes da puberdade, porque oportunidades para praticar o

mal não faltam nunca, mesmo nessa idade. A educação

nada pode; dar-lhes-ia, no máximo, um falso verniz que é a

fonte de nossas ilusões a esse respeito. Ao contrário, nos

jovens honestos, a educação é muito eficaz; ela ajuda sua

metamorfose – sua passagem ao estado fisiológico que se

pode chamar puberdade ética – que não se manifestaria se

uma má educação a impedisse. É o caso dos girinos que

não conseguem, num meio muito frio, completar sua

metamorfose.

Mas talvez Magnam, ele mesmo, admita-o, quando

diz que não se deve ver nisso uma predisposição natural

27

Page 28: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

aos atos delituosos, mas, sim, uma tara patológica, uma

degenerescência que perturba as funções cerebrais.

Roguei-lhe apenas que me permitisse aqui uma justa

observação.

Se fosse um jurista da velha escola metafísica que

falasse assim, eu compreenderia muito bem essas distinções

sutis, esses jogos bizantinos de palavras. Eu não os

compreendo num médico tão distinto quanto ele.

Ele não compreende que é justamente nesta tara, que

torna duráveis, que perpetua as tendências embrionárias

para o crime, que reside a natureza teratológica e mórbida

do criminoso nato; quando esta tara patológica, hereditária,

não existe, as tendências criminosas embrionárias atrofiam-

se, como se atrofiam num corpo bem munido de órgãos

embrionários – o timo, por exemplo. Magnam, depois de

haver negado os criminosos natos, apresenta-nos, ele

mesmo, uma série de casos. Não acredito que o faça para

colocar-se, ele próprio, em falta. Certamente, se é para

demonstrar que são hereditárias, nos filhos de alcoólatras,

não faz senão repetir o que já afirmei em minha edição

italiana e o que disse, antes de mim e melhor do que eu,

Saury, Knetch, Jacoby, Motet e o primeiro de todos, Morel.

E como o estimo, tanto por seu talento quanto por seu

caráter, rogo-lhe que nos confesse se tais degenerados sem

tara física não foram escolhidos por uma verdadeira seleção,

28

Page 29: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

em meio a centenas de outros12 que eram tarados e que não

nos apresentou. Eu, todavia, não empreendi semelhante

seleção. Ofereci ao público 400 criminosos de um álbum

criminal germânico sem qualquer escolha.

Ele nos afirma ainda que nossos caracteres são

insuficientes para os magistrados. Mas quando médicos tão

clarividentes quanto ele chegam a negar fatos tão evidentes

e pôr em dúvida mesmo aqueles que descobriram eles

mesmos, certamente não podem ter a pretensão de persuadir

magistrados que teriam uma razão a mais para desconfiar de

nós. A falha está em nós.

Aliás, não é apenas para as aplicações judiciais que

estudamos; os sábios fazem a ciência pela ciência e não para

aplicações que não se poderiam estabelecer de imediato.

Quem não vê que a diagnose física terá sempre uma

chance mais segura de fazer seu caminho, de ser mais exata

que a diagnose psicológica que pode padecer, de todos os

lados, pela simulação?

Magnam está, assim como muitos sábios, ocupado

demais com suas próprias pesquisas para admitir e conhecer

as dos outros. Ele teria de saber que não são apenas os

12 No exame desses degenerados, segundo o ilustre clínico de Saint-Anne,

encontraram-se muitos desses caracteres, ainda que em menor número que

entre os criminosos. Encontrou-se o apêndice lemuriano e a assimetria num

ladrão, os incisivos laterais e o maxilar hipertrofiados numa ninfomaníaca.

Em todos, obtusidade do tato, etc.

29

Page 30: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

caracteres fisionômicos (que às vezes podem faltar), mas os

biológicos e os funcionais, que apreciamos no criminoso

nato. Ora, esses últimos caracteres não faltam quase nunca

no verdadeiro criminoso: por exemplo, o mancinismo13, as

anomalias dos reflexos e da sensibilidade.

Pode ele afirmar que essas anomalias faltam também

entre os degenerados?

Tarde e Colajanni negam as relações entre órgão e

função, o que a priori subtrairia sua importância à

Antropologia Criminal.

“A relação entre o órgão e a função – escreve

Colajanni – é muito incerta. Não saberíamos com certeza

da existência de um órgão subordinada àquela da função: há

órgãos sem função atual” (pág. 160). Mas esta afirmação,

responde-lhe muito bem Sergi (Revue internacionale, 1889,

p. 513). É tudo simplesmente uma enormidade! Que fazem

tais órgãos sem função no organismo humano? Seriam, por

13 Afrânio Peixoto questiona o mancinismo como característica do criminoso

nato. “O uso da mão esquerda seria corrente, se a disciplina, logo nos

primeiros anos, não obrigasse a uma estúpida preferência pela mão direita: o

ambidestrismo malsinado seria o ideal de um desenvolvimento regular.

Pedagogos suíços e americanos reagem nesse sentido, restituindo à mão

prejudicada uma usurpação tamanha que ainda se atribui à outra a

normalidade exclusiva. Não há prova estatística que seja mais frequente nos

criminosos e loucos do que nos normais”. AFRÂNIO PEIXOTO,

Medicina Legal, vol. II, Livraria Francisco Alves, 1938. (N. dos TT.).

30

Page 31: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

acaso, órgãos de reserva, devendo substituir aqueles que o

uso teria destruído, como as vestes novas substituem as

velhas? E se - segundo ele – a função engendra o órgão,

como teria nascido o órgão privado de função?

E se é verdade que os órgãos se reforçam e se

hipertrofiam em funcionando, não é menos verdade (e disso

se esquecem Tarde e Colajanni) que, para que eles

funcionem, é necessário que estejam em condições. A

barriga das pernas das dançarinas (dizia-nos, muito

espirituosamente Brouardel)14 engrossa, sem dúvida, pela

dança, mas, para isso, deve ser, antes de tudo, uma barriga

da perna.

Colajanni tenta nos abater, sem esperança de êxito,

onde entende estarmos em contradição. Mas é mais fácil

descobrir contradições no que ele mesmo escreve, tomando

duas afirmativas destacadas de um de seus livros. Nada

mais fácil, especialmente em nosso caso, do que encontrar

diversos observadores em falta. Os grupos de indivíduos

observados eram diferentes; os resultados não poderiam ser

idênticos. Isso é conhecido por todos os que se ocupam de

observações antropológicas. Se eu medisse 100 crânios de

Auvergne, por exemplo, encontraria tal cifra e tal

quantidade; se medisse 100 outros, encontraria, em muitos

elementos medidos e calculados, cifras e quantidades

diferentes, em grande parte ao menos. Por que não se daria 14 Actes du Congrès d’anthropologie criminelle. – Paris, 1890.

31

Page 32: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

o mesmo nas observações sobre a capacidade do crânio, o

peso do cérebro, o peso do corpo, a estatura, os sinais de

degenerescência dos criminosos de diferentes regiões e

também do mesmo país? Mas a habilidade do observador

consiste em encontrar a diversidade na homogeneidade, e

não há observador superficial ou adversário de boa ou má-fé

que possa encontrar aí incoerência e contradição15.

Féré (Dégénérescense et criminalité, 1888) nega

também minha conclusão de que “os germes da loucura

moral e do crime se encontram numa feição normal nos

primeiros anos do homem, como se encontram,

constantemente, no embrião, certas formas que, no adulto,

são monstruosidades”. E isso porque, segundo ele, a

humanidade não se constitui de indivíduos com as

tendências antisociais das crianças. Em escrevendo tais

palavras, não cuida ele dos ... selvagens. Mas talvez aqui

nós não nos entendamos. Quando Preyer demonstra que

encontrou, no discurso de crianças, a logorréia, a disfrasia, a

ecolalia, bradifrasia, a parafrasia, a acatafasia dos loucos,

dos idiotas, não afirma que as crianças sejam loucas ou

idiotas; mas ele nos sinala o ponto de referência atávico

dessas anomalias16. Ele nos mostra que esses fenômenos

15 SERGI, L’Anthropologie criminelle et ses critiques. – Revue

internationale, 25 de novembro, 1889.16 “A palavra defeituosa por vícios de pronúncia é desleixada na sintaxe e

pobre no conteúdo intelectual. Entre os vícios de pronúncia, convém

32

Page 33: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

estranhos, anormais nos loucos, são normais numa certa

idade do homem e explica assim a teratologia pela

embriologia.

