pré-sal brasileiro_ uma nova independência_ - revista interesse nacional

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  • 8/16/2019 Pré-sal Brasileiro_ Uma Nova Independência_ - Revista Interesse Nacional

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     A RTIGO

    Ano 2 - número 8

     janeiro-março 2010

    por Ildo Sauer

    Pré-sal Brasileiro: Uma Nova Independência?

     A história da humanidade guarda profundos vínculos com o processo de apropriação socialda energia. Nossa espécie, o Homo sapiens, tem cerca de duzentos mil anos. Na maior partedesse tempo viveu caçando e coletando aquilo que a fotossíntese, a energia do sol apropriada

    pela natureza, oferecia. O desenvolvimento da agricultura foi uma revolução. Há doze milanos, nossa espécie aprendeu a controlar a fotossíntese auxiliada pelo ciclo hidrológico,também movido pelo sol. Foram selecionadas plantas e animais que se alimentavam dessasplantas, para proporcionar a alimentação, o transporte e o trabalho humanos. Surgiram associedades agrárias, que em poucos milênios se espalharam por todos os continentes. Maseram sociedades bem limitadas. Utilizavam-se amplamente do trabalho escravo. Dependiamda natureza e do trabalho físico humano e de alguns animais para garantir a produção dosmeios necessários à sua existência.

    Uma nova e profunda transformação ocorre no final do século xvii com a revolução inglesa econsolida-se por volta do término do século xviii com as revoluções americana e francesa. A base energética da transformação é o aproveitamento do carvão, sua queima para oaquecimento de água e a produção de vapor para acionar êmbolos e mover máquinas –teares, trens, navios. Essa nova base técnica é essencial para o desenvolvimento do modo deprodução capitalista, que se aproveita de um novo regime de trabalho, com mão-de-obraassalariada.O trabalhador, agora o camponês expulso do campo, que não tem mais os meios de produção

    e trabalha com os meios de produção do patrão, passa a ter uma produtividade muito maior.Porque ao valor novo que agrega às mercadorias com seu trabalho vivo soma-se, num tempoagora muito mais curto, em função da velocidade das máquinas, o valor do trabalho morto,do desgaste dessas máquinas, equipamentos e edificações de propriedade do dono dafábrica.

    Finalmente, essa nova base técnica e o próprio sistema capitalista sofrem uma espécie desegunda revolução, no final do século xix, quando surgem as telecomunicações, o gerador, omotor e a transmissão elétricos e, principalmente, o motor de combustão interna à base de

    gasolina e de óleo diesel, que substitui os cavalos e as carruagens, dando origem à indústriaautomobilística. Do ponto de vista social, é a fase em que o capitalismo se monopolizou e emque se formaram os cartéis, associados ao sistema financeiro. Ocorreu, então, umaintensificação extraordinária da produção de bens e mercadorias. Sua circulação e seu

    http://interessenacional.com/http://interessenacional.com/

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    consumo aconteceram em escala e velocidade sem precedentes, graças ao petróleo. Estetornou-se a principal fonte de energia dessa fase e do modo de vida urbano-industrial, quepersiste até agora.

    Tal fonte energética é a mais flexível, a que mais facilita a produção e o consumo. Permitemover máquinas sem depender de redes estruturadas e caras. A sua apropriação socialpermitiu uma intensificação extraordinária da produtividade do trabalho. Daí seu enormevalor. O valor excedente de sua introdução no processo social de produção e de circulação éenorme quando comparado ao custo de produzi-lo. Quando a indústria petroleira começou,a energia líquida disponível estava na razão de um para cem. Ou seja: gastava-se em esforçoo equivalente a um barril de petróleo para obter cem barris. Hoje, a razão está em um paratrinta: gasta-se de capital e trabalho humano o equivalente a um barril de petróleo paraproduzir apenas trinta barris. Mas o problema desse custo cada vez maior deve serrelativizado. A fonte alternativa ao petróleo mais competitiva hoje, o etanol brasileiro, temuma relação de um para oito. E o biodiesel, o óleo diesel produzido a partir de vegetais, deum para um.

     A conversão direta do sol em eletricidade, a energia fotovoltaica, tem uma relaçãosemelhante. Hoje, o petróleo se produz a um custo de um a dez dólares o barril equivalente.E o seu valor no mercado oscilou, nos últimos anos, entre sessenta e cento e cinquentadólares o barril. Um excedente enorme, de mais de cinquenta dólares por barril. Surge daí arenda diferencial, disputada no campo econômico, político e ideológico pelas grandesempresas e Estados. O sistema econômico mundial consome cerca de trinta bilhões de barrisao ano, permitindo a apropriação de um excedente econômico da ordem de dois trilhões dedólares anuais.

    Não se pode vincular o problema a uma fonte natural. O problema está na sociedade, na suaorganização para a produção. A demanda total de petróleo não é determinada a partir de umpaís, mas a partir da forma como a organização mundial da produção se dá hoje e como se dáa sua circulação, junto com a circulação de pessoas em escala global. O petróleo continuaexercendo um papel essencial para que esta forma de produzir permaneça. Estamos falandodo mundo real, das sociedades urbanizadas de hoje, com indústrias automobilísticasenormes nos países ricos e crescentes em países em desenvolvimento importantíssimos,como a China, por exemplo.

