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PPGAS - MUSEU NACIONAL - UFRJ Felipe Süssekind O RASTRO DA ONÇA Etnografia de um projeto de conservação em fazendas de gado do Pantanal Sul Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Antropologia Social. Orientador: Eduardo Viveiros de Castro Rio de Janeiro, fevereiro de 2010

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PPGAS - MUSEU NACIONAL - UFRJ

Felipe Süssekind

O RASTRO DA ONÇA

Etnografia de um projeto de conservação em fazendas de gado do Pantanal Sul

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS),

Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de

Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção

do título de Doutor em Antropologia Social.

Orientador: Eduardo Viveiros de Castro

Rio de Janeiro, fevereiro de 2010

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O RASTRO DA ONÇA

Etnografia de um projeto de conservação em fazendas de gado do Pantanal Sul

Felipe Süssekind

Orientador: Eduardo Batalha Viveiros de Castro

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

(PPGAS), Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos para a obtenção do título de Doutor em Antropologia Social.

Aprovada por:

__________________________________

Prof. Eduardo Batalha Viveiros de Castro

__________________________________

Prof. Mauro W. B. de Almeida

__________________________________

Prof. Tania Stolze Lima

__________________________________

Prof.ª Olívia Cunha

__________________________________

Prof. Marcio Goldman

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2010

Süssekind, Felipe

O RASTRO DA ONÇA: Etnografia de um projeto de conservação em fazendas de gado do

Pantanal Sul / Felipe Süssekind– Rio de Janeiro: UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós-

Graduação em Antropologia Social, 2010.

ix, 348 f: 30 cm.

Orientador: Eduardo Viveiros de Castro

Tese (doutorado) – UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Social, 2010.

Referências Bibliográficas: f. 343-348.

1. Antropologia da Ciência. 2. Etnografia. 3. Pantanal Sul. 4. Onça-Pintada. 5.

Conservação. 6. Ecologia I. Viveiros de Castro, Eduardo. II. Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título.

Para Mirna e Matias, companheiros de viagem,

e para aquela que está para chegar.

Agradecimentos

Agradeço a meu orientador, professor Eduardo Viveiros de Castro, pelo apoio ao

longo de todo o trabalho e o suporte necessário para o trabalho de campo; aos membros

da banca, Mauro Almeida, Tania Stolze Lima, Olivia Cunha e Marcio Goldman, por

seus comentários sobre o trabalho incentivos ao longo da pesquisa de campo; ao CNPQ,

instituição da qual fui bolsista.

Ao biólogo Fernando Azevedo, da Associação Pró-Carnívoros, coordenador dos

projetos Onça Pantaneira e Gadonça, por me receber em sua área de estudo e dar

suporte para a pesquisa de campo; aos biólogos Henrique Villas Boas Conccone e

Ricardo Costa e ao guia de campo João Batista Elias, integrantes das equipes de campo

desses dois projetos. Ao biólogo Ricardo Boulhosa, da Associação Pró-Carnívoros.

A todas as pessoas da fazenda San Francisco, em especial Dr. Roberto Coelho,

Elisabeth Coelho e Carolina Coelho, pelo suporte para a pesquisa de campo; um

agradecimento especial para Giuliano Acunha Dias, Luiz Guilherme Farias, Jacir Teles,

e Eliane Rocha.

Ao proprietário e aos administradores da Fazenda São Bento e todos os seus

funcionários, em especial ao Sr. Ormir do Couto, os campeiros Paulo Acunha, Ramon

Acunha, Edevaldo Antonio da Silva, Evandro Ramos Arguelho e Laucenildo Acunha

Roca. Ao Sr. João Celestino Ramos e a todos nas fazendas Xaraés e Nossa Senhora do

Carmo.

Aos pesquisadores Sandra Cavalcanti, Peter Crawshawe Ronaldo Morato, da

Associação Pró-Cranívoros; ao Centro Nacional de Predadores (Instituto Chico

Mendes). Aos pesquisadores Leandro Silveira, Mariana Furtado e Eduardo de Freitas

Ramos, do Fundo para Conservação da Onça-Pintada.

Por fim, agradecimentos especiais a Flora Süssekind e Jayme Aranha, pelos

comentários fundamentais na elaboração desta tese; e a Ana Luiza Martins Costa e Luiz

Cláudio Marigo pelo incentivo inicial para realizá-la. Aos colegas do Museu Nacional e

da Rede Abaeté, em particular Antonia Walford, Guilherme Sá, Orlando Costa, colegas

no Núcleo de Antropologia Simétrica.

RESUMO

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Antropologia Social (PPGAS), Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de

Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Antropologia

Social.

Felipe Süssekind

Orientador: Eduardo Viveiros de Castro

O RASTRO DA ONÇA: Etnografia de um projeto de conservação em fazendas de

gado do Pantanal Sul

O presente estudo é fruto de uma pesquisa etnográfica que acompanhou os

desdobramentos de dois estudos científicos sobre onças pintadas em fazendas de gado

na região do Pantanal do Mato Grosso do Sul, entre os anos de 2006 e 2008. A

compilação dos diversos tipos de registros produzidos durante o trabalho de campo –

fotografias, arquivos de vídeo, gravações e fichas de entrevistas e diários – resultou em

um mapa, a partir do qual esta tese foi estruturada. Dois casos registrados durante a

pesquisa foram tomados como variações de um evento chave, usado como ponto de

partida para a redação da tese, no qual um bezerro é abatido por uma onça-pintada. A

partir deste evento de referência, o trabalho propõe uma cartografia de três redes de

práticas: a pecuária tradicional pantaneira, as caçadas de onça com cães farejadores e as

pesquisas de campo biológicas que utilizam a técnica da rádio-telemetria. Essas três

redes de práticas são estudadas também a partir de conexões transversais definidas em

termos de dispositivos de rastreamento, captura e espreita, e a articulação entre elas

define a rede sociotécnica que este estudo se propõe a descrever, designada como rede

onça.

ABSTRACT

In the trail of the jaguar: conservation on cattle ranches in Brazilian Pantanal

This study is the result of an ethnographic research that accompanied the unfolding of

two scientific studies on jaguars developed on cattle farms in the Pantanal region of

Mato Grosso do Sul, between years 2006 and 2008. The compilation of the various

types of records produced during the work - photographs, video, records of interviews

and field notes - has resulted in a map, from which this thesis has been structured. The

limits of the map correspond to the network that the thesis intends to describe, named

jaguar network. Two cases reported during the study were taken as variations of a key

event, used as a starting point for writing the thesis, in which a calf is killed by a jaguar.

This paper traces three networks of practices tracked in the network-map from this

event of interest: the traditional cattle of the Pantanal, the jaguar hunting with dogs and

biological field work using the technique of radio-telemetry. These three sets of

practices are also studied from cross connections defined in terms of tracking and

capturing devices, and the interaction between them defines the socio-technical network

that this study intends to describe, defined as a jaguar network.

SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................... 1

ANEXO A - Imagens introdução ............................................................................ 5

Capítulo 1 – O bezerro predado .................................................................................. 7

1.1.Primeiro bezerro predado: Fazenda San Francisco ........................................... 7

1.2. Segundo bezerro predado: Fazenda São Bento .............................................. 18

ANEXO B – Imagens Capítulo 1 .......................................................................... 28

Capítulo 2: Rede Gado .............................................................................................. 31

2.1. Rastreamento .................................................................................................. 31

2.2. Clube do Laço ................................................................................................ 45

2.3. O abate ........................................................................................................... 50

2.4. Gado Branco ................................................................................................... 60

2.5. Gado Bagual ................................................................................................... 67

2.6. Crianças selvagens ......................................................................................... 80

2.7. Conservação e mercado .................................................................................. 92

2.8. O gado e as onças ........................................................................................... 98

2.9. Cores e sinais: associações não predatórias entre gado e onças ................... 112

ANEXO C – Imagens Capítulo 2 ........................................................................ 115

Capítulo 3 –Tradição de caça .................................................................................. 120

3.1. Onças e fazendeiros ...................................................................................... 122

3.2. Seu Inácio ..................................................................................................... 126

3.3. Caçadores naturalistas .................................................................................. 141

ANEXO D: Zagaieiros ........................................................................................ 169

ANEXO E – Imagens Capítulo 3 ........................................................................ 172

Capítulo 4 – Rede Cães ........................................................................................... 174

4.1. A história do cachorro Gigante .................................................................... 175

4.2. O rastro dos cães .......................................................................................... 181

4.3. Onças em fuga .............................................................................................. 190

4.4. Tonho da Onça ............................................................................................. 199

4.5. O cão mestre ................................................................................................. 212

Capítulo 5 - Rede coleira ......................................................................................... 226

5.1. Captura e divulgação .................................................................................... 228

5.2. A circulação das amostras pela rede científica ............................................ 235

5.3. Conflito e Conservação ................................................................................ 244

Conflito como tema conservacionista ................................................................. 254

5.4. O rastro das coleiras ..................................................................................... 264

ANEXO G – Imagens Capítulo 4 ........................................................................ 282

Capítulo 6: Rede Onça ............................................................................................ 284

6.1. Rascunho para um artigo científico .............................................................. 288

6.2. A onça-pantaneira: esboço para uma descrição associativa ......................... 315

Considerações finais ............................................................................................ 329

ANEXO H – Imagens Capítulo 6 ........................................................................ 332

Referência bibliográficas: ....................................................................................... 334

1

Introdução

A compilação, para este trabalho, de registros diversos, provenientes da pesquisa

etnográfica, resultou num mapa, elaborado a partir de uma série de anotações,

fotografias e listagens de referências, que foram fixadas num quadro. A construção

desse mapa-colagem acompanhou o meu próprio percurso na pesquisa de campo. A

primeira visita que fiz ao Pantanal foi em 2006. Olhando para o quadro, reconheço a

foto do canil da Fazenda Caiman, de um lado, e a do laboratório de campo da San

Francisco, de outro, duas propriedades turísticas na região de Miranda, no Mato Grosso

do Sul. Cada uma dessas fazendas corresponde a um quadrinho separado, e deles os

caminhos se bifurcam em duas seqüências possíveis, que são narrativas como as das

histórias em quadrinhos.

A primeira delas passa pelo Parque Nacional das Emas, em Goiás, e, em seguida,

pela Ilha do Bananal, em Tocantins, ambos visitados em 2007. Depois disso, o caminho

é interrompido bruscamente. Essa interrupção ilustra a negociação fracassada que tive

com o Fundo para a Conservação da Onça Pintada, uma ONG conservacionista, para a

realização da pesquisa etnográfica na Fazenda Caiman, em Miranda. Restam como

registros adicionais desse percurso uma longa troca de emails e um contrato não

assinado.

Foi através dos biólogos que estudavam onças que cheguei à região, e a constituição

de alianças entre eles e os fazendeiros locais, em primeiro lugar, foi o que abriu

caminho para a minha chegada até lá. Apesar de interessados na divulgação de seu

trabalho, no entanto, os pesquisadores com os quais entrei em contato nunca pareceram

à vontade com a idéia de serem, eles também, objetos de estudo, e a inclusão na minha

proposta de um estudo antropológico da rede científica (ou técnica) foi recebida sempre

com reservas por parte deles. O interesse que eu compartilhava com os biólogos era a

estudar as relações entre os moradores locais e as onças, e foi a partir desse horizonte

comum que este trabalho se tornou possível.

A segunda seqüência de quadrinhos no meu mapa é aquela na qual a história se

desdobra por toda a extensão cartografada. Na proposta inicial para este trabalho, eu

tinha pelo menos três objetivos diferentes, aparentemente difíceis de conciliar, que se

mantiveram como temas centrais ao longo do projeto. O primeiro era descrever as

práticas dos biólogos de campo nos estudos sobre as onças. O segundo era realizar uma

2

etnografia das fazendas de gado, com ênfase nos modos de percepção e classificação

dos animais pelas comunidades locais. O terceiro propósito era encontrar caçadores

tradicionais pantaneiros, e, se possível, algum zagaieiro como aquele do conto de

Guimarães Rosa “Meu Tio, o Iarauetê” 1. Também pretendia acompanhar a captura de

uma onça para a colocação da coleira de rádio, um evento que eu via como uma

interação fascinante entre os métodos tradicionais de caça e a tecnologia empregada

pelos cientistas.

A parte principal da pesquisa etnográfica para este trabalho foi realizada no Pantanal

do Mato Grosso do Sul. A pesquisa se concentrou em duas fazendas de gado da região

que abrigam projetos de conservação de onças-pintadas (Panthera onca) e onças-pardas

(Puma concolor). A primeira delas foi a Fazenda San Francisco, localizada no

município de Miranda-MS, que contava com 114 moradores no período de estudos. A

segunda foi a Fazenda São Bento, com 29 moradores à época, localizada no município

de Corumbá-MS. A distância entre as duas é de cerca de 80 km em linha reta, e ambas

estão situadas na margem do Rio Miranda. Utilizando a divisão do ecossistema em dez

pantanais (CIT), a primeira delas fica na margem direita do rio, na região classificada

como Pantanal de Miranda, e a segunda na margem esquerda, na região do Pantanal do

Abobral.

Além dessas duas fazendas que serviram de bases principais para o estudo, durante o

trabalho de campo também estive durante períodos curtos (entre cinco e dez dias) em

três outras propriedades no entorno dessas duas primeiras. A minha primeira visita ao

Pantanal para dar início à pesquisa, com duração de duas semanas, foi realizada em

março de 2006. A segunda foi apenas em outubro de 2007, concluindo uma longa

negociação para acompanhar um projeto de campo científico que estava sendo iniciado

pelo pesquisador Fernando Azevedo, da Associação Pró-Carnívoros. Posteriormente, a

pesquisa foi dividida em duas viagens de campo, com duração de dois meses cada uma:

a primeira realizada entre março e maio, e a segunda entre outubro e dezembro de 2008.

A divisão em dois períodos foi motivada pelas diferenças ambientais notáveis entre os

períodos regionais da seca e da cheia na região.

O modo que encontrei de mobilizar um campo de estudos, delimitando um lugar

para a minha pesquisa etnográfica, foi o desenvolvimento de uma proposta de trabalho

inspirada em modelos provenientes da literatura conservacionista e da etnobiologia.

1O conto foi um dos germes iniciais para este projeto.

3

Essa proposta constituiu o principal instrumento de negociação para a realização da

pesquisa, e se baseava na utilização de um questionário com formato semi-aberto,

incluindo vinte perguntas fixas, que foi utilizado ao longo de toda a pesquisa de campo

em um total de sessenta e cinco entrevistas. O uso deste questionário serviu de base para

uma discussão sobre os métodos empregados na minha pesquisa de campo, a partir da

qual procurei colocar em questão diversos impasses entre o enfoque das ciências

naturais e o das ciências sociais.

O projeto original foi orientado principalmente pela leitura de autores ligados à

antropologia da ciência (STS), principalmente Bruno Latour e Donna Haraway, e era

voltado somente para o estudo das práticas científicas no campo da conservação das

onças, o que posteriormente se transformou em um capítulo desta tese. Ao longo da

pesquisa, os focos deixaram de ser apenas a onça e a rede científica e passaram a ser

também o gado e as práticas e costumes pantaneiros. No final, o trabalho tornou-se uma

etnografia de fazendas onde o rebanho dividia o espaço com os animais selvagens e

onde a criação do gado e a conservação das onças e o turismo eram praticados lado a

lado, e procurei descrever todos os atores presentes nesses lugares.

A noção chave para a elaboração da tese foi o conceito de rede formulado por

Bruno Latour, utilizando duas referências principais. A primeira foi o livro

Reassembling the Social (2005), que propõe uma redefinição da noção de ‘social’ como

associação entre elementos heterogêneos (2005: 5), e não como uma explicação “por

trás” dos fenômenos, o que significa um rompimento alguns com modelos canônicos da

sociologia e da antropologia social. A segunda foi o artigo A Well-Articulated

Primatology: Reflexions of a Fellow-Traveller (2000), que coloca em questão as

relações entre os STS (Science and Technology Studies) e a prática científica (neste

caso, a primatologia), argumentando que ambas são disciplinas empíricas.

O trabalho envolveu tanto o estudo do gado quanto de coleiras de rádio, cães de

caça e toda uma série de atores não humanos, além de caçadores, cientistas e

fazendeiros, entre outros. A divisão dos capítulos utilizada se baseou na idéia de seguir

o percurso de determinados atores-chave ao longo do emaranhado de palavras e

imagens no mapa em que a pesquisa etnográfica ao final tinha se transformado.

A descrição, a partir da experiência etnográfica, de práticas de manejo e formas de

classificação do gado pelos vaqueiros do Pantanal, identifica nelas um tipo de

rastreamento visual orientado pelo cromatismo e pelos sinais que marcam o rebanho na

lida cotidiana. Circunscreve ainda o abate das vacas para o consumo interno da fazenda

4

e o processo de fabricação e de utilização do laço como dois modos distintos de captura

dos animais. Procurei abordar as designações regionais do gado a partir de uma

dimensão temporal, ligada à colonização da região pela pecuária e também a partir de

um diálogo com duas fontes etnográficas que apontam para múltiplas relações regionais

entre brabo e manso, doméstico e selvagem.

A captura de onças para a pesquisa científica envolve a utilização de cães de caça e a

assimilação de conhecimentos nativos, e a abordagem do tema se desdobra, de um lado,

na leitura de uma série de fontes literárias sobre as caçadas de onça, e, de outro, em uma

investigação sobre os modos de relação e de designação dos cães de caça como uma

tradição ligada à eliminação das onças que é redefinida como meio de preservação.

As práticas de campo ligadas à conservação e ao manejo das onças são baseadas

principalmente na rádio-telemetria, uma metodologia fundadora da moderna biologia

da conservação, e procurei mapear o uso histórico das coleiras de rádio na região e

também investigar o modo como elas produzem um novo tipo de conhecimento sobre os

animais. A partir de uma série de conexões transversais entre os horizontes de práticas

mapeados pela etnografia, a tese formula, ao final, o esboço de uma descrição da onça a

partir da noção de rede constituída ao longo do trabalho.

5

ANEXO A - Imagens introdução

Cenas do Pantanal na seca, em outubro (à esquerda) e na cheia, em março (à direita).

Abaixo está a jangada improvisada para se chegar até o barracão dos peões, no retiro da

São Bento.

6

Mapa da área de estudo com indicação aproximada de onde ficam as duas

fazendas que serviram de base para a etnografia.

7

Capítulo 1 – O bezerro predado

Utilizarei como pontos de partida, a seguir, dois casos semelhantes de predação (de

bezerros por onças). O primeiro foi registrado em março de 2008, na Fazenda San

Francisco; o segundo em novembro do mesmo ano, na Fazenda São Bento. A

apresentação desses dois eventos etnográficos em série, cada um em local e período

diferente, tem como objetivo a constituição de uma espécie de cena de referência ou

acontecimento-chave na etnografia.

1.1.Primeiro bezerro predado: Fazenda San Francisco

No dia 27 de março de 2008, durante uma estadia na Fazenda San Francisco, eu

havia combinado de acompanhar Ricardo Costa, o biólogo de campo responsável pelo

ProjetoGadonça, numa atividade de pesquisa. Sairíamos numa cavalgada em que ele

pretendia circular pela área da pecuária da fazenda, checando sinais de carcaças de

animais. O projeto é um desdobramento da pesquisa de doutorado do biólogo Fernando

Azevedo, sobre a relação entre as onças e o gado na fazenda e na região em torno dela.

Na pesquisa, realizada em 2003 e 2004, foram colocadas coleiras com rádio transmissor

em nove onças-pintadas e duas onças-pardas, capturadas com a utilização de dois

métodos distintos: a caçada com cães e armadilhas compostas de gaiolas de ferro,

utilizando pequenos porcos como iscas vivas.

As onças receberam coleiras de rádio e, em seguida, passaram a ser acompanhadas

por meio de monitoramento diário pelo pesquisador. Além disso, sua pesquisa incluía o

registro sistemático de animais abatidos pela onça na fazenda, dado significativo para o

estudo dos hábitos alimentares das onças. Os casos de ataques ao rebanho doméstico

foram tema de um estudo específico, ligado ao tema do conflito entre fazendeiros e

onças na região.

Quando a pesquisa de Azevedo terminou, e ele precisou ir para os Estados Unidos

defender sua Tese em Biologia da Conservação, na Universidade de Idaho, o projeto se

mostrara bastante interessante para o ecoturismo, uma das principais atividades

econômicas da fazenda. Os donos da propriedade fizeram então uma proposta para que

o biólogo mantivesse uma base local com as atividades de pesquisa, e a fazenda passou

a financiar a maior parte do projeto, incluindo o salário dos funcionários, o combustível

e a manutenção da caminhonete 4x4, além de equipamentos para pesquisa de campo.

8

Outras fontes de recursos para os pesquisadores são as atividades de turismo científico,

quando a pousada recebe pesquisadores ou fotógrafos e cinegrafistas interessados em

acompanhar o dia-a-dia da pesquisa de campo sobre as onças.

Em março de 2006, quando estive na fazenda pela primeira vez, as onças ainda

estavam sendo monitoradas. O monitoramento consistia em saídas na caminhonete do

projeto pela área da fazenda, sendo que o biólogo seguia na parte de trás da

caminhonete, usando um fone de ouvido acoplado a uma antena de rádio, que girava

acima da cabeça. Na época, o carro era dirigido por Wendel, o guia de campo do

projeto, um morador da região com experiência anterior em caçadas de onça. As onças

usavam coleiras que emitiam sinais em diferentes freqüências, a partir dos quais era

possível identificá-las individualmente. A partir daí, era feito o mapeamento com a

localização das onças, em coordenadas obtidas com aparelho GPS portátil.

Além disso, o projeto também trabalhava com a identificação de diversos animais

abatidos pelas onças na fazenda, por meio da coleta de carcaças, de ossadas, e da análise

de fezes de onças encontradas na área de estudo. Os pesquisadores também utilizavam

armadilhas fotográficas para identificar as onças, sendo o padrão das pintas de cada uma

o equivalente a uma impressão digital humana. As onças foram monitoradas pelo

biólogo até o início de 2007, quando terminou a vida útil das baterias dos transmissores

acoplados às coleiras de rádio-telemetria (que durou cerca de quatro anos).

Ao longo do ano de 2008, durante os períodos mais longos de pesquisa de campo na

fazenda, acompanhei algumas vezes este último pesquisador enquanto registrava casos

de predação. A maior parte dos animais encontrados por ele eram capivaras e jacarés,

principalmente na área da lavoura de arroz, sendo que a predação de capivaras por

onças era o tema do projeto no qual ele estava trabalhando naquele período.

Na manhã do dia 27 março de 2008 com a qual iniciei a narrativa nesta seção, eu

combinara acompanhar o biólogo numa cavalgada pelas áreas de pastagem da fazenda.

Os restos de uma ema haviam sido encontrados dias antes, e as armadilhas fotográficas

instaladas no local, e apontadas para a carcaça da ave, haviam capturado imagens de

uma onça-parda voltando até lá para se alimentar. As pardas costumavam andar pelas

áreas mais altas da fazenda, região de cerrado, e haviam atacado alguns carneiros nos

últimos meses naquela mesma área.

Ricardo pretendia investigar casos de predação de onça-parda, uma notícia de última

hora, no entanto, o levou a uma mudança de planos. Estávamos na estrebaria, ao lado da

sede do Projeto Gadonça, aprontando os cavalos, quando um dos guias de turismo da

9

fazenda avisou ao biólogo que o pessoal da pecuária tinha achado um bezerro predado

por uma pintada. As atividades turísticas da pousada giram em torno da observação de

animais, e os guias, todos moradores da região, estão sempre informados a respeito das

onças, assim como de rastros de anta e bandos de queixadas. Alguns animais estão por

toda a parte, como emas, capivaras e jacarés. Depois do encontro com o guia, tiramos a

tralha de montaria dos cavalos e eles foram soltos, e seguimos no carro do projeto de

encontro ao vaqueiro que havia encontrado os restos do novilho.

O primeiro evento de bezerro predado pela onça, que eu gostaria de registrar, se

daria cinco dias depois da minha chegada à propriedade. Seu Manoel, um dos

vaqueirosda fazenda, fora quem encontrara a carcaça. Ele narrou a descoberta da

carcaça e orientou Ricardo em relação ao local preciso onde devia procurá-la.

Aquele era o primeiro caso de gado atacado por onça na fazenda desde que eu havia

chegado, e provavelmente o único durante o tempo que permaneci nesta área (umas oito

ou nove semanas no total). Depois de conversarmos com o retireiro, Ricardo e eu

partimos para o local, deixando o carro estacionado ao lado da porteira que dava para o

retiro onde moram arrendatários de uma parte da plantação de arroz. A partir desse

ponto, seguimos a pé pelo capinzal ao lado da estrada, usando a picada que

acompanhava a cerca daquela invernada. Observando urubus pousados nos postes da

cerca, chegamos até a carcaça do animal, um novilho de dois anos, já bem decomposta e

quase totalmente devorada por urubus e carcarás.

Tirei fotos da cena, enquanto o biólogo fez anotações, pegou as coordenadas do GPS

e usou um facão para tirar a cabeça do animal, que queria levar para a coleção do

projeto. Em seguida, mostrou os furos no alto do crânio do bicho, provocados pela

mordida da onça, que também fotografei [ANEXO 1]. Voltando à caminhonete, colocou

o crânio apodrecido na caçamba, e seguimos uma estrada paralela à faixa de floresta que

se estende por toda a área de lavoura de arroz da fazenda. O local onde o havíamos visto

na outra noite era bem próximo, o que fazia Ricardo supor que o animal que tínhamos

avistado no outro dia era o mesmo que atacara o bezerro, suposição baseada também no

fato de a onça estar “de barriga cheia” na ocasião.

Ele já havia identificado o animal, um macho apelidado na fazenda de Grandão, que

vinha sendo observado pelos guias de turismo da fazenda e pelo pesquisador juntamente

com seu irmão, Orelha, apelidado assim por causa de uma marca peculiar, um rasgo na

orelha que permitia que fosse identificado e diferenciado. Os dois eram tidos pelo

pesquisador e pelos guias como irmãos e identificados como filhotes que foram

10

observados na fazenda com a mãe, uma das onças de coleira monitoradas anteriormente

pelo Projeto Gadonça, batizada de Elisa. Era surpreendente para os pesquisadores que

estivessem sendo observados andando juntos até a idade adulta, quando a expectativa

era que estabelecessem territórios individuais. Ricardo lamentava que os animais não

estivessem sendo monitorados pelo projeto por meio da telemetria, e havia uma

demanda de novas capturas para uma nova fase de pesquisa na fazenda, tema que estava

sendo discutido na época.

A Fazenda San Francisco tem uma área total de 15 mil hectares, sendo subdividida

internamente em três áreas distintas: a da pecuária, que fica na parte mais alta, onde

também estão situadas a sede e a pousada, com cerca de três mil hectares; a da lavoura,

que tem aproximadamente quatro mil hectares, e a da reserva, uma área de preservação

particular que se estende pelos oito mil hectares restantes, composta na maior parte das

matas entre a margem do Rio Miranda, limite norte da fazenda, e o Corixo São

Domingos, um braço do mesmo rio, que corta a propriedade.

A maior parte do rebanho pertence ao gado Nelore, o gado branco predominante em

toda essa região, mas a fazenda também trabalha com a raça Montana. A fazenda

produz gado de corte e também cria touros, vendidos como matrizes, utilizando técnicas

de reprodução artificial, como explica Dr. Roberto Coelho:

Trabalhamos com touro também, mas a força do trabalho aqui é a

inseminação. Porque, com inseminação, você usa o sêmen somente de

animais excepcionais, entendeu? Animais que são testados e aprovados e

que já têm uma quantidade grande de filhos avaliados. (...) Então, como a

gente quer ter um progresso genético rápido, melhorar as características do

gado, então a gente usa mais a inseminação aqui.

Durante o último período de viagem de campo, já em outubro de 2008, tive notícias

de que um bezerro avaliado em mais de 10 mil reais havia sido abatido por uma parda

na San Francisco, sendo que a média de preço para uma cabeça de gado de corte na

região, na época, era cerca de 600,00. Na entrevista feita com o proprietário, Dr.

Roberto, as pardas são apontadas por ele como responsáveis pelos maiores prejuízos na

sua produção:

Agora, o problema maior que ocorre é em cima da predação dos bezerros

pequenos. Na época da parição, tem onças – especialmente a onça-parda –

que se especializam em pegar o bezerrinho novinho. Ela já sabe que aquilo

11

é uma presa fácil. O bezerro nasce, e geralmente a vaca fica em volta dele,

lambe ele, até que ele levante e consiga dar a primeira mamada, e tal... Ela

fica. O primeiro dia ela fica o tempo todo ali com ele. Ele não consegue

andar muito atrás dela. Então, logo, logo, depois da primeira mamada, ela

vai deixar ele numa moitinha e ela vai pastar. E nessa hora a onça-parda já

acostumou, já observou, já percebeu essa rotina, e a onça-parda vem e

come o bezerro. A parda é mais flexível. A onça-parda é um bicho terrível.

Os ataques das onças-pardas aos carneiros também seriam abordados pelo

proprietário na palestra que fez durante o encontro (Workshop) organizado na fazenda,

quando falou a respeito da parceria entre a fazenda e o projeto de conservação das

onças:

Nós tínhamos um capril aqui na fazenda que era uma cerca baixa, com uma

casa de mais ou menos seis por oito, para em dia de chuva poder fechar. A

casa era totalmente protegida, mas tinha o pátio externo. Ele resolveu,

funcionou bem, para ataque de onça-parda, durante muitos anos. Desde

mais ou menos 1980 até uns quatro anos atrás. Daí, a onça-parda começou

a freqüentar esse capril – pular, pegar ovelhas e sair. Nós ficamos uns dois

anos desse jeito até que, por orientação do projeto, decidimos construir um

capril todo telado. Uma parte dele é coberta, mas mesmo a parte que pega

sol é telada por cima e pelos lados todos. Agora, o problema que surgiu

esse ano foi o seguinte: apesar de ser num terreno firme, seco, durante o

período chuvoso começou a atolar até o joelho dentro da área fechada, e o

pessoal começou a deixar eles [os carneiros] soltos, porque ainda tem uma

área externa em volta desse. Aí ela começou a pegar outra vez. Eu não

podia deixar dentro, porque os pequenininhos morriam pisoteados, e se

deixasse fora, a onça pegava. Um problema.

Em relação ao gado, o estudo realizado na fazenda por Fernando Azevedo durante

os anos de 2003 e 2004 apurou 12 mortes causadas por predação de onças no primeiro

ano, e 20 mortes no ano seguinte. As onças-pintadas foram responsáveis por 70% dos

ataques e as pardas por 30%. Os casos de predação corresponderam a 19% do total de

casos de mortalidade do rebanho da fazenda durante o período, sendo menos comuns

que outras causas, como picadas de cobras e a ingestão de ervas venenosas (Azevedo;

Murray, 2007). As taxas de predação na San Francisco são as mais baixas registradas

12

pelos projetos de pesquisa realizados nessa região do Pantanal até o momento

(Crawshaw & Quigley; Cavalcanti & Soslaio; Siveira). Na apresentação do projeto para

proprietários rurais, em maio de 2008, o biólogo faria um breve histórico do projeto,

apresentando seus objetivos:

O Projeto Gadonça teve início no ano de 2002, quando eu fiz a minha

primeira visita à essa região aqui. Um breve Histórico: eu trabalhava com

um projeto de ecologia de onças no Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná,

e estava buscando uma área pra fazer o meu Doutorado. Só que eu

precisava duma área que tivesse onça – bastante onça – e gado – bastante

gado – e que houvesse uma interação entre eles. Que é conhecida como

uma interação negativa: a onça comendo o gado, causando prejuízo, e as

pessoas matando a onça.

O trabalho da fazenda com ecoturismo foi um fator determinante na vinda do

pesquisador, como ele relata neste outro trecho da apresentação:

E aí nós iniciamos uma idéia que era de fazer um projeto científico (...) mas

também tirar algo prático do estudo científico, que era aumentar, de

alguma forma, a visualização das onças aqui na fazenda. (...) E, ao passar

dos anos isso deu muito certo. Hoje em dia, uma das fontes de recurso mais

importante da fazenda é o turismo, a visualização da onça. Independente do

projeto.

A onça é o animal mais procurado pelos guias da fazenda nos passeios turísticos, e o

principal atrativo da fauna local para a maior parte dos visitantes; muitos deles chegam

à San Francisco só em busca de vê-la. O gerente administrativo da fazenda, em

entrevista, aponta o projeto de pesquisa como fator importante para o desenvolvimento

do turismo. Por outro lado, afirma que as onças ficaram mais difíceis de ver no período

em que foram capturadas, e que isso foi um problema para a atividade. O fato foi

observado também pela maioria dos guias de turismo da fazenda entrevistados no

decorrer da pesquisa.

Uma alternativa para o uso dos cães, método de captura que encontrava resistência

por parte também dos proprietários da fazenda, seriam as armadilhas, que funcionavam

com um sistema simples de roldanas e com a utilização de iscas vivas. [FOTOS]

Algumas onças tinham sido capturadas durante o período do projeto com este método, e

13

um fato curioso a respeito disso era que determinada onça (Elisa) tinha caído cinco ou

seis vezes na mesma armadilha, alimentando-se do porco que servia de isca. Depois da

coleta de amostras biológicas e da checagem do equipamento, não havia mais motivo

para os biólogos a sedarem, e aparentemente a onça adaptou-se ao procedimento,

percebendo que seria solta mais tarde. O hábito de dar nomes às onças é uma tradição

das pesquisas de campo sobre a espécie, e foi incorporado às atividades de turismo da

fazenda, onde algumas onças de coleira ainda estavam sendo avistadas em 2008, apesar

dos aparelhos não funcionarem mais.

Além de criar gado e ser uma pousada turística, a San Francisco trabalha com arroz

irrigado desde a década de 80, o que confere a ela características ecológicas únicas na

região. Ainda em 2007, numa das minhas primeiras visitas à fazenda, fiz uma entrevista

com seu proprietário, Dr. Roberto Coelho. O arroz irrigado foi adaptado às pastagens

alagadas da região pantaneira, num projeto iniciado pelo pai dele, Dr. Hélio Coelho,

aproveitando a topografia plana e os recursos hídricos abundantes da região.

O cultivo de arroz gerou também um processo ecológico com múltiplos

desdobramentos para a fazenda, de acordo com Roberto Coelho. Na entrevista gravada

com ele, pergunto a quais condições específicas o fazendeiro atribuía a pouca

quantidade de ataques ao gado na propriedade, apesar da presença comprovada de onças

da região. Ele responde:

Depois que veio a agricultura, foi construída uma rede de canais, de valetas

para a drenagem das águas e valetas para conduzir a água da irrigação.

Então, hoje em dia, a cada cem, cento e cinqüenta metros, você está

encontrando um canal. Esses canais ficam com água o ano todo. Então

esses canais passaram a ser um habitat para capivara. Capivara e rato, em

função da agricultura.

E aumentou bastante o número de capivaras, e jacaré também, porque os

canais passaram a ter uma grande quantidade de peixe, sapo, perereca...

Então, houve um aumento de oferta de alimento, inicialmente para

capivara, jacaré, e isso aí acabou alimentando a onça também. A onça

começou a se alimentar dessas capivaras e desses jacarés, e deixou de se

alimentar tanto do rebanho.

Outro fator a contribuir para a diminuição das taxas de predação, de acordo como

seu argumento, é o seguinte:

14

Mas aí também tem uma questão estratégica. Porque nós temos a parte de

Reserva Legal, uma faixa grande beirando o Rio Miranda, depois nós temos

a agricultura de arroz, e depois é que nós temos essa parte mais alta onde

está o rebanho. Então, a agricultura, com esse fornecimento de capivara e

jacaré próximo da Reserva Legal e do Rio Miranda, que é o habitat

preferido da onça, praticamente formou um colchão de amortecimento.

Então, o que aconteceu é que, geograficamente, o nosso formato está nos

beneficiando muito em termos da predação da onça. Ela está tendo o nicho

dela mais separado.

O bezerro predado, que serve de fio condutor para esta narrativa, foi encontrado

justamente nessa “área de amortecimento”, na fronteira entre as áreas de pastagem e os

campos de arroz. Na mesma tarde em que o animal foi encontrado, fui até um dos

retiros da fazenda para fazer uma entrevista com Seu Manoel, o vaqueiro que havia

achado a carcaça do bezerro. Ele trabalhava havia 12 anos na fazenda, e contou que

começou a trabalhar com o gado ainda criança, com oito anos de idade. Morava com a

família – a esposa e uma das filhas – num dos retiros2 da propriedade, aonde tomava

conta de uma média de mil e duzentas cabeças de gado. Abaixo, transcrevo a parte da

conversa em que ele narra o encontro do bezerro:

Foi na segunda cedo, eu fui tratar a boiada. Aí cheguei lá e vi: a cerca

estourada, o gado esparramado... Já vi urubu e fui ver o que é que era.

Chegando perto eu vi que a mula não queria encostar; por causa do cheiro

dela que estava ali. Aí eu consegui chegar lá e vi que ela só comeu o couro

da barriga dele.

A mula dá o aviso?

Dá. Ela sente; porque a onça deixa o cheiro. Sente o cheiro. Ela não quis

chegar, mas de jeito nenhum. Eu deixei a mula lá e fui. Aí eu vi que era

onça: sinal dos dentes dela. Arrumei lá, tirei a boiada e o rapaz tava

falando pra mim que ouviu pegar, era cinco e meia da tarde. Dia ainda. Boi

berrando, gado correndo.

2Os retiros são pequenos sítios afastados da sede da fazenda, onde moram uma ou mais famílias, e de

onde o capataz administra uma determinada área e parte do rebanho.

15

Na terça, eu passei lá, e ela voltou e comeu o resto do boi. Escorneou

[abriu] o boi e comeu o resto. Ela só comeu mesmo o couro da barriga no

primeiro dia. No segundo ela veio e comeu o resto.

E como é que ela pegou o bicho ali?

Ali, o boi estava provavelmente pastando, ela pulou nas costas do boi,

mordeu no cupim. Aí com a mão ela fisgou o nariz do boi e mordeu na nuca

do boi. Depois que ela morder na nuca do boi, aí já era. O boi já não tem

mais reação nenhuma. Porque ali, enquanto o boi estiver se batendo, ela ta

apertando. E ali foi a hora que ela matou o boi.

E comeu ali mesmo?

Comeu ali mesmo. Nem arrastou, porque ali era um lugar apropriado pra

ela, sujo [fechado de mato]. Quando ela mata num lugar limpo, ela procura

puxar o boi pra um lugar sujo, mas como ela matou num lugar sujo, ela

nem tirou do lugar, ficou ali mesmo.

E o senhor já viu essa onça aí?

Já. Já vi umas duas vezes; eu já vi. Lá na frente e na bomba, eu e ela. Duas

vezes. Agora, a turma já viu duas vezes na aviação, ali deitada. Ela mora

aí, essa onça, nesse lugarzinho aí. Tem ela e uma fêmea. A fêmea de vez em

quando está com filhote. Mas faz tempo que eu não vejo a fêmea. Mas o

macho, ele mora aí. É esse que pegou o boi. Ele é morador. É a rota dele.

Ele faz a rota dele, ida e volta. Aí que ele pega capivara, pega queixada,

pega tudo.

E como é que é? Tem só esse macho morando aqui, aí os outros não vêm?

Não. Aí é o território dele, os outros não vêm. Só ele mesmo. Porque a

gente só vê mesmo ele. É o macho. Agora, lá perto do rio tem bastante. Lá

tem muita onça.

Esse é que fez o território pra cá...

Esse é antigo, aí. Morador velho. Tanto que ele é até manso, ele não é

arisco. A gente vê e ele não dá muita importância pra gente, não quer

correr, nada. Manso ele.

16

E o senhor toma conta de quantas cabeças aqui no retiro?

Tem época que está com 1.500, 1.200. Agora está com mais de mil.

E tem onça que pega só gado?

Tem. Tem a onça que vicia no gado. Pega só gado.

E o senhor diria que a onça é uma ameaça pro homem? Ela ataca o homem?

Se ela estiver com fome, ela ataca. Qualquer um. A onça só ataca se ela

estiver com fome. Se ela não estiver com fome ela não ataca.

Seu Manoel afirma, entre outras coisas, que o lugar “sujo” é apropriado para a onça.

No vocabulário pantaneiro, o sujo – lugar de mato fechado – é oposto ao campo aberto

– o limpo. Também diz que a onça comeu só o couro do boi no primeiro dia e voltou no

dia seguinte, quando “escorneou” [abrir, ele mostra com um gesto] a carcaça da onça.

Um mês depois, eu acompanharia o abate e a carneação de vacas da fazenda, e observei

que o evento apontava para uma relação de familiaridade entre o vaqueiro e a onça,

estabelecida não apenas pelo alimento comum, mas principalmente em relação à morte

animal e ao conhecimento de seus cortes, carnes e entranhas. As carcaças de gado

encontradas comidas pelas onças demonstram seus cuidados peculiares e preferências

alimentares: ela rasga o couro, retira a buchada (intestinos, etc) e começa a comer a

carne “de primeira” – o peito e as costelas do boi.

O biólogo Ricardo acompanhou a entrevista feita com o retireiro, no dia em que o

bezerro foi encontrado. Depois comentou comigo que acreditava que o pantaneiro

estava se referindo, na verdade, a vários felinos, e não apenas a um, quando falava sobre

o “velho morador” dali. Observou que o animal que avistamos na outra noite,

identificado por meio de fotos como Grandão, estava sendo visto constantemente em

outra parte da fazenda, e estaria circulando há pouco tempo nas imediações do retiro de

Seu Manoel. O comentário é interessante na medida em que exemplifica as perspectivas

diferentes do vaqueiro e do biólogo quando falam da onça. O segundo se baseia em

evidências empíricas, em registros fotográficos e dados coletados no campo, enquanto o

primeiro, também a partir da experiência empírica, descreve a onça em termos da

relação de vizinhança.

Os dois crânios coletados, o do bezerro encontrado por Seu Manoel, e o do

queixada, foram levados para a sede do projeto Gadonça. Para prepará-los, o biólogo

deixou-os mergulhados em tonéis de água por alguns dias. Depois de livres das partes

17

moles, ele mergulhou os crânios numa solução contendo cloro e água oxigenada.

Fotografei os crânios do novilho e do queixada depois de limpos, e em ambos é possível

observar o furo produzido pela mordida da onça-pintada na base do crânio dos animais.

[ANEXO 2]

No laboratório do projeto, uma sala lateral contígua ao auditório, havia uma extensa

coleção de amostras de presas de onças, aos quais esses dois crânios se juntariam, e os

biólogos do projeto os utilizavam para ilustrar o modo como a onça abate suas presas

nas palestras oferecidas para os turistas. Nesse lugar, o material coletado no campo é

catalogado, numerado e arquivado. Amostras de fezes de onças, por exemplo, colocadas

em sacos plásticos com data, hora e local, passam por diversos estágios de tratamento, e

o que sobra no final são pêlos de animais, que serão identificados posteriormente com o

uso do microscópio. Sobre uma grande mesa, Ricardo havia montado o esqueleto da

onça, que encontrou morta na fazenda. Tinha sido talvez o primeiro caso registrado na

natureza de uma onça fêmea morta por outra onça, o que seria tema de um artigo a ser

publicado pela equipe do projeto.

O biólogo explicou que é um comportamento raro, ou pelo menos nunca

documentado antes. A carcaça tinha sido encontrada por trabalhadores da lavoura. A

princípio todos pensaram que a onça tivesse levado um tiro, mas Ricardo examinou os

restos e encontrou sinais evidentes de predação por outra onça, incluindo fezes contendo

pelos e uma unha. A hipótese que considerava mais provável por ele é que um casal já

estabelecido na fazenda, Orelha e Dora, estivessem copulando naquela região, e que

Dora tenha matado a outra fêmea. Ele conjecturou, observando que não tinha nenhuma

comprovação científica, que era muito pouco provável que um macho tivesse matado

uma fêmea, e que achava que Orelha teria apenas compartilhado a carcaça da fêmea

morta por Dora.

Em torno da sala, estavam várias ossadas, a maioria de animais mortos pelas onças:

veados, catetos, queixadas, capivaras, jacarés, vacas e outros. Nessas ossadas, o

pesquisador identificava as marcas da mordida da onça e o modo como o animal foi

morto. Quando encontrou o bezerro, o biólogo tomou nota do seguinte: o tipo de terreno

onde o animal foi encontrado, se havia sido arrastado ou não do local onde foi abatido

(não), a que distância estavam da estrada mais próxima, o tipo de cobertura vegetal

(para a qual utiliza uma classificação de 1 a 5). Algumas peles de onças também

estavam expostas, e além delas alguns crânios, um deles de um dos animais capturados

pelo projeto, encontrado através da rádio-telemetria em uma fazenda vizinha. Nele, era

18

possível se observar o buraco produzido pelo tiro no topo do crânio. Era o maior animal

que capturado na fazenda, com 114 kg.

1.2. Segundo bezerro predado: Fazenda São Bento

Na manhã do dia 3 de novembro de 2008, Henrique Conccone, biólogo de campo do

projeto, recebeu uma mensagem pelo rádio enquanto estávamos na base do projeto

Onça Pantaneira: Paulo Acunha, o funcionário responsável pelo controle do gado, dava

notícia de que um bezerro da fazenda havia sido encontrado comido por uma onça. Seu

João Elias, o guia de campo do projeto, também pelo rádio, avisava sobre a carcaça de

um segundo bezerro, e passava o número do brinco deste animal para Paulo. Desde que

eu havia chegado à fazenda, duas semanas antes, esses eram os primeiros casos de

predação de gado.

Eu os havia acompanhado em dois tipos de práticas de campo nos últimos dias. O

objetivo da primeira era o estudo da densidade de animais silvestres na área, feito a

partir dos registros das espécies observadas em saídas de carro, no começo da noite. O

propósito da segunda era a localização de carcaças de animais, feitas em cavalgadas

durante o dia, nas quais os maiores aliados dos pesquisadores são os urubus, sendo a

observação do vôo desses pássaros o melhor sinal para se chegar até uma carniça.

Um dos primeiros passos para o início da coleta de dados do projeto, praticamente

um ano antes, em 2007, havia sido estabelecer uma série de percursos fixos dentro da

área da fazenda. Desde então, esses percursos passaram a ser feitos em intervalos

periódicos pela equipe de campo. O projeto está estabelecido na Fazenda São Bento,

uma propriedade particular de cerca de 10 mil hectares, que tem como principal

atividade a criação de gado de corte. A fazenda está localizada no município de

Corumbá, Mato Grosso do Sul. Tem como limites o Rio Miranda e o corixo3 do

Abobral. A paisagem característica desta região são os capões de mata espalhados entre

o campo aberto, coberto de vegetação rasteira, sendo que as áreas mais contínuas de

floresta acompanham o percurso dos rios.

Naquela ocasião, o rebanho total da fazenda girava em torno de cinco mil cabeças de

gado, e era manejado por um grupo de oito vaqueiros. Na semana anterior ao caso do

3Corixo é o braço de um rio, na linguagem pantaneira, que pode secar completamente na época da

seca.

19

bezerro encontrado morto, eu havia acompanhado os peões ao campo quando eles iam

colocar brincos, conduzir o gado e tratar dos animais, e estava interessado nas

marcações e signos usados para o controle do gado.

A área da fazenda é toda cercada e dividida internamente em pastagens de tamanhos

variados, chamadas no vocabulário pantaneiro de invernadas. No caso da São Bento, os

tamanhos das invernadas variavam entre duzentos e cinqüenta e quinhentos hectares

cada uma; área considerada pequena para os padrões pantaneiros, conforme havia me

explicado Seu Ormir Couto, o capataz da fazenda. As pastagens eram todas cercadas, e

o gado é levado de uma invernada a outra de acordo com a disponibilidade de capim e

as necessidades de manejo do rebanho, em um sistema que ele definiu como “manejo

rotácionário”, ou “rodízio” [de pastos]. O manejo intensivo da fazenda, de acordo com

Seu Ormir, também é uma característica que a distingue da maioria das fazendas

vizinhas, onde o gado é criado em invernadas muito maiores e com menos controle. A

troca de informação com os pesquisadores pode auxiliar o trabalho dos vaqueiros, como

me explicou o capataz na entrevista que fiz com ele alguns meses antes:

A gente faz um trabalho em conjunto, porque também nesses lugares é que

eles vão, dia a dia, ver se a onça ‘predou’, se ela pegou, se ela está

passando, se ela está parando na área da fazenda ou não, se ela pegou só

um animal, comeu e foi embora... Acompanha as mortes por bicho predado,

por morte natural. É um acompanhamento geral, entre nós e eles. Então,

muitas coisas que nós as vezes não vemos, não achamos, eles acham:

capão, mata, beira rio, córrego, beira do corixo... É muito mais gente

vigiando a área da fazenda. Às vezes a gente, do gado, ia lá, via urubu, mas

de repente, você não foi dois, três dias, aí já comeu tudo e acabou. Eles

andando devagarzinho, no dia a dia, acham.

No caso dos dois bezerros abatidos naquela manhã de novembro, o primeiro foi

encontrado por Seu João, em trabalho de campo pelo projeto; o segundo por Laucenildo

Acunha, conhecido como Bugrinho, um dos peões da fazenda. Encontrando-o no dia

seguinte ao incidente, pedi, usando um gravador portátil para o registro, que ele narrasse

como descobrira o bezerro. Transcrevo abaixo a gravação, incluindo, como de hábito, as

minhas perguntas:

A gente estava juntando as novilhas. Era umas sete e pouco, por aí. Eu saí

pra fazer uma volteada e o burro começou a assustar. Quando eu percebi

20

uma rês na moita, aí eu peguei e chamei o outro rapaz pra ir lá comigo, e

nós fomo ver e era um resto que onça tinha largado lá.

E estava fresca ainda?

Fresquinha. Sangue novo ainda. Cavalo não queria ir porque estava

sentindo ela, mas assim mesmo eu fui, depois que o outro chegou. Aí

chegamos lá para pegar o brinco e ver do que é que estava morto. Vimos

batida em volta, onde ela arrastou, que ela veio arrastando pra esconder

ali. Ela já tinha comido; já tinha comido um pouco, já.

Aí como é que vocês fazem? Vocês anotam?

Anotamos o brinco só, e passamos pro Paulo, daí o Paulo que põe a causa

da morte.

Paulo é o responsável pelo controle do rebanho. Assim como os pesquisadores do

projeto, ele também leva sempre consigo a sua caderneta de campo, e no caso das

carcaças dos animais encontradas naquela manhã, anotou o nome da invernada (local), a

causa da morte (onça), e o número do brinco dos bezerros. Depois, ele passa essas

informações para fichas que encaminharia para o escritório, junto com os brincos dos

bezerros encontrados.

O escritório é o local na sede da propriedade onde as perdas seriam registradas no

programa de computador usado para o gerenciamento do gado. O acontecimento seria

registrado pelo sistema de controle do computador no item “mortes” da opção “controle

sanitário”. A causa da morte – no caso, a predação por onça – é inserida no programa

como uma observação ao lado do registro do caso. A maior parte das perdas de gado na

fazenda é causada por outras causas como picadas de cobra, doenças e ervas venenosas,

entre outras. No período abarcado pelo projeto de pesquisa, entre 2007 e 2008, a

predação por onça representou aproximadamente 30% dos registros de mortalidade na

fazenda.

Os dois bezerros comidos pela onça naquela manhã seriam, portanto, registrados

tanto pela fazenda, como uma ocorrência de perda na produção, quanto pelo projeto

científico, como registro de um caso de predação de onça, numa planilha independente

reservada ao rebanho doméstico. O termo “predação” é utilizado especificamente para

este tipo de caso, sendo que o banco de dados do projeto registra todos os incidentes de

21

animais encontrados mortos na fazenda, incluindo animais silvestres e domésticos,

atacados por onça ou não.

O Projeto Onça Pantaneira é um desdobramento do trabalho do biólogo Fernando

Azevedo na Fazenda San Francisco, que lá é chamado de Projeto Gadonça, o qual,

como o nome diz, estuda a ecologia das onças tendo como foco a questão da predação

do gado. Transcrevo abaixo um trecho da palestra do biólogo (citada acima) por ocasião

do evento realizado na sede deste último projeto, no qual ele fala sobre a Fazenda São

Bento e ressalta a importância do manejo do gado da fazenda na pesquisa sobre as

onças:

Essas divisões que vocês estão vendo aqui [no mapa da fazenda] são as

invernadas. São 37 invernadas. Eles também trabalham muito duro em

cima da rotatividade, do manejo, e também anotam tudo o que acontece.

Por exemplo: você tem um lote com 200 novilhas, no pasto lá chamado

Pato 6, por exemplo. Fica lá 14 dias. Sai dali, vai pra Torre 3, que é uma

outra invernada. Eles anotam o dia em que saiu, o dia que entrou, e quanto

tempo vai ficar. Isso pra gente, em relação à onça, é muito bom. A gente

sabe exatamente como é que ela vai responder ao movimento do gado.

Os nomes das invernadas são as principais referências de localização dentro da

fazenda, o que havia permitido que Bugrinho indicasse com precisão o local onde estava

o bezerro para Paulo, e este repassasse a informação para Seu João no chamado pelo

rádio, na manhã em que o bezerro foi encontrado. Este último, por sua vez, passou ao

primeiro o número do brinco, conforme descrito anteriormente. As informações sobre o

gado, de acordo com o que foi demonstrado, circulam através da fazenda, sendo

filtradas na medida em que passam por cada um dos atores: do peão Bugrinho para

Paulo, o encarregado, e dele para Seu Ormir, o capataz.

Os peões são divididos em funções; que envolvem uma hierarquia. o praieiro cuida

das casas e do material de montaria; o tropeiro em geral é um peão mais novo, que sai

cedo para reunir a tropa (os animais de montaria), e é “o primeiro a acordar e o último

a dormir”, segundo me disseram. O salgador de coxo é o responsável por percorrer a

propriedade colocando sal e nutrientes para alimentar o rebanho. O campeiro, por sua

vez, é aquele que trabalha a cavalo, com o gado, sendo suas habilidades no campo e na

produção de artefatos de couro altamente valorizadas na fazenda. Quem comanda os

22

vaqueiros é o capataz, e um dos campeiros mais experientes é designado como o

encarregado.

O capataz é quem determina as tarefas dos peões a cada dia, e é o responsável pela

produtividade, além de ser o mediador entre os peões e a administração da Fazenda. Ele

é quem passa as informações para o escritório, de onde é possível para o biólogo

consultá-las, e de onde o gerente administra a produção do gado de corte, negociando

sua venda para frigoríficos e abatedouros. O proprietário da fazenda é um grande

empresário de São Paulo, ligado ao ramo da construção civil que patrocina o projeto de

pesquisa sobre as onças, como explica Fernando Azevedo no evento (op.cit) em que

apresentou o projeto:

O Projeto Onça Pantaneira foi iniciado em 2007. A gente recebeu a visita

[na Fazenda San Francisco] dum proprietário, em 2004, que assistiu a um

programa de televisão que mostrava o trabalho da nossa equipe. Ele pediu

que a gente visitasse a propriedade dele, e quis começar um trabalho lá,

totalmente financiado por ele próprio.

Resumindo, eles são de São Paulo, não são daqui do Pantanal, estão

começando um trabalho forte de criação de gado aqui, e representam uma

empresa que não mexe só com gado, mexe com suco também. Então, eles

gostariam de ter um projeto que mostrasse a preocupação da empresa em

relação ao meio ambiente. Então, foi assim que ele me procurou, e nós

conversamos para começar esse projeto.

A base do projeto Onça Pantaneira está situada em uma pequena casa ao lado da

sede administrativa da fazenda, que funciona como laboratório de campo e escritório

para os pesquisadores. É para lá que são levadas as amostras coletadas no campo.

