pré-projeto - juliana ramos - cultura popular e o nacional em dias gomes

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Pr-Projeto

Ttulo: O popular e o nacional no teatro brasileiro na dcada de 1960 -

O Pagador de Promessas de Dias Gomes

RESUMO DO PROJETO

O estudo buscar investigar o papel desempenhado pelo texto teatral O Pagador de Promessas de Dias Gomes na construo e legitimao da identidade nacional, como se deu a insero e valorizao de uma determinada viso e defesa de cultura popular, assim como a crtica ao nacional, no teatro tradicional brasileiro no final da dcada de 50 e durante a dcada de 1960. Para tal, a obra escrita por Dias Gomes apresenta-se como exemplo paradigmtico de insero e valorizao da cultura popular em um espao O Teatro Brasileiro de Comdia (TBC) - at ento voltado para apresentao de obras estrangeiras ou do cotidiano, com valores burgueses, marcando o incio do pensamento que apresentava a cultura popular como base da identidade nacional. Essa inovao pode ter contribudo para apresentar uma ao de ruptura, como outras obras do perodo que antecedeu o golpe militar de 1964 no Brasil. Ruptura esta que se configurou a partir de novas diretrizes, marcadas por caractersticas antigas/inovadoras culturais e nacionais, at mesmo para se pensar um novo pas, que segundo esta proposta, deveria ser mais justo e pensado a partir das necessidades do povo brasileiro. Nesse sentido, este estudo busca verificar como se deu esta contribuio e quais foram as consequncias para a ruptura e/ou construo de uma nova viso de arte. Viso esta que se contrape ao discurso nacionalista vigente at ento, que refletia a velha ordem patriarcal e arcaica, assim como a organizao poltica elitista e burguesa.

Introduo/ contextualizao do tema de pesquisa Escolhemos analisar o texto da pea teatral O Pagador de Promessas de Alfredo de Freitas Dias Gomes (Salvador, Bahia, 1922 - So Paulo, So Paulo, 1999). Romancista, contista e teatrlogo; que se auto definia como apenas um subversivo,. visto que, praticamente em todas as suas peas, encontramos crticas aos temas polticos/sociais do pas, revelando o seu engajamento, que apresentava uma temtica voltada para a realidade brasileira do perodo e sua luta na engrenagem social. Em 1960 Dias Gomes atinge o estrelato com a montagem de O Pagador de Promessas pelo Teatro Brasileiro de Comdia, TBC, dirigida por Flvio Rangel e seguida, em 1962, por uma montagem carioca, do Teatro Nacional de Comdia, TNC, com direo de Jos Renato. A pea conta a histria de Z do Burro, um dos mais puros heris trgicos da dramaturgia brasileira1, que paga com a vida pela obstinao em depositar na igreja da capital a pesada cruz que trouxe de sua longnqua aldeia, em pagamento de uma promessa feita para que Ians curasse o seu burro doente. Em torno de Z do Burro giram as personagens que, para Dias Gomes so a sntese da populao nordestina, mais especificamente baiana da poca, intolerante, impiedoso nos seus desequilbrios sociais e educacionais, e onde o indivduo no teria chance de resistir s artimanhas do esquema explorador. "De todas as artes acho o teatro a mais atuante. Foi uma das primeiras manifestaes culturais no Brasil e serviu de propsitos catequticos e polticos. Era a conquista do ndio para o Deus branco e consequentemente para o senhor branco. A valorizao do teatro era evidente, pois se no fosse, eles teriam escrito romances ou pintado quadros. Mas no. Anchieta escreveu e encenou peas".2 A partir de 1950 os textos teatrais de Dias Gomes so marcados pela preocupao com as questes sociais e pela busca mais sistemtica em localizar, identificar e apresentar aspectos e caractersticas que deveriam trazer para o centro da cena uma cultura popular, buscando, encontrar caractersticas que realmente fossem brasileiras.

1

Anatol Rosenfeld, crtico teatral e pesquisador de teatro acadmico. Foi professor titular na USP na de EAD. 2 Dias Gomes. Apenas um Subversivo. p. 85. 1998.

O Pagador de promessas, de Dias Gomes, chega aos palcos em 1959 e torna-se um grande sucesso. Inquieta-nos o fato de que mesmo a arte estando submetida pelo tempo, ideias e aspiraes de um determinado perodo histrico, ela supera esse limite, criando um momento de humanidade que promete consonncia no desenvolvimento. (...) Coisas antigas, aparentemente h muito esquecidas, so preservadas dentro de ns, continuam a agir dentro de ns freqentemente sem que as percebemos e de repente vm a superfcie e comeam a nos falar.3

Em Apenas um subversivo, Dias Gomes nos relata o processo de criao e execuo da pea O Pagador de Promessas, escrita em 1959. (...) eu me preparava paraescrever O Pagador de Promessas, pea na qual me colocaria por inteiro, minha vivncia, minhas certezas e incertezas, minha viso de mundo, minhas angstias, tudo que tinha represado na mente, num processo angustiante de gestao desenvolvido principalmente naqueles ltimos anos da dcada de 50. (...) O achado surgiu, paradoxalmente, de uma notcia de jornal, um telegrama de uma agncia noticiosa dando conta do cumprimento de uma promessa feita por um ex-soldado alemo: paraltico, em conseqncia dos ferimentos recebido na guerra, ele prometera carregar uma cruz at a gruta da virgem de Lourdes aquilo era muito nosso, muito de meu povo da Bahia. (...) Vibrei, encontrara o tom e a forma da minha pea. 4

