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1 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E AVALIATIVAS NAS TURMAS DE ALFABETIZAÇÃO: CONFRONTOS NA RELAÇÃO DA APRENDIZAGEM COM A TEORIA E A PRÁTICA Por Elaine Constant (UFRJ) RESUMO Este trabalho apresenta uma investigação sobre como os professores apreendem as propostas de alfabetização e avaliação oriundas das políticas oficiais de âmbito nacional e seu desdobramento em nível municipal, em especial, na cidade do Rio de Janeiro. Para analisar essa questão foram importantes os depoimentos orais dos professores, a partir da implantação dos Ciclos de Formação, momento em que se fez a exigência de novas maneiras para ensinar. Com esse estudo, pretende-se contribuir para o debate sobre as rupturas nas práticas pedagógicas e as mudanças na sistemática de avaliação escolar, pois os professores consideram, ao receber a nova proposta, suas concepções anteriores, baseando-se em seus conhecimentos específicos e crenças docentes, recusando a obsolescência e o desperdício de sua experiência, bem como as estratégias de uma reprofissionalização constante oriundas de uma política educacional. Palavras-chave: Práticas pedagógicas; avaliação escolar; crenças docentes. 1. Folheando a história de algumas práticas pedagógicas: Onde os professores “aprenderam” a alfabetizar? [...] Primeira turma de alfabetização foi há três anos. Quando cheguei, peguei uma turma de 1º ano do Ciclo. Fiquei meio apavorada [...]. me surpreendi quando um aluno falou comigo, assim que eles começaram dominar a escrita, [...] „tia, hoje a saída foi um pouco mais cedo e eu escrevi um bilhete para minha mãe e deixei na geladeira escrito: mãe, hoje eu vou sair cedo‟. S. começou a utilizar mesmo a escrita! Fiquei bastante feliz com isso [...]. Concluí que não há uma receita para alfabetizar a sua turma [...]. O que desperta mais a atenção deles, o que eles gostam mais é o que importa, e aí vou utilizando no dia-a-dia [...] Procurei a coordenadora e disse: não sei alfabetizar e nem sei por onde começar! Então resolvi partir do princípio daquilo que sabia e que me dava segurança e comecei com músicas. Eu pegava a palavra que as crianças gostavam e dali, na música, começava a desenvolver até chegar na silabação e tomava leitura todo dia [...]. Acredito que eu uso um pouco do construtivismo, a partir daquilo que interessa aos alunos. Procuro ver como eles estão, em que fase [...] e como o conhecimento está se formando (Professora da rede municipal da cidade do Rio de Janeiro). Este é um depoimento de uma professora da rede municipal de Educação da cidade do Rio de Janeiro em 2003. Neste período, algumas professoras alfabetizadoras XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004164

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E AVALIATIVAS NAS TURMAS DE

ALFABETIZAÇÃO: CONFRONTOS NA RELAÇÃO DA APRENDIZAGEM

COM A TEORIA E A PRÁTICA

Por Elaine Constant (UFRJ)

RESUMO

Este trabalho apresenta uma investigação sobre como os professores apreendem as

propostas de alfabetização e avaliação oriundas das políticas oficiais de âmbito nacional

e seu desdobramento em nível municipal, em especial, na cidade do Rio de Janeiro. Para

analisar essa questão foram importantes os depoimentos orais dos professores, a partir

da implantação dos Ciclos de Formação, momento em que se fez a exigência de novas

maneiras para ensinar. Com esse estudo, pretende-se contribuir para o debate sobre as

rupturas nas práticas pedagógicas e as mudanças na sistemática de avaliação escolar,

pois os professores consideram, ao receber a nova proposta, suas concepções anteriores,

baseando-se em seus conhecimentos específicos e crenças docentes, recusando a

obsolescência e o desperdício de sua experiência, bem como as estratégias de uma

reprofissionalização constante oriundas de uma política educacional.

Palavras-chave: Práticas pedagógicas; avaliação escolar; crenças docentes.

1. Folheando a história de algumas práticas pedagógicas: Onde os professores

“aprenderam” a alfabetizar?