Não é justo, aliás, afirmar que a degenerescência dos

criminosos exclui a existência de um tipo, porque muitos

desses caracteres são comuns a todos os degenerados: isto é

verdadeiro muitas vezes, mais certo ainda é o fato de que

cada degenerescência (cretinismo, escrofulose, etc.) tem seu

tipo especial, mesmo o gênio. Compreende-se facilmente

lembrar: a blesidade (HAMON DU FOUGERAY) – substituição de uma

consoante forte por uma fraca ou vice-versa, da qual há muitas variedades:

rotacismo: má pronúncia do r ou seu uso em vez de l (sarto, recramação);

lambdarismo – troca do r e n por l (caloça, solvete); sigmatismo ou sicio –

troca do j, ch por ss ou z (zantar, sapéu); a fagolalia – palavras e sílabas

omitidas, principalmente no fim das frases e vocábulos (reposta, clamidade,

juntá, corredô); a embolalia (MERKE) – letras e sílabas ajuntadas

(arrespondeu, quelemente, mele, fulole); a gagueira – hesitação, silabação

precedida e intercalada dos fonemas quê, qui, guê, gui; o tartamudeio –

idem, idem, relativamente ao fonema ta...ta; o tataranho ou tatibitate –

troca, atrapalhação ou mistura de sílabas; a mogilalia – incapacidade de

pronunciar certos sons; a paralalia – troca de sons; a bradilalia – lentidão na

execução da fala. A sintaxe é descuidada: há falta de concordância e

supressão das partículas de articulação. Não podem compreender as

variações pronominais nem as flexões verbais e falam sem elas – pelos

nomes e infinitivos.” Afrânio Peixoto, com bom humor, observa que “este

estilo telegráfico foi posto em moda pelos ‘novos’ escritores: estilo

esfarinhado, solto, ‘picadinho’. O conteúdo das idéias é pobre e pouco vai

além dos trocos miúdos da vida corrente, sem nenhuma ilação mais alta ou

pensamento mais largo.” AFRÂNIO PEIXOTO, Medicina Legal, vol. II,

Livraria Francisco Alves, 1938. (N. dos TT.).

33

Page 34: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

tudo isso, quando se pensa na associação constante das más

conformações – assim a polidactilia se encontra

frequentemente combinada a alterações da íris, a retinite

pigmentosa – a espinha bífede com a hidrocefalia, com

deformidades dos membros inferiores – a hérnia com a

estreiteza das fossas nasais e com as ectopias testiculares – o

albinismo com a irregularidade da face, das orelhas, o

epicanto17, o pé chato18.

Liszt19, tendo adotado, como vimos, nossas

conclusões práticas, escreve que não pode aceitar nossas

teorias. Diz não aceitá-las porque muitas pessoas as

criticam e as combatem. Eis o destino de todos os que

ousam traçar novos caminhos no mundo científico: chocar

os sentimentos do público; enquanto que os ecléticos

adocicados, semelhantes a esponjas, absorvem tudo e, não

negando nada ou quase nada, deixam qualquer um satisfeito

dele mesmo, não encontrando quem os combata, estão

prontos a serem esquecidos de imediato.

Adolphe Guillot, em seu livro notável Les prisons de

Paris et les prisonniers, afirma que não crê, como eu, que a

fatalidade física domine o criminoso: “Se se estudasse o

17 EPICANTO – Prega no canto dos olhos produzida por excesso de pele na

base do nariz, como nos mongóis. Também chamada prega epicântica.

Enciclopédia Brasileira Mérito (N. dos TT.).18 FÉRÉ, La famille névropatique, 1876.19 Zeitschr. F. Strafsrecht, 1889.

34

Page 35: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

homem bem antes que se tornasse criminoso, ele estaria

marcado por mudanças que o crime e suas consequências

aportam mesmo a sua personalidade física”. Mas ele

esquece que estudamos essas anomalias nas crianças e que,

mesmo nelas, encontramos uma quantidade maior que entre

os adultos.

Guillot estabelece, com a ajuda de numerosas

observações pessoais, que o criminoso, nove vezes sobre

dez, raciocina seu crime. Eu sou quase de sua opinião:

muitas vezes, mas não tão frequentemente quanto ele

acredita, ele raciocina seu crime, ele o medita, mas não pode

evitar cometê-lo, quando o mais frágil raciocínio deveria ser

suficiente para dissuadi-lo. Ora, eis a anomalia; e as

meditações do criminoso são – veja-se! – bem pouco

profundas: têm sempre uma falha que os faz descobertos,

cedo ou tarde, pela justiça, porque casos de delinquentes

astuciosos a ponto de apagarem todas as pistas de seus

crimes são uma rara exceção.

A falha cabe, de preferência, à justiça, tão pouco

armada contra o crime, justamente por sua falta de

conhecimentos psicológicos e antropológicos. Quando

juizes de instrução, tão esclarecidos quanto Guillot,

acreditam sinceramente nos remorsos de criminosos tais

com Abbadie, Gamahut e Marchandon, quando levam na

conta do arrependimento as novas perversões que cometem

35

Page 36: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

após o crime, não é de estranhar que, bem frequentemente,

permaneçam impotentes para descobrir criminosos, mesmo

os mais estúpidos.

Para apoiar sua tese, Guillot cita um fato que seria

verdadeiramente decisivo. Roukavitchikoff, um dos

maiores filantropos da humanidade, que criou uma vila, a

Vila Roukavitchikoff para jovens detentos, narrou, no

Congresso de Roma, que, comparando as fotografias de seus

jovens criminosos na entrada e na saída, notou um

melhoramento da fisionomia que corresponderia a um

melhoramento da conduta: seus traços perderam, entre a

maior parte deles, aquilo que tinham de ameaçador, de

feroz, de bravio, para tomarem uma expressão que nos

pareceria mais doce. Ora, ele se enganou; não que mentisse,

sendo um dos filantropos mais angelicais, mais sinceros.

Foi sugestionado por sua grande obra que, todavia, não

creio inútil. Ele nos ofereceu, em Roma, um álbum

fotográfico. Eu o fiz nomear uma comissão da qual ele

mesmo fizesse parte para estudar esse álbum. Do relatório

dessa comissão resultou que, sobre 61 casos:

22 melhoraram sua fisionomia;

14 pioraram;

25 permaneceram estacionários.

Ora, dos 14 que pioraram fisionomicamente, 3

melhoraram moralmente e, dos 22 primeiros, certamente 3

36

Page 37: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

pioraram também moralmente. Essas cifras nos foram

dadas pelo próprio Roukavitchikoff. Mas como Guillot está

em contato direto com os fatos, é mais fácil discutir com

ele. Seria suficiente citar as páginas que escreveu, onde se

vê muito bem descritos os criminosos natos que se revelam

desde a primeira juventude.

“Entre todos esses criminosos, onde o nome adquiriu

uma notoriedade que lhes permite citar sem faltar aos

deveres da discrição profissional, não conheço nenhum que,

malgrado sua juventude, não tenha sido hóspede das prisões,

ou, ao menos, que não houvesse merecido lá estar.

Primeiramente a falta havia sido leve ou superficial, depois

deu lugar a atos mais graves e mais refletidos, os quais, a

seu turno, deram nascimento ao crime. Aos 17 anos,

Marchandon, o doméstico assassino, principiou cometendo

um roubo na casa de seus patrões; os pobres ficaram em

falta. A impunidade não fez mais que o encorajar. Os 17

dias de prevenção a que foi submetido não o corrigiram e,

tão logo em liberdade, roubou outra casa. Desta vez, foi

condenado a três meses de prisão e, mais tarde, a treze, por

outro roubo ainda mais importante.

“Os quatro jovens, dentre os quais o mais velho tinha

20 anos, que se apresentaram a Senhora Ballerich,

precipitaram-se sobre ela no momento em que abria a porta,

37

Page 38: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

estrangularam-na e esfaquearam-na. Foram todos

condenados.

“No dia em que o jovem rapaz vendedor de vinho,

Foulloy, surpreendeu seu patrão na adega, fraturando-lhe o

crânio a golpes de garrafa para roubá-lo, não apareceu

diante de nenhum tribunal; mas a instrução estabeleceu que,

antes de chegar a Paris, cometera, nas granjas onde

trabalhara, muitos pequenos roubos, pelos quais não fora

perseguido. As pessoas de sua região que o ouviram

disseram: ele é ladino, tem vícios, é extremamente astucioso

para defender-se; inteligente, sabia bem arranjar seu

negócio. Logo que fazia qualquer coisa, retirava-se muito

subtilmente. Muitas vezes – narrou um deles – predisse que

acabaria na prisão de forçados... Os jovens de sua idade

fugiam dele, que amava a leitura de maus livros, fazendo

chegar de Paris os Bandidos Célebres, manifestando sempre

o desejo de ter dinheiro.

“Citarei ainda um homem de 50 anos, pai de 17

crianças, sedutor de sua própria filha. A Corte condenou-o

a alguns anos por infanticídio e aborto. Nenhuma

condenação figuraria em sua ficha judicial, mas sua vida

não é mais que uma longa sequência de más ações.