O Pagador de Promessas mudaria a cara do TBC, que da em diante passaria a dar preferncia ao autor brasileiro e a uma dramaturgia preocupada com os problemas sociais. Obviamente, no foi somente por amor ao pas que o acolhera to bem que Zampari, proprietrio do TBC, investiu na mudana, como relata Dias Gomes. Por exigncia minha,Zampari reformou o extico palco do TBC; na adaptao que haviam feito de um velho casaro, tinham deixado uma pilastra bem no centro do palco. Ora, toda a ao de Pagador se passa numa praa, aquela pilastra no tinha cabimento. - Ou o senhor tira a pilastra, ou eu tiro a pea. Quando samos, ainda descendo a escada que levava ao escritrio do empresrio, Flvio [Flvio Rangel, diretor da primeira montagem] fitou-me assustado: - Voc foi muito agressivo. Ningum fala assim com Zampari, Ele podia ter-te mandado merda. Eu sabia o que estava fazendo. Sabia o quanto significava minha pea para o TBC, que atravessava sria crise econmica e tambm artstica. Isso j acarretara o fechamento da sucursal do Rio de Janeiro, tratava-se de salvar a matriz de So Paulo. O pblico j no se conformava s com espetculo bem-feito, queria algo mais, queria ver a nossa realidade em cena. O surto de dramaturgia alterara violentamente as regras do jogo. Se o TBC queria sobreviver, tinha que se adaptar aos novos tempos. Zampari, com o senso de oportunismo prprio de um empresrio bem-sucedido, percebia isso.5

3

Fischer, A Necessidade da Arte, p.17.

4 5

Gomes, Dias. Apenas um subversivo, p.164.

Ibidem, p. 171.

O pblico que Dias Gomes faz referncia aquela parcela dos espectadores que comeavam a se interessar por outras vises do pas, uma parcela dos moradores do sudeste maravilha que buscava conhecer o restante do pas e de alguma forma se reconhecer nele. Relaes de poder, resistncia e liberdade - conceitos to prprios da Sociologia so utilizados na busca da construo de uma leitura da cultura popular para se fazer a crtica ao nacional, ao mesmo tempo em que suas obras, para alm da crtica do micro alfinetam o macro cosmo social e universal. O dramaturgo e pensador teatral Bertold Brecht (1898-1956), teve grande influncia nas escolhas teatrais de Dias Gomes. As obras de Brecht procuram falar, em sua maioria, sobre a vida dos oprimidos e levou a luta de classes para o palco. Nunca de forma dogmtica. Sempre buscando a dvida dialtica, o que configura um dos princpios dos seus estudos sobre Teatro, ao expor a sua concepo cnica, baseada na necessidade de estabelecer uma distncia entre o espectador e os personagens, a fim de que o ponto de vista crtico do autor desperte no espectador uma tomada de conscincia6. Outra caracterstica latente e marcante em suas obras a presena da religio, Dias Gomes apesar da formao catlica tradicional familiar, se considerava ateu. Estudou durante a infncia em um colgio catlico. Em sua autobiografia nos conta que no foi um perodo muito bom de sua infncia, uma vez que, um dos padres que deveriam cuidar da educao dos alunos o assediou e para se defender, teve que agredir o padre, nunca mais voltando para esta escola. Ele conta que no acreditou mais na igreja catlica e em seus representantes. Mesmo assim, quando seu irmo mais velho passou no concurso para ser mdico militar, acompanhou sua me no ato de pagar a promessa pela graa consentida, quando os dois tiveram que visitar as 82 igrejas catlicas no estado da Bahia, da uma das grandes inspiraes para a concretizao da pea O Pagador de Promessas. (...) Eu sempre respondi que as minhas peas tm como protagonista o povo brasileiro e ospadres sempre tiveram grande influncia na formao desse povo, desde suas origens.7

Quanto ao repertrio de leitura teatral de Dias Gomes, o mesmo escreveu que a primeira pea teatral que leu foi uma de William Shakespeare. Suas influncias cnicas na infncia foram s esquetes circenses em seus mais variados temas, das comdias aos dramas, que muito assistiu durante a infncia e adolescncia e a peras, que a me

6

Sobre a influncia de Brecht no teatro brasileiro, consulta ao artigo Os momentos de Bertolt Brecht no Brasil de Eduardo Luiz Viveiros Freitas. 7 Revista Encontros com a Civilizao Brasileira. Rio de Janeiro. 1978.

adorava e sempre que podia, escutava em casa (pelo rdio) ou a acompanhava aos espetculos. Um dos conceitos chaves desse projeto, o termo popular, pode ter uma variedade de significados, nem todos eles teis aqui. O significado que mais corresponde ao senso comum: algo popular porque as massas o escutam, compram, lem, consomem e parecem aprecia-lo imensamente. Esta a definio comercial ou de mercado do termo, segundo Stuart Hall em Da Dispora Identidades e Mediaes Culturais, corretamente associada manipulao e ao aviltamento da cultura do povo. O problema dessa definio que ela ignora, ainda segundo Hall, as relaes absolutamente essenciais do poder cultural de dominao e subordinao que um aspecto intrnseco das relaes culturais. Assim, (...) no existe uma cultura popular ntegra,autntica e autnoma, situada fora do campo de fora das relaes de poder e de dominao culturais.8