Alguns crânios também foram limpos e preparados, e etiquetados com o nome da

espécie, e ficavam expostas em torno do laboratório. Assim como no caso do projeto

Gadonça (na fazenda San Francisco), o novo projeto reunia amostras dessas presas –

capivaras, queixadas, antas, jacarés e cervos, entre outras – e também crânios de onças-

pintadas que haviam sido mortas por caçadores em fazendas vizinhas.

Cerca de uma hora depois da conversa pelo rádio sobre o bezerro predado, Seu João

retornou a base para encontrar Henrique, e eles reuniram os equipamentos que iriam

levar para o local onde estava a carcaça encontrada pelos vaqueiros. Como era provável

que a responsável pelos ataques fosse uma das dez onças monitoradas pelo projeto, eles

23

levaram também antenas de rádio-telemetria e um notebook – este último necessário

para a obtenção (ou para “fazer o download”) dos dados armazenados no equipamento

GPS das coleiras.

Quando chegamos ao local indicado pelos vaqueiros o sol ainda estava alto, e o vôo

de uma grande quantidade de urubus sobre um capão de mata indicava onde estavam os

restos do bezerro. Como mencionei anteriormente, os urubus são colaboradores

importantes para os pesquisadores do projeto. O vôo deles também é observado

cuidadosamente pelos peões de gado ao se aproximarem para examinar uma carniça,

sendo que o fato de ficarem pousados nas árvores e não descerem ao chão pode indicar

que a onça ainda esteja por perto. Sendo assim, só entramos no capão depois de Seu

João constatar que os urubus já tinham descido.

O bezerro estava sob um emaranhado de cipós, e somente uma parte das costelas

havia sido comida, o que aumentava as chances de que o predador voltasse ao local.

Henrique investigou a carcaça e identificou perfurações causadas pelos caninos da onça

na base do crânio do animal; sinais típicos do ataque da pintada. Ele anotou em sua

caderneta de campo as condições do terreno e as condições da carcaça, estimando o

tempo decorrido desde o ataque; anotou o número do brinco do bezerro; depois,

registrou as coordenadas de localização através de um aparelho de GPS portátil.

Terminando as anotações, o biólogo preparou a antena de rádio e fez várias tentativas de

localização com ela, utilizando as freqüências referentes aos colares das dez onças

monitoradas pelo projeto desde que foram capturadas, cerca de dois meses antes.

Enquanto isso, Seu João preparou duas armadilhas fotográficas, amarrando-as em

troncos a cerca de dois metros do bezerro, e a uma altura de 30 centímetros do chão,

apontadas para a carcaça do animal. As câmeras, dotadas de sensores de movimento,

foram programadas para disparos consecutivos a cada dez segundos. Para aumentar as

chances de identificação da onça, amarrou também as patas traseiras do bezerro a um

cipó atravessado na horizontal, utilizando uma um cordão que tinha no bolso. Explicou

que aquilo não ia segurar a onça, mas poderia proporcionar um instante a mais para a

fotografia.

Depois disso, seguimos os rastros da onça até lado de fora do capão por cerca de 40

metros, através do campo aberto, chegando até o local que ele identificou como sendo

onde a onça havia atacado o bezerro. Pelo tamanho da pegada do animal, julgou se

tratar de um macho. Registrei todos os procedimentos relacionados ao bezerro em

fotografias, como já havia feito em outras ocasiões, com a intenção de narrar como um

24

mesmo acontecimento era um dado relevante para duas redes de informação distintas, a

da administração da fazenda e a do projeto conservacionista.

As coleiras usadas pelas onças são equipadas ali com sistemas de rádio e GPS, e

apesar de não haver detectado nenhum sinal de rádio naquele momento, os

pesquisadores ainda queriam identificar o animal que havia atacado o bezerro. Durante

o restante da tarde, contornamos de carro a área aonde o bezerro foi encontrado,

percorremos a estrada federal que corta a fazenda, conhecida como Estrada Parque, e

voltando por dentro das invernadas da fazenda por estradinhas pequenas e atalhos. Seu

João ia dirigindo enquanto Henrique seguia na caçamba da caminhonete, com o fone de

ouvido, vasculhando em todas as direções com a antena de rádio. Dentro da fazenda, ele

localizou o sinal de uma fêmea, e pude ouvir o som: uma série de bips entrecortados de

estática, sendo que o intervalo entre os sons está relacionado à distância do equipamento

em relação à onça. Mas aquela não era a onça que havia atacado o bezerro, e

continuamos com as buscas até o final do dia.

Na manhã seguinte, voltamos ao local onde o bezerro foi encontrado, novamente

com o equipamento de telemetria. A carcaça do animal havia sido arrastada vários

metros até o campo aberto, onde foi consumida novamente. As armadilhas fotográficas

deixadas na tarde anterior haviam sido disparadas e foram levadas imediatamente de

volta ao laboratório. Chegando lá, Henrique conectou o equipamento ao computador,

onde foram descarregadas as imagens, e elas revelaram uma onça-pintada usando uma

coleira de rádio.

O biólogo selecionou um detalhe de uma das fotografias e aproximou em zoom,

selecionando uma área composta por algumas pintas da pelagem da onça, perto do

pescoço. Nesta nova imagem, procurou identificar um padrão a partir do desenho

formado por essas pintas. Utilizando o mesmo programa, abriu novos arquivos, com

fotos tiradas por ocasião da capturas de um macho, apelidado pelos pesquisadores de

Mirão. Comparou então os detalhes das duas fotos, usando como referência a mesma

área do corpo da onça, chegando à conclusão de que se tratava mesmo daquele animal.

Era justamente a onça que estavam procurando, o que foi motivo de comemoração, já

que era o único animal do qual ainda não haviam conseguido obter os dados das

localizações armazenadas no equipamento preso à coleira. O sinal do colar desse macho

havia sido localizado através da antena de rádio, nos sobrevôos feitos recentemente para

a coleta dos dados, no avião da fazenda, mas os biólogos do projeto não tinham

conseguido completar o processo de download dos dados.

25

Depois que a onça foi identificada, passamos o restante daquele dia rodando, mais

uma vez, em torno da fazenda, depois por propriedades vizinhas, cobrindo uma área

muito extensa, mas o sinal de rádio da onça que procurávamos não foi detectado em

momento algum. Enquanto dirigia, Seu João se mostrava preocupado com o

funcionamento do equipamento, já que achava que o animal não devido ter ido tão

longe logo depois de se alimentar. Conversamos sobre as capturas, que haviam sido

feitas ao longo de dois meses, e que tinham se encerrado em agosto.

Todas as onças monitoradas pelo projeto haviam sido capturadas com o auxílio de

Tonho da Onça, um caçador profissional contratado com sua matilha de cães onceiros

especialmente para a tarefa, e que já havia trabalhado com a equipe do projeto

anteriormente, na Fazenda San Francisco. Antes da contratação do caçador, havia sido

feita uma série de tentativas de captura desde que as coleiras de rádio chegaram à

fazenda São Bento, usando um grupo de cães comprados por uma fundação norte-

americana para um projeto semelhante no norte do Pantanal4 e cedidos temporariamente

ao Projeto Onça Pantaneira.

Uma seqüência de três fotos tiradas pelas armadilhas fotográficas no dia por ocasião

do evento do bezerro predado mostra uma onça-pintada de coleira, parada na frente da

carcaça do bezerro, entre um emaranhado de galhos. Na primeira delas, a onça está

parada, observando bezerro; na segunda, ela continua na mesma posição, porém com a

cabeça virada, olhando para trás; na terceira, finalmente, ela puxa o bezerro com

violência. As fotos foram tiradas com flash, em intervalos de 10 segundos, como é

possível conferir nas legendas, entre 19:05:46 e 19:06:06, portanto não muito tempo

depois de deixarmos o local, na tarde anterior.

Meses depois da última viagem de campo para o pantanal, juntei fotografias e

anotações para a Tese e as distribuí em um quadro, na vertical, procurando ordenar os

acontecimentos cronologicamente. As fotos que registram o evento do bezerro, a

telemetria, e a preparação das armadilhas fotográficas, estão dispostas em uma

seqüência, e foram colocadas ao lado da seqüência com as três de fotos da onça. Só

então reparei que as pernas do bezerro estavam esticadas na terceira imagem, e

aproximando-a, pude perceber o cordão vermelho esticado, instantes antes de se romper,

e me lembrei dessa armadilha improvisada por Seu João naquele dia.

4Em evento narrado no capítulo 3

26

Comentei isso com Henrique, em abril de 2009, escrevendo por email:“Estou

olhando agora para as fotos do Mirão na camera trap, puxando o bezerro do capão. São

de 3 de novembro de 2008, lá se vão 5 meses! Lembra da fitinha providencial? Sem ela

a foto talvez não fosse a mesma...”.O biólogo respondeu: “Pois esta foto do Mirão que

você está olhando é o último sinal que tivemos dele. Depois disso nunca mais apareceu,

ou a coleira estragou, ou ele mudou de área, ou foi morto”.

Quando o observo no mapa constituído a partir da minha pesquisa de campo, o caso

do bezerro predado na São Bento é um aglomerado de linhas, imagens em seqüência, e

anotações. No modo como esses elementos foram justapostos, ele é o evento singular

que apresenta o maior número de conexões com o restante do mapa, além de ser aquele

que agrega o grupo mais heterogêneo de atores. Por esses motivos tomei-o como ponto

de partida para a descrição etnográfica, sendo que a seqüência de três fotografias da

onça de coleira ao lado do bezerro predado, que chamarei de Seqüência 1, é o principal

registro que pretendo utilizar para fornecer uma narrativa visual ao trabalho, como um

nó que conecta diversos atores. Utilizei esta seqüência, cedida pelo Projeto Onçpa

Pantaneira, como uma referência importante para o restante da tese.

As armadilhas fotográficas são instrumentos na pesquisa de campo dos biólogos, e

as imagens produzidas por elas não são motivadas pelo exercício estético. O valor

científico delas está no caráter documental, na continuidade temporal e espacial com a

cena fotografada, no testemunho. Uma onça que pode ser identificada pelo padrão das

pintas passou em tal lugar, em tal hora; um ponto no mapa. A não ser em casos

totalmente fortuitos, portanto, falta a essas imagens as características das fotografias de

vida selvagem tais como as conhecemos em livros, revistas especializadas e congêneres,

imagem que excluem qualquer sinal humano.

Nenhum humano aparece nessas imagens, e elas retratam não só o animal em seu

habitat natural, mas também seu comportamento: o predador com sua presa. No entanto,

ela é “poluída” de diversas formas por fantasmas humanos. A coleira no pescoço da

onça é uma interferência, mas o próprio reconhecimento do animal predado como um

bezerro já indica uma “ação humana” sobre a natureza retratada. Além disso, um zoom

na imagem revela ainda um cordão vermelho amarrando a perna do bezerro ao

emaranhado de cipós ao redor, mais um vestígio.

Se eu olhasse para esta mesma imagem antes do início da pesquisa, todos esses

detalhes tirariam o interesse da foto. Não por ingenuidade, mas porque, como fotógrafo

amador interessado em imagens de animais selvagens, eu me orientava de alguma forma

27

pelo ideal de mostrar apenas a vida selvagem, a natureza pura5. Ironicamente, quando

concluí o trabalho de campo, foram justamente esses ruídos na imagem, seus vestígios

humanos, que tornaram a foto importante para a redação da minha tese. Os capítulos a

seguir foram estruturados a partir desses três elementos recortados da fotografia – (1) o

bezerro, (2) a armadilha, (3) a coleira, e seguiram o percurso desses atores no mapa

etnográfico.

O primeiro elemento isolado da fotografia, a onça, é o tema desta tese, e portanto

aquilo que ao final agrega todos os outros elementos: o objetivo do trabalho é descrever

uma rede sociotécnica, que designarei como rede onça. O segundo item recortado da

imagem, o bezerro, descreve um percurso no mapa da etnografia que pode ser

acompanhado em imagens das práticas dos vaqueiros de marcação, manejo e controle.

Essas práticas incluem uma série de dispositivos visuais de rastreamento, como o brinco

e a marca da fazenda, e também dispositivos de captura, como o laço e o brete. A forma

do bezerro remete então a uma série de práticas, tematizadas no próximo capítulo.

O terceiro elemento, o cordão, é entendido aqui como uma armadilha, e está

associada ao sujeito oculto que programou as fotografias. Sendo assim, quando

recortado, ele é a face visível de uma cadeia de atores que inclui cães de caça, caçadores

tradicionais, e uma série de outros métodos necessários para capturas das onças.

A coleira, que é o quarto item recortado, ela mesma um dispositivo de rastreamento,

percorre a etnografia formando uma série de nomes de pesquisadores, marcas de

equipamentos de pesquisa e técnicas de campo, sistemas VHS e sistemas GPS.

O percurso de cada um desses elementos corresponde ao que chamarei na Tese de

redes de práticas, tendo a figura da onça como elemento de ligação entre essas redes.

Além dos elementos citados (o bezerro, a coleira e o cordãozinho amarrado), outros

dados da imagem, como o emaranhado de cipós, as pintas da onça, o fotógrafo ausente,

a cor do animal predado, serão abordados ao longo deste trabalho.

5O que a fotografia de natureza evidencia para seus praticantes, no entanto, é o quanto esse elemento selvagem é freqüentemente construído as duras penas, através do trabalho dedicado e de vários dispositivos de ocultação – roupas camufladas, barracas – e de equipamentos caros e difíceis de manejar.

28

ANEXO B – Imagens Capítulo 1

© Projeto Onça-Pantaneira

© Projeto Onça-Pantaneira

Seqüência 1: Onça fotografada com armadilha fotográfica junto ao bezerro

predado na Fazenda São Bento. Imagens cedidas pelo Projeto Onça

Pantaneira.

29

São Bento, novembro de 2008

Seu João prepara a armadilha fotográfica depois de encontrar o bezerro predado.

30

Fazenda San Francisco, abril de 2008

O biólogo Ricardo Costa encontra bezerro predado na Fazenda San Francisco. Ao final, o crânio

depois de limpo exibe a perfuração típica da mordida da onça-pintada, na base da nuca. A

amostra, depois de preparada, é catalogada e anexada à coleção do projeto Gadonça.

31

Capítulo 2: Rede Gado

2.1. Rastreamento

Na imagem capturada pela armadilha fotográfica, a forma que corresponde ao corpo

do bezerro predado é uma mancha clara que se confunde com o emaranhado de cipós e

raízes na parte inferior da imagem. Identificar o animal aos pés da onça requer atenção a

alguns detalhes, tais como as pernas esticadas, os cascos, ou a cor do “gado branco” (ou

Nelore, a raça de zebuíno dominante na região).

O bezerro pertencia à Fazenda Real Ltda - Filial São Bento, a empresa rural

produtora de gado de corte que financia o ProjetoOnça-Pantaneira. A empresa é a

pessoa jurídica correspondente à Fazenda São Bento, situada no Município de

Corumbá, sede do projeto. Entre março e novembro de 2008, quando estive em trabalho

de campo na fazenda, ela era habitada por cerca de 40 pessoas, e seu rebanho oscilou

neste período entre quatro e cinco mil cabeças de gado (diminuindo bastante na época

da chuva, conforme veremos adiante).

O bezerro, abatido pela onça em novembro, no final da estação seca, teria sido

enviado para o ‘engorde’, meses mais tarde, juntamente com a produção daquele

período, e seria depois abatido para o consumo humano. Nesta primeira seção, descrevo

os eventos e práticas associadas ao bezerro vivo, como parte do rebanho da fazenda,

com foco nas práticas de manejo e nas associações entre o gado e os outros atores que

compartilham com ele o espaço da fazenda.

O funcionamento da propriedade é centralizado: o escritório, localizado na área da

sede, é a administração por onde passam informações sobre tudo que acontece dentro

dos seus limites. Da manutenção de estradas ao pagamento dos funcionários, da compra

de materiais de construção ao conserto da rede elétrica, da venda de um lote de novilhos

à identificação do bezerro que estava faltando em outro lote, tudo isso passa pela sede

administrativa. A maior parte dessas informações é trocada pelo rádio, que é o principal

meio de comunicação entre os funcionários da fazenda nas atividades diárias, e também

o canal de notícias entre eles e os moradores das redondezas. O caso do bezerro predado

é um exemplo desse tipo: um aviso pelo rádio que gera um bit de informação para a

propriedade rural, registrado como “perda” no controle sanitário da produção.

32

No programa de computador utilizado para a administração da criação, instalado no

escritório da São Bento, as informações sobre os lotes de gado são atualizadas a partir

da comunicação diária entre vaqueiros e administradores. O sistema de manejo e

controle do gado inclui dados sobre a quantidade de cabeças em cada uma das

invernadas (áreas de pasto) da propriedade, sua classificação – vacas, touros, garrotes,

novilhas, vacas paridas ou outras classes – e o registro individual feito a partir do

número do brinco.

Na sala principal do escritório, um mapa mostra a toda a propriedade: um polígono

correspondente a uma área de aproximadamente 10 mil hectares. Linhas retas

representam as cercas de arame que cortam a paisagem, dividindo o mapa em figuras

geométricas regulares correspondentes às invernadas, com cada uma delas identificada

por seu nome próprio.

Uma linha reta vertical que corta toda a área à esquerda do mapa indica uma estrada

estadual (de barro), conhecida como Estrada Parque. A estrada corta toda a faixa oeste

da fazenda, que se estende até o rio Miranda; para além dos limites do mapa, abaixo, ela

atravessa o rio em uma longa ponte de madeira passando pelo povoado pesqueiro do

Passo do Lontra e vai até o Buraco das Piranhas, na beira da BR-262 (que liga Campo

Grande à Corumbá). Também para além do mapa, mas acima, a Estrada Parque segue

em direção ao Porto da Manga, na beira do Rio Paraguai. Deste porto (que não cheguei

a conhecer nas viagens de campo) é possível se atravessar de balsa e prosseguir de volta

para Corumbá ou então seguir para os pantanais mais distantes das estradas de asfalto,

até as regiões da Nhecolândia e do Rio Negro, cada uma com características eco-

culturais próprias.

Uma linha horizontal acima do centro do mapa é a estrada principal interna da

fazenda. Ela começa na Estrada Parque, passa pelo Retiro onde moram os vaqueiros (o

capataz e os peões de gado), atravessa um grande capão e termina na área da Sede, onde

se bifurca entre o escritório administrativo, a nova casa do proprietário, e a antiga sede,

onde moram o gerente e sua família. Além dessas três casas principais, a pequena vila

da Sede conta com mais uma dezena de moradias, onde residem funcionários com as

suas famílias. O final da estrada principal coincide também com um galpão que

funciona como hangar para aeroplanos e oficina para tratores e outros veículos. A pista

de aviação, bem visível no mapa, corresponde a uma faixa reta em diagonal, de

tonalidade verde clara; ela é usada pelo proprietário para as visitas regulares que faz à

33

fazenda, utilizando um pequeno avião particular (no qual são feitos também os

sobrevôos para o monitoramento das onças para o projeto científico).

As variações de tonalidades usadas na cartografia indicam as diferentes coberturas

vegetais da região. O limite inferior da propriedade é o rio Miranda, e uma faixa larga

verde escura correspondente a sua mata ciliar. O limite superior é o Rio Abobral (ou

Corixo do Abobral), ele mesmo uma linha sinuosa acompanhada de outra faixa irregular

e contínua de mata ciliar verde escura. Entre os dois rios, manchas isoladas do mesmo

tom de verde, com vários tamanhos e formas, indicam os capões espalhados na

paisagem. O efeito é semelhante ao de um arquipélago em uma carta náutica: a área

clara que representa a região de campo aberto da fazenda é o fundo contínuo para essas

ilhas florestais. No período da cheia, os campos são inundados por uma lâmina de água

que oscila de meio metro a um metro e meio de profundidade, e os capões se tornam

literalmente ilhas, enquanto nos meses secos cresce no campo aberto o capim que serve

como pastagem para o gado.

O capataz responsável pelo manejo do gado da Fazenda São Bento é o senhor Ormir

do Couto, que antes de ser contratado, em 2007, trabalhou durante 36 anos na Fazenda

Bodoquena, uma das mais tradicionais da região. A Bodoquena pertence ao mesmo

grupo empresarial (Fazenda Real Ltda.) que é proprietário da São Bento, e o capataz foi

trazido pelo proprietário para tocar o novo empreendimento.

Seu Ormir, como é conhecido, é casado com Dona Leda, e os dois moram na sede do

único Retiro da fazenda. Um dos cômodos da residência do casal funciona como

cantina, e Dona Leda é a funcionária responsável pelas refeições – café, almoço e jantar

– servidas diariamente para os peões solteiros e outros funcionários da fazenda (além de

visitantes ocasionais, como era o meu caso).

O retiro é um conjunto de duas casas próximas – a do capataz e mais uma segunda

casa, menor, habitada por um funcionário e sua família – cercadas por cerca de arame, e

uma terceira casa um pouco afastada, que é o galpão dos peões. O galpão ou

“alojamento” fica ao lado de uma grande figueira e é uma construção bem ampla com

uma série de cômodos voltados para um varandão frontal. Os quartos têm ventilador de

teto, água aquecida, e na parte central há uma sala com TV. Foi onde fiquei hospedado

nos períodos de trabalho de campo na fazenda.

Na época da seca, quando aconteceu o evento do bezerro, o percurso de 100 metros

entre a cantina, na casa do capataz, e o alojamento ou galpão dos peões, era feito a pé

em questão de poucos minutos. Na cheia, porém, quando cheguei à fazenda para a

34

primeira temporada de campo, o caminho havia sido interrompido pela enchente, e os

moradores do galpão tinham improvisado uma pequena balsa para atravessar a pequena

baía formada entre as duas casas. Na chegada à região em março, no período da cheia,

anotei no meu diário de campo:

Os campos estão alagados. Alguns pedaços das cercas estão submersos, e o

gado às vezes pasta dentro d’água. O que no ano passado era campo aberto e

pastagem agora é um grande lago. Em alguns pontos, a água corre com

intensidade pelas canaletas construídas sob a estrada da fazenda. Há jacarés por

toda parte. No jantar, conheço alguns dos funcionários: Sr. Ormir, o capataz,

Paulo Acunha, o “segundo”, Irineu, Seu Máximo e outros. Depois sou

conduzido por ele até uma pequena jangada, feita com madeira e tambores de

plástico amarrados, na qual colocamos minha bagagem, e que usamos para

atravessar área alagada que se formou na frente do alojamento. A zinga é uma

vara ou remo que utiliza o apoio da vegetação rasa para a locomoção pelo

espelho d’água. Esse método é utilizado pelos moradores de áreas alagadas em

seus deslocamentos nessa época, quando utilizam canoas para atravessar o

campo. (11/3/2008)

Na margem oposta à estrada principal, que corta o retiro, fica o mangueiro onde o

gado da fazenda é trabalhado. Durante as duas semanas em que estive na fazenda, nesse

período, a jangada foi usada até a água ficar rasa o bastante para ser cruzada a pé. Era a

primeira vez que ficava na fazenda, e tive a oportunidade de conviver diretamente com

os peões e acompanhar algumas atividades no mangueiro. Alguns dias depois eu

encontraria dificuldades em atravessar sozinho na jangada:

Vou tomar o café da manhã de jangada, zingando. No caminho, recebo uma

carona de Suesley, um dos campeiros, que está passando de cavalo. Ele joga o

laço, eu seguro do lado de cá, me equilibrando na jangada, e sou rebocado até o

outro lado. (16/3/2008)

Durante os períodos que passei na fazenda, em março e depois em novembro e de

2008, fiz um total de 15 entrevistas gravadas com pessoas que moravam e trabalhavam

na propriedade. Com algumas delas convivi bastante, principalmente com os moradores

do retiro, entre elas Dona Leda. A tal entrevista com ela, no entanto, não só nunca

aconteceu, como também virou motivo de brincadeira, já que ela não queria de jeito

35

nenhum ser entrevistada ou responder ao questionário que eu usava. Sempre que eu

chegava de volta, alguém perguntava se desta vez ela não ia fazer a entrevista, e ela

dava risada.

O diário de campo de março segue relatando o encontro com outros moradores da

fazenda, naquele mesmo dia, que era um domingo:

Quando estou voltando, encontro com Seu Máximo e Irineu [pai e filho], que

vão lavar roupa e arrumar o alojamento. Junto-me a eles. Quando chego para

lavar a roupa, encontro Irineu mexendo em uma pequena máquina de lavar, e

ele me mostra uma cobra que acabou de matar, que estava dentro da máquina.

Barriga bem clara e dorso marrom. Cabeça triangular. Seu Máximo diz que é

venenosa; Irineu vira a cobra, segurando-a pela ponta do rabo e comenta que o

couro dela parece um cinto trançado. É um marrom claro, quase ocre. Eles não

parecem muito surpresos, deixam a cobra de lado e vão lavar roupa.

Na ocasião, fui até o quarto buscar a câmera fotográfica, com a intenção de

fotografar a cobra. Quando voltei, porém, Irineu a havia jogado numa moita de mato

fechado, e não conseguimos mais achar o animal. As minhas anotações de campo

reportam a nossa conversa:

Conversamos um pouco. Irineu tem um filho de quatro anos, que mora com a

mãe em Miranda. Pretende trazê-los para a fazenda, mas está esperando para

ver se consegue vaga em uma das casas. Ele dirige o trator e cuidar das cabras,

e é formado como técnico agrícola, recebendo quase o dobro do que ganham os

peões [que ganham um salário mínimo].

Na hora do almoço, 11:30, seguimos a pé para a cantina. A baía que se formou

em frente ao alojamento seca a cada dia, e é possível atravessá-la com água na

altura das canelas. A jangada já quase não é utilizada.

Na volta, Irineu me pede para passar, no meu notebook, algumas fotos que

estão na sua câmera digital para um CD. Abrimos as fotos no computador, mas

não é possível gravá-las no disco porque o computador diz que não há espaço

suficiente. Ele conta que aprendeu informática na Fundação Bradesco, onde

estudou, e diz que pretende comprar um computador assim que puder.

Olhamos algumas fotos da fazenda: o filho de Irineu, a esposa, o pessoal da

fazenda passando de cavalo no campo alagado, um bezerro grande e magro na

caçamba atrás do trator. Ele explica que o bezerro ficou perdido no fundo de

36

uma invernada e virou bagual6, e que os peões o laçaram e trouxeram amansar.

Prometo que vou falar com o Vanderlei no escritório para tentar conseguir um

CD virgem e gravar as fotografias.

Mostro para Seu Máximo e Irineu as filmagens que fiz nos dias anteriores. O

pessoal desatolando uma vaca no mangueiro, os vaqueiros conduzindo a boiada

por dentro da água, Seu João usando o esturrador. Em seguida, filmo seu

Máximo contando algumas histórias de onça. Irineu estava numa rede na

varanda e ficamos conversando, os três. Eles explicam que iam pescar, mas

ficaram no alojamento para ajudar no mangueiro se fosse necessário.

Seu Máximo distingue dois tipos de sucuri, uma preta e uma amarela. Diz que

a preta não pega o gado não, só capivara e jacaré. Conto a história do livro que

estou lendo [Jaguar, Alan Rabinowitz 1986], em que um ajudante do

pesquisador, índio, é picado por uma cobra e acaba morrendo. Comento que ele

estava no hospital, mas a esposa tirou e levou para o curandeiro, e que o autor

afirma que por isso ele acabou morrendo.

Seu Máximo diz que ele morreu porque não se pode misturar: o sujeito tem que

ir para o hospital ou então para o curandeiro, as duas coisas ao mesmo tempo

não dá certo. É a mesma coisa com a bicheira do gado – ele diz – ou benze ou

dá remédio; fazer as duas coisas não funciona. Irineu afirma que ele e o pai

sabem benzer a bicheira do gado. Pergunto se tem alguém que benza picada de

cobra na região. Eles dizem que na fazenda não, mas na região sim. Pergunto

se a pessoa usa algum tipo de remédio, e Seu Máximo diz que não, só reza.

Também contam que existe uma forma de benzer a fazenda, e que as cobras

vão para um determinado lugar – mas se alguém for até lá aí elas vão morder

mesmo.

A conversa deixa transparecer uma espécie de ‘choque cultural’ que iria reaparecer

em uma série de eventos descritos e entrevistas feitas ao longo da etnografia, onde os

conhecimentos tradicionais e os conhecimentos ‘científicos’ (representados pelo

médico, no exemplo) de alguma forma se misturam. Irineu, na época, me parecia

alguém que estava entre os dois mundos, entre a escola técnica e a benzedura do gado.

Voltarei ao tema mais tarde.

As anotações do dia prosseguem:

6Ogado bagual éo gado “selvagem”, e a categoria será tema de uma próxima seção.

37

Irineu conta que uma vez mataram uma cobra grande perto da sede e que o pai

do dono da fazenda quis ver a cobra, e não gostou que o pessoal matasse.

Pergunto se o pessoal sempre foi a favor de preservar os animais. Conta que

antes de ter o projeto (do Fernando), eles saiam para caçar o porco-monteiro

para comer. Mas era só para comer, afirma, e comenta que depois do monteiro

a melhor carne é mesmo do queixada. (16/3/2008)

Em depoimento registrado ainda em março de 2008, numa entrevista gravada, Seu

Ormir descreve o tipo de manejo do rebanho utilizado na propriedade:

A gente usa o (...) esquema de manejo rotacionário [e.m.]. Por exemplo:

tem uma invernada, você coloca lá um lote de gado. (...) [L]ogo cê vai

pegando a prática: quanto tempo esse lote vai ficar nesse pasto? De repente

fica 15 dias, de repente é 20... Aí você já pega e já passa pra outro.

Geralmente você deixa 2 ou 3 invernada pra um lote grande de gado.

O sistema descrito por ele diz respeito ao aproveitamento da pastagem e também ao

comportamento do gado:

É o meu manejo favorito: fica bom, o gado fica manso, você não fica com

muito lotinho esparramado, o gado pastoreia a invernada por inteiro...

Roda os quatro canto, que a gente fala, quatro canto e meio. Então, de

repente cê tem uma invernada muito grande e cê põe pouco gado, o gado

fica... roda só meio, por exemplo, e um canto... Então, o resto do pasto fica

meio vago, e aí não dá um aproveitamento total da área (...)

De acordo com o relato do capataz, a Fazenda São Bento tinha originalmente uma

área de 17 mil hectares, e foi vendida há cerca de 20 anos para um grupo empresarial

dono de uma rede de açougues na cidade de Corumbá e de dezenas de fazendas na

região, além de milhares de cabeças de gado. O proprietário atualé um grande

empresário de São Paulo ligado ao grupo Votorantim, do ramo da construção civil, que

adquiriu no início deste século cerca de 10 mil hectares, dividindo a fazenda. A parte

comprada inclui a Sede, e o nome da propriedade foi mantido. O restante da área, cerca

de 7 mil hectares, corresponde atualmente a uma fazenda vizinha, mas estava ainda em

negociação.

Em novembro de 2008, na época em que ocorreu o ataque da onça ao bezerro, o

capataz da São Bento tinha sob sua responsabilidade cerca de 5.400 cabeças de gado,

400 búfalos e 100 carneiros, conforme a listagem que me mostrou na época. No

38

decorrer da pesquisa de campo, conversei bastante com Seu Ormir a respeito do gado,

tema sobre o qual ele tinha predileção e era um grande especialista.

O bezerro predado pela onça fazia parte de um lote de gado que estava em uma das

invernadas da propriedade, e já havia sido “tatuado” e recebido o brinco de

identificação. Na mesma semana de novembro em que este animal foi encontrado, pelo

menos mais três bezerros apareceram mortos na fazenda, de acordo com minhas

anotações de campo:

Nos últimos dias apareceram quatro bezerros comidos por onças na fazenda. Os

ataques são comentados na cantina, durante o almoço. Seu Ormir brinca, dizendo

que "foi o Fernando sair para a onça começar a comer"; Concha, o motorista de

caminhão, diz que “época que começa a chuva que a onça mais pega”. Converso

mais tarde com Seu João, que concorda que é quando acontece a maioria dos

ataques; ele comenta que essa onça “já estaria morta em muitas outras fazendas”.

A proposta desta primeira seção do capítulo é colocar em rede as associações

produzidas pelo bezerro como parte do rebanho da fazenda. Isso significa que o foco da

narrativa serão as práticas de manejo do gado e a relação entre os vaqueiros e o rebanho.

Nenhum dos animais encontrados na ocasião pelos vaqueiros passava de um ano, e o

animal fotografado foi inteiramente consumido na noite do retorno da onça. O próprio

predador, como narrado no capítulo anterior, não foi mais avistado, e o destino dele e do

colar que portava são desconhecidos, como vimos no final do capítulo anterior. Neste

sentido, em relação ao ‘sistema de informação’ referente à pesquisa científica, ele

representa uma ‘perda’: o equipamento, a captura, grande parte do que foi investido no

manejo daquele animal não produziu dados. A idéia do ‘prejuízo’ o aproxima do

bezerro e do sistema de informação da fazenda; por outro lado, a idéia de que ele

‘escapou’ de alguma forma ao controle humano, depois de ter fugido dos cães em outra

ocasião, o aproximam de outra rede: a ‘onça que escapa’ é uma figura chave nas

narrativas de caça abordadas adiante.

Em 12 de março de 2008, acompanhei o dia dos peões trabalhando com o gado,

enquanto pesavam os bezerros e separavam os que estavam mamando dos que iam ser

desmamados. Tentando entender melhor o processo, filmei as atividades deles e fiz uma

série de perguntas, anotando as respostas na hora numa caderneta, que passaria a limpo

naquela noite:

39

O Mangueiro é o lugar em que se trabalha com o gado, o curral. É dividido em

partes. O embute ou seringa é o funil que conduz até um corredor estreito de

madeira chamado de brete, por onde passa o gado, uma rês por vez. No início e

no fim do corredor, portas de correr, que são controladas por um dos peões.

Passando pela segunda porta, a rês que vai ser pesada é segura pela guilhotina,

uma estrutura de madeira que se fecha no pescoço da vaca. A guilhotina é

utilizada para segurar o animal na balança, nesse caso um tronco-balança. No

final de tudo isso está o ovo, composto de cinco portas, controladas de cima por

uma pessoa (Seu Máximo) através de alavancas. Quando passam pelo ovo, os

animais são classificados em voz alta por Seu Ormir: vaca, macho desmame

[bezerro], fêmea desmamemacho mamando, fêmea mamando, touro; e cada

classe é conduzida a um curral diferente. O encarregado, Paulo, anota tudo em

uma prancheta. Os bezerros desmamados machos são os que a fazenda vai

vender. O trabalho é demorado e envolve todos os funcionários da pecuária; só

termina depois que já escureceu.

No dia 21 de outubro, quando regressei à fazenda para um segundo período de

campo, a paisagem mudara completamente A área ao redor do barracão estava

completamente seca, e servia de pasto para um lote grande de bezerros. Da equipe de

peões trabalhando com Seu Ormir só restavam Paulo Acunha e seu irmão Ramon, e

outros quatro campeiros tinham sido contratados. No final da tarde em que cheguei,

percebi, de dentro do meu quarto, que o rebanho corria em círculos ao redor da casa,

aparentemente sem motivo. Na varanda, dois peões que eu não conhecia tinham

chegado do campo e estavam sentados na sacada; de vez em quando, um deles

assoviava alto, sem se mover dali. Então percebi que estavam brincando: era isso que

provocava a disparada dos bezerros.

Dois dias depois, acompanhei um grupo de peões que levava um lote de gado para

uma área do outro lado da Estrada Parque. Para conduzir os novilhos, doze bois

“sinuelos” os acompanhavam; esses animais mansos, acostumados a seguirem os

cavaleiros, mantêm o resto do rebanho unido. Antes da partida, Paulo, que era o

encarregado, anotou em sua caderneta os números de cada um dos animais. Para

conduzirem a boiada, os peões falam manso: booi, boooi, boooi. Três cães de pastoreio

australianos (zorro, falcão e delta) seguem sempre ao lado de Jiló, o peão que os criou

desde pequenos. Quando um boi escapa na estrada, um cavaleiro sai atrás a galope,

40

dando gritos agudos, e os cães cercam o animal em disparada, correndo entre suas

pernas e conduzindo-o de volta para junto da boiada.

De noite, mostrei as filmagens do pessoal laçando, na tela do notebook que, desta

vez, era o meu caderno de campo. Risos, provocações. O barracão é para os peões

solteiros e também para receber funcionários por temporada como tratoristas e

mecânicos. A condição de “solteiro”, no caso, se refere à situação dentro da fazenda,

sendo que alguns peões que moram no barracão são casados, e têm mulheres e filhos na

cidade (Miranda ou Corumbá).

Alguns dias depois, os vaqueiros iam colocar brincos e tatuar bezerros novos, e me

chamaram para filmá-los no trabalho com o gado. Eles competem entre si para ver

quem acorda mais cedo. Quando tomo café da manhã, às 4 da manhã, os cavalos já

estão preparados, e saímos em seguida para o campo. Depois de meia hora de

cavalgada, encontramos batidas recentes de onça-pintada, que eles me mostram,

apontando a direção para onde ela seguiu. Enquanto procuram pelos bezerros,

comentam brincando: se o gato não comeu...

Para o trabalho daquele dia, um lote de vacas e bezerros pequenos, esparramado pela

invernada, foi sendo reunido pelos peões, e encaminhado para um piquete (um cercado

reduzido). Lá dentro, os peões se dividiram: dois deles pegavam os bezerros a laço, um

por um, para trazê-los até onde estavam os responsáveis pela marcação e pelos

medicamentos (antibióticos e remédios para tratar bicheira).

Um dos campeiros se aproxima do bezerro laçado e o “vira” (derruba), mantendo o

animal no chão com o joelho enquanto outro peão usa uma corda para amarrá-lo pelas

quatro patas. Em seguida, eles pegam os instrumentos preparados com a numeração e

tatuam as duas orelhas do animal, uma com o número da mãe e outra com o número do

próprio bezerro. Nesta última orelha, fixam o brinco, no qual está o mesmo número da

tatuagem, e que identificará o animal na fazenda (os brincos são numerados em

seqüência direta). Enquanto tatuam, eles fazem também a aplicação de remédios,

vacinas, e "curam" as bicheiras do bezerro; no final, um deles levanta-o pela corda que

amarra as patas, para a pesagem. Durante o procedimento, as vacas não se afastam de

seus filhotes e avançam no peão que segura o bezerro, precisando ser afastadas com

gritos e gestos bruscos pelo outro.

Paulo, que é o encarregado, carrega uma prancheta na qual anota todas as

informações. Fiz fotos da seqüência do trabalho, que mostram o processo pelo qual

passam todos os bezerros da fazenda. O bezerro que foi encontrado comido pela onça,

41

dias depois, havia passado por aquele mesmo processo, e a preocupação imediata dos

peões na ocasião seria a recuperação do brinco e sua identificação. Como ainda era

muito novo, aquele animal não trazia as marcas que o gado grande traz nos quartos

traseiros e dianteiros. Estas só são feitas depois que o bezerro é desmamado, quando

recebe as inscrições, a ferro, com a marca da fazenda e o ano do seu nascimento.

Nas atividades de manejo dos bezerros, os peões pediam que eu os filmasse laçando,

e se revezavam na atividade, provocando-se mutuamente na vez dos outros. Depois de

uma manhã inteira debaixo do sol de 40 graus, quando os bezerros foram tatuados,

seguimos para um barracão (apenas um telhado erguido no meio do campo, que oferece

um pouco de sombra), aonde um caminhão levaria as marmitas para todos. Seu Ormir

comentou como é dura a vida do campeiro, dizendo que eles não têm hora extra (eles

anotam os horários e ganham dias de folga de acordo com o trabalho a mais). Na hora

do almoço, comecei a sentir sintomas de insolação e a passar mal, precisando pegar uma

carona no caminhão de volta para o Retiro, o que foi motivo de diversão mais tarde para

os outros.

Em relação às marcações e sinais do gado, observei neste período que os corpos do

gado eram o suporte, o “papel” (usando como referência o gado branco), para uma

escrita. Olhando o rebanho, os vaqueiros lêem uma série de informações nas marcas,

códigos incompreensíveis para “analfabetos” urbanos como eu. Tirei diversas

fotografias das marcações durante o período de campo, mas não sou capaz de

reconhecer o significado desses sinais. Apenas posso afirmar que os vaqueiros ‘lidam’

com o gado de uma forma predominantemente visual.

Grande parte do trabalho dos vaqueiros, na lida diária, é o de vigiar o gado e segui-

lo à distância pelo campo. Essa relação visual é recíproca, e o gado identifica o salgador

de coxo quando chega para alimentá-lo, e observa os movimentos dos campeiros: a

disparada de um cavalo, o volteio de um laço por cima da cabeça, são as deixas para que

o rebanho se movimente. Quando um estranho passa na estrada, muitas vezes o gado se

reúne todo ao lado da cerca encarando-o fixamente, e é o coletivo que olha: os animais

voltam sua atenção em conjunto.

A vigilância recíproca entre o gado e os vaqueiros é marcada pelo movimento

contínuo e repetitivo e pela distância espacial. Assim como são observados, os peões

observam de longe o gado, avaliando as condições de saúde dos animais, procurando

bicheiras e ferimentos à distância, de cima da montaria. Apenas quando é necessária

uma identificação adicional, assim como nos momentos em que vão “cuidar” ou marcar

42

os animais, o movimento contínuo da ‘vigia’ é interrompido por algum movimento

repentino: um garrote em disparada, os cães a persegui-lo, o cavaleiro volteando o laço

por cima da cabeça; acontecimentos abruptos que precedem a captura.

Ao contrário do rastreamento, a captura com o laço é marcada pela proximidade

espacial e pelo movimento abrupto. Quando o animal está sob controle ele passa para

outro registro: o laço é o que corta a distância e que permite a aproximação; a relação

visual dá lugar então à manipulação e à interação física.

Para o trabalho com o gado, o peão e sua montaria precisam estar em sintonia, e

grande parte do tempo dos vaqueiros é dedicada a amansar e domar os cavalos. Apenas

quando precisam abrir uma porteira ou um ‘passador’ entre uma invernada ou outra é

que são obrigados a descer, sendo que geralmente essa tarefa é reservada aos mais

novos. A qualidade do cavalo ou da mula é destacada pelos peões como fundamental

para o sucesso no laço, que é a principal ‘arte’ do campeiro e também aquilo que o

distingue e valoriza perante os demais, conforme veremos adiante.

O código visual, além da vigilância recíproca descrita acima, também está presente

em outro tipo de associação. Quando buscam o gado disperso pelo campo, os vaqueiros

procuram sinais na paisagem: ‘trilheiros’ no chão ou no mato alto, fezes ou qualquer

tipo de sinal revelador da passagem do rebanho. Também identificam as ‘batidas’

(pegadas) de qualquer animal que possa representar uma ameaça para o rebanho, como

uma onça à espreita (a relação das onças com o gado, definida nesses termos, será tema

de um próximo capítulo). Essa procura por pistas já é outro tipo de rastreamento, não

um rastreamento visual, mas sim um rastreamento indicial, que envolve a leitura de

rastros, vestígios e sinais na paisagem.

Campos Filho (Op.Cit), em seu trabalho sobre as práticas tradicionais da região de

Poconé, descreve o processo da domesticação dos animais de montaria:

A primeira domesticação do cavalo acontece quando a espécie deixa-se

dominar pelo manejo no campo. As fêmeas, machos jovens e alguns adultos,

os garanhões, ‘cuiudos’, ‘pastores’, são ‘xucros’, isto é, não têm

conhecimento da ‘lida com o gado’.

Outra parte do rebanho eqüino é chamada de ‘tropa’, composta de machos

castrados, ‘mansos’ de serviço, ‘que conhecem o serviço’, ‘a lida’,

resultado da segunda domesticação do cavalo, chamado genericamente, na

região de Poconé, de ‘animal’. (2002: 123)

43

O autor descreve a partir daí a associação cooperativa entre o peão e sua montaria:

Fontes orais descrevem cavalos que tinham verdadeiro conhecimento da

‘lida’, participando dela como parceiros, fonte de orgulho ao peão. Conta-

se de cavalos que ‘choravam’ quando não conseguiam ‘pegar a rês’,

animal bovino, que estavam perseguindo. (...) Perseguindo uma rês no

mato, é o ‘cavalo prático’ que segue a ‘batida’, pegadas, pois não há tempo

e visão ao peão para isso. ‘Rompem o mato juntos’ (...) no desbravamento

dos ‘lugares brutos’... (2002: 124-125)

Além dos cavalos, os cães de pastoreio também são parceiros constantes dos

vaqueiros, ajudando-os a reunir e dispersar o rebanho. Os bois ‘sinuelos’, que são

mansos, acompanham os cavaleiros quando é preciso deslocar uma boiada ou lote

grande, então o manejo do gado (arredio ou brabo) é uma colaboração muitas vezes

entre peões, cavalos, cães e bois (mansos).

Além das dessas duas formas de rastreamento, ambas visuais, o manejo do rebanho

também inclui também códigos auditivos como os diversos tipos de gritos dos vaqueiros

– ‘eeei’, ‘iiiie’ ‘ioooo’ ‘iiiiiuuu’ (agudos), ou então ‘eh, boooi, booi’(graves), para fazer

o rebanho dispersar ou reunir-se – e os mugidos e sons do rebanho aos quais os

primeiros estão atentos. Os gritos também são usados para a manutenção do contato

entre os peões no campo, assim como na comunicação com os cães.

Apesar dessa diversidade de códigos, o que procuro mostrar ao longo do capítulo é a

predominância da visualidade na relação entre o gado, os vaqueiros e seus ‘auxiliares’

animais. As formas de classificação e a linguagem utilizada pelos vaqueiros no campo

se caracterizam por sua eficácia: eles são capazes de ‘ler’ o rebanho O sinal da fazenda,

por exemplo, está em todos os animais, então é um sinal com significado ‘fora’, mas

não no manejo interno. Outras marcas, como o ano do nascimento, permitem uma

identificação à distância, assim como o número do brinco.

Procuro mostrar que essas marcas, que fazem parte do vocabulário visual dos

vaqueiros, são inscritas sobre uma primeira camada – a pele dos animais – na qual se

baseia grande parte da linguagem descritiva utilizada por eles, enfatizando cores e

atributos físicos. Durante o trabalho de campo, solicitei várias vezes aos vaqueiros que

identificassem as cores de cavalos (e mulas) e também do gado. Os termos usados para

cores de cavalos e mulas foram: tordilho (branco), tordilho perdez (banco salpicado de

pintas), baio (amarelado), ruano (mais claro que o baio), pampa (malhado de branco e

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preto ou vermelho), alazão (vermelho), mouro (marrom escuro), e rosilho (marrom

salpicado de branco); para o gado foram citadas as seguintes cores: branca, fumaça

(branca com cinza), brasina (baio com escuro), lobuna (amarelado bem escuro);

vermelha, vinagre (vermelha com preta) e tostada (escuro).

As cores branca e fumaça referem-se especificamente ao gado zebuíno branco, ou

nelore, que predominava na fazenda, e sobre o qual falarei adiante. Esse tipo de gado,

mais recentemente, substituiu em todo o pantanal gado pantaneiro ou Tucura, de

origem ibérica, que atualmente é apontado como ameaçado de extinção (Mazza 1994;

Campos Filho 2002).

Referindo-se especificamente ao Tucura oriundo do norte do Pantanal, Campos

Filho (2002) reporta o seguinte cromatismo:

[A]s cores variam do amarelo, baio ao preto, havendo cores mistas, como:

malhado, manchado, pintado, jaguané, mouro, apatacado, fusco, galante,

araçá, bamba; e cores compostas, como pêlo de rato, ruço. (: 49)

O cromatismo do gado e dos cavalos são elementos centrais para os peões

descreverem uma vaca ou um garrote individualmente, o que fazem acrescentando

também outras características físicas, o formato e o tamanho dos chifres ou qualquer

outro traço peculiar daquele animal. Assim, eles identificam, por exemplo, a mãe de um

determinado bezerro no meio de um ‘lote’ de gado ‘branco’, no qual distinguem

tonalidades de ‘fumaça’ (branca com partes cinza mais ou menos escuras). O elemento

cromático é utilizado numa espécie de descrição breve do animal, um substituto do

nome em um gado que não é nomeado.

Procurarei mostrar adiante que o cromatismo é também um elemento central na

nomeação das onças pantaneiras, aproximando a classificação delas desta espécie de

pré-nomeação do gado utilizada pelos peões no campo, na lida com o rebanho.

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2.2. Clube do Laço

O laço é a arma do campeiro.

Seu Zé Carlos, Fazenda Caiman (10/3/2006)

Domingo é dia de folga dos peões na São Bento. Aqueles que não estão fazendo

faxina, lavando roupas ou arrumando a casa trabalham com seus apetrechos de trabalho

e de montaria. O couro de gado é a base de fabricação da maior parte dos utensílios dos

vaqueiros. É o material usado na fabricação do laço, dos chicotes, bainhas de facas,

rédeas, “badranas” (que prendem a sela), o coldre do revólver, o “embornal”

(onde carregam alimento), dos “arreadores” [N. usados para produzir um estalo

alto e provocar movimento no rebanho (Banducci 1995)] entre outros acessórios.

Um chifre de formato adequado também é usado para se fazer a “guampa”, o recipiente

no qual se toma o tereré, o mate gelado que mata a sede e reúne os vaqueiros.

Grande parte do trabalho de curtume diz respeito à fabricação e à manutenção do

equipamento de cada campeiro, que é responsável por todos os seus utensílios,

incluindo o laço e toda a “traia” de montaria. É o caso do campeiro Bugrinho, que

fabrica para si um novo laço na varanda do galpão dos peões, aproveitando seu

domingo de folga no retiro da São Bento. Ele é um dos mais jovens da turma da

pecuária na São Bento, e explica que esperou a sua vez, revezando com os outros peões,

para ficar com o couro de uma das vacas carneadas ali mesmo, no retiro. Fico

acompanhando o trabalho, enquanto conversamos.

Ele usa quatro tiras compridas de couro, cada uma com uma medida de trinta e cinco

braços. Quatro novelos com essas tirasestão espalhados pelo chão, e as cordinhas vão

sendo trançadas com apoio de uma das colunas de madeira da varanda do galpão. Cada

vez que trança as tiras, o peão usa o peso do corpo para puxar e dar aperto ao laço. O

modo como trança e aperta são determinantes no resultado final. Ele demonstra as

etapas de trabalho para uma série de fotografias [FIG].

A casca do angico obtida no mato – diz o peão – é tradicionalmente usada para

curtir o couro, sendo batida na água onde a peça fica mergulhada. Antes de ser curtido,

o couro foi esticado ao ar livre para ser limpo e salgado. A tira de couro, chamadas de

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“tento” ou “cordinha” é obtida a partir do corte em espiral do couro curtido, o que é

feito à faca e requer uma grande habilidade por parte do peão. A fabricação dos

utensílios de trabalho é um conhecimento altamente valorizado nas fazendas, e um laço

de qualidade pode ser trocado ou vendido na cidade por um bom preço, o que pode ser

uma fonte de renda adicional para o peão.

Em seu trabalho sobre os vaqueiros da região da Nhecolândia, Banducci (2007

[1995]) afirma que:

Em algumas fazendas a fabricação de laço é estimulada e o resultado de

seu comércio na cidade - de fácil aceitação, já que são tidos como de

excelente qualidade - é revertido em bens de uso para o peão, como botinas,

capas de chuva, calças de lona, argolas para a traia, etc., uma forma de

estimular as suas habilidades e permitir-lhes um meio alternativo de

adquirir bens manufaturados, ainda que sob o controle do fazendeiro.

(2007[1995]: 50)

Em nota, o autor observa que:

É o proprietário quem leva os laços para a cidade e, chegando lá, troca-os

em selarias por artigos que, no retorno à fazenda, entrega aos peões. Se a

troca foi feita por uma botina, por exemplo, no final da transação os peões

recebem um par do calçado por cada laço trançado.

Observando o valor de ambos os produtos numa selaria de Campo Grande,

que comercializa os laços pantaneiros, verificou-se que o preço de venda do

laço equivale ao de duas botinas de qualidade inferior. (Idem)

Os serviços de um artesão habilidoso no trabalho com o couro são apreciados tanto

por outros vaqueiros quanto por fazendeiros e conhecidos, e sua reputação – assim

como a de um bom laçador – se estende por toda a região, sendo que o trabalho circula

principalmente em um sistema de trocas. Banducci reporta ainda que:

As fazendas costumam pagar pela doma de cavalos xucros, pois eles são

fundamentais para o trabalho com o gado. Algumas chegam a pagar o

equivalente a um salário e meio para cada cavalo amansado pelo peão,

outras presenteiam-nos, no final do ano, com novos arreios e indumentárias

para o trabalho no campo, em pagamento por todos os animais domados.

(Idem: 71)

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Quando deixei a São Bento pela última vez na pesquisa, fui de carona com o

caminhão da fazenda para a cidade de Miranda, com a intenção de acompanhar um

evento que ocorreria no Clube do Laço, na sede do Sindicato Rural do Município, no

primeiro final de semana de novembro de 2008. Era final de semana de pagamento, o

único em que o pessoal que mora nas fazendas da região costuma ir para a cidade trocar

os cheques e visitar a família.

No sábado de manhã, saí do hotel para ampliar algumas fotos e gravar CDs com as

filmagens e fotografias feitas nas últimas semanas na fazenda, conforme havia

prometido aos campeiros. Encontrei por acaso no caminho um jovem campeiro da

fazenda, que estava numa loja de roupas na rua onde eu procurava uma loja de

revelação. Ele explicou-me que costumava trocar seu pagamento nessa loja, onde

aproveitava para comprar suas roupas, já que o cheque da fazenda era de um banco que

não possui agências na cidade. Esperamos alguns minutos até a chegada de uma

funcionária que trazia o dinheiro. Queimadinho era o mais jovem peão da São Bento, e

segundo ele o final de semana de folga era o único em que precisava de dinheiro, em

geral gastando quase tudo o que recebia.

Paulo passou então de bicicleta também por acaso, e se juntou a nós. Os dois me

acompanham até a loja de fotografia, e escolhem algumas imagens para serem

ampliadas. Durante a estadia na fazenda, eu carregava sempre uma câmera, e várias

vezes tinha filmado ou fotografado o trabalho deles com o gado. As imagens preferidas

eram àquelas nas quais apareciam laçando (na fazenda, as fotos e filmagens eram

assistidas com interesse no Galpão, e os peões se divertiam com os erros dos outros e

pediam para eu gravar quando achavam a cena ou a foto boa).

Na própria loja havia uma série de ampliações grandes de campeiros laçando, em

vaquejadas, com público assistindo, e numa delas reconheci Seu Zé Carlos, retireiro da

Caiman que tinha conhecido em 2006, participando de uma vaquejada na pista da

fazenda. Quando deixamos a da loja de fotografia, tomamos cada um três copos de

caldo de cana (“guarapas”), que Paulo faz questão de pagar. Entre os moradores de

Miranda, ele e seu irmão Ramon são casados, e as esposas e filhos moram na cidade;

Queimadinho e Bugrinho, mas jovens, são os únicos (“realmente”) solteiros da turma.

Chego cedo ao local do evento, que ainda está sendo preparado. No cercado, os

primeiros peões testam seus cavalos, preparando-se para a competição da "vaca gorda",

o maior prêmio da noite. O nome é por causa da antiga premiação, e o maior prêmio no

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evento atual é de 600 reais em dinheiro. A inscrição custa 30 reais o trio e pode ser feita

na hora, com corridas à tarde toda.

A principal competição, no entanto, é por equipes. Os peões de muitas fazendas da

região vêm uniformizados para a competição, que é a mais tradicional e mais procurada

pelo público. As fazendas concorrem por taças, e encontro entre os conhecidos a equipe

da Fazenda San Francisco, composta pelo guia de turismo Giuliano, Seu Adão e os dois

filhos – Elmo e Nildo, e Júnior, um técnico em pecuária que havia deixado a fazenda há

alguns meses. Este último conta que ficou um período em Miranda fazendo bicos como

topógrafo e está no caminho de volta para Alegrete, no Rio Grande do Sul, sua terra

natal.