Começou por ser um jogador, um homem de prazeres;

depois, por negócios necessariamente mal dirigidos,

procurou distrações nos vícios mais vergonhosos. Era um

38

Page 39: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

homem de notável inteligência e indomável energia. A

devassidão o perdeu e fez dele um feroz sectário.

Testemunhas relataram que, durante a Comuna, fez-se notar

por sua violência, querendo fazer explodir Paris, gritando

pelas ruas: Enquanto houver padres, estará tudo perdido. E,

erguendo a cabeça, respondia: Fui o primeiro a abrir fogo e

o último a retirar-me.”

Proal20 cai nos mesmos erros quando sustenta que os

criminosos não são jamais fracos de espírito, degenerados,

porque, numa coletânea de causas célebres, “ao lado de

camponeses e trabalhadores, vêem-se figurar homens que

exercem funções liberais com talento, ocupando cargos

elevados, ministros (Teste, Despan-Cubière, Clement

Duvernois, etc.), deputados, senadores, pares de França;

sobre esta lista de criminosos, vemos mesmo médicos e

magistrados. Os debates e a instrução não revelam qualquer

sinal de degenerescência física e de fraqueza de espírito

entre os doutores Palmer e La Pommerais, não mais que

sobre os doutores C. e X., há pouco condenado pela Corte

de Seine-et-Oise, e de Vaucluse, por haver, em substituindo

um cadáver, ajudado um escroque a enriquecer em

detrimento de uma companhia de seguros, outro por haver,

por rivalidade profissional, tentado envenenar seu colega. O

Presidente de Entrecastraux que cortou o pescoço de sua

mulher para desposar a amante, o Duque de Choiseul-20 Le crime et la peine, 1890.

39

Page 40: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

Praslin que cometeu um crime análogo, etc., nenhum deles

jamais foi visto como um degenerado. Fiz parte, diz ainda

Proal, há algum tempo, de uma câmara correcional que

condenou a muitos anos de prisão um velho subsecretário de

Estado do Ministério da Justiça e um advogado muito

famoso numa grande cidade, ambos levados a ações

criminosas por má conduta, amor ao luxo e aos prazeres.”

“Vice-versa – acrescenta ele – os simplórios estão

preservados do vício por seu espírito limitado (Nouvelle

Revue, 1890)”.

Ele esquece que a degenerescência não exclui o

talento nem mesmo o gênio, bem ao contrário21. Ele

esquece que nós mesmos admitimos, ao lado de criminosos

21 LOMBROSO, L’Homme de génie, 1ª ed., pág. 91, 305 e 464.

40

Page 41: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

natos, os criminosos de ocasião22 e os criminosos por

paixão23 que não são degenerados.

E, se Proal houvesse conhecido nosso criminoso

passional, teria melhor considerado esses casos muito raros,

tais como o de Entrecastraux que, após haver matado sua

22 CRIMINOSOS DE OCASIÃO – posto que predispostos

hereditariamente ao crime “não receberam da natureza uma tendência ativa

ao delito, mas aí chegam impelidos antes pelo aguilhão das tentações que lhe

oferecem, ou seu estado pessoal, ou o meio físico e social em que vivem, e

não reincidiriam se tais tentações desaparecessem”. São excessivamente

imprevidentes, mas seu senso moral é menos obtuso do que o do criminoso

nato. Neste, “o incidente que provoca o delito é simplesmente o ponto de

aplicação, por assim dizer, de um instinto já existente; é menos uma ocasião

do que um pretexto: no criminoso de ocasião, ao contrário, é o estimulante

verdadeiro que faz germinar em um terreno, sem dúvida favorável, germes

criminosos que não estavam desenvolvidos.” Antônio MONIZ SODRÉ de

Aragão. As três escolas penais – estudo comparativo, Livraria Freitas

Bastos, 1955. (N. dos TT).

23 CRIMINOSOS POR PAIXÃO – são indivíduos cuja vida anterior foi até

sem mancha, de um temperamento sanguíneo ou nervoso e de uma

sensibilidade exagerada. Cometem o crime, quase sempre na mocidade,

arrebatados pela violência excessiva de um sentimento indomável,

arrastados pelos vendavais da paixão – paixão sempre social, útil à

coletividade, como o amor, a honra, afeição à família, o sentimento

patriótico. Têm uma constituição que possui mesmo, por vezes, alguma

coisa da constituição do louco ou do epiléptico e seu transporte criminoso

pode ser uma manifestação disfarçada do temperamento destes. São homens

que “tendo uma força suficiente para resistir às tentações ordinárias e pouco

41

Page 42: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

mulher para desposar outra, não apenas se denunciou, como

ainda reclamou ele próprio sua condenação, quando poderia

aproveitar-se do direito de asilo, tanto fora nele potente o

remorso. Isto é o contrário do que fazem os verdadeiros

criminosos que querem subtrair-se à pena. Um magistrado

experiente não deveria acreditar nos propósitos e nas

declarações contrárias dos criminosos já na prisão, os quais

simulam arrependimento para zombar das pessoas honestas

e obter seu perdão. Lembremo-nos de Lacenaire que, no

último dia de sua vida, escrevia:

Bebamos à sabedoria

À virtude que a sustenta.

Tu podes, sem temer a embriaguez,

Ver todas as pessoas de bem

Joly e Proal criticam a teoria da hereditariedade do

crime, pois, muito frequentemente, os acusados têm

enérgicas, não na tem bastante para resistir às tempestades psicológicas que,

às vezes, atingem tal grau de violência, que pessoa alguma, por mais forte

que seja, poderia resistir.” Mostram-se “violentamente comovidos antes,

durante e depois do crime que não cometem (salvo limitadíssimas exceções)

às ocultas nem de emboscada, mas abertamente e, muitas vezes, com meios

impróprios, os primeiros que lhes vêm às mãos”. O delito é neles sempre

um fim e “não um meio de cometerem outro crime”; é sempre acompanhado

de remorso sincero que os leva a confissões completas e, não raro, ao

suicídio. Antônio MONIZ SODRÉ de Aragão, op. cit. (N. dos TT).

42

Page 43: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

parentes honestos. Mesmo entre os grandes criminosos, faz-

se esta constatação.

Tudo isso é verdade, mas é verdade também que o

maior número de criminosos vem de criminosos, ou de

alcoólatras ou de tísicos, etc. e retornam todos à

degenerescência sob outro nome. É sempre a exceção que

Proal toma por regra: conhecendo as tribos dos Lemaires,

dos Tanre, dos Chrétien, dos Jucke, dos Motgare, se o

número fosse tão pequeno, o carrasco, às vezes, e a

degeneração, sempre, se encarregariam de provocar sua

esterilidade.

Mas a este propósito, Proal, na Nouvelle revue, e Joly,

em seu Crime, esquecem suas primeiras reservas e chegam a

demonstrar que, entre os povos antigos, a moralidade era tão

grande quanto a presente, o que destruiria a teoria do

atavismo do crime.

“Onde existem – diz ele – sociedades que viveram

durante séculos fundadas sobre o que nós reprovamos, o

roubo, o incesto, o adultério, e desprezando o que nós

louvamos, a castidade, a propriedade, a família, a

caridade?”. Em toda parte o adultério é punido, o roubo é

um crime castigado com penas severas, mesmo entre os

antigos árias (Pictet, Les origines indo-européennes, III,

pág. 152), entre os antigos hindus (Manou, VIII, 302), entre

os hebreus (Êxodo, XII, 2), entre os antigos chineses (Chou-

43

Page 44: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

Kinh, parte III, cap. VII, II, § 15), entre os persas (id.,

Lajard, 485), entre os gregos, os romanos e os bárbaros.

Alguns crimes, o parricídio notadamente, parecem mesmo

haver sido menos cometidos que em nossos dias. “Os

persas, diz Heródoto, asseguram que jamais pessoa alguma

matou seu pai ou sua mãe” (L. I, § 137). Rômulo não

estabeleceu nenhuma pena contra o parricídio, porque tal

crime lhe parecia impossível; Plutarco diz que, durante seis

séculos, nenhum parricídio foi conhecido em Roma (Vie de

Romulus).

“Seguramente, ao lado de leis muito sábias,

encontramos, entre os povos antigos, leis iníquas, ao lado de

máximas morais muito puras, de costumes muito imorais.

Mas a violação da lei moral não supõe a ausência de sentido

moral. De outra parte, os costumes mais extravagantes,

sobretudo em matéria religiosa, não excluem o sentimento

da justiça”.

Proal não compreende que toma aqui a exceção pela

regra.

E, às exceções, ele deve procurá-las em tempos

relativamente modernos; porque o parricídio, ou ao menos a

morte dos velhos, era um verdadeiro rito religioso entre os

antigos.