Segundo Hall, o estudo da cultura popular fica se deslocando entre esses dois plos inaceitveis: da autonomia pura ou do total encapsulamento. Para dar continuidade a discusso, usaremos o conceito de Indstria Cultural de ADORNO que ao analisar a sociedade do sculo XX percebe que o que passa a reger a sociedade a lei do mercado, e com isso, nessa corrida pelo ter, nasce o individualismo, fruto da Indstria Cultural. Segundo Adorno, na Indstria Cultural, tudo se torna negcio. Enquanto negcios, seus fins comerciais so realizados por meio de sistemtica e programada explorao de bens considerados culturais. Um exemplo disso o cinema. O que antes era um mecanismo de lazer, ou seja, uma arte, agora se tornou um meio eficaz de manipulao. Portanto, podemos dizer que a Indstria Cultural traz consigo todos os elementos caractersticos do mundo industrial moderno e nele exerce um papel especifico, qual seja, o de portadora da ideologia dominante, a qual outorga sentido a todo o sistema. importante salientar que, para Adorno, o homem, nessa Indstria Cultural, no passa de mero instrumento de trabalho e de consumo, ou seja, objeto. O homem to bem manipulado e ideologizado que at mesmo o seu lazer se torna uma extenso do trabalho. A Indstria Cultural teria como guia a racionalidade tcnica esclarecida, prepara as mentes para um esquematismo que oferecido pela indstria da cultura que aparece para os seus usurios como um conselho de quem entende. O consumidor no precisaria se dar ao trabalho de pensar, s escolher,como se fossem utilizados esquemas prontos que podem ser empregados indiscriminadamente s tendo como nica condio a aplicao ao fim a que se destinam.8

Hall, Stuart. Da Dipora Identidades e Mediaes Culturais. Pg. 238.

Assim, as indstrias culturais tm de fato o poder de retrabalhar e remodelar constantemente aquilo que representam, pela repetio e seleo, impor e implantar tais definies de ns mesmos de forma a ajust-las mais facilmente s descries do poder cultural os meios de fazer cultura nas mos de poucos. Elas invadem e retrabalham as contradies internas dos sentimentos e percepes das classes dominadas (como est representado de forma magistral na obra teatral selecionada nesse projeto, na figura de Z do Burro), elas sim, encontram ou abrem espao de reconhecimento naqueles que a elas respondem. Afirmar que essas formas impostas no nos influenciam, segundo Hall, equivale a dizer que a cultura do povo pode existir como um enclave isolado, fora do circuito de distribuio do poder cultural e das relaes de fora cultural. Acreditamos que h uma luta contnua e necessariamente irregular e desigual, ainda segundo Hall, por parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular; para cerc-la e continuar suas definies e formas dentro de uma gama mais abrangente de formas dominantes. H pontos de resistncia e tambm momentos de superao, provas disso so os desdobramentos e finais propostos por Dias Gomes aos seus dramas, que por mais que sejam obras de fico, so provas da capacidade humana de projetar seus desejos e realizaes no concreto. Essa a dialtica da luta cultural. Segundo Hall, se as formas de cultura popular comercial disponibilizadas no so puramente manipuladoras, porque, junto com o falso apelo, a reduo de perspectiva, a trivializao e o curto-circuito, h tambm elementos de reconhecimento e identificao, algo que se assemelha a uma recriao de experincias e atitudes reconhecveis, s quais as pessoas respondem. O perigo surge porque tendemos a pensar as formas culturais como algo inteiro e coerente: ou inteiramente corrompidas ou inteiramente autnticas, enquanto que elas so profundamente contraditrias, jogam com as contradies, em especial quando funcionam no domnio do popular. Outra definio de popular seria, segundo Hall, mais fcil de se aceitar. mais descritiva. A cultura popular todas essas coisas que o povo faz ou fez. Esta se aproxima de uma definio antropolgica do termo: a cultura, os valores, os costumes e mentalidades [folkways] do povo. Aquilo que define seu modo caracterstico de vida. No podemos simplesmente juntar em uma nica categoria todas as coisas que o povo faz, sem observar a verdadeira distino analtica. O princpio estruturador, segundo Hall do popular neste sentido so as tenses e oposies ente aquilo que pertence ao domnio central da elite ou da cultura dominante, e cultura da periferia. Para Hall, o valor cultural das formas populares promovido, sobe na escala cultural e elas passam

para o lado oposto. Outras coisas deixam de ter um alto valor cultural e so apropriadas pelo popular, sendo transformadas nesse processo. A definio de cultura que usaremos nesse projeto se assemelha aos estudos de Hall no sentido de considerar (...) [a cultura popular em] qualquer poca, as formas e atividadescujas razes se situam nas condies sociais e materiais de classes especficas; que estiveram incorporadas nas tradies e prticas populares (...) o essencial em uma definio de cultura popular so as relaes que colocam a cultura popular em uma tenso contnua ( de relacionamento, influncia e antagonismo) com a cultura dominante. Trata-se de uma concepo de cultura que se polariza em torno dessa dialtica cultural.9