    Mudança de paradigma levará tempo

    De onde vem essa característica especial do petróleo? Hoje, no mundo, o recurso energéticomais disponível em estoque é o carvão. O urânio também existe em grande quantidade. Emtermos de fluxo, a quantidade de energia que chega à terra vinda do sol e que volta para oespaço após algumas transformações é imensa. Cada uma das três formas que a energia solarassume na sua ação sobre a terra – a energia hidráulica, a eólica e a da fotossíntese – tem,

    por ano, um valor maior que todo o estoque de petróleo acumulado. No entanto, em funçãodo papel que o petróleo assumiu no sistema urbano industrial, que emergiu da SegundaRevolução Industrial, nenhum recurso energético natural contribui mais do que ele parafazer a roda do consumo girar. E o consumo, por sua vez, move a roda da produção. E estafaz a máquina de geração de excedente funcionar cada vez mais rápido. Podem-se imaginar

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    mudanças nesse modelo urbano-industrial e a transição para outro, de menor uso deenergia. Para que outras formas de energia desempenhem esse mesmo papel, no entanto, épreciso melhorar as condições técnicas de sua apropriação, para que elas usem menoscapital e menos trabalho vivo. Os economistas ecológicos falam da necessidade de mudançadesse paradigma. É necessário e é possível. Mas levará tempo. Não há neste momento forçapolítica global capaz de assegurar e acelerar essa passagem.

    Está em curso, hoje, também, um processo de transição energética provocado pela discussãodas mudanças climáticas e também pela perspectiva de exaustão das reservas de petróleo,pois o ritmo da descoberta de novas jazidas não dá conta do ritmo de crescimento doconsumo. Mesmo assim, quando se observa a estrutura social de produção, a persistência domodelo de desenvolvimento urbano-industrial surgido das revoluções industriais, é precisoaceitar que o papel do petróleo é ainda extraordinário.Há duas razões para a necessidade da transição energética para fontes alternativas. A primeira é a própria exaustão definitiva do petróleo e a segunda é o enfrentamento dasmudanças climáticas. O primeiro problema, de qualquer maneira, terá de ser enfrentado,

    porque os recursos de petróleo convencionais estão-se exaurindo em razão da taxa atual deconsumo, que se aproxima dos 85 milhões de barris de petróleo por dia. Isso significa que osdois trilhões de barris remanescentes de recursos convencionais conhecidos de petróleo vãoexaurir-se de qualquer maneira, nas próximas três ou quatro décadas, dado que o consumo ea produção ainda estão aumentando. Um aumento que se verifica não obstante apreocupação com a questão da mudança climática e com a matriz carbonizada da economiamundial e as tentativas de busca de novas fontes de energia que permitam substituir opetróleo, seja em função de sua exaustão, seja da necessária redução de emissões de gases

    de efeito estufa. A solução simultânea dos dois problemas exige investimento em ciência e tecnologia paraamenizar os impactos que esta substituição terá na estrutura de produção e de consumo.Não é que seja desnecessária uma mudança de modelo de desenvolvimento social, dassociedades atuais para outras que usem muito menos o automóvel como meio de transporteindividual, por exemplo. Mas, para que haja essa mudança de padrão, não basta apenasvontade: é preciso desenvolver as forças produtivas, investir nas novas tecnologias para queelas elevem sua produtividade. E, ao mesmo tempo, trabalhar para que ocorra uma mudança

    de modelo social.

    O uso do petróleo e sua relação com as emissões de gás de efeito estufa constituem umaquestão real que precisa ser entendida na sua totalidade. O vínculo maior da questão dapoluição não é o vínculo natural físico, mas o vínculo social. Assim, o modo capitalista deprodução, hegemônico no mundo inteiro, tem promovido uma espécie de necessidadepermanente de induzir o aumento do consumo para permitir o aumento da produção e,assim, gerar excedentes econômicos que permitem a acumulação.Na atual estrutura produtiva com 6,7 bilhões de habitantes no planeta, com cerca de 190

    milhões de habitantes no Brasil, o sistema hegemônico permite que essas pessoassobrevivam, ainda que grande parte delas de maneira desigual. Há uma assimetria entrepaíses e dentro das sociedades: concentração do acesso aos bens e serviços em favor deelites. A maioria vive em condições precárias no mundo inteiro e também no Brasil.

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    O trilema que a humanidade enfrenta é: como produzir mais e distribuir melhor a produçãopara atender à necessidades de grande parte da população, fazendo uso de fontes de energiamenos impactantes, que reduzem a produtividade do sistema econômico e o acúmulo deexcedentes. A solução deste trilema passa pela alteração do padrão de consumo e peloaumento e melhor distribuição da produção. Isso implica a necessidade do aumento daprodutividade do trabalho e do capital pelo uso de fontes como o petróleo, geradoraspotenciais de excedentes, e também pelos investimentos em tecnologia e ciência requeridos

    para avançar o processo de produção mediante a utilização de fontes menos impactantes.O petróleo terá ainda um enorme valor enquanto persistirem as características básicas doatual modelo de desenvolvimento urbano-industrial e um papel central na viabilização damudança do paradigma de produção e consumo existente e na própria transição energética.O petróleo manterá seu elevado valor por longo tempo, três ou quatro décadas, no mínimo.Quem controlar a apropriação de qualquer parte importante do uso desse recurso naturalcontrolará parte do poder. Onde está esse petróleo remanescente? Em três fronteiras: na Ásia Central; na África, em países como a Nigéria e o Sudão; e, agora, no pré-sal brasileiro.Isso dá uma ideia do que está em jogo.

     A importância política da intervenção estatal como forma de se apropriar de parte da rendaextra criada pelo petróleo é relativamente recente. Claro, a intervenção estatal na economiaé mais antiga. Foi ampla com a revolução socialista de 1917. Mas, especificamente, no caso dopetróleo, surgiu em 1938, no México, com a criação da estatal Pemex. A criação da Opep, em1960, é outro passo na compreensão política do problema da apropriação da renda petroleira.Com os choques de preços dos anos 1973–1979, este papel especial do petróleo se torna aindamais evidente. O que está em disputa, não só aqui, mas em todos os cantos do mundo, hoje, é

    isso. O Congresso Nacional terá a responsabilidade extraordinária de decidir sobre quemganhará com as grandes rendas a serem propiciadas pelos recursos do pré-sal, uma dasúltimas grandes fronteiras mundiais do petróleo.