Deveria ele, pois, demonstrar a moralidade nos povos

primitivos, porque o passado de 4 a 5 mil anos não

44

Page 45: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

corresponde ao homem primitivo que data de 100.000 anos

e do qual uma pálida imagem nos é dada pelos nativos de

Daomé, pelos hotentotes, pelos australianos de hoje.

Enfim, Proal acredita que invocamos contra o livre

arbítrio os resultados das estatísticas criminais, em

apresentando o número de homicídios, assassinatos,

incêndios, envenenamentos, roubos, etc., como o mesmo a

cada ano. Ele nos prova, justamente, que não é verdade.

Mas jamais pretendemos que o fosse. Acreditamos

que o número da cota de crimes é sempre o mesmo, quando

as circunstâncias exteriores são idênticas, e que ele muda

quando mudam as circunstâncias. Os roubos crescem em

tempos de penúria; as violações, em anos bons. Mas o que é

que isso prova em favor do livre arbítrio24? Se a vontade 24 LIVRE ARBÍTRIO – A Pena e a Escola Clássica – “A Escola Clássica

do Direito Penal, que recebeu do empirismo a noção da responsabilidade a

que a pena correspondia praticamente, tentou dar-lhe uma razão filosófica.

Todos os indivíduos infratores da lei divina ou humana eram passíveis de

pena: milhares de alienados, na Idade Média, e ainda nos tempos modernos,

responderam, na prisão, na fogueira, no suplício, aos crimes praticados, às

vezes apenas de serem loucos; mas, já recentemente, o espírito público

mudara, e PINEL, CHIARUGUI e outros conseguiram, no começo do século

passado, considerá-los doentes. Os juristas estabeleceram então que o

apanágio antigo, que filósofos e teólogos nos legaram, de um livre arbítrio,

isto é, a propriedade de nos decidirmos, por nós, sem interferência estranha,

pelo bem ou pelo mal, seria a causa, a razão de ser da responsabilidade. A

pena seria devida, quando responsável o culpado, porque, em condições de

saúde, não alienado (isto é, não alheio a si mesmo), gozava do seu livre

arbítrio. Se os códigos penais feitos segundo esse critério jurídico e

45

Page 46: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

humana varia segundo as ocasiões, não é ela,

evidentemente, escrava?25

Não responderemos aqui a certas críticas que nos

ridicularizam, porque estudamos muito certos detalhes da

vida somática dos criminosos, tais como as secreções, o

nariz, os cabelos, etc. – Não é uma censura que erguem

contra nós, mas talvez uma peça de acusação de depõe

filosófico não se exprimiram com clareza, pondo os nomes em todas as

letras, elas eram implícitas e os doutrinadores o declaravam sem

discrepância. Entretanto, o livre arbítrio, a liberdade, não existe, ao menos

nesse conceito filosófico absoluto, e seria absurdo fundar sobre ele o direito

de punir. Mais uma vez, filósofos, teólogos e juristas complicaram, sem

necessidade, a compreensão de um problema fácil, que lhes legara,

resolvido, a experiência de todos os tempos da humanidade. A pena

preexistiu a todas as hipóteses científicas, mais ou menos infelizes, que

tentaram explicá-la”. .” AFRÂNIO PEIXOTO, Medicina Legal, vol. II,

Livraria Francisco Alves, 1938. Observe-se que o autor em questão não era

adepto das teorias de César Lombroso. A obra citada é prenhe de críticas

contundentes ao tipo, às características dos criminosos, etc. Todavia, em

muitos trechos, a identificação de conceitos é quase completa. (N. dos TT.).

25 O número – escreve ele – de acusados de infanticídio dobrou de 1830 a

1860. De 1826 a 1830 era de 113; durante 30 anos, elevou-se; de 1856 a

1860 encontramos 252. Depois, desceu a 219 de 1876 a 1880 e, em 1887,

encontramos 176.

O número de acusados de abortamento, que não era maior que 12 de 1826

a 1830, elevou-se rapidamente a 48 de 1846 a 1850. Foi ainda acrescido do

dobro durante os cinco anos seguintes; é então de 88. A partir de 1861

produziu-se a mesma diminuição que já assinalei. Em 1885, o número

desses acusados não foi maior que 47; foi de 63 em 1886 e de 54 em 1887.

46

Page 47: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

contra eles mesmos. Eles nos recordam os gracejos dos

médicos de antigamente contra a auscultação, a percussão e

o estudo termométrico das doenças. Se eles não percebem a

importância desses detalhes não cabe a nós fazê-los

perceber. Do mesmo modo, quando Brunetière louva Tarde

de não opor cifras a nossas estatísticas, não é ele mais de

nosso século, nem mesmo do século passado; porque foi

assim, em deixando de lado o desnecessário, em calculando

tudo o que se pode calcular, para triunfo do número e do

metro, que nossa era científica ultrapassou as precedentes.

As variações são sobretudo muito consideráveis no número de violações e

de atentados ao pudor cometidos contra crianças. De 1826 a 1830,

contavam-se 139 acusados. Esse número, aumentando sensivelmente quase

a cada ano, foi de 809 de 1876 a 1880. Após alguns anos, uma notável

diminuição se produziu. Com efeito, enquanto o número desses acusados era

de 809 de 1876 a 1880, não foi mais que 732 em 1884, de 628 em 1885;

subiu um pouco em 1886 (645) e, na última estatística, aquela de 1887,

desceu de maneira sensível a 594.

O número de acusados de adultério ficou 20 vezes maior a partir de

1830. Até esta época, era de 92; elevou-se a 824 de 1876 a 1880. A lei do

divórcio dobrou o número. Com efeito, era de 1.274 em 1884, de 1.601 em

1885, de 1.687 em 1886 e de 1.720 em 1887.

Resulta das estatísticas que desde há 50 anos o número de crimes

inspirados pela cupidez aumentou em muito. Era de 87 em 1838 para

100.000 habitantes; de 149 em 1887. Coisa digna de notar, é que de 1838 a

1848, houve menos crimes que tivessem por móvel a cupidez. Quanto não

se escreveu, todavia, sobre o espírito de cupidez da geração de 1830 a 1848!

A estatística criminal vem para retificar a lenda.

47

Page 48: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

Assim é que me vanglorio de haver enriquecido esta

edição com novos estudos sobre as anomalias do esqueleto,

dos músculos, do nariz, sobre o criminoso louco, passional e

o de ocasião, sobre o campo visual, o gosto, o olfato, as

secreções; sobre os trabalhos artísticos e literários dos

criminosos.

Eu sou – dizem – um revolucionário. Isto me importa

pouco; porque, a esta acusação, posso opor outra igualmente

erguida contra mim: aquela de haver, em minhas últimas

conclusões (necessidade do crime, teoria da defesa social),

ressuscitado uma teoria ultrapassada ou que, ao menos, não

está mais em voga comparativamente àquelas dos que eu

chamaria, de bom grado, pequenos mestres da ciência que,

de ordinário, aguardam, para formar uma boa opinião

científica, a última moda da Sorbonne ou a Feira de

Leipizig. Esta acusação, aliás, cai em falso, porque sábios

ilustres – Breton, Ortolan, Tarde, Ribot, Despine na França

– Holtzendorf, Grollmann, Hoffmann, Hommel, Ruf,

Feuerbach na Alemanha – Wilson, Thompsonn, Bentham,

Hobbes na Inglaterra – Ellero, Poletti, Serafini na Itália –

sustentam todos, com novas armas, a antiga tradição, graças

à iniciativa vigorosa de Beccaria, de Carmignani e de

Romagnosi.

Mas admitamos que essa acusação seja

fundamentada; seria este motivo para rejeitar uma verdade?

48

Page 49: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

A verdade não tem, como principal caráter, o de subsistir

eternamente? Reaparecer, mais forte e mais viva,

justamente quando a acreditam sufocada sob os ouropéis da

moda e sob os obstáculos acumulados pelos retóricos ou

pelos estéreis esforços de alguns grandes espíritos

extraviados? Não estão as teorias do movimento

49

Page 50: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

molecular26, da eternidade da matéria27, mesmo hoje, vivas e

atuais, ainda que remontem aos tempos de Pitágoras?