Raymond Williams em Tragdia Moderna10 nos ajuda a refletir sobre como o teatro pode ser um interessante objeto de estudo para o historiador, uma vez que a sua proposta de jogo cnico carrega invariavelmente o emergente e o residual (o que carregamos de outros perodos ou acontecimentos, bem como as permanncias) da sociedade, Williams v as revolues como fenmenos por si s trgicos, naturalmente que a tragdia como compreendida antiguidade, no encontra refgio nas obras produzidas na Europa moderna. Assim, o estudioso ingls Raymond Williams parte da elucidao do fenmeno trgico e ao breve levantamento dos diferentes tipos de tragdia surgidos desde a antiguidade at a modernidade. O autor se debrua sobre o que ele prprio designa de literatura trgica moderna. Williams levanta a problemtica de que muitos estudiosos escreveram que a tragdia se resumiria a um tempo e a uma experincia determinados. Tempo esse que, cauterizado pelo passado, arrefeceria os conflitos, transformando-os em pginas tranqilas de um livro de histria. Experincia essa que, limitando-se subjetividade do indivduo, legitimaria a ciso entre tragdia e sociedade. Desse modo, o significado corrente do termo tragdia, segundo a academia, contemplaria apenas a experincia ntima do homem, no incluindo a os conflitos presentes na sociedade. Tendo separado sistemas trgicos anteriores das suas sociedades reais, levamos a cabo umasimilar separao na nossa prpria poca, tomando como lgico que a tragdia moderna possa ser discutida sem referncia profunda crise social de guerra e revoluo, no meio da qual todos ns temos vivido. Esse tipo de interesse comumente delegado poltica ou, para usar o jargo, sociologia. Tragdia, dizemos, pertence a uma experincia mais profunda e mais ntima, ao homem e no sociedade. (...) Antes, no conseguamos reconhecer a tragdia como crise social; agora, comumente, no conseguimos reconhecer a crise social como tragdia A nova ideologia se apropria dos fatos da desordem e cancela o sofrimento no momento em que encontra o nome de um perodo ou fase. Da noite para o dia podemos transformar tudo em passado, porque acreditamos no futuro. O nosso presente9

10

Hall, Stuart. Da Dipora Identidades e Mediaes Culturais. Pg. 241. 1966.

verdadeiro, no qual a desordem radical, est to eficazmente escondido como quando era meramente poltica, porque agora apenas poltica. Saltamos ao que parece de uma cegueira para a outra, e com a mesma confiana visionria. As novas conexes enrijecem-se e no mais conectam.

Williams nos prope a compreenso da revoluo enquanto uma realidade social que nos envolve na contemporaneidade, como resultado de um processo que o tempo todo se compe e dialoga com emergentes e residuais, duas concepes de mundo que entram em conflito entre si. O sentimento de indignao e a busca do dramaturgo por denunciar o sistema poltico, econmico e social autoritrio da poca latente, o que faz o texto de certa forma dialogarem com perodos diferentes da nossa histria. Mesmo hoje, quando se apregoa que vivemos em uma democracia, com maiores liberdades individuais e maior acesso informao (que bem diferente de conhecimento), sentimos empatia e nos reconhecemos nessas personagens que o dramaturgo construiu buscando retratar o popular para criticar o nacional pungente no perodo. Dramaturgo com ampla participao poltica nas dcadas de 1950 e 1960, crtico e observador da sociedade do perodo, Dias Gomes optou inserir na pea O Pagador de Promessas caractersticas do perodo, a partir de uma viso crtica sobre as posturas morais e ticas das personagens que criou:Finalmente chegara o momento da dramaturgia brasileira sacudir o mofo e integrar-se na revoluo cnica desencadeada 10 anos antes. Desde meados da dcada de 50, um surto dramatrgico agitava nossos palcos. Primeiro, com A Moratria, de Jorge Andrade, depois, com O Auto da Compadecida, de Suassuna, e, a seguir, com Eles No Usam Black-Tie, de Guarnieri, e Chapetuba Futebol Clube, de Oduvaldo Vianna Filho. O desenvolvimento juscelinista, carregado de forte nacionalismo, valorizando o produto nacional (embora acarretando o grande erro histrico que foi a transferncia da capital para Braslia), favorecia o nascimento de um dramaturgia brasileira, com razes fincadas em nossa realidade e sobretudo ambiciosa por sua proposta esttica e pela qualidade de seus textos.11

Mesmo carregando nas tintas em sua autobiografia, uma vez que analisou os acontecimentos passados pela tica da experincia j adquirida, refletindo sobre o que j teria dado certo ou no na dramaturgia brasileira na busca do que chamamos de popular e nacional, nesse estudo, Dias Gomes localiza historicamente o perodo do governo de Juscelino Kubitschek (1956 1961) como o perodo onde a idia de nacionalidade11

Idem, p. 166.

estava muito presente, em um Brasil que possua aproximadamente 60 milhes de habitantes. O Brasil que observamos hoje de conhecidas e reconhecidas misturas e riquezas culturais, ainda no era visto por esse prisma at o final do sculo XIX, essa busca por representar o caldeiro cultural brasileiro comea com peso nos grandes palcos brasileiros, pela tica de Dias Gomes, no incio da dcada de 1960, quando mencionou que (ele escreveu que) a cultura popular brasileira era um artigo que a classe mdia e alta freqentadoras do circuito teatral no estavam acostumadas a consumir.

Objetivos O objetivo central discutir como o popular inserido em um novo contexto teatral e nacional, onde a obra de arte utiliza as caractersticas populares e a intransigncia dos poderes vigentes para criticar uma caracterstica da identidade nacional. Nesta linha de pesquisa, refletiremos sobre a linguagem especfica do teatro, analisando o discurso

presente, o qual envolve os seguintes procedimentos: a anlise interna dos discursos particulares, o confronto dos mesmos e o levantamento das condies sociais e artsticas que os produziram. Ainda como objetivo central est reflexo de como a obra representa a realidade social nas grandes cidades, enfocando quais perfis sociais retrata e legitima e, mais profundamente, como auxilia na construo da memria artstica brasileira. Pretendemos tambm enfocar as relaes de poder inerentes aos conflitos e atuantes na obra que iremos analisar, tendo em vista que, segundo trabalhos realizados por Foucault e seus seguidores12, os chamados poderes moleculares ultrapassam e complementam o poder contido no aparelho do Estado ou nas diversas instituies do social. Esperamos que, seno todos, pelo menos boa parte dos objetivos sejam alcanados no Mestrado. Afinal, com diz LOWENTHAL13, a narrativa por mais detalhada que seja, assimila apenas uma frao mnima at do passado mais relevante. Abrindo mo de concluses definitivas, tratando os conceitos no como conceitos, mas problemas e movimentos histricos14, pretendemos auxiliar no entendimento dos valores e perfis da cultura popular e de sua relao com a identidade nacional, presente durante o perodo analisado e tambm dialog-los com o espao onde se desdobram e vivem seus movimentos e tenses. Buscamos, portanto compreender a construo da ideia de popular e da crtica social na elaborao do texto teatral de O Pagador de Promessas e como a essa obra de arte que, a priori carregada de tintas nacionais, possui na verdade uma trama com caractersticas universais pois baseia-se nas relaes de poder atemporais.