[...] Primeira turma de alfabetização foi há três anos. Quando

cheguei, peguei uma turma de 1º ano do Ciclo. Fiquei meio

apavorada [...]. me surpreendi quando um aluno falou comigo, assim

que eles começaram dominar a escrita, [...] „tia, hoje a saída foi um

pouco mais cedo e eu escrevi um bilhete para minha mãe e deixei na

geladeira escrito: mãe, hoje eu vou sair cedo‟. S. começou a utilizar

mesmo a escrita! Fiquei bastante feliz com isso [...]. Concluí que não

há uma receita para alfabetizar a sua turma [...]. O que desperta mais

a atenção deles, o que eles gostam mais é o que importa, e aí vou

utilizando no dia-a-dia [...] Procurei a coordenadora e disse: não sei

alfabetizar e nem sei por onde começar! Então resolvi partir do

princípio daquilo que sabia e que me dava segurança e comecei com

músicas. Eu pegava a palavra que as crianças gostavam e dali, na

música, começava a desenvolver até chegar na silabação e tomava

leitura todo dia [...]. Acredito que eu uso um pouco do construtivismo,

a partir daquilo que interessa aos alunos. Procuro ver como eles

estão, em que fase [...] e como o conhecimento está se formando

(Professora da rede municipal da cidade do Rio de Janeiro).

Este é um depoimento de uma professora da rede municipal de Educação da

cidade do

Rio de Janeiro em 2003. Neste período, algumas professoras alfabetizadoras

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de uma escola na Zona Oeste foram convidadas para uma entrevista sobre a prática

docente, em virtude de uma pesquisa sobre os Ciclos de Formação. Esse trabalho foi

desenvolvido por alguns coordenadores pedagógicos dessa secretaria de ensino. Ele

objetivava contribuir com uma formação profissional mais adequada às novas propostas

pedagógicas, implementadas nas escolas da rede municipal carioca.

Para a Secretaria Municipal de Educação (2000), o teor do Ciclo de Formação

caracteriza-se como “uma forma diferente de conceber o tempo e a organização

curricular, que se fundamenta nos princípios de respeito às singularidades, aos

diferentes ritmos de aprender de cada aluno, e do direito à comunidade do processo de

desenvolvimento de todos os alunos, sem interrupção, nem retrocessos” (p.4).

De acordo com a professora entrevistada acima, a ação de “escrever um bilhete”

e “dominar a escrita” traduzem o êxito na prática docente. Para ela, não importa a

metodologia utilizada para ensinar, pois o objetivo fundamental é a apropriação da

leitura e da escrita como instrumento de comunicação. Para resolver os impasses com a

alfabetização, a docente opta pelos caminhos já conhecidos na experiência pessoal e

profissional para dar conta dos desafios oriundos de novas exigências no mundo do

trabalho. Também se observa que há diferentes alternativas no “fazer pedagógico”, pois

há certo desconhecimento sobre as transformações conceituais e atuais nas práticas

alfabetizadoras, visto que a professora mostra incerteza no “uso do construtivismo” para

ensinar.

Convém ressaltar que, atualmente, a preocupação com metodologias ou práticas

pedagógicas ainda se mantém entre os professores da rede municipal carioca, pois em

um curso de formação proporcionado em 2010 pela Secretaria de Educação desta

cidade, eles sugeriram, por meio de relatórios, algumas possibilidades de ajuda para o

trabalho com as turmas em processo de alfabetização, como por exemplo, cursos e

palestras; atividades práticas para o processo de apropriação da língua portuguesa; troca

de experiências e avaliação da aprendizagem. Ao que parece os docentes indicam o

desejo de aprimoramento profissional, mas que contemple uma formação mais prática e

menos teórica. Considerando que a metodologia para ensinar a ler e escrever está em

debate, eis que algumas indagações se fazem: Os professores “desaprenderam” a

ensinar? Como estão se constituindo a aprendizagem e a avaliação no contexto escolar?

Este estudo é inspirado em inquietações sobre os motivos pelos quais o

surgimento de novas práticas pedagógicas e avaliativas na alfabetização acontecem no

cotidiano de escolas públicas advindas de reformas no cenário educacional carioca que

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intencionaram inibir reprovações e fatores de exclusão social via novos processos de

alfabetização e de avaliação discente. Pretende-se discutir o surgimento de novas

concepções para a prática dos professores, bem como as formas de avaliação

implementadas a partir do surgimento de inovações pedagógicas.