Essas objeções, todavia, são sérias; elas têm por

autores sábios respeitáveis; mas há uma outra, lançada por

homens bem inferiores em saber e em boa fé, e que, por ser

26 No Século XIX, a especulação sobre a natureza da matéria deu origem às

mais variadas obras de cunho científico. É de notar que, a partir de

constatações de ordem física, eram tiradas conclusões de ordem metafísica,

ao sabor do maior rigorismo lógico-formal. Senão vejamos: ‘O

MOVIMENTO ESTÁ POR TODA PARTE, O REPOUSO ABSOLUTO

NÃO EXISTE EM PARTE ALGUMA. – Por movimento deve-se entender

não apenas o movimento visível das massas totais, mas ainda o movimento

das moléculas componentes das massas; este movimento que, no presente,

escapa a nossos olhos assim como a nossos instrumentos, é posto fora de

dúvida pelas verificações experimentais’. FERRIÈRE, Émile. La cause

première d’après les donnèes expérimentales, Alcan, Paris, 1897. (N. dos

TT.).27 À época, a teoria da eternidade da matéria era assim sustentada: ‘A

MATÉRIA NÃO PODE SER DESTRUÍDA NEM CRIADA; ELA NÃO

SOFRE SENÃO TRANSFORMAÇÕES. – A Química tem demonstrado

experimentalmente, com certeza absoluta que: 1º) É impossível criar a

menor porção de matéria; 2º) É impossível destruir a menor porção de

matéria; 3º) Quaisquer que sejam as variações de estado ou de combinações,

o peso* da matéria é invariável. Daí resultam os três teoremas metafísicos

seguintes: 1º - A matéria não teve começo, pois que não pode ser criada; 2º -

A matéria não terá fim, pois que não pode ser destruída; 3º - A matéria não

faz senão experimentar mudanças de forma, pois que, em todas as

combinações, seu peso* permanece invariável. As palavras criação,

destruição perderam seu sentido primitivo; elas não significam mais hoje

50

Page 51: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

anônima, vaga impalpável e pouco digna de resposta. Não

é, entretanto, menos perigosa: é aquela que chamarei de

objeção da lenda.

A lenda pretende que esses trabalhos tendem a

destruir o código penal, a deixar toda liberdade aos

bandidos, a solapar a liberdade humana.

Não vêem, todavia, que, se diminuímos a

responsabilidade do indivíduo, nós a substituímos por

àquela da sociedade que é bem mais exigente e mais severa?

Que, se reduzimos a responsabilidade de um grupo de

criminosos, longe de pretender amenizar sua condição, nós

reclamamos para eles uma detenção perpétua? Esta

detenção perpétua, a sociedade moderna a repele, para

senão passagem de uma forma à outra forma. Quando o espírito fixa sua

atenção sobre uma forma que começa, ele dirá que há criação; ele chama

destruição ao fim desta mesma forma, a qual dá lugar a uma outra. Quanto à

eternidade material, seu peso*, através de suas metamorfoses indefinidas,

permanece absolutamente invariável. Em Química, essas verdades são assim

formuladas: Nada se perde, nada se cria; não há senão mudanças de forma.

Dá-se a esta lei o nome assaz impróprio, mas consagrado pelo uso, de Lei da

Conservação da Matéria. É a Lavoisier que se deve a demonstração

experimental desta lei capital. O instrumento de medida da matéria é a

balança*. Em Metafísica, como chamamos eterno àquilo que não pode ser

criado nem destruído, a expressão exata é Lei da Eternidade da Matéria”.

FERRIÈRE, Émile. La cause première d’après les donnèes

expérimentales, Alcan, Paris, 1897. * Note-se que, mais tarde, as mesmas

premissas deveriam ser expressas com a palavra massa vez de peso. (N. dos

TT.).

51

Page 52: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

render homenagem a princípios teóricos; mas não sem se

expor, neste ponto, a grandes perigos. E, além disso, não a

vemos adotar, com infinitamente mais de incerteza, de

irregularidade e de injustiça, uma semicontinuidade da pena,

sob a forma de colônia penal, de vigilância, de residência

forçada, etc., medidas incompletas, de eficácia duvidosa,

mas em meio as quais ela se jacta de obter a segurança que

as leis ordinárias não podem fornecer?

As novas medidas penais que propomos excluem a

nota infamante, eu concordo; mas aquela que nossos

próprios juristas não crêem mais necessária; eles a

consideram como uma transformação atávica, um resto da

antiga vingança que vai desaparecendo em nossos dias. E

quem, pois, ousaria repelir tais vantagens com o objetivo

único de justificar um sentimento tão odioso? Quem não vê

que nosso tempo tem por evangelho a máxima da Senhora

de Staël: Tudo compreender e tudo perdoar!

Resta o argumento tirado do exemplo. Mas o

exemplo subsistiria, já que a detenção perpétua significa

alguma coisa bem penosa; aliás, o exemplo não é mais o

objetivo principal que persegue o legislador.

Teme-se atentar contra a moral, em reduzindo, de um

lado, a estima, de outro, o desprezo que se liga a esses atos

subtraídos ao livre arbítrio. Má razão! Primeiramente,

parece pouco sério estabelecer um freio desta importância

52

Page 53: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

sobre um fato controverso; a seguir, ninguém pensa em

abalar o mundo do sentimento nem o conseguiria.

O critério do mérito não transformará este ponto,

quando a maior parte das virtudes e dos vícios forem

reconhecidos como efeitos de uma troca molecular.

Recusa-se admirar a beleza quem nela vê um fenômeno

completamente material e independente da vontade

humana? O diamante não tem qualquer mérito em brilhar

mais que o carvão; que mulher, todavia, rejeitaria seus

diamantes, sob o pretexto de não serem eles mais que

carvão?

Considerai todos os antropólogos; nenhum deles

gostaria de apertar a mão de um celerado; nenhum poria, no

mesmo nível, o cretino e o homem de gênio, ainda que saiba

que a estupidez de um e a inteligência de outro não são mais

que resultados orgânicos. Julgai, pois, o que fará o povo

que nada compreende dessas idéias.

Nós coroaremos sempre de flores os túmulos dos

grandes homens e atiraremos ao vento as cinzas dos

malfeitores.

Pretender que se destrói a liberdade humana, em

negando certos princípios de moral, é renovar o exemplo

daqueles que acusaram Galileu e Copérnico de perturbar e

de destruir o sistema solar, quando ensinavam que a Terra

gira, e o Sol permanece móvel. O sistema solar dura

53

Page 54: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

sempre; será o mesmo como o mundo moral, qualquer que

seja o critério empregado para o examinar. As doutrinas

permanecem nos livros, os fatos percorrem seu curso. Os

fatos não são senão provados.

Acrescentarei mesmo que o desprezo não se liga

sempre ao crime nem à pena. Desprezamos a mulher

adúltera; admiramos – quase – o homem que se encontra na

mesma situação. Às escroquerias dos banqueiros poderosos,

chamam-se belos golpes. Os crimes e delitos políticos não

merecem nenhum desprezo e todavia são visados pelo

código penal; a pena que se lhes aplica é legitimada pelo

misoneísmo que está no coração do homem e pela

necessidade de defesa social28.

De outro lado, o desprezo pode bem contribuir para

desviar do crime um homem não ainda corrompido, mas os

criminosos natos, os criminosos de hábito não dão a isso

qualquer importância; sentem-se, de preferência, excitados

pelo rumor, mesmo pela oposição, que se faz em torno

deles.

É, aliás, bem verdade que, em se admitindo a

identidade do louco moral e do criminoso nato, se

reconheceria a existência dos semiloucos e dos criminosos

atingidos de loucura sistemática. O advogado hábil,

lamentando-se perante um juiz que faz do livre arbítrio o

fundamento da penalidade, poderia paralisar a obra da 28 LOMBROSO E LASCHI, Il delito politico. – Fratelli Bocca, 1890.

54

Page 55: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

justiça, mostrando um doente onde outros veriam um

culpado.

Mas quê? Deveremos falsificar, rejeitar a verdade,

porque a lei, em lugar de admiti-la, engaja-se numa falsa via

pela qual se estuda o crime sem estudar o culpado? Não é

mais justo, nesta alternativa, modificar as leis conforme os

fatos, do que falsificar os fatos para acomodá-los às leis, e

isso com o único objetivo de não perturbar a tranquilidade

serena de alguns homens a quem desagrada conceder sua

atenção a esse novel elemento com que foi enriquecido o

campo de nossos estudos?

Aguardemos ainda se as medidas tomadas fora de

nossas conclusões, e em oposição a elas, resolverão, ao

menos, a seguridade social, objetivo supremo de todo

legislador. Mas quem não sabe que os penalistas mais

honestos e inteligentes concordam, na prática, que a obra da

justiça é, de qualquer sorte, um trabalho de Sísifo, uma

imensa fadiga que não chega a qualquer resultado, que os

meios sugeridos pelas escolas mais modernas, a liberdade

provisória, o júri, a liberdade condicional, em lugar de

diminuir crime, aumentam-no e, muitas vezes, limitam-se a

transformá-lo?

Que pensar, igualmente, dessas outras medidas que se

dão pela última palavra da ciência e que são, ao contrário, a

mais clara demonstração de falta absoluta de senso prático?