Justificativa Desde a adolescncia me inquieta a possibilidade da arte interagir, intervir e denunciar questes sociais. Assim nesse perodo j demonstrava vontade de entender (o) como essas foras se articulam.

12 13

FOUCAULT, Michael. Microfsica do poder. 17 ed. Rio de janeiro: Edies Graal. 1979. P. 149-150. LOWENTHAL, David. Como conhecer o passado. Projeto Histria n 17, Trabalhos da Memria. Traduo de: Lcia Haddad. Revista do Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria e do Departamento de Histria da PUC/SP. So Paulo: PUC/SP, 1998. p.111. 14 Sobre esta questo, ver: WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

Em 1996, ingressei no curso de Cincias Sociais na Fundao Santo Andr, onde minha formao terica na rea teve o seu incio . Ao longo da graduao, devido paixo pelo tema, cursei paralelamente a graduao pela saudosa Escola de Teatro Ewerton de Castro. Buscando unir as reas do conhecimento estudadas, cursei o Latu Sensu em Histria, Sociedade e Cultura na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Aliando esta necessidade ao meu interesse e vivncias, escolhi-o como tema para o desenvolvimento do meu projeto de concluso de curso. Com o ttulo O Pagador de Promessas e O Santo Inqurito de Dias Gomes: a busca da insero e valorizao de uma viso e defesa do popular e a crtica a uma idia de nacional no teatro tradicional brasileiro nas dcadas de 1950 e 1960, onde centrei-me na anlise que verificou como os conceitos de cultura e nacional so trabalhados na obra. Percebi, as relaes de cultura popular e nacional como itens inerentes e atuantes no objeto estudado. Fiz um breve retrospecto histrico da produo do autor. Na rpida pesquisa bibliogrfica empreendida, percebi que os estudos sobre a obra so mais descritivos e comparativos a outros dramas, a partir de sua base aristotlica. No entanto, apesar de muito trabalho de pesquisa e anlise, no consegui alcanar todos os meus objetivos. Por ser um trabalho de concluso de curso na rea de Histria, no aprofundei sobre O Pagador de Promessas como fonte de pesquisa sociolgica e artstica, constituinte de representaes de prticas sociais como um retrato da realidade. A riqueza, a diversidade e a quantidade de questes envolvendo a fonte escolhida O Pagador de Promessas desperta-me o interesse de aprofundar a pesquisa no Mestrado de forma multidisciplinar unindo Sociologia e Arte. O trabalho que pretendo realizar destina-se tambm a ser uma contribuio (a mais) aos estudos que tratam da Cultura Popular, na busca que objetiva compreender melhor as relaes cultura-poder enquanto construo social atravs de fontes com rico potencial de pesquisa. Como pesquisadora, ocupo-me no processo de feitura do trabalho, do dever de sempre questionar, pensar e repensar o presente e o passado atravs da perspectiva histrica, nunca dizendo isso natural e, alm disso, mostrando com e porque isso no natural e, portanto, construo social. Encaro o texto teatral com um documento, na verdade, trata-se de um documento-monumento, utilizado para, dentre outras perspectivas, denunciar a continuidade da legitimao de poder15. Ainda sobre o poder, esta uma questo bastante15

LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: Memria Histria. Enciclopdia Einaudi. Traduo de Suzana Ferreira Borges, Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1985, vol 1 p. 545.

complexa e necessria de ser estudada em profundidade, j que inerente a pea e nela configura relaes de dominao entre grupos sociais, culturais e instituies, alm de trocas, tenses e contradies entre eles. Para um estudo mais complexo, faz-se necessrio entender como a obra interpreta as relaes cidade/campo, como ela relaciona as personagens que constri com a cidade de Salvador. Nenhum outro espao ocasiona tantas mudanas quanto a cidade, que aumenta as tenses, precipita as trocas, agita continuamente a vida de homens e mulheres16. Assim, tendo em vista que o espao no apenas onde ocorre a histria, mas tem, os sujeitos, papel ativo na construo da mesma, busco detectar na obra vrios aspectos de como discutida a participao das personagens na vida urbana e como feita a construo do prprio urbano na obra. No estudo sobre a obra no somente o texto escrito deve ser levado em conta. Afinal, o discurso engloba a relao linguagem/ contexto, compreendendo o contexto em seu sentido estrito e no sentido lato. Desse modo, o discurso no fechado em si mesmo, no se resume ao texto, no mera transmisso de informao.17 As peas de Dias Gomes nos convidam a refletir sobre importantes caractersticas na sociedade brasileira e a busca do dramaturgo em retratar uma ideia de identidade popular, assim ao mesmo tempo em que escreve sobre a inveno do popular faz uma crtica sobre a idia do que seria nacional, por meio da busca de um resgate do que acreditava ser o povo brasileiro, especialmente da regio nordeste do pas, na sua concepo: pobre, ligado ao sincretismo religioso e mtico da cultura popular da regio em encontro, e por vezes choque, com os valores e costumes vigentes nos grandes centros e na regio sudeste do pas nas dcadas de 1950 e 60.