Assistimos à competição e vou aprendendo as regras, como quem assiste pela

primeira vez a um jogo de futebol: Laçadores se revezam em várias categorias. O

campeiro precisa acertar entre o focinho e o pescoço do boi, fechando o laço em torno

dos chifres, para marcar o ponto; se o laço fica apenas no pescoço, a laçada é negativa.

Um "bandeirinha" a cavalo sinaliza os pontos: bandeira branca para os positivos e

vermelha para os negativos. Quando o laçador perde o chapéu ou ultrapassa a marca de

cem metros no meio da pista, também perde os pontos, independentemente de acertar a

laçada.

Sobre as habilidades dos vaqueiros, Banducci afirma:

Se numa vaquejada o peão deixa escapar alguma rês, a frustração é

imediata, e sua contrariedade, que pode durar horas ou dias, é ainda

avivada pelas brincadeiras dos colegas, que devem ser aceitas com

resignação. Se não consegue domar um cavalo xucro ou demonstra temor

em fazê-lo, na certa será ridicularizado. No entanto, a prova de destreza

nessas atividades resulta num reconhecimento que ultrapassa em muito os

limites da fazenda. Na rodas de conversas, volta e meia o assunto centra-se

na capacidade deste ou daquele peão em laçar, domar, cavalgar, etc.

(1995[2007]: 96-98)

As provas mais importantes do Clube do Laço acontecem no domingo, segundo dia

de competição. Finalmente acho o pessoal da São Bento, de quem havia me

desencontrado no dia anterior. Encontro novamente Júnior, o gaúcho, e desta vez

também nosso amigo comum Éberton, fotógrafo que trabalha na San Francisco. Este

último, como único profissional presente, me leva até a torre onde ficam o narrador e os

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organizadores do evento, de onde temos o melhor enquadramento. Éberton usa uma

Canon de última geração, e é especialista em fotos de animais selvagens, e usa um

disparador rapidíssimo, como um fotógrafo de esportes. Com equipamento bem mais

modesto, meus resultados não são tão impressionantes, mas finalmente consigo algumas

imagens boas das laçadas, tendo o público ao fundo. Nelas, é possível perceber

claramente algumas laçadas positivas, e também desenhos interessantes que o laço

produz no ar; boi, cavalo e cavaleiro capturados em disparada na tensão do movimento;

o jogo de olhares entre os três participantes; a perfeita sincronia que produz uma laçada

positiva.

Laçadores profissionais e amadores podem participar, e o concurso reúne

fazendeiros, peões e capatazes. Alguns laçadores totalmente inexperientes competem

com outros que treinam diariamente. O narrador do evento diz de determinado

competidor, que é também um dos patrocinadores do evento, que "vem montado em

duas carretas de novilhas", referindo-se ao valor do cavalo montado por ele. A grande

maioria dos participantes é de homens (e nas fazendas só conheci também peões

homens), mas algumas laçadoras participam do concurso, e assisto a três duplas

femininas competindo. Elas são, é claro, as mais aplaudidas pelo público.

Nas provas por equipes, os laçadores trazem camisas ou coletes com os nomes das

respectivas fazendas. Enquanto tomamos cerveja assistindo a vaquejada, Júnior afirma

que já ganhou prêmios no Sul, mas que parou de levar a sério as competições. Ele

comenta que o pai tem uma pista de laço, e que treina desde os oito anos de idade, mas

que está ali para se divertir, usando cavalo e equipamentos emprestados. Afirma

também que existem diversos profissionais que vivem de competições de laço, em

diversas partes do Brasil, e menciona nomes conhecidos, só acentuando meu total

desconhecimento a respeito do assunto. A melhor colocação da San Francisco foi um

terceiro lugar obtido em 2007, e mais tarde eu teria a oportunidade de ver o troféu,

exposto no escritório da Pousada.

Essa dimensão ‘esportiva’, ritualizada, do jogo com regras, encena a ‘lida’, o jogo

com o gado nas fazendas, no qual o laço é o principal equipamento de trabalho dos

vaqueiros. No controle e manejo do rebanho ele é, literalmente, aquilo que conecta o par

vaqueiro-e-cavalo ao animal perseguido; aquilo que permite ao vaqueiro subjugar seu

adversário. Ao mesmo tempo, no entanto, o laço é fabricado com o couro, e resulta,

portanto de uma captura anterior. Mais que o controle e dominação, quero chamar

50

atenção aqui para o laço como elemento de associação, de conexão, a partir do qual os

pantaneiros e seus rebanhos seguem amarrados.

É com o laço que o bezerro é pego para ser ‘cuidado’, o gado que se solta conduzido

de volta ao rebanho, o cavalo xucro amansado e o boi bagual (bravo) capturado. É com

ele também que se conduz a matula para o sacrifício. Minha intenção nessa breve

descrição da fabricação e da prática do laço é justamente designá-lo como esse duplo

dispositivo de captura – ele é fabricado do mesmo animal que serve para capturar. Na

seção seguinte, o abate também será designado como um dispositivo decaptura, mas

neste caso uma captura de segundo grau, na medida em pressupõe a primeira.

2.3. O abate

Faz parte da rotina das fazendas do Pantanal o abate periódico de animais para o

consumo dos moradores. Na São Bento, o responsável pela “carneação” é o próprio

capataz, Seu Ormir. De acordo com ele, a fazenda costuma abater duas vacas por mês,

uma para os funcionários ‘casados’ (sendo que o custo, abaixo do mercado, é abatido no

final do mês no salário), outra para a cantina, onde almoçam os ‘solteiros’. Logo que

cheguei à fazenda para o trabalho de campo pela primeira vez, entrevistei o capataz, e

ele me mostrou uma listagem com todos os animais da fazenda, divididos em

categorias, e explicou os termos que ainda não eram familiares para mim. Além do

gado, a fazenda cria búfalos e carneiros. ‘Tambero é o gado manso’ – anotei na época –

‘e inclui as vacas de leite e sinuelos. ‘Matula’ é a vaca separada para o abate. O

‘sinuelo’ é o boi que conduz a boiada’. A listagem de Seu Ormir diferenciava ainda o

“gado de corte” do “gado manso” – incluindo “vaca de leite” e o “sinuelo” – que “tem

até nome”. Assim como a “tropa” – cavalos e éguas de montaria – da fazenda, que são

os companheiros de trabalho dos campeiros, o gado manso tem nome e vive na sede (ao

contrário do gado de corte). Seu Ormir reponde ainda que é comum que bezerros,

cabritos ou potros órfãos sejam criados na mamadeira pelos peões; esses animais são

chamados de “guachos”, e se incluem também entre os mansos.

Em nota sobre o tema, Banducci (2007) reporta que:

Bezerros "guachos" são animais "órfãos", normalmente deixados nas

fazendas por boiadeiros, já que não resistem à marcha junto com o

rebanho, ou cujas mães não conseguem amamentá-los, sendo presenteados

51

pelo fazendeiro aos peões. São criados como animais de estimação,

alimentados com o leite da ordenha através de mamadeiras improvisadas,

recebem nomes carinhosos, como princesa, boneca, garoto, mimoso, entre

outros. (2007[1995]: 93)

“Em geral” – explica Seu Ormir – “o animal negociado pela fazenda é o garrote

macho, e a fêmeas fica na propriedade” (10/2008). Falando sobre o fornecimento da

carne para consumo interno, ele afirma que o ideal é a vaca ter um bezerro por ano;

“passa muito tempo sem produzir, entra na fila para o abate” – conclui. E complementa

ainda que, em alguns casos, um lote de “vaca gorda” ou “vaca meio-cheia” pode entrar

também na negociação com criadores ou frigoríficos.

Durante a estadia na São Bento não acompanhei nenhuma vez um abate de gado,

apenas o de carneiros. Descrevo a seguir o processo em 16 imagens, tomando como

ponto de partida a carne cortada no açougue. Minha intenção com essa inversão da

cronologia das imagens é descrever a carne como aquilo que é capturado numa

seqüência de eventos que se inicia com o animal sendo laçado.

Na primeira foto, Ramon exibe um pedaço de carne recém cortado, tendo ao lado

Jiló e seu filho, John Erbert (que participa ativamente da seqüência de fotos), com Paulo

ao fundo. Antes disso, a carne foi trazida em grandes pedaços, e pendurada em ganchos

dentro do açougue. Os três campeiros estão responsáveis por cortar a carne, dividindo

os pedaços de acordo com a solicitação dos moradores. Eles comentam, brincando,

sobre a dificuldade de satisfazer a todos os pedidos. John Erbert está curioso com a

câmera, e quer a parecer em todas as fotos. Ele pede também para fotografar-me.

O açougue, para onde a carne cortada foi levada, fica ao lado do “disco de cimento”

três carneiros acabaram de ser abatidos. O disco onde os animais são abatidos é uma

estrutura circular com cerca de três metros de diâmetro que culmina numa canaleta feita

para o escoamento do sangue. Vários carcarás se aglomeram pelas redondezas à espera

de sobras. Queimadinho, o peão mais jovem da turma foi incumbido de a levar os restos

– incluindo as cabeças dos três carneiros – ao local onde são depositados.

Na foto tirada 20 minutos antes, Jiló faz pose para a fotografia junto ao animal ainda

sendo carneado, enquanto termina de tirar o couro. Seu Ormir observa, ao fundo,

enquanto esguicha água para limpar o disco. Antes disso, enquanto dirigimos de volta

para o retiro, Concha comenta que já matou carneiros, mas que não gosta de ver porque

eles ficam pendurados pelas patas de trás, e é necessário deixar escorrer todo o sangue

52

para a carne ficar branca. Assim, a próxima foto foi tirada uma hora antes, quando os

carneiros estavam amarrados ao poste em formato de forquilha no centro do disco,

enquanto eram feitos os preparativos para a carneação. [ANEXO 2]

Enquanto levava o primeiro carneiro para amarrar ao poste, Seu Ormir observa o

animal, lamentando abater carneiros “de raça” como aqueles. Concha concordando,

complementou que cada um deles devia valer até 500 reais, o salário de um campeiro.

Os carneiros foram trazidos do capril, na sede, na caçamba do caminhão. Acompanhei

então o pessoal de manhã quando saia para buscar esses carneiros. Fomos até a o capril

localizado na Sede, atrás do escritório de da pista de pouso, onde encontramos Irineu,

que além de tratorista era também o encarregado pela criação de carneiros.

Os animais foram selecionados por Paulo, laçados, e trazidos a bordo com a ajuda de

Concha o motorista, e Aluísio, o peão salgador de coxo. A fazenda estava se

desfazendo, na época, da criação de carneiros – que tinha cerca de cem cabeças – e tinha

oferecido alguns animais para serem sacrificados para o consumo interno dos

funcionários, na cantina.

Na mesma semana, outro carneiro foi sacrificado na sede e servido em um

churrasco, seguido da pelada entre os times da sede e do galpão. O abate de carneiros,

no entanto, é uma exceção nos hábitos alimentares na fazenda. A ‘regra’ é que a cantina

sirva carne bovina nas três refeições diárias, incluindo o café da manhã, quando

tradicionalmente se come o arroz carreteiro. No almoço e no jantar a carne é servida

ensopada ou assada, normalmente acompanhada de arroz, feijão e mandioca.

A partir de seu trabalho na região da Nhecolândia, Banducci (2007) afirma sobre os

hábitos alimentares:

Vale ressaltar que quando fala em carne, o pantaneiro refere-se à carne de

gado, do contrário acrescenta um denominativo: carne de caça, de frango,

etc., que não têm (...) o mesmo valor da primeira. (...)

O autor reporta ainda que:

A carne é (...) o principal alimento para os campeiros; sem ela, sentem-se

como se não tivessem comido. Um dos informantes disse que suporta uma

ou duas refeições sem carne; mais que isso, passa fome. (...) Existem casos

de peões que deixaram de trabalhar nas propriedades em que estavam

53

empregados porque achavam que não havia fartura na distribuição de

carne. (2007 [1995]: 36-37)

Peixes como o pintado e o pacu são também bastante apreciados na região, e a São

Bento é cortada pelo rio Miranda, onde muitos moradores vão pescar no final de

semana. Nas refeições servidas na cantina, contudo, não foi servida carne de peixe

enquanto estive na fazenda, a não ser uma única vez durante o período da quaresma,

sem contudo substituir a carne vermelha. Pude perceber que o tabu da carne vermelha

nessa época é respeitado tradicionalmente pelos moradores, principalmente na Sexta-

Feira Santa, e um assunto pelo qual me interessei na ocasião era essa interdição

alimentar. De acordo com um dos peões, que tinha morado em uma região que, segundo

ele, tinha “pouco peixe”, o pessoal lá comia jacaré e até capivara nessa época, animais

“de água”. Por pura coincidência, deixei a São Bento um dia antes do dia santo, numa

quinta, então não pude constatar neste dia a cantina servia apenas carne branca. Depois

disso, o assunto desaparece das minhas anotações quase completamente. Mas retomarei

o tema da quaresma adiante a respeito da caça.

Filmar uma carneação, apesar das minhas resistências ‘urbanas’, significava assistir

a um evento que nunca tinha presenciado antes, apesar de sempre ter comido carne. A

idéia surgiu na São Bento, mas acabei realizando a filmagem em outra propriedade

visitada durante o trabalho de campo7, que designarei aqui como Fazenda B. O local

onde os animais eram abatidos e carneados na Fazenda B. ficava a uns cinqüenta metros

da casa onde os peões guardam seu equipamento de montaria, no piquete principal da

área da pecuária. Ao lado do disco de cimento onde são feitos os abates, havia uma

pequena casa, na qual o couro é salgado. Fixada no centro do disco fica uma estrutura

de madeira em forma de “T”, vertical, com cerca de quatro metros de altura. Em cada

uma das pontas do “T” ficava uma roldana com correntes, e na circunferência do disco

passavam valetas de escoamento que desembocam em uma de suas extremidades.

Olhando retroativamente para o material, percebo o registro em vídeo como um

desenvolvimento de um tema discutido no primeiro capítulo. A intuição que motivou o

registro em vídeo foi a de que o bezerro era o alimento comum, o elemento familiar

entre o vaqueiro e a onça. A seguir, procurarei descrever as cenas do ângulo de quem

assiste, sem me colocar ‘na minha própria pele’ enquanto filmava:

7 Optei neste caso por não especificar a fazenda onde o evento foi registrado, nem os nomes das

pessoas envolvidas.

54

O vídeo começa com um plano aberto do campo. Em primeiro plano está a

pastagem verde do piquete, e é possível ver-se uma cadeia de montanhas no

horizonte e o céu azul, sem nuvens. O mangueiro e o curral de gado aparecem a

média distância; uma vaca preta corre. É a primeira matula. A distância já é

possível se observar o laço que está preso em seu pescoço, puxado um peão

campeiro que está fora do quadro. Um segundo peão, que passa a cavalo por trás

da vaca, de camisa amarela, canta agudo e desafinado, brincando com os

companheiros:

– Hei, hei hei, hei! Adeus, adeus, prenda querida...

Ouvem-se risos e vozes ao redor. A vaca tenta se desvencilhar, puxando o

laço para trás, num movimento inesperado. O peão que está atrás dela toca o

cavalo, a meio passo, enquanto começa a girar o seu próprio laço. Respondendo

ao movimento, o animal corre, mas faz a volta novamente e se aproxima mais da

câmera. Os risos ficam mais tensos.

– Ô... Ih, vem lá! – diz alguém.

O laço está bem apertado e a vaca respira ofegante enquanto pára por um

momento jogando a cabeça para trás. O peão avança e gira novamente o laço. A

vaca muge rouco, sufocada; ela sacode a cabeça e, súbito, investe.

– Olha a vaca... olha! Iihhh – grita o campeiro.

Ela corre na direção do cinegrafista, que foge. [Como não é possível

identificá-lo na imagem de vídeo, é preciso a informação complementar de que

quem filmava era o autor]. A câmera balança e aponta para o chão,

desgovernada. No fundo vê-se uma pessoa em pé, enquanto ouvem-se gritos e

risos:

– Êita! Uouuu!

A câmera balança sem parar, e é possível ver novamente a sombra do

cinegrafista correndo, de boné. Alguém brinca:

– Biólogo corre, rapaz!

O peão que vinha atrás da vaca responde:

– Viu o biólogo correr! Achei que biólogo não corria, não!

– Ah lá guri, ah! Êh! – diz um terceiro

(Muitos peões deste grupo já haviam sido entrevistados individualmente,

antes da filmagem. Nessas entrevistas eu explicava o que estava fazendo na

55

fazenda, que era antropólogo, etc, mas isso não impediu que eu fosse classificado

aqui como “biólogo” a partir da minha aproximação com o estudo sobre onças).

Quando a câmera fica fixa novamente, a vaca está a uma distância segura, e

puxa o laço, que agora aperta seu pescoço. O campeiro que a segura aparece

agora em primeiro plano. Entre ele e a vaca está o poste central do disco de

abate, e mais dois peões montados são vistos ao fundo.

O primeiro campeiro espera que a vaca se mova e vai para a esquerda, saindo

novamente do quadro, de modo que o laço, que o liga a vaca, fica esticado em

“V”, passando em torno do poste central. O cavalo então puxa na direção oposta,

usando o poste como apoio, para que animal chegue cada vez mais perto do local

do abate. Os outros peões ajudam a puxar a rês, que ao tentar se afastar salta e

oferece resistência, ficando cada vez mais asfixiada. Ao fundo os peões se

movimentam para direcioná-la, e ela vai chegando cada vez mais perto até

encostar a cabeça no poste.

Assim que isso acontece, os dois peões praieiros responsáveis pelo abate

andam em direção ao disco. Ambos são bastante jovens e usam galochas.

Enquanto diminui a marcha, ele puxa a faca fina e comprida de sua bainha de

couro, que fica presa no cinto às suas costas, como é costume local. Seus

movimentos agora são mais lentos. O outro peão pega uma mangueira no chão e

começa a molhar o disco. Enquanto isso o primeiro se posiciona ao lado da vaca

enquanto apóia no poste, parando por um momento. Alguém fala:

– Agora, agora.

Ele faz um movimento à frente e se afasta, rapidamente, e dá alguns passos

para. Depois volta novamente e espera o animal parar de para puxar a faca, que

ficara presa. A vaca esperneia algumas vezes, mas por fim fica parada puxando a

corda para trás. O sangue jorra do pescoço do animal, enquanto o segundo peão

usa a mangueira para direcionar o líquido vermelho para a extremidade do disco.

Os campeiros, que estão observando, discutem se o golpe foi certeiro ou não, em

tom zombeteiro:

– O que a gente vai fazer aí? Você quer dar outra punhalada nela? – diz um

dos peões provocando o responsável pela carneação.

O tempo passa; dizem:

– Vai caí, vai caí...

– Já foi. Virou os olhos, tombou.

56

Depois de três minutos de pé, a vaca finalmente dobra os joelhos e cai

pesadamente no chão.

– Demorou demais a morrer. Não acertou o “morredor” dela, cortou o gogó

dela – diz o campeiro novamente brincando com o carneador.

– Já foi, bigode! – responde um deles.

O campeiro volta ao curral para trazer uma segunda matula.

A segunda vaca, menor, é branca. Repete-se o mesmo ritual. Um peão vem a

galope, por um lado do disco, correndo paralelamente à vaca, do outro, de modo

que o laço passa pelo poste. Assim, o cavaleiro faz com que o cavalo puxe a vaca

indiretamente utilizando esse ponto de apoio fixo no qual a força é concentrada.

Rapidamente a cabeça fica encostada no tronco. Desta vez o responsável por

sangrar o animal é o segundo peão praieiro. Ele se aproxima caminhando

resoluto. Alguém diz:

– Do lado de cá, lado de cá.

A matula esperneia, mas escorrega no cimento molhado. O peão contorna e

se aproxima pela frente do animal. Espera ela levantar.

– Não vai dá, a lá, tem que frouxa um pouquinho [o laço] pra ela levantá.

– Agora, agora! Engrunvinhou tudo.

O responsável pelo abate passa por cima do laço e se posiciona ao lado da

vaca, apoiado no poste. Segura a faca reta, paralela ao chão, na altura do

pescoço, e, finalmente, dá a estocada. A vaca muge e escoiceia, enquanto ele

recua três ou quatro passos para trás. Ele volta e repete o golpe.

Fora de cena, alguém comenta:

– Essas novilhinha são nervosas, né...

A vaca tomba para a frente e encosta a cabeça no chão. Em menos de um

minuto ela cai, o sangue jorrando vermelho sobre o couro branco. Os dois

praieiros ficam parados observando, enquanto um deles joga água com a

mangueira, limpando o sangue.

– Caiu já, caiu.

57

Os outros peões cantam e contam piadas. Enquanto isso o peão se aproxima e

dá uma nova estocada. A cabeça da vaca tomba e o praieiro retira o laço dos

chifres, mas ele fica preso por baixo do animal:

– Ah, não vai não hein...

– Vai ficar boa essa carne hein – provoca um dos que assistem ao abate.

Os campeiros se afastam. Um dos praieiros dirige um trator até o local, com

caçambas grandes de plástico na pá aonde será colocada a carne. Depois de abatidas as

duas vacas, os campeiros se retiram, e só ficam trabalhando os dois praieiros

responsáveis pela carneação. As patas traseiras das vacas são presas num objeto de

metal de mais ou menos um metro, com ganchos em ambas as pontas, que fica

pendurado nas correntes da estrutura em T. A vaca é então içada através de um sistema

de roldanas, e a carneação começa pela retirada do couro.

Chega um senhor, vaqueiro da fazenda, numa pequena carroça e começa a ajudar os

dois jovens praieiros. Os três trabalham, parando de tempos em tempos para afiarem as

facas. Enquanto o couro vai sendo retirado, inteiro, a não se pela cabeça e os cascos,

eles vão içando a vaca mais para cima, até que fica quase toda suspensa no ar. Minha

impressão ao assistir é de que, quando o couro vai sendo retirado, aquela vaca vai

deixando de existir, até que em determinado momento o que pende do gancho é um

grande pedaço de carne fresca, num açougue ao ar livre.

O jovem responsável pelo abate vai mostrando os pedaços que tira com a faca – o

filé, a picanha, o cupim – e os leva até um recipiente grande de plástico que está na pá

de um trator. O vaqueiro recém chegado diz, numa piada que não entendo,

possivelmente em referência à carneação na semana anterior:

– Hoje eu vou abençoar ela de novo?

– Diz que ajuda, né... – responde o praieiro, rindo.

O couro é levado para uma casa ao lado onde é salgado e deixado para ser curtido. A

cabeça e os restos que não são aproveitados são jogados em tonéis de plástico. Um dos

homens usa um machado para quebrar os ossos e abrir a vaca, pela frente, e retira os

órgãos internos, que passa a cortar com cuidado. O vaqueiro mais velho seleciona

algumas partes:

– Levar essas tripa aqui...

58

Os dois praieiros recolhem as patas e cabeças de vaca que joga em um tonel de

plástico. O vaqueiro coloca os pedaços que selecionou na carroça.

– Já está acabando as férias?

– Dia primeiro está. Tchau pra vocês.

Ele se afasta, tocando a mula.

– Então semana que vêm não vai dá mais pra você ajudar seus

companheiro – diz o praieiro.

Os pedaços de carne estão cortados e foram colocados nas caçambas plásticas, na pá

do trator. Eles terminam de limpar o disco de cimento, guardam os ganchos e recolhem

a corrente, e finalmente se afastam.

– Está filmando com áudio?

– Estou.

O processo todo, com as duas vacas, leva cerca de uma hora. No final, restam só as

cabeças (só é aproveitada a língua) e alguns pedaços da coluna e das tripas dos animais,

que são colocados em um tambor de plástico para serem levados até o buraco onde

serão despejados. O couro é imediatamente levado para uma casinha de madeira e

salgado. O trator é ligado e se afasta. Urubus e carcarás, que estão reunidos nas árvores

ao redor, pousam no exato momento em que o trator se afasta, disputando as migalhas

deixadas para trás.

O trator leva então a carne para a sede e os pedaços ficam pendurados no açougue da

sede. Os dois peões que abateram as vacas são também os responsáveis pelo corte e pelo

atendimento aos moradores que vão comprá-la; eles vão chegando, se reúnem em frente

à portinha de metal, conversam com os açougueiros, e saem com seus pacotes. No final

da tarde a carne tinha sido toda vendida.

No final da carneação, os peões estavam voltando do campo, e me juntei a eles no

galpão para uma rodada de tereré. Logo em seguida chegaram o capataz da fazenda e

outro peão, identificado como responsável por salgar os coxos. Falando sobre as vacas

recém abatidas, o capataz pergunta se o vaqueiro que participara da carneação havia

deixado um pouco do bucho para ele. Um peão provoca, dizendo que a carroça do velho

estava lotada, e que ele tinha falado para o capataz pegar buchada de carneiro. O

primeiro respondeu que estava falando de carne. Eles comentam sobre o hábito

nordestino de comer buchada de bode, com evidente desgosto.

59

Minhas reflexões no campo foram sobre o modo como o abate marcava uma

diferença significativa entre a vida na fazenda e a minha experiência na cidade. Por

outro lado, a carne de vacas como aquelas, criadas na fazenda, chegam aos

supermercados do Rio de Janeiro, onde moro.

O abate faz parte do cotidiano da fazenda e o clima entre o pessoal que estava

trabalhando durante o evento filmado era de descontração: os peões falavam alto e

brincavam a respeito do tamanho da vaca e das peças de carne que iam querer. Banducci

(2007) caracteriza a designação damatula e o tratamento jocoso e até agressivo

dispensado a ela nas fazendas do pantanal como processo de afastamento em relação ao

animal selecionado para ser abatido, ao qual é dispensado um tratamento diferente

daquele usado com outros tipos de gado. Os “mecanismos de defesa” do abatedor, no

entanto, foram temas que desenvolvi pouco durante a pesquisa de campo. Apesar de ter

entrevistado a grande maioria dos funcionários (moradores adultos) da fazenda, eu

sequer entrevistei o responsável pela carneação, mesmo depois de ter assistido à cena do

abate.

Um texto clássico de E. Leach (1964) sobre categorias animais divide a parte

comestível do ambiente, para uma dada cultura, em três grupos: Primeiro, existem

osanimais que compõem a dieta normal de um grupo cultural (como o boi, no caso

pantaneiro); em segundo, há substâncias que são consideradas comestíveis somente em

ocasiões especiais ou rituais. O terceiro grupo é composto de animais comestíveis

interditados culturalmente, que não são consideradas alimento (o cão nas culturas

ocidentais, por exemplo, ou o gado na índia).

Em Cultura e Razão Prática (1976), Marshall Sahlins, citando Leach, apontam

algumas categorias animais que se baseiam na participação do animal como sujeito ou

como objeto na sociedade norte-americana contemporânea. O autor descreve como o

modelo americano default de refeição está firmemente fundado numa centralidade da

carne bovina, sendo elamuitas vezes um símbolo de saúde e de prestígio social. A

sociedade ocidental urbanatambém opera uma desvinculação simbólica radical entre o

produto alimentar e sua origem animal. Nas fazendas industriais, os animais são

mantidos longe da visão dos consumidores; não só os abatedouros ficam distantes das

cidades e os animais são sacrificados anonimamente, como ao consumidor urbano em

geral seria intolerável a visão do animal morto. O ocultamento da natureza orgânica da

carne, de acordo com Sahlins, se dá também através de dispositivos verbais, o que é

60

evidenciado pela distinção, na língua inglesa, entre carne como alimento (meat) e como

parte do corpo (flesh).

No ambiente rural, por outro lado, existe um engajamento do vaqueiro do com o

animal que vai ser comido enquanto ele está vivo, e a passagem entre os dois tipos de

carnese é uma experiência vivida cotidianamente. O ato do sacrifício animal também

está na base dos hábitos alimentares e do modo de vida urbano, mas a violência nele

contida é desvinculada simbolicamente do alimento consumido pelos habitantes das

cidades.No ensaio Porque olhar os animais8, John Berger afirma:

“Um camponês gosta do seu porco e fica contente ao salgar sua carne. O

que é significativo, e é tão difícil para o estranho urbano entender, é que as

duas afirmações são ligadas por um e, e não por um mas”.9 (2009: 16)

Da mesma forma, ospantaneiros admiram o animal nas vaquejadas, valorizavam o

desafio, a rapidez e a agilidade do novilho, e mais tarde se deleitam ao salgar sua

picanha. A aproximação entre a cena do abate e a familiaridade do vaqueiro quando

descreve o ataque da onça, no capítulo 1,remete a um conhecimento compartilhado da

morte animal, das entranhas do gado. Por outro lado, o que é significativo nas relações

entre os vaqueiros e o rebanho, o que marca a sua diferença em relação ao observador

urbano, é a experiência cotidiana dos animais vivos, a lida, o reconhecimento de suas

características singulares e traços marcantes.

2.4. Gado Branco

O bezerro predado pela onça na fazenda São Bento, capturado pela armadilha

fotográfica, era um representante do gado ‘branco’, o zebuíno da raça nelore, que

predomina na região sul do Pantanal. O tipo e a raça do gado trazem consigo um

emaranhado de elementos relacionados ao atual e ao tradicional no material

etnográfico. Para abordar o papel do ‘gado branco’ e do ‘gado pantaneiro’ em um

sentido etno-histórico, me reporto a seguir a alguns eventos e entrevistas feitas na

8Why Look at Animals? (1977) 9 Tradução minha: A peasant becomes fond of his pig and is glad to salt away its pork. What is

significant, and is so difficult to the urban stranger to understand, is that the two statements in that

sentence are connected by an andand not by a but.

61

fazenda no mesmo período em que o bezerro foi encontrado, relacionados a esses

diferentes ‘gados’.

No dia primeiro de novembro de 2008, fiz uma entrevista com o funcionário da São

Bento que dirigia o caminhão, chamado Concha. Assim como Seu Ormir, ele tinha veio

da Bodoquena, onde trabalhou desde os 14 anos de idade, a maior parte do tempo no

retiro Mutum. Eu havia tomado “Concha” como um “apelido” de fazenda, como os dos

campeiros “Jiló”, “Queimadinho” e “Bugrinho”, por exemplo, e pergunto a ele se é

mesmo. Ele diz: “Concha é o apelido: Odinei Santos Concha”. Então é sobrenome

mesmo? – pergunto. Ele responde:“Concha é sobrenome”.

Ele me convidou então para acompanhá-lo quando ia levar sal e vitaminas para os

touros da fazenda, porque queria me mostrar como eles eram mansos. Percorremos de

caminhão a estrada até a sede, onde ele e Aluísio, que trabalhava como salgador de coxo

recolheram os pacotes de ração para o gado em um galpão isolado. O lugar era o mesmo

onde, meses antes, estavam os cachorros trazidos de Poconé para trabalharem na captura

das onças.

Seguimos então até o local onde alguns touros já estavam reunidos, e muitos outros

se aproximaram enquanto estacionamos. Chegando à invernada onde estavam os

animais, no entanto, Concha chamou atenção para o comportamento dos animais e fez

algumas recomendações, que incluíam não fazer movimentos bruscos e não encará-los.

Ele e Aluísio saltaram começaram a tirar os sacos de ração do caminhão e a despejar seu

conteúdo em nos coxos, recipientes feitos com caçambas de plástico afixadas em postes

de madeira. Seguem as minhas anotações no dia:

Nos touros, é possível ver diversas marcas a ferro, símbolos e números, que vão

sendo traduzidos para mim: a marca da São Bento, outra da Bodoquena, o ano de

nascimento, entre outras; alguns animais são identificados como “rastreados”

também a partir das inscrições [um termo ao qual voltarei adiante]. São todos

zebuínos, da raça nelore, o “gado branco” dominante em toda a região. Animais

muito grandes. Concha faz uma demonstração de como é possível andar entre

sem perigo entre eles. Na volta para o retiro, ele usa os touros como exemplo de

como gado da fazenda é manso e relaciona isso a um contraste entre o atual e o

tradicional:

Agora está tudo diferente; antigamente o fazendeiro dizia: na minha

fazenda tem cavalo xucro, só peão bom mesmo pra montar! Hoje em dia o

62

fazendeiro diz que até criança monta na tropa dele, que o gado é manso.

Hoje em dia, o cara que fala que tem gado baguá na fazenda, que tem

cavalo xucro, ficou pra trás.

Conversamos também sobre a onça e o projeto de conservação na fazenda:

O fazendeiro antigo também gostava de dizer que matava, que punha gente

para ir atrás dela. Falava: na minha fazenda a onça pega mesmo, pega

vinte, trinta rês... Hoje em dia ele quer mais é que tenha onça na terra dele.

Mas, depois de pensar um pouco, observou:

Quer dizer, não é todo mundo, é pouca gente que aceita. Aqui do lado, na

fazenda vizinha, com projeto e tudo, o cara já falou que se comer a vaca

dele ele mata, não quer saber se a onça tem colar, se não tem.

Anotei a conversa com Concha nas paradas do caminhão, já que a tarefa era

impossível com o caminhão passando pelos solavancos da estrada de terra. Nessa

mesma tarde, quando estávamos de volta ao retiro, e pedi para gravar novamente

enquanto conversávamos na cantina, e perguntei o que os fazendeiros mais antigos

achavam dessa idéia de preservar a onça. Na gravação, ele diz:

Eu falo assim: hoje muitos acham como um predador pra estragar, pra dar

prejuízo. Muitos ainda são assim, têm esse pensamento: ‘Matou meu gado,

eu mato ela’. Um fazendeiro que é forte, que tem dinheiro, ele não vai sentir

no lucro dele, mas só que também não vai afetar muito. Mas o cara que é

pequeno... Se ele tem lá trezentas vacas. Vamos falar que num mês ela

pegou quinze vacas. O que é que ele vai fazer? Ele vai lá e vai matar.

Em seguida faz uma ressalva a respeito da responsabilidade do fazendeiro, na qual

menciona o “gado branco”, que é o tema desta seção:

Isso, no modo geral, o fazendeiro tem a tendência. O que ele quer fazer?

Ele quer limpar a invernada, limpar o campo e formar pasto pra colocar o

gado. Isso aí qualquer fazendeiro; até eu mesmo se tivesse fazenda ia fazer

isso. Só que daí não vem a conscientização do fazendeiro, dele pensar:

‘não, eu limpei lá, eu tirei a capivara, tirei o queixada, tirei o cateto, tirei o

cervo’ – no caso do Pantanal – ‘e vou colocar o gado branco’. O que ela

vai comer? Obviamente que ela vai comer o gado branco.

63

Em seguida, desenvolve o argumento situando a questão do ponto de vista da onça.

De certa forma, aqui o predador aparece como um “castigo” pela atitude do fazendeiro,

que “culpa” a onça por uma falta que ele mesmo cometeu:

Então o que acontece? O que tinha de comida pra ela comer ficou escasso,

já não tem mais. E ela patrulha a área dela. O que acontece? Ela vai lá e

acha uma vaca parida lá, um garrote, uma novilha, o que ela vai comer? O

que ela comia foi embora. Ela vai passar a comer o gado branco, que o

cara colocou lá. No pensamento da gente, o que eu penso assim é que pra

ela não mudou nada. Continua tendo comida. Então ela não vai sair dali.

(E. 01/11/2008)

As declarações de Concha são semelhantes as do Dr. Roberto Coelho, proprietário

da fazenda San Francisco, no evento (op.cit) organizado na Fazenda, em maio de 2008,

que debatia a relação entre a pecuária e a conservação da onça. Na ocasião, o fazendeiro

falou a respeito de sua experiência com o projeto de pesquisa desenvolvido na

propriedade:

Isso é outra coisa que a gente pode fazer: a gente tem que ter muita

capivara, muito jacaré, muito queixada, não deixar o parente caçar no fim

de semana, porque você está tirando a comida dela. E colocando o seu

bezerrinho lá, entendeu? É isso que você está fazendo. (WSF, 5/2008)

O “gado branco” substitui as espécies nativas, é “o gado que o cara colocou lá”.

Mas porque ele fala especificamente deste, e não de qualquer gado? Na época não

perguntei isso, porque estava mais interessado no que dizia respeito à onça. O gado

branco, no entanto, desempenha um papel importante na história da pecuária regional,

como eu perceberia mais tarde a partir do material de campo, e justamente no que diz

respeito ao contraste entre o fazendeiro atual e o antigo, tema da conversa com Concha.

De acordo com autores que trabalham com a historiografia do gado Pantaneiro de

uma perspectiva da etnoconservação, como Campos Filho (2002) e Mazza et al (2006),

o zebuíno de origem indiana – principalmente da raça nelore – substituiu historicamente

o bovino pantaneiro, ou tucura, uma etno-espécie ou raça de gado considerada por

ambos como ameaçada de extinção.

O trabalho de Mazza et al (1994), Etnobiologia e Conservação do Bovino

Pantaneiro, faz parte de um projeto da Embrapa-Pantanal, que envolve a criação e a

64

pesquisa do gado pantaneiro. Os autores chamam atenção para a importância de

medidas de conservação frente à ameaça representada pela introdução do zebuíno:

“Durante pelo menos três séculos, o bovino Pantaneiro foi a base da

economia da região do Pantanal, numa atividade que permitiu a

convivência harmoniosa do homem com a natureza. Entretanto, nas

primeiras décadas deste século, esse tipo local foi substituído

gradativamente por raças zebuínas, instalando-se um acentuado processo

de diluição genética, culminando atualmente, em sua quase extinção, o que

tem exigido a adoção de medidas urgentes para a sua conservação”. (: 33)

Sobre a constituição de um tipo local, afirmam:

“Através do processo de adaptação evolutiva e da ação da seleção natural

sobre os bovinos de origem ibérica, que se reproduziram por várias

gerações nas condições ecológicas do Pantanal, surgiu um tipo local”.

(Idem)

Em seguida citam as denominações usadas para defini-lo:

“Este (...) constituiu uma raça característica da baixada paraguaia,

regionalmente denominada de Pantaneiro, Cuiabano ou, mais

recentemente, Tucura”. (33-34)

Os pesquisadores reconstituem a história dessa raça pantaneira, que remete

aos índios Guaicuru, também conhecidos cavaleiros:

“Vale lembrar que as introduções de bovinos nas planícies do rio Paraguai

se intensificaram a partir da segunda metade do século XVI, devido ao

ataque dos indígenas às expedições que faziam a rota Peru-Assunção,

prosseguindo até por volta do final dos anos setecentos (...). Os índios

conduziam todos os animais capturados para dentro da baixada paraguaia,

que permaneceu livre do elemento branco até próximo do início do século

XIX”. (: 34-35)

E concluem que:

“[Q]uando os primeiros fazendeiros chegaram no Pantanal com o objetivo

de promover a pecuária, já encontraram bovinos em grandes rebanhos

ariscos (...) multiplicando-se sob as leis da seleção natural”. (: 35)

65

A alusão à “seleção natural” situa o gado em uma relação adaptativa com o

ambiente. A partir de fontes históricas, Campos Filho (op. Cit) reporta para a região do

Pantanal “bovinos e eqüinos introduzidos a partir das missões jesuíticas e

posteriormente (...) criados pelos Guaicuru” (2002: 45). A definição pelo autor o tipo

local diz respeito à exclusão histórica do gado pantaneiro:

“O bovino que tem maior participação na história e na cultura pantaneira é

o tucura. No Pantanal, é assim chamado o bovino introduzido pelos

colonizadores antes do zebu indiano, assim como seus mestiços”. (idem:

54)

A introdução do zebuíno é apontada como índice de um processo de

homogeneização do rebanho associado à desvalorização e à crise da pecuária extensiva

regional:

“A mudança genética do gado bovino pantaneiro iniciou-se com o comércio

de bois magros para São Paulo. (...). Iniciou-se, aqui, uma contradição não

resolvida até hoje, onde os animais mais adaptados às condições de criação

pantaneiras eram desvalorizados pelo mercado frigorífico. Isso criou um

risco de extinção do grupo animal ‘tucura’ e os tipos animais introduzidos

causaram problemas de sustentabilidade econômica, ecológica e cultural

para o povo regional. Esse processo de substituição genética só foi

efetivado com a importação do zebu”. (Ibidem: 154)

A mudança no gado é desencadeada pela pressão imposta pelo mercado, pela lógica

do mercado, pautada apenas em parâmetros de produtividade. A partir de seu trabalho

de pesquisa, Campos Filho procura situar a cultura pantaneira numa ótica

conservacionista, dentro da qual a preservação do gado é fundamental.

A preservação tucura e o contraste entre o gado pantaneiro e o gado branco

também aparecem no debate realizado na San Francisco (op. Cit, 05/2008). Transcrevo

a seguir um trecho gravado na ocasião, em que os participantes do encontro falam sobre

o tema (inclui a instituição que cada um deles representava no encontro), durante a

apresentação do biólogo Ricardo Boulhosa. O pesquisador trabalha com a com a

preservação da onça pantaneira e o tema do conflito causado pela predação do gado, e

associa à conservação dos felinos à dos bovinos pantaneiros:

66

Boulhosa: E daí cria-se um fenômeno interessante, que é o preconceito com

o gado Tucura. Você fala em Tucura, e o pessoal: “Ah, isso aí é uma

porcaria, não serve para nada”. E se você for ver, ele tem umas

características muito melhores para a produção, dependendo do tipo de

Pantanal. Ele seria o gado ideal para ser desenvolvido, ao invés do gado

branco...

[Participante]: Principalmente em relação à qualidade da carne...

Dr. Roberto: Um aspecto muito importante para a pecuária pantaneira hoje

é o seguinte: a predominância do gado zebuíno em todo Pantanal e esse

sentimento de rejeição em relação ao taurino. (...) Existe uma resistência

muito grande por parte dos pecuaristas em função de ter ficado uma parte

desse rebanho taurino abandonado, e do aumento do zebuíno. Então, há

uma incompreensão do pecuarista em relação a isso, em função de um

conhecimento empírico, histórico, que está atrapalhando que ele faça uma

avaliação positiva desse gado...

Walfrido [pesquisador, Embrapa Pantanal]: Só mais uma curiosidade,

inclusive em relação à predação. Lá na Embrapa tem um número de gado

pantaneiro, e a onça-parda mata o bezerro do Nelore, mas não consegue

matar o do Tucura. O que a gente vai usar é colocar um touro Tucura,

rufião, junto com as vacas nelore, para tentar diminuir, mas é um número

bem diferente...

Boulhosa: Minha experiência anterior no Pantanal, que foram 10 anos de

Pantanal do Jofre, onde ainda existe o tucura em forma bagual, é que você

percebe que o comportamento deles é totalmente diferenciado, eles fazem

proteção, eles vocalizam muito mais do que o outro gado... Outra questão

interessante que a Sandra colocou é essa questão da palatabilidade da

carne: a carne dele é mil vezes melhor. A gente tinha o costume de comer

esses animais quando ia fazer a bagualhação. Então, a matula era feita com

esses animais, e em questão de sabor, comparado com o zebuíno, não tem

comparação. Então, seria um filão, e isso é uma coisa que a gente quer

discutir hoje, essa questão. Um filão que pode ser explorado pelo

pantaneiro: resgatar isso, para conseguir um produto diferenciado dentro

do mercado brasileiro e dentro do mercado internacional.

67

Os processos ecológicos e adaptativos do gado incluem, neste caso, sua co-evolução

entre com a onça, numa associação predador-presa. O gado branco, nelore, é referido

como uma presa mais fácil, que não possui os mesmos mecanismos de defesa do tucura.

2.5. Gado Bagual

O gado bagual ou baguá não está virtualmente extinto nas regiões dos Pantanais do

Miranda ou do Abobral, onde fiz o trabalho de campo. Esse tipo de gado foi

mencionado nas primeiras entrevistas que fiz com vaqueiros da região, em 2006, e a

categoria foi incorporada no questionário que levei comigo para o restante da pesquisa

de campo, em 2008. Nas entrevistas gravadas a partir de então, o bagual foi definido

como gado solto, sem dono, que vive no mato ou não marcado, entre outros termos,

sendo quase sempre referido no passado e classificado como ausente das fazendas

pesquisadas.

Nas minhas anotações de campo referentes à minha estadia na FazendaSão Bento, a

única menção à presença recente de um animal bagual na propriedade provém de um

trecho do diário de março de 2008, já transcrito na primeira seção deste capítulo, que

descreve uma série de fotografias tiradas por Irineu, filho de Seu Máximo. Numa delas,

de acordo com as minhas anotações (Op. Cit) vê-se ‘um bezerro grande e magro na

caçamba de um trator’. O fotógrafo relatou que aquele era um animal que ‘ficou perdido

no fundo de uma invernada e virou bagual’,e acrescentou ainda que a fotografia tinha

sido tirada quando os peões o laçaram e trouxeram amansar (Op. Cit. 16/3/2008).

Uma segunda referência ao bagual na mesma fazenda, desta vez em resposta a uma

pergunta minha, aparece no material compilado no segundo período de campo na São

Bento, em outubro e novembro de 2008. Por coincidência, a citação também surge a

partir de uma seqüência de fotografias:

O capataz trouxe algumas fotos para me mostrar. Numa delas, posava com uma

das onças capturadas para o projeto. Pequena – disse – mas saiu bem na foto.

Mais uma foto da onça; em seguida, ele aparece carneando uma vaca; na última

imagem, monta um búfalo. Seu Ormir é comedido nos gestos e fala muito

baixo. Seu assunto predileto é a pecuária, e ele conta que trabalhou na

Bodoquena, com todo o tipo de gado. Pergunto sobre o gado bagual. Ele

menciona o episódio [sobre o qual já havíamos conversado antes] em que um

68

pedaço da fazenda foi vendido para o Doutor Laucídio Coelho, um grande

fazendeiro da região. Sobrou então uma boiada abandonada na área, na qual o

novo dono não tinha interesse, e Seu Ormir conta que ele e os outros campeiros

da Bodoquena saíam para bagualhar. De acordo com o relato do capataz, “é

um gado difícil de amansar; quando ouve o pio de um passarinho ele já

dispara”. Ele conta que “pegava o boi e deixava amarado no pau até trazer o

sinuelo.” (22/10/2008).

Alguns dias antes, havíamos conversado sobre a compra da Bodoquena pelo Doutor

Laucídio Coelho, em 1972. A Fazenda Bodoquena foi formada a partir da compra da

antiga Fazenda Francesa, ou Franco Territorial S.A, por um grupo de banqueiros

brasileiros e norte-americanos. O episódio citado acima, da venda de uma parte da

propriedade, ocorreu quando Seu Ormir era recém chegado no local. Essa negociação

era particularmente interessante para mim porque daria origem à outra fazenda onde

estava desenvolvendo a minha pesquisa de campo, na região de Miranda. De acordo o

capataz, toda a área entre o Rio Miranda e a Serra da Bodoquena fazia parte da

propriedade que foi comprada junto aos franceses, incluindo áreas de pantanal e áreas

de morraria. Ele também lembrou que por dentro da propriedade corria a linha férrea

ligando Corumbá à capital do Estado, Campo Grande. Durante muito tempo, o trem foi

a principal via de transporte e de escoamento da produção da pecuária regional.

A genealogia das propriedades – San Francisco surgindo de uma parte da

Bodoquena; esta, por sua vez, originada da Fazenda Francesa – tinha despertado meu

interesse a partir da leitura de Tristes Trópicos (1998[1955]), o célebre relato de viagem

de Claude Lévi-Strauss. No livro, o etnólogo narra sua passagem pela região, no ano de

1935, sendo que a Fazenda Francesa foi usada como base para a sua expedição ao

encontro dos índios Cadiueu. O antropólogo chegou à propriedade em viagem de trem

atravessando o sul do Pantanal, e lá foi recebido pelos seus dois conterrâneos que a

administravam. No trecho a seguir, ele descreve o lugar:

“A Fazenda Francesa, como a chamavam na linha férrea, ocupava uma

faixa de cerca de 50 mil hectares que o trem percorria por 120 quilômetros.

Nessa extensão de matagal e gramíneas duras vagava um rebanho de 7 mil

cabeças (...), periodicamente exportado para São Paulo, graças à estrada

de ferro que fazia duas ou três paradas dentro dos limites da propriedade”.

(1998: 154)

69

A seguir, faz algumas observações sobre as relações de trabalho na fazenda e o

negócio do gado:

“[D]ez anos depois de sua fundação, a Fazenda Francesa definhava em

virtude da insuficiência dos primeiros capitais, absorvidos pela compra das

terras (...). Num espaçoso bangalô à inglesa, nossos anfitriões levavam uma

vida austera, meio criadores e meio donos de armazém. Com efeito, o

entreposto da fazenda era o único centro de abastecimento a cem

quilômetros ao redor, ou praticamente. Os ‘empregados’, isto é,

trabalhadores ou peões, ali iam gastar com uma mão o que ganhavam com

a outra; um jogo de escriturações permitia transformar-lhes o crédito em

dívida e, desse ponto de vista todo o empreendimento funcionava mais ou

menos sem dinheiro”. (: 154-155)

Trazida para os dias de hoje, mais de setenta anos depois, a afirmação descreveria

ainda de forma notável a situação de muitas fazendas atuais, estagnadas

economicamente pela crise da pecuária tradicional. As fazendas onde fiz trabalho de

campo são exceções a esta regra, mas me parece que a idéia de que os peões gastam

com uma mão o que ganham com a outra define com absoluta clareza a situação da

grande maioria dos funcionários locais. As fazendas atuais, apesar das mudanças

históricas nas relações entre patrões e empregados, reproduzem de alguma forma esse

sistema de “escriturações” que elimina a circulação de dinheiro. É comum ainda que o

fornecimento dos alimentos (tanto da carne quanto dos itens básicos) seja controlado

pela administração e o valor descontado no final do mês no salário dos funcionários. Os

peões, por sua vez, ao receberem o pagamento, em cheque (em geral um salário

mínimo), vão para a cidade descontá-lo no banco, geralmente para gastarem o restante

naquele único final de semana por mês em que o dinheiro vale alguma coisa, que é

quando deixam a fazenda.

O trabalho historiográfico de Benevides e Leonzo (1999) sobre a Miranda Estância

– a Companhia inglesa que ficava na margem oposta do Rio Miranda – cita a Fazenda

Francesa, ou Franco Territorial Brasileira S.A como um dos grandes empreendimentos

estrangeiros de pecuária instalados na primeira metade do século XX no Sul do

Pantanal, e reporta que a propriedade tinha 414 mil hectares quando foi nacionalizada,

nos anos 1950. De acordo com os autores, ela estava entre as grandes companhias

estrangeiras instaladas na região, as quais foram sendo vendidas, na época, a partir do

70

desenvolvimento da política de nacionalização de Getúlio Vargas, inserida pelos no

movimento histórico conhecido como Marcha para o Oeste. (1999: 3-23). Além disso,

Benevides e Leonzo conectam o processo a uma transição de modelo econômico na

pecuária regional, com a passagem da indústria do charque para a dos frigoríficos

(Idem: 43-51).

O relato de Seu Ormir sobre a venda de uma parte das terras para um grande

fazendeiro regional pode ser ligado, a partir daí, a uma segunda etapa desse processo, na

medida em que a negociação que marcaria o início da divisão da propriedade em

fazendas menores. Minha intenção aqui é mapear essa mudança histórica com foco na

pecuária, mostrando como o depoimento dele associa o desmembramento da grande

fazenda original ao amansamento do gado bagual.

Algumas semanas depois da conversa com o capataz da São Bento, eu voltaria à

Fazenda San Francisco para um novo período de pesquisa, e procuraria mais

referências sobre as conexões históricas entre as fazendas. O salão de visitantes da

pousada, onde os turistas se reuniam depois dos passeios oferecidos pela fazenda, era

também um pequeno museu, com vitrines nas quais estavam expostas ossadas de

espécies de animais da região, identificadas e acompanhadas por fotografias e

descrições de cada uma delas. Sobre essas vitrines havia uma árvore genealógica da

família Coelho e uma série de documentos e imagens ligados às origens da fazenda.

Entre eles, encontrei um documento interessante referente à origem desta última

fazenda. A negociação de parte da Bodoquena desta vez era descrita da perspectiva do

comprador, a partir de um testemunho pessoal escrito por Antonio Barbosa de Souza,

antigo funcionário da Agropecuária LS.

O texto estava exposto no salão de visitantes na pousada da fazenda, junto com uma

série de outros materiais escritos, imagens e outros documentos que eu já havia

examinado antes, mas não havia dado muita importância a ele antes. Foi escrito para

uma solenidade em uma homenagem ao patriarca da família, Dr. Laucídio Coelho,

falecido em 1977 [N. Ano em que, de acordo foi apontado pelo Guinness Book como “o

maior fazendeiro do mundo”]. Barbosa de Souza descreve a negociação em detalhes.

Transcrevo o texto abaixo:

“Em junho de 1971 o Sr. Laucídio faz sua última compra de terra. Comprou

cem mil hectares da Fazenda Bodoquena, onde nós criamos (...) a

Agropecuária LS Ltda – Fazenda Doze Irmãos.”

71

Os vendedores citados são todos banqueiros e empresários bastante conhecidos:

“A Fazenda Bodoquena era controlada 51% por Valter Moreira Salles,

25% por David Rockefeller e 24% pelo Sr. Anderson, da Atlantic

Americana. Eram gente muito forte. A fazenda deles tinha em torno de

400.000 hectares. O Sr. Laucídio comprou 100.000 hectares que eles

ofereceram”.

A narrativa tem a forma de uma parábola, e expressa uma lição de moral. O autor

descreve a personalidade do Dr. Laucídio a partir da posição que ele assume, não se

curvando diante dos representantes do grande capital internacional:

“É interessante lembrar, eu prestei bem atenção nisso, quando os filhos

trouxeram o negócio para o Sr. Laucídio, estavam muito entusiasmados.

Não trouxeram negócio para a venda, mas uma proposta do Sr. Moreira

Salles para o senhor Laucídio ser sócio e administrador da fazenda.

Os filhos ficaram entusiasmados porque era um grupo muito forte e

participar desse grupo de poder internacional os fascinava. Notei que o Sr.

Laucídio não tinha nenhum entusiasmo. Eu pensava comigo: ‘porque será

que ele não se entusiasma?’”

O “entusiasmo dos filhos” é o elemento narrativo que se contrapõe às atitudes do pai

como chefe da família e responsável pela palavra final:

“Depois de feitas todas as exposições do negócio ele ficou quieto. Então

eles perguntaram:

– Como é papai? Qual a sua decisão?

– Vocês não acham que eu estou muito velho para ser empregado do

Moreira Salles e Rockefeller?

– Não papai, não é empregado. É sócio!

– Vocês viram sócio pequeno de gente grande que o grande não engole o

pequeno?

– Papai, o senhor vai desistir do negócio?

– Não, vamos colocar as coisas no devido lugar. Esses senhores de nomes

nacional e internacional são banqueiros muito fortes, mas eles estão

demonstrando que não são fazendeiros. Não estão dando conta da

administração da fazenda deles. Estão querendo aproveitar o pouco que

72

nós sabemos. Se eles não dão conta de ser fazendeiros que determinem uma

área conveniente, nos ofertem, ponham um preço adequado e nós vamos ver

se o negócio interessa.

E assim foi feito.”

A sabedoria do patriarca consiste trazer a negociação para o seu próprio terreno.

Quando diz “[e]sses senhores de nomes nacional e internacional são banqueiros muito

fortes”, porém “não são fazendeiros”, ele re-configura a negociação. Não só não tem

interesse em se associar, como também faz uma proposta para a compra das terras:

“Levada a opinião do Sr. Laucídio aos interessados eles analisaram e

puseram a disposição do Sr. Laucídio 100.000 hectares, que ele comprou

dando nove milhões de cruzeiros sendo quinze mil novilhas a 300 cruzeiros

cada uma, sendo cinco mil novilhas entregues em 1971, cinco mil em 1972,

cinco mil em 1973, e mais quatro milhões e meio de cruzeiros em dinheiro”.

A transação envolve pelo menos três deslocamentos rebanhos com cinco mil cabeças

de gado cada um. Nota-se também que o valor é calculado em ‘novilhas’, sendo essas

últimas a principal moeda corrente da região. A partir do negócio, o autor reporta que:

“O Sr. Laucídio criou uma firma no valor de 18 milhões de cruzeiros, o

valor do dobro, ou seja, a Agropecuária LS tinha o valor correspondente a

60 mil novilhas. Todo o capital integralizado pelo Sr. Laucídio.”