    Petrobras: industrialização, autossuficiência e pré-sal

     A percepção do papel da apropriação social da energia, especialmente do petróleo e daindústria elétrica, nos processos de transformação social, induzidos pela industrialização eurbanização, esteve no cerne da luta dos brasileiros, nas décadas de 1940 e 1950. Essas lutas

    conduziram ao monopólio estatal do petróleo e à criação da Petrobras, Eletrobrás, Telebrás,do bnde e da csn como instrumentos indispensáveis para a possibilidade material detransformação da sociedade agrário-mercantil em outra.

    Nos anos 1940/1950, percebendo a importância que passaria a ter o domínio da energia parao processo de modernização produtiva, nasceu a campanha “O petróleo é nosso”. Na esteiradesse movimento, criou-se a Petrobras. A missão da Petrobras em sua primeira fase, nosanos 1950–1970, foi garantir que todas as regiões do País tivessem acesso aos derivados dopetróleo, um fator essencial à modernização das condições de vida. A empresa foi criada com

    o desafio de encontrar petróleo e abastecer o mercado interno. A produção nacional não atingia 1,6% do nosso consumo. Tomou-se a decisão de ampliar osetor de refino existente, com o objetivo de reduzir os dispêndios com a importação dosderivados de petróleo. A Petrobras cumpriu essa tarefa, principalmente com petróleoimportado. A companhia intensificou a exploração e trabalhou na formação e especialização

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    de seu corpo técnico. No esforço de garantir o suprimento, a empresa passou a desenvolveratividades fora do Brasil e descobriu, no período, o maior campo petrolífero do Iraque,chamado de Majnoon (o Maluco) dada a sua enormidade. Ele foi, todavia, nacionalizado.

    Com o primeiro choque do petróleo em 1973 e o segundo, em 1979, criou-se uma novasituação, na qual a economia mundial entrou em crise. O paradigma keynesiano, deintervenção estatal definida, forte, entrou em crise, também, pois as taxas de acumulação docapital reduziram-se drasticamente. Países como o Brasil, que tinham embarcado em umprojeto de desenvolvimento acelerado, aprovisionado com financiamento externo, viram-seduplamente ameaçados: pela conta petróleo, extremamente alta, e pela inflaçãointernacional combinada com as altas taxas de juro decorrentes da crise americana dos anos1980. Essas condições levaram o Brasil ao limiar de uma crise mais profunda, e a Petrobrasrecebeu uma nova missão. Não encontrando petróleo em terra, a Petrobras, para assegurarsua missão de redução da dependência energética, migra para o mar. Em 1968, iniciaram-seas atividades de prospecção offshore, no recém-descoberto campo de Guaricema, Sergipe.Em 1974, encontrou-se a bacia que é, até o momento, a maior produtora do Brasil, Campos. A 

    área inicial foi Garoupa, seguida pelos campos gigantes de Marlim, Albacora, Barracuda eRoncador. Nessa fase é que foi desenvolvida a tecnologia de exploração em águas profundase ultraprofundas. Progressivamente, da exploração em lâminas de água de poucas dezenas demetros passa-se para centenas e, mais adiante, para mil, dois mil e, hoje, profundidadespróximas a três mil metros. E assim o Brasil alcança a autossuficiência em 2006. Estapermitiu a estabilidade macroeconômica do País, mesmo recentemente, quando o preço dopetróleo superou os cem dólares.

     A estratégia da Petrobras de investir fortemente em produção e exploração no Brasil e no

    exterior tem-se mostrado acertada, por haver uma tendência de valorização definitiva dopetróleo nesse cenário de pré-exaustão, apesar das restrições colocadas pela mudançaclimática. O gás natural já é uma possibilidade adicional de gerar valor, pois cada 150 metroscúbicos permitem a substituição de um barril de petróleo, além de proporcionar umaprogressiva descarbonização.

    Mas o esforço no segmento dos biocombustíveis e outras fontes renováveis, como a eólica ea fotovoltaica, constitui a base para criar, desde já, uma alternativa à exaustão final dopetróleo e uma resposta definitiva para a descarbonização da matriz energética. Essaestratégia é fruto de um trabalho histórico, e o grande patrimônio não é o petróleoencontrado, mas a capacidade de encontrar petróleo, desenvolver petróleo, desenvolver gásnatural e outras soluções para a inevitável transição energética da era pós-petróleo,incluindo os biocombustíveis e outras fontes renováveis. O valor da Petrobras estáprincipalmente em sua corporação de 75 mil pessoas e no esforço histórico do povobrasileiro, que acreditou nela, que lhe deu apoio quando foi ameaçada de privatização,quando a chamaram de Petrobrax, no auge do neoliberalismo dos anos 1990.

     A capacitação na área de exploração, desenvolvimento, produção e gestão, associada àinteração com grandes organizações mundiais de ponta, permitiu à Petrobras desenvolverum novo modelo geológico ao longo de décadas, que previa a possibilidade da existência deum segundo andar de petróleo, sob a camada de sal, o que permitiria alcançar aautossuficiência.

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     A primeira descoberta de petróleo no pré-sal foi no bloco de Parati, em 2005. O primeiropoço com resultados espetaculares, no entanto, foi o 1-RJS-628A de Tupi. A perfuração dopoço pioneiro começou em setembro de 2005. Quando se chegou à camada do pós-sal, emoutubro, não se achou petróleo. Aquela era a oportunidade para testar o novo modelogeológico que vinha sendo construído há muitos anos e que mostrava a possibilidade dehaver muito petróleo mais abaixo, no pré-sal. Decidiu-se aprofundar a perfuração: no iníciode maio de 2006, foi feita a reentrada no poço.