Metodologia Procuraremos analisar minuciosamente os discursos presentes na obra e como so trabalhados na perspectiva das relaes de poder. Neste sentido, cabe ao pesquisador a tarefa de desconstruir as relaes e desnaturaliz-las; procurar desvendar o estabelecimento das hegemonias, buscando discutir com rigor as questes de16

PRADO, Sabrina Gottschlisch do. Imagens femininas na revista a Cigarra So Paulo 1915/1930. So Paulo: Mestrado em Histria, PUC/SP, 2003. P. 14. 17 LUSTIG, Silvia. Me, obrigada: uma leitura da relao me/filho no suplemento feminino do jornal O Estado de So Paulo (1953 1979). So Paulo: Mestrado ECA/USP, 1984. P. 92.

subordinao/dominao, tenso e contradio; e considerar as percepes de relaes de poder como dependentes e constitutivas s relaes sociais e culturais. Na busca da realizao de uma anlise dialtica da obra O Pagador de Promessas, escolhemos uma estratgia de anlise que permita ampliar e no reduzir o campo de observao; para isso ser necessrio recorrer histria, abordagem antropolgica social e tambm a tcnicas desenvolvidas nas cincias da linguagem. Tendo como base da anlise as colocaes de Durkheim, as representaes coletivas traduzem a maneira pela qual o grupo pensa de si mesmo, e suas relaes com os objetos que o afetam. Os mitos, as lendas populares, as vrias concepes religiosas existentes, as crenas morais e etc., exprimem para Durkheim uma realidade diversa da realidade individual; mas poderia suceder que a maneira como se atraem ou se repelem, se agregam ou desagregam, seja independente do seu contedo e depende unicamente da sua qualidade geral de representaes. A obra de arte assim pode ser tomada como um fato social, uma vez que o fato social tudo quanto se produz na e pela sociedade, ou ainda, o que interessa e afeta o grupo, de alguma maneira18. De tal forma que para a anlise necessrio levar em conta as maneiras de atuar e pensar, exteriores ao indivduo, dotadas de um poder coativo em virtude do qual se lhe impem. importante destacar que no se confundem com os fenmenos orgnicos, uma vez que consistem em representaes e aes. A premissa da coero est presente na obra uma vez que pode se aplicar na maneira mais essencial na noo de coero social, porque tudo quanto se implica que as maneiras coletivas de agir e pensar tm um realidade fora dos indivduos, que, a cada momento, a elas se devem conformar. Para Durkheim, no h nada de inconcebvel, que lhe no permita de ser caracterizado de maneiras diferentes; porque no h razo para que se possua uma nica propriedade distintiva, o que importa escolher aquela que parea melhor para o fim que se tem em vista. mesmo muito possvel o emprego concorrente de vrios critrios, segundo as circunstncias. Ainda sobre a contribuio de Durkheim a estrutura da metodologia escolhida, a obra tomada como fato social reconhecida pelo poder de coero externa, que exerce ou capaz de exercer sobre os indivduos, e a presena desse poder reconhecida por sua18

DURKHEIM, mile. As regras do mtodo sociolgico. Traduo de J. Rodrigues Merje. So Paulo: Companhia Editora Brasileira, 1937, p. 155.

vez, quer pela existncia de uma sano determinada, quer pela resistncia que o fato ope a qualquer tentativa individual tendente a contrari-lo. Em Florestan Fernandes encontraremos algumas formulaes sobre o folclore e a cidade que nos permitiro trabalhar alguns aspectos da obra, tal como a possibilidade da diverso (no caso, literria e teatral), trazer consigo a medida do homem, tambm eleva esfera da conscincia ou ao plano da ao certas distines fundamentais para o comportamento humano, enquanto a urbanizao se organizaria custa da desagregao da cultura popular e em condies que favorecem muito pouco o influxo construtivo desta sobre a formao da civilizao industrial e urbana19. Um outro aspecto importante da obra, o sincretismo religioso, tambm pode ser pensado sobre a problemtica da religio oficial que muitas vezes entra em choque com a cultura popular. A religio oficial, o cosmopolitismo cultivado com smbolo de civilizao pelas camadas dominantes e a supremacia indisputada do saber erudito em contraste com o saber popular criaram essa situao que confinou, pouco a pouco, os elementos folclricos do patrimnio cultural (...) a crculos humanos que no poderiam valoriz-los socialmente nem defend-los ativamente20. A forma que se organizou historicamente a sociedade recm urbanizada tambm importante na reflexo, uma vez que o paternalismo mantinha as relaes de classes em planos ainda pr-capitalistas. Mas perdeu o carter eficiente de ajustamento e de controle sociais universais. Podia dar certo em algumas situaes, sendo evidentes sua inconsistncia com a nova ordem social. Por outro lado, a expanso do sistema de classes acarretou vrias conseqncias de grande importncia na reconstruo do sistema de concepo de mundo nas camadas populares. Dela resultou uma tendncia decidida valorizao do saber erudito, uma nsia incontida de assimilao das tcnicas racionais de pensar e de agir bem como formas de conscincia da situao histrico-social que pretendiam, abertamente, desmascarar acomodaes produzidas por arranjos de cunho paternalista. Isso que os prprios agentes societrios, que serviam de veculo humano ao folclore, passaram a interessar-se e a defender uma concepo do mundo na qual as tradies foram relegadas a plano inferior. Em consonncia com esse processo, que acompanhava com aprecivel atraso processo anlogo ocorrido previamente nas camadas dominantes, as instituies oficiais passaram a exercer presses mais definidas e drsticas contra os elementos culturais que pareciam perpetuar um estado de19