Portanto, o objetivo deste estudo é investigar como os professores apreendem as

propostas de alfabetização e avaliação oriundas das políticas oficiais de âmbito nacional

e seu desdobramento em nível municipal. Trata-se de uma busca por elementos que

possam contribuir para o desenvolvimento de ações políticas e pedagógicas cotidianas,

comprometidas com a democratização interna das escolas e as práticas pedagógicas e

avaliativas.

Para Tardif (2002), os “saberes docentes” são constituídos em processos

oriundos da experiência profissional e da própria formação profissional. Assim, a

natureza dos conhecimentos profissionais pode ser essencialmente pragmática, sem se

fundamentar nos conhecimentos científicos.

Pode-se aprender que o saber dos professores não compreende o que é de foro

íntimo relacionado somente às representações mentais, mas “um saber sempre ligado a

uma situação de trabalho com outros (alunos, colegas, pais etc.), um saber ancorado

numa tarefa complexa (ensinar), situado num espaço de trabalho (a sala de aula, a

escola), enraizado numa instituição e numa sociedade” (op.cit, p. 15). Ainda de acordo

com Tardif (idem), “as relações dos professores com os saberes nunca são relações

estritamente cognitivas: são relações mediadas pelo trabalho que lhes fornecem

princípios para enfrentar e solucionar situações cotidianas” (idem, p. 17). A atividade

profissional docente está, de certo modo, na confluência com acontecimentos que

exigem conhecimentos oriundos da sociedade à sua volta, da própria instituição escolar

e de outras instâncias educacionais.

Neste sentido, as inovações pedagógicas podem desmobilizar os professores,

gerando sentimentos de incapacidades, levando-os a duvidar de suas competências. O

recomeço profissional, melhor dizendo, o “começar tudo de novo”, contribui para o

entendimento de que se é incapaz de lidar com as novas perspectivas na aprendizagem

dos alunos.

O “não-saber” sobre as atuais concepções pedagógicas, apresentadas no ano de

2003, já citado anteriormente neste trabalho, como novas orientações para a formação

docente, parece ser um movimento comum entre os professores. Trago aqui, mais um

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depoimento de outra professora de uma escola da rede municipal do ano de 2003.

Segundo esta profissional:

Eu não tenho um método específico, mas vários. Depende da turma.

Eu trabalho com o fônico dependendo da turma, trabalho palavração

e de repente trabalho com o misto. Faço miscelâneas! Misturo um

pouquinho de cada método, depende da turma. [...] O construtivismo

é maravilhoso, muito bom, eu aprovo, mas depois da criança

alfabetizada, porque ela vai construir textos com apresentação de

gravura ou sem elas. Depois que estão dominando a leitura e a

escrita, eu trabalho plenamente com o texto (MD.).

Nota-se que para a docente, há a necessidade de criar uma proposta eclética de

aprendizagem, baseada nas concepções tradicionais, como tentativa de lidar com a

alfabetização dos alunos. Para a professora, as inovações proposta pelo construtivismo

só poderão ser traduzidas em práticas pedagógicas, após a assimilação do processo de

leitura e escrita. Percebe-se que a docente considera que a perspectiva construtivista não

está relacionada ao processo de aprendizagem da alfabetização, pois não se constituem

de maneira simultânea, pois um é requisito para o outro.

Constata-se que a política oficial parece não ter suscitado uniformemente a

superação das exigências para a docência, pois cada professora mostra situações

diferenciadas para uma proposta. Para a primeira professora, da epígrafe deste texto,

surge uma instabilidade que a faz procurar alternativas para superar seus dilemas no

cotidiano, enquanto para outra a dimensão técnica com a alfabetização acontece

independentemente de novos arranjos. Convém considerar que o uso de métodos de

alfabetização decorre de uma concepção de sociedade, da atividade prática, do processo

de conhecimento e da compreensão da metodologia educativa numa determinada

sociedade. São ações profissionais docentes que organizam as atividades de ensino e

dos alunos para atingir objetivos em relação a um conteúdo específico.

As práticas reveladas nos depoimentos destas professoras, sobre uma sala de

aula e o cotidiano de professores e alunos, apresentam uma tensão constante entre os

conhecimentos anteriores, as propostas oficiais e a prática docente. Desta forma, a

utilização de diferentes métodos pode contribuir para elucidar quais são os motivos de

uma “negociação pedagógica” e esclarecer os sentidos dados por cada professor ao

papel da alfabetização.