    No começo de julho, veio a grande descoberta. Mas era apenas um poço. Fez-se, então, apartir de maio de 2007, o poço 3-RJS-646, de extensão, com o qual se procura medir aamplitude da jazida. E no começo de agosto, quando se descobre óleo, confirma-se o enormepotencial da jazida, avaliada depois entre quatro e oito bilhões de barris de tipo leve,equivalente a um ou mesmo dois terços de todas as reservas brasileiras. A anp foi avisada,como é obrigatório, por lei. O governo foi avisado. O presidente da Petrobras e o diretor deExploração e Produção estiveram com o presidente da República, no Palácio do Planalto, porlongas horas, avisando-o do significado da descoberta.

    Hoje, os geólogos da Petrobras ainda não têm a dimensão exata das reservas de petróleo dopré-sal. Trata-se de uma reserva gigante, não há dúvida. Mas ainda não se conhece aextensão da formação do sal e do petróleo subjacente a essa formação, que tem mais de cemmilhões de anos. Pode ser que a área com potencial se estenda além do Espírito Santo, quechegue a Sergipe, por exemplo. Alguns dizem que o sal-gema daquela região é da mesmanatureza do das camadas que fecham os reservatórios de petróleo descobertos sob o mar emCampos e em Santos.

    Reformas liberais e as propostas de Lula de 2002

     Antes da eleição de 2002, houve um enorme debate no País sobre as formas da apropriaçãoda energia pela sociedade. Basicamente, havia dois pontos de vista antagônicos.Um procurava enquadrar essa apropriação dentro do plano de ideias liberais, mais amplo,que implicava uma reestruturação da produção sob hegemonia do capital financeiro. Nofundo, era a resposta à crise do modelo de desenvolvimento capitalista de tipo keynesiano,com grande intervenção estatal e que, após um sucesso inicial, dos anos do chamado milagredo pós-guerra, encalacrara. No Brasil, essa reorganização começou tardiamente, no governo

    Collor. E se desenvolveu mais amplamente com fhc. Nos serviços públicos, a reorganizaçãoconsistiu na privatização de vários setores, como o das telecomunicações e de parte do setorelétrico. No setor de petróleo, a reorganização consistiu na venda de grande parte das açõesda Petrobras e na tentativa de mudar seu nome para Petrobrax, a fim de supostamentefacilitar sua internacionalização. Foram criadas as agências de regulação desses serviços –anp, do petróleo e gás natural, Aneel, do setor elétrico, e Anatel, das telecomunicações – paragarantir a rentabilidade dos investimentos e, consequentemente, atrair o capitalinternacional.

    O ponto de vista oposto é o de que era essencial o controle social dos serviços públicosdefinidores do modo de vida urbana concreto que emergira da Segunda Revolução Industrial– do saneamento, das telecomunicações, dos serviços de energia elétrica, dos transportes.De que maneira fazer esse controle? Pode-se dizer, resumidamente, que, nesse campo, haviaduas correntes. Uma, a de voltar ao esquema de subsídios, das tarifas sociais, para manter

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    esses serviços a preços mais baixos e reduzir o custo de reprodução da força de trabalho. A outra, de certo modo reconhecia a necessidade de aceitar certas regras de mercado queestavam colocadas. Mas buscava apropriar-se de parte da renda proveniente do uso derecursos naturais, que permitiam muito mais produtividade do trabalho humanoincorporado, especialmente os potenciais hidráulicos e as jazidas de petróleo. Buscavatambém controlar, no interesse social, os monopólios na prestação de serviços. Esta visão, deusar mecanismos de mercado e apropriar certas rendas de serviços públicos, foi a que afinal

    prevaleceu.

    Decidiu-se aproveitar a chamada renda hidráulica e a petroleira, por exemplo, para criar asbases de uma mudança no modelo liberal. Havia base para isso. A despeito das privatizações,grande parte do setor elétrico – mais de 80% da geração, por exemplo, estava ainda em mãosdo governo. O que se propunha era que as empresas vendessem energia por um preçoapenas um pouco abaixo do valor de mercado e a diferença entre esse preço e o custo maisbaixo da geração fosse apropriado por um fundo social. Na área do petróleo, na qual ainda setinha o controle da Petrobras, propunha-se mudar o sistema de concessão do governo fhc.

    No livro A Reconstrução do Setor Elétrico Brasileiro (Sauer et al., Paz e Terra, 2003), escritona época para detalhar essa proposta, propunha-se introduzir o sistema de partilha comomecanismo de o Estado ficar com a grande parte do excedente gerado na exploração eprodução de petróleo.

    No governo Lula, embora houvesse uma discussão da proposta para mudar o regime deconcessão para o regime de partilha, isso não aconteceu. Faltou coragem política deenfrentar o interesse das petroleiras internacionais e privadas brasileiras e o capitalfinanceiro para mudar o regime. Em 2002, achava-se que ainda havia expressivo risco de

    exploração e, portanto, a forma dos contratos de partilha ainda era válida e superior à doscontratos de concessão vigentes. O governo passou cinco anos ignorando os protestos queexigiam que ele mudasse o modelo construído pelos liberais.No setor elétrico, um processo de discriminação das estatais levou ao chamado mercadolivre de energia com preços extremamente favorecidos para os grandes consumidores. Estecresceu incrivelmente, de quase nada, até cerca de 25% do consumo total de energia do País,o que permitiu uma apropriação de parte do excedente, não em benefício público maisamplo, mas por um grupo restrito de empresas. No petróleo, foi mantido intacto o modelo

    das concessões, apesar dos protestos amplos verificados. Políticos, juristas, profissionais daPetrobras, sindicalistas protestaram contra todas as rodadas de licitação de blocos depetróleo promovidas pela anp no governo Lula: a quinta, a sexta, a sétima, a oitava, a nona, adécima. A discriminação contra a Petrobras já estava clara: a razão da suspensão da oitavarodada foi o fato de a justiça ter aceito que havia uma cláusula discriminatória contra aempresa na licitação, porque se limitava à proporção de blocos que ela podia adquirir. Váriossetores do governo lutavam pela manutenção das regras liberais, a despeito de váriasdescobertas já feitas no pré-sal.