FERNANDES, Florestan. Folclore e mudana social na cidade de So Paulo. 2 edio. Petrpolis: Vozes, 1979, p. 20. 20 Idem, p. 37.

ignorncia e de incultura. A Igreja Catlica tornou-se, progressivamente, mais severa com as crendices populares e com as manifestaes profanas que circundavam as prticas religiosas nas camadas populares. (...) A Polcia aumentou o rigor da represso a atividades que podiam parecer perniciosas ou imprprias em uma cidade civilizada21. Com relao ao indivduo envolvido nessas questes, Florestan indaga sobre o que aconteceria ao homem que se mantm fiel sua herana cultural tradicional, uma vez que a cidade se alterou: indivduos e grupos, que se apeguem a formas obsoletas ou prurbanas de pensamento e de ao, dificilmente conseguem ajustar-se satisfatoriamente s exigncias da situao. Certas avaliaes tradicionais sobre o dever, a reciprocidade, a palavra de honra ou a integridade do prprio homem no possuem mais pontos de referncia sociais. O indivduo que se mantenha fiel a elas sujeita-se a sofrer decepes em todos os nveis da vida prtica. Buscando alguns pesquisadores que j se debruaram sobre o tema cultura popular, destacamos as observaes de Eclia Bosi (1972) onde a cultura aparece sempre como uma terra de encontro com outros homens. Para a autora, se existem duas culturas, a erudita ter que aprender muito da popular: a conscincia do grupo e a responsabilidade que advm dela, a referncia constante prxis e, afinal, a universalidade:E se um dia a classe pobre alcanar a gesto sobre seu destino, a sua cultura no deixar de englobar os valores dos que trabalham, valores que se opem aos dos que dominam. Valores como o interesse pelo outro, a maneira direta de falar, o sentido do concreto e a largueza em relao ao futuro, uma confiante adeso humanidade que vir, to diferente do projeto burgus para o amanh, da reduo do tempo ao contbil que exprime o predomnio do econmico sobre todas as formas de pensamento 22.

Bosi argumenta que os historiadores ainda no entraram em um acordo sobre o grau de conservadorismo da cultura popular, para alguns ela cita que cultura popular intrinsecamente conservadora, pois expressa uma viso de mundo que reflete as condies de dominao a que esto sujeitos seus produtores e consumidores, nos planos poltico, econmico, social e cultural, sob a influncia principalmente dos mass-media, as manifestaes culturais populares no fazem seno reproduzir valores e padres sociais21 22

Ibidem, p. 38. BOSI, Ecla. Cultura de massa e cultura popular: leituras de operrias. Petrpolis: Vozes, 1972, p.20.

dominantes. Outros, ao contrrio, afanam-se em descobrir, nessas mesmas manifestaes, indcios embrionrios ou explcitos de resistncia estrutura de poder vigente uma palavra, um gesto, uma atitude triunfalmente exibidos como sinais de contestao. Nessa linha de reflexo, buscaremos descobrir os indcios utilizados na lgica que preside e sustenta os fragmentos aparentemente contraditrios dessa verdadeira bricolagem que chamada cultura popular retratada na obra de Dias Gomes. A tcnica tradicionalmente utilizada nas cincias sociais quando se trata de analisar material discursivo mensagens dos meios de comunicao de massas, discursos polticos, documentos, obras literrias, etc. era a anlise de contedo. E aqui era, na verdade, por onde talvez escapava o essencial: a fragmentao do discurso, as redundncias, os silncios, o no dito, o gesto que acompanha, modifica ou substitui a palavra so to ou mais significativos do que aquilo que expresso discursivamente. Essa situao, muito freqente na prtica de pesquisas sobre o universo simblico e suas manifestaes, pode ser ilustrada com o exemplo dado no trabalho de MAGNANI de dirigentes de associaes que, quando se lhes pedia a opinio a respeito de poltica, invariavelmente respondiam que coisa suja; no entanto, para resolver os problemas do bairro, no tinham nenhum prurido em recorrer a deputados, vereadores, em busca de apoio23. Por outro lado, a questo que se coloca aqui, com respeito ao espetculo teatral em geral, e a pea do Dias Gomes, em particular, no a de decifrar o verdadeiro sentido oculto nas profundezas da estrutura, e menos ainda de determinar se conservador ou contestatrio, como ocorre em boa parte das anlises semnticas. Ao invs de procurar saber se determinado drama, msica ou fala expressam, aberta ou disfaradamente, vises mistificadas ou corretas da realidade, o que se prope buscar respondera uma indagao prvia: por que desperta interesse e prende a ateno? Onde reside sua capacidade de capturar o pblico? A questo exige que se explicite o caminho que se formula pata tentar respondla, no caso a verossimilhana. necessrio que o discurso produza alguma ressonncia junto queles aos quais se dirige caso contrrio nada significar, ou melhor, poder ter sentido, mas no farsentido ser inverossmil para os receptores. Um relato qualquer verossmil quando23

MAGNANI, Jos Guilherme Cantor. Festa no Pedao Cultura Popular e Lazer na Cidade. 3 edio. Editora UNESP. Editora HUCITEC. So Paulo. 2003.