É importante perceber que, no espaço escolar, há uma apropriação dos

documentos oficiais ou pessoais de forma diferenciada, revelando uma personalidade

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enredada em histórias pessoais e coletivas de um espaço-tempo de interação entre

sujeitos sociais. Isto nos leva a afirmar que, diante das estratégias do poder instituído, os

professores desenvolvem “táticas desviacionistas” (Certeau, 1994, p. 92) que

possibilitam, para a escritura, uma busca pela rapidez e funcionalidade, visto que, para

ele, uma tática

Opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as „ocasiões‟ e

delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a

propriedade e prever saídas. O que ela ganha não se conserva. Este

não-lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade

aos azares do tempo, para captar no vôo as possibilidades oferecidas

por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as

conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder

proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde

ninguém espera. É astúcia. (Idem, p. 100)

Desta forma, as práticas ecléticas apresentadas pelas professoras, mostram as

“geografias de ações” (Certeau, 1994, p. 200), que se originam a partir de um campo de

linguagem e elucidam os percursos e o uso do espaço escolar “produzido pelas

operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em

unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidade contratuais” (Idem, p.

202).

Para Mortatti (2000), o “método misto”, ou eclético, baseado na alternância

entre os métodos analítico-sintético ou sintético-analítico, desponta na década de 1920 e

o uso torna-se predominante em 1970, principalmente, na cidade de São Paulo. Para a

autora, este período histórico, com a associação de métodos, está ligado ao fato de

adaptar a Educação a uma nova ordem política social idealizada pelo ideário liberal de

democratização da cultura e dos aspectos psicológicos para a aprendizagem, tanto da

leitura quanto da escrita. Desenvolvia-se assim, a função socializadora e adaptadora da

alfabetização no âmbito da educação popular. Considerava-se que era preciso criar

práticas pedagógicas mais adequadas à “natural vivacidade do espírito infantil” e

„fornecer à criança um poderoso instrumento de aquisição de idéias e pensamentos‟

(p.124).

Significa também um discurso tendente ao controle e homogeneidade das

pluralidades das práticas alfabetizadoras, visto que há a ênfase nos aspectos

psicológicos em detrimento dos lingüísticos e pedagógicos, favorecendo a

secundarização dos problemas com os métodos de ensino, visto que

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Tanto o sucesso das cartilhas baseadas no método misto quanto a

permanência das que utilizam os métodos sintéticos ou método

analítico parecem ser outros índices da tendência à rotinização dessa

opção eclética, como alternativa aos impasses gerados pela adoção

exclusiva de um método. (Idem, 213)

Ainda de acordo com Mortatti (op.cit), a implementação dos métodos ecléticos

de alfabetização ganhou significativo destaque no cenário educacional no século XX,

porque era preciso garantir formas de ensinar mais rápidas, lógicas e “perfeitas” para

boa parte dos alunos. Sintetizava os anseios do “ensino moderno” que respeitava as leis

científicas do aprendizado da leitura.

Retornando as professoras entrevistadas em 2003, a prática de metodologias

mistas para alfabetizar ainda se mostra como uma realidade pedagógica vivida na rede

municipal do Rio de Janeiro. Mas estas práticas no cenário atual informam outros

motivos diferentes daqueles mostrados entre 1920 e 1970. Para as docentes do século

XXI, há uma tensão na relação da aprendizagem com a teoria e a prática. A opção pelo

eclético, como já dito anteriormente, se justifica devido à sensação de insegurança ao ter

que ensinar utilizando teorias “desconhecidas” pelos professores, como no caso deste

estudo, o construtivismo.

Esta concepção, como teoria pedagógica, privilegia a noção de “construção” do

conhecimento mediante as interações entre o aluno e a aprendizagem. E isso pressupõe

a intervenção do ambiente social de quem estuda. Essa concepção não é inatista, na qual

a apropriação do conhecimento resulta de “estalos” que poderiam surgir do “nada” ou

de um “milagre”. Como teoria, partiu da Psicologia com a perspectiva interacionista.