     A despeito do crescimento das pressões para mudar o regime de exploração de petróleo, oprojeto de realizar, em novembro de 2007, a nona rodada de licitação foi desenvolvido, osblocos foram escolhidos, anunciados e o leilão mantido até às vésperas de sua realização. Foiaí que, finalmente, o Presidente reuniu o Conselho Nacional de Política Energética e foram

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    retirados da licitação os 41 blocos em torno de Tupi. Foram, porém, mantidos onze blocos doarco do Cabo Frio, arrematados pela ogx, que, sem reação do governo, meses antes recrutouos técnicos detentores de informações estratégicas e privilegiadas da Petrobras.

     A proposta do governo: análise crítica

    Depois da descoberta, anunciada em 2007, somente em meados de 2008 o governo nomeouuma comissão para elaborar novas leis para o setor. Essa comissão passou mais de um anoestudando o assunto, praticamente em sigilo. Há cerca de três meses, finalmente cumpriusua tarefa: foram divulgados quatro projetos de lei para reformar a legislação do petróleo.Com isso, o governo praticamente acolheu todas as sugestões de movimentos sociais, masdeixou tudo em aberto, para, até mesmo, não executar nenhuma delas. Os contratos departilha da produção eram uma proposta e uma solução em 2002, quando Lula foi eleito.Hoje, a situação é outra. As novas leis repõem a Petrobras no comando do processo deexploração, produção e venda do petróleo no País. Só aparentemente. A direção da Câmara quer aprovar as novas leis até o final de dezembro, antes do recesso

    parlamentar de fim de ano, sob o regime chamado de urgência. Esse ritmo de votação éapressado e descabido. Por que a superurgência? Porque o governo precisa ter os grandesrecursos que o petróleo pode efetivamente proporcionar para, o mais rapidamente possível,dedicá-los ao Fundo de Desenvolvimento Social, que uma das quatro leis apresentadasestabelece? Certamente que não.

    Suponhamos que tudo corra de modo acelerado: 1) a legislação nova seja aprovada ainda esteano; 2) em 2010, o governo promova licitações e a Petrobras e outras empresas, sob um novoregime legal, o da partilha do petróleo obtido, disputem blocos do pré-sal; 3) em três ou

    quatro anos mais, após a assinatura dos contratos, as empresas explorem suas áreas e façamas instalações para colocá-los em produção; 4) nos três ou quatro anos seguintes, elas sedediquem, de acordo com o estabelecido no projeto de lei a respeito, a produzir o petróleonecessário para cobrir seus custos de produção, o chamado “óleo custo”, que embolsarãosozinhas; 5) então, finalmente, quando a produção começar a ser partilhada, a parte dogoverno vá, em primeiro lugar, para um Fundo de Desenvolvimento Social e, depois, quandoesse fundo der frutos, seus rendimentos sejam distribuídos para as atividades econômicas esociais pretendidas. De quanto tempo se está falando? Se tudo der certo, só lá pelos idos de

    2018 ou 2020 é que os recursos aparecerão no fundo. Somente depois, talvez em 2022, seusrendimentos terão escala para financiar a “nova independência” do País. Por que a pressa,portanto? Porque as eleições estão bem próximas e essas novas licitações pressupõemgrandes negócios? Dias atrás, logo após a divulgação da proposta da nova legislação, opresidente da República esteve em Nova York e grandes empresários lhe proporcionaram um jantar para tratar de investimentos no País. Segundo o jornal Valor, o ágape custou mais desetecentos mil dólares. E duas empresas do setor de petróleo, uma de empresário brasileiro,a ogx, e outra multinacional, a Exxon Mobil, pagaram a maior parte da conta: cada uma delas,duzentos mil dólares. A pressa das petroleiras internacionais em se apossarem do direito a

    grandes reservas de petróleo é visível. E fácil de compreender: suas reservas são uma fraçãomínima do que eram nos anos 1960, quando, de certo modo, mandavam no mundo. Mas essapressa não é o que interessa ao País. Deve-se fazer a avaliação mais precisa do petróleo aindanão leiloado. A contratação da Petrobras para concluir o processo exploratório, isto é,

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    conhecer as acumulações, seus limites, desenvolver um plano de avaliação edesenvolvimento da produção, é essencial. Assim, saber-se-á com certeza se há oitenta, cem,duzentos ou mais bilhões de barris.

    Só assim haverá como planejar a produção. Não se pode esquecer que a própria Opep nãoproduz sem plano. Ela articula o equilíbrio de oferta e demanda e tem como preço-alvoestratégico o petróleo entre sessenta e oitenta dólares o barril. As formas básicas de operar aindústria do petróleo – monopólio público operado por empresa estatal ou a contrataçãopara prestação de serviços, produção compartilhada e concessão de áreas – já forambastante expostas. Não se destacou, no entanto, o seguinte: o monopólio público exercidopor operadora estatal é a forma mais simples e mais amplamente utilizada. É o regimeadotado pela Arábia Saudita e por todos os outros países com grandes reservas, como o Irã ea Venezuela. Quando necessário, subcontratam a prestação de serviços e, raramente, aprodução compartilhada. Os outros dois regimes – o da partilha e o das concessões – eramhegemônicos em outra época, nos anos 1960, quando as grandes multinacionais do petróleo,as chamadas Sete Irmãs – Shell, Esso, British Petroleum e outras – detinham perto de 90%

    das reservas mundiais, em comparação com menos de 10% que detêm hoje. Atualmente, asSete Irmãs do petróleo, como disse o Financial Times recentemente, são as companhiasnacionais: a Saudi Aramco, a Gazprom russa, a cnpc chinesa, a nioc iraniana, a pdvsavenezuelana, a Petrobras brasileira, e a Petronas da Malásia. O regime de monopólio públicoexercido por operadora estatal passou a ser adotado na medida em que os países maispobres foram-se dando conta do enorme excedente gerado pelo petróleo e da necessidadede controlá-lo.