55

Page 56: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

Vou falar, aqui, do abrandamento das penas aplicadas aos

reincidentes, da impunidade imposta às simples tentativas

delituosas, da extensão do júri às transações correcionais.

Pode-se dizer o mesmo das conclusões práticas

sustentadas por nossa escola? Dir-se-á que ela não conjura

em nada o perigo, que é absurda quando propõe criar asilos

criminais, prisões para seres incorrigíveis e a substituição da

primeira condenação por uma multa ou por um castigo

corporal? Cuida-se, da mesma maneira, de projetos de lei

sobre o divórcio, sobre o trabalho de crianças, sobre abuso

do álcool, que têm por objetivo prevenir a violação, o

adultério e o homicídio? Dir-se-á que erramos em pedir que

o culpado seja constrangido a reparar o dano causado na

razão de sua força ou de sua riqueza?

Negareis também que, nos processos de pederastia, de

envenenamento, de homicídio, onde as provas

frequentemente faltam, a introdução do critério

antropológico possa ser de uma utilidade bem maior que um

simples traço anatômico ou que uma dessas reações

químicas das quais, a cada ano, vemos a queda e a

ressurreição?

Quem pode negar, por exemplo, que, em certos casos,

a tatuagem, pela obscenidade do desenho, pela parte do

corpo onde é praticada, revela o crime de pederastia bem

56

Page 57: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

melhor do que todas as lesões anatômicas, como nos

demonstra Lacassagne?

Mesmo nas questões de direto puro, esses estudos

encontram uma larga aplicação. Assim, a teoria que

substitui o direito de defesa social pela doutrina religiosa do

pecado representada pelo livre arbítrio, pela crença nos

perigos que pode fazer correr o culpado, fornece uma base

sólida à filosofia penal que até aqui oscila, sem cessar, de

um lado a outro, sem produzir qualquer resultado. Sigais

com boa fé, por critério, o temor do culpado; por indício, os

caracteres físicos e morais do criminoso nato; e tereis a

solução do problema relativo à tentativa, em termos da

inércia culpável seguida de morte que se deve punir quando

se trata de um desses miseráveis (Garofalo, Criminologie,

1885).

Vós aprendereis também, por esse meio, que, se os

coeficientes do crime variam segundo os climas, a natureza

dos castigos deve sofrer uma variação análoga, na falta da

qual a lei, posta em contradição com a opinião pública,

restará letra morta. É daí que resultam essas absolvições

que, no fundo, constituem um novo código regional em

oposição ao escrito: há nisso uma demonstração prática,

infelizmente muito reproduzida e muito perigosa, da

influência do clima sobre a moral. Os jurados das regiões

meridionais olham certos tipos de crimes com um olhar bem

57

Page 58: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

diferente daquele do Norte. “Na província d’Aosta –

escreve Moran – o júri faz mais caso da vida que da bolsa;

no vale de Mazzara, é mais indulgente para com atentados à

mão armada; segue-se daí que os jurados pronunciam

veredictos os mais diversos nas duas regiões”.

Poder-se-ia dizer o mesmo da violação, da Camorra e

da Máfia que são julgados com muito mais indulgência no

Sul que no Norte da Itália.

E isso responde àqueles meus adversários que, sem

negar o resultado de minhas pesquisas, pretendem que elas

não podem ser aplicadas nem às ciências jurídicas nem às

ciências sociais.

Quanto àqueles que nos acusam, tão docemente, de

procurar por esta novidade os aplausos populares, fingem

eles ignorar que os loucos – venham eles das academias ou

das ruas – têm sido e serão sempre os inimigos mais

obstinados de toda novidade. O progresso não se efetua

senão às expensas de seu autor. Eles fingem ignorar que

temos sido expostos aos ressentimentos dos reacionários, às

zombarias dos pequenos mestres, aos olhos dos quais uma

coisa nova não é boa, se não for tão superficial quanto a

moda que não exige nem fadiga nem trabalho sério.

E é ainda mais espantoso ver tais adversários darem-

se por defensores da liberdade, sob o pretexto de defesa do

livre arbítrio. Eu não tenho senão uma palavra para lhes

58

Page 59: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

responder: que lancem os olhos em torno deles e que

neguem a seguir que a teoria do livre arbítrio não seja a

doutrina preferida dos inimigos do livre pensamento e de

toda igreja ortodoxa! Oh! Que eles neguem, se puderem,

que seus discípulos se encontram, frequentemente, menos

entre as vítimas do que entre os cúmplices do despotismo!

Não me posso vangloriar de haver alcançado, mesmo

de longe, a solução ideal do problema. Por mais que avance

no caminho que tracei, por mais que pareça ao homem, de

pé sobre a montanha, ver o horizonte alargar-se diante dele,

mais se desfazem, ao mesmo tempo, os contornos da

planície.

Assim, entre o criminoso de gênio e a loucura dos

malfeitores, há um intervalo que seria bem difícil de

preencher. A mesma distância separa o mundo dos

escroques daquele dos assassinos.

De outra parte, estranho à ciência do Direito, não me

posso jactar de haver entrevisto todas as aplicações que se

podem fazer de minhas pesquisas; e eu não ignoro que

apenas a prática consagra as teorias.

Mas tais lacunas são amplamente preenchidas por um

certo número de revistas: os Archives d’anthropologie

criminelle, de Lacassagne; a Zeitsch f. gedammte

Strafsrecht, de Liszt; a Rivista sperimentale di freniatria, de

Reggio; a Rivista di filosofia scientifica, de Morselli; meu

59

Page 60: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

Archivio di psichiatria, scienzia penali e antropologia

criminale, de Turin; os Archives psychiatriques et légales,

de Kowalewski; o Messager de psychiatrie, de

Mierzeiewski; o Bulletin de la société d’anthropologie, de

Bruxelas; a Revue philosophique, de Paris; a Revue

scientifique, de Richet. Todas essas publicações sinalam ao

público as descobertas feitas dia a dia por esses homens de

talento que têm muito desejado vir em minha ajuda.

Para completar e consolidar ainda o edifício, tenho a

minha disposição uma biblioteca inteira: a Criminologie, de

Garofalo; o Omicidio, de Ferri e sua Sociologia criminelle,

1894; o estudo antropológico e jurídico, Sull’aborto ed

infanticidio, de Balestrini; o estudo de Marro, Sur les

caracteres des criminels; aquele de Lacassagne sobre Le

Tatouage; a Criminalité comparée, de Tarde; as Maladies

de la volonté, de Ribot; as Sociétés animales, de Espinas; os

Symbolismes dans le droit, de Ferrero; a Foule criminelle,

de Sighele e seu Crime à deux; os trabalhos de Flesch, de

Sommer e de Knetch; de Drill, de Roussel, de Kurella, Baer,

Dotto, Ottolenghi, etc.

Mas, mais ainda do que com esses sábios, conto com

o apoio daquele que marcou o pensamento moderno, diante

do qual empalidecem as sombras lívidas dos críticos,

perdendo a respiração – conto com o apoio de Taine, desse

mestre de nós todos, desse grande mestre

60

Page 61: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

...da cui io tolsi

Lo... stile che mi ha fatto onore

(Dante).

É por isso que quero consagrar por essas linhas, como

que com um amuleto científico, as primeiras páginas dessa

obra.

Turin, 31 de dezembro de 1894.

C. Lombroso.

ANEXO

Prefácio do Dr. Ch. LetourneauEste prefácio acompanha a edição francesa, Alcan, Paris, 1887, baseada na 4ª edição Italiana.

Os editores desta obra fizeram bem em encarregar-me

de apresentá-la ao público francês, mas foi tomar um tomar

uma precaução quase inútil. O Homem Delinquente teve três

61

Page 62: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

edições na Itália e é conhecido na Europa por todos aqueles

a quem interessa a filosofia do Direito Penal. No entanto,

procurarei reconhecer a honra que me foi feita, resumindo a

idéia geral do livro de Lombroso.