Para os autores adeptos desta concepção, a aprendizagem humana é definida

como um esforço de construção de novas formas de apropriação do conhecimento,

melhor dizendo, a constituição de novas elaborações cognitivas, a partir da influência

mútua com diferentes contextos sociais em que está inserida. A interação ajuda uma

criança a elaborar um conjunto de classes, conceitos e relações que a possibilita

assimilar os significados.

Convém ressaltar que as perspectivas anteriores eram bem diferenciadas das

concepções interacionistas. Para a teoria inatista, as capacidades básicas do ser humano,

como por exemplo, os comportamentos e a personalidade, são inatos e determinados

biologicamente. Já para a teoria ambientalista, também chamada behaviorista ou

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comportamentalista, considera a experiência como fonte de conhecimento e de

formação de hábitos de comportamento; preocupa-se em explicar os comportamentos

observáveis do aluno, desprezando a análise de outros aspectos da conduta humana tais

como: o raciocínio, o desejo, a imaginação, os sentimentos e a fantasia, entre outros;

defende a necessidade de medir, comparar, testar, experimentar e controlar o

comportamento e desenvolvimento e a aprendizagem.

Significa, por parte dos autores da concepção interacionista, uma busca por uma

teorização sobre o desenvolvimento e a aprendizagem em diferentes contextos sociais.

Neste sentido, não se pode negar a importância dos aspectos históricos, sociais e

culturais no processo de aprendizagem e as transformações no conceito tradicional de

inteligência e do “erro” escolar.

Convém ressaltar que as novas teorizações, em especial, a correlação do

construtivismo com a alfabetização, se defrontavam com a impossibilidade de se ater a

um único referencial teórico para os professores que, pretensamente, abarcasse a

explicação da realidade física e social da escola.

Esta concepção favoreceu mudanças na formação docente e os professores

foram orientados, de acordo com os depoimentos, a incentivar seus alunos a valorizar o

recomeço constante nas atividades escolares. Representava o postulado de que aluno

deveria perder o medo de errar a cada nova aquisição na escola.

De acordo com as professoras, a “flexibilização” sobre a avaliação no processo

educativo favoreceu uma discussão sobre os conteúdos escolares e a aprendizagem,

alicerçada em uma proposta que questionasse o “erro” construtivo no percurso escolar.

Para os docentes, começou-se a enfatizar que a forma como o erro no processo de

aprendizagem era percebido no cotidiano escolar, vitimizava o aluno, que aos poucos

desenvolveria uma visão culposa extremamente grave perante a vida. A criança era

“castigada” duplamente, porque qualifica sua incompetência e por si mesmo, que ao

reiterar o erro vivencia a autopunição.

Constitui uma modificação na forma de “avaliar” os alunos, pois não se

considerava mais “erro” uma forma de “não-saber”, mas “ainda não saber” um

determinado conhecimento escolar. Este postulado ganhou maior adesão com a

transferência das teorias para a educação mediadas pela pesquisa de Emília Ferreiro.

Para a autora, o processo de entendimento das crianças sobre a noção de escrita supõe

conexões com os conceitos da Psicologia e da Lingüística, pois representava uma

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revisão sobre as aprendizagens da língua escrita, em especial, na língua espanhola e no

desenvolvimento cognitivo.

Convém ressaltar que a Psicogênese da Língua Escrita, de Emília Ferreiro é um

livro de pesquisa que documenta fatos observados pela autora de como as crianças

aprendem a escrever. O livro não propõe abandonar o uso da cartilha, não propõe a não-

correção do erro da escrita, como também não propõe o “espontaneismo” na sala de

aula. A prática construtivista não consiste na idéia de contemplar as crianças, enquanto

elas “constroem” seu próprio conhecimento. Entretanto, pode-se afirmar que

O problema é que [...] algumas interpretações equivocadas do

construtivismo têm recusado a apresentação de informações

relevantes ao avanço dos alunos, como se todos os conhecimentos

pertinentes à apropriação da língua escrita pudessem ser construídos

pelos próprios alunos, sem a contribuição e a orientação de um

adulto mais experiente. Mais um problema resultante de

interpretações errôneas do construtivismo tem sido a defesa unilateral

de interesses e hipóteses das crianças, o que acaba limitando a ação

pedagógica ao nível dos conhecimentos prévios dos alunos. Essa

limitação gera fracassos, porque compromete a proposição e a

avaliação de capacidades progressivas e acaba sendo usada, pela

própria ação pedagógica, como justificativa para o que não deu

certo. (Ministério da Educação, 2008, p.10)