    Não se pode definir um plano de exploração para o petróleo do pré-sal sem conhecer direito

    essa reserva. A primeira decisão sobre os campos gigantes de petróleo do pré-sal deveria sera contratação da Petrobras, que os descobriu, para avaliar toda a sua extensão, mediante umcontrato com o governo pelo custo do serviço. Petróleo é, cada vez mais, um recursogeopolítico. As grandes reservas mundiais estão sob o controle dos Estados nacionais e desuas empresas estatais. A produção mundial de petróleo, hoje, está em cerca de 85 milhõesde barris por dia, dos quais a Arábia Saudita produz aproximadamente dez milhões, e os euaconsomem em torno de 22 milhões de barris diariamente.

    Suponhamos que o Brasil tenha cem bilhões de barris no pré-sal, que é mais ou menos o quese está avaliando, na opinião de diversos analistas. Se decidir explorar essa reserva em trintaanos, o Brasil colocará no mercado cerca de dez milhões de barris por dia, mais ou menoscomo a Arábia Saudita faz hoje. Mas a Arábia Saudita não foi ao mercado sozinha, nem deixouo mercado decidir por ela. Ajudou a formar a Opep. Por quê? Porque a entrada de um grandeator no mercado mundial de petróleo tem consequências sobre os preços. Qual o preço dopetróleo hoje? Falava-se, antes da crise, que os biocombustíveis teriam espaço, mas que aameaça era uma crise internacional, que jogaria os preços do petróleo para baixo. Mas a criseveio e o preço do petróleo já está de novo mais ou menos na faixa-alvo da Opep, entre

    sessenta e oitenta dólares por barril. Portanto, a tese de que o petróleo continua sendo degrande valor é robusta. E reforça, também, a hipótese de que a retirada do petróleo dosubsolo e sua conversão em moeda, qualquer que seja ela – dólar ou yuan – pode não serinteligente. Hoje, por exemplo, se esse dinheiro obtido com a exploração do petróleo ficasseaplicado como as reservas brasileiras, seria mau negócio. O dólar é comprado com títulos da

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    dívida pública para não provocar inflação interna, com as taxas de juros brasileiras – a Selic, a8,5% ao ano. E fica aplicado lá fora em títulos do Tesouro dos eua, que estão pagando menosde 4% ao ano. Os dólares também poderiam ter outras aplicações.

    O fundo soberano que se pretende constituir, com um dos projetos de lei encaminhados pelogoverno ao Congresso, poderia, por exemplo, comprar grande parte das ações da Petrobrasque estão hoje sob controle estrangeiro. Mas também esse não é um bom negócio agora,quando se está mudando o marco regulatório do petróleo no País: depois da mudança,provavelmente, o preço das ações estará valendo menos. A valorização das ações daPetrobras depende da evolução de sua capacidade de produção, da taxa de novasdescobertas e de sua capacidade de converter esses fatores em lucros futuros. Mas depende,fundamentalmente, de quão obediente a Petrobras é às regras do mercado financeiro, dequanto o governo brasileiro vai permanecer fiel à ortodoxia financeira. Teremos capacidadede compreender essas coisas, de construir um caminho próprio? Ou seremos sempreescravos das regras do grande capital? Não tenhamos dúvida. O capital financeiro aí está, embusca de aplicações rentáveis. Quer que o governo se comporte dentro de suas regras.

    Projeto nacional de desenvolvimento

    Para fugir dessa sina o País tem de ter um projeto nacional de desenvolvimento econômico esocial, um plano. Que plano é esse?

    Ele deve incluir a educação, mas não existem planos nessa área. Eles não existem, nem existecapacidade de gestão para aplicá-los na dimensão necessária, de vinte a trinta bilhões dedólares por ano. O plano deve incluir, também, a saúde, que se vincula à prevenção, ao

    saneamento, à infraestrutura, ao ambiente urbano. Nessa área temos o sus que, comoconcepção, é um projeto de referência. Porém, aponta para onde se deve ir e não temrecursos para chegar lá. O modelo agrícola brasileiro também precisa ser repensado.Precisa-se incorporar melhor a grande massa de população que ainda vive no campo eplanejar melhor a ocupação do território brasileiro, ainda em grandes vastidões inexplorado,ou mal explorado, depredado, como é o caso da Amazônia. O plano deve tratar de nossainfraestrutura, especialmente a de circulação dentro do espaço urbano e entre os espaçoseconômicos e geográficos do País. O sistema existente é o pior possível: muito intensivo emuso de energia, poluente e ineficaz. Precisa ser mudado para valorizar o transporteferroviário, fluvial, a navegação de cabotagem, o transporte urbano metroviário.

    Como se vê, um plano nacional de desenvolvimento econômico e social exige um grandeesforço. E o País não está preparado para isso. O que é o nosso Ministério do Planejamentohoje? Não passa de um órgão de implementação e fiscalização do orçamento. O governo nãotem um plano estratégico. O que ele apresentou para tratar do petróleo do pré-sal?