Mais uma vez o “câmbio” é feito em novilhas. Em seguida, o narrador descreve a

ocupação da área:

“No primeiro ano formamos 1896 alqueires. Começamos em junho e

terminamos em janeiro. Formamos toda a margem do Rio Salobra, numa

extensão de cerca de 40 quilômetros. Não tinha estrada, nós descíamos de

barco e distribuíamos a peonada onde os invasores tentavam entrar.

Fizemos a ocupação física da área ao invés de colocar gente fiscalizando.

Foi tomada a decisão de ocupar a terra e ninguém iria invadir. Assim foi

feito e não tivemos dor de cabeça.”

E, em seguida, reporta-se ao aspecto jurídico da ocupação:

“Compramos três demandas judiciais deles de invasores que acertamos

tudo com acordo. Foi tudo pago em dinheiro.”

73

Como documento histórico, o relato evidencia uma série de elementos interessantes

relacionados à compra de terras e as relações regionais entre fazendeiros e grileiros;

além de ser um marco de origem para a San Francisco. O final da narrativa diz respeito

a um aprendizado pessoal do autor em relação ao gado:

“Durante o trabalho vimos que tinha muito gado bagual na área que foi

vendida. Uma parte dessa área tinha bastante pedra, serra, pantanal, e boi

bagual de 6, 7 e 8 anos. O máximo de bagual.

Era uma luta enorme, mas tínhamos um pessoal bom, conseguimos pegar de

início um lote de mais ou menos mil bois, e perguntei ao Sr. Laucídio:

– Sr. Laucídio, podemos comprar essa boiada? Acredito que eles nos façam

um bom preço. Devem vender bem barato.

– Antônio, nem dada! De jeito nenhum. Se tirar essa boiada e colocar com

outra os mansos vão acompanhá-la e ficarão bravos também. Ela vai ficar

ligeira a vida toda. Isso é um veneno. Feche no mangueiro e peça que eles

venham buscar. Você tenta eliminar qualquer sementinha de gado bagual se

não eles levam o manso para ficar bagual.

E assim foi feito. Dentro de aproximadamente um ano e meio nós limpamos

tudo. Devolvemos a eles quase dois mil baguais (...).”

A conclusão é surpreendente pela síntese dos elementos heterogêneos da narrativa

em uma única frase:

“Eu aprendi a lição: Boi bagual não serve para nada mesmo.”

A “lição” aprendida, portanto, diz respeito especificamente ao bagual, tomado como

um índice de ‘atraso’ e uma ameaça de contaminação para as boiadas mansas que

ocupariam o território. Ele é caracterizado, assim, como um animal daninho, um

“veneno” que precisa ser eliminado. A sabedoria do fazendeiro consiste em uma recusa

a trabalhar com esse tipo de gado, associada pelo autor do texto a uma visão

progressista da pecuária.

O episódio narrado primeiro por Seu Ormir e depois por Barbosa de Souza remete a

um rastreamento de fontes históricas sobre as fazendas da região. No caso do segundo, o

gado bagual aparece como um animal daninho, na medida em que contamina o rebanho

manso e dificulta o manejo. No primeiro caso, Seu Ormir fala do desafio de bagualhar

aquela boiada, mas desta vez como um gado que é amansado pelos peões; ele evoca

74

outros tempos, e fala da lida com o gado brabo também como um atraso pantaneiro,

defendendo um manejo diferente do tradicional, uma lida diferente daquela do passado.

Um exemplo disso é o modo de amansar os cavalos. A doma tradicional pantaneira é a

doma bruta, onde o cavalo é pego no laço e domado, literalmente, à força, ficando

amarrado até perder as forças.

Alguns peões com quem conversei haviam aprendido a doma racional, e essa

prática era adotada em algumas fazendas da região. O tratamento dispensado à tropa e

também ao gado, de acordo com a posição de Seu Ormir, deixa os animais mais mansos

e manejáveis. Em entrevista feita em março de 2008, ele fala da mudança na postura dos

fazendeiros em relação à onça, e se define como um profissional que se dedicou a vida

inteira ao gado e que, de certa forma, não se apega às tradições:

Não vejo movimento nenhum do pessoal perseguindo ela. Tá tudo quieto,

tudo calmo... Tem ela, mas não pega muito [gado]. E a maioria dos

fazendeiros fala até o seguinte... Falam: Ah, mas onça comeu seu bezerro...

E ele fala: Melhor, deixa que come. Tem uns cara que quer ser caçador,

quer ir atrás, mas ninguém tá dando cobertura pra esse tipo de coisa.

Fazendeiro nenhum da região. Porque as coisas vem, dia a dia, vem

mudando.

(...)

Eu sou um cara o seguinte: criado aqui no Pantanal, e comecei a andar a

cavalo desde oito anos de idade. Sou peão de lombo de cavalo desde oito

anos. Tô com 55. Cê pegá o tempo de lombo de cavalo, dá 48 ano, de lombo

de cavalo. Então, daí eu fui me dedicando no gado. Morando na fazenda, e

dedicando no gado. Tentar conhecer e fazer o serviço, aprender alguma

coisa, de uma forma ou de outra. E aí fui... mesmo que eu moro na região

há muitos anos, então, eu não tomo tereré. O pessoal admira. Sou da

região, faz mais de 20 anos que eu não tomo tereré, resolvi largá de tomar

tereré. Não mexo com caçada. Se eu falar pra você que eu pesquei, durante

esses 30 anos, não pesquei. Não tive tempo de pescar. (E. 12/3/2008)

Um mês e meio depois dessa primeira entrevista com Seu Ormir, depois de um

período na San Fancisco, eu procuraria Seu Felipe, o mais antigo funcionário fazenda

que conheci, tendo trabalhado na abertura da propriedade, nos anos 1970. Ele foi era

também um antigo funcionário da LS, e havia trabalhado diretamente para o Doutor

75

Laucídio Coelho. Entrevistei-o em Miranda, na casa para onde havia se mudado depois

de se aposentar. Seu Felipe tinha então 83 anos, e a entrevista com ele, em termos

cronológicos, é a primeira em que abordei o assunto da compra da Bodoquena e a

conexão histórica entre as duas fazendas. Transcrevo a seguir um trecho da gravação da

entrevista, no qual pergunto a ele também sobre o gado bagual:

F: O Sr. Laucídio comprou as terras da antiga Fazenda Bodoquena?

É, comprou. O Seu Laucídio queria comprar tudo, porteira fechada! Então,

não deu pra comprar porteira fechada, não queriam vender assim.

Venderam pra ele esse pedaço. Porteira fechada – o que está aqui dentro:

cachorro, gado, tudo!

F: Dizem que ele tinha muita terra, não era?

Esse velho tem muita terra. Foi rico, foi. Tinha banco dele. Trabalhei com

ele. Quando saí do quartel, décima cavalaria, eu trabalhei. Aí ele morreu,

fiquei com a gurizada: Doutor Helio, Doutor Lúdio... Trabalhava para um

aqui, quatro, cinco meses, me passavam pro outro. E foi indo assim. Até que

chega: fiquei velho também.

F: E onde é que era a Fazenda Francesa?

Aqui pra baixo. Mas aquela, acho que a Bodoquena comprou tudo. Ficou

tudo pra Bodoquena. Saiu uma briga, com grileiro, sei que aquela acabou.

F: Na época do Seu Laucídio era muito diferente de hoje em dia?

Muito diferente. Aquele tempo, do velho Laucídio, bala era barata. Minha

arma era quarenta e quatro, atirava muito bem. No tempo do velho

Laucídio, todo mundo usava quarenta e quatro. No cabo já tinham: “L.S.”

A marca LS no cabo do revólver. O revólver da fazenda não ficava com a

polícia. Não ficava mesmo.

F: E dava muita confusão por aí?

Não, não dava não. Na cadeia não ia também. Não era para brigar com

polícia também, era a ordem do Velho. Não podia mexer com polícia. Tem

peão que abusa muito... Eu nunca abusei não. Vai lá pra namorar um pouco

a mulher por lá, pra que é que vai querer garrucha?

76

F: Então o senhor usava só no campo?

Só no campo. Tinha touro brabo, brabo! É laçar que ele vem em cima da

gente. Então aquele você não pode deixar machucar o cavalo. Se machucar

o cavalo, atira! Derruba, mata!

E: E tinha gado bagual nessa região?

Ih, naquele tempo tinha! Porque aí era mato, nos tempos do velho. Agora

não tem mais mato pra ele ficar. Agora acabou o baguá, nessa região aqui.

Tem em alguma parte, nessa companhia pode ser que tenha, mas é pouco.

Porque limparam tudo, puseram cerca nova, e aí o gado amansa.

Leva sal, põe lá no coxo, solta o gado manso lá, quando vai lá, aquele gado

manso não corre. O baguá sai correndo um pouco, e para, fica olhando pra

trás; o manso não corre, aí ele fica lá. Mas não pode mexer com ele não;

deixa ele por ali, em outro canto; aí ele volta de novo, e assim vai

amansando tudo. (30/4/2008)

A entrevista de Seu Felipe fornece uma série de novos vestígios para uma

historiografia. Os “tempos do velho” são designados pela posse de armas e pela figura

do grande fazendeiro, cujas relações de poder que se estendem à esfera pública. Quando

fala do “baguá”, no entanto, ele narra um processo de extinção a partir da destruição do

habitat desse animal, o “mato”. Assim como na narrativa de Seu Ormir, aqui é o gado

baguá que “vai amansando”, e não o contrário, como afirma a lição de Barbosa de

Souza. Em cada caso a extinção do gado selvagem é descrita de uma maneira: no

primeiro caso ele desaparece ao ser absorvido e misturado (geneticamente) ao gado

branco, o que pode ser definido como um processo ecológico de extinção por

hibridização. No segundo, ele é retirado das terras da fazenda, e essa eliminação se

baseia também em uma substituição pelo gado branco. Em ambos os não há mais

espaço para o bagual diante da ocupação do espaço e das novas práticas da pecuária, e

ele traça uma série de significados para a tradição da pecuária e para a história das

fazendas pantaneiras.

A “companhia”, destacada por Seu Felipe como um último reduto possível desse

tipo de gado na região – é uma referência à antiga Miranda Estância, a Companhia

inglesa que teve sua história cartografada por Benevides e Leonzo (1999).

Nacionalizada em 1952, quando foi comprada por empresários brasileiros, a fazenda foi

77

dividida pelos herdeiros desses compradores em 1985, dando origem na ocasião a nove

novas fazendas (: 149).

Estive em uma delas no início do trabalho de campo, ainda em 2006, com o objetivo

de desenvolver ali a pesquisa de campo, a Fazenda Caiman. Esta fazenda foi pioneira

no desenvolvimento de um modelo que conjuga a pecuária tradicional pantaneira ao

ecoturismo. Trabalha com um turismo caro e destinado basicamente ao público

estrangeiro, no qual o visitante pode conhecer os animais e os ecossistemas regionais e,

ao mesmo tempo, participar de cavalgadas e assistir às atividades dos vaqueiros. Na

época em que estive lá, a propriedade, com mais de 50 mil hectares, tinha cerca de 30

mil cabeças de gado, sendo 11 mil (mais do que na maioria das outras fazendas que

conheci) apenas no Retiro Novo, onde fiquei hospedado.

Logo depois de retornar do campo, escrevi um relato no qual procurei descrever o

trabalho com o gado a partir da experiência no retiro, referindo-me ao bagual como

parte da rotina da fazenda:

Duas vezes por ano, os peões reúnem o gado no mangueiro para vacinação e

marcação. Vão atrás do gado bagual, que está disperso pelos campos. Para ser

amansado, cada um desses bois é amarrado a um boi manso, chamado de

sinuelo, com uma corda presa em uma espécie de tesoura grande e com a ponta

chata, que fica presa nas narinas do bagual, que desta forma é obrigado a seguir o

boi manso para onde quer que vá.

Nos registros fotográficos e em vídeo feitos na ocasião, no entanto, é notável o

predomínio do gado branco, zebuíno, o que torna possível que o uso do termo bagual,

no caso, seja uma forma fraca (ou turística), usada para definir o gado de corte que vive

solto no campo em contraste com o gado manso que vive perto do retiro. Nas minhas

anotações de campo isso não fica claro. Conclui também, a partir do material, ao chegar

de volta do campo, em 2006, que:

A dualidade entre o animal doméstico e selvagem é, portanto, interna à relação

com o gado, que pode ser sinuelo ou bagual. São categorias fundamentais para

os peões, que podem se referir também a uma onça como mansa ou braba.

Ou seja, criei uma dualidade, opondo precipitadamente o bagual ao sinuelo e

impondo a “minha” oposição universal natureza e cultura sobre o material. No decorrer

78

da pesquisa eu perceberia mais tarde que sinuelo não é um sinônimo, mas sim um dos

tipos de gado manso, entre outros, como a vaca de leite e o bezerro guacho (órfão,

criado na mamadeira). O gado de corte, que vive nos campos e é trazido para ser

trabalhado no mangueiro apenas uma ou duas vezes por ano, pode ser referido em

termos de manso ou brabo de acordo com o manejo de cada fazenda.

No trecho a seguir, Campos Filho define o baguá como símbolo simultaneamente de

atraso e de autenticidade para a pecuária pantaneira:

Este grupo animal ainda hoje é uma forte inspiração para a cultura e a

identidade pantaneira. O ‘baguá’ é também símbolo de um atraso

econômico, pela sua condição ‘selvagem’ em comparação com animais

manejáveis, ‘mansos’. Por isso é que muitos fazendeiros negam possuí-los,

escondendo o fato. Ao mesmo tempo, valorizam o ‘baguá’ como símbolo do

pantaneiro. (2002: 139)

Banducci (2007[1995]), que trabalhou na região do Pantanal da Nhecolândia,

afirma nesse mesmo sentido que:

Na fazenda onde existe o gado bagual o peão se vê como "autêntico", pois

deve acordar cedo, ficar muitas horas sem comer e correr maiores riscos no

campo, ao passo que enxerga no outro um vaqueiro indolente, fraquejado

pela "facilidade" do trabalho. O "ideal" do gado é estendido e se

transforma, assim, no "ideal" do peão, colocando em jogo não apenas a

qualidade dos animais, constantemente referida nas conversas, como

também, a capacidade do trabalhador, seu valor e, conseqüentemente, sua

"identidade" enquanto pantaneiro. (: 134)

A identidade do pantaneiro é definida pelo autor, portanto, em termos das

dificuldades e dos desafios enfrentados pelos vaqueiros em seu trabalho, se refere a um

tipo de transferência entre o vaqueiro e o animal que ele é capaz de dominar, ou

amansar, o que confere prestígio e valor ao peão. O autor afirma que a noção pantaneira

do espaço ‘social’ se constrói em um embate permanente com a dimensão selvagem da

‘natureza’; uma alteridade que precisa ser ordenada, controlada e domada nas atividades

dos peões.

O gado selvagem pantaneiro tem um papel fundamental tanto no trabalho de

Banducci quanto no de Campos Filho, que foram as minhas duas principais referências

79

etnográficas para o trabalho nas fazendas e o tema da pecuária tradicional pantaneira.

Para designá-lo, o primeiro autor utiliza o termo “bagual”, enquanto o segundo usa a

grafia “baguá”, seguindo a pronúncia regional. Apesar das diferenças culturais entre as

duas regiões, acredito que a diferença diga respeito mais a uma opção pela oralidade

feita por Campos Filho. Nas gravações e registros orais coletados durante a minha

própria pesquisa, observa-se esta mesma pronúncia, e optei neste trabalho pela

utilização do termo baguá apenas para os casos da transcrição do material. Quando eu

mesmo escrevo sobre este gado, contudo, utilizei o termo bagual, como faz Banducci,

acompanhando a grafia usada também em outras fontes bibliográficas (Benevides e

Leonzo 1999; Mazza et al 1994).

Em todo caso, observo que a definição do bagual (ou baguá)nesses dois trabalhos de

referência designa uma condição e não um tipo de gado. Mais do que algo que define a

priori determinadas espécies, o ‘selvagem’ é formulado, assim como uma condição

reversível, sendo que qualquer tipo de gado contém a possibilidade de tornar-se manso

ou de tornar-se selvagem.

Nos três depoimentos provenientes da minha pesquisa de campo que citei ao longo

do capítulo, o gado selvagem aparece associado a um contraste histórico. No primeiro

caso, Seu Ormir o descreve a partir da dificuldade que representou para os vaqueiros do

passado, que precisavam pegá-lo no laço. No segundo, Barbosa de Souza escreve, a

partir de sua experiência com o gado, que o “bagual não serve para nada mesmo” (Op.

Cit.). Finalmente, Seu Felipe o define como habitante da região selvagem de outros

tempos, como um animal que não tem mais lugar atualmente, que foi domesticado a

partir da ocupação do território por fazendas e da proliferação do gado manso. Sendo

assim, as citações referentes ao desaparecimento do gado selvagem se entrelaçam com

narrativas sobre a história da região, e ele aparece como um marco daquilo que foi

conquistado pelos vaqueiros no processo de colonização.

Além desse rastreamento temporal, no entanto, é possível abordar o tema do bagual

a partir de outra perspectiva – apontada acima pelas referências ao trabalho de Banducci

e de Campos Filho – tomando-o como uma dimensão constitutiva das relações dos

pantaneiros. Para seguir essa segunda trilha, retomarei o tema a seguir partindo de uma

narrativa registrada em campo, a qual associa o bagual a uma série de outras criaturas

com as quais ele compartilha seu devir selvagem.

80

2.6. Crianças selvagens

Nesta seção, procuro abordar o bagual não mais como um elemento historiográfico,

e sim como um conceito ou idéia nativa que define, de certo modo, uma série de

relações entre humanos e animais. Para seguir essa segunda trilha, retomarei o tema a

partir de uma entrevista feita na Fazenda São Bento, no início de novembro de 2008. O

entrevistado é o campeiro conhecido na fazenda como Jiló, e residia no galpão dos

peões, na época, com seu filho de sete anos de idade. Ele trabalhava na fazenda havia

quatro meses, e, assim como Seu Ormir, tinha trabalhado anteriormente na Fazenda

Bodoquena. Assim como a maioria dos peões assim chamados “solteiros” (moradores

do galpão), ele era casado, e afirmou que queria levar a família para a fazenda, mas não

havia nenhuma casa disponível – uma situação bastante comum entre os funcionários,

principalmente os mais novos.

Seu filho, John Herbert, tinha ido morar na fazenda para tentar uma vaga na

Fundação Bradesco, uma escola técnica em regime de internato que recebe

principalmente crianças residentes nas propriedades da região. O menino era a única

criança no retiro, e ficava brincando sozinho ao redor da cantina, na casa de Dona Leda.

Quando eu cheguei à fazenda, mostrou-se muito tímido e nem respondia quando eu

tentava falar com ele. Depois de algum tempo, porém, revelou grande curiosidade pelos

meus equipamentos de campo – gravador, câmera, binóculo, e principalmente o

computador portátil – e passou a participar sempre das entrevistas e filmagens feitas no

galpão.

O próprio Jiló estudou na Fundação, mas largou a escola aos 16 anos de idade para

trabalhar como tropeiro da Fazenda Bodoquena. Nasceu em Corumbá e foi criado nesta

última fazenda, onde seu pai trabalhava até aquele momento. Perguntei a ele se o filho

seria campeiro também. Ele afirmou que achava que não, porque o menino gostava

mesmo era de trator, mas contou que tinha uma filha e que ela queria mexer com gado.

Perguntei se mulheres campeiras eram muito raras, porque não conhecia nenhuma; ele

respondeu que era difícil, mas comentou – provocando os companheiros – que já tinha

encontrado algumas melhores que muitos peões por lá.

O gado bagual aparece na entrevista de uma forma diferente de todas as citações

feitas até aqui, mas só foi mencionado na parte final da gravação. Antes de chegar até

ele, a narrativa coloca em cena uma série de elementos a partir dos quais o tema aparece

em uma nova configuração, então o trecho transcrito abaixo antecede em algumas

81

páginas a referência ao gado selvagem. O trecho se inicia com a pergunta que em geral

encerrava o questionário utilizado durante o trabalho de campo:

F: E você tem alguma história de onça para contar? Alguma que você

encontrou, ou que seu pai contava...

Tem uma história. Na hora que eu vim pro Pantanal, no tempo da

Companhia [a Bodoquena]. Eu fui abri uma cimbra... E os mais novos

nunca deixam os mais antigo, mais velhos, abrirem cimbra, e eu sempre

andei na frente. Aí um dia, eu e um cachorro – o tal do Rintintim – fomos

andando, e tinha dois capões, e a cimbra era bem no meio dos dois. Aí fui.

(E até era esse burro que eles estavam falando lá na mesa, o Jacaré, que

era minha montaria; era burro novo, naquela época). Aí o burro esbarrou.

Eu falei: Ah, burro velho... e dava chicotada nele! E o burro sentando... E

eu, pau nele! Burro velho não quer ir... E a turma já vinha chegando.

Estava daqui lá, o capão, daqui naquele cavalo lá [aponta um cavalo

pastando, talvez a uns 40 ou 50 metros].

Um recurso usado algumas vezes pelo narrador é este: situar a distância espacial a

partir de um elemento que indica ao falar.

Aí cheguei perto, e o burro velho sentava, querendo tomar o cabo de mim.

Eu apeei pra abrir, assim, e o cachorrinho foi pra dentro do mato (e ele

nunca tinha acuado onça, nunca tinha ido, era cachorro novo). Só deu pra

abrir a cimbra assim, o burro tomou o cabo e ó [faz o gesto de que foi

embora]. Era um macharrão. Sorte que ele já tinha comido, já tinha comido

um bezerro que nós vimos lá na vazante. Aí ele – daqui assim, na porta aí

[talvez a 2 ou 3 metros] – ele só ‘reganhou’ pra mim. Tinha um pé de pau, e

eu não sei como que eu não subi lá em cima, cheio de espinho... Sei que eu

subi lá em cima dele. Aí ele ficou, foi lá embaixo onde eu estava, na árvore,

aí saiu assim, e o cachorro atrás dele, acuando ele.

F: E o resto do pessoal?

Eu dei um grito, assim, e a turma veio. Mas ele já tinha entrado num outro

capão, aí largaram mão dele.

Aqui ele termina a história. Em entrevistas feitas durante o trabalho de campo, a

maioria dos vaqueiros afirmou já ter avistado alguma onça durante seu trabalho com o

82

gado, mas sempre em ocasiões esporádicas e rápidas, e um encontro cara a cara como

esse era bastante raro. Por ora, transcrevi a narrativa do encontro com a onça como uma

introdução para o que estava por vir; chamo atenção apenas para o modo como o

narrador descreve a paisagem, em particular os capões nos quais a onça se abriga. Além

disso, o evento se dá no momento em que o vaqueiro abre uma cimbra, o que marca

uma divisão e o cruzamento de uma fronteira espacial, e este será um fator relevante

para o restante das narrativas analisadas neste capítulo.

Depois de um instante de silêncio, retomei o tema de uma das questões anteriores

(não transcritas aqui), sobre os animais dos quais a onça se alimentava, perguntando:

F: Acontece de onça pegar cavalo também?

Acontece. Aí no Tupaceretã aí [um retiro da Bodoquena], pegô uma mula

grande. Nós soltamo a tropa, né... E era duas onça-pintada. Aí eu tô

escutando a mula relinchá... Escuto ela – puf, puf – e era pertinho o

piquete, do nosso galpão. Escutava coice... Mas só que nós não liguemo, a

mula brinca, né, gosta de corrê... Aí, outro dia fomo lá vê. Foi mais dois,

três dias pra mula morrê, a mula era grande memo, uma mula alazona, do

tamanho dessa do Paulo.

F: Mas então a onça atacou só que não comeu?

Não, não chegô de matá. Ela machucou muito, aí não agüentou, depois de

dois, três dias ela morreu.

Na resposta, Jiló menciona um dos retiros da Bodoquena, por acaso um local a

respeito do qual eu já tinha ouvido falar, e a partir dessa citação o assunto da conversa

muda:

F: O Seu Ormir me falou que esse retiro Tupaceretã é mal-assombrado... Você

já ouviu falar isso também?

Ahã, lá aparece um carro, daqui lá no capão lá... Não sei se é um carro ou

uma luz de trator... Cê olha assim, rapaiz, e nunca chega no retiro. Uma vez

eu fiquei lá, mas eu não cheguei de vê, nunca vi. Agora, um colega viu, né...

Que era medroso, né... [risos]

Aquele parecia que ele viu uma ilusão, memo, né... Tinha uma... Era uma

privada, né, era uma privada que fazia no chão, e nós fizemo, lá. E ele ia

com revórver, ia cagá com o revérver na mão assim, com medo da onça. Aí

83

esse dia ele viu a luz. E Seu Ormir também viu, o outro administrador

também viu...

F: Era de noite?

De noite. De dia não tinha nada.

Neste momento agradeci e desliguei o gravador. No entanto, continuamos

conversando, e perguntei a ele a respeito do “saci louro”, que Seu Ormir havia também

relatado ter visto, e de assombrações da região. Não registrei essa parte da conversa,

mas Jiló citou então o Maozão, criatura sobre a qual eu havia lido na etnografia de

Banducci (2007[1995]), pesquisador que coletou uma série de casos a respeito dessa

entidade no Pantanal da Nhecolândia. Essa referência fez com que eu retomasse a

gravação, e o segundo trecho transcrito da entrevista começa com uma pergunta minha:

Como é que o nome do bicho mesmo?

O filho de Jiló é quem responde, com voz de criança: “Maozão”. Em seguida o pai

completa:

É Maozão. Pai do Mato. Diz que um paraguaio tava cortando, cortando, e

lá de dentro do mato, no capão, um aguaçuzá assim, uma voz falou pra ele:

Ei, você pediu pra cortar aí? E ele tinha um cachorrinho que começou:

rrrr, começou a arrepiar tudo. E ele taca o machado. E o bicho falando pra

ele lá do mato: você pediu pra cortar madeira aí? E daí ele viu que o

cachorrinho tava olhando, assim, eo bicho tava daqui aí já, nele.Pretão

mesmo, mas diz que bem feio hein...

O homem largou ferramenta, tudo e passou, montou, e esse bicho atrás.

Mas o bicho não ‘travessa’ dentro d’água. E ele já tava cansando, e

atravessou uma vazantinha com água, assim, aí o bicho falou uma coisa pra

ele. Falou alguma coisa, mas ele nunca contou. Ele nunca podia falar pra

ninguém, porque o dia que ele falasse, ia acontecer uma coisa com ele.

Chegava nesse final assim, ele não contava não. A gente perguntava pra ele

né, o que ele viu, mas ele nunca falou. Esse é protetor. E tem ele mesmo,

hein, no fundão aí. Eu já fui aí pro fundo aí (aponta) Pro lado da

Nhecolândia, Paiaguás, já andei aí.

A referência à Nhecolândia era mais um elemento de ligação entre o caso narrado

pelo campeiro as narrativas coletadas por Banducci nesta região. Mais uma vez, chamo

84

atenção para o local do encontro, que acontece dentro de um tipo específico de capão de

mata. Os registros são bastante semelhantes no caso do Maozão, porém não é a partir

deles que pretendo aproximá-los, e sim do caso contado a seguir na entrevista:

F: E lá tem umas coisas estranhas...

Lá tem, o aguaçuzá. Você já viu aguaçuzá, né?Nunca viu? Ele é um pezão,

assim, mas grosso mesmo, e escuro por dentro. É um capão. E você vê

vazantão assim, daqui lá, assim, na sede. Só dele. Lá você não pode entrar.

O caráter sobrenatural do lugar é associado pelo entrevistado à presença de um tipo

de planta e às características do capão formado por ela. É comum na linguagem dos

vaqueiros a designação dos capões de mata a partir da espécie vegetal dominante:

carandazal, pirizeiro, entre outros. O termo aguaçuzá é referido também por Banducci

(2007: 183). Quando Jiló define a seguir este tipo de vegetação, ele menciona

finalmente o gado e a categoria de que trata este capítulo:

F: É um capão de mato?

É, só que as folha dele é grossa, e animal não güenta romper. E gado,

quando tá baguá, corre pra lá, pra dentro dele. Lá não pode entrar. Só

quem conhece mesmo.

O aguaçuzá é, portanto, o lugar aonde o baguá se abriga quando perseguido. Assim

como a onça e outros animais selvagens, a fuga para o capão é seu movimento

defensivo. Quando o peão fala que “animal não güenta romper”, ele refere-se à

montaria, ao animal de trabalho. Nota-se ainda que a narrativa refere-se ao gado

“quando tá baguá”, designando um estado ou uma condição e não um tipo de gado.

Até aqui, procurei assinalar o modo como os capões são descritos como zonas de

sombra, lugares onde se escondem os animais selvagens e também onde se dá o

misterioso encontro com o Maozão. Busquei com isso situar a fala de Jiló, preparando o

terreno para o caso que ele conta a seguir, que será o tema principal desta seção. Nele, o

gado selvagem tem papel destacado, e o termo baguá adquire um novo sentido:

Diz que há muito tempo, a minha bisavó – meu pai contava. Minha bisavó

foi pega a laço. Ficava no lote de gado baguá. Aí a turma ficou assondando

pra pegar ela. Diz que corre duro, hein? A pessoa fica totalmente selvagem,

né, muda.

85

F: Mas pegou ela no mato, como é que fez?

Ela se perdeu, aí ficou quase um ano, assim, e a turma procurando. Mas aí

um dia, saíram, cedo e viram que num capão, tinha um gado parado. (...) O

gado usa muito aqueles bichos: curicaca, anhuma, que avisam o gado

baguá. Cantou lá, o gado rodou e foi embora.

A turma só com cavalo bom mesmo, de pegar bem pego. E ela tava sentada,

bem quebrando coco no coxo. Era ela. No comedouro, perto do gado. O

gado nem... Era a bisavó do meu pai. Ficou selvagem, baguá duma vez!

A turma falou: ah lá! Foi circulando, assim, foi por aqui, outro por aqui.

Quando ela viu, o capão tava daqui ali, naquele outro capão ali. Aí a turma

arrancou! Ah, mas a turma falou que corre duro. O cavalo suou pra dar

nela. Só um cara que alcançou, quase entrando no capão. Jogou laço,

cerrou nela. Aí puxou, mas ela vinha de unha e pé. Aí jogaram outro laço, e

juntou todinho o pessoal e pegou ela. Aí trataram, levaram na igreja, tudo,

e ela voltou ao normal.

Em entrevista feita no mesmo período, Seu Ormir observara a mesma relação entre o

gado selvagem e o canto dos pássaros: “[é] um gado difícil de amansar: quando ouve o

pio de um passarinho ele já dispara”. A associação do gado selvagem aos pássaros

aparece tanto no trabalho de Banducci quanto no de Campos Filho, os quais, como já

mencionado, foram minhas principais referências etnográficas.

A partir desta associação, o primeiro autor aproxima o gado bagual aos animais de

caça:

“Os animais também comunicam-se entre si e o vaqueiro com freqüência é

vítima das aves que denunciam sua presença aos outros animais. A anhuma,

a curicaca, o quero-quero e até a arara, quando pressentem a aproximação

do homem, começam a gritar, alertando o gado bagual ou a caça, que

podem assim se proteger na mata”. (Banducci 2007: 84)

No segundo caso, a associação aparece na própria definição do “baguá”:

“Este gado é ‘amedontrado de gente’. (...) Ao menor anúncio de novidade,

como o canto da anhuma – Chauna torquata, do carão – Aramus guarauna,

entre outros, já ‘levantam a boca do chão’ [por estarem pastando]. ‘Se um

deles troteia, correm todos’. Da mesma forma, quando sentem o cheiro

86

humano ou ouvem sons do ‘movimento dos cavaleiros’, fogem”. (Campos

Filho 2002: 137)

A associação do baguá ao canto dos pássaros remete também a uma série de relatos

sobre as onças, e retornarei ao tema no capítulo 5. Na narrativa de Jiló, a menina “corre

duro” e é “pega no aço”, como o gado selvagem. Ao dizer que a criança ficou

“baguá de uma vez”, o campeiro estende o uso do termo aos humanos, e este é

o ponto principal a partir pretendo abordar a categoria nesta seção. O processo

de tornar-se selvagem, no caso, é uma possibilidade latente não só para o gado, como

também para todos os habitantes (não-humanos e humanos) do lugar.

O trabalho de Banducci (2007[1995]) sobre os vaqueiros da Nhecolândia identifica

três modos de classificação a partir do estudo etnográfico: entre abençoado e

praguejado, caça e criação, e manso e brabo. O último par é o que mais interessa aqui,

e é a partir dele que o autor descreve como a noção pantaneira do espaço ‘social’ se

constrói em um embate permanente a dimensão selvagem da ‘natureza’; uma alteridade

que precisa ser ordenada, controlada e domada nas atividades dos vaqueiros. O autor

afirma:

“O gado bagual, vivendo nos campos largos, sem marcas, longe do contato

com o vaqueiro, é um criatura feroz, perigosa e, como tal, pertence à classe

das espécies selvagens. No momento em que os vaqueiros "trabalham" esses

animais, ou seja, marcam-nos com ferros e cortes nas orelhas, manejam

seus rebanhos, conduzem-nos ao curral, alimentam-nos com sal, eles se

acostumam à presença humana e passam a responder a seus comandos. A

partir daí tornam-se animais ‘mansos’, ainda que permaneçam no campo.

Assim, no mesmo ambiente ou contexto espacial, é possível encontrar duas

classes distintas de gado: o ‘bravo’ e o ‘manso’”. (2007: 110)

Os animais “mansos” são caracterizados por Banducci a partir do “controle

humano” e da “posse de marcas”, ou então por habitarem o ambiente doméstico e

social da sede da fazenda (2007: 110). Os animais bravos, por outro lado, são definidos

pelo “comportamento imprevisível e incontrolado” ou por habitarem “campos e

matas”, longe das habitações humanas (: 110).

Campos Filho (2002) observa que “o ‘baguá’ também pode tornar-se noturno ou

crepuscular, escondendo-se durante o dia” (: 137), ligando também o seu

comportamento ao de animais perseguidos na caça. O autor também associa o

87

baguáao gado pantaneiro, na medida em que define este último a partir de uma

relação com o ambiente que extrapola o controle humano, e inverte o processo

da domesticação. O autor reporta para o gado que “nunca viu gente” o termo

“visonho”, diferenciando-o do “baguá” no trecho a seguir:

“A última categoria elencada é o ‘baguá’. Este gado é ‘amedontrado de

gente’ por ser ou ter sido ‘escarrerado’, ‘bagualhado’, perseguido para ser

pego. Os ‘baguás’ correm maiores distâncias que os ‘visonhos’, não se

escondendo, por terem grande desconfiança dos cavaleiros”. (: 137)

Nesse sentido, são as ações humanas de perseguir e amedrontar que

produzem o gado bravo,sendo mais mansos os “visonhos”, animais que nunca

tiveram contato com os cavaleiros.

Banducci (2007) estabelece, a partir dos modos de classificação pantaneiros, um

dispositivo que integra animais e seres sobrenaturais, e analisa, a partir dele, diferentes

versões para um caso no qual uma criança desaparece no mato por algum tempo e

depois é resgatada. No caso, a criança perdida é um menino acompanhado por uma anta:

“Os diversos episódios envolvendo a “anta sobrenatural” têm por base um

fato intrigante que teria ocorrido há alguns anos na Nhecolândia com um

garoto, de aproximadamente sete anos, que teria desaparecido de sua casa

acompanhado de uma anta” (2007: 176).

Nela, o menino é perseguido a cavalo e capturado quando “panhava bocaiúva” (no

caso de Jiló, a menina quebrava coco junto ao gado). Assim como no caso narrado por

Jiló, o menino precisa ser capturado a laço, e trazido de volta para a fazenda. Nos dois

casos, a criança é então levada para a cidade – para “Corumbá” ou para a “igreja” –

onde é curada, o que remete à distinção animais “abençoados” e “praguejados”

(Banducci 2007: Op. Cit).

O enredo das duas histórias é praticamente o mesmo, a não ser por alguns poucos

elementos. Um deles é a conclusão do caso da “anta sobrenatural”, na qual o menino

não conta a experiência a ninguém (assim como faz o personagem do caso do Maozão,

transcrito acima). Outro elemento diferenciador entre as narrativas é o momento da

captura, sendo que no relato reportado por Banducci, o menino grita: “pelo amor de

Deus, num me capa!” (2007[1995]:178-179).

88

A diferença mais marcante entre as duas histórias são as espécies animais às quais a

criança se associa – no primeiro caso o gado baguá e, no segundo, a anta. A partir dessa

exclamação final, no entanto, Banducci associa a criança ainda a outro bicho:

“O menino tem de ser pêgo a laço, tem de ser caçado. Em diversas versões

a sua captura é narrada como a de uma caçada de porco-monteiro. Ele

corre de um capão a outro, é perseguido a cavalo, depois a pé, é laçado e,

por fim, se fossem seguidos os procedimentos normais na captura de um

animal ainda novo, deveria ser castrado”. (2007 [1985]: 181)

O porco-monteiro é o animal doméstico que, de acordo com o autor, “alonga para o

mato”, e se torna selvagem. O termo “alongado” corresponde, segundo ele, a uma fase

de transição, e “[n]o momento em que os porcos alongados adquirem as

características, sejam comportamentais, sejam morfológicas, dos porcos monteiros, são

identificados e considerados totalmente selvagens” (2007: 111). Banducci afirma ainda

que “o representante ideal para o consumo humano é o macho, previamente castrado

no campo para a engorda e para perder o cheiro característico - a ‘miscazinha’, como

se referem ao odor comum às carnes de caça” (Idem)

Além disso, ao ser capturado para a castração, o autor reporta que o animal é

marcado com um corte na orelha ou no rabo, o que serve posteriormente para a

identificação do “capado” na caça. A captura do porco-monteiro, uma atividade de caça

tradicional, aparece nesse sentido como espécie de versão fraca da lida com o gado. O

mesmo tipo de marcação é feito inicialmente no gado:

“Como a primeira marca que o peão imprime no gado é um corte na

orelha, feito grande parte das vezes no campo, a rês que não possui esse

indicativo de manejo e propriedade é também denomidada "oreia",

tratando-se de um animal selvagem, bagual” (Idem: 113).

A etnografia de Campos Filho (2002) define a castração, no mesmo sentido, como

marco fundamental a partir do qual os animais são incorporados à cultura, ou

domesticados:

“A castração de bovinos pode ser tomada, a partir da visão local, como um

marco fundamental da cultura pantaneira, que tem no boi, enquanto

produção de vida campestre, seu peincipal objetivo e fonte de beleza. (...)

Tidos como nativos, os bovinos não necessitam dos humanos para

89

sobreviverem enquanto espécie no Pantanal. A única categoria efetivamente

criada pelos humanos é o ‘boi’, que é o macho emasculado resultado da

castração” (2002: 140).

Em relação especificamente ao baguá, o autor afirma:

“Sua castração confere aos homens uma maior segurança quanto ao seu

controle, mas continuam sendo percebidos como ‘bichos’, numa forma

atenuada do selvagem, inserida na cultura”. (Idem)

No caso da bagualhação, portanto, os procedimentos são os mesmos feitos com o

porco-monteiro. Minha intenção aqui, a partir dessas indicações, é aproximar a caçada

do porco e o manejo do gado, particularmente ao do gado selvagem, a partir dos

procedimentos em comum, em que os princípios da lida são simplificados ao mínimo:

castração, marcação, e abate. O guaiaca, nesse sentido, seria o equivalente do touro,

também impróprio ao consumo. Em relação à escrita do gado, descrita na primeira parte

deste capítulo, essa simplificação se traduz em um código binário – marcado e não

marcado.

No caso da anta sobrenatural, Banducci observa:

“O horário em que o menino desaparece, meio-dia, (...), é propício aos

acontecimentos sobrenaturais. Da mesma forma, a liminaridade da hora se

reproduz no que diz respeito ao espaço. Numa das versões o menino

desaparece quando está num ‘varador’; em outra, é capturado junto a uma

‘porteira’, denunciando, assim, o caráter ambíguo da situação que envolve

o seu desaparecimento”. (: 179)

Chamei atenção para o papel da cimbra no caso do encontro com a onça, contado

por Jiló antes de narrar o episódio da criança baguá. Seu relato sobre o caso da menina,

no entanto, não especifica as condições do desaparecimento, apenas descreve a captura

da criança. Na mesma entrevista, porém, ele referiu-se ao horário de meio-dia como

propício para o aparecimento do saci, que descreveu como uma ameaça para as crianças

pequenas, que podem ser levadas para o mato.

Conversei depois com Dona Leda e Seu Ormir a respeito do assunto novamente, e

ele descreveu o saci louro que havia visto uma vez quando era guri e falou sobre o

assovio que é usado para atrair as crianças. O tema motivaria um caso brando de

‘conflito cultural’ entre moradores da fazenda, descrito a seguir. Na entrevista gravada

90

com outro morador da fazenda, Concha (op. Cit), também nesse mesmo período,

pergunto-o a respeito do tema. Ele narra mais um caso de criança selvagem:

Horário de meio-dia, horário assim, que é horário que ele anda. Então

vinham os pais da gente falar: ‘guri, meio-dia não é hora de estar

brincando, é perigoso, vem pra dentro’. Então nos mandavam sempre pra

dentro de casa. E ele chama criança, só criança que vê ele. Eu nunca vi,

mas a gente escuta os pais falarem.

E: É com criança que não é batizada?

A criança que não é batizada ele leva embora, fica com ele. Leva no mato.

Ele dá de tudo. A criança não passa mal, não passa nada, ele dá de tudo, só

que anda no meio dos bichos, anda no meio do gado, tudinho. Eu tenho uma

prima minha, ela ficou 15 dias ‘alongada’ assim, no meio do mato.

E: Depois apareceu de novo?

Não, aí tiveram que pegar ela. Tem que tomar dele de novo. E pra pegar

dele não é fácil. Ele corre, esconde, vira um bicho. E ele que guia tudinho.

F: E ela lembrava de tudo?

Não. Ela só falava que era bem tratada e o que ela queria ela tinha.

F: E como é que ele é?

O saci ele é loiro. O que leva a criança é loiro, loirinho. E ele leva mesmo,

ele chama, ele oferece as coisas pra criança; a criança vê. E hoje em dia é

coisa mais difícil. É difícil você vê. Só quem conhece o canto dele, o assobio

dele sabe distinguir se é ele ou não. Nesse horário assim é o horário dele

andar. De meio-dia até uma hora. E ele percebe a criança que não é

batizada.

Dona Leda, que acompanha a entrevista, concorda: “Eu não deixo criança andar

meio-dia” – ela diz. Concha e Dona Leda afirmaram na ocasião que Fernando, o

biólogo que coordena a pesquisa sobre as onças, não acreditava no saci, ambos

referindo-se à brincadeira feita pelo biólogo na tarde anterior, dizendo que ia “colocar

coleira nesse saci louro”. Concha respondeu à provocação afirmando que ele “tá igual o

cara que o saci deixou amarrado no campo, no ‘Guaicuruz’”. Quando questionado na

entrevista a respeito dessa descrença do biólogo, ele diz:

91

É o seguinte: A pessoa que é estudada, que tem estudo, é mais pela ciência,

né... Só que tem muitas coisas que na cidade não tem, você não vê. Essas

coisas anormais assim não acontecem na cidade. Você só vê onde é

sossegado, onde é tranqüilo. Aí que você vê essas coisas.

Giorgio Agambem (2002) afirma que de Lineu, fundador da taxonomia científica

moderna, apesar de não questionar a diferença que separa o humano do animal em um

nível moral e religioso, ele se referia à dificuldade de se identificar essa diferença do

ponto de vista da ciência natural. Um ponto interessante que o autor observa sobre essa

demarcação histórica da espécie humana, é que a classificação de Lineu fala de casos de

crianças selvagens, “wolf-children”, descobertas criadas entre animais, colocando-os à

parte da espécie humana. Ele as chama de Homo ferus, uma forma de transição da

inumanidade animal para a humanidade. Uma das características descritas para a

espécie é a mudez, ou ausência de linguagem.

O humano não se distingue, assim, como uma espécie claramente definida, mas

antes por aquilo que Agambem denomina de máquina antropológica do humanismo:

“uma máquina ou dispositivo para a produção do reconhecimento do que é humano” (:

29). Um aparato que verifica a ausência de uma natureza própria para a espécie humana.

Tornar-se baguá, no exemplo da criança que precisa ser resgatada, é um processo que

assombra os habitantes da fazenda, algo que aponta para o caráter reversível das

classificações regionais, a fluidez das fronteiras entre doméstico e selvagem, humano e

animal.

92

2.7. Conservação e mercado

Uma das abordagens conservacionistas para o chamado conflito entre criadores de

gado e predadores silvestres como a onça é a criação de modelos que associam a

pecuária tradicional e a preservação da biodiversidade. O pesquisador Ricardo Boulhosa

é um dos que defende esse tipo de abordagem para o Pantanal. Em apresentação sobre o

tema durante o encontro organizado pela WWF e pela Pró-Carnívoros em maio de 2008,

na Fazenda San Francisco, ele afirma:

Um termo que hoje é muito utilizado na nossa discussão é a biodiversidade.

E os biomas brasileiros têm essa riqueza (...). Se você perde a

biodiversidade, você vai perder uma outra coisa que a gente tem que

discutir, que é a questão de mercado. Você está criando gado em um local

de biodiversidade, então qualquer técnica que você esteja aplicando em

cima daquele rebanho, se vai ser uma opção você procurar um mercado

diferenciado, baseado em biodiversidade. Qualquer técnica [de mitigação

do conflito] tem que ser bem detalhada, esmiuçada, para ver se ela não está

provocando algum problema dentro disso.

O biólogo cita o projeto da Embrapa de preservação do gado pantaneiro (ou Tucura)

como parte desse processo, e aponta a pecuária como elemento fundamental para se

pensar a conservação no Pantanal:

[A] gente sabe que 95% da área do Pantanal é de propriedades privadas,

sendo que (...) a atividade mais desenvolvida no local é a pecuária. Então,

um ponto importante quando a gente fala em trabalhar com a conservação

no ambiente pantaneiro, é que a pecuária deve ser levada em consideração

em qualquer tipo de programa de conservação.

Esta associação, formulada por Boulhosa a partir de seu trabalho para a WCS,

apresenta como novidade, em relação a propostas anteriores de organizações

conservacionistas, uma estratégia que vincula diretamente a conservação ambiental e a

cadeia produtiva do gado. Este mesmo tema foi abordado também por um dos

coordenadores do encontro, Ivens Domingos, como exemplo para as estratégias

desenvolvidas atualmente na região por outra grande Ong internacional – a WWF

(World Wildlife Fund). Esta organização não-governamental, criada na Suíça, em 1961,

93

é atualmente a maior organização independente de conservação no mundo, atuando em

mais de 90 países ao redor do mundo [Wikipédia].

O pesquisador trabalha em um programa voltado especificamente para a região, e

sua apresentação mostrou de forma didática a constituição da cadeia produtiva da carne

bovina, na seguinte seqüência de atores: Produtores, Frigoríficos, Varejistas,

Consumidores. Uma série de novos conceitos que surgiram na apresentação como

elementos cruciais para esta cadeia produtiva: Sustentabilidade, Consumo responsável,

Segurança do alimento, Rastreabilidade, Sustentabilidade sócio-ambiental. Um

exemplo das novas tendências no mercado citado por ele foi o Global Gap – Global

Partnership for Good Agricultural Practice, uma organização de varejistas europeus

ligada à questão da conservação ambiental e aos chamados Selos verdes.

De acordo com Ivens Domingos, um bom selo precisa ter critérios e padrões

definidos em relação à conservação da biodiversidade, ao uso da água, e aos impactos

no ecossistema; e tem como desafio transformar capital natural em capital econômico.

Entre outras coisas, defendeu que neste caso deve-se “começar por baixo, articulando

os atores para pressionar o governo”. Em relação à busca de um caminho para a

pecuária sustentável, ele pergunta: “Como tornar mais vantajoso preservar do que

desmatar? Qual a origem dos recursos que paga pela preservação?

Algum tempo depois do encontro, procurei o pesquisador no escritório da WWF em

Campo Grande, MS, para uma entrevista em que pretendia aprofundar mais o tema da

interligação entre o gado e a conservação da onça, em particular. Transcrevo abaixo

uma parte da entrevista. A entrevista aborda diretamente o papel do gado dentro das

estratégias de conservação da WWF. O primeiro movimento diz respeito a um projeto

com a carne orgânica, e não tem uma relação direta com a onça:

Em 2003, veio um pecuarista do Pantanal com a alternativa da pecuária

orgânica certificada. E daí a gente começou como estratégia do programa

trabalhar com a pecuária orgânica certificada como uma alternativa pra

valorizar a pecuária tradicional de planície pantaneira.

A onça aparece mais diretamente apenas em um segundo momento da entrevista, e

em seguida o pesquisador apresenta o enfoque com o qual a organização lida com a

questão do conflito no plano regional, dentro das fazendas, a partir de ações

participativas feitas com a comunidade local:

94

Em 2006, a gente começou a ter já algumas conversas – que foi quando

começou o trabalho do Ricardo Boulhosa com a WCS, com o questionário,

pra tentar entender a pecuária pantaneira e como é que poderia fazer essa

busca de minimizar ou mitigar esse conflito da pecuária com a onça no

Pantanal. A gente sabia, pecuária pantaneira e onça têm uma ligação muito

íntima, a conservação dessa espécie com a pecuária pantaneira. Uma coisa

já identificada, e um exemplo claro, é San Francisco pra quem trabalha

com turismo. Então, isso está muito claro, mas com a questão da pecuária

não está muito clara. Ou seja, o cara ver a onça na sua fazenda como uma

oportunidade de negócio ou de algum tipo de ganho, não uma ameaça e sim

uma oportunidade.

F: O turismo é o que a gente pensa de imediato...

O problema é que o turismo ainda não é economicamente representativo

pro estado. É muito pouco, e não muito estruturado ainda; tem todo o

problema de logística de chegada nas fazendas.

Em onça, especificamente, a gente fez a primeira parceira com a Pró-

Carnívoros, ano passado, em 2007. E a idéia é a seguinte, que surgiu,

tentando ligar conservação de onça e pecuária: primeiro é uma questão de

envolvimento e capacitação dos produtores da região. Cada fazenda é

diferente, e a idéia é que, no final do ano que vem, os fazendeiros tragam

propostas de manejo adequadas pra tentar mitigar o ataque da onça.

O pesquisador descreve então um projeto de longo prazo no qual a onça desempenha

um papel fundamental como espécie bandeira para a conservação da biodiversidade

regional. O projeto é inteiramente voltado para a dinâmica do mercado de gado:

Outra linha de trabalho é assim: Bom, a gente tem diversos selos

ambientais hoje aí no mercado. Isso está trazendo uma confusão pro

consumidor. Então, no caso do WWF Brasil, que vem trabalhando com

certificação orgânica; a gente sabia que a certificação orgânica na parte

ambiental era boa, mas podia buscar uma melhoria contínua.

E dessa experiência toda de envolvimento dos produtores, o que seriam

boas práticas produtivas da pecuária, seja em manejo, seja em condição de

organização de cerca ou etc., que o cara fazendo esse tipo de manejo tenha

95

menor impacto, por exemplo, sobre a onça. Então ele ajuda na conservação

da onça ou na conservação de outra espécie pantaneira, mas usando a

onça, talvez, como bandeira disso.

F: E de algum modo esse selo teria que traduzir isso?

A gente tem duas idéias iniciais: Uma tentativa é colocar isso dentro dos

selos dos orgânicos, mas tem fazendas que têm um bom manejo e etc.,

podem até conservar a onça, mas não têm interesse, ou por um detalhe ou

por outro, não conseguem certificar pra pecuária orgânica. Então isso é um

limitante de ser o orgânico, especificamente.

Tem outro selo, do Instituto Biodinâmico, que é o selo Eco-Social. Esse selo

traduz que ele tem boas práticas produtivas de pecuária, tem uma pecuária

sustentável e que dentro desse selo sustentável de pecuária ele conserva a

onça, ganhando, sei lá, 5% a mais na arroba da carne... Tem que ter

indicadores; tem que ter coisas mensuráveis, auditáveis, e que posam

comprovar para o consumidor isso. Então agora tem um movimento, uma

onda muito favorável a esse tipo de visão.

F: Mas você diz um movimento de que tipo?

Um movimento nacional. Com toda essa questão da pecuária sobre a

Amazônia e desmatamento, etc., tá forçando, e isso começou em outubro de

2007, se criou um grupo – puxado pelo IFC, International Finance

Corporation, que é o braço privado do Banco Mundial e outras instituições

– que montaram e criaram o Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável.

Com esse movimento todo e essas indústrias preocupadas em mostrar pro

consumidor que tão comprando carne de sistemas de pecuária que não tão

destruindo a Amazônia, não estão destruindo o Pantanal, pode ser um

canal, via um grande varejista, de a gente conseguir implementar isso. A

Embrapa Pantanal está fechando os indicadores de sustentabilidade pra

pecuária pantaneira. Então a idéia é: primeiro passo é discutir, ter as bases

do que seriam esses critérios e indicadores.

F: E quais seriam esses grandes varegistas nacionais?

Pão de Açúcar, Carreffour, entre outros. São os grandes varejistas que

podem influenciar mercado.

96

F: Mas como eles explorariam isso?

Ele força a indústria da qual ele compra carne a comprar tal tipo de carne:

‘Não, eu quero a carne selo Pantanal’, por exemplo. Mas ele tem que ter

garantias de que esse selo Pantanal, esse selo Eco-Social Pantanal, o que

seja, tenha um respaldo científico e tenha um respaldo técnico realmente.

Isso é um processo de longo prazo, mas é um caminho.

F: Você tinha falado, no encontro na San Francisco, que os frigoríficos têm uma

coisa importante nessa cadeia, nos preços. Como é que funciona isso?

Simplificadamente, o que é a cadeia produtiva? É o consumidor, o varejo, a

indústria processadora e a indústria de abate, e o produtor. Normalmente,

como é que você mede quem é o elo mais forte na cadeia? É o que está mais

próximo do consumidor. E cada vez mais o produtor e a indústria têm que

estar conectados com o consumidor pra saber que tipo de produto ele está

querendo.

O que chama atenção neste último trecho da entrevista é a multiplicidade de atores

que entram em cena a cada passo do processo descrito. Eles compõem não só uma

extensa lista de instituições financeiras, empresas, órgãos públicos e atores sociais em

uma rede produtiva (o que por si já seria interessante), mas fornecem também alguns

bons exemplos da zona de fronteira que é o conservacionismo, uma prática que se move

o tempo todo entre o social e o ecológico (não por acaso a certificação de

sustentabilidade se chama selo eco-social).

A onça é citada mais de uma vez como uma bandeira para a conservação da

biodiversidade no Pantanal. O papel de espécie bandeira, ou espécie símbolo (flagship

species) faz parte do léxico usado pelo conservacionismo para designar espécies

carismáticas de grandes mamíferos carnívoros no mundo todo. O caso da onça encontra

exemplos semelhantes em projetos da WWF com tigres, leões, guepardos, ursos e lobos

ao redor do mundo, todos invariavelmente em conflito com criadores de rebanhos

domésticos. Essas espécies são designadas também neste âmbito como espécies chave

(keystone species), categoria relacionada ao papel ecológico desses animais no topo da

cadeia alimentar, controlando as populações de outras espécies. Uma terceira categoria

também usada no vocabulário conservacionista é o da espécie guarda-chuva (umbrella

97

species), que designa animais cuja preservação abarca a das muitas outras espécies que

estão abaixo dela na cadeia trófica (Morato Et Al. 2006; Silveira 2008).