Para bem compreender essa idéia, contudo, é

necessário conhecer a origem e a evolução do sentimento de

justiça, hoje inato na maior parte dos civilizados. Como

todas as origens, esta é muito simples. O primeiro móvel

que suscitou, na consciência de nossos ancestrais selvagens,

um vago sentimento de justiça foi simplesmente a

necessidade de defender-se, a resposta reflexa que, no

homem e no animal, faz, de maneira instintiva, devolver

golpe por golpe. No animal, resulta em ações

mecanicamente executadas, não deixando, na consciência,

senão traços fugidios; no homem, por grosseiro que ele seja,

mas vivendo em sociedade, a repetição das agressões e das

resistências acaba por dar a idéia de contrabalançar, mais ou

menos exatamente, os golpes recebidos e as vinganças

satisfeitas. Formulou-se então a grande lei da justiça

primitiva, a lei do talião29, tão bem resumida no adágio

29 “O instinto reflexo de defesa, – diz Letourneau, – é a raiz biológica das

idéias de Direito, de justiça, pois que ele é, evidentemente, a base da

primeira das leis, da lei do talião”. Que as noções de que ele trata tenham

uma base biológica, nada de mais verdadeiro; mas que esta raiz seja

unicamente, ou principalmente, o instinto reflexo de defesa, eis que está

muito pouco demonstrado. Em nossa opinião é também, – e antes de tudo, –

o instinto de simpatia, condição primeira e indispensável a todo grupo social,

62

Page 63: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

semítico: olho por olho, dente por dente. Esta lei do talião,

nós a reencontramos no tempo e no espaço em todas as

raças pouco desenvolvidas. Na Austrália, resgata-se um

crime, antes, uma injustiça, permitindo à pessoa ofendida ou

aos seus parentes devolver ao ofensor golpes de lança em tal

ou qual parte do corpo, segundo a natureza e a importância

do dano causado. Com maior ou menor simplicidade, esta

forma primitiva de justiça existe em todas as sociedades

selvagens ou bárbaras. O talião não é apenas um direito: ele

é um dever. Vergonha e desonra àquele que não vinga as

injustiças, danos ou ofensas infligidas a ele ou aos seus.

Quando a comunidade ou, antes, os chefes que a

representam reivindicam ou se arrogam o direito de punir e,

sobretudo, de receber as compensações consideradas como

os equivalentes dos delitos e dos crimes, a consciência

pública protesta longo tempo e os costumes prejudicam a

justiça legal. O direito de vingança pessoal deixou, de resto,

traços na maior parte dos códigos escritos. O artigo 324 do

Código de Napoleão declara ainda que o ofendido pode

atacar e matar, sem outras formas de processo, o homem

pela comunicação contagiosa de emoções, de desejos e de idéias. TARDE,

Gabriel. As Transformações do Direito, Capitulo I, Direito Criminal,

página 13, 7ª edição, Paris, 1912. (N. da T.).

63

Page 64: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

que encontrar fechado em sua casa com a mulher, a filha ou

a irmã do dito ofendido.

Mas, mesmo quando o direito de vingança foi

subtraído aos particulares, o poder legal substituiu-se às

suas reivindicações, comportando-se quase como o fariam

os próprios ofendidos; a lei não é, assim, senão a expressão

da vingança social. O que importa é castigar o delinquente,

fazê-lo sofrer. As penalidades legais começam por ser

atrozes; a morte é prodigalizada, mas a morte não é o

bastante; é necessário que o homem considerado culpado

sofra. Em nossa Idade Média européia, prodigalizavam-se

sem medida as mutilações e as torturas: a amputação do

nariz, das orelhas, dos lábios, da língua, a roda, a fogueira, o

esquartejamento. Os falsificadores de dinheiro eram

fervidos em óleo; os culpados de alta traição tinham o

ventre aberto e as entranhas arrancadas e queimadas. As

prisões eram terríveis. Os detentos, às vezes encerrados em

jaulas de ferro propositadamente muito pequenas, eram

sobrecarregados por correntes de enorme peso, coleiras de

ferro, etc; não se lhes devia e não se lhes dava senão pão e

água. Enfim, fazia-se do processo um jogo; a tortura era

aplicada, muitas vezes, com base em simples indícios.

Castigava-se por castigar. Mas todo esse tenebroso passado

é recente, e seu espírito vive ainda nos códigos modernos e

na consciência dos juízes que os aplicam.

64

Page 65: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

Foram as doutrinas metafísicas, – virtualmente

arruinadas pelos progressos da ciência, – que colocaram à

vontade a consciência dos juízes e dos legisladores. A

despeito dos fatos que protestam com estrondo, ensina-se e

afirma-se que o homem é livre, sempre livre, para realizar

ou não tal ou qual ação. Cometa ele atos reputados como

imorais ou ilegais, trata-se de maldade pura, e a transgressão

cometida exige uma punição, uma vingança de preferência.

Esta vingança seria útil, inútil ou mesmo nociva ao corpo

social; eis aí questões com as quais não havia preocupação,

com as quais, até agora, não há preocupação. Sem dúvida, a

penalidade tornou-se menos selvagem graças, em geral, ao

abrandamento dos costumes, mas não se tornou, por isso,

mais perspicaz; inspira-se sempre num vago sentimento de

justiça, numa cólera legal, eco enfraquecido do antigo talião

da ancestralidade.

Quero falar, bem entendido, da justiça oficial, porque

a grande evolução intelectual que rapidamente nos arrebata

faz-se sentir nesse domínio, como em todos os outros. A

investigação científica examinou atentamente e pôs a nu as

origens de nossas idéias, de nossos sentimentos de justiça e

das leis repressivas que disso resultam. A antiga filosofia do

direito penal inspira-nos, hoje, piedade. O livre-arbítrio e a

vingança: tal constitui uma base bem frágil e um objetivo

bem miserável. Nós sabemos que, o que quer que aconteça e

65

Page 66: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

o que quer que seja, o homem obedece, sempre e

fatalmente, ao motivo mais forte; pensamos, de outra parte,

que, se a sociedade tem, de modo incontestável, o direito de

defender-se, é, em qualquer caso, indigno dela vingar-se;

que a repressão penal não pode e não deve ser ditada senão

por razões de utilidade social cientificamente demonstrada.

A antiga ciência jurídica limitava-se a compilar e a

comentar os textos. Uma nova escola nasceu, a escola

antropológica que, deixando de lado os códigos e as

fórmulas, pôs-se a estudar o homem do ponto de vista da

criminalidade. Trata-se da escola antropológica jurídica ou

criminal. Ela tem notáveis representantes em todos os países

da Europa; ela os tem, sobretudo na Itália, onde Lombroso,

Garofalo, Ferri, etc. criaram toda uma literatura especial e,

para sempre, arruinaram as veneráveis e carcomidas teorias

da antiga criminalidade.

Essa enquete científica, minuciosamente feita e por

longo tempo continuada, trouxe à luz um fato da mais alta

importância: a existência de um tipo humano voltado ao

crime por sua própria organização; de um criminoso nato,

constituindo o grosso batalhão daquilo que,

metaforicamente, se tem chamado “o exército do crime”. É

à descrição, ao estudo deste criminoso nato, do triplo ponto

de vista físico, moral e intelectual, que é consagrada a

presente obra.

66

Page 67: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

O criminoso completo, reunindo a maior parte dos

caracteres de seu tipo, tem, em geral, uma pequena

capacidade craniana, uma mandíbula pesada e desenvolvida,

uma grande capacidade orbital e índice orbital análogo

àquele dos cretinos, arcadas superciliares salientes. Seu

crânio é quase sempre anormal, assimétrico. A barba é rala

ou ausente, mas a cabeleira é abundante. A inserção das

orelhas é comumente em asa. Muito frequentemente o nariz

é torcido ou achatado. A fisionomia é, de ordinário,

feminina no homem, viril na mulher. A saliência mongólica

das arcadas zigomáticas não é rara.

Os criminosos são sujeitos ao daltonismo; a

proporção de canhotos é tripla entre eles. Sua força

muscular é fraca na mão e na tração, mas eles são,

frequentemente, de uma extraordinária agilidade.

As degenerescências alcoólicas ou epilépticas

atingem-nos em altas proporções.

Os elementos histológicos de seus centros nervosos

são, em larga medida, atingidos por pigmentações,

degeneração calcária, esclerose, etc.

Eles enrubescem dificilmente, e todas as variedades

da sensibilidade são, entre eles, muito obtusas.

Sua miséria moral corresponde à sua miséria

orgânica; são loucos morais.

67

Page 68: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

Suas tendências criminosas manifestam-se desde a

infância, pelo onanismo, a crueldade, a tendência ao roubo,

uma excessiva vaidade, a astúcia, a mentira, sua aversão aos

hábitos de família, sua resistência à educação, seu caráter

impulsivo. Esses traços morais persistem e dão ao criminoso

adulto uma fisionomia mental toda particular. O criminoso

nato é invejoso, vingativo; ele odeia por odiar; ele é

indiferente às punições e sujeito a acessos de fúria sem

causa, às vezes, periódicas.

O criminoso nato é preguiçoso, devasso,

imprevidente, impulsivo e poltrão; jogador.

Ele não é susceptível de remorso e frequentemente

abandona-se com alegria aos seus instintos culpáveis.

Os criminosos têm um vivo e precoce amor pela

tatuagem que é, muitas vezes, cínica e praticada mesmo

sobre os órgãos sexuais.

Sua escrita, quando eles sabem escrever, é

frequentemente toda particular; sua assinatura, complicada,

ornada de arabescos.