    Nos quatro projetos de lei enviados ao Congresso, o governo, basicamente, concede aoExecutivo, especialmente ao presidente da República, e a alguns segmentos federais

    dependentes da Presidência, o poder de arbitrar o acesso à exploração do pré-sal. Por quequatro projetos de lei e não apenas um? Para dividir o foco do problema e ressaltar o papeldo coordenador central, que é o Executivo. O primeiro projeto é o que estabelece o regimede partilha. Ele era relevante em 2002; hoje, não é mais. Agora, a partilha foi criada para

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    manter a aura de que existe risco no projeto de exploração do pré-sal. Para dizer que oEstado brasileiro não sabe administrar esse risco e que, portanto, deve chamar osespecialistas na administração de risco: o grande capital financeiro internacional. Isso não éverdade.Quais são os riscos da exploração de petróleo? Podemos dividi-los em quatro categorias: ogeológico-geofísico, da exploração das áreas para localizar o petróleo; o tecnológico e deengenharia, para determinar as estruturas de produção a serem instaladas nas áreas para

    tirar o petróleo; o financeiro, com o risco de reunir capitais e promover o investimento; e orisco comercial, de saber comercializar o petróleo num mercado complexo.

    O risco exploratório no caso do petróleo do pré-sal é pequeno e pode ser praticamenteeliminado, se houver interesse. Aliás, no projeto de lei da partilha, o governo admite quepode reduzir esse risco. A anp foi encarregada de furar alguns poços no pré-sal para avaliaras reservas e para isso a agência já está tratando com a Petrobras. Mais do que isso, na leienviada ao Congresso, no seu artigo 7o, o governo estabeleceu que o Ministério das Minas eEnergia “poderá” fazer a avaliação prévia das jazidas. Não deveria ser “poderá”. Deveria ser: o

    ministério “deverá” fazer a avaliação prévia das jazidas. A avaliação leva, possivelmente, dois atrês anos. Com isso, pode-se delimitar melhor o pré-sal. Saber, por exemplo, se ele seestende à Bahia, ao Sergipe. E se faz discussão do plano nacional de desenvolvimentoeconômico e social. Infelizmente, no entanto, o “poderá” que está no pl da partilha está emlinha com todo o resto do marco regulatório anunciado. Este é uma espécie de estruturacircular. Parece que está tudo institucionalizado: ouve-se o Conselho Nacional de PolíticaEnergética, a nova empresa, a Petrossal, a anp. Mas, no fundo, tudo está centralizado nopoder do príncipe, todos os outros órgãos são demissíveis a qualquer hora pelo presidente da

    República. Poucas vezes na história do País se enviou ao Congresso para referendar ummandato de tão elevado impacto econômico. Se forem os cem bilhões de barris que muitossupõem, a serem explorados em trinta anos, é uma receita que fica na casa de meio a umbilhão de dólares por dia.

    O papel atribuído à Petrossal reforça o caráter centralizador e arbitrário do conjunto dosprojetos. Como funciona a indústria do petróleo, em geral, no caso das licitações? Concorreum consórcio de empresas ou uma empresa única. Se é uma só, ou ela é a própria operadora,ou contrata uma operadora de sua escolha. Se é um consórcio, os sócios se acertam e

    escolhem uma operadora. E fazem um joa (Joint Operation Agreement), que é o instrumentopelo qual se definem as regras da operação. O operador vai tomar as decisões de exploração,quantos poços vai fazer, em que prazos, e submete algumas decisões aos consorciados. E fazo cash call, chama o capital para os investimentos. Como seria pelas regras da legislaçãoenviada ao Congresso? Se for a Petrobras que ganha a licitação sozinha, ela vai decidir o quefazer junto com a Petrossal. Existirá um comitê operativo para cada área licitada, no qual aPetrossal tem metade dos votos além do poder de veto. Como a Petrossal poderá, em últimainstância, decidir melhor que a Petrobras, em todas as questões envolvidas no projeto deaproveitamento dos recursos do bloco licitado? São decisões que envolvem conhecimentosobre uma enorme gama de temas: da geologia, da engenharia, do financiamento, docomércio mundial de petróleo. Por que o governo acha que a Petrossal, uma empresa quenascerá agora, com um conjunto de profissionais já definido como pequeno, deve ter aúltima palavra e não a Petrobras? É porque existe no núcleo central do governo uma

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    desconfiança em relação à Petrobras. A situação é ainda mais complicada se, nas licitações, aPetrobras fizer uma proposta perdedora e, como manda a lei, tiver que ficarobrigatoriamente como operadora e com 30% do capital do investimento no bloco licitado.Toda essa confusão resulta do fato de o governo, de certo modo, ter aceito todas as críticasque eram feitas e, em princípio, reposto a Petrobras no posto estratégico de exploração dopetróleo no País. Mas, na prática, ter feito isso de um modo ambíguo, que permiteexatamente fazer o contrário. Esse bloco pode não ser licitado e pode ser entregue

    diretamente à Petrobras. A Petrobras será operadora de todos os campos e em tese vaicontratar todos os fornecedores e ampliar a fatia nacional dos negócios. A Petrobras vai ser,possivelmente, a empresa escolhida para comercializar o petróleo. Mas, pode não ser. A Petrossal pode decidir que a Exxon Mobil ou a ogx deve comercializar o petróleo, porexemplo.

    E essa penumbra, essa incerteza, tem claramente um propósito. Deixa a ideia de que existerisco, abre o espaço para os grandes operadores do risco que são os do sistema financeiro. OPaís abre mão de seu projeto, de seu plano. E se mantém sob o controle do grande sistema.