Apesar de não ser classificada como criticamente ameaçada de extinção [ela é

classificada como vulnerável (o menor grau entre os três de ameaça) no Brasil e

internacionalmente como near treaten (um grau abaixo) pela IUCN], a onça-pintada é

de longe a espécie de carnívoro mais estudada pela Biologia de campo nos últimos

trinta anos. Seguramente está também entre as espécies que atrai o maior volume de

investimentos internacionais e que tem o maior número de programas voltados para sua

conservação no país.

No caso da entrevista a espécie desempenha um papel bem evidente de bandeira,

mas isso adquire um sentido bastante específico: ela aparece estampada no produto

carne que vai ser vendido nas grandes redes de varejo. A idéia de que ela possa

desempenhar um papel crucial no marketing para a rede produtiva é o que sustenta sua

participação dentro do programa conservacionista.

O principal objetivo desta seção não é discutir exaustivamente as estratégias de

preservação das onças, mas sim demonstrar de que modo o manejo e a conservação

delas no pantanal são irremediavelmente entrelaçados com o manejo e a conservação do

gado. A preservação da pecuária tradicional e de uma reavaliação do papel da onça

dentro desta pecuária, como vimos, são os principais temas das ações conservacionistas

na região. Em termos financeiros, em termos de alianças regionais, de áreas de pesquisa,

de representação pública, de conflitos entre grupos de interesse, de relações ecológicas,

as associações entre a onça e o gado se multiplicam interminavelmente. Elas se

estendem do campo à prateleira do supermercado na esquina da minha casa: Daqui a

pouco tempo – se tudo correr conforme o planejado – eu poderei comprar carne de uma

fazenda que preserva as onças através de um certificado que rastreia o produto até a sua

origem.

Todo esse percurso tem a ver com a rastreabilidade, um critério importante dentro

do modelo da pecuária sustentável, como vimos acima. O termo rastreado é também

utilizado nas fazendas pantaneiras para designar o gado que, além do manejo interno da

propriedade, é controlado também por uma empresa externa. Esse controle é também

um certificado de qualidade e um marcador fundamental na relação da unidade

produtiva que é a fazenda os compradores do seu produto.

A categoria completa a série de gados apresentados ao longo deste capítulo:

predado, branco, pantaneiro, bagual e, finalmente, rastreado. O sentido que este último

98

termo toma aqui diz respeito à carne. Retomando a nossa imagem de referência, a

fotografia-armadilha da onça com sua presa, a forma do bezerro neste caso teria que ser

recortada não como a silhueta do animal vivo, circulando dentro da fazenda, mas como

um pedaço de carne que projeta uma sombra para fora da fazenda: aquilo que o bezerro,

como produto, não realizou.

2.8. O gado e as onças

Bruno Latour define uma boa narrativa, pelos princípios da Teoria do Ator-Rede

(ANT),como aquela capaz de traçar uma rede (network). Uma das definições que propõe

para o termo rede é:

“Uma cadeia [‘string’] de ações onde cada participante é tratado como um

mediador. Um bom relato ANT é uma narrativa ou uma descrição ou uma

proposição onde todos os atores fazem alguma coisa (...). Em vez de

simplesmente transportar os efeitos, cada um dos pontos do texto pode

tornar-se uma bifurcação, um evento, ou a origem de uma nova tradução”.

(: 128)10

A associação entre “network” – traduzida aqui por rede – e “string” – cadeia ou fio,

corda, tira – pode ser interessante, nesta conclusão, para um pequeno exercício

metafórico, a partir do material etnográfico: A imagem do fio ou corrente de eventos

(“string of actions”) descrito pela narrativa ANTseria, neste caso, análoga à imagem do

laço, o utensílio fundador da cultura dos vaqueiros. Feito com o couro dos mesmos

animais que captura, a imagem apresenta de saída este paradoxo cíclico que já o

aproxima de qualquer tipo de narrativa. O laço é produzido com quatro tiras de couro

(tentos) trançadas, sendo que cada uma delas resulta de um corte em espiral no couro.

Digamos, a partir desta imagem, que a forma do bezerro na Seqüência 1 recorte uma

série de linhas no tecido da etnografia; linhas que conectam atores eventos e imagens,

ou que associam uma série de registros – gravações, fotografias, filmagens – em uma

determinada seqüência. Analogamente ao laço, a narrativa seria o processo pelo qual

essas tiras são trançadas.

10[A] string of actions where each participant is treated as a full-blown mediator. (...) A good ANT

account is a narrative or a description or a proposition where all the actors do something (…). Instead of simply transporting effects, each of the points of the text may become a bifurcation, an event, or the origin of a new translation.

99

Latour estabelece também algumas precauções para este tipo de narrativa, ligadas a

uma prática simétrica de evitação das explicações sociais quanto das causas científicas.

De acordo com ele, estas últimas implicariam na atribuição, aos não humanos, das

qualidades não intencionais, materiais e sólidas dos fatos objetivos (“matter of fact”)

científicos (2005: 107). A explicação social, por outro lado, implicaria na atribuição a

eles do papel de símbolos, repositórios de projeções humanas ou sociais (Idem: 107-

108).

No caso do gado, que é o objeto de interesse deste capítulo, isso deixaria duas

alternativas: Por um lado, ele poderia ser tomado objetivamente como matéria-prima

natural ou agente de transformações ecológicas; por outro, seria estudado como

representação simbólica de um determinado grupo social. Essas são as duas formas de

purificação (grosso modo) que Latour nos propõe abandonar. Assim que o gado é

filtrado por uma delas, ele se torna simplesmente o efeito de alguma causa anterior,

social ou natural.

Ao longo do capítulo, estabeleci uma série de continuidades entre a minha própria

pesquisa e duas fontes etnográficas que utilizei como principais referências para o tema

da pecuária pantaneira: Campos Filho e Banducci. Ambos os autores realizaram

trabalhos de campo em fazendas do Pantanal e compartilham um horizonte etnográfico

comum, que se mantém bastante homogêneo apesar das variações regionais. Procurei

fazer leituras dos dois autores a partir daquilo que considero o ponto forte de ambos: a

maneira como descrevem o gado como uma entidade múltipla, que estabelece relações

inesperadas entre aquilo que é comumente tratado separadamente pela ecologia e pela

antropologia.

Esta leitura, no entanto, foi baseada em certas precauções destinadas a evitar o uso

de uma oposição universal entre natureza e cultura; oposição que é utilizada como ponto

de partida pelos dois autores. Em cada caso esse dualismo tradicional recebe um

tratamento diferente, relacionado às áreas de conhecimento a que pertencem os autores

(respectivamente a Antropologia Social a Etnoecologia), mas ele aparece em ambos

como um fundamento não questionado. Minha intenção neste ponto é chamar atenção

para o modo como ambos utilizam a oposição, não para criticá-los, mas precisamente

para evitar acompanhá-los autores no movimento de tomar o dualismo clássico como

um a - priori.

100

No caso de Campos Filho (2002), a oposição entre natureza e cultura privilegia o

pólo da natureza como elemento explicativo, já que utiliza como ponto de partida o

enfoque da ecologia. O autor afirma:

O bovino que tem maior participação na história e na cultura pantaneira é

o tucura. No Pantanal, é assim chamado o bovino introduzido pelos

colonizadores, antes do zebu indiano, assim como seus mestiços. É bastante

comum a crença de que são animais nativos, como também o cavalo, sendo

assim naturalizados pela cultura. (2002: 44)

No argumento do autor, o processo adaptativo do gado ao ambiente é superposto a

esse processo de ‘naturalização’ a partir da qual surgem as etno-espéciespantaneiras

(nativas para os pantaneiros, porém exóticas para a Ciência). O risco desta passagem,

ao introduzir simultaneamente na etnografia a idéia de “crença” e a oposição natureza-

cultura. Quando afirma que o pantaneiro “crê” que são nativos os animais, ele pressupõe

que “sabemos” que eles são “na verdade” são exóticos, o que introduz em seu

argumento um ponto de vista “de fora”, um conhecimento científico externo que acessa

diretamente o real, sem a mediação da ‘crença’ cultural. Ao classificá-los dessa forma, o

autor estabelece (ainda que inadvertidamente) uma diferença de grau entre o

conhecimento científico e o conhecimento local. Evoca uma causalidade científica que

pressupões o primeiro está um grau mais próximo do real do que o segundo, e corre o

risco de limitar o alcance de seu próprio projeto, que é o da legitimação do

conhecimento tradicional:

(...) [A] cultura local não tem sido respeitada em seus conhecimentos, à

medida que sua população, empobrecida economicamente e sem discurso

legitimado, é preconceituosamente vista como atrasada, ou ignorante.

(2002:167)

Alvaro Banducci, por sua vez, é um autor oriundo da Antropologia Social, e sua

análise utiliza o dualismo moderno em sentido inverso, ao considerar os animais como

representações, ou projeções simbólicas dos atores humanos; como na seguinte

declaração:

Na verdade, gado, cavalo e cães são, nas fazendas da Nhecolândia,

instrumentos por meio dos quais os vaqueiros expressam e promovem, de

forma simbólica, as suas qualidades pessoais. (Banducci 2007: 97)

101

A afirmação é um exemplo de como a análise antropológica pode reduzir o escopo

das relações sociais à intencionalidade humana. Os animais citados, inseridos na

etnografia em múltiplas relações, são então reduzidos ao papel de objetos passivos.

Neste caso produz-se uma rede de causas culturais que restringem visivelmente o campo

de ação daqueles que, na própria etnografia interagem de formas múltiplas com o

ambiente e com a cultura humana e com humanos.

As precauções latourianas apontadas no início desta seção visam à produção de uma

descrição do gado – no caso deste capítulo – que não recorra nem às causas sociais nem

às causas naturais, ou biológicas. Tomando-as como princípios, é necessário evitar tanto

o movimento feito por Campos Filho, de explicar ‘cientificamente’ a explicação nativa,

quanto o de Banducci, o qual limita os não-humanos a repositórios de projeções

simbólicas dos agentes humanos.

Aponto esses dois movimentos não com uma intenção crítica, mas apenas para

identificá-los como interrupções no fluxo das narrativas. A leitura dos dois autores, no

meu entender, só tem a ganhar quando abdicamos deles, afinal os dois trabalhos

apresentam dados etnográficos ricos e intuições inovadoras a respeito dos temas com os

quais trabalham (dados inéditos, já que o território é praticamente inexplorado). Depois

de lê-los – e é este o ponto no qual queria chegar – o gado torna-se muito mais

interessante do que era antes; cheio de possibilidades, agenciamentos e sentidos novos,

como procurei enfatizar ao longo de todo este capítulo. Deixa de ser somente a

entediante matéria-prima cultural e industrial, ou o monolítico agente antrópico passivo,

para tornar-se em múltiplo, híbrido, ativo.

É neste o sentido que Campos Filho (2002) fala em uma cultura do gado (op.cit) na

passagem a seguir:

Assim, cada grupo bovino desenvolveu história em seu ‘lugar’,

apresentando comportamentos singulares de migração e utilização de

territórios, ambientes e alimentos nas várias ‘épocas do ano’, chamados de

‘jogo do gado’, repassados aos animais mais novos, o que permite dizer de

uma ‘cultura bovina pantaneira’ (Idem: 126)

Aqui o gado tem sua própria “cultura”, definida em termos de uma “utilização de

territórios, ambientes e alimentos”. A “cultura” estendida aos não-humanos ganha um

novo sentido. O gado e os cavalos ‘já estavam lá’ quando o Pantanal começou a ser

colonizado pelos fazendeiros, construindo ou fabricando ativamente o “lugar” ao

102

habitá-lo. Um Pantanal sem a presença desses animais é, portanto, tanto desconhecido

pelos pantaneiros quanto pela própria ciência, e a questão aqui seria então tratar a idéia

de que são “exóticos” como projeção ou idealização (por parte dos cientistas), e não a

idéia de que são “nativos”, como formulada pelo autor em referência aos pantaneiros.

Levando em consideração todo o esforço feito até aqui, o gado neste momento não

deve ser um bom exemplo para os processos de purificação científicos e sociais que

apontei nas duas fontes citadas. Outros animais são exemplares bem melhores. Uma

imagem que contrasta com esse caráter múltiplo do gado é a das onças no trabalho de

Campos Filho. Uma das causas da crise da pecuária pantaneira, de acordo o autor, foi o

processo de empobrecimento dos criadores regionais gerado pelas grandes enchentes de

1974 e 1995 (Idem). Quando relaciona os animais da região afetados por esses

acontecimentos, ele afirma:

“A onça pintada, conforme conhecimento local, não é prejudicada pelas

enchentes e, estando no topo da cadeia alimentar, se alimenta de todas as

espécies nativas e introduzidas, com tamanho e comportamento próprios à

predação. A proibição da caça também foi fator de aumento populacional,

já que seu único predador é o homem. Após a grande enchente de 1995,

passou a ser risco de extinção para muitas espécies nativas e, com as

pequenas populações destas, intensificou sua predação a animais

domésticos, o que tem trazido prejuízo adicional inadministrável. Como se

não bastasse isso, é ainda um grande risco à integridade humana,

comprovado por ataques a sedes de fazendas, turistas, empreiteiros e peões,

principalmente quando solitários”. (: 165-166)

Talvez esta seja representação mais negativa da onça que encontrei ao longo de toda

a pesquisa. Vale lembrar que o autor é também proprietário rural, o que possivelmente

acrescenta um sentido importante à declaração, na medida em que ele mesmo

experimenta esses prejuízos. É a partir de seu compromisso com a etnoconservação, no

entanto, que ele define sua posição, defendendo a manutenção e a recuperação da

pecuária tradicional pantaneira como uma forma de conservar ao mesmo tempo a cultura

e a biodiversidade locais:

“Pela ótica da conservação da natureza, é evidente que o sistema

tradicional vem mantendo nas propriedades uma biodiversidade maior do

que onde há transferência para proprietários ‘de fora’, com exceção de

103

alguns, dentre os empreendimentos turísticos, onde a conservação da

natureza é mantida”. (2002:168)

O bovino pantaneiro, ou Tucura é digamos, a espécie bandeira para esse modelo de

conservação. Ameaçado de desaparecimento por imposições externas, e por uma lógica

‘moderna’, ‘de mercado’, ele é um dos pilares que sustenta, em suas múltiplas relações

ambientais e culturais, aquilo que identificamos como uma tradição ou como uma

identidade local. A visão externa – no argumento de Campos Filho – rompe com o

sistema tradicional e desvaloriza o boi mais adaptado em função daquele que tem maior

valor de venda. Neste sentido, ele traz para o primeiro plano a conservação do bovino e

não a de outras espécies animais para os quais os esforços conservacionistas costumam

se voltar. Alguns animais são definitivamente excluídos dessa lista de prioridades:

“A população local tem interesse em controlar a atual superpopulação de

jacaré e onça, propondo seu Aproveitamento econômico como alternativa

suplementar à crise econômica da região”. (: 165)

Quero deixar claro que o autor fala da conservação da onça em um comentário

lateral, e esse não é um tema ao qual se dedica. Minha intenção aqui é contrastar a

imagem multifacetada que ele traça do gado – produtor de cultura e ao mesmo tempo

agente cultural, exótico e ao mesmo tempo nativo – com essa imagem fixa da onça. Ela

é definida unicamente como uma espécie daninha, uma ameaça para os moradores

locais e para os outros animais. Uma imagem, por sinal, que se encaixa perfeitamente

àquela com a qual os biólogos que trabalham diretamente com a onça definem o conflito

(como vimos, um importante tema conservacionista) regional.

Especificamente no que diz respeito à onça-pintada, a posição de Campos Filho

contrasta diretamente com os pontos de vista apresentados na seção anterior por

pesquisadores ligados à biologia da conservação. Não pretendo discutir profundamente

aqui o debate que está por trás dessas duas posições, apenas apontar esse contraste entre

elas como algo que evidencia um conflito entre dois códigos, ou modelos

preservacionistas: o que coloca a preservação da vida selvagem em primeiro plano, de

um lado; e de outro, aquele que situa em primeiro plano a preservação das tradições

culturais.

O debate em torno da conservação da onça, apresentado na seção anterior, é um bom

exemplo de como esses dois modelos não são excludentes, e como podem convergir em

diversos momentos. O modelo descrito no encontro, em termos gerais, é o que se

104

poderia chamar de um modelo de conservação participativa, que advoga o envolvimento

da população local nas iniciativas conservacionistas a partir da valorização de práticas

tradicionais. Contudo, ao colocar em primeiro plano a conservação da vida selvagem,

ele utiliza um ponto de partida diferente daquele esboçado aqui através da posição de

Campos Filho, que coloca em primeiro plano a conservação cultural. O que é

interessante é que ambos advogam a preservação do gado pantaneiro.

O antropólogo britânico John Knight (2000), ao analisar o tema do conflito

humanos-animais, diferencia o modelo clássico ambientalista do conservacionismo

profundo (deep ecology). De acordo com ele, o primeiro – para o qual foi cunhado o

termo sustentabilidade – é baseado no gerenciamento dos recursos naturais, enquanto o

último tem como finalidade a proteção da vida selvagem (“wilderness”) como um fim

em si mesmo, e não apenas como um recurso para as atividades humanas (Knight, 2000:

17). O autor afirma que essas duas correntes permeiam muitos temas ambientais, mas se

tornam especialmente evidentes nos debates em torno de espécies ameaçadas.

Knight mostra que este último modelo, o conservacionismo (principalmente em sua

versão norte-americana), é acusado por seus críticos de etnocentrismo, por ignorar o

conhecimento local e considerar o manejo da vida selvagem como um conhecimento

especializado acadêmico. Por outro lado, argumenta, o modelo participativo é acusado

muitas vezes por ecologistas e defensores da conservação da vida selvagem de

reproduzir o antropocentrismo clássico, colocando o interesse humano acima das

demais espécies. O autor observa ainda que a conservação participativa resgata a visão

utilitária do ambientalismo clássico, na medida em que, na maior parte das vezes, “[a]

lógica subjacente é a de que a vida selvagem será conservada pelas populações locais

na medida em que for útil para elas” (2000: 17).

No caso das etnografias sobre o Pantanal, a idéia de conflito ganha um sentido

propriamente local no trabalho de Banducci (Op.Cit) sobre os vaqueiros da

Nhecolândia. O antropólogo apresenta uma rica descrição etnográfica das atividades de

laçar, domar e cavalgar e caçar, onde animais como o gado, os cavalos e os cães

desempenham múltiplos papéis. Essas atividades são caracterizadas como processos de

enfrentamento de uma natureza selvagem que precisa ser continuamente capturada,

controlada e amansada. As relações de conflito, de acordo com o argumento, não se

restringem às espécies nocivas ou selvagens, mas regem a maior parte das interações

dos vaqueiros com os animais com os quais compartilham o espaço das fazendas.

105

Como vimos na seção sobre o bagual Banducci descreve o dualismo entre manso e

selvagem como um processo reversível, utilizando para isso os exemplos deste tipo de

gado, do porco-monteiro e também dos moradores que são capturadas por assombrações

e passam a viver no mato, como bichos. Ele aponta a dupla direção deste processo –

tornar-se manso e tornar-se selvagem – como elemento central da cultura pantaneira. O

argumento entrelaça uma série de ações e eventos da etnografia, e os animais citados

são investidos de múltiplos significados culturais.

O papel da onça nesta cultura, no entanto, é restrito apenas a poucas passagens da

etnografia, sendo definido a partir da idéia do enfrentamento com o selvagem como

valor cultural. O autor afirma:

“No Pantanal, a onça é a criatura que melhor realiza essa representação

‘pura, ‘extrema’, de selvageria. Existem inúmeros relatos que tratam da sua

força descomunal, de seus feitos extraordinários e assustadores, do poder e

do perigo inerentes à sua animalidade. Os indivíduos que conseguem

capturá-la são distinguidos entre seus pares por sua coragem e ousadia. A

onça (...) desperta o respeito e o temor do pantaneiro”. (2007: 125)

Nessa passagem, ela aparece como um tipo ideal cultural, dando continuidade ao

argumento anterior do autor sobre ‘tipos ideais’: o ‘tipo ideal’ do gado para a vaquejada,

o ‘tipo ideal’ do porco para a caça... Todos esses casos, no entanto, se situam no plano

etnografia, enquanto o exemplo da onça parece recorre a uma purificação (ela é, nas

palavras de Banducci, uma “representação pura”) que remete para fora do campo. [Um

‘tipo ideal’ de onça na caçada seria, entretanto, algo compatível com o caráter ‘êmico’

do restante do argumento, e pretendo voltar a esta idéia adiante]. O antropólogo

acrescenta, em nota:

“É importante salientar que o pantaneiro não caça a onça simplesmente em

função do significado simbólico que a classificação animal lhe confere. A

onça é uma espécie predadora. Ela ataca os rebanhos, mata bezerros e

novilhas; é um transtorno real para o criador. Desse modo, sempre que o

mundo é representado idealmente não se deve esquecer que ele também é

vivido, concretamente, e que as necessidades humanas básicas interferem

no pensar o mundo tanto quanto as categorias mais abstratas e

autônomas”. (Idem)

106

Banducci distingue, assim, um campo simbólico no qual a onça é um ícone para o

pantaneiro e um campo real (“vivido concretamente”) no qual a onça é uma espécie

daninha ou nociva. Se tomarmos essa dupla inscrição como uma posição marcada da

Antropologia, é interessante observar que ela é praticamente uma inversão simétrica de

formulações feitas a partir doponto de vista da Biologia da Conservação, os quais

colocam em primeiro plano o aspecto utilitário do conflito entre os vaqueiros e a espécie

daninha como problema para a Conservação, e os aspectos sócio-culturais aparecem em

segundo plano. Neste caso, a onça é descrita como uma espécie animal ameaçada pela

perseguição humana, e busca-se acesso, através do aparato técnico-científico, dos

fatores objetivos que causam o conflito entre carnívoros e humanos. A causa da

perseguição, no caso, é percepção pelos fazendeiros da onça como ameaça.

Se para os biólogos citados a onça pode ser representada empiricamente como

ameaçada ou como ameaça, para Bancucci, no trecho anterior, ela representa, antes de

tudo, um tipo ideal para um grupo social. No primeiro caso, ela seria um índice do

animal empírico em determinada relação ecológica (o conflito); no segundo, seria uma

metáfora para a experiência simbólica humana em determinada relação social. O ponto

de vista antropológico, neste exemplo, descreve a relação entre humanos e onças como

algo que tem uma causa cultural e um pano de fundo utilitário, sendo que cabe ao

analista estabelecer essa causa a partir dos fatos registrados na etnografia.

O ponto de vista ecológico, por outro lado, descreve a mesma relação como algo que

tem causas empíricas e um pano de fundo cultural, e cabe aos analistas identificarem

essas causas a partir das tecnologias de pesquisa. Nos dois casos, o rótulo ‘social’ ou

‘natural’ se aderem imediatamente a cada uma das relações descritas: Para os

ecologistas, as “práticas de manejo do rebanho” são sociais, enquanto a “abundância e

distribuição das presas naturais” são ecológicas; Por outro lado, para o antropólogo, a

“representação pura da selvageria” é social, enquanto o “mundo vivido concretamente”

pelo criador, onde “a onça é um transtorno real” é natural.

No momento em que a natureza é unificada, as culturas, no plural, passam a ser

filtros a partir dos quais se olha para ela, o que deve ser evitado a todo o custo quando o

que temos em vista é uma antropologia simétrica (Latour 1998). Ao abandonarmos a

oposição natureza-cultura, deixaremos de falar em uma onça ‘real’ e em vários pontos

de vista sobre ela e passaremos a falar em onças, no plural, a cada vez que

introduzirmos um ponto e vista.

107

O método descritivo de Latour é uma alternativa para a cristalização dos dados

científicos em caixas-pretas – os “matter of fact” da ciência – criadas pela idéia de que

a prática científica tem um acesso privilegiado ao real, e propõe tratá-los da mesma

forma como os cientistas tratam os “facts in the making”. Simetricamente, busca evitar

a formulação de ‘fenômenos sociais’ como explicação das ações e das associações entre

os atores, por trás do que está sendo descrito. [o “fantasma do Social”] O campo (o

field site biológico ou antropológico) é, de acordo com a definição do autor, o lugar

onde os elementos estão misturados, onde é impossível dissociar os processos

ecológicos dos processos culturais sem a introdução de um observador ausente

vinculado ao aparato realista clássico da ciência (a câmera oscura do renascimento, as

coordenadas cartesianas).

A proposta deste trabalho é descrever as práticas de campo sem fazer essa distinção

prévia. Porém, muitas vezes isso simplesmente não basta, e é preciso um esforço

adicional no sentido de desfazer aquelas distinções que já estão, de alguma forma,

estabelecidas. O gado, no presente caso, por exemplo, é um agente na formação da

paisagem e das relações ecológicas, tanto quanto é um agente na formação da paisagem

cultural e das relações sociais. A interseção entre o vocabulário da ecologia e o das

ciências sociais, no entanto, pode produz uma série de quimeras, como no exemplo de

Campos Filho (2002: op. cit), em que o autor é obrigado a falar em “espécies

naturalizadas pela cultura”. Com o dualismo colocado de antemão, precisaremos

sempre decidir em qual dos lados colocaremos cada um dos atores, ou explicar em qual

lado os outros os colocam.

A idéia de uma “cultura bovina”, formulado por Campos Filho para designar as

relações ecológicas em jogo no Pantanal, não restringe o papel do gado apenas ao

paradigma da produção, nem tampouco ao da seleção natural. Ele descreve a

pecuária pantaneira tradicional a partir de um jogo no qual o gado desempenha

um papel que não é circunscrito pelo controle humano:

Dizem as fontes orais sobre o gado que ‘eles mesmos cuidavam deles’. (...)

Assim, cada grupo bovino desenvolveu história em seu ‘lugar’,

apresentando comportamentos singulares de migração e utilização de

territórios, ambientes e alimentos nas várias ‘épocas do ano’, chamados de

‘jogo do gado’, repassados aos animais mais novos, o que permite dizer de

uma ‘cultura bovina pantaneira’ (: 126)

108

No trecho acima, o “jogo do gado” é formulado ao mesmo tempo como uma

“utilização dos ambientes” por parte do gado e aquilo que os vaqueiros aprendem a

reconhecer para jogar; ou seja, trata de interações ao mesmo tempo ecológicas e

culturais. Ao fazer essa operação, o autor coloca o gado como um agente, produtor de

cultura, e não apenas como uma matéria-prima ou um símbolo para uma cultura

humana. Esse sentido da “cultura bovina” resulta de uma associação ecológica entre os

humanos e os bovinos, sendo que esses últimos, ao habitar o lugar, também constroem

ou reproduzem a paisagem e o espaço reconhecido pelos primeiros.

Tim Ingold (1989) critica simultaneamente o relativismo cultural e o

determinismo biológico contrapondo a noção clássica de sociedade da antropologia

social ao conceito de sociedade formulado no âmbito da ecologia. Enquanto o primeiro

remete ao sistema de regras ou ambiente das instituições sociais, dos costumes e

projeções simbólicas de um determinado grupo cultural, o segundo remete a um sub-

campo da ecologia, que estuda a interatividade entre organismos da mesma espécie ou a

constituição do componente intra-específico do ambiente. Ingold critica os modelos

deterministas da biologia evolutiva por abordarem a vida orgânica como pura

conseqüência: introdução de uma “forma a-priori em um substrato material”, o que

leva a uma visão do mundo natural como um processo a-histórico, externo à civilização

humana.

Da mesma forma, a cultura entendida especificamente como projeto ou

produção de um ambiente humano – artificial, simbólico, tecnológico – implica na

existência de um material bruto, um substrato natural, ao qual corresponde um

determinado modo de concepção do animal. Como aponta Ingold, (1994), o animal, no

singular genérico, se refere a uma ausência daquilo que se convenciona como sendo a

singularidade humana: inteligência, sentimento, consciência de si e da morte,

linguagem. Nesse sentido, a noção de biodiversidade da ecologia contém uma crítica ao

antropocentrismo, ao pensar a animalidade (incluindo a espécie humana) a partir da

ecologia em termos de uma pluralidade que não se deixa reunir em um conceito único,

oposto ao de humano.

Ingold utiliza as idéias do zoólogo Jacob Von Uexkull, um dos fundadores da

ecologia, para pensar a relação organismo e ambiente como interdependência: a noção

de “ambiente próprio” é formulada pelo zoólogo como aquilo que o organismo projeta

pela percepção, através dos órgãos sensoriais próprios de determinada espécie. A noção

de ambiente, neste caso, não projeta essências, mas antes se refere a um conjunto de

109

dispositivos acionado pelo organismo sensível. No sentido de Uexkull, um organismo

natural não se relaciona uma natureza única, mas sempre com um determinado ambiente

de possibilidades; o ambiente é o conjunto de disposições que o organismo oferece ou

projeta sobre aquilo que percebe.

Agambem (2002) também se refere ao trabalho de Uexkull sobre os ambientes

animais, desenvolvido na década de 1930, como abandono da perspectiva

antropocêntrica: “Onde a ciência clássica via um mundo único, (...) Uexkull supõe uma

variedade infinita de mundos percebidos”(: 40). Esses mundos percebidos são descritos

pelo zoólogo como carregadores de significado, ou marcas, projetados pelo organismo

perceptivo; a tarefa do cientista, neste caso é reconhecer essas marcas no ambiente

humano, sendo que o exemplo canônico de Uexkull, que trabalhava com invertebrados,

é o do carrapato. Agambem relaciona-o historicamente ao surgimento da física quântica

e da fenomenologia. Ele afirma:

“[I]maginamos que a relação que um determinado sujeito animal possui

com as coisas de seu ambiente acontece no mesmo no mesmo espaço e no

mesmo tempo que aquelas que nos conectam aos objetos em nosso mundo

humano. Essa ilusão provém da crença em um mundo único no qual todos

os seres vivos estão situados” (2002: 40)

De acordo com Evans-Pritchard (1940), “cherchez la vache(e.m) é o melhor

conselho que pode ser dado àqueles que desejam compreender o comportamento nuer.

(2005 [1940]: 23). Em sua etnografia clássica sobre este povo de pastores da África

Oriental,afirma:

“Os Nuer e seu rebanho formam uma comunidade corporativa com

interesses solidários, a cujo serviço as vidas de ambos estão ajustadas

(...)”. (: 50)

E descreve a relação de interdependência entre os vaqueiros africanos e o gado como

uma simbiose:

“Já foi observado que os Nuer poderiam ser chamados de parasitas da

vaca, mas pode-se dizer igualmente que a vaca é um parasita dos Nuer,

cujas vidas são gastas em garantir o bem estar delas. Eles constroem

estábulos, alimentam fogueiras, (...) desafiam animais selvagens para

110

protegê-la11. Nesse íntimo relacionamento simbiótico, homens e animais

formam uma única comunidade”. (: 45)

As afirmações podem ser tomadas como ponto de partida para uma reflexão sobre a

comunidade formada pelos vaqueiros do pantanal e seus rebanhos, guardadas as

diferenças culturais 12. Essa reflexão passa por uma diferenciação entre o gado

produzido para fora da fazenda – o gado de corte – e aquele que é abatido dentro da

fazenda, uma produção em escala industrialdirigida para fora da fazenda e uma

produção interna, em pequena escala, voltada para as necessidades das pequenas

comunidades rurais residentes. A alimentação da fazenda é feita com vacas que não

produzem mais bezerros (as chamadas matulas), enquanto a produção de gado de corte

é composta principalmente de garrotes. O gado de corte, no entanto, étratado de

umaforma completamente diferente das vacas leiteiras e bois sinuelos, animais mansos

que recebem nomes e com os quais os pantaneiros estabelecem vínculos.

Talvez mais até do que a em relação ao gado, a associação entre os pantaneiros e

seus cavalos revelam unidades formadas por homem e animal. Cavalos e cães são

animais de trabalho envolvidos em relações de aliança e de identificação nas fazendas, e

da mesma forma como um cavalo pode valer um caminhão de novilhas numa

vaquejada, um bom cão onceiro pode valer muitas cabeças de gado. A relação com

esses animais envolve uma subordinação pela força, mas ao mesmo tempo o prestígio

do vaqueiro ou do caçador associado diretamente a qualidade da sua montaria ou dos

seus cães. A comunidade pantaneira, no sentido usado por Evans-Pritchard, além de

humanos e gado, é composta por cavalos e cães.

De acordo com Campos Filho (2002), a pecuária tradicional pantaneira tende a

aumentar a biodiversidade, enquanto a ausência do gado significa um processo de

descaracterização da paisagem, em que o campo se torna sujo, categoria que diferencia-

se tanto do campo aberto (pastagens) quanto dos capões e cordilheiras (florestas). A

pecuária tradicional revela agenciamentos heterogêneos do gado: bagual, visonho,

11 O antropólogo observa, a esse respeito, que ataques de predadores ao rebanho são associados pelos

Nuer à faltas anteriores cometidas pelo dono do gado. 12 Vale lembrar que, embora o gado tenha muitos usos para os Nuer, ele é útil principalmente pelo

leite que fornece. Além disso, tal como em outros povos pastoris da África Oriental, o sangue do gado é extraído eusado como suplemento na alimentação. O abate de animais para o consumo de carne, contudo, se restringe a ocasiões rituais. Nesse sentido, é possível contrastar o sistema nuer ao pantaneiro, este último orientado por pelo modo de produção capitalista, a escala industrial do rebanho e a ênfase na carne como principal produto da pecuária local.

111

leiteiro, guaxo, e uma série de categorias que designam uma interação complexa. O

gado branco, em contraste com o gado pantaneiro, pode ser tomado como exemplo de

uma relação de produção industrial, de uma série de práticas que em toda parte substitui

os antigos costumes e tornam o ambiente homogêneo, antropomorfizado.

A ação do gado sobre o ambiente pantaneiro, por outro lado, é transformadora,

mantém a paisagem tal qual ela é conhecida e valorizada pelos moradores locais; a

pastagem contínua do gado limpa o campo e abre as trilhas por onde os vaqueiros

circulam.O gado brancoexemplifica a idéia do animal como recurso, matéria-prima para

a empresa humana, enquanto o gado pantaneiro revela outros agenciamentos, aponta

para a idéia de um jogo complexo entre organismos e ambientes. O contraste entre os

dois evidencia uma distinção entre sistemas complexos e caóticos – criativos,

dinâmicos, imprevisíveis – e sistemas lineares comportamento previsível e determinista.

Banducci (2007) observa, a respeito das transformações em curso no Pantanal, que a

cultura local se transforma sem necessariamente perder suas características, sendo que a

formulação de uma auto-definição “pantaneira” absorve uma série de mudanças nas

fazendas ligadas ao mundo moderno e as relações capitalistas. Ele argumenta que não

necessariamente a ausência do gado bagual e a mudança na genética bovina implicam

em diluição e desaparecimento da tradição.

O meu próprio trabalho de campo foi baseado em fazendas não tradicionais. Nas

duas fazendas onde pude observar mais de perto as práticas dos vaqueiros, a

predominância do gado branco era notável, e o manejo era intensivo e voltado para a

produtividade. No entanto, esse manejo era feito também por pantaneiros, que se

reconheciam como tais, que mantinham e valorizavam a montaria, o curtume e a prática

do laço, e que tinham seu trabalho valorizado pela habilidade nessas práticas

tradicionais.

O manejo intensivo dentro do mangueiro, em episódios de vacinação e contagem

dos animais, são aspectos da relação produtiva, são momento nos quais o gado é tratado

como coisa, objeto, rebanho indiferenciado. Ao mesmo tempo, a lida com os animais no

campo é atravessada pela diferenciação, pelos indivíduos excepcionais, brabos, que

varam cerca, escapam do rebanho, pelos cavalos difíceis de domar, pelas reses

reivindicadas pelas onças, pelas enchentes e pelas cobras.

O gado, ao longo deste capítulo, demonstrou ser – assim espero – um agente

simétrico, no sentido em que age sempre, digamos, nos dois pólos da oposição. Esse

agenciamento natural-cultural, no entanto, não deve ficar restrito só a ele, mas, ao

112

contrário, estendido aos outros não-humanos com os quais o gado se articula em uma

rede exemplificada visualmente pela Seqüência 1, incluindo cães, onças e coleiras de

rádio.

2.9. Cores e sinais: associações não predatórias entre gado e onças

Por fim, quero apresentar duas proposições relacionadas ao gado que pretendo

tomar, adiante, como elementos para uma classificação das onças. A primeira delas diz

respeito ao cromatismo como elemento central na nomeação e na descrição dos animais

por parte dos vaqueiros: O início deste capítulo descreve de que modo a lida do gado se

baseia em uma série de códigos visuais a partir dos quais os animais são classificados,

selecionados e manejados pelos vaqueiros. As formas do corpo, dos chifres, e as cores

são elementos que fazem parte de uma individualização, uma espécie de nomeação que

é ao mesmo tempo uma descrição sucinta de cada animal.

Como relatei ainda na primeira seção deste capítulo, durante o trabalho de campo

solicitei várias vezes aos vaqueiros que identificassem as cores de cavalos (e mulas) e

também do gado. A partir das anotações feitas nessas ocasiões, preparei uma listagem

dessas cores e de suas respectivas descrições baseada num certo consenso entre diversas

citações.

Apresento em seguida alguns termos usados pelos entrevistados para designar cores

de cavalos e do gado. A lista é bastante provisória, e o papel do cromatismo do gado no

vocabulário pantaneiro mereceria uma investigação mais aprofundada. A intenção na

tabela é mostrar o caráter predominante da visualidade e do cromatismo nas duas séries,

que aproximo a seguir de algumas designações das onças:

Cavalos Tordilho Branco Tordilho Perdez Branco salpicado de pintas pretas Ruano Mais claro que o baio Baio amarelado; ocre Pampa Malhado de branco e preto ou vermelho Saíno Vermelho mais escuro Lazão Vermelho mais claro Mouro Marrom escuro Rosilho Marrom salpicado de branco

113

Vacas Branca Brasina Baio com escuro Fumaça Branco com partes cinza ou escuras Lobuna Amarelado bem escuro Vinagre Vermelho bem escuro com preto Tostada Onças Malha larga Mais amarela; rabo comprido Malha miúda Canguçu Cabeça grande Suçuarana Lombo preto Escura no lombo Pata rajada Parda Palha ou amarela Lombo vermelho O cromatismo do gado possui uma série de referências importantes na literatura

antropológica. Lienhardt, por exemplo, em seu célebre trabalho sobre os Dinka, afirma

que “Praticamente todo o extenso vocabulário de cromático dos Dinka é de cores de

gado” (Lienhardt 1961: 37)13. No caso pantaneiro, vimos que esta classificação

cromática se refere a uma primeira camada, sobre a qual se inscrevem as marcas usadas

no manejo do rebanho, a escrita do gado. A primeira função da marcação é a definição

da propriedade: a marca da fazenda, feita a ferro, diz a quem pertence o animal. A partir

daí, é possível distinguir os animais mansos (domesticados) como marcados e os

animais selvagens como não marcados, o que fica claro no exemplo do gado bagual.

Também procurei mostrar que a bagualhação é uma espécie de simplificação da lida a

seus mínimos fundamentos, e essa mesma linguagem é usada na caçada tradicional dos

porcos monteiros.

Mas este código minimalista do manejo tem ainda um possível desdobramento em

relação às onças, que apresento como uma segunda proposição. Ele está presente, por

exemplo, nos seguintes comentários:

É pouca gente que aceita. Aqui do lado, na fazenda vizinha, com projeto e tudo,

o cara já falou que se comer a vaca dele ele mata, não quer saber se a onça tem

colar, se não tem. (...)

13“Almost the whole extensive colour vocabulary of the Dinka is one of cattle-colours”. G. Lienhardt,

Divinity and Experience: the Religion of the Dinka. Oxford: Clarendon Press, 1961

114

O pacto entre os fazendeiros locais é não atirar nas onças de colar. (...)

Dizem que teve onça de colar que foi morta numa fazenda vizinha, porque o

capataz que tomava não concordou com o pagamento pelo gado dele. (...)

Tem um cara lá em Miranda que diz que ele já atirou numa onça de colar; não

sei se é verdade...

O que pretendo indicar com os exemplos é que as práticas de pesquisa científica na

região, com a utilização da telemetria, introduziram sistemas de rastreamento e controle

reconhecidos como tais e incorporados pelos vaqueiros em sua própria lida e na relação

com outros atores regionais. Nas declarações acima, provenientes de gravações feitas

durante o trabalho de campo, o colar parece adquirir um sentido local a partir do manejo

do gado: ele é o elemento visual que marca as onças do projeto. A onça de colar, nesse

sentido, é percebida como um animal ‘que tem dono’; ela é identificada visualmente

como pertencente a alguém. O código binário da lida, com sua distinção básica entre

marcado e não marcado, é estendido, neste sentido, às onças.

115

ANEXO C – Imagens Capítulo 2

Os campeiros da São Bento capturam, vacinam, tatuam, e colocam os brincos com a

numeração nos bezerros. No alto, o capatas Seu Ormir. Abaixo, ao centro, o encarregado

Paulo, responsável pelas notas.

Fazenda São Bento, outubro de 2008

Acima, a fabricação artesanal do laço, trançad

couro curtido. Abaixo, competição no Clube do Laço, em Miranda.

São Bento, outubro de 2008

Acima, a fabricação artesanal do laço, trançado com quatro tiras previamente cortadas do

couro curtido. Abaixo, competição no Clube do Laço, em Miranda.

116

com quatro tiras previamente cortadas do

117

Fazenda São Bento, outubro de 2008

A linguagem da fazenda. Marcações e inscrições no gado e no cavalo.

118

Abril de 2008

Etapas da carneação de duas matulas para o consumo interno da fazenda.

119

Fazenda São Bento, outubro de 2008

Acima; John Erbert, filho de um dos Campeiros; no centro, Jiló, Paulo, Ramon e

John Erbert no açougue; abaixo, o pessoal do retiro na São Bento (o autor é o segundo

da esquerda para direita).

120

Capítulo 3 –Tradição de caça

Introdução

A fotografia da onça com o bezerro predado aos seus pés pode adquirir diversos

significados, de acordo com quem olha para ela. A proposta deste capítulo é tomá-la

como a cena de um crime, como índice de uma tradição regional onde o predador é

encarado como um animal daninho, que deve ser eliminado.

A imagem pode produzir uma série de questões necessárias para mapear o seu

processo de produção, tais como as perguntas por quem colocou a coleira na onça, como

e para que. Essas questões, assim como a coleira de rádio em si, ela mesma um

dispositivo da pesquisa científica que estuda as onças, serão temas do capítulo 5. O

modo como a onça foi capturada remete diretamente a outros atores ‘invisíveis’ na

captura: os cães de caça. Antes de prosseguir são necessárias algumas considerações em

relação ao papel deles neste capítulo. São os cães que conduzem os humanos – tanto

caçadores quanto biólogos – até as onças.

O tema da caça, no que diz respeito às práticas atuais, é difícil de ser abordado, na

medida em que as espécies nativas da fauna silvestre são protegidas por lei, e a prática é

proibida ou restrita na maior parte das fazendas da área de estudo. Isso pode influenciar

diretamente uma pesquisa envolvendo a utilização de questionários, por exemplo, como

será tematizadono capítulo 5.

A legislação caça é regulamentada no Brasil desde 1967, quando foi

declarada proibida para qualquer espécie da fauna silvestre nativa

(Lourival 1997; Silveira et al. 2008). A Lei vigente foi modificada pela

última vez em 1998, estabelecendo “detenção de 6 meses a um ano e multa”

para crimes contra a fauna. A pena é dirigida a quem “[m]atar, perseguir,

caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota

migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade

competente” (Art. 29).

O Artigo 37 da mesma Lei, no entanto, afirma:

“Não é crime o abate de animal, quando realizado (...) em estado de

necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família; para proteger

121

lavouras, pomares e rebanhos da ação predatória ou destruidora de

animais, desde que legal e expressamente autorizado pela autoridade

competente; por ser nocivo o animal, desde que assim caracterizado pelo

órgão competente”. (Lei Nº 9605-12/03/1998).

Reinaldo Lourival, em estudo sobre a sustentabilidade do modelo de caça tradicional

no Pantanal da Nhecolândia (publicado um ano antes das mudanças na legislação

referida acima), afirma:

“A legislação referente ao tema não encontra ressonância nas realidades

regionais (...) Buscamos demonstrar que, no caso estudado, a atividade de

caça tradicional não deve ser proibida, mas sim compreendida, de modo a

gerar recomendações para a região pantaneira. Esta análise poderá

subsidiar uma revisão da legislação, conceitos e normas, de modo a

adequar as necessidades de conservação às realidades sócio-econômicas

locais”. (Lourival 1997: 123-124)

O autor estuda comparativamente as quantidades de animais domésticos e de

animais silvestres consumidos em fazendas da região, assim como o cálculo de

densidade das espécies desses últimos, e aponta o porco-monteiro como o animal de

preferência na caça de subsistência local:

“No processo de caça de subsistência, o habitante local é dependente dos

porcos tanto como fonte de gordura para a culinária como forma de variar

a dieta, que se baseia no consumo de carne bovina fresca ou salgada”.

(1997:157)

A partir da característica seletiva da caça, o autor considera que o modelo tradicional

da caça na região é ecologicamente sustentável. Ele afirma:

“A popularidade do porco-monteiro como espécie prioritária na caça

tradicional tem um componente extremamente positivo no que tange à

conservação do restante da fauna cinegética da Nhecolândia. É seguro

afirmar que se esta espécie não tivesse se estabelecido na região,

certamente ocorreria uma pressão de caça adicional sobre todas as outras

espécies com potencial cinegético”. (: 157)

Porém faz, o autor a seguinte ressalva:

122

“Com relação às espécies daninhas, as análises devem ser interpretadas

com cuidado. As onças-pintadas já foram praticamente eliminadas da

região. As pardas, por sua vez, sofrem perseguição (...) freqüente no

Pantanal”. (: 162)

Analisando a situação atual, a efetividade da legislação e as propostas existentes

para o manejo da predação no país especificamente para o caso da onça-pintada, Siveira

e outros (2008) abordam o aspecto político da conservação:

"Licenças para eliminar animais daninhos só podem ser dada por uma

autoridade competente não especificada. (...) Não há nenhuma autorização

oficial ou estatísticas do governo sobre o manejo de predadores no país".14

(: 30)

O capítulo é dividido em três partes. A primeiraparte de duas entrevistas feitas com

fazendeiros e do registro da minha visita ao Seu Inácio, um caçador de onças que havia

se mudado recentemente área de estudo de campo na região do Abobral. A segunda

parte remete a uma historiografia da caçada de onça no pantanal e se baseia em quatro

fontes literárias: Tony Almeida (1976), Sasha Siemel (1953), Pereira da Cunha (1922) e

Theodore Roosevelt (1914). O tema principal a ser abordado neste capítulo é a caçada

tradicional. A conclusão exercita uma aproximação entre o material coletado no campo

e os registros literários de caçadas abordados ao longo do capítulo.

3.1. Onças e fazendeiros

Ao longo da pesquisa de campo, tanto na região do Abobral quanto na região do

Miranda, fiz algumas visitas a propriedades localizadas no entorno das duas fazendas

que serviram de base para o estudo, ambas sedes de projetos de conservação de onças-

pintadas. A prática tradicional de eliminação dos felinos com a utilização de cães

onceiros foi mencionada em entrevistas feitas em quatro fazendas visitadas durante o

período do estudo, de um total de dez15. Um exemplo é a entrevista de um proprietário

rural transcrita a seguir:

14 Tradução Minha: Permits to eliminate such pests can only be given by a not specified “competent authority”. (…) There is no official authorization or government statistics of predator management in the contry.

15Isso não é de um resultado significativo em termos estatísticos para as regiões de estudo, na medida

123

F: E qual você diria que é a importância da onça aqui pro pantaneiro? Tem alguma

importância cultural?

Para falar como pecuarista, se ela não existisse pra mim era muito melhor.

Só que a gente sabe que ela faz parte de uma cadeia alimentar, que ela

preda os outros animais e por isso ela está fazendo o controle. Ela por si

fazendo o controle da população desses outros animais. Mas não tem nada

que mata ela, certo? Só o homem que mata ela.

F: E o que é que a onça mais come aqui na região? Você acha que é mais o gado

mesmo ou mais outros bichos? Ou depende da onça?

Depende. Que nem agora está na minha fazenda: a gente anda no campo,

vê muita batida de onça, só que ela não está comendo o gado. Não está

mexendo; ou se está, é mito pouco, porque a gente não chega nem a

perceber. Então, essa onça não me atrapalha, eu não vou atrás dela, e não

me incomodo com ela. Se ela ficar no meu campo o resto da vida sem me

atrapalhar dessa forma. Pode até comer um pouquinho, não tem problema

nenhum. Agora, existem umas que são daninhas mesmo. Dizem – isso é

palavra dos antigos – que quando a onça vicia em comer bezerro, você tem

que eliminar ela porque se não você vai afundar.

F: E vocês fazem um controle?

Só quando ela atrapalha. Quando num determinado local está tendo direto

carniça, você está vendo que ela está atacando, aí você procura ir atrás

dela.

F: Em relação ao risco para o homem, você acha que a onça é uma ameaça?

Eu acho. Inclusive, há um tempo atrás eu tinha uma perto da fazenda que

andou dando carreira em peão meu. Tem umas que se tornam perigosas. E

a gente houve relatos todo dia por aí de onça pegando gente, então a gente

fica com medo. Nesse ano foram vários que a gente viu só no jornal. Não é

um bicho muito amistoso não.

F: E em relação à caçada de onça, na sua opinião, a legislação deveria manter a

proibição ou deveria permitir em alguns casos?

em que trabalhei em áreas de influência de projetos conservacionistas e áreas turísticas.

124

Eu acho o seguinte: Do jeito que é a legislação, proíbe mas não proíbe,

porque não há uma fiscalização. Você pega o meu exemplo. A minha

família está na região há cinqüenta anos. A gente faz o controle há

cinqüenta anos. E há cinqüenta anos está se falando que o bicho vai

acabar. Só que no nosso caso ela só tem aumentado. Então, quer dizer, o

que a gente está fazendo? Como ela não tem nenhum predador natural aí, a

gente acaba fazendo um controle, eliminando as que estão atrapalhando.

Então, a gente está fazendo um papel também fundamental pro negócio

continuar sendo viável.

Porque a gente está aqui no Pantanal. Nós preservamos o Pantanal. Se

você pegar a minha fazenda, há muito tempo ela é do mesmo jeito; quer

dizer, tem animais, tem o gado. E eu preciso tirar dinheiro dela. Eu vivo

daí, certo? Então, a única saída que eu tenho é eliminando os indivíduos

que tão me dando prejuízo econômico. Eu estou te falando isso: está

trilhado de onça no meu campo. Só que elas não estão me atrapalhando.

Então, deixa elas viverem lá! Eu não estou me incomodando com elas. Não

está tendo problema nenhum.16

A caçada de onça é definida em termos de um controle necessário para a

manutenção do negócio. Em contraste, apresento a seguir um caso em que a atividade

do ecoturismo redefine o papel da onça dentro de uma propriedade pantaneira. No final

do meu trabalho de campo, em dezembro de 2008, visitei a Fazenda Xaraés, uma

propriedade vizinha da São Bentoque trabalhava com ecoturismo, e era a principal

parceira do Projeto Onça Pantaneira na região do Pantanal do Abobral. Entrevistei na

ocasião o dono da fazenda, João Celestino Ramos, nascido em 1972 no Alentejo, em

Portugal. Ele estava no Pantanal desde 2002, quando adquiriu a Fazenda Nossa Senhora

do Carmo, onde residia, e se definiu como um pecuarista que se tornou hoteleiro.

O fazendeiro relatou que começou a trabalhar com turismo em 2004, quando

comprou a Xaraés. Afirma que é um turismo caro, feito sem nenhum incentivo do

governo, e que "tem pago as contas", mas considera um investimento a longo prazo

(87% dos visitantes da pousada são estrangeiros, na maioria europeus). O proprietário

também reiterou que o projeto turísticoera interessante para a população pantaneira,

como alternativa de emprego, já que a mão-de-obra era toda local.Para ilustrar esse

16Neste caso, por motivos evidentes, preservo a identidade do entrevistado, assim como a localização da fazenda.

125

ponto, mostrou que aXaraés, com uma área de 380 hectares, emprega 14 funcionários,

entre guias, cozinheiros, copeiros e outros funcionários, enquanto aNossa Senhora do

Carmo, uma fazenda de gado de 4 mil hectares, e emprega apenas 4 funcionários fixos:

o capataz, dois peões e uma cozinheira.

A quantidade de cabeças na fazenda de gado girava em torno de duas mil, e a

fazenda trabalha com cria, recria e engorde, utilizando somente o capim nativo. Em

relação às perdas anuais de gado, a média total era de 5% do rebanho, sendo 1,5% para

a onça (30 cabeças) e o resto causado por outras causas, como picadas de cobra,

problemas com cercas e doenças.

João Ramos comentou que a chegada do projeto de pesquisa na São Bento, de início,

não foi muito bem recebida pelos outros vizinhos e pelos vaqueiros da região, mas que a

postura dos biólogos, baseada no diálogo, aos poucos estava mudando esta situação.

Apontou, nesse sentido, a atitude de ecologistas radicais, que querem "ensinar" os

pantaneiros e dizê-los como agir, como fonte de uma série de conflitos regionais. “O

Pantanal é um lugar ativo economicamente” – disseo proprietário. “Muita gente não

sabe disso. Existem os ecologistas radicais que querem tirar as pessoas da área e

deixar só a vida selvagem”.

Afirmou ainda que a chegada do projeto havia inibido a atividade de caça na região,

apesar de ser algo que ainda acontecia em muitas fazendas. Em relação à caçada de

onça, considerou que existe uma tolerância entre os fazendeiros tradicionais, que, de

acordo com ele, eliminam as onças quando apenas quando identificam um animal que

está causando prejuízos. Por outro lado, observou que eram comuns também na região

caçadas comerciais.Sobre esse tipo de prática, afirmou que clientes, caçadores, cães e

armas eram trazidos em aviões particulares, e relatou casos em que os primeiros

chegavam a pagar 25 mil dólares para abater uma onça.

Em fazendas que estão em dificuldades financeiras, observou que isso muitas vezes

se torna uma alternativa econômica para os proprietários. Neste caso, no entanto,

ressaltou que são contratados caçadores profissionais, que diferenciou dos caçadores

tradicionais, vaqueiros especializados na criação de cães. Estes últimos, de acordo o

fazendeiro, fazem parte de uma tradição que tende a preservar o meio ambiente, e que

mantém um equilíbrio entre os vaqueiros e onças.

126

3.2. Seu Inácio

Ouvi falar de Seu Inácio17 pela primeira vezlogo que cheguei naFazenda São Bento.

Ele trabalhava como capataz de uma fazenda vizinha, e era procurado pelos fazendeiros

da região para eliminar as onças que estivessem atacando o gado. No entanto, ninguém

na fazenda sabia como encontrar o caçador, e a única informação que consegui foi o

nome do patrão dele, dono de uma fazenda vizinha, um grande fazendeiro de Corumbá.

No segundo período da pesquisa, em outubro de 2008, recebi a notícia de um dos

funcionários da fazenda: “Os ventos estão soprando a seu favor: Seu Inácio está aí,

acompanhando uma negociação de terras”. Encontrei-o na hora do almoço, no retiro. O

caçador era um velho pantaneiro muito simpático, e ao final da conversapedi para fazer

uma entrevista rápida com ele usando um gravador portátil (receando não ter uma nova

chance), que transcrevo abaixo:

F: E desde novo o senhor mora aqui na região?

Aqui, eu conheço tudinho. Eu nasci e criei aqui nessa zona, no Abobral.

F: E como foi que o senhor aprendeu a mexer com onça?

Com meu pai e o meu avô da parte do meu pai. Meu avô pegava onça na

zagaia. Nesse tempo não existia essas armas que tem agora. Era zagaia,

chumbeira que carregava, e vinte e dois de um tiro. Eu ajudava meu avô.

Ele mandava fazer picada pra ir lá na onça eeu fazia, com facão. Aí na

hora que a onça vinha nele ele punha a zagaia nela, matava.

F: Mas o senhor chegou a ver ele matando na zagaia?Como é que é? O cara fica

esperando?

É.Ela vem. Quando ela vem, que ela levanta, aí você põe a zagaia. Quando

ela pega a zagaia, o senhor ajuda a empurrar. Aí ela cai no chão, mas tem

que pular também, pra segurar ela no chão. Porque ela quer pegar a zagaia

com o pé de trás. Se ela pegar, ela manda o senhor com tudo no chão.

Bicho é danado.

17Neste caso, optei por utilizar um nome fictício para preservar a identidade do caçador, assim como daqueles diretamente ligados a ele.

127

Estavam presentes na gravação da entrevista Seu Ormir, capataz da São Bento, e

outros dois homens que acompanhavam Seu Inácio – um senhor que pilotava o avião,

que também tinha experiência com caçadas, e o jovem administrador de uma fazenda

vizinha, que negociava terras com o proprietário da São Bento. No trecho a seguir todos

eles participam da conversa:

F: E tem gente hoje em dia que pega na zagaia ainda? O senhor já chegou a pegar?

Seu Inácio: Se querem que eu pego, eu tenho coragem de pegar ele. Porque

eu já lacei uma onça, a cavalo, lacei com o laço. Fui correndo no cavalo,

cruzei, e lacei. Peguei no pescoço dela. Ela pegou o laço e queria por na

boca pra cortar, mas eu puxei. Ela saiu arrastando o negócio. Aí chegaram

mais companheiros e mataram ela, mas ela cortou o laço de uma vez. Lacei

ela no pescoço...

Seu Ormir: Se desse pra rodar um pau, uma forquilha... Uma rapaz aqui na

Bodoquena, o Benedito, laçou na mão a onça. E ela zangando, brigando,

brigando, brigando, aí o outro companheiro nosso apeou, foi lá, deu um

tiro de pertinho, de dois metros nela. Eu não ia não, eu não tinha essa

coragem. E se tora esse laço? E o cara que atirou trabalhou comigo.

Chamava Ataíde, Ataidão. Eu falei: mas e aí, Seu Ataíde, o senhor não ficou

com medo? Ele falou que não, que na hora ele não pensou. Ele não pensou,

porque se o laço tora...

Piloto do avião: Também laçou uma aquele peão que trabalhou aqui, o

Nico. Montando numa égua. Acharam três comendo um boi, bem aí do lado,

perto da São Bento. E tinha água, um pouquinho de água já. Uma entrou no

Pirizeiro, outra foi embora, e outra o Nico laçou, laçou meia espada18. Mas

tava sem revólver e enfiou a faca. Apeou do cavalo. Ela não tem força, eu

acho, pra arrebentar o laço, e nem peso, masse ela colocar na boca e

morder, aí ela pode cortar.

Eu estava surpreso com a boa vontade de todos em falar sobre o tema da caçada de

onça (muitas vezes um tabu sobre o qual ninguém gosta de comentar, por causa da

proibição), e principalmente com a abertura de Seu Inácio, que não demonstrava

nenhum pudor ao falar das onças abatidas recentemente19. Peguei na ocasião o telefone

18Termo usado em concursos e vaquejadas para designar um tipo de laçada. 19Em três encontros anteriores com caçadores, nas cidades de Miranda-MS e Poconé- MT, eu havia

128

dele para procurá-lo mais tarde, e, depois de deixar a São Bento, combinei diretamente

com ele uma visita à fazenda para onde havia se mudado e administrava como capataz.

Embarquei no dia 11 de novembro para a propriedade, com o auxílio do

administrador do grupo empresarial responsável por ela, sediado em Corumbá. Peguei

carona no caminhão da firma, na cidade, até uma pousada na beira do Rio Paraguai que

serviria de ponto de partida para a viagem de barco até a fazenda. Conversando com

funcionário da firma que dirigia o caminhão, fiquei sabendo que o Grupo tem mais de

vinte fazendas de gado na região, frigorífico próprio e açougues na cidade, além de

exportar parte da produção que vai para Campo Grande. Na pousada encontrei Seu

Inácio acompanhado do neto, Jéferson, e seguimos para a fazenda em uma pequena

lancha dirigida por este último, que não disse uma palavra até chegarmos à fazenda.

Eles tinham vindo buscar um motor, levado pelo caminhão no qual peguei carona.

A viagem de barco durou mais ou menos uma hora e meia, subindo o rio. No

caminho fui conversando com Seu Inácio. Ele quis saber também sobre a minha vida no

Rio de Janeiro, e perguntou sobre a minha família, se tinha filhos e o que era que eu

estava estudando. Expliquei que era um estudo sobre a relação do pantaneiro com a

onça. Transcrevo abaixo minhas anotações (precárias) de um diálogo no barco:

Nós vamos sair pro campo, levar os cachorros pra dar uma volta. vamos

ver se dá sorte de achar uma parda, aí o senhor pode filmar, fotografar...

Só não pode tirar foto dela morta, depois de atirar. O senhor sabe atirar?

Eu ensino pro senhor.

F: Mas eu não quero atirar na onça, não, Seu Inácio. Queria mesmo ver uma, mas

por mim ela ficava viva.

Hoje em dia tem demais, o povo parou de matar. Se ninguém matar esse

bicho, vai acabar tudo aí, capivara, cervo... Onça come tudo. Aí, daqui a

pouco, ela vai começar a comer gente. Se a onça vier na esposa do senhor,

o senhor não atira nela? Ela às vezes só mata, é feito um assassino, assim,

tem dente, unha, para matar. Aquela unha dela é venenosa. A gente acha o

animal machucado, cuida, bota remédio, mas morre assim mesmo.

Mas é um bicho bonito...

sido recebido com bastante desconfiança, sendo que a entrevista foi recusada em dois casos e no terceiro o depoimento não pode ser gravado.

129

Passamos por baixo da ponte da via férrea, e vemos o porto aonde é embarcado o

minério pelo Rio Paraguai, em grandes barcos de carga. Seu Inácio mostra de longe os

campos da fazenda:

Ali tem mil e seiscentos bois. Naquele campo a onça comia muito, achava

quatro, cinco rêis morta. Só nesse campo, matei oito pintadas. Elatravessa

o rio e vem comer garrote no campo da fazenda.

A fazenda tinha quase 13 mil hectares e cerca de cinco mil cabeças. Trabalhava com

recria de garrotes. De acordo com o capataz, a perda por onça era de cem a duzentas

cabeças por ano, antes da chegada dele. Seu Inácio explicou que os outros fazendeiros

da região começaram a chamá-lo para ir atrás de onça nas fazendas vizinhas, mas que o

patrão não permitia.

Desembarcamos então na sede da fazenda, à beira de um pequeno braço do

Paraguai, na região conhecida comoPantanal do Nabileque. A sede da fazenda era bem

antiga, de madeira, muito espaçosa, porém em mal estado de conservação, compinturas

de flores e paisagens nas paredes. "Diz que já foi uma pousada", afirmou Seu Inácio, e

também contou que P.C. Farias20 tinha ficado no local quando estava foragido da

polícia, de acordo com relatos de antigos moradores do local. A propriedade havia sido

recentemente adquirida pelo patrão de Seu Inácio em um leilão judicial.

Seu Inácio explicou que saiu da região do Abobral para vir para a nova fazenda,

primeiro para ajudar com as onças, mas acabou ficando como capataz. Sua filha e a

neta tinham vindo depois com ele para a fazenda. A primeira tomava conta da casa e

cozinhar para os campeiros, trazendo sua filha de três anos. Mais dois homens viviam

na sede: o rapaz que veio conosco no barco, também neto de Seu Inácio, e mais um

peão campeiro.Em outra pequena casa próxima vivia um terceiro peão com sua família

– um casal e quatro crianças. A energia elétrica era fornecida por um gerador movido a

diesel, que ficava ligado das seis da tarde às seis da manhã. Fui muito bem recebido por

todos, especialmente por Seu Inácio, sempre muito simpático e um ótimo anfitrião.

Conversamos a tarde toda no dia da minha chegada.

Alguns dias depois, saí para pescar com Jéferson, o neto de Seu Inácio. Ele também

tinha crescido na região do Abobral, e tinha trabalhado numa fazenda vizinha da São

Bento, a Nossa Senhora do Carmo (fazenda que eu conheceria mais tarde). Usamos uma

20Conhecido personagem público dos anos 1990 no Brasil, tesoureiro do ex-presidente Fernando

Collor, envolvido em escândalos de corrupção.

130

varinha pequena com sebo de boi de isca para fisgar sardinhas, que serviriam como isca

para a pesca do pintado. As iscas para pegar o pacu, que é o outro peixe preferido dos

moradores ribeirinhos, eram frutas. No entanto, naquele dia pescamos apenas piranhas,

que foram devolvidas à água.

Depois do almoço, a sesta. Cada um procurava uma sombra com um pouco de brisa,

para escapar do calor intolerável. Conversando depois com Anísia, filha de Seu Inácio,

ela se mostrou preocupada com a ida da menina Lívia para a Escola. Ainda não sabia se

ia ou não para a cidade no próximo ano. Afirmou que queria que a filha estudasse para

ter outras oportunidades de trabalho, que não fossem apenas os serviços domésticos, e

que muitas mulheres agora trabalhavam como veterinárias ou técnicas, voltadas para

campos como a inseminação, por exemplo.

Como bom pantaneiro, Seu Inácio acordava todo dia às três horas da manhã. Fazia

fogo para a filha preparar o café da manhã e cuidava da casa até o dia amanhecer. No

dia 13 de novembro, acompanhei os vaqueiros quando iam procurar uma boiada no

fundo de uma das invernadas da fazenda. Seu Inácio identificou marcas de porco na

entrada de um capão de mata, e me explicou que na região não tinha porco-monteiro,

somente porco de casa “alongado”. Ele entrou no capão com a intenção de surpreender

os animais, mas não os encontrou. Ao contrário dos peões mais jovens, no entanto, ele

não tomava tereré. Quando saíamos de manhã, e os jovens campeiros pegavam água

congelada (como é costume) para levar, explicou-me que mascava fumo, e não tinha

sede no campo. Só bebia água quando voltava para a fazenda.

Reproduzo a seguir algumas anotações de campo:

A menina Lívia mostra o olho inchado para o avô. Seu Inácio examina, faz o

sinal da cruz sobre o olho e murmura algumas palavras. Pronto – diz. Pergunto

se ele benze picada de cobra. Ele mostra uma marca na mão direita: mordida de

boca de sapo. Conta que estava colhendo mandioca e a cobra grudou na mão.

Ficou imediatamente sem enxergar. O companheiro que estava junto matou a

cobra, e Seu Inácio rezou a picada. Logo voltou a enxergar, e não quis ir para a

cidade. De noite, a mão estava inchada. Ele apertava e saía o veneno. Numa

outra vez, teve que ir para a cidade, conta. Foi quando um cavalo caiu por cima

dele, atingindo a bacia. Passou quatro meses em Corumbá, indo ao hospital.

Por isso usa uma cinta ao redor da cintura. Seu Inácio mostra as marcas de uma

vaca que o arrastou pela perna e de uma mordida de jacaré que tomou na batata

131

da perna. Pergunto se tem alguma cicatriz deixada pela onça. Ele diz, com

orgulho: "Ela nunca me encostou uma unha".

Ao longo da semana, fiz uma série de entrevistas com Seu Inácio, algumas em

vídeo, dentro de casa, outras em áudio, durante pescarias. No primeiro desses registros,

pergunto sobre a história de vida dele, repetindo algumas das mesmas perguntas que já

tinha feito antes, quando o conheci na São Bento:

F: E o senhor nasceu em que ano, Seu Inácio?

Eu nasci em 1942, na zona do Abobral.

F: Onde hoje é a Fazenda São Bento?

Não, eu nasci na Fazenda Santa Catarina, que chamava a nossa fazenda,

do meu avô. Bom, eu nasci no Porto da Manga, aí que eu fui lá pra fazenda

Santa Catarina.

F: E o senhor aprendeu a mexer com onça com o seu pai?

Com meu pai. Eu tinha idade de doze anos, enaquela época não era

proibido matar esse bicho. Vendiam a pele. Então, meu pai tinha cachorro,

né, mas não tinha muita onça, tinha pouca. Aí nós íamos atrás pra matar,

pra tirar pele, pra vender.

F: E isso era na região do Abobral?

Na região do Abobral. Meu avô tinha fazenda. Naquele tempo, todos os

fazendeiros que tinham fazendinha aí, tinham cachorro que caçava. Vendia

pele de capivara, lontra, ariranha, jaguatirica, tirava a pele pra vender,

naquela época. Então, eu aprendi tudo essas coisas com meu pai, meu avô e

meus tios. Meu avô pegava onça na zagaia.

F: E o senhor chegou a acompanhar ele?

Ah, ajudei até matar na zagaia.

F: E tem alguém que ainda caça na zagaia?

Já faz muitos anos que não.

F: O senhor mesmo já tentou?

132

Eu já, já peguei a parda. Mas ela subida. Cheguei lá em cima e fui lá e

furei, no sangrador dela, derrubei lá de cima. Mas a pintada, também já fui

nela com a zagaia. Queriam tirar foto, eu pegando ela na zagaia, mas ela

não levantou pra me pegar. Ela vinha e voltava, vinha e voltava, até que foi

embora. Pegaram ela, depois.

Ele me contou mais tarde que o avô tinha perdido tudo com as enchentes naquela

região (em trecho não gravado, sem citar o ano), e que depois disso o pai ficou

trabalhando para outros proprietários como capataz de fazenda. Em outra gravação,

indaguei-o a respeito de encontros dele com onças, e o caçador narrou uma série de

casos. Transcrevo dois deles. O primeiro relata a aproximação de uma onça enquanto

ele e um empreiteiro dormiam num acampamento:

Eu fui numa fazenda – eu e um companheiro – e não tinha casa, nem nada.

Jantamos e fomos armar o barraco, pra ficar. Nós trabalhamos o dia

inteiro. O fogo aceso... E era uma lona, dessa loninha preta. Aí falei pra

ele: vamos terminar logo aqui, pra jogar a lona em cima, pra poder a gente

dormir de noite.

Ele falou: então vamos Seu Inácio. Aí ficamo lá. Aí quando foi de

tardezinha, lá pras cinco hora, tinha um corixo, e a onça chegou, começou

a bufar.Ehãuu... Aí ele falou: Ô Seu Inácio, essa onça vai vir. Eu falei: ela

não vem, ela lá no corixo. Nós ficamos. E a onça braba por lá, bufando. Aí

escureceu, fomos jantar – tá a onça, bufando – e ele falou pra mim: vou

fazer uma zagaia. Eu falei: mas o que? Ele falou: ah, tem um ferro aí, eu

vou fazer ponta nele, e amarrar num pau.

F: Vocês estavam sem arma, sem nada?

Eu só com meu revólver 22. Falei: então faz; vamos acender bem o fogo;

botar lenha bastante no fogo, porque aí clareia e ela não vem.

Aí escureceu, ela atravessou o corixo e veio. E a nossa vara tava pertinho

do mato. Ficou lá, bufando. E aí, não tem perigo?Ele falou. Não tem... Se

não mexer com ela, ela não vai atacar nós. E se ela vier pra cá, nós somos

dois e ela é só uma. É só você não correr dela. O perigo é correr. Você

correu dela, aí que ela pega! Gritou com ela, falou com ela, ela obedece.

133

Aí, armamos a rede e ficamos. Peguei meu revólver, pus na rede. Ficamos,

eestá o bicho brabo, lá... Deu onze horas da noite, nós cansados,

trabalhando, e ele pôs a zagaia dele lá atrás da rede. Eu fui e dormir, e ele

também. E devia ser de madrugada já, nós com sono, tinha ido cedo

trabalhar, e dormimos.Acordamosjá o sol vinha subindo.

Pois a onça veio ali no nosso barraco! Foi no fogo, arremexeu ali, andou

tudo por ali, e não entrou. Foi até pertinho da minha rede, assim, mas não

foi lá na minha rede. E aí ela voltou e travessou corixo. Nós pegamos a

batida dela.Ela travessou corixo e foi embora.

Aí ele falou assim: Bem que o senhor falou que a onça não ataca se não

mexer com ela. Falei: Só se ela estiver com fome ou então a pessoa

roncando... aí ela vai lá pra onde aquela pessoa tá roncando.

E ela andou ao redor da nossa rede, da lona que nós pusemos assim, mas

aquilo não era arrodeado, não tinha proteção nenhuma nas beiradas. Era

tudo aberto. Pusemos por causa do sereno, pra não molhar nosso

mosqueteiro, essas coisas. Aí ele virou pra mim e falou assim: se ela viesse

aqui, pegava um de nós dois, comia, e nós não ia nem vê. Falei: é isso aí.

Não falei com o senhor, só se ela estivercom fome, aí ela vem em mecê. E

ele acreditou. Aí não veio mais ela. Sumiu ela. Era passageira né? Tá

andando. Mas a gente não facilita aí.

O segundo caso termina com algumas considerações sobre os cães:

Um dia eu tava caçando com meu pai – meu pai tinha um cachorro,

chamava até Campeiro... Vamos caçar moleque! Caçar onça e capivara ele

é bom. Aí eu saí à tarde com meu pai, deixamos o cachorrinho amarrado,

na beira do rio Abobral. Deixamos o cachorro amarrado e fomos caçar, de

tardinha. Aí matamos três capivaras e viemos. Meu pai limpou os couro das

capivaras, e tem aquela manta, que fala, que tira do couro – a gordura. E

bem pra fora assim, do nosso acampamento, era uma lona. Aí meu pai pôs

aquela carne nas duas lonas, e falou: Vamos deixar aí pra salgar, pra levar

pros cachorro lá. Aí papai armou a rede, assim, o cachorro ali do lado e a

carne ali também no resto dos postes.

Bom, eu como eu fumo meu pito, né, eu escutei meu pai, roncando:

rhhmm... rhuum... Aí escutei um barulho: vufff... Um troço que caiu. Do

134

lado de fora. Demorou um pouco, outra vez: vufff... Eu chamei,falei: papai,

acho que algum bicho pegou a tralha da capivara que o senhor pôs aí fora.

Aonde, meu filho? Se tivesse pego aí o cachorro sentia, ele não deixa

chegar nada. Falei: mas eu escutei barulho. Bom, o vento tava do lado da

onde tava a carne, e o cachorro tava deitado aonde nós fizemos o fogo pra

fazer comida. Ali deitado. Meio frio que tava. Aí papai levanta na

madrugada, pra tomar o mate dele, e quando acendemos o fogo, o cachorro

saiu ali, já barruou: auuauia... Fez o cachorro assim, e já correu pra beira

do rio.

Pois a onça veio, pegou as duas mantas da capivara, comeu, e ainda tava lá

comendo o resto que ficou quando o cachorro bateu nela.Ela caiu no rio

Abobral e travessou pro lado de lá. O cachorro atravessou atrás dela e

ficou acuando, lá, até mais ou menos era umas quatro horas da manhã,

assim. Aí, eu já tinha levantado. O barulho do cachorro, essas coisas... Aí

fomo, pegamos a canoa, a arma, e fomos. Papai só tinha uma 22 de um tiro.

Era a arma dele. E um revólver, mas o revólver você não podia confiar

nele. Era um revólver velho, não saíam os seis tiros. Você tinha que armar,

saía só um tiro – era um 38. Eu fiquei com o revólver e nós fomo lá. Papai

alumiando com a lanterna, fomo indo, fomo indo, e o cachorro acuando.

Papai alumio assim, e você via o olhão dela, olhão grande...

E meu pai acertava bem o tiro. De noite, de dia, era a mesma coisa pra ele.

Mais ou menos uns trinta metros de nós. Papai com a 22 de um tiro, táa!

Acertou. Chegamos, o cachorro já tava mordendo ela, aí fomos lá e

pegamos. Sangrou ela. Tiro pegou dentro do olho dela. Um cachorro só

acuou ela. Um cachorro, ele sendo bom, você mata ela melhor de que com

bastante.Com três, quatro, cinco cachorros...

F: Ela sobe?

Não, ela acua e não fica braba, não zanga. Não fica zangada de vez.

Porque com bastante cachorro ela arranca demais nos bichos.

F: E tem onça que aprende? Ela aprende a fugir ou matar o cachorro?

135

Aprende. Ela aprende matar o cachorro, e fugir. Ela corre e aí volta e fica

esperando o cachorro. E na hora que o cachorro vem na batida dela assim,

ela pula e pega. Assim que é.

Num registro em vídeo, feito no dia 12 de novembro, Seu Inácio me leva até o canil,

no quintal da casa, para mostrar os cães. O canil era gradeado e dividido em três

compartimentos de mais ou menos 10 m² cada um. Um deles abrigava uma ninhada de

filhotes pequenos, e os outros dois, um casal de cães e um trio, respectivamente. Todos

eles tinham a aparência do americano, que é como é designada no pantanal a raça mais

comumente usada na caçada de onça. Outros cinco ou seis filhotes grandes andavam

livres pela área da sede.

Através da grade podemos ver os dois cães mais velhos. São muito magros e com

aparência frágil, e lembram os foxhounds ingleses. Seu Inácio diz:

O mestre é esse que tá deitado aí. Esse é o mestre. Aquele lá também, a mãe

dos filhotes.

F: E como é que é o nome dele?

Num sei. Num sei!

F: Ah, é o nome dele...

Aquela lá é Princesa. Num Sei e Princesa.

F: Os dois são americanos?

É beagle com americano, misturado. E aqui tem... [Som de abertura de

porta, Seu Inácio grita com os cães, entramos no último recinto]. Aquele lá

é Deique. Deique, Sinaia e Artilheiro.

F: E eles são bons também?

São novos, aqueles estão com dez meses. Não acuaram ainda, ainda vão

trabalhar.

F: E o senhor cria também às vezes pra vender o cachorro ou pra dar?

Não. O senhor tem que criar, ter uma cadela pra ter a produção deles, pra

o senhor não perder a cruza, a raça deles, que é boa. Então eu crio. Aí, o

patrão diz queo que sobrar tem que dar. Ele leva pra outras fazendas, por

136

aí. Eu só fico com um de cada barrigada que a cadela pare, eu só fico com

um cachorrinho.

F: Então, desses filhotinho aí, o senhor vai ficar com um só...

Só com um, é um cachorrinho que tá ali, eu vou mostrar pro senhor.

Soldado! Soldado! Aqui ele [mostra o filhote no colo]. Esse aqui que é o

meu, que eu vou ficar com ele. Chama soldado, esse cachorrinho. Eu pus

nele nome de soldado. Esse vai ser mestre mesmo. Quando completar um

ano ele já tá caçando onça, matando onça, já tá ajudando a matar, ele.

Perguntou-me em seguida se eu tinha visto os cachorros acuando a gatinha que mora

em casava. Disse que eles já tinham acuado uma jaguatirica, mas que não mexeram com

ela. Depois, me levou para ver o couro de uma onça-parda, caçada no domingo anterior,

que estava guardado numa casinha de mantimentos. O couro, amarelo escuro, estava

embrulhado no sal. Seu Inácio mostrou como era macio, e explicou que depois ia ser

passado no cal e esticado. Ele explicou que não vendia o couro, mas que valeria um

bom dinheiro se fosse negociado com os navios estrangeiros (paraguaios, argentinos,

bolivianos) que circulavam pelo Rio Paraguai. Em seguida mostrou-me também o

crânio e a pata de uma onça-pintada, a última que tinha matado na fazenda [Anexo 4].

No trecho a seguir, falando como se estivesse na zona do Abobral, Seu Inácio

descreve as conseqüências da construção da Estrada Parque e sua percepção das

mudanças trazidas pelas atividades humanas na região, associando a proliferação das

onças a uma série de mudanças ambientais:

F: E naquela época tinha mais onça que hoje em dia, ou menos?

Tinha menos. Tinha pouca onça!

F: Hoje em dia tem mais?

Ah, hoje em dia te demais. Aqui na nossa região, zona do Abobral, aqui,

todo mundo criava gado bastante. Não tinha onça que comia gado, nada;

porque tinha muita caça: porco-monteiro, queixada, caititu, cervo, veado,

tudo, tudo quanto era bicho tinha, demais. Hoje em dia você num vê a

quantia que tinha.

F: Os outros bichos diminuíram?

137

E não enchia como enchia agora, de um certo tempo pra cá. Quando surgiu

a Estrada Parque, essa estrada represou muita água. Então, a água

chegava, arrombava as pontes, aquelas pontes, aquelas coisas.Foi

enchendo demais! Então com essa desmatação que teve daí pra cima, perto

de Campo Grande, esses lados aí, plantando pasto, fazendo essas coisas, foi

limpando onde ficava mais esses bichos: as onças, esses outros. Então, não

tinha onde a onça se esconder, e ela vinha descendo, beirando o rio. Vinha

descendo tudo pra cá. Veio descendo pro Pantanal. Esses bicho veio

descendo pro Pantanal.

Seu Inácio descreveu as enchentes causadas pela Estrada Parque como parte de um

mesmo processo de crise (incluindo desmatamento e plantação de pastagens exóticas)

que aumentou a quantidade de onças na região:

Então, aí foi aumentando. Aí não podia mais matar ela.Ninguém matava, é

proibido, todos nós sabemos que é proibido matar ele, é um bicho que isso,

que aquilo. Então, ela foi aumentando. Ela foi aumentando e foi acabando

com os bichos, matando jacaré, cervo, veado, capivara, ema, tudo que ela

encontrar ela vai comer, porque elas estão com fome. E se achar uma

pessoa no jeito ela come mesmo, se tá com fome.

O senhor vê que hoje em dia até capivara tá difícil. Tem capivara, assim,

mas não como antigamente.Esses tempos atrás, que o senhor via cardume

dela assim. Então foi acabando...Aquele lobo, aquele lobão, guará, tudo

isso ela corre atrás. E se facilitar ela mata ele. Até isso acabou aqui na

zona do Abobral, não tem mais.

F: Mas o senhor acha que é importante preservar a onça, Seu Inácio? Ou seria

melhor que ela não existisse?

Eu, na minha opinião, é o seguinte: por exemplo, pra nós, aqui pro

Pantanal, ele tá acabando com os outros bichos. E se deixar aumentar vai

acabar e vai ficar só ela. Só ela. E aí? Aí vai perseguir gente. Vai começar

a pegar gente. Aí, aquele que tem aquelas criação, ela vai atacar muito, aí

vão matar ela.

Isso resultaria no pesadelo de uma natureza só de onças, uma visão do pior dos

mundos para o criador de gado. Minhas perguntas, a partir daí, são sobre temas

138

conservacionistas, como a ameaça de extinção, o animal problema e, especialmente, o

conflito. O papel de responsável pela manutenção do equilíbrio dos outros animais,

designado pelo vocabulário da ecologia pelo termo espécie chave, é atribuído por Seu

Inácio não às onça, mas ao caçador:

E aí vai acontecer isso aí: vai acabar os outros bichos. Mas agora, se

acabasse um pouco com ela, por exemplo, vamos supor: a onça comeu uma

vaca, duas, mata ela! Mata ela. Porque aí ela não vai matar mais. E se você

deixar ela vai continuar. E se é a mãe que tá com os filhotes, ela vai

ensinar. Às vezes é quatro que ela pare dois, três, quatro, ela vai ensinar. E

aquilo vai ficar ali naquele setor. Aí, quando os filhos já tão pra sair, eles

sozinho, pra caçar, ela abandona. Aí eles viram que a mãe pegou aquilo ali,

e vão. Eu já vi: os quatro brigando por causa dum veado. Os quatro

comendo, já gatinho grande que a mãe largou.

F: Mas então o senhor não queria que o bicho acabasse. É esse que pega o gado que

tem que controlar...

É isso que tem que fazer. A onça pegou! Uma rês, duas rês, tira foto lá e

apresenta. Vamos matar ela. Ela tá me dando prejuízo... E deixa o resto.A

que não está comendo, deixa. Aqui, o patrão manda matar só se comer. Se

comer três, quatro, pode ir atrás.

F: Mas tem onça que fica só em cima do gado? Que acostuma?

Tem. Costuma comer só gado e não come outra coisa. Só se não tiver gado

aí que, ela estando com muita fome, ela pega outros bichos pra comer.

F: Aí essa não tem jeito...

Essa vai atrás. O bicho é danado. Tinha uma onça aqui, ela vinha,

atravessava o rio Paraguai e vinha matar boi aqui. Comia o boi, o senhor

ia atrás, ela atravessava o rio de volta, ia embora. Passava um dia, no

outro dia a mesma coisa. E essa custou pegar. Bicho é danado.

F: E tem onça que não pega o gado?

Não, tem onça que não mexe. Você anda nesse campão aí, mundo de

campo, o senhor encontra caveira de caititu, caveira de queixada, jacaré,

cervo, ema...

139

F: Mas esse negócio, então, que o pessoal fala que a onça está ameaçada de

extinção... Aqui no Pantanal o senhor acha que está?

Não.

F: E o que o senhor acha desses projetos, como o lá da São Bento, de colocar colar

nas onças?

Da São Bento? Pois é, bom, tudo bem, vamos por. Vamos estudar aonça.

Mas só que ela vai aumentar. Então, aquelas onças, que puseram o colar

nelas, não vão sair daquela região ali. Elas vão parindo, vão ficando ali,

comendo gado, comendo.Na hora que já tiver acostumado vai ficar ali.

Ninguém vai mexer com ela mais. Então, elas vão reproduzindo. Então lá se

vai cuidar dela, ter uma reserva pra ela. Ela fica ali. Agora, quando acabar

as coisas pra ela se alimentar, aí elas vão sair à procura.

F: Porque se deixar por ela mesma acaba... ela come tudo?

Ah, acaba, come tudo. A onça-parda, v vê, ela bate num bando de carneiro,

o que ela pode matar ela mata.Você não ouviu falar nisso? Ela mata três

quatro, ou cinco, carneiros, e vai comer só um. E se uma onça-pintada

bater num lote de gado, virar aqui, ela mata um; se tá no jeito, ela mata

outro. Pra comer só um. E é assim que vai acontecer, com o tempo. Então,

essas onças que eles vão pondo colar, ali, não vão mexer mais com elas,

vão deixar ali, ela vai aumentando e vai querendo comer. Ela vai ficar ali,

moradeira daquele trecho. Então, a fêmea vai parir, vai ensinar eles pegar

também a criação...

Agora, pra quem tem bastante gado, não é nada. Deixa ela. Têm muitos aí

que até mata pra dar pra ele, pra criação; fazer aquele coisa pra criar ele.

Agora, um criador que tem pouca reses, umas mil cabeças, se ele não

cuidar... Só o imposto, quanto que ele num vai pagar? Medicamento pro

gado, essas coisas. Aí não dá pra pagar um peão, sal...

F: E qual é a que dá mais prejuízo?

É a pintada. E a parda dá também prejuízo quando tem gado de cria,

carneiro e bezerro. Vaca parida. Com cinco meses, seis meses, ela come

mesmo. Aí pra arriba, do patrão aí, ela matava quatro bezerro por dia. Só

numa semana, mataram doze bezerros controlados..

140

F: E era a mesma onça?

A mesma onça. Aí mandaram me chamar, me buscaram na fazenda. Eu fui

de avião, trouxe, matei as duas. O casal. Abrimos a barriga dele assim, o

bucho, só couro e osso do bezerro. A miudeza do bezerro. Aí parou, nunca

mais comeu. Agora, nesses tempos, apareceu outra lá e comeu. Mas só que

pintada. Bezerro de um mês. Está lá, comendo. O bicho é danado. E é um

bicho bonito, né...

No último dia da minha estada na fazenda, saí de cavalo com Seu Inácio para uma

última volta pelo campo da fazenda. Ele quer me mostrar o estrago que a onça causa.

Perguntei sobre os tipos de onça. A pintada, explicou, tem duas qualidades: malha

miúda e malha grande. Esta última, também chamada de canguçu, é maior. A parda tem

a baia e a vermelha, e tem uma que tem o fio do lombo meio preto. Uma área de campo

tinha sido queimado para a renovação da pastagem, e o pantaneiro explicou que as

queimadas eram feitas em épocas certas, mas que tinham sido proibidas e isso acabava

gerando incêndios descontrolados no Pantanal.

Na volta, transcrevi alguns temas da conversa durante a cavalgada:

Seu Inácio diz que só vai atrás de uma onça depois que acha as carniças.

Conversamos sobre capturas e caçadas para fotografar a onça. Ele acha que

essas últimas são muito perigosas, já que não há como tirar os cachorros da

acuação sem atirar, nem que seja "tiro adormecente". Dos filhos e netos,

nenhum quis apreender a caçar, mas ele não parece preocupado com isso. Ele

faz questão de dizer que não mata à toa; se uma onça passa na sua frente, nem

mexe com ela, porque não sabe se é aquela que está mexendo com o gado --

"Aí não adianta nada atirar ela...". A onça-parda que matou no domingo

estava numa fazenda vizinha, explica, aonde já tinha comido dez bezerros.

Meu guia mostra a árvore da "para-tudo", usada para tratar tosse, dor de

estômago, dor de barriga... Mostra também as palmeiras de tucum, cujos frutos

são usados como isca para a pesca do pacu. Também podem ser utilizados o

genipapo e a laranjinha. Outra planta serve como remédio para problemas de

pele. Pergunto sobre a onça, se tem algo que se aproveita dela. Ele diz que a

gordura trata bronquite. É retirada, colocada em tiras dentro de uma garrafa de

vidro, e aquecida no sol. O nervo que fica dentro das almofadas, nas patas da

141

onça, é usado para melhorar o faro dos cães. Pode ser torrado e dado para o

cachorro comer, ou então faz-se com que ele aspire a fumaça.

Depois de cavalgarmos por mais ou menos uma hora, Seu Inácio mostrou-me

três ossadas espalhadas num pequeno trecho de campo, acompanhando a vegetação

fechada na beira de um corixo. Ali é que tinha aparecido o macharrão do qual tinha me

mostrado a cabeça e a pata. Ele narrou como achou a carniça daqueles bois em dias

consecutivos. As cenas daqueles animais mortos eram os índices da presença da onça. O

bicho pode ser bonito, como repetia Seu Inácio, mas é quase invisível: o que o vaqueiro

encontra são apenas os vestígios dele: cenas de animais mortos, e rastros. Os cachorros

tiveram que voltar duas vezes naquela carniça até pegarem a batida da onça

responsável. Ela foi perseguida e acuada até ser abatida pelo caçador.

3.3. Caçadores naturalistas

What qualities did it take to make an animal “game”?

One answer is similarity to man, the ultimate quarry, a worthy opponent.

The ideal quarry is the “other”, the natural self.21

Donna Haraway

No livro Nas Selvas do Brasil (1914), Theodore Roosevelt descreve em detalhes sua

primeira caçada de onça no Pantanal, desde os preparativos até o abate do animal:

Na tarde desse mesmo dia, um dos caçadores de jaguar (um simples

trabalhador do rancho, que entendia alguma coisa dessas caçadas), que

saíra à procura de rastros, voltou informando que havia descoberto sinais

frescos num certo lugar nos pantanais, a cerca de três léguas de distância.

Na manhã seguinte levantamo-nos às duas da madrugada, saindo para a

caçada às três. A caravana se compunha do Cel. Rondon, Kermit, eu e mais

dois caçadores; cada um de nós montava um cavalinho ágil e acostumado a

21Que atributos foram necessários para que um animal se tornasse “caça”? Uma resposta é a semelhança com o homem, a presa final, um oponente de valor. A presa ideal é o “outro”, o eu natural.

142

atravessar aquelas vastas extensões lamacentas. Acompanhava-nos ainda

um rapaz escuro, carregando dois surrões com a nossa “matula”. Vinha

montado em um novilho trotador, de chifres longos e que era manejado por

uma corda amarrada nas ventas e no focinho. (1976: 63)

Os detalhes compõem um retrato de época interessante: Rondon, T. Roosevelt e seu

filho, acompanhados de dois caçadores, cada um deles montado em um cavalinho ágil

(uma boa descrição do tipo pantaneiro). O detalhe do quinto personagem, que monta

um “novilho trotador”, descreve o costume tradicional de montar bovinos, característico

das antigas fazendas pantaneiras (Banducci 2007; Leite de Barros 1998). Sobre os cães,

o então ex-presidente americano comenta:

“A nossa matilha era, aliás, insignificante. Além dos nossos dois cães que

nunca tinham sido experimentados em caçadas de jaguar, havia os da

fazenda, de pouco valor, e mais dois, que eram de fato caçadores de felinos

e que nos tinham sido emprestados por um fazendeiro, morador a umas seis

a oito léguas de distância”.

Em seguida, o autor narra a perseguição da onça pelos cães:

“Pelo menos em cada borda de clareira, nos bosques, em terreno molhado,

percebíamos rastros frescos do tigre americano. Os dois cães de caça

deram logo o alarme. Foram desatrelados e galoparam seguindo a trilha,

acompanhados dos outros cães, e, em grande assuada. A matilha enveredou

firme pelo pantanal”. (Idem)

A descrição da caçada informa também sobre os hábitos do animal perseguido:

“Naturalmente, o jaguar não tinha o menor receio da água. Por certo

estava à caça de antas e capivaras, o que o obrigava a se meter por

banhados e por estreitos e tortuosos fossos ou canais, onde teria que nadar

cada vez que lhe fosse dado investir contra a presa”. (Ibidem)

O fluxo dos acontecimentos e das informações sobre a vida selvagem é interrompido

brevemente para a captura de um belo quadro, a exposição de uma experiência singular:

“Os cães enveredaram por uma clareira com algumas árvores altas e,

enquanto galopávamos através do pântano, avistamos o jaguar bem no alto,

entre galhos bifurcados de um tarumã. Era um belo quadro o daquele

143

grande e formidável gato -- a pele marcheteada -- rosnando a desafiar a

matilha, em baixo. De minha parte, não confiava nos cães, pois não eram

fortes, e, se o felino descesse para atacá-los, estariam liquidados”. (: 64)

O desfecho da narrativa é o abate preciso e limpo. As observações são imbuídas do

espírito do sporty way of hunting do narrador: Ele cita a arma utilizada e o tipo de

munição e em seguida faz observações casuais sobre a onça morta:

“Desse modo atirei imediatamente, de uns 60 m de distância, usando minha

‘Springfield’ pequena, com a qual já havia abatido muitas espécies de

caças africanas, desde o leão ao elefante e outros menores. As balas eram

pontiagudas, com pontas de aço puro. Com o tiro, o jaguar caiu como um

fardo pelos ramos abaixo e, embora vacilante nas patas, não pôde dar

senão poucos passos e deixou-se esvair. Quando cheguei, já estava morto

debaixo das palmeiras, sendo devorado por três ou quatro cães”. (Idem)

Fala sobre a qualidade do exemplar caçado e sobre o evento da caçada, baseados em

sua experiência internacional como big game hunter:

“A caçada de jaguar é a mais interessante da América do Sul, equivalendo

à dos mais nobres animais da América do Norte, e inferior apenas à dos

maiores e mais ferozes da África e da Ásia. Essa que fizemos foi de um

exemplar adulto e fêmea. O animal tinha mais peso e mais volume do que

um cougar ou pantera norte-americana, dando a impressão, pelo seu

tamanho, de um tigre ou um leão, impressão que não se tem quando se

abatem os ágeis leopardos ou os pumas”. (Ibidem)

Por fim, tece alguns comentários sobre a carne da onça:

“A propósito, devo dizer que sua carne, apesar de não ter sido preparada

convenientemente para o jantar, demonstrou ser bem gostosa. Eu a provei

porque sempre me apeteceu a carne do cougar, e até lamentei não ter

comido também a carne do leão africano, que deve ser excelente. (: 65)

Roosevelt pode ser considerado o patriarca paradigmático para a linhagem literária

que será abordada nesta seção. O estadista esteve no Brasil em 1913-1914 e participou

com o Marechal Rondon da expedição ao território desconhecido do Rio da Dúvida.

Quando retornou dessa aventura brasileira, ele publicou o relato da viagem e de suas

caçadas.

144

A seguir analiso três outros livros escritos por caçadores, de épocas diferentes, que

narram caçadas de onça no Pantanal e, por meio desse conjunto, pode-se estabelecer, a

partir de Roosevelt, uma seqüência histórica. O mais antigo dos três é o relato Viagens e

caçadas em Mato Grosso (1922), de Pereira da Cunha, comandante do exército

brasileiro que acompanhou o então ex-presidente americano em suas caçadas de onça no

Pantanal, no ano de 1913. O segundo na seqüência cronológica é o livro Tigrero!, de

Sasha Siemel, publicado em 1953, no qual o caçador aventureiro lituano narra seu

aprendizado do manejo da zagaia indígena e suas caçadas solitárias de onças. O último

livro da série é Jaguar Hunting in the Mato-Grosso (1976), de Tony Almeida, com

dados sistemáticos de medidas, pesos e conteúdos estomacais dos animais abatidos em

anos de experiência do autor como guia de caçadas de onça para um público

internacional. Este último é citado como precursor dos estudos científicos sobre a onça-

pintada no Pantanal (Crawshaw e Quigley 1984).

Procurei fazer duas leituras diferentes dessas fontes bibliográficas: a primeira, nesta

seção, é orientada pela formulação, em cada uma das narrativas, dos papéis do caçador e

da onça e pela figuração do zagaieiro, o caçador nativo. Neste caso, minha intenção é o

modo como o personagem aparecenas narrativas em questão. Essa primeira abordagem

das fontes bibliográficas estabelece de saída uma ruptura entre as caçadas tradicionais e

o ethos atual da preservação das onças.

A segunda leitura procura caracterizar um horizonte comum de práticas, códigos e

categorias na caçada, referentes principalmente aos cães onceiros. A linha de

continuidade entre a captura de onças para pesquisa e a tradição regional de caça é

descrita a partir de um texto de George Schaller (2007[1980]), sobre o primeiro estudo

conservacionista abrangente a respeito da onça-pintada no Pantanal. Um dos

personagens do relato do pesquisador é um cão de caça que participa da captura das

onças para o estudo, e o mesmo cão aparece no livro de Tony Almeida, citado acima. A

trajetória deste cão em particular descreve uma série de conexões e rupturas entre a

conservação e a caça, como procurarei demonstrar, e ele é também um exemplo para as

definições do cão onceiro, ou mestre, a principal categoria utilizada pelas fontes orais de

caçadores apresentadas neste capítulo.

Pereira da Cunha

145

O livro do Comandante Pereira da Cunha, Viagens e caçadas em Mato Grosso foi

publicado originalmente pela Editora Francisco Alves, no Rio de Janeiro, em 1922.

Nele, o caçador relata suas caçadas pela região do Pantanal dos anos de 1913 até 1919,

ano em que é inaugurada a via férrea entre Campo Grande em Corumbá. O tema

principal é a caçada do jaguar, apresentada com tintas naturalistas pelo narrador:

“As caçadas de feras em todos os continentes têm sido abundantemente

descritas: os leões, como os tigres, búfalos, elefantes, rinocerontes e ursos

têm tido quem lhes exalte o valor, descreva as manhas e astúcias, mostre o

perigo em enfrentá-los, narre, enfim, as caçadas que lhes tem movido; só o

nosso nobre jaguar, forte como poucos e ágil como nenhum; ignorado nas

brenhas da nossa ignorada terra, ainda não encontrou quem dissesse o

bastante das maravilhosas emoções da caçada, a mais perigosa entre todas

(quando o animal é acuado no bamburro), e a que requer os auxiliares mais

interessantes, mais originais e mais corajosos que se possa desejar: os

zagaieiros.” (1949: 9)

O zagaieiro é descrito como um “auxiliar interessante”, um coadjuvante para o

embate entre o caçador branco e o “nobre jaguar”. O livro registra uma série de

costumes das fazendas da época, fornecendo dados interessantes para uma historiografia

das caçadas de onça na região:

“Em geral, tira-se o couro da onça no local em que ela é morta, trazendo

com ele a cabeça e as patas (...) A primeira operação para o preparo do

couro consiste em dissecar as patas e a cabeça, (...) sendo nesta conservado

o crânio completo. Trata-se, depois, de fazer a costura dos cortes

produzidos pelas zagaias. (...) Em todas as fazendas do pantanal de Mato

Grosso existe, pelo menos, um “quadro” para estaquear couro de onça; e

esse quadro consiste em um grande caixilho retangular, medindo, mais ou

menos, dois e maio por dois metros, e feito, geralmente, com quatro

“carandás” bem aprumados”. (1949[1922]: 101)

Em seguida descreve em detalhes as etapas de preparação do couro:

“O couro é esticado através de cabos que passam por furos feitos na sua

orla. Operação mais difícil e delicada “grosar”. A operação de grosar

consiste na retirada completa da gordura e exige uma grande habilidade: é

146

à faca que ela é feita e, como se tratasse de fazer a barba, o grosador vai

com uma das mãos afastando a gordura em com a outra passando a faca

bem junto ao couro. (...) Depois do couro grosado, novamente molhado e

esticado definitivamente, procede-se à lavagem do pelo, com água e sabão,

e deixa-se que o sol se incumba de secá-lo bastante, tendo o cuidado de ter

o quadro o mais verticalmente possível e com a cabeça da onça para

cima”. (: 101-202)

O subtítulo do livro é “Três semanas em companhia de TH. Roosevelt”, e este é um

dos motes da narrativa, pontuada pelo culto à figura do personagem célebre: a chegada

dele aos rincões do Mato Grosso, as recepções pelos representantes locais, a disposição

jovial do caçador, as comidas que provou, suas “palestras sócio-políticas”, tudo isso é

descrito com reverência pelo autor. A proximidade entre o narrador e o personagem

evoca autoridade e importância aos fatos descritos, como no trecho em que ele narra seu

primeiro encontro com o ex-presidente norte americano, a quem foi apresentado pelo

Coronel Rondon:

“Não tardou a estabelecer-se grande intimidade entre mim e o Sr.

Roosevelt, o qual, levando-me ao seu camarote, desencapou a sua

‘Springfield’, mostrou-me o acondicionamento das munições, e discutiu as

vantagens desses sobre aqueles projeteis. Depois, conversamos sobre as

nossas caçadas e separamo-nos muito camaradas”. (: 26-27)

Ou então quando se refere a um trecho do livro publicado pelo ilustre companheiro

de viagem:

“Esse fato, com menos detalhe, é citado no livro de Roosevelt, ‘Through the

Brasilian Wilderness’, excursões nas quais tomei parte durante cerca de um

mês”. (: 33)

O papel de Roosevelt como uma espécie de patrono da vida selvagem norte

americana é dissecado por Donna Haraway em Teddy Bear Patriarchy (1989). No

artigo, ela descreve a entrada do Natural History Museum, de Nova York:

“Para entrar no Theodore Roosevelt Memorial, o visitante deve passar por

uma estátua eqüestre de Teddy, de autoria de James Earle Fraser, onde ele

está aparece montado majestosamente como um pai e protetor entre dois

147

homens ‘primitivos’, um índio americano e um africano, ambos vestidos

como ‘selvagens’”. (Idem: 33)22

A imagem paternalista do líder da nação, além da mensagem etnocêntrica, é

extensiva também à vida selvagem:

“Há inscrições nas paredes das palavras de Roosevelt sob os títulos

Natureza, Juventude, Maturidade, o Estado. (…) A natureza é um mistério e

um recurso, uma união crítica na história da civilização. (…) As paredes do

átrio estão cheias de murais mostrando a vida de Roosevelt, a perfeita

ilustração de suas palavras”. (1989:28)23

Pereira da Cunha é um admirador declarado de Roosevelt. Em suas conversas com o

ex-presidente americano, a postura explicitamente etnocêntrica, o racismo e o ideal da

eugenia são evocados com naturalidade e de forma casual. O texto de Haraway (1989)

mostra como essas referências se entrelaçam no ideal norte americano da história

natural da época, uma forma de naturalismo constituída a partir do ponto de vista não

marcado de homem, branco e anglo-saxão. A relação entre o caçador branco e o nativo,

no caso de Pereira da Cunha, indica uma aproximação do narrador com esse mesmo

ponto de vista. A seguir ele apresenta o caçador nativo:

“Zagaieiro é o homem que, armado da “zagaia”, acompanha (geralmente

em número de dois) o atirador e o defende.”

E sua arma característica:

“Zagaia é uma lança cujo ferro, forte e afiado, regula ter perto de trinta

centímetros de comprimento sobre oito na maior largura, e cujo cabo, de

madeira de lei, bastante grosso, regula dar à lança um comprimento total

de cerca de dois metros”. (1949: 29)

Neste outro trecho, a descrição de uma perseguição da onça pelos caçadores é

interrompida pelo enquadramento de uma figura idealizada:

22 To enter the Theodore Roosevelt Memorial, the visitor must pass by a James Earle Fraser equestrian statue of Teddy majestically mounted as a father and protector between two “primitive” men, an American Indian and an African, both dressed as “savages”. (…) 23 The walls are inscribed with Roosevelt’s words under the headings Nature, Youth, Manhood, the State. (…) Nature is a mystery and a resource, a critical union in the history of Civilization. (…) The walls of the atrium are full of murals depicting Roosevelt’s life, the perfect illustration of his words. (1989: 28)

148

“Esse homem (...) afastou-se um pouco procurando a macega mais baixa, e,

em meio à grande planície, de pé, zagaia em punho, com sagacidade e um

instinto quase sobre-humanos, investigou, não sei se com o olhar, não sei

com que sentido, e voltou dizendo singelamente – ‘cruzou ali’ – e apontou

distante”. (: 91)

A figura heróica do “bugre” desta vez adquire ares românticos. Seu papel, no

entanto, é o de servir de apoio ao caçador branco, este sim o verdadeiro herói da

história. O narrador descreve uma série de caçadas com a participação dos zagaieiros.

Entre o caçador armado e a “fera”, eles são os primeiros a serem atacados:

“A fera não nos dava a frente, e o Nelson, sem perder tempo, procurando

atingir a coluna vertebral perto do crânio, visou um pouco atrás do maxilar

e um pouco acima, fazendo partir o tiro; o animal rolou por terra e a

cachorrada avançou; (...) o nosso grupo também tinha avançado, e o

macharrão, deparando-se com ele, salta sobre um dos zagaieiros”. (1949:

124)

O papel dos nativos é segurar a onça ferida durante a caçada para que o atirador

possa mirar novamente com precisão:

“Ao estampido, os zagaieiros partiram sobre a onça; e, felizmente, havia

mais de um; porque, o primeiro, tendo pegado a onça muito atrás, junto ao

quarto traseiro, o animal voltou-se, e o teria apanhado se os outros não

tivessem secundado. Alanceada e mantida por terra por três fortes

zagaieiros, dois dos quais renovavam seus golpes mudando as zagaias para

melhores pontos, a fera lutava com tanta bravura e força que a todos ia

arrastando”. (1949: 97)

A caçada é um “espetáculo” testemunhado pelo narrador, que ele compartilha com

seus leitores. Em outro momento, o autor retira todas as impurezas da imagem, e

registra, crua, a cena ideal de seu relato:

“Mais dois passos para a frente e um espetáculo sublime oferecia-se aos

olhos dos caçadores. A denodada cachorrada, com os pelos eriçados, os

dentes à mostra, latindo com fúria e raiva, acuava um enorme macharrão

que, entre sentado e de pé, com as costas protegidas por um acuri, a boca

escancarada donde partiam urros de guerra, as presas ameaçadoras a

149

descoberto, os braços abertos e as fortes garras saltadas, fazia frente aos

valentes cães”. (: 124).

Mais uma vez, a descrição naturalista é interrompida por um quadro estático. A

imagem ideal da fera, purificada, é construída a partir de uma série de atributos

icônicos:

“Era um macharrão em plena pujança, extremamente forte e bravo, e,

repito, não pode haver espetáculo mais emocionante do que ver uma fera,

de tal corpulência, força e agilidade, a dois metros de nós, de pé, com os

braços abertos, as garras de fora, as enormes presas à mostra, a testa

franzida, o olhar em fogo, e a grande boca aberta, de onde parte um urro

formidável, toda a ameaçadora ferocidade do rei dos nossos sertões”.

(1949: 188)

A fera é um símbolo ao mesmo tempo de sublimação e de patriotismo. No caso, os

exemplos citados apontam também um exemplar ideal, formulado pelo autor, e também

um tipo de caçada ideal, a partir da qual o autor exalta novamente os valores nacionais:

“Realmente, só vendo é que se pode fazer idéia do que seja uma onça

acuada no sujo; então compreende-se...” (: 98)

Não é, portanto, qualquer onça que o caçador procura. Aquela exaltada por ele é um

tipo particular: o macharrão, a onça acuada no sujo. É neste exemplar ideal que se

fundamentam seus argumentos acerca da superioridade da caçada nacional:

“Se compararmos as caçadas africanas com as nossas concluiremos

forçosamente pela supremacia das nossas em beleza e emoção (...) (é claro

que me refiro à onça acuada no sujo). (...)[A] proximidade a que fica o

animal, o seu aspecto feroz e sanhudo, tudo isso, por certo, ultrapassa, e de

muito, a sensação que se possa ter nas tão decantadas caçadas africanas e

asiáticas, descritas por tantos exploradores e caçadores de nomeada”. (:

98-99)

O autor publicou seu relato autobiográfico poucos anos depois da primeira edição do

livro de Roosevelt sobre sua aventura no Brasil. Ao encontrar na natureza o orgulho

patriótico e essa nobreza selvagem da onça, ele se mantém fiel a esta referência, através

principalmente da exaltação à caçada esportiva. Nós também temos big game hunting,

afirma Pereira da Cunha. Ele não menciona se esteve ou não na África, porém aponta a

150

superioridade das caçadas nacionais, lamentando que o ilustre visitante americano não

tenha podido apreciá-las da devida forma.

Sasha Siemel

O primeiro livro autobiográfico de Sasha Siemel, Tigrero!, foi publicado em 1953

pela editora Ace Books, de Nova York. Escrito em inglês, ele é apresentado pelo

presidente do The Adventurers Club of New York, que relata como o caçador foi

recebido com honrarias pelos associados em visitas anteriores. Na capa da edição de

bolso, o gênero é descrito como “true adventure stories” e a ilustração, com cores puras

remete ao faroeste e à cultura popular norte-americana. O caçador lituano ficou famoso

nos EUA com as narrativas de suas caçadas a partir de 1930, quando a revista Time

publicou um artigo sobre ele Time [“Tiger-Man” Apr. 21, 1930]. Benevides e Leonzo

reportam que ainda que o filho de Roosevelt, Kermit, procurou-o como um velho

conhecido quando voltou à região, em 1935 (1999: 89), o que também demonstra a

extensão da fama do caçador.

A história narra o processo de transformação do autor a partir de sua busca pelo

índio Joaquim Guató, o detentor dos segredos dessa técnica única, que Siemel seria o

primeiro homem branco a experimentar. Quando finalmente encontra o zagaieiro, o

autor contrasta a imagem do índio corrompido pela bebida, vivendo quase como um

bicho, com a imagem do perfeito caçador, dotado de “qualidades e instintos quase sobre

humanos” (parafraseando Pereira da Silva op. cit). A caçada da onça é descrita pela

primeira vez no pela figura paternal de um velho justiceiro, que se dirige ao narrador

nos seguintes termos:

“Eu tinha visto um conflito que poucos homens têm o privilégio de assistir –

um conflito rude, homem contra natureza, nos termos mais primitivos. (…)

Eu sou um caçador razoável e atiro bem, mas isto não era uma cicada. Era

uma batalha de deuses…sendo que nenhum homem branco, até onde sei,

jamais travou uma batalha dessas – e, posso acrescentar, poucos índios.

Não há mais nenhum vivo hoje que eu saiba, exceto Joaquim. Você precisa

achá-lo, meu filho, e aprender com ele”.24

24I had seen a conflict such as few man are privileged to watch – a raw conflict, man against nature, on the most primitive terms. (…) I am a fair hunter and a good shot, but this was not a hunt. It was a battle

151

A luta entre o índio e a onça representa “o homem contra a natureza nos mais

primitivos termos”, a essência da caçada. Essa imagem pode aproximada a análise que

Donna Haraway faz das representações dos caçadores de leão africanos no Museu de

História Natural de Nova York. Depois de falar sobre a figura patriarcal de Theodore

Roosevelt, na entrada do museu (Op.Cit), ela apresenta Carl Aekeley, o caçador,

naturalista, escultor e taxidermista que coletou e preparou uma série de exemplares

expostos no museu, e que vai ser o personagem principal do texto:

“Finalmente, no Átrio erguem-se as impressionantes esculturas de bronze

de Carl Akeley dos atiradores de lanças Nandi da África Oriental numa

caçada ao leão. Estes africanos e o leão que eles matam simbolizam, para

Akeley, a essência da caçada, do que mais tarde seria chamado de ‘man the

hunter’.” (1989:28).25

No livro de Siemel, o índio Joaquim Guató é o mestre que o ensina a caçar onças. É

quem lhe dá os primeiros cães e apresenta-o aos segredos da técnica da zagaia. Entendo

a cena da luta entre Joaquim e o tigre como o ponto culminante da narrativa, onde essa

imagem do embate primitivo é formulada de forma mais evidente:

“Joaquim havia passado para o outro lado do tigre, e fiquei talvez

cinqüenta metros atrás com o meu Winchester pronto. Sem qualquer sinal

de Joaquim, eu sabia que essa seria a sua caçada, e eu sentia, aliás, que era

para ter a natureza de uma demonstração. O velho índio estava a cerca de

dez metros do felino, que tinha se virado para observar este novo inimigo. A

lança de Joaquim estava quase paralela ao solo, segura com as duas mãos.

Ele estava agachado para frente, de modo que a ponta da lança era estava

a mais de meio metro acima do solo. A grama era curta e não havia

nenhuma obstrução entre Joaquim e o tigre”. (1953: 177)

Também não há nenhuma obstrução entre o narrador e a cena. A descrição é em

câmera lenta, e registra mínimos detalhes:

of the gods… as no white man has ever, to my knowledge, engaged in such a battle – and, I may ad, few Indians. There are none living today that I know of, except Joaquim. You most find him, my son, and learn from him. 25 Finally, in the Atrium stand the striking life-size bronze sculptures by Carl Akeley of the Nandi spearmen of East Africa on a lion hunt. These African men and the lion they kill symbolize for Akeley the essence of hunt, of what would later be named “man the hunter” (1989: 28).

152

“O pé de Joaquim de repente disparou para frente. Nesta altura eu já

estava recuperada desde o primeiro momento de suspense, e estava

concentrado em todos os movimentos do felino e de Joaquim. Havia uma

nuvem de poeira. O gato balançou sua cabeça, e mostrou as garras. Um

grande rugido veio da garganta vermelha (...). Joaquim tinha chutado um

tufo de grama seca na cara do tigre.

O núcleo do conflito já tinha mudado. (...) A partir desse momento, o tigre

não prestou mais atenção aos cães. A grande cabeça estava agora voltada

completamente para Joaquim (...). Durante o que pareceu uma eternidade -

mas provavelmente foram apenas um ou dois segundos - Joaquim parecia

suspenso no ar, com o corpo ligeiramente inclinado para frente. Então, a

ponta da lança foi arremessada para fora, como um boxeador fintando com

um jab de esquerda. O tigre bateu na lâmina de ferro com sua pata, e por

um instante pareceu atingido nas ancas”. (Idem)

O movimento do boxeador remete à primeira parte do livro, em que o autor descreve

sua experiência como lutador no Rio Grande do Sul, em desafios motivados por apostas.

Em seguida ele menciona outro golpe:

“A lança de Joaquim foi puxada de volta para ele novamente. Então como

um ‘one-two punch’ de um boxeador, ele voltou a atacar exatamente

quando o felino arremeteu. A lança encontrou o choque da carga, entrando

no pescoço do tigre. Pareceu-me que Joaquim, frágil e vacilante e

surpreendente pequeno na frente do corpo enorme, iria dissolver-se na sua

investida. Era uma luta inacreditável. O gato era uma bola de fúria,

rosnados e unhadas, se curvando para frente enquanto se esforçava com

cada movimento de suas quatro patas para afastar o objeto que espetava

sua garganta e cortava sua respiração. Joaquim era visível apenas em

lampejos de pele marrom. Volta e meia eu via as pernas dele se moverem

em uma espécie de dança derviche, e seus pés descalços pareciam quase

agarrar-se ao chão, enquanto ele lutava para manter o equilíbrio e

continuar direcionando mais profundamente a lança na garganta de tigre”.

(: 177-178)

A cena continua sendo descrita nos mínimos detalhes, em contrastes sucessivos

entre a figura da onça, enorme e ameaçadora, e a do índio frágil e etéreo. Em

153

determinado momento os golpes coordenados por parte do zagaieiro são descritos como

uma dança. A precisão dos movimentos dele contrasta com a “bola de fúria” em que a

onça se converte. Finalmente, o golpe de misericórdia:

“O gato cedeu terreno primeiro, tentando retirar a lâmina da lança, e no

instante em que recuou um passo, Joaquim puxou a ponta da lança e

investiu novamente, quase mais rápido do que o olho poderia seguir - desta

vez em linha reta no peito do animal que se contorcia. Os pés de Joaquim

dançaram para os lados, e eu percebi que o gato estava agora de costas,

contorcendo-se num último impulso de vida enquanto o índio empurrava a

lâmina mais profundamente no peito do animal”. (: 178) 26

Assim como a cena dos caçadores africanos na escultura do Museu de História

Natural, a luta entre o zagaieiro e a onça é um acontecimento recortado no tempo e no

espaço, um exemplar ideal que poderia ser exposto numa vitrine do museu. Referindo-

se ao naturalismo de Carl Akeley, Haraway afirma que ele é movido por um ideal de

não haver nenhum tipo de mediação, nenhum impedimento para a contemplação do

observador dos animais como eles realmente são. A autora relata os dez anos de

desenvolvimento de câmeras para a filmagem da vida selvagem que Akeley teve que

esperar para filmar com sucesso sua imagem da caçada de leão com a lança. O projeto

pessoal dele era uma câmera tão fácil de disparar quanto uma arma, o que ela associa ao

ideal da representação realista e objetiva da vida selvagem, contra a qual formula seu

próprio projeto narrativo:

“Akeley quis apresentar uma visão imediata; eu teria preferido dissecar e

tornar visível uma camada depois da outra de mediação”. (1989: 35)27

Sasha Siemel é um símbolo da caçada de aventura praticada no Pantanal, a qual se

sobrepõe à imagem utilitarista da eliminação dos animais nocivos à criação de gado. O

caçador admira o tigre como um inimigo honrado, e enfrenta-o extrapolando o código

da nobreza esportiva e colocando em risco a própria vida. Ao mesmo tempo, apresenta

em segundo plano o sacrifício do animal como algo necessário, um serviço para a

comunidade:

26 A descrição de Siemel pode ser comparada com registros de campo no ANEXO 1 ao final do

capítulo. 27 Akeley wanted to present an immediate vision; I would like to dissect and make visible layer after layer of mediation. (1989: 35)

154

“Os fazendeiros sabiam das minhas caçadas e frequentemente mandavam

avisar que havia tigres destruindo seu gado. (...) Os fazendeiros me

pagavam com mantimentos, ou com um cavalo ou uma mula, e eu tinha o

privilégio de abater uma novilha ou boi para alimentar a mim e meus

cachorros”. (: 240)28

O segundo clímax do livro é quando o próprio autor, já experimentado zagaieiro,

parte em busca de uma onça com características extraordinárias, um animal denominado

“Assassino”:

“A história de Assassino era bem conhecida em todo o Pantanal do

Xarayes. Muitos anos antes este enorme tigre tinha sido ferido por um

caçador inexperiente. (...) uma única patada com aquelas garras afiadas

seria capaz de destruir um cachorro. (...) Foi este truque de armar

emboscada para os perseguidores que deu nome ao trigre – Assassino.

Duas vezes antes os grandes fazendeiros tinham me pedido diretamente

para caçar aquele demônio”. (253)29

A descrição do animal como um criminoso aparece também quando o caçador é

questionado pela futura esposa, em Nova York, sobre a importância de se preservarem

os animais selvagens. Ele diz:

“Eu expliquei (…) que também não gostava de matar animais; e que minha

caçada era para abater um animal assassino, do mesmo modo que um

policial seria capaz de matar um assassino humano”.30 (: 274)

Neste outro trecho, convence-a a atirar numa onça-parda, acuada em cima de uma

árvore pelos cães, argumentando:

“O puma era um destruidor de gado, e um dos raros animais da selva que

matam unicamente por matar. (...) Eles [pumas] são covardes”.31 (:276).

28 The fazenderos knew of my hunting, and often sent Word of tigres destroyng their cattle. (…) The fazenderos would pay me in supplies, or with a horse or mule, and I had the privilege of slaughtering a young heifer or bull for food for my dogs and myself. (: 240) 29 The story of Assassino was well known along the Pantanal do Xarayes. Several years before this enormous tigre had been wounded by an inexperienced hunter. (…) One sweep of the razor claws would destroy a dog. (…) It was this trick of ambushing pursuers that gave the tigre its name – Assassino. Twice before I had been asked directly by the big fazenderos to hunt this devil. (253) 30 ... I explained (…) that I also did not like to kill animals; and that my hunting was to destroy a kind of animal murderer, in the same way a policeman might shoot a human killer (: 274).

155

Os termos usados acima para descrever os animais – “assassino”, “covarde”,

“demônio” – contrastam com a nobreza da fera enfrentada pelo zagaieiro:

“Você vai ver que o tigre não responde à lógica humana, e não entende o

significado de piedade. E o tigre é um dos inimigos mais honrados que você

irá encontrar” (:16)32

A ambigüidade entre o animal nocivo e o adversário de valor atravessa toda a

narrativa, e é ela que define a identidade do caçador. Durante o trabalho de campo,

observei diversas vezes as fotografias do caçador expostas na sala de visitantes da

pousada da Fazenda San Francisco, em Miranda. Sobre elas, estava pendurada sua

zagaia. Sasha Siemel ficou famoso também com as imagens que produziu de si mesmo

enfrentando as feras com a zagaia na Miranda Estância, fazenda onde viveu nas

décadas de 1930 e 1940, e onde guiava caçadores e visitantes ilustres, atraídos pela

grande variedade de animais silvestres da região.

No prefácio do livro sobre a história da fazenda (Benevides e Leonzo 1999), o

médico e naturalista Jorge Schweizer apresenta um testemunho pessoal da filmagem da

onça morta na zagaia:

“Foi numa dessas visitas que assisti, em novembro de 1947, à filmagem da

luta entre a onça e Sasha, apenas munido de zagaia. Essa luta foi encenada

num curral feito de carandá a pau-a-pique com aproximadamente quatro

metros de altura. Em toda extensão elíptica do curral havia, no lado

externo, um andaime de onde podia-se olhar para dentro dele (...).

Finalmente chegou a hora de o nosso herói entrar em cena. Sasha Siemel,

lituano naturalizado nos Estados Unidos, já havia matado 30 pintadas na

zagaia, mas jamais alguém conseguira documentar os acontecimentos, que

sempre se davam inesperadamente e nos capões mais densos. Para

completar o seu filme The jungle family necessitava ainda dessa cena

dramática. Dos três filmadores somente mamãe foi bem sucedida e fez as

imagens que depois deram a volta ao mundo. (...) Depois do show tiramos

31 … The puma was a destroyer of stock, and one of the rare beasts of the jungle who kill merely for the sake of killing. (…) They [pumas] are cowards… (: 276). 32 You will discover that the tigre does not respond to human logic, nor does he understand the meaning of pity. And the tigre is one of the more honorable enemies you will meet” (: 16).

156

fotos do herói sexagenário e de seu filho de apenas um ano de vida com o

macharrão”. (1999: viii-ix)

Alguns instantâneos dessas imagens (que, de acordo com o depoimento, correram o

mundo) faziam parte da coleção exposta na San Francisco [Foto]. No entanto, a situação

mais repetida nessa coleção de fotografias era a dos caçadores em torno da onça abatida.

Siemel com a mulher e o filho, sorridentes, apareciam em uma série delas portando

zagaia, espingarda ou arco e flecha, sempre agachados atrás do corpo do animal. Em

algumas, o caçador abre a boca do felino para mostrar as presas para a câmera.

Não pude deixar de observar a semelhança de algumas dessas imagens de caça com

as fotografias atuais feitas pelos pesquisadores da fazenda, em que eles se reúnem em

torno da onça anestesiada. Comentei isso com Henrique, o biólogo responsável pelo

projeto Gadonça em 2006, na primeira vez em que vi as fotos. Ele não concordou muito

com a idéia, e mais tarde procurou me mostrar como nessas últimas fotos, que ficavam

no auditório do projeto, havia um cuidado com a posição assumida em relação ao

animal, para que ele não parecesse um troféu de caça.

As imagens antigas de Siemel matando a onça com a zagaia seriam uma segunda

versão para o tema da figura ideal do caçador nativo, que aproximei do modelo man the

hunter apontado por Donna Haraway. Neste caso, o caçador explora um território

desconhecido, e retrata-se como o primeiro branco a enfrentar a fera nas condições

primitivas. A iconografia ligada ao caçador pode ser considerada também como

precursora de uma transição histórica, especialmente quando lembramos o local onde as

fotos estavam expostas: a sala de visitantes de uma pousada ecológica. Na pousada,

onde os safáris fotográficos substituem as antigas caçadas, a figura antes ameaçadora da

onça-pintada se transformou no símbolo da vida selvagem ameaçada. No ensaio Sobre

Fotografia (1977), citado por Donna Haraway, Susan Sontag afirma:

“Um caso em que as pessoas estão mudando de balas para filmes é o safári

fotográfico, que está tomando o lugar do safári na África Oriental. Os

caçadores levam Hasselblads em vez de Winchesters; em vez de olhar por

uma mira telescópica a fim de apontar um rifle, olham através do visor

para enquadrar uma foto. (...) As armas se metamorfosearam em câmeras

nessa comédia séria, o safári ecológico, porque a natureza deixou de ser o

que sempre fora – algo de que as pessoas precisavam se proteger. Agora a

natureza – domesticada, ameaçada, mortal – precisa ser protegida das

157

pessoas. Quando temos medo, atiramos, mas quando ficamos nostálgicos,

tiramos fotos”. (2006 [1977]: 25)

A coleção de fotografias de Siemel aparece novamente em minhas anotações de

campo em 2008, no registro de uma conversa com o biólogo Ricardo Costa, responsável

na época pelo projeto em Gadonça. Eu comentava com ele sobre uma fotografia que

vira emoldurada no escritório de um fazendeiro entrevistado para a pesquisa. A imagem

[foto x] mostrava uma onça morta apoiada de pé dentro de um mangueiro de gado, mas

a estranha posição do animal denunciava o artifício, confirmado pelo meu entrevistado,

tratando-se, provavelmente, de um animal morto apoiado em pedaços de madeira.

Observando a qualidade fantasiosa das situações em que os animais apareciam também

nas fotografias de Siemel, o biólogo apontou uma imagem de duas onças se

alimentando da carcaça de um boi, segundo ele tida por muitos pesquisadores como

uma montagem feita com animais dopados ou mortos [foto x].

Um elemento que revela a ausência de compromisso documental da literatura de

Sasha Siemelestá no próprio nome do livro; a primeira página dele mostra uma crítica

favorável na qual se lê:

“No Brasil o jaguar é chamado de tigre, e nas florestas daquela país Sasha

Siemel é conhecido como Tigrero – o homem que mata tigres com uma

lança.” 33

Almeida comenta sua estranheza com o uso do termo pelo admirado antecessor:

“O nome usado para o jaguar em todo Brasil é ‘onça’ (...) A palavra ‘tigre’

nunca é usada no Brasil. Por que, em todos os seus livros, Sasha Siemel

sempre se refere ao jaguar como tigre, considerando que ele nunca caçou

fora do Brasil, é uma questão que sempre me intrigou”. (1976:61)34

[O termo tigre é usado em outros países da América do Sul, e minha própria

hipótese (não testada) é que tenha sido adotado por Siemel por sugestão do editor, a

partir da referência da cultura popular americana aos termos hispânicos. Mas isso é

apenas uma suposição].

33 In Brazil the jaguar is called a tigre, and in the jungles of that country Sasha Siemel is known as Tigrero – the man who kills tigres with a spear. 34 The name for “jaguar”, all over Brazil, is “onça” (…). The word “tiger” or “tigre” is never used in Brazil. Why, in all his books, Sasha Siemel always refers to the jaguar as tiger, since he never hunted outside Brazil, is a matter which has long intrigued me. (1976: 61)

158

O artificialismo dos eventos autobiográficos narrados pelo caçador também são

tematizados por Benevides e Leonzo (1999), num esforço documental para desmarcar o

mito Sasha Siemel. Os autores de Miranda Estância questionam a veracidade da

imagem heróica construída por ele mesmo em seus livros:

“[E]stamos diante de um homem inteligente que utilizou o Pantanal mato-

grossense para sobreviver, mas , com certeza, não apenas com a zagaia. Os

livros e documentos contábeis da The Miranda Estância Company Limited

comprovam sua ligação com os caçadores da fazenda (...) e o denunciam

como habitual comprador de munições”. (: 89)

Os caçadores nativos que trabalhavam na fazenda, como mostram os autores,

acompanharam durante muitos anos as caçadas de Siemel, mas não são citados em

nenhum momento nos seus livros. Os historiadores concluem que:

“[A] questão do uso exclusivo da zagaia é uma farsa, que funcionava

apenas com animais domados (...)”. (Idem)

Para chegar a esta conclusão, defendem que a zagaia popularizou-se no Pantanal

com a expedição de T. Roosevelt pela região, citando Pereira da Cunha.

“Até o célebre Sasha Siemel lá retornou em 1955 acompanhado de alguns

visitantes. (...) [E]ra um “guia de caçadas” que, quando possível,

procurava apanhar vivas as feras, domá-las e fotografá-las, com o objetivo

maior de vendê-las para os parques zoológicos da Europa e dos Estados

Unidos”. (: 115)

Usando o mesmo procedimento adotado pelos autores, observo apenas que o

Comandante Pereira da Cunha (Op.Cit.), apesar de descrever os zagaieiros como

'ajudantes' do caçador armado, menciona também a caçada de onça dos índios Guató

com o uso da zagaia. Vale lembrar também que o uso da lança indígena para a caçada

da onça, por um caçador solitário, é mencionado na literatura etnológica sobre a região

também para os Bororo (Crocker), o que está em desacordo com a tese dos

historiadores.

Uma referência ao uso da zagaia aparece também no livro de Tony Almeida, o

terceiro e último caçador da linhagem de Roosevelt comentado neste capítulo (também

citado em Benevides e Leonzo 1999). Almeida conheceu um dos caçadores que

trabalhou com Siemel na Miranda Estância, e descreve-o assim:

159

“A técnica de atacar o jaguar com a lança, que o velho tinha aprendido

com Siemel, exigia exatamente aquele temperamento frio e determinado.

Lauro tinha sido o braço direito de Siemel por muitos anos e matado meia

dúzia de jaguares sozinho, armado apenas com uma lança.

Agora uma etiqueta presa no crânio branqueado sobre a lareira do Major,

com o nome de Lauro, a data e a medida escritas nela eram o único

testemunho daquela batalha solitária e da proeza do homem que combateu

o gato monstruoso com uma arma tão primitiva quanto as usadas por seus

antepassados pré-históricos”. (:10)35

A imagem final corrobora a associação entre a figura do zagaieiro e aquilo que

Haraway designa pelo termo man the hunter (1989: Op.Cit), o protagonista masculino

da história evolutiva. Minha intenção aqui não é ignorar o aspecto artificial ou

fantasioso da narrativa de Siemel. Apenas chamo atenção para o fato de que o

personagem do índio Joaquim Guató e o testemunho do uso da zagaia não são tão

frágeis quanto os atores fazem parecer. Ao contrário do modelo realista baseado na

comprovação científica, o princípio metodológico que procuro adotar aqui não se baseia

em desmascarar as fontes citadas, mas antes em tornar visíveis todas as camadas de

mediações que as narrativas apresentam.

Tony Almeida

Tony Almeida publicou seu livro de caçadas – Jaguar Hunting in Mato Grosso – em

inglês, pela editora britânica Safari Press, em 1976. A obra, destinada ao público

específico dos caçadores esportivos amadores, foi reeditada em 1997 com o título

Jaguar Hunting in Mato Grosso and Bolivia. Assim como Siemel, o autor é um caçador

profissional e guia de safáris internacionais. O próprio Almeida se inscreve

(tardiamente) na linhagem de Roosevelt, ao citar o presidente norte americano como

referência para um modelo de preservação no qual o caçador esportivo desempenha um

papel fundamental na proteção da vida selvagem:

35 The technique of taking jaguar with the spear, which the old man had learnt with Siemel, required precisely such a cool and steely temperament. Lauro had been Siemel’s right-hand man for many years and had since taken half-a-dozen jaguars himself in single-handed combat armed only with a spear.

Now a label tied to the bleached skull on the Major’s mantelpiece with Lauro’s name, the date and the measurement written on it was the only testimony to that lonely battle and to the prowess of the man who fought the monster cat with as primitive weapon as those used by his prehistoric ancestors. (: 10)

160

“O Presidente Theodore Roosevelt, o mais conhecido caçador americano

de nossa época, que caçou animais de grande porte das Montanhas

Rochosas à África e Brasil, foi o homem responsável por criar a maior

parte dos parques nacionais e reservas florestais que existem hoje na

América. (...) Então quem irá proteger a caça nesses países onde os

guardas não querem ou não podem fazer isso? A resposta é: (...) os

caçadores profissionais”. (1976: 123)36

O autor diferencia dois tipos diferentes de caça:

“Uma vez que a caça proibida ameaça a própria existência da caça

esportiva, da qual nós dependemos para ganhar a vida, nós obviamente

fazemos todo o possível para que não haja caça proibida nas regiões em

que caçamos”. (124)37

Transportado para o Pantanal, uma espécie de modelo ideal da vida selvagem

protegida e caçada da maneira correta aparece representado pela Miranda Estância, não

por acaso uma fazenda de origem inglesa. No trecho a seguir, Almeida descreve a

propriedade, onde caçou sua primeira onça:

“A Estância Miranda é um triângulo de terra entre os Rios Miranda e

Aquidauana. Este é o território do Major, com o acesso pela estrada

permanentemente vigiado do posto de vigilância que é ligado à casa da

fazenda por telefone, com os limites e cercas da fazenda constantemente

patrulhados por vaqueiros armados e pelos dois caçadores, e com as

fronteiras do rio defendidas por um barco a motor com homens armados”.

(Almeida 1976: 11)38

O território fortificado, controlado, reforça uma imagem quase feudal:

36Tradução minha: President Theodore Roosevelt, the best-known America hunter of this day, who hunted big-game from the Rocky Mountains to Africa and Brazil, was the man responsible for establishing most of the National Parks and forest reserves that exist in America today. (…) So who will protect the game in these countries where the guards are unwilling or unable to do so? The answer is: (…) the professional hunters. (1976: 123) 37 Since poaching threatens the very existence of continued sport hunting, on which we depend for a living, we obviously do all in our power to see that there is no poaching in the areas we hunt. (124) 38 Miranda Estancia is a triangle of land between the Miranda and the Aquidauana Rivers. This is the Major’s territory, the access by road guarded permanently at his border outstation which is connected to the main ranch house by telephone, his land borders and fences patrolled constantly by armed “vaqueiros” (cowboys) and by the two hunters, and his river boundary defended by a motor boat with armed men. (…)

161

(seria interessante observar como essa figuração feudal das gdes fazendas brasileiras

se impôs na ficção e nas ccs sociais)

“Roubo de gado, sem falar em caça ilegal, é portanto muito difícil dentro

da propriedade do Major. Ninguém que não seja conhecido tem permissão

para entrar na fazenda sem autorização expressa do Major”. (Idem)39

A descrição da figura patriarcal do Major é uma tradução exata, para a realidade

local, da representação de Roosevelt como “father of the game” (Haraway 1989). A

posição de Almeida é a do caçador esportivo que reconhece no Senhor da fazenda os

seus próprios valores:

“Ele mesmo um ótimo esportista, com um amor pelo enorme gato do

pântano que só aqueles que passaram anos medindo forças com ele

possuem realmente, o Major não dava permissão para matar um jaguar,

fosse por caçadores nativos ou em visita, a menos que o animal tivesse sido

pessoalmente condenado por ele como assassino de gado. Até jaguares que

só matavam gado ocasionalmente para variar sua dieta de animais

selvagens eram tolerados”. (:11)40

Os parâmetros éticos da atividade esportiva são cuidadosamente referidos antes da

descrição da caçada propriamente dita, desta vez com a presença do anfitrião:

“Um dia, no final de maio, eu fui a Miranda uma segunda vez. O próprio

Major estava em casa: Major Alfredo Ellis, um dos pioneiros da força

aérea brasileira, um homem d bigode, queimado de sol e de fisionomia

dura, um veterano do Mato Grosso, um grande caçador no seu tempo e um

ótimo anfitrião”. 41

A seguir o caçador trata da escolha do animal que vai ser caçado:

39Cattle hustling, not to speak of poaching, is therefore very difficult within the confines of the Major’s property. Nobody is allowed inside who is not well known to the ranch without the Major’s express permission. 40A fine sportman himself, with a love for the great cat of the swamps which only those who have spent years crossing swords with him truly possess, no permission was given by the Major for the killing of a jaguar, whether by gests or native hunters, unless the animal had been personally condemned by him as a confirmed stock-killer. Even jaguars who only occasionally killed cattle as a change for their normal diet of wild game were tolerated (…) (: 11) 41 One day in late May I arrived in Miranda for the second time. The Major himself was in residence: Major Alfredo Ellis, one of the pioneers of the Brazilian air-force, mustached, sunburst and craggy-faced, a veteran of the Mato-Grosso, a great hunter himself in the old days and a fine friend at host.

162

“Sim, o Major me disse, um jaguar tinha sido acusado, julgado e

condenado. A acusação: um inveterado assassino de gado, o julgamento:

uma inspeção das depredações do felino, normalmente feitas pelo próprio

Major, e uma contagem das cabeças de gado mortas pelo felino a partir de

notícias trazidas pelos vaqueiros e vigias de cercas. O veredito neste caso:

culpado, o castigo: morte. Este jaguar tinha de fato sido condenado três

meses antes, mas o major tinha dito aos caçadores nativos para poupá-lo

até o fim da estação chuvosa e então o tinha guardado para a minha

caçada. O fato deste adiamento da execução ter custado ao rancho quinze

ou vinte cabeças de gado não foi ignorado por mim e eu fiquei devidamente

agradecido”. 42

O caçador descreve julgamento e uma condenação da onça pelos seus crimes, que

servem como justificativa para o abate. As citações de Roosevelt, do Major e de Sasha

Siemel, todas feitas com reverência no texto, repetem sempre uma mesma fórmula –

“Roosevelt himself”, “Sasha Siemel himself”, “the Major himself” – que indica a

autoridade e a distinção moral da figura referida. O trecho citado coloca em cena o

código moral do caçador, que opõe a “caça esportiva” (Sport hunting) e a “caça furtiva”

(poaching). No capítulo “The Role of the Hunter” (: 121-125), Almeida apresenta

argumentos enfáticos contra aqueles que condenam a caça:

“Antes de acusar caçadores de animais de grande porte de destruir os

maiores animais do mundo, as pessoas deviam parar para pensar quem, de

fato, tem mais interesse na sobrevivência de animais grandes.

São os chamados amantes da natureza que jamais sonhariam em ir a um

lugar onde pudessem ser picados por um mosquito ou ver uma cobra, e que

nunca viram um animal grande fora de um zoológico?

Ou são os caçadores amadores que passam a maior parte do seu tempo

livre e gastam o seu dinheiro visitando os lugares selvagens da terra, e os

42 Yes, the major told me, a jaguar had been accused, tried and condemned. The accusation: inveterate cattle-killing, the trial: an inspection of the feline’s depredations, often carried out by the Major himself, and a count of the heads of cattle taken by the cat from news brought in by the “vaqueiros” and fence-riders. The verdict in this case: guilty, the penalty: death. This jaguar had in fact been condemned three months previously, but the major had told the native hunters to spare him until the end of the rainy season and so had saved him for my hunt. That this stay of execution must have cost the ranch fifteen or twenty head of cattle was not lost on me and I was duly thankful.

163

caçadores profissionais que vivem no meio dos animais selvagens e

dependem deles para ganhar a vida?” (:121)43

Baseado no exemplo dos safaris africanos, ele considera o papel dos caçadores

esportivos fundamental na conservação da vida selvagem:

“Organizações esportivas (...) nos }Estados Unidos e (...) Europa têm

subsidiado e financiado projetos de preservação da natureza de milhões de

dólares. Só os programas africanos têm inclusive construído estradas ao

redor de reservas de animais para permitir o acesso de patrulhamento

contra caça ilegal, construído poços artesianos para salvar os animais

durante a seca, pago os salários de guardas de muitos parques africanos

importantes (..) e doado veículos e outros equipamentos para os

departamentos de caça dos países africanos. Estes veículos têm sido usados

para reprimir a caça ilegal”. (:121-122)44

A posição do autor frente aos “ecologistas de poltrona” remete a um ideal de

decadência moral da sociedade moderna urbana, contra o qual a qual o caçador

estabelece seu lugar. Sobre a fotografia e os filmes de vida selvagem feitos por Akeley,

Haraway diz:

“A ambigüidade da arma e da câmera perpassa toda a obra de Akeley. Ele

é uma figura de transição da imagem ocidental da África mais sombria

para a mais luminosa, da natureza merecedora de temor masculino para a

natureza necessitada de carinho materno”. (1989:43)45

43 Before accusing big-game hunters of destroying the world’s large animals, people should stop to think who, in fact, have the most interest that big-game should survive.Are they so-called nature lovers who would never dream of going anywhere where they might be bitten by a mosquito or see a snake, and who have never seen a large wild animal outside a zoo?

Or are they the amateur sport-hunters who spend most of their spare time and money visiting the wild places of the earth, and the professional hunters who live among wild animals and depend on them for a living? (121) 44 Sportsmen’s organizations (…) in the United States and (…) Europe have subsidized and sponsored projects for preserving wildlife worth millions of dollars. Just their African programs have including building roads around game preserves to permit anti-poaching patrols, building water holes with artesian wells to save game during droughts, paying the salaries of white game wardens of many important African game parks (…) and donating vehicles and other equipment to the game departments of African countries. These vehicles have been used to suppress poaching (…) (: 121-122) 45 The ambiguity of the gun and camera runs throughout Akeley’s work. He is a transitional figure from the western image of darkest to lightest Africa, from nature worthy of manly fear to nature in need of motherly nurture. (1989:43)

164

A figura de Tony Almeida seria também um bom exemplo, talvez não de uma

transição entre a arma e a câmera, mas de uma superposição entre as duas. Quando fala

sobre os equipamentos utilizados no campo, ele cita sua marcas preferidas de

armamentos:

“Quanto a armas, o revólver Smith & Wesson, é claro, já tem uma longa

tradição em Mato Grosso, onde nenhum homem cavalga desarmado”.

(1976: 145)46

E, na seqüência do mesmo capítulo, acrescenta:

“Sempre que vou para o pantanal levo uma câmera comigo. Não é de

espantar, portanto, que minhas duas Pentaxes tenham tido sua quota de

mergulhos”. (: 148)47

No caso, atirar e clicar são expressões do mesmo desejo de documentação que move

o autor. Ambos os gestos produzem dados, e também troféus. No primeiro caso, a onça

abatida gera medidas, registros de conteúdos estomacais, e também peles e cabeças. No

segundo, registram o caçador junto à sua presa.

A oposição feita pelo autor entre hunting e poaching é reveladora do papel não

marcado de homem branco na narrativa, um papel ligado diretamente à linhagem que

procuro traçar nesta seção. Em relação às esculturas dos caçadores de leão, que

simbolizam o ideal de caça no Museu de História Natural, Donna Haraway comenta:

“Ao discutir os caçadores de leão que usam lanças, Akeley se refere a eles

como homens. Em todas as outras circunstâncias, ele se refere aos machos

africanos adultos como rapazes”. (:28)48

O papel do nativo no relato do caçador branco é o de auxiliar; um auxiliar tratado de

forma paternalista. No livro de Almeida, da mesma forma, todos os caçadores nativos

que trabalham com ele, homens adultos e caçadores experientes recrutados nas áreas de

caça, são tratados como “boys”:

46 As for hand-guns, the Smith & Wesson revolver, of course, already has a long tradition in Mato-Grosso, where no man rides unarmed. (1976: 145) 47 Wherever I go in the swamps a camera goes with me. Not surprisingly, therefore, my two Pentaxes have taken their share of dunkings. (: 148)

48 Discussing the lion spearers, Akeley referred to them as men. In every other circumstance he referred to adult male Africans as boys. (:28)

165

“…chega uma hora em que eu tenho saudades daquela região pantanosa e

fico louco para me sentar outra vez diante da fogueira (…), antecipando a

caçada do dia seguinte, ouvindo o zumbido dos insetos, as vozes abafadas,

sonolentas dos rapazes [‘boys]em suas redes”. (: 163-164)49

Se tivemos um rapaz mais corajoso do que Raimundo, foi Gonçalo (:166)50

Assim como seus antecessores, Almeida formula também um tipo ideal para a

caçada: o maior prêmio é o jaguar maior, o mais desafiador para o caçador. A estrutura

da narrativa o aproxima de Sasha Siemel. A história que costura o livro é o embate do

caçador com um animal nomeado, individualizado e condenado como matador de gado

(stock killer); um fora da lei. Aqui o adversário de valor é nomeado e devidamente

apresentado:

“O jaguar que fugiu tinha uma das maiores pegadas que eu já tinha visto,

medindo quinze centímetros de largura. Daquele dia em diante ele foi

apelidado de “Big Richard” pelos Vaqueiros (...) em homenagem aos pés

de Richard. Muitas vezes nós tentamos encontrá-lo enquanto caçávamos

com clientes nos anos seguintes, mas ele sempre fugia para o mato fechado,

aleijando e matando cachorros e indo embora quando homens se

aproximavam”. (: 50) 51

No final do livro, o nobre inimigo finalmente é abatido. Usando um recurso

empregado por seus precursores, o narrador interrompe a seqüência de eventos para

recortar um quadro estático, antecipando o desfecho:

“Uma incrível visão primitiva foi iluminada: a vinte metros de distância,

com a cabeça perto do chão, Big Richard estava emitindo seu ultimo

49 …there comes a time when I am homesick for that marshy wilderness, and long to sit again beside the camp fire (…), anticipating the next day hunting, listening to the hum of insects, the subdued, drowsy voices of the boys in their hammocks. (: 163-164) 50 If we had one boy braver than Raimundo it was Gonçalo (: 166)

51 The jaguar who escaped had one of the biggest tracks I have kown, measuring five inches across the print of the forefoot. From that day on he was nicknamed “Big Richard” by Mariano’s Vaqueiros, in honor of Richard’s feet. Many times did we attempt to come up with him while hunting with clients over the next years, but he always made for the thickest brush, mauling and killing dogs and moving out as men approached. ( :50)

166

chamado. As notas roucas ecoaram (..) por toda a floresta pantanosa que

tinha, por tanto tempo, sido o seu reino”. 52

Por fim, registra o fim da onça:

“Antes que Thornton pudesse perceber o seu erro, ele disparou o tiro. (...)

Uma das balas tinha atingido seu cérebro, interrompendo instantaneamente

sua carreira. (...) O rei estava morto”. (:193)53

Posteriormente, ao medir o crânio animal, se dá conta de que está diante de um

prêmio maior do que esperava:

“Eu pude ver que sua cabeça era fora do comum, mas não percebi na hora

que tínhamos conseguido um novo recorde mundial”. 54

Por fim, resume o próprio ideal de caçada:

“Pareceu-me perfeitamente adequado que este velho jaguar, que tinha por

tanto tempo medido forças conosco, tivesse quebrado o recorde, e que

agora, totalmente reconstituído pelo grande taxidermista Mario Aguilar, na

Cidade do México, estivesse imortalizado para a posteridade, para um dia

tomar seu lugar num museu público”. (:194) 55

O adversário de valor, enfrentado pelo caçador em seu hábitat, é imortalizado pela

Ciência. Sobre a relação de Aekeley com os espécimes coletados por ele expostos nos

dioramas do Museu de História Natural, Haraway afirma:

“O conhecimento científico anulou a morte; só a morte antes do

conhecimento era final, um ato abortivo na história natural do progresso”.

(:34)56

52 A vision of primeval wonder was illuminated: twenty meters away, his head close to the ground, Big Richard was sending out his last call. The hoarse notes rolled away (…) through the entire marshy wilderness which had for so long been his kingdom. 53 Before he could realize his mistake Thornton’s shot rang out. (…) One of the pellets had reached his brain, putting an instant end to his career. (…) The king was dead. (: 193) 54 I could see his head was quite out of the ordinary but did not realize at the time that we had a new world’s record. 55 It seemed to me altogether fitting that this ancient jaguar, who had for so long crossed swords with us, should break the record, and that now, fully mounted by the great taxidermist Mario Aguilar, in Mexico City, he should be immortalized for posterity, to eventually take his place in a public museum. (: 194) 56 Science knowledge canceled death; only death before knowledge was final, an abortive act in the natural history of progress. (: 34)

167

Apesar da distância temporal Almeida é o autor que melhor realiza esse ideal entre

os citados neste capítulo. Ele é um exemplo da sobreposição entre caça e estudo

científico preconizada pelo modelo da história natural e um defensor do modelo do

caçador esportivo, do “father of the game”, um herdeiro legítimo de Akeley e

Roosevelt; exemplo tardio da posição não marcada do explorador branco que

caracteriza o modelo de história natural representado por eles.

O ideal naturalista de ver tudo de lugar nenhum, de verdades científicas puras,

indisputadas, é um legado desta tradição, assim como a busca por esse tipo ideal de

animal, do macharrão, o animal ideal de caça. Essas duas coisas se fundem na tradição

patriarcal que procurei mapear aqui, como modelo para uma determinada história

natural. O que Donna Haraway mostra é que machismo, sexismo, racismo, e

colonialismo não são questões externas, mas sim forças ativas tanto nas representações

naturalistas tanto da vida selvagem quanto nas da vida alheia. A mudez animal, nesse

sentido, é um dos espelhos contra o qual o ‘Ocidente Branco’ projetou sua dominação

moral e masculina ao longo de séculos de colonialismo.

Essa mudez também é crucial para as reflexões de Jacques Derrida (1999) sobre a

história do conceito de animal, no singular genérico, contraproduzido na “autobiografia

do sujeito ocidental”, que é como ele nomeia a história da filosofia. Derrida afirma que

todos os filósofos dizem a mesma coisa: o animal é “privado de linguagem”, “não tem

o poder de responder”(: 62). O termo animal se refere a essa falta, privação e

corresponde a uma mudez e passividade do animal como objeto científico. A

animalidade como conceito filosófico, designa assim, precisamente, a condição oposta à

condição humana; a negação ou ausência daquilo que se convenciona como sendo a

singularidade humana: inteligência, sentimento, consciência de si e da morte,

linguagem, abertura.

O abate do Big Richard é uma experiência de comunhão com a natureza e, ao

mesmo tempo, é um novo recorde para os registros científicos; um belo exemplar para

um museu de história natural. No entanto, ao mesmo tempo em que Almeida é o último

representante na linhagem de caçadores naturalistas apresentada aqui, ele é também, em

muitos sentidos, um precursor da biologia de campo. Como bom naturalista, o caçador

anota diversas medidas dos animais que abate: peso, comprimento, tamanho do crânio,

entre outras. Além disso, analisa o conteúdo estomacal, observa uma série de aspectos

do uso do habitat e do comportamento da espécie; produz, enfim, um volume

substancial de dados quantitativos (tabelas com pesos e medidas dos animais) que são

168

citados posteriormente pela literatura científica especializada. Muitos os dados

quantitativos que produziu foram incorporados ao corpus científico, e nesse ele se

inscreve como pioneiro nos estudos sobre a onça pantaneira.

169

ANEXO D: Zagaieiros

Entrevista 1:

Seu Felipe (Miranda, março de 2008)

E: E essas histórias que falam antigamente dos zagaieiros, O senhor conheceu

algum?

Já ajudei. Aqui tem um velho, o Ventura. Ele tá lá pro Guaporé. A onça

acuava assim, e o cachorro latindo aí. E aqui eu tenho um machetinho,

assim, pra limpar bem. “Vai limpando” – ele falava pra mim assim – “que

não tem perigo não companheiro. Ele não vai vim não”. Aí quando chegava

pertinho, ele ficava assim [agachado]. Olhava no cachorro assim,

travessava, olhava no cachorro assim, voltava. “Pode voltar agora aqui”.

“Agora vamos tocar” – falava com o cahorro. Aí ela começou a dar um

bufo. “Não vem ainda”. Dá outro, ameaçando o cachorro. Nada. Ele Fala:

“Com três ela vem. Fica desse lado, que eu vou ficar aqui. Com três bufo,

bufos ela vai virpra mim.” Tem aquela zagaia. Aí vem e levanta a pintada.

Vem com os dois pés. Aí ele passa pra ela a coisa. Ela pega assim [junta as

mãos] e trás no gogó. Ele empurra, enfia bem no gogó, e já pula por cima.

Com três bufos ela vem, com três ela vem certinho.

E: Mas o cara tem que saber manejar...

Tem que saber. É a mesma coisa que um jogador.

Entrevista 2

Seu Cassimiro(Miranda, abril de 2008)

F: E o senhor já viu caçada na zagaia?

Vi só uma vez. Um poconeano.

F: Lá no norte?

170

Não, esse foi aqui mesmo, no Nabileque. Ele era de Poconé. Eu esqueci o

nome dele, chamavam ele muito de ‘gato’. Ele era baixinho, era um pouco

mais baixo que eu, mas era troncudinho, assim; tinha muita força. E eu tava

com medo. Cachorro tava acuando a onça. E ele falou: “Vai limpando aí

pra mim, vai roçando”. Eu era bem mais novo, e ele falava: “vai roçando

aí, meu filho, não tenha medo não, eu estou aqui firme”.E eu com a foice

cortando, e ele falava: “corta bem baixinho, bem rentinho, vai limpando

tudo”.

E a onça lá, os cachorros trabalhando ela. De vez em quando ela dava um

bufo lá, e eu com um medo danado. Eu falei “se esse bicho partir de lá...” e

ele só falava pra mim: “a hora que ela vier de lá, que você vê que o bicho

arrancou de lá, você cai fora, deixa que eu enfrento ela aqui”. E eu fui

roçando. Ele falou: “Pode sair da frente, que agora ela vem”. Diz que a

onça tem um jeito que ela faz lá, na hora que ela tá querendo vir. E de certo

ele viu que elatava se preparando pra vir e me mandou sair dali.

E aí ele mandou cachorro mestre. Cachorro mestre dava aquela avançada,

assim, e corria pro lado dele. E foi a hora que ela veio em cima dele. Só que

ele firmou, assim, a zagaia nela, e quando ele empurrou, assim, um

pouquinho, ela... Parece que ela mesma se ferra, né?

Eu sei que ela deu uma gatanhada ali. Eu sei que empurrou, assim... O

bicho caiu de lombo e ele firmando aqui assim, ele deu um salto pra lá,

seguro no cabo da zagaia, deu aquele salto. Mas pegou aqui mesmo, assim,

no pé do pescoço, bem no sangrador. Foi uma só. O bicho esperneando ali,

não fez mais nada. De certo alcançou o coração logo, porque é ela tem uma

folha desse tamanho mais ou menos. E aquilo corta dos dois lados e tem

ponta, a zagaia. Eu falei: “eu não tento pegar na zagaia, não”.

F: Mas será que tem algum desses zagaieiros por aí ainda?

Eu acho que hoje em dia já é difícil. Esse mesmo que eu assisti pegando, eu

acho que ele já morreu, porque ele já era bem de idade e eu era novo, eu

tava com uns trinta anos; eu já tô com setenta e três.

Entrevista 3

Seu Getúlio (Miranda, maio de 2008)

171

F: E é verdade que nos tempos antigos o pessoal matava onça na zagaia?

Matava. Meu sogro ajustou aqui na fazenda Miranda Estância, na época,

só pra matar. Veio com outro caçador.Ele veio só pra matar onça, aí. Ele

matou duzentos e oitenta onças aí.

F: E era só na zagaia?

Quando acuava no chão, ele pegava na zagaia. Quando subia, atirava.

F: E aonde foi que ele aprendeu?

Ele aprendeu com o sogro dele, muito tempo atrás, quando ele era solteiro

ainda. O sogro dele tinha um ditado, assim, que para casar com a filha dele

tinha que pegar uma onça na zagaia. (risos) Ele gostava da filha dele, e aí

teve que encarar o velho pra pegar onça na zagaia.

F: E a zagaia é uma tradição dos índios?

É uma lança com uma cruzeta, assim, e um cabo de dois metros. É, igual

flecha. A flecha e a zagaia foram invenção dos índios. Não tinha arma pra

eles matar bicho pra eles comer, às vezes porco, queixada... eles pegavam

na zagaia e na flecha.

ANEXO E – Imagens Capítulo 3

Imagens do arquivo de Sasha Siemel; No alto, onças se alimentando de boi; Sasha enfrentando a

fera; Abaixo à esquerda Joaquim Guató; à direita fotografia da família de Siemel, do livro

Jungle Family.

Imagens Capítulo 3

Imagens do arquivo de Sasha Siemel; No alto, onças se alimentando de boi; Sasha enfrentando a

fera; Abaixo à esquerda Joaquim Guató; à direita fotografia da família de Siemel, do livro

172

Imagens do arquivo de Sasha Siemel; No alto, onças se alimentando de boi; Sasha enfrentando a

fera; Abaixo à esquerda Joaquim Guató; à direita fotografia da família de Siemel, do livro The

173

Dezembro de 2008

Autor desconhecido

Autor desconhecido

Autor desconhecido Autor desconhecido

Acima os restos de uma onça-pintada fotografados durante o trabalho de campo; no centro e

abaixo, cenas de caçadas tradicionais.

174

Capítulo 4 – Rede Cães

Introdução

As práticas heterogêneas que compõem a conservação da onça incluem de uma série

de maneiras o gado. Discernir a fronteira entre os aspectos ecológicos e os aspectos

sociais colocados em jogo é especialmente difícil, no caso, pela superposição entre o

ambiente selvagem e o ambiente cultivado no Pantanal. É também uma tarefa à qual não

pretendo me dedicar, por motivos que espero deixar mais claros adiante. Em todo caso,

existem outros mediadores regionais na relação entre a onça e os humanos que precisam

ser incorporados à descrição, no entanto, sem os quais tanto o conflito quanto a

conservação seriam bem mais difíceis.

Desta vez, porém, o elemento recortado é um detalhe, e é preciso aproximar a

imagem para identificá-lo. Trata-se de um cordão esticado, que amarra a perna do

bezerro a um galho de cipó. Ele é uma pequena armadilha, o único dispositivo de

captura que aparece na imagem. Como tal, ela torna visível uma série de agentes que

não aparecem na imagem. O detalhe que acrescenta uma dimensão visível a esses

agentes ocultos.

O cordão também é uma pista, um vestígio da passagem de quem preparou a

armadilha. Ela foi amarrada por alguém com a intenção de reter a onça por alguns

instantes e aumentar as chances de uma boa fotografia. O autor é Seu João, o ex-caçador

que trabalha no projeto de pesquisa para o qual a foto foi produzida (e no qual ela é um

dado) e, por isso, é o primeiro personagem que deve ser apresentado. Ele aparece

preparando o equipamento na série de fotos feitas antes do registro da onça.

A caçada com cães é referida na literatura científica em geral apenas como um

método de captura (entre outros) pelos próprios cientistas, que estão mais interessados

na descrição do que é capturado do que propriamente nos meios usados para captura.

Levando em conta a distinção tradicional entre o dentro e o fora da ciência, ou os

elementos científicos e não científicos que compõem o estudo e a conservação da vida

selvagem, os cães são representados como um elemento externo aplicado com uma

determinada finalidade. O trabalho dos vaqueiros com o gado aparece, nesse mesmo

175

registro, como um pano de fundo para essa outra atividade, que é o manejo e a

conservação da natureza.

Neste capítulo, pressuponho – como fizeram Henrique e Seu João a partir da

fotografia – que a onça seja a mesma que foi perseguida meses antes, pouco antes da

minha chegada, e que matou dois cães antes de escapar. Sigo então a trajetória do grupo

de cães que participou da tentativa fracassada de captura para depois me reportar à

descrição de Tonho do mesmo evento. Essa onça – um macho identificado como Mirão

– foi capturada cerca de um mês e meio antes de ser fotografada, entre agosto e

setembro de 2008. Ela havia sido perseguida antes, sem sucesso, e foi finalmente

anestesiada para a colocação da coleira de rádio e a obtenção de amostras (sangue,

sêmen, etc.) com a participação de Tonho da Onça, um onceiro profissional contratado

pelo Projeto juntamente com seu grupo de cães.

4.1. A história do cachorro Gigante

O marco inaugural dos modernos estudos científicos sobre a onça-pintada em seu

habitat natural é o trabalho do naturalista norte americano George Schaller. Ao

descrever sua chegada à área de estudo, Schaller inscreve-se na tradição da história

natural norte americana, citando Roosevelt para apontar o desconhecimento científico

sobre a vida selvagem local:

“Este mosaico de florestas, pântanos, lagos e lamaçais abriga uma das

grandes concentrações de vida selvagem na América do Sul. Depois de uma

visita à região em 1912, Theodore Roosevelt escreveu, ‘Trata-se

literalmente de um lugar ideal onde um naturalista pesquisador poderia

passar seis meses ou um ano.’ Agora, sessenta e quatro anos depois, eu

estive no Pantanal na esperança não só de estudar sua vida selvagem mas

também de incentivar o governo brasileiro a criar um parque nacional ali”.

(2007 [1980]: 67)57

57This mosaic of forests, marshes, lakes, and sloughs harbors one of the great wildlife concentrations in South America. After a visit to the area in 1912, Theodore Roosevelt wrote, “It is literally an ideal place in which a field naturalist could spend six months or a year.” Now, sixty-four years later, I was in the Pantanal hoping not only to study its wildlife but also to encourage the Brazilian government to establish a national park there. (2007 [1980]: 67)

176

O projeto era patrocinado pela New York Zoological Society (atual Wildlife

Conservation Society), em parceria com o governo brasileiro, e foi iniciado na Fazenda

Acurizal, norte do Pantanal, em 1977. O pesquisador já havia realizado estudos de

campo com leões, leopardos e tigres no velho mundo, e trazia para o Brasil a rádio-

telemetria, a técnica por excelência da moderna biologia da conservação (field biology),

sobre a qual ele afirma:

“Para obter detalhes sobre a vida privada do jaguar – suas rotinas diárias,

freqüência de matança e tipos de contato social – eu precisava usar

radiotelemetria. Pegar um jaguar e colocar uma coleira em seu pescoço

com um rádio transmissor devia ser fácil, eu pensei”. (2007:68)58

Mas o pesquisador, que trazia na bagagem experiências anteriores com outros

grandes felinos, incluindo leões, tigres e leopardos, é surpreendido pela dificuldade da

empreitada:

“Não só os jaguares me enganavam, como pareciam realmente zombar dos

meus esforços: uma fêmea passou vagarosamente pelas nossas redes

enquanto dormíamos, e um macho depositou sua presa – uma capivara não

comida – a cem metros do acampamento”.59

A qualidade elusiva das onças o obriga então a recorrer aos métodos locais:

“Uma vez que minhas tentativas para capturer um jaguar tinham falhado,

eu recorri aos métodos tradicionais brasileiros de caçar os felinos”. (:69)60

O cientista é forçado então a recorrer então um caçador local, sobre o qual comenta:

“Richard Mason, um expatriado britânico, possui a melhor matilha de cães

caçadores do oeste do Brasil, onde ele acompanhava clientes estrangeiros

em caçadas até que uma lei federal de 1967 protegendo o jaguar afetou o

seu negócio. Ele concordou em ajudar e chegou em Acurizal com cinco

58To obtain details of the jaguar’s private life – its patterns of daily movement, frequency of killing, and kinds of social contact – I needed to use radiotelemetry. Catching a jaguar and collaring it with a radio transmitter should be easy, I reasoned. (2007: 68) 59Not only the jaguars elude me, they actually seemed to taunt my efforts: a female ambled past our hammocks as we slept, and a male deposited his kill – an uneaten capybara – three hundred feet from camp. 60Since my attempts to snare a jaguar had failed, I turned to the traditional Brazilian methods of hunting the cats. (: 69)

177

cachorros e seu mateiro, Manuel Dantas, que como caçador e guia tinha

passado vinte e cinco anos no Pantanal”. (:69-70)61

Richard Mason vem a ser sócio de Tony Almeida, autor que é a principal referência

para a posição do caçador-naturalista traçada na última seção, e que publicou seu livro

em 1976, um ano antes da chegada de Schaller à região. Tanto Mason – o “expatriate

Britisher” quanto “his tracker” Manuel Dantas são personagens de Jaguar Hunting in

the Mato-Grosso. No entanto, o principal personagem da captura narrada por Schaller é

um dos cachorros:

“O cão líder, Gigante, um cão mestiço amarelo, castrado, ia na frente,

examinando a floresta em busca de rastos frescos de jaguar. Os outros cães

ganiam e se agitavam em suas guias enquanto seguíamos um latido

ocasional de Gigante. Dantas ia na frente, abrindo uma picada com golpes

curtos de seu facão. “Hup, brrriii,” Richard gritava de vez em quando,

incentivando Gigante a prosseguir e deixando que ele soubesse que ainda

estávamos com ele”. (2007: 70)62

O pesquisador relata em primeira pessoa a experiência da perseguição à onça,

liderada por Gigante. Coincidentemente, o mesmo cão aparece em diversas caçadas

narradas por Almeida, e sua trajetória pode ser rastreada de forma surpreendente entre

os dois autores. No trecho a seguir, Almeida descreve como o cachorro foi incorporado

ao seu grupo de onceiros:

“Foi aqui que encontramos Gigante, um cão mestiço castrado que

pertencia a um vaqueiro local que nos acompanhou como guia durante esta

caçada. Gigante nos seguir de perto durante os primeiro três dias, perto

demais, de fato, sem demonstrar nenhum interesse em caçar. Um dia nós

soltamos a matilha num rasto de puma, e todos exceto o mestiço estavam

61Richard Mason, an expatriate Britisher, owns the best pack of hunting dogs in western Brazil, where he took forein clients on hunting trios until a 1967 federal law protecting jaguar affected his business. He agreed to help and arrived at Acurizal with five dogs and his tracker, Manuel Dantas, who as hunter and guide had spent twenty-five years in the Pantanal. (: 69-70) 62The lead dog, Gigante, a castrated yellow mongrel, roamed ahead, quartering the forest in search of fresh jaguar spoor. The other dogs strained and whimpered on their lashes as we followed Gigante’s occasional yip. Dantas went first, cutting a trail with short strokes of his machete. “Hup, brriiii”, Richard called at intervals, urging Gigante on and letting him know that we were still with him. (2007: 70)

178

latindo a cerca de duzentos metros à nossa direita. Então começamos a

ouvir um latido fraco à esquerda e olhando melhor vimos um puma em cima

de uma árvore, com Gigante parado sozinho embaixo. Depois disso, é

claro, nós o olhamos com muito respeito, e à medida que ele ia ficando

cada vez melhor durante esta caçada, na qual mais três felinos foram

mortos, nós mais ou menos obrigamos o vaqueiro a vendê-lo para nós.

Desde então, o latido deste eunuco magro tem sido sempre um sinal seguro

de rasto fresco de felino”. (1976: 117)63

O livro de Almeida não é citado por Schaller no texto, datado de 1980, e nem na

bibliografia da coletânea onde o artigo foi publicado, de 2007. O trecho acima, no

entanto, evidencia que o cachorro era considerado pelo caçador como um de seus

principais mestres, o que é corroborado pela narrativa do pesquisador:

“Um dia nós estávamos na região mais remota de Acurizal, um desfiladeiro

sombrio, coberto de mata. Gigante estava na frente – seus latidos nos

diziam que ele estava interessado em alguma trilha recente, mas não

incrivelmente excitado – enquanto nós nos demorávamos no leito seco de

um riacho, sem saber onde procurer em seguida. De repente, Gigante latiu

várias vezes,como se estivesse sendo atacado. Depois, silêncio”.(:70)64

O narrador descreve a soltura do restante da matilha, até então presa, e o encontro da

onça acuada:

“Nós corremos atrás dos cachorros, esbarrando em galhos de palmeira e

caindo em buracos, até chegar onde eles estavam reunidos em volta de uma

63It was here that we found Gigante, a castrated mongrel belonging to a local vaqueiro who accompanied us as a guide during this hunt. Gigante followed us closely for the first three days, far to closely, in fact, showing no interest whatsoever in hunting. One day we set the pack loose on a puma track, and all except the mongrel were barking some two hundred meters to our right. Then we began to hear a thin yapping to our left and looking further saw a puma up a tree, with only Gigante underneath. After this, of course, we regarded him with a great deal of respect, and as he got better and better throughout this hunt, during which three more cats were killed, we eventually more or less forced the vaqueiro to sell him to us. Since then this thin eunuch’s yap has always been a sure sign of fresh cat spoor. 64One day we were in Acurizal’s most remote area, a somber, wooded gorge. Gigante was ahead – his barks telling us that he was interested in, but not unduly excited by, some scent trail – while we loitered in the dry bed of a mountain stream, uncertain of where to search next. Suddenly Gigante yelped repeatedly, as if being beaten. Then, silence.

179

árvore inclinada sobre o leito do rio. Excitados, os cachorros pulavam

sobre o tronco e mordiam as lianas penduradas nele”. (Idem)65

A passagem até este momento se inscreve perfeitamente na tradição dos caçadores-

naturalistas. Somente no encontro com a onça é que o contraste com a tradição se

oferece:

“Deitado num galho a cerca de sete metros acima do caos estava uma

onça-pintada, uma fêmea jovem, estranhamente calma enquanto olhava

inexpressivamente para nós e os cachorros histéricos. “Finalmente nos

encontramos,” eu disse para mim mesmo. Enquanto eu enchia uma seringa

com uma droga para dormir, Dantas tirou os cachorros dali e os amarrou

numa árvore a algumas dezenas de metros de distância”. (Ibidem) 66

Desta vez, o “caçador” não atira. Ele prepara uma seringa com anestésico. O relato

prossegue, descrevendo a espera pelo efeito da droga, e o rastreamento da onça

adormecida cem metros adiante do local onde foi atingida. Em seguida o autor comenta:

“Para recompensar Gigante por seu excelente trabalho, nós o levamos até

o felino. Embora as garras do felino tivessem ferido o corpo dele poucos

minutos antes, ele olhou para o corpo imóvel dele sem expressão. Nós não

sabíamos na hora que esta seria a última caçada do cão, que sua vida

estava se esvaindo lentamente”. (: 71) 67

O comentário casual é o obituário de Gigante, o que torna ainda mais surpreendente

seu papel ao conectar as duas narrativas. Este não é certamente o primeiro registro

literário de um mestre morto pela onça, e a tradição de Almeida, Sasha Siemel e Pereira

da Cunha é farta neste tipo de acontecimento. Neste caso, porém, a história do cachorro

é o gran finale que aponta para um novo paradigma: ele é quem morre na caçada. A

65We hurried after the dogs, crashing through palm thickets and plunging over deadfalls to where they crowded around a tree inclined over a streambed. Seething with excitement, the dogs leaped against the trunk and bit at the lianas hanging from it. 66Lying on a branch twenty-five feet above the chaos was a jaguar, a young female, strangely calm as she gazed expressionlessly at us and the frenzied dogs. “Finally we meet,” I said to myself. While I loaded a syringe with a sleep-indulcing drug, Dantas removed the dogs and tied them to a tree a few hundred feet away. (: 70) 67To reward Gigante for his excellent work, we led him to the cat. Even though her agate claws had only minutes earlier sliced into his body, he looked at her quiet form without expression. We did not know then that this was the dog’s last hunt, that his life’s blood was slowly draining away within him.

180

onça não só sobrevive, como passa a ser rastreada por outros agentes que não os cães

onceiros.

No final da narrativa, Schaller descreve o estranhamento do caçador nativo diante

daquela nova modalidade de caça, e em seguida registra os dados tomados na captura:

“‘Em outras caçadas, o felino já estaria morto há muito tempo. Eu estaria

tirando sua pele agora’, Dantas comentou enquanto nós nos preparávamos

para registrar seus dados vitais. Ela pesou setenta quilos e mediu quase

dois metros da ponta do nariz à ponta do rabo – um animal pequeno pelos

padrões do Pantanal, onde jaguares são maiores do que em qualquer outro

lugar na América do Sul. Richard, que pesa cuidadosamente troféus, me

disse que uma fêmea adulta pesa em média noventa quilos e que seu macho

mais pesado chegou a cento e vinte quilos. (...) Peter e eu colocamos o

colar de rádio”. (:71)68

Os dados da pesagem dos troféus de caça, atribuídos ao trabalho cuidadoso de

Richard Mason, são referendados com exatidão por Almeida (1976: 62-63). O texto de

Schaller narra duas caçadas de onça: A primeira, descrita acima, registra a captura até

então inédita de um exemplar da espécie para a colocação de um colar de rádio. A

segunda se refere a uma segunda fêmea identificada pelo pesquisador, abatida a mando

do capataz da fazenda em retaliação ao projeto de conservação das onças. No trecho

abaixo ele descreve o encontro da pele do animal:

“A nosso pedido, um funcionário do serviço florestal visitou Acurizal para

investigar a matança de onças. Ele também confiscou a pele de onça-

pintada que Aníbal tinha escondido na casa dele. Agora, pela primeira vez

eu o vejo – o jovem animal que me enganou em vida. A pele com sua triste

beleza, seus olhos vazios, seu buraco de bala – eu não queria guardar esta

lembrança”.69 (: 76-77)

68 Tradução minha: In other hunts the cat would be dead long ago. I would be skinning it now”, commented Dantas as we prepared to record her vital statistics. She tipped the scales at 133 pounds and measured sixty-six inches from tip of nose to tip of tail – a small animal by Pantanal standards, where jaguars grow larger than anywhere else in South Americ; a. Richard, who carefully weighs trophies, told me that the average adult female is about 165 pounds and that his heaviest male reached 262 pounds. Peter and I attached the radio collar. 69At our request, a forest department official visited Acurizal to investigate the jaguar killings. He also confiscated the jaguar hide that Anibal had secreted in his home. Now, for the first time I met her – the young animal who in life eluded me. The hide with its sorrowing beauty, its hollow eyes, its bullet hole – I did not want this memory. (76-77)

181

Somada a essa outra, a onça rastreada por Gigante oferece um contraponto para a

imagem da onça formulada por Almeida. Big Richard, o macho dominante descrito

pelo caçador, numa excelente síntese da tradição a qual ele pertence, é o exemplar ideal

preservado através da taxonomia no Museu de História Natural. A onça capturada por

Schaller, em contraste, é uma jovem fêmea, ameaçada pelos criadores de gado e pelos

caçadores de troféus. Ela é idealmente frágil, e sua sobrevivência, equipada com o novo

dispositivo de rastreamento, é o que permite a escrita de uma nova história natural.

4.2. O rastro dos cães

A história desse grupo de cães aparece pela primeira vez no material etnográfico

produzido para este trabalho em outubro de 2007. Na época, eles estavam sendo

comprados por uma instituição conservacionista norte americana para um projeto de

pesquisa na região do Porto Jofre, norte do Pantanal, e seriam cedidos provisoriamente

ao Projeto Onça Pantaneira alguns meses depois. Antes da viagem à região norte, eu

havia acabado de visitar este projeto na São Bento pela primeira vez, com a intenção de

negociar um período de trabalho de campo na fazenda com o biólogo Fernando

Azevedo, responsável pela pesquisa. O contato com o biólogo foi feito através da ONG

à qual ele é associado, a Pró-Carnívoros, uma organização sediada no interior de São

Paulo.

Da fazenda, segui viagem até Cuiabá para encontrar outro pesquisador associado à

mesma instituição, Ricardo Boulhosa – especialista na relação entre a onça e o gado que

havia realizado grande parte de sua pesquisa na região do Porto Jofre, Pantanal norte.

Na época, o biólogo trabalhava para a WCS (World Conservation Society) em um

grande levantamento sobre o tema, entrevistando fazendeiros de todo o Pantanal. Na

época, ele intermediava também a implantação do novo projeto de pesquisa da

Fundação Panthera, uma ONG internacional voltada para a conservação de grandes

felinos que havia acabado de comprar mais de 100 mil hectares na região para a

conservação do hábitat pantaneiro do jaguar. Entre muitos outros assuntos, o

desenvolvimento do projeto envolvia a compra de um grupo de cães que pertenciam ao

administrador contratado para gerenciá-lo, um antigo caçador de onças.

No dia 23 de outubro de 2007, encontrei então com Ricardo Boulhosa no aeroporto

de Cuiabá, e de lá seguimos diretamente para Poconé. No carro, ele foi me falando

sobre o projeto no qual estava trabalhando, e sobre o novo programa financiado pela

182

Fundação Panthera. A fundação, criada por um milionário americano, é a maior

financiadora de projetos de preservação de grandes felinos no mundo todo, incluindo

uma parceria com a WCS (World Conservation Society) para a preservação da onça-

pintada.

A implantação do projeto envolveu a criação de uma empresa em São Paulo, e o

programa incluía, além do estudo das onças, a pecuária, um projeto de capacitação de

peões e a criação de escolas locais. De acordo o pesquisador, a conservação da natureza

no Pantanal passa necessariamente pela pecuária, que é a principal atividade econômica

da região, sendo 96% dela composta de propriedades particulares. Ele argumentou que a

onça em geral é vista como uma peste pelos pantaneiros tradicionais e que um peão não

perde a oportunidade de atirar quando encontra uma. Contou que às vezes é recebido

com desconfiança pelos proprietários, por estar trabalhando com a preservação do

animal.

Boulhosa mencionou o turismo de observação de onça como parte de uma mudança

regional, afirmando que pousadas de pesca começavam a ficar abertas o ano todo para

receber pessoas que querem ver de perto as onças. Segundo ele, é uma atividade que

ainda precisava ser regulamentada, mas Poconé seria o melhor lugar para observação

dos felinos.

Chegando à cidade, fomos ao encontro do Sr. Joaquim, o administrador da área

comprada pela Fundação Panthera eproprietário dos cães que estavam sendo

negociados. A ONG havia recém adquirido algumas fazendas para formar uma área

voltada especificamente para o estudo e a conservação da onça-pintada. Transcrevo

abaixo a entrevista feita na ocasião:

F. Como é que o senhor começou a trabalhar com fazenda?

Meus pais tinham propriedade – tem até hoje – e a gente desde criança já

tinha essa vocação de trabalhar com fazenda. Fomos estudar fora [em

Campinas], mas chegou um tempo em que resolvemos voltar para a origem,

para trabalhar na fazenda, auxiliando os pais. Depois fomos convidados a

trabalhar para outras pessoas. Eu fui trabalhar para a Camargo Correia,

durante doze anos, e agora para essa nova fase, do trabalho, que é com a

Agropecuária PO [A empresa que administra o projeto na região].

F. E desde cedo o senhor começou a mexer com onça também?

183

Isso daí era uma tradição do Pantaneiro. Desde criança você acompanhava

os pais, ou aqueles empregados mais velhos da fazenda; estava sempre

mexendo com onça. Na época era liberado, você matava onça.

E naquela época era assim: você abatia jacaré, capivara, lontra, e vendia –

era meio contrabando, porque vendia para o Paraguai – mas com aquele

dinheiro você comprava sal, comprava remédio; o sustento da pecuária era

basicamente pele de animais. Mas aí, depois, começou a ter invasão. Em

vez de ser só dos proprietários, começaram a invadir as propriedades

pessoas da Bolívia, do Paraguai, e os brasileiros mesmo que invadiam as

áreas. E nessa invasão, além de matar o jacaré e a capivara, matavam o

gado também.

F. Mas como é que conseguiram isso? Foi o governo brasileiro?

Ah foi. Na época era o IBDF que veio para o Pantanal. Porque antes não

tinha órgão do governo fiscalizando o Pantanal. Não existia. Aí que veio o

IBDF, que fez a base de pesquisa [em 1982]. Então, dessa fase para cá que

foi intensificando, para não ter mais matança. Porque antes disso não tinha

órgão nenhum que fiscalizava.

F. E o senhor acha que daquela época pra cá esses bichos – jacaré, capivara –

aumentaram de quantidade?

Aumentou muito. Porque com essas matanças clandestinas eles não tinham

tamanho, abatia o grande e o pequeno. Eles classificavam em primeira,

segunda e terceira classe. Então eles em vez de abater só o de primeira, que

era o couro de tamanho grande, adulto, não. Eles abatiam até o de terceira,

que era o couro pequeno, mas que era vendável. Então, não tinha

classificação. Abatia tudo.

F. Mas primeiro era um comércio menor...

Era só local, pouca coisa. Porque o pecuarista era assim, ele tinha

consciência do que estava fazendo. Aí quando chegou a invasão que

começou a matança desordenada.

F: E a caçada de onça, o senhor aprendeu desde criança na fazenda?

184

Todas as fazendas criavam cachorro pra caçada, e o forte era caçar com

cachorro. Então, todas as fazendas tinham cachorro e tinham aquelas

pessoas que gostavam de caçar. Além do patrão gostar, o empregado

gostava de acompanhar o patrão nas caçadas.

F: E depois o senhor foi tendo seus próprios cachorros?

Isso. A gente ia adquirindo. Como era uma família pantaneira, então um

auxiliava o outro. Quando você ficava com pouco cachorro, aí trocava com

um, com outro, pra ninguém ficar sem cachorro bom na fazenda, de caçar

onça.

F: Esses cachorros vinham de onde? Era daqui mesmo da região ou era alguma raça

trazida de fora?

É, já tinha, e sempre as pessoas que tinha condições de trazer uma raça pra

melhorá a raça dos nossos, essas pessoas trazia né... E aí ia tirando...

Cruzava com um, com outro, pra adquirir os mesmos cachorros bons.

F: Tem alguma raça que seja melhor ou a ideal?

A gente fala o americano. É o cachorro uivador.

F: E tem que ter conhecimento, para ir atrás da onça?

É o que eu falo: tem que gostar e ter o conhecimento. E outra: você não ia

viver de caçada de onça. Sempre você via uma onça que está prejudicando,

matando bezerro no lugar... Porque se você for viver a vida inteira

caçando, sua atividade seria caçador e não pecuarista.

F: Mas tem pessoas que só caçam?

Existia na época. Pessoas que viviam só de caça.

F: E o senhor tem cachorros que vão para o projeto?

É porque eu sempre criei, e tinha uma quantidade grande. Esses cachorros

são meus. E esses cachorro, quando o Tom [o presidente da Fundação

Panthera] me contratou, ele falou que uma das coisas que ele gostaria é

que eu não desse os cachorros, não vendesse pra ninguém, porque nós

íamos aproveitar esses cachorros para o projeto, que é captura, colocação

de colar, fazer estudo. Então as onças vão estar ligadas ao projeto.

185

Ele explicou que havia cerca de dezoito cães que estavam sendo negociados com a

WCS para serem usados nas capturas, sendo cinco deles mestres. Um cachorro desses,

de acordo com ele, chegava a valer mais do que cinco mil reais. Mais tarde, Boulhosa

comentou que quase todo mundo é ou foi caçador de onça na região.

Só fui encontrar de fato o grupo de cães que pertencia a Seu Joaquim no ano

seguinte, quando retornei para o trabalho de campo na São Bento, em março de 2008.

Na época, os cães haviam acabado de ser trazidos de Poconé para as capturas do Projeto

Onça Pantaneira. Durante a minha primeira semana na fazenda, os cães estavam sendo

tratados, e alguns deles estavam com problemas de saíde, Seu João dedicava-se como

ninguém aos cachorros, e Henrique apelidou-o de Dr. Elias. Os dois tratavam

especialmente de um cachorro que estava muito magro e que chegara de Miranda depois

dos outros, e desconfiavam que ele estava com uma fratura causada por ter sido

espancado. O canil ficava improvisado num pequeno galpão de provisões da fazenda e

uma das fêmeas havia recém parido uma ninhada. Entrevistei Seu João no local

enquanto ele dava banho nos cachorros; transcrevo abaixo a gravação:

F: Qual é a raça desse cachorro?

Esse aqui é o americano. Já é cruzado um pouco com o cachorro daqui, o

vira-lata, o pelo duro mesmo. Então, ele não é um cachorro puro. Ele é

cruzado. Porque ele é mais pra velocidade. Cachorro mais apertador. Não

são cachorros grandes, são cachorros pequenos, de bom tamanho. Porque

o cachorro grande, ele atrapalha muito no sujo. E aí, é mais fácil pra onça

pegar ele.

F: Cachorro grande não é bom não?

Não, cachorro muito grande no mato não é muito bom, não. Não é bom pro

caso dela, porque é mais fácil pra ela pegar e machucar o cachorro.

F: E esses pequenos [filhotes que estão no canil] vão junto?

Não, por enquanto não. A gente só vai sair com eles depois de um ano.

Depois de um ano de idade aí que começa já a tirar eles pra treinar eles.

F: E o senhor faz algum tipo de treino? Como é que é?

186

Eles vão treinando já com o próprio mestre, porque o mestre, ele não vai

correr outro bicho, então você já solta na hora certa que o mestre vai

trabalhando na batida, aí você solta os novos atrás, pra poder encaminhar.

F: Mas como é que faz para os que estão começando acostumarem com o cheiro

dela? Eles indo junto com o mestre já aprendem?

Não, porque onde ela passa, o cheiro dela vai ficar nas folhas. É um tipo de

um vício. No momento que eles aprendema sentir aquele cheiro, eles vão

viciar. É um vício que ele tem. Então, por isso é que quando ele vai ficando

mestre, você pode levar. O mestre vai solto, e o que é que acontece: quando

ele chega,não precisa achar o rastro: se ele sentir o cheiro na folha, ele já

dá o sinal.

Esse é o cachorro mestre, que você chega e ele já vai dar sinal, então você

precisa procurar a batida. Na hora que ele latir, você sabe que é a onça que

passou ali, você não precisa ficar no chão olhando. Na caçada é assim. A

não ser quando você acha a carcaça de algum bicho, fresca. Aí você vai lá

e vai soltar o mestre e ele vai procurar o lugar aonde ela saiu. Ela vem,

come, e sai pra algum lugar, e o mestre vai achar a saída. Depois que ele

acha a saída, você solta o resto atrás. Aí vão embora, não param mais. Só

quando alcançarem ela.

F: E os outros vão atrás do mestre?

Os outros vão atrás, porque eles tão acostumados juntos. Os cachorros de

caça têm que ficar juntos. Então eles formam a equipe deles e quando um

late, o outro atende o mestre. Então, quando o mestre late, ele já sabe que é

alguma coisa. Mesmo que ele está preso na corda aqui, se o mestre deu

sinal, ele já sabe, já fica louco pra ir.

F: Eles fazem uma espécie de uma matilha...E quando a onça sobe na árvore, a

caçada é mais tranqüila?

Aí você chega tranqüilo, ela está subida, você anestesiae pronto, o que é

que vai acontecer? Quer dizer: subiu, o veterinário preparou o dardo na

hora ali, já está com tudo preparado. Agora, no chão, pro nosso trabalho

aí, tem que pensar bem, pra ver onde que ela está. Porque é difícil

anestesiar no chão. É arriscado. Então, não é uma coisa boa de fazer um

187

trabalho no chão com ela. A gente já evita. É preferível que ela vá embora,

ou, se for na parte da manhã, você tem como trabalhar mais tempo com ela.

F: E não é todo o cachorro que vira mestre, né?

Depende um pouco. O cachorro, ele tem uma tendência já pra onça.Quando

ele vai só trabalhar a onça, é uma raça que às vezes não dá trabalho pra

você ensinar. Ele já nasce pronto. Vai uma vez, duas, e ele já vai ficando

mestre. Têm outros que demoram mais, tem uma raça de americano que ele

é mais demorado. Mas tem uma raça que eles já são próprios pra isso

mesmo.

F: Mas qual a melhor raça é o americano?

Geralmente eles tão cruzando o ‘bludi’ [bloodhound], né, que é uma raça

mais pra rastrear, com essa raça que a gente tem aqui. É um cachorro mais

lento, esse bludi, mais rastreador. Não tem velocidade. Você cruza com essa

raça daqui, ele sai um cachorro bom de faro e bom pra apertar o bicho

também.

F: E acontece de perder cachorro, Seu João?

Acontece de perder sim. Acuação no chão às vezes machuca, outras vezes

mata, perde sim. Por isso que a gente trabalha com bastante cachorro. Às

vezes com um cachorro até você consegue pegar, dois cachorros, mas para

o nosso trabalho, você tem que trabalhar com bastante.Trabalha com dez,

doze cachorros numa acuação, e, se ela pegar um, dois, nós temos mais

para insistir nela.

Alguns dias depois da entrevista, Seu João comentou que aquela não era uma época

boa para caçar, a quaresma. E indaguei-o a esse respeito. Ele atribuía os problemas

recentes ocorridos nas capturas a esse período do ano, e explicou que é o costume dos

antigos não caçar, nem comer carne vermelha nessa época. Afirmou que, se alguém sair

para caçar, nada dá certo. Seu João considerava que eles não deveriam ter saído com os

cachorros. Complementou ainda que na sexta-feira santa os mais velhos nem acendem

fogo, e o pessoal prepara toda a comida daquele dia na véspera, e concluiu:

188

Quem é da cidade pode achar que é superstição, mas a verdade é essa. Não

falo nada, porque o Fernando é muito católico, mas nessas coisas não

acredita.

As evidências apresentadas por ele de que não se devia caçar na quaresma: as duas

armas de ar-comprimido que seriam usadas para anestesiar as onças deram problema ao

mesmo tempo. Uma delas disparou acidentalmente no laboratório, quebrando o vidro da

janela. Eles conseguiram encontrar uma onça e ela chegou a estar acuada, mas os

cachorros eram inexperientes e não conseguiram segurar o bicho. Os cães que Henrique

foi buscar em Poconé saíram com atraso de lá, por conta de dificuldades na negociação

com o caçador que estava vendendo os animais [para a Fundação Panthera, cujo vínculo

é com a Sandra; há um acordo entre Fernando e Sandra para a utilização dos cães].

Complementou que ia ter sido até pior eles conseguirem chegar na onça, porque

estavam somente com a pistola, que também deu problema.

Em entrevista gravada feita na época, Seu João fala sobre sua experiência pessoal, e

relata como começou a trabalhar com o projeto de preservação das onças, implantado na

Fazenda San Francisco na época em que trabalhava lá:

F: E quando foi a primeira vez que você foi caçar para um projeto de pesquisa?

Quando eu comecei, eu tinha cachorro e não caçava mais, mas eu tinha

cachorro e tinha que desfazer porque a fazenda que eu trabalhava não

queria mais que eu tivesse cachorro. E na época o Fernando precisou de

um caçador em Foz do Iguaçu, e foi a primeira vez que eu saí para caçar

para um projeto. Ele me convidou pra ir, mesmo trabalhando na San

Francisco. Já tava trabalhando como guia, mas eu tinha os cachorros.

Então na época eram oito cachorros que eu tinha e eram uns cachorros

muito bons. E para não me desfazer, eu comecei. E depois, como o

Fernando veio para a San Francisco, eu passei a trabalhar diretamente

com ele, só pra capturar.

Em seguida, pergunto sobre a percepção dele, como caçador e agora como

integrante do projeto, sobre a relação dos moradores da região com as onças e com o

projeto de preservação:

F: E nas fazendas aqui do Pantanal, o pessoal fala muito das onças, que dão

prejuízo? Fala mais de qual tipo de onça?

189

Sempre a onça-pintada. A mais falada, em qualquer lugar que você vai, é

ela mesma, não tem jeito, sabe. O pessoal sempre tem raiva dela. Em

algumas fazendas realmente ela ataca mesmo, né? Em outro lugar não, em

outro lugar menos. Mas tem fazenda que o pessoal fala: não, esse bicho não

adianta, não tem porque ter esse tipo de projeto, esse bicho tem que acabar!

É que o pessoal não sabe o que é preservar... Porque realmente a onça é

dali mesmo, a pessoa que entra no lugar dela, mas eles querem tirar.

Normalmente quando você tira uma, aparece outra. Então, no lugar que

tem onça nunca fica sem. Isso aí é uma coisa que eu sempre vi. Podia matar

uma aqui, outra ali, mas depois de um mês, dois meses, já tem outra no

lugar. Sempre vai repondo. O pessoal muitas vezes fala que têm muita onça,

mas não é. Às vezes tem uma mãe com dois filhotes ou três, que estão ali

juntos; ou um macho e uma fêmea com filhotes, e o pessoal vê muita batidae

fala ‘não, aqui tem demais de onça, tem muita onça’. Mas não é isso. O

pessoal não tem o conhecimento.

F: E agora no projeto, como é que o senhor está vendo a recepção disso pelo pessoal

do pantanal? O pessoal que trabalha com gado, que está nas fazendas que não tem

turismo, como é que recebe a idéia de preservar a onça?

É um pouco difícil. Hoje, na região do Pantanal, só preserva quem trabalha

com turismo. É mais é quem trabalha com turismo mesmo. Às vezes ela

apanha algum gado, assim, mas não é muito, então, o fazendeiro não liga

muito. Mas tem uns que vai atrás mesmo.

F: E tem onça que fica comendo só o gado?

Eu acho sim. Às vezes no território de um macho, acontecedele ir só no

gado,só no gado mesmo. E à noite, o gado geralmente fica berrando, então

o bicho vem vindo e ele sabe aonde que tá. Então, ele vai passar por outros

bichos no meio da noite, mas não vai atacar. Ele vai mesmo é pegar o gado.

Então eu acho que ele acaba viciando mesmo, o gado é uma presa mais

fácil para ele.

Mais tarde, fui com Seu João até a casa dele, onde me mostrou fotos de onças

capturadas e acuadas pelos cães. Fotos dele com Fernando na San Francisco e com os

biólogos da Caiman, além de outras fazendas. Mostrou-me também a ponta de uma

190

zagaia, que tinha em casa: uma lâmina de cerca de 30 cm com um apêndice horizontal

na base, que funciona para impedir que a onça chegue até o caçador quando é

atravessada pela lança. Sobre a fotografia de uma onça abatida na região do Rio Negro,

quando ainda era caçador, Seu João comenta que atirou quando ela avançou no filho da

proprietária, que estava montado no cavalo. Ele trabalhava na época na San Francisco,

antes da fazenda mexer com turismo, e era responsável pela eliminação das onças na

propriedade, mas o patrão o liberava o caçador para matar onças em outras fazendas da

região.

4.3. Onças em fuga

No dia 16 de abril de 2008, voltei à Fazenda São Bento com o objetivo acompanhar

a fase de capturas do projeto. Henrique e Rica, dois de meus amigos biólogos, foram até

o Buraco das Piranhas no carro do projeto para me buscar. Perguntei a eles como estava

indo o trabalho, e me contaram que haviam chegado perto de pegar uma onça na última

tentativa, no dia anterior, mas que ela tinha escapado. A onça – disseram – chegou a ser

acuada seis vezes, mas não subiu nenhuma vez. O único que a viu foi Seu João, quando

estava brigando com os cachorros. O macharrão tinha matado dois cachorros, além de

ferir mais dois. Cheguei à fazenda, no meio da tarde, e fui apresentado a Cyntia e

Yvens, dois veterinários que participavam das capturas.

No dia seguinte, saí para o campo com o grupo, às 4 e meia da manhã. Fomos em

dois carros. No primeiro, foram Henrique, Yves e Seu João, com os cachorros na

caçamba, em busca de batidas frescas. No segundo, fomos eu, Rica, Cyntia e Fernando,

para checar as armadilhas. As armadilhas eram feitas de grades de metal e utilizavam

um sistema de cabo e roldana. Um porco pequeno ficava preso em uma gaiola numa das

extremidades, e era alimentado todos os dias pelos pesquisadores. Se a onça entrasse

para pegá-lo, ela precisaria passar por um pedaço de metal preso a um cabo, que

atravessava a roldana suspensa e segurava a porta da armadilha.

Não encontrando nada nas armadilhas, começamos então a buscar rastros de onça

pelas estradas que cortam a fazenda. Depois de algumas horas, Fernando encontrou

alguns rastros que identificou como sendo de onça-parda, numa estrada de areia, e

chamou Seu João e Henrique como os cães. Valente – o cão mestre – foi solto, mas se

191

mostrou completamente desinteressado. Circulou pela estrada e pelo seu entorno sem

parecer captar nenhum tipo de rastro.

Depois disso, circulamos pelas estradas de areia da fazenda, procurando rastros de

onça. Nada. Muitos rastros de anta, capivara, ema, cachorro-do-mato; de onça, nada.

Encontramos com o capataz novo da fazenda Fátima, Seu Duarte. Ele e outro capataz

estavam cortando árvores na beira da estrada. O capataz usava camisa aberta exibindo a

barriga, chapéu, e um 38 na cintura. Foi bastante simpático na conversa com Fernando,

e falou que tinha visto rastros recentes em uma área do outro lado do Rio Abobral,

inacessível de carro. Ele e o outro peão repetiram mais de uma vez que essa onça mora

ali, num grande capão, em um lugar chamado Cerradinho.

No final, quase voltando, Rica pediu para parar o carro, mas era um rastro de um

cachorro grande. Fernando brincou com ele, dizendo que ele já era macaco velho para

se enganar com isso. O cachorro Valente seguia na caçamba do nosso carro, e o biólogo

comentou quantas coisas esse cão já não deve ter visto. Desapontamento geral. Nem

sinal de onça. Para Seu João, as onças se afastaram porque o gado foi retirado da

fazenda: “Elas vão aonde está o gado” – disse. Perguntei a ele sobre os cachorros que

foram mortos. Ele lamentou, dizendo que o Piloto ia ser um bom cão, mas era

inexperiente. “A onça acuou em uma moita”, contou, “e ele quis partir para cima dela,

para morder. Aí não teve jeito, ela mordeu no pescoço e na cabeça, puxou para a água”.

Fernando contou uma história interessante quando estávamos chegando na fazenda,

sobre um grupo de biólogos que estava fazendo uma pesquisa sobre cegonhas (não se

lembrava aonde). Havia uma comunidade de pescadores na região, que eles ignoraram,

enquanto tentavam capturar as cegonhas usando redes e outros métodos, sem sucesso.

Depois de muitas tentativas, um pescador se aproximou, perguntando o que eles

estavam fazendo. Quando soube que o objetivo era pegar as cegonhas, ele trouxe a

varinha de pescar, botou um peixe no anzol, e jogou para a cegonha, capturando-a

facilmente.

Quando estava escrevendo essas últimas linhas, no escritório, com Henrique e Rica,

Yvens apareceu chamando-nos. Um filhote de búfalo fora morto por uma onça em um

capão lá perto. Seu Máximo foi quem deu a notícia. Ele estava trabalhando com Seu

Lauro, o empreiteiro, em uma cerca, perto de onde vimos as batidas de manhã. O capão

é cortado pela cerca, e eu tinha andado na direção dele mais cedo. Fomos até lá de carro,

toda a “equipe”, todos animados com o evento, que podia representar uma captura no

192

dia seguinte. Encontramos Seu Lauro na cerca, e ele disse que a carcaça estava ainda

fresca. Fernando, Henrique e Seu João foram até o local.

Depois de alguns minutos, Seu João retornou dizendo, para surpresa de todos, que se

tratava de uma onça-parda, pois mesmo a onça-pintada raramente atacava um búfalo.

Fui chamado para fotografar a cena “do crime”, já que era o único com uma câmera

disponível. Fernando se mostrou decepcionado com o fato de se tratar de uma onça-

parda, constatado através das batidas da onça, e também pelo fato de haver terra puxada

para perto do animal (a onça-parda é conhecida por cobrir suas presas com terra para

despistar outros predadores). O jovem búfalo foi morto perto de uma cerca, em uma

área aberta dentro do capão. Quando nos aproximamos, a manada de búfalos se manteve

perto, sendo que quando me abaixei para fotografar, um deles chegou até muito perto e

cheirou a cabeça do búfalo morto70.

Fernando levantou a cabeça do animal usando um pedaço de madeira, e observou

que ele aparentemente não estava com o pescoço quebrado. Seu Lauro afirmou que se

tratava de um animal doente, que tinha um problema para andar, o que foi confirmado

também pelo gerente Célio, pelo rádio. O biólogo achou que o búfalo deve ter sido

morto por sufocamento, e que possivelmente já estava deitado por ocasião do ataque.

Esperando que a onça voltasse para se alimentar, foram tomadas providências para

voltarmos cedo com os cães, para tentar capturá-la.

No mesmo dia, conversei um pouco com Seu João sobre a história da fazenda San

Francisco, na qual ele trabalhou por quase vinte anos. Ele contou que antigamente, na

época do Sr. Laucídio, a marca de gado LS era uma das mais conhecidas da região, e

havia muitas brigas e mortes na região, tanto por disputas de terras quanto por

confusões causadas pelos peões entre si, motivadas pelo álcool. “A polícia tinha ordem

de não prender os peões da LS”, disse.

Na manhã seguinte, acompanhei o grupo na tentativa de captura da onça-parda que

tinha sido avistada na tarde anterior. Saímos às 4 hs da manhã. Enquanto Fernando e

Rica foram checar as armadilhas, o restante do pessoal foi preparar os cachorros e

cavalos que seriam utilizados na captura. Depois disso, segui na caminhonete, com

Yvens e Cyntia, os veterinários do projeto, levando os cães para o local onde seriam

soltos, no capão aonde o filhote de búfalo foi encontrado. Os cães iam presos na

caçamba, em uma estrutura de madeira construída para esse fim. Apenas Valente teve o 70 O comportamento defensivo dos búfalos, além de seu porte, é motivo de recomendações para a

criação desses animais no Pantanal, em lugar do gado (Rafael Hoogenstei; ent 11/2008.)

193

privilégio de ser transportado em cima dessa estrutura, tomando ar enquanto os dez cães

restantes se amontoavam no espaço de 3 metros quadrados.

Seu Lauro foi de carona, para trabalhar na cerca (aonde ele e Seu Máximo haviam

achado o búfalo). Chegamos ao local ainda de madrugada, antes do sol sair, e ficamos

aguardando por Seu João e Henrique, que vinham de cavalo, trazendo mais dois animais

de montaria. Fiz algumas imagens da caminhonete e dos cães enquanto o dia clareava.

Quando chegaram os dois cavaleiros, os cães foram soltos e levados para uma volta.

Henrique estava particularmente nervoso, e ficou irritado por que eu estava filmando a

cena dos cães sendo soltos ao invés de ajudar. As cordas que prendiam os cães haviam

ficado emaranhadas. Depois de ajudá-lo a soltar o nó, cada pessoa levou dois dos cães

para uma volta, atrelados entre si.

Minha expectativa era grande. Eu planejava filmar a soltura dos cães e a caçada, e

havia conversado sobre isso Fernando e depois com Seu João na tarde do dia anterior

(ele queria ter imagens de uma captura, e listou os momentos mais importantes para que

eu filmasse os momentos mais importantes).

O dia estava raiando quando surgiu no horizonte a caminhonete branca que trazia

Fernando e Rica. Eles haviam encontrado batidas frescas de onça-pintada na estrada

principal, mas consideraram melhor manter o plano original e tentar capturar a onça-

parda que havia se alimentado no capão. Seu João e Fernando foram então até o capão,

para verificar se o animal havia voltado. Desapareceram na mata, aonde permaneceram

por uns cinco minutos. Na saída, Fernando virou-se para o grupo e disse que o bicho

havia mexido na carcaça. Começou a dar ordens para a equipe: cada um levaria alguns

cães, sendo que valente seria solto primeiro. Rica levaria os cavalos e amarraria na

entrada do capão, e além disso, filmaria a soltura dos cães.

Foi aí que tomou a atitude que para mim permanece difícil de explicar, e que foi um

grande choque naquele momento. Eu ficaria na base, dentro do carro, ouvindo as

notícias pelo rádio. “Aconteça o que acontecer, você não saia da base” – o biólogo me

disse, para a minha perplexidade. Eu havia viajado até ali, preparado o equipamento,

pedido para acompanhar a captura, e, no momento crucial, ele me excluiu da ação. A

atitude do biólogo foi determinante, no processo da etnografia, para a definição dos

limites da minha relação com o projeto – eu iria ser uma testemunha, mas não um

participante.

Meu principal objetivo na fazenda era filmar a captura, e poder presenciar aquele

que era um evento tão importante para os envolvidos no projeto. Na noite anterior à

194

captura, havia conversado rapidamente com o biólogo sobre a idéia de editar o material

que fosse filmado ali, e expliquei que pensava que um dos resultados da tese seria um

documentário.

Em apenas duas oportunidades eu estive em fazendas onde estavam sendo realizadas

capturas. A primeira delas foi na Fazenda Caiman, em 2006, e a segunda foi esta, na

São Bento. Nas duas situações eu estava disposto a acompanhar as caçadas e minha

participação foi vetada. O caso da São Bento foi bem mais difícil de digerir, porque eu

já tinha, na ocasião, um contato bastante longo com a equipe e fizera amizade com

todos, então foi, de fato, uma surpresa a atitude do coordenador da pesquisa.

Vale lembrar que essas mesmas capturas haviam sido filmadas, na fazenda, por uma

equipe de televisão poucos meses antes, nas mesmas condições – com o campo alagado

– e envolvendo os mesmos riscos. No caso, as imagens feitas por uma grande emissora

passaram em rede nacional, e exemplificam um aspecto importante do trabalho

científico, que é o da divulgação. Acho hoje que a decisão do biólogo foi mais uma

declaração de propriedade sobre o evento do que uma restrição do acesso a um

determinado aspecto da pesquisa. Para mim, essa talvez seja a explicação mais plausível

para a atitude que ele tomou naquela manhã, tendo se sentindo incomodado com a idéia

de ter alguém filmando ali para fins pessoais.

De qualquer forma, essa experiência na São Bento me faz repensar um pouco minha

inserção na pesquisa, principalmente com relação ao fato de não depender de ninguém e

fazer meu trabalho, mantendo o foco nas entrevistas. O significado do acontecimento,

no entanto, foi reduzido pelo fracasso da caçada: um a um, os cachorros foram voltando

sozinhos para a caminhonete. No final, a onça deu um baile nos cães e nos caçadores. A

decepção de todos os participantes foi grande, já que se criara uma expectativa em todos

os funcionários da fazenda a respeito daquela captura. O gerente da fazenda perguntava

pelo rádio, o capataz passou e queria saber como andava a caçada, os peões de gado

também estavam envolvidos, enfim, tudo isso colocava uma pressão adicional no

trabalho dos biólogos.

No carro de volta, Fernando e Seu João conversaram a esse respeito, afirmando que

essa demora em pegar uma onça criava um ambiente negativo. Os dois falaram sobre a

experiência na San Francisco, e a época que antecedeu a incorporação de Tonho da

Onça, o caçador contratado pelo projeto naquela ocasião (e que voltaria a ser procurado

algum tempo depois). Seu João dizia que os cachorros que tinham lá eram melhores do

que esses, reclamando que Valente, o cachorro mestre, não latia. Fernando classificou-

195

os como “cachorros de campo que também caçavam”, considerando que nenhum deles

parecia ser um onceiro realmente bom.

Seu João observou que o caçador que os vendeu talvez não tivesse mandado seus

melhores cães, e Fernando retrucou que talvez ele tivesse somente aqueles mesmos, e

tivesse parado de cuidar dos cães. O antigo dono dos cães aparentemente não

concordava com o transporte dos cães para o sul, já que eles iriam depois voltar para o

projeto na região de Poconé. Valente não tinha mostrado ao que veio.

Depois das atividades matinais, ainda fomos até a estrada com os cães, que foram

colocados na batida da onça-pintada. Seu João levou-os até o outro lado de um Corixo,

mas rapidamente viu que aquilo não ia dar em nada. Cães e humanos já estavam

cansados, e Henrique ponderou com Fernando que eles deviam manter a cabeça no

lugar e não sair no desespero debaixo do sol do meio-dia. Quando estavam se

preparando.

Essa foi a minha última tentativa de acompanhar pessoalmente o trabalho dos cães

em uma captura de onça. As tentativas de captura pela equipe do projeto se estenderam,

ao todo, por um período de três meses, nos quais nenhuma onça foi capturada. O único

registro direto dessas tentativas compilado durante a pesquisa é o relato do biólogo

Henrique Conccone, narrando alguns eventos da época em seu blog na internet. Cito

abaixo os trechos em que ele descreve encontros com uma mesma onça:

Postado por Henrique Villas Boas Concone em 23 de maio de 2008

Na batida da onça

Já faz um certo tempo que estamos na batida das onças aqui do Abobral e

ainda não tivemos a oportunidade de capturar nenhuma. Na verdade, já

tivemos alguns confrontos, e dois em especial foram de amargar.

No dia 14 de Abril de 2008, foi acuado um macharrão que já tivemos a

oportunidade de fotografar em uma carcaça predada. Eram 6h30 da manhã

quando eu cheguei de moto da San Francisco, na São Bento, no exato local

onde o resto da equipe do projeto tinha saído na batida do macharrão com

os cachorros, 15min antes. Dali eu já podia escutar a cachorrada

barruando, e ao mesmo tempo, eu me sentia como o cachorro que ficou pra

trás! (...)

196

Foi tudo muito rápido, e logo seguimos a galope para encontrar o resto da

equipe do projeto. Eles foram seguindo os cachorros por dentro da

invernada com a água na altura das coxas, hora na cintura, e foram até

atravessar a divisa com a outra fazenda. No meio dessa corrida, o

macharrão já havia, em um só momento, matado dois dos nossos cachorros

e machucado mais dois. (...)

Segunda-feira passada, dia 19 de Maio de 2008, tivemos um novo encontro

com esse macharrão, e novamente ele conseguiu escapar. Desta vez não

tivemos nenhuma baixa, mas ele mandou mais três cachorros para a

enfermaria. Em um deles, foi necessário até uma cirurgia para recuperá-lo,

enquanto os outros tiveram cortes menos graves. Todos passam bem, e

estão de folga dos trabalhos por um tempo.

O animal fotografado em novembro com a coleira ao lado do bezerro, Mirão, foi

identificado por Seu João e Henrique como sendo este animal, perseguido várias vezes

pelos cães nas tentativas anteriores, mas que tinha sempre conseguido escapar.

Quando voltei à São Bento, em outubro, para um novo período de campo, as dez

coleiras compradas pelo projeto já estavam em uso. As onças foram capturadas em um

período de 53 dias, durante os quais Tonho ficou hospedado na fazenda juntamente com

seu filho, além do grupo de cães. Um dia depois da minha chegada, fui visitar Seu João,

para conversarmos sobre as capturas. Sobre a participação de Tonho, afirmou:

Ele não tem igual. Vive só disso, então é muito prático, tem uma

cachorrada muito boa.

Ele me mostrou na ocasião algumas fotografias das capturas, junto com uma série de

outras de seu acervo particular – imagens de capturas e antigas caçadas. No final deste

último período na fazenda, resolvi pedir a Seu João para registrar em áudio enquanto

fazia algumas perguntas sobre essas fotos, que ele também permitiu que eu reproduzisse

como material iconográfico para o meu trabalho de pesquisa. Ele foi identificando então

cada uma das imagens. Uma fotografia mais antiga mostrava uma onça morta, dos

tempos em que Seu João ainda caçava:

F: Essa aqui por exemplo, de quando é?

Isso é 82 mais ou menos. Nessa caçada morreram três cachorros. Essa

onça tinha comido um boi, e a gente soltou os cachorros nela mais ou

197

menos uma hora da tarde. Ela matou quatro cachorros e sobraram esses

três aí. Ela entrou numa toca de árvore, e quando ela foi pra saí pra fora

pra pegar o cachorro e eu atirei ela.

Um cachorro que aparecia numa das imagens já havia sido mencionado diversas

vezes por Seu João em conversas anteriores, apontado por ele como o melhor que já.

Olhando a coleção de fotografias, perguntei se ele tinha alguma do cachorro. Ele

respondeu que achava que tinha, e encontrou-o sem muito esforço em uma foto antiga,

que mostra dois cães ao lado dele e de um capataz de fazenda, tendo aos pés uma onça

recém abatida.

F: E esse aqui é aquele cachorro do senhor?

IO cachorro mais novo é o Maroto. Essa foi a primeira onça que ele ajudou

acuar. É esse aqui (aponta). Ele tinha mais ou menos uns dez para onze

meses. Foi o primeiro bicho que ele correu. Chegou numa idade de cinco

anos mais ou menos, e só corria onça, não corria outro bicho. Era u

cachorro de confiança. E não precisava achar rastro não. Onde ele passava

e sentia ele dava sinal.

F: E foi o dono da fazenda que te chamou?

Eles me chamavavam, né? Quando tava comento muito, ele me chamava. Aí

eu ia. Sou eu e o praieiro da fazenda.

O cachorro Maroto tinha sido citado pela primeira em uma entrevista feita com Seu

João alguns meses antes, no trecho reproduzido a seguir. O tema eram as qualidades

necessárias para um cachorro ser chamado de mestre, uma categoria fundamental para

designar seu papel na caçada. Na gravação da entrevista, pergunto:

F: E qual foi o melhor cachorro que o senhor já teve?

Rapaz, eu tive um cachorro que, assim, pode até ser que tenha algum

caçador que tem, acho que ainda tem, mas pra mim, no que eu tive, foi o

cachorro mesmo de confiança. Ele foi morto por tiro, numa caçada, antes

de chegar na acuação. Outra pessoa sem experiência acabou matando o

cachorro. Em vez de matar a onça, matou meu cachorro.

O nome dele era Maroto. Mas era uma raça de cachorro que era boa.

Todos os filhos dele. Foi uma raça que eu tive... Hoje, tem vários

198

caçadores, não só por aqui, como outros lugares de fora. O pessoal vai

criando uma raça de cachorro que é só pra aquilo. Mas foi um cachorro

que podia ser qualquer hora. Ele dava sinal e podia confiar nele. O caçador

pode ter dez, quinze, mas ele tem um de confiança, né? Ele sabe que ele não

vai sair fora de nada. O que ele der sinal é aquilo. Geralmente, quanto mais

velho vai ficando, mais experiente fica.

Ele vai trabalhar de longe, não vai lá mais, porque sabe do perigo. É difícil

matar ele na acuação, porque ele não vai mais lá. Acaba matando mais os

outros, porque os outros mais novos vão querer ir pra cima e ele não. Se ela

subir ele vai dar sinal, mas no chão não vai lá. Então o cachorro pra

chegar, o cachorro de caçador, pra chegar hoje nuns sete a oito anos, não é

fácil. Se ele chega nessa idade como mestre aí ele é bom.

O cão Maroto era um representante da raça conhecida no Pantanal como americano.

[foto]. Seu João lista acima algumas dos atributos do mestre, um termo chave na

descrição dos cachorros onceiros, ao qual retornarei na conclusão. As fotografias mais

recentes de Seu João eram todas de capturas, incluindo a participação dele em uma série

de projetos de pesquisa, incluindo o da San Francisco, onde trabalhou durante mais

tempo. Sobre uma foto que mostrava ele e Tonho cercados pela cachorrada, Seu Jão

comentou:

Esses cachorros eram um pouco do Tonho e um pouco nossos, na San

Francisco.O Tonho fez umas três campanhas com a gente.

F: E tem algum dele, assim, que ele trouxe dessa vez, ou então lá, que o senhor

lembre que era muito bom?

É. Então ele tinha o Baixote. Cachorro muito bom, de confiança dele né. E

ele tinha confiança no cachorro, porque o cachorro podia ir solto e não

corria nenhum outro bicho.

F: E o principal que faltou nesses que cachorros que estavam aqui [nas capturas] o

que era?

Esses que vieram para a campanha agora? Eles chegaram a acuar a onça,

sabe, só que tinha muita água. A onça andou batendo neles, machucando, e

eles ficaram covardes, acovardaram. Eles não conseguiam nem acuar mais.

199

O bicho tava subido ou parado, e chegava num ponto que eles voltavam pra

trás, e aí a gente não podia chegar aonde tava o bicho.

Uma das fotos que mostrava uma onça anestesiada, cercada pela equipe que a

capturou e por funcionários da fazenda:

F: Isso aqui já é aqui?

Já é aqui já. Essa é a Brava. A gente chamou de Brava.

F: E porque chamou ela de Brava?

É porque ela é uma onça que acuou num lugar muito sujo e não dava pra

gente chegar pra anestesiar. E brigava com os cachorros. Muito brava. Aí

demorou pra gente chegar nela pra anestesiar. Não subiu.Foi uma onça que

brigou bastante.

4.4. Tonho da Onça

Todas as onças monitoradas pelo projeto Onça Pantaneira, cujas atividades

acompanhei ao longo de 2008, foram capturadas com o auxílio de Tonho da Onça, um

caçador especializado contratado com seus cães onceiros especialmente para a tarefa.

Antes da contratação do caçador, haviam sido feitas uma série de tentativas de captura

desde que as coleiras de rádio chegaram ao projeto. Durante três meses, como relatado

na seção anterior, no primeiro semestre de 2008, os pesquisadores utilizaram um grupo

de cães de caça cedidos temporariamente ao projeto Onça Pantaneira pela WCS,

trazidos de Poconé, no norte do Pantanal. Além do uso dos cães, durante o mesmo

período foram mantidas abertas, na São Bento e nas áreas em torno da fazenda, oito

armadilhas com iscas vivas (porcos), mas nenhuma onça foi capturada.

No segundo semestre, Tonho da Onça foi chamado, e seus cães trazidos com ele de

Rondonópolis, cidade próxima de Cuiabá, MT. Ele foi contratado para a colocação das

dez coleiras com sistemas de rádio e GPS adquiridas para o projeto, o que foi feito em

um período de 53 dias, terminando no final de agosto de 2008. Mirão, a onça

fotografada pela armadilha fotográfica (Fotos 1, 2 e 3) foi um dos animais capturados

durante a campanha.

No final do período de trabalho de campo, em dezembro, eu estava em Campo

Grande e o tempo da pesquisa estava se esgotando. Meu principal objetivo, antes de

200

voltar para o Rio de Janeiro, era conseguir uma entrevista com o caçador contratado

para as capturas. Eu estava disposto a ir até a cidade dele, em Rondonópolis, para tentar

encontrá-lo, mas a viagem era longa e seria arriscado ir sem conseguir marcar por

telefone uma data. Eu já havia estado lá uma vez, quando ia de Poconé para Campo

Grande, em 2007, levado pelo biólogo Ricardo Boulhosa, mas ele não estava em casa.

Depois de quase uma semana em Campo Grande, com ligações diárias para os

números de telefone dele e do filho, este último finalmente atendeu, com a maior

naturalidade, a uma ligação feita na manhã do dia 10 de dezembro de 2008. Consegui

em seguida falar com o próprio Tonho, marcando um encontro para dois dias depois.

Naquela mesma manhã, peguei o ônibus na rodoviária de Campo Grande, próxima ao

hotel onde estava hospedado, para uma viagem de 11 horas em direção à Rondonópolis.

Cheguei à cidade, um pólo industrial com 180 mil habitantes, a 200 quilômetros de

Cuiabá, no final da noite, e no dia seguinte fui até o endereço dado por Tonho.

Ele mesmo me recebeu na porta, e fomos um pouco mais tarde até a sua chácara, nos

limites da cidade, onde ele mantinha os cachorros. Entrevistei-o quando chegamos ao

local. No trecho da gravação transcrito abaixo, ele comenta as capturas na fazenda, e

descreve seu trabalho nelas:

F: E como é que é, Seu Tonho, como é que é a caçada? O senhor chega num lugar

como lá na São Bento. O pessoal estava lá há um tempão sem achar a onça, né... É

questão de que? De saber achar a batida certa? Porque estava tão difícil?

Não, porque quando a gente vai caçar com a equipe é o seguinte: o último

que chega lá sou eu. Mas quando você chega lá, o veterinário já sabe onde

ela passa, o biólogo sabe. Igual ao João que trabalha com eles, ele sabe.

Então você procura um lugar onde está o passador dela.

F: Aí tem que achar o que? A batida fresca?

Aí você acha a batida ou a carniça. Cachorro bom, pega ligeiro.

F: E dá pra caçar onça sem cachorro?

Dá não. Porque eu ainda brinco com esse povo. Eles têm um negócio de

pegar onça de jaula... As nossas aqui pode até pegar, mas é difícil. Porque,

primeiro, ela não passa fome. Tem bastante bicho, bastante gado. E a onça

de barriga cheia não vai procurar a jaula. Lá mesmo o Fernando

experimentou. Noventa dias. Não deu certo.

201

F: Não pegou nenhuma...

Nenhuma. Foi em Poconé, buscou os cachorros que a Sandra tinha

comprado. Segundo eles – eu não vi, eu não posso confirmar. Segundo o

João que tava caçando: todo dia punha cachorro em onça, e não dava

certo. Não dava certo. Eu fui daqui, embarcamos a cachorrada,

pegamos,com um compromisso forçado, porque dez onças são muitas onças

pra você pegar, né? E ele quer ver o resultado...

No trecho a seguir, o caçador se refere à diretamente à Fotografia de Referência, da

onça junto ao bezerro predado:

O povo fala também onça braba, isso e aquilo outro... A onça, quem faz é a

gente mesmo. A mesma coisa se você prender um ser humano. Se você

chegar na onça e anestesiar rápido, pronto.

Uai, lá no Fernando, essa onça braba, lá, o João falou: essa onça não

pega, Tonho, ela mata cachorro. Eu falei, rapaz, mas,eu pensando, né?

Nem comentei com ninguém, só eu mais o Marco [filho de Tonho]: essa

onça não güenta cachorro no rabo não. A onça que deu menos trabalho foi

a mais braba.

Aquelas onças lá são graúdas, né? Cento e vinte e oito uma pesou. Pegamos

uma com o dono da fazenda de cento e vinte quatro. A outra [Mirão] foi

cento e treze, parece... Macho. Pegamos três machos e sete fêmeas.

Em seguida, pergunto sobre os cães, mas ele traz o assunto para os procedimentos de

captura (em especial a anestesia) e sua participação nos mesmos:

F: Mas o ideal é levar muito cachorro ou pouco? Como é que é?

Não, eu gosto de caçar com muito cachorro pelo seguinte: Porque você

anestesiar uma onça no chão é complicado. Você tem que olhar a onça e o

cachorro,porque você é o dono e não vai querer perder nenhum.

Então, o Fernando, eu trabalho com ele há mais de dez anos. Eu gosto

muito do Fernando. Nós temos muito diálogo trabalhando. Às vezes você dá

uma questionada aqui e ali, mas o que você pede ele atende você na hora.

Então nunca deu problema. Já anestesiamos várias onças.

Retomo então o tema dos cães, que era meu principal foco de interesse na ocasião:

202

F: E nessa campanha agora o senhor perdeu algum cachorro?

Não, só arranhou. Tivemos sorte. Era umas onça já mexida deles lá, né...

Mas tivemos sorte, cachorrada boa, prática. Só arranhou.

F: Porque antes do senhor chegar a onça chegou a matar alguns...

Porque a gente diz o seguinte: o caçador, nenhum é igual ao outro. Então,

primeiro você tem que ter confiança no material que você tem, que é o

cachorro. Sem o cachorro você não é nada. Você, pra embarcar uma

cachorrada aqui, pra ir lá na São Bento, você tem que ter confiança no

cachorro, depois em você.

F: Mas foi como a viagem até lá?

O Fernando mandou a caminhonete, nós embarquemos eles aqui, e fomos.

Chegamos