se ajusta realidade; no este, porm, o sentido com que o termo fora empregado na antiga retrica. Segundo Aristteles, verossmil aquilo que o pblico acredita como possvel, e nesse sentido define a verossimilhana como a relao de um texto particular com outro, geral e disperso, a que denomina opinio pblica. O que est em jogo no saber se o discurso falso ou verdadeiro em decorrncia de sua adequao com a realidade, mas se vero-smil, ou seja, capaz de parecer-se representao que se tem dessa realidade. O que caracteriza, o que verossmil a semelhana verossmil todo discurso que est em relao de semelhana, de identificao, de reflexo com o outro. O verossmil pr juntos dois discursos diferentes, um dos quais se projeta sobre o outro que lhe serve de espelho e se identifica com ele por cima da diferena24 Para que se produza o efeito de verossimilhana, isto , a relao de semelhana entre dois discursos preciso que haja conformidade com as leis do gnero. Assim, por exemplo, o drama possui suas prprias regras diferentes das da comdia, ou outro gnero e s ser reconhecido como tal, pelos espectadores, se pauta por elas. Assim importante, seno essencial, que leitor e pblico possuam o mesmo senso de humor, o mesmo lastro social e vises de mundo semelhantes, o que tambm vlido para os folheteiros e poetas.25 E justamente a permanncia de certos princpios estruturantes bsicos que Bosi acredita que se explica a vitalidade e o particular estilo dessa forma de entretenimento, no obstante a heterogeneidade dos elementos que a compem, mais do que constatar a presena de uma estrutura, trata-se de analisar sua capacidade de incorporar os elementos propostos por Dias Gomes - a crtica ao nacional e a sociedade da poca, as dualidades, as relaes de poder, o mito do heri vencido e de construir com eles um discurso verossmil. Com relao aos fatores propriamente discursivos, a anlise dever mostrar os componentes estruturais que esto na base do efeito de verossimilhana da obra teatral e a forma com essa verossimilhana produzida a partir da crtica e reflexo sobre as aes da sociedade do espetculo no perodo. Convm recordar, a propsito, o modo de operao das pesquisas etnogrficas que em busca dos padres culturais mais abrangentes que do sentido a ritos, costumes, mitos, etc., trabalham tanto com a observao direta destes fatos como tambm com as24 25

KRISTEVA, Julia. La productividad llamada texto, in Barthes ET alli, 1972, p.66. ARANTES, Antnio. O trabalho e a fala. So Paulo: Kairs Funcamp, 1982. P. 37.

explicaes dos membros da comunidade sobre sua prtica. Eunice Durham (1980) assinala que a utilizao simultnea de aes e discursos como evidncias igualmente vlidas para a construo de sistemas que permitam apreender o significado, implica conceber a relao entre regra explcita e conduta, ou entre discurso e ao de um modo particular. No conjunto, os antroplogos tendem a operar como se tanto a conduta organizada, de um lado, com as regras conscientes e representaes de outro, fossem igualmente produzidas pelos padres culturais que a cincia revela.26 Isso significa que discursos, por uma parte, e aes, por outra, no so realidades que se opem, nem que um opera distorcendo a outra: seriam antes formas diferentes mas complementares de expresso de um universo simblico que s pode ser apreendido como sistema abstrato, mas que se manifesta atravs da especialidade de cada situao concreta. A obra acaba por conservar resduos artesanais, rurais, ou populares indistintamente, ela sempre engajada quando se corporifica em algum lugar e tempo. Para Escarpit a evaso, a fantasia podem enriquecer o leitor, reconcili-lo com o absurdo da condio humana em certos momentos, levantar sua esperana, alargar sua linguagem e sua conscincia.27 Tomando a obra de arte como literria, buscaremos em Antnio Candido direo para a pesquisa a partir das observaes levantadas sobre a sociologia da literatura (1965) para investigar a relao entre a obra de arte e os fatores sociais (que possuem o papel de formadores da estrutura da obra), que no devem ser relacionados de modo simplista: antes procurava-se mostrar que o valor e o significado de uma obra dependiam de ela exprimir ou no certo aspecto da realidade, e que este aspecto constitua o que ela tinha de essencial. Depois, chegou-se posio oposta, procurando-se mostrar que a matria de uma obra secundria, e que a sua importncia deriva das operaes formais postas em jogo, conferindo-lhe uma peculiaridade que a torna de fato independente de quaisquer condicionamentos, sobretudo social, considerado inoperante como elemento de compreenso. Hoje sabemos que a integridade da obra no permite adotar nenhuma dessas vises dissociadas; e que s a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretao dialeticamente ntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convico de que a estrutura virtualmente independente, se combinam como momentos necessrios do processo26 27

DURHAM, Eunice R. Cultura e ideologia. So Paulo: USP, mimeo, 1980, p. 05. ESCARPIT, Robert. Sociologia da literatura - Lisboa: Arcdia, 1969, p. 203.

interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, no como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituio da estrutura, tornando-se, portanto, interno28. Partindo de seus aspectos histricos, dimenso essencial para apreender o sentido do objeto estudado, associando as algumas modalidades de estudo de tipos sociolgicos em literatura levantada por Antnio Candido; como em qual medida a obra espelha ou representa a realidade (correlaes entre os aspectos reais e os da obra de arte), e a posio e funo social do artista (buscando relacionar a posio de Dias Gomes com a natureza da sua produo).

Cronograma Prazo mximo de 36 meses

Eventos Pesquisa bibliogrfica Pesquisa emprica Captulos Concluses28

Fevereiro/2 maio/20 011 11

Outubro/2 011

Junho/20 Fevereiro/2 1 013 2

OUTUBRO/2 013

e

reviso X X X X X X X X

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9 edio. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. P. 13 e 14.

Reviso do texto Entrega do trabalho Defesa

X X X

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