Neste sentido, verificam-se ainda inúmeros problemas e rupturas nas práticas

que se consideravam construtivistas. Tornava-se necessário primeiramente um

aprofundamento lingüístico e pedagógico para os professores que demonstravam

interesse em um trabalho psicolingüístico. Mas os depoimentos dos professores

sugerem que a orientação era de que o erro apresentado pelos alunos nas atividades de

leitura e escrita passasse a ser interpretado como processo de construção de

conhecimento e o professor fosse tido como o principal mediador da aprendizagem,

realizando uma “análise clínica” das elaborações escritas discentes:

Estou desanimada com as decisões impostas pela resolução da SME.

Gostaria de ver os alunos progredindo e com chances de futuro, mas

não acredito em aprovações e sistemas de avaliação que, ao invés de

ajudar os alunos, poderão criar um novo mecanismo de

discriminação das classes mais pobres (MD, 02/05/00).

Assim, a avaliação aferida, antes por notas, passou a ser considerada como um

processo contínuo e participativo, voltado à reflexão dos resultados alcançados. Esses

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desdobramentos trouxeram algumas transformações profundas para o contexto escolar,

tais como: nova concepção metodológica para o aprendizado da leitura e da escrita e,

principalmente, os projetos para alfabetização.

Neste sentido, é importante atentar sobre a correlação das práticas das

aprendizagens está plenamente vinculada com a avaliação escolar, assim sendo, parece

que ao “desaprender” a ensinar, avaliar tornou-se uma atividade mais difícil de ser

realizada pelos professores. Eis que uma questão se colocou no cotidiano dos

professores: Era necessário desaprender a ensinar para re- aprender?

Sob certo aspecto, a mudança na sistemática de avaliação significou uma quebra

no cotidiano docente, pois o professor considerou, ao receber a nova proposta, suas

concepções anteriores, baseando-se em suas experiências e crenças docentes, a rejeição

pela nova proposta. Isto foi analisado, no caso deste estudo, pela Secretaria de

Educação, como uma atitude de resistência, que, segundo Macedo (1999), não é

desprovida de sentido:

Toda resistência tem uma historicidade que precisa ser buscada, se

pretendemos efetivamente entender o que se passa, modificar o que

existe. Desqualificar as resistências pode ser o primeiro passo para a

imposição de currículos que não serão cumpridos. As resistências são

manifestações de alternativas. Cada professor tem, construídas a

partir de suas experiências, alternativas e uma proposta estabelecida.

O currículo vivido no interior das escolas está sempre dialogando

com ela. (p. 1)

Já para Chauí (1986), a resistência pode ser entendida como uma possível

negociação da cultura popular, em que, se não contestam o estabelecido (com as várias

instituições governamentais), pelo menos assinalam suas contradições, que reformulam

o próprio espaço social. Isso pressupõe a criação de táticas – algumas brechas que se

abrem no espaço político – que podem organizar a realidade de modo a torná-la

inteligível e de maneira a tornar compreensíveis as ações realizadas, pois é importante

perceber “que as interpretações ambíguas, paradoxais, contraditórias que coexistem no

mesmo sujeito, criando a aparência de incoerência, na verdade, exprimem um processo

de conhecimento, a criação de uma cultura ou de um saber a partir de ambigüidades que

não estão na consciência dessa população, mas na realidade em que vivem” (p. 158).

É importante considerar que a noção de experiência profissional compreende um

conjunto de práticas características de cada professor. Essa noção indica a valorização

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das condutas individuais e suscita a seguinte indagação: Qual a importância da

experiência profissional para os docentes no entendimento das práticas cotidianas no

mundo atual?

Neste início do século XXI, a qualificação profissional dos trabalhadores ganha

uma elevação no cenário mundial motivada pelo “capitalismo informacional” (Castell,

2003). No caso da educação, segundo Paiva (1998) é exigida do professor uma

formação geral com base em novos conhecimentos que deverão ser adquiridos por toda

a vida e que acompanha a constatação de que estão se esvaindo as biografias

profissionais. Ainda de acordo com a autora (op.cit.), para o mundo profissional,

prevêem-se estratégias de reprofissionalização constante, pois sucessivas mudanças

serão vivenciadas com alternância entre o mercado formal, o desemprego, a

precarização - uma formação geral baseada em conhecimentos efetivos, capacidade de

utilizá-los e a flexibilidade para adaptá-los a novas condições da vida contemporânea -

são condições para enfrentar um mundo do trabalho cada vez menos regulado.