As gírias criminais, muito difundidas e muito

análogas em diversos países, têm por principais caracteres

as abreviaturas e a tendência a designar os objetos por um

de seus atributos; malgrado sua aparente inconstância, estas

gírias são cheias de arcaísmos.

68

Page 69: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

Em suas associações, os criminosos retornam às

formas sociais primitivas, à ditadura e aos códigos

draconianos.

Eu resumi, tão brevemente quanto possível, os

amplos resultados dos belos estudos contidos no livro de

Lombroso. Que, por muitas características, o retrato do

criminoso nato lembre aquele das raças inferiores, não se o

poderia negar. A quais causas gerais deve-se atribuir a

persistência, no seio das sociedades ditas civilizadas, deste

tipo inferior, o criminoso? Ao atavismo? Seguramente. Não

é mais duvidoso que descendemos de ancestrais tão

grosseiros, tão selvagens quanto as mais atrasadas raças

contemporâneas; e nós sabemos que, nas sociedades

primitivas, a maior parte das ações, hoje reputadas

criminais, é perfeitamente lícita, e tais ações são mesmo

admiradas às vezes. No sânscrito, diz-nos Pictet, existe uma

centena de raízes apenas para exprimir a idéia de matar e de

roubar. O atavismo, porém, não explica tudo. Muitos traços

característicos do criminoso nato são patológicos, são

paradas de desenvolvimento ou degenerescências.

Estamos desarmados contra os retornos atávicos, mas

seria o mesmo quanto à degeneração alcoólica ou

epiléptica? De modo algum. Aqui os fatores nocivos são de

ordem social e, consequentemente, podemos dominá-los.

69

Page 70: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

Vimos primeiro quais consequências práticas

Lombroso e sua escola tiraram de suas interessantes

pesquisas.

Primeiramente, constataram a impotência das

medidas repressivas e do regime penitenciário em vigor na

maior parte dos países civilizados. Nada, com efeito,

proclama mais alto esta impotência que o número de

reincidências, sempre crescente, na medida em que se é

mais hábil e mais cuidadoso em registrá-las e na medida em

que atingem 40% na França (1877-78) e 70% na Bélgica.

Considerando o criminoso nato como absolutamente

incorrigível, a nova escola de antropologia jurídica reclama

para ele, corajosamente, a detenção perpétua e, ao mesmo

tempo, a abolição das liberdades provisórias e do direito de

graça. Parece-me aqui ir um pouco longe. Importa, eu creio,

não substituir a selvagem e pouco inteligente crueldade dos

velhos códigos por uma sorte de dureza impiedosa decretada

em nome da ciência. A incurabilidade de um bom número

de criminosos não está ainda suficientemente demonstrada e

não o será antes que, – segundo o desejo muito sensato de

Lombroso, – se cuidem e se tratem dos criminosos natos em

asilos especiais análogos aos nossos asilos de alienados.

Atualmente, diz Lombroso, a instrução dada em

nossos estabelecimentos penitenciários não tem outro efeito

senão que o de melhor armar o criminoso e o de aumentar o

70

Page 71: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

número de reincidências, porque é uma instrução puramente

alfabética e totalmente insuficiente. Sobre esse ponto,

Lombroso parece-me ter toda razão e sua crítica vai além

das escolas penitenciárias. A maior proporção dos delitos de

fraude, dos envenenamentos, etc., no seio das classes ditas

esclarecidas, prova bastante que o alfabeto não faz milagres

e que a educação intelectual tem necessidade de ser

redobrada pela educação moral.

A nova escola propõe ainda, – e, aqui, não se saberia

senão aprová-la, – corrigir a insuficiência das medidas

repressivas atuais, por aquilo que Ferri chama os sustitutivi

penali, a saber: através de boas leis sobre a produção e a

venda a varejo do álcool, sobre o divórcio, pela difusão de

escolas laicas com professores casados, por recompensas

concedidas às ações virtuosas, por taxas impostas aos

relatórios dos processos criminais, pelo estabelecimento de

asilos para a infância, etc.

Seguramente, tudo isso é tão louvável quanto

desejável, mas é preciso acrescentar uma reforma profunda

e inteligente do regime penitenciário e reformas sociais não

menos radicais, caso se queira combater o mal ao mesmo

tempo em que seus efeitos e suas causas.

A nova escola parece-me muito levada a considerar a

reincidência como uma ferida incurável. Todavia Lombroso

constata, ele mesmo, mas sem aí se deter, que o sistema de

71

Page 72: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

penalidade gradual e individualizada (Zwickau-Irlande)

reduz a proporção das reincidências a 10%, e mesmo a

menos, a 2,68%. Mas remanejar a proporção das

reincidências a 2,68%, isso equivale quase a fazê-las

desaparecer; demonstra, além disso, que os criminosos

natos, absolutamente incorrigíveis, são em número bastante

pequeno.

A esse respeito, não pude senão reproduzir algumas

reflexões que me foram inspiradas outrora por uma visita à

penitenciária de Neuchâtel (Suíça): “Nossos criminalistas

fanáticos, nossos legisladores inexperientes, para quem a

punição do criminoso é uma represália, uma vingança

social, todos esses espíritos levianos ou estreitos, aos quais

não se deve deixar de repetir, segundo a expressão de

Quételet, que é a sociedade que prepara os crimes; todos

esses pilotos cegos dos Estados modernos, para os quais o

homem não é modificável nem educável, que colocam em

toda parte a sentimentalidade e a rotina em lugar da

utilidade social, poderiam ver, bem perto de nós, na

penitenciária de Neuchâtel, aquilo que se pode obter com

sistema, – tão humano e tão científico, – de W. Crofton. Ali,

muito longe de considerar o condenado como um

reprovado, aplica-se em despertar, no seu coração, a

esperança, a mostrar-lhe que não se sente, contra ele, nem

ódio nem cólera, a persuadi-lo de que ele é, em ampla

72

Page 73: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

medida, o árbitro de seu destino. Ele é tratado, não como um

monstro que deve sofrer e expiar, mas como um doente,

como um amigo extraviado que se quer reconduzir ao bom

caminho. Ele é instruído, ensinado moralmente, uma

profissão lhe é dada; faz-se-o passar, gradualmente, da

prisão celular à liberdade condicional com vigilância

benévola. Em uma palavra, faz-se dele um homem. Apenas,

para essa necessidade, são necessários filantropos

esclarecidos; e é mais cômodo não ter senão carcereiros.”

Eis aí o regime curativo. O verdadeiro regime

preventivo não poderia consistir senão que em profundas

reformas sociais. O criminoso nato seria seguramente muito

raro, se não fosse criado pela sociedade, ela própria. Seus

grandes fatores são a miséria e o alcoolismo. Ora, estes dois

flagelos estão em estreita correlação com a desigual

repartição das riquezas, consideravelmente agravada pelo

triunfo e pela extensão da grande indústria.

Em um relatório quase oficial, Cardani e Massara nos

ensinam que o camponês lombardo, o famiglio, não tem

senão um salário diário de 0,80 francos, com o qual ele

precisa viver, ele e sua família. Nós sabemos, de outra parte,

que existem, na Lombardia, centenas de milhares de

mulheres fiando oito horas por dia e ganhando um franco

por semana. Romuzzi, de Milão, afirma que, na província de

Côme, 1.900 crianças com menos de nove anos trabalham

73

Page 74: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

até quinze horas por dia mediante um salário de 10 a quinze

cêntimos.

Tais fatos não são especiais à Itália. Nada seria mais

fácil que encontrar outros equivalentes e em maior número

em outros países civilizados, onde o regime industrial

triunfa mais cruelmente ainda.

A estatística nos ensina que milhões de proletários

europeus não consomem, a cada ano, 25 kg de carne por

pessoa, que o número de indigentes cresce sempre e, ao

mesmo tempo, a cifra do consumo de álcool.

Em resumo, sabemos todos que nosso assalariado

moderno é frequentemente mais abandonado, mais

miserável, mais sacrificado que o escravo antigo. Na falta

de sentimentos humanitários, o proprietário deste último

prestava-lhe, ao menos, o gênero de interesse que se tem por

um animal doméstico, representando um certo valor.

Detenho-me, nada mais tendo a insistir sobre essas

graves questões.

Que o número de criminosos natos possa ser mais ou

menos diminuído através de medidas preventivas ou

curativas, nem por isso ele deixa de existir menos, e todo

mundo ficará convencido após ver os belos, os minuciosos,

engenhosos e conscienciosos estudos de Lombroso.

Eu acreditei dever indicar, de passagem, algumas

reflexões que não puderam deixar de ser suscitadas por essa

74

Page 75: PREFÁCIO DE O HOMEM DELINQUENTE

interessante leitura que pode, todavia, suscitar ainda muitas

outras. A falta de espaço detém-me. Elas nascerão, aliás,

espontaneamente no espírito dos leitores deste livro.

Letourneau

75