     Vejamos em detalhe os números do balanço da Petrobras (Tabela 1). Isso permitirá umaespécie de radiografia do que acontece no setor de petróleo no Brasil hoje, quando a estataltem quase o monopólio da produção. E ajudará a ver como pode ficar no futuro, com osistema híbrido que o governo pretende estabelecer. Como se sabe, o governo quer manter aabertura estabelecida para o capital privado com o sistema de concessões criado em 1997. E,para as áreas do pré-sal e outras consideradas estratégicas, quer estabelecer o sistema departilha da produção.

    Do balanço destacam-se, em primeiro lugar, no valor líquido adicionado pela Petrobras, 97bilhões de reais como renda paga aos governos. Esse número corresponde a 85 bilhões,transferidos à União, aos Estados e aos Municípios por conta de royalties, participaçõesespeciais e bônus exigidos nos contratos de concessão atuais, mais doze bilhões, de lucros edividendos repassados ao governo federal em função dos 40% de ações que tem da empresa. A soma corresponde a praticamente 70% de toda a renda extra agregada pela Petrobras. Assim, para cada um dos 800 milhões de barris produzidos em 2008, cerca de 125 reais ousetenta dólares por barril foram apropriados publicamente. Isso significa que o País, mesmomantendo a legislação atual, deve aumentar, e muito, a receita dos governos, graças aocrescimento da produção com as jazidas do pré-sal.

    Numa escala de países com as maiores reservas de petróleo, em primeiro lugar vem a ArábiaSaudita, com 264 bilhões de barris. O Brasil estava no 17o lugar, com 14 bilhões de barris. Comas primeiras descobertas do pré-sal, passou para 20 bilhões, foi para o 12o lugar, logo após osEstados Unidos.Quanto de petróleo existe no pré-sal? Oitenta bilhões de barris? Cem? Duzentos bilhões?Hoje, sem o pré-sal, produzimos dois milhões de barris de petróleo por dia. Se tivermos cem

    bilhões de barris, poderemos produzir, digamos, por trinta anos, quando se estima que a erado petróleo já estará passando, dez milhões de barris por dia. Isso daria, partindo das contasda Petrobras já citadas, uma receita estatal extra cinco vezes maior que a do ano passado,que foi de 97 bilhões. Ou seja, de cerca de 500 bilhões de reais por ano, um número próximode toda a arrecadação atual de impostos no Brasil, que é de 800 bilhões de reais.

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    Há um consenso, até mesmo com as grandes petroleiras estrangeiras, de que a fração quecabe aos governos pode aumentar, nos novos contratos a ser feitos. Suponhamos que essaparticipação estatal aumente dos atuais 70% já vistos, para 80% ou mesmo 90%, seja por umaumento das participações especiais nos contratos de concessão, como preferem aspetroleiras, ou pelo sistema de partilha, proposto pelo governo. Isso resolve o problema daapropriação da renda do petróleo? Não. Hoje, os governos destinam esses recursos paracumprir metas de superávit primário, pagar os juros de sua enorme dívida interna e para

    outros fins, que não constituem, minimamente, um plano estratégico para mudar o padrãode desenvolvimento do País. A multiplicação desses recursos, pelo aumento da quantidade depetróleo a ser produzida com as jazidas do pré-sal pode, inclusive, agravar alguns problemasda economia brasileira. Em primeiro lugar, porque a perspectiva clara que está colocada é ade uma ampliação da participação no setor por parte das empresas estrangeiras e deempresas privadas, supostamente nacionais, mas associadas intimamente ao capitalestrangeiro.

    O que os movimentos populares propõem

     A proposta básica é eliminar a especulação inútil, medir a reserva de petróleo no pré-sal eexplorá-la de acordo como um plano nacional de desenvolvimento. O modelo de partilhaproposto pelo governo não conta com apoio de movimentos sociais, defensores da campanha“O Petróleo tem que ser nosso”, que submeteram ao Congresso, com subscrição de cerca deduas dezenas de deputados, um projeto alternativo. O modelo que os movimentos sociaisdefendem propõe: a) conclusão do processo exploratório, mediante contrato com aPetrobras, para dimensionamento e avaliação das reservas; b) restauração do monopólioestatal do petróleo; c) reestatização de 100% da Petrobras, via recompra das ações, ecapitalização com reservas; d) desenvolver um plano nacional de desenvolvimentoeconômico e social: educação, saúde, urbanização, habitação, saneamento, mobilidade,inclusão digital, portos, aquavias, ferrovias, trens urbanos, ciência e tecnologia,desenvolvimento e reforma agrária, e recursos para promover a transição energéticasustentável; e) planejar a produção do petróleo no ritmo necessário à capitalização do FundoSocial para financiar tal plano. A avaliação dos movimentos sociais é de que não faltarãorecursos financeiros nem tecnológicos, pois com o controle das reservas de petróleogarante-se o financiamento necessário para sua produção pela Petrobras, detentora da

    maior capacitação na área do pré-sal e com acesso garantido a todas as tecnologias de pontadisponíveis no mundo. Finalmente, para tratar devidamente da nova situação criada peladescoberta do petróleo do pré-sal, que pode ter extraordinárias repercussões na vida dopovo brasileiro, os movimentos sociais propõem um plebiscito, a ser convocadoconcomitantemente com as eleições presidenciais de 2010, com duas perguntas:

      a União deve retomar e exercer o monopólio sobre o petróleo e promover sua extração eprodução vinculada exclusivamente ao financiamento de um plano nacional dedesenvolvimento econômico e social?

    2 a Petrobras deve ser reestatizada e ser a executora do monopólio?Na campanha a ser feita para o plebiscito, as forças progressistas do País acreditam serpossível aprofundar a compreensão do ponto central: o de que as extraordinárias rendas que

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    o petróleo propicia hoje – e deve continuar proporcionando nas próximas duas ou trêsdécadas, pelo menos – deveria servir a um novo plano de desenvolvimento econômico esocial capaz de mudar radicalmente o Brasil.

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