Para Paiva (2003), no mundo contemporâneo, há um “desperdício de

experiência” (p. 435), isto é, os conhecimentos prévios são desvalorizados, pois se

considera que é necessário rejeitar determinadas formas de pensar, de agir e de valorar.

A autora aponta que, no cotidiano do trabalho, há necessidade de perceber a

obsolescência de conhecimentos específicos, atualizando-se, mas alerta sobre a

importância do retorno a antigos padrões e atividades tradicionais. Assim, os

profissionais mais adultos acabam sofrendo certa desqualificação, pois, além dos

malefícios da perda da experiência acumulada, são desprezados em função da

disponibilidade de aprender novos conteúdos, novas maneiras de pensar e ver o mundo

de acordo com os interesse da nova era capitalista.

Apoiado no princípio da experiência, François Dubet (1994) atenta que a

socialização não é total, não porque o indivíduo escape ao social, mas porque a sua

experiência se inscreve em registros múltiplos e não congruentes. Para o autor (op.cit), à

dominação mais absoluta não consegue reduzir a experiência dos atores aos papéis

impostos e constitui-se, socialmente, sem dúvida, uma subjetividade própria e é a

matéria essencial de que dispõe uma “sociologia da ação”.

Para Dubet (op.cit), a experiência não se restringe somente ao sentido de

vivenciar os acontecimentos do mundo “real” por meio de emoções, mas ao mesmo

tempo na criação de uma atividade cognitiva em que os atores sociais, reinventam seus

conhecimentos e viabilizam a possibilidade de se sentirem incluídos nas reflexões

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acerca da realidade. É na ação de compartilhar idéias e sentimentos que se sentem

animados em realizar atividades de cooperação que se passa à necessidade de agir, no

fortalecimento de vínculos, assim modo no entendimento da modificação à realidade.

Significa a proposta de novos paradigmas para a compreensão sobre o

conhecimento profissional, pois se apóia na criação do sentido da experiência social

que, respaldada na descoberta da subjetividade dos atores, permite certa consciência que

eles têm do mundo e deles próprios. O autor considera que cada indivíduo pode ser

entendido como um “intelectual”, como um ator capaz de dominar conscientemente,

pelo menos em certa medida, a sua relação com o mundo.

Enfim, por tudo o que foi dito há muito ainda para se investigar, pois há questões

sem resposta. Entre elas: Como pensar em práticas de apropriação do processo de leitura

e escrita mais competente, sem compreender a cultura docente e a identidade

profissional de um docente?

Com esta preocupação, é importante atentar sobre como Antonio Viñao (2000)

chama atenção para as transformações no cotidiano da escola. O autor defende que as

reformas educativas, ao não produzirem os efeitos previstos ou desejados, não

significam movimentos de resistência ou ausência de apoio do professorado, ou ainda

no bom emprego de um ritual burocrático ou formal, mas em sua natureza não-histórica,

que desconsidera a “gramática da escola” (p. 117). Segundo esse autor, não há como

ignorar a existência e o peso de um conjunto de tradições e regularidades institucionais,

isto é, da história cotidiana das instituições educativas, sedimentadas no decurso do

tempo que direciona uma prática pedagógica.

Viñao (op.cit) também alerta para a importância dos modos de fazer e de pensar,

para os comportamentos e mentalidades transmitidos pelas diferentes gerações de

professores e aprendidos por meio da prática docente que se estabelece a partir das

ininterruptas implantações pedagógicas empregadas, desde o poder político e

administrativo. Esse processo vem permitindo organizar a atividade profissional

docente, adaptando-a e transformando-a, em decorrência das exigências que se derivam

dessa “gramática” e das pressões externas.

É nesse sentido que se pode ter outra forma de compreensão, para além da

simples constatação de falta de empenho ou resistência à mudança. Uma proposta

metodológica elaborada a partir de parâmetros que valorizam unicamente um

conhecimento supostamente dotado de validade universal nega as experiências trocadas

entre alunos e docentes.

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Referências bibliográficas

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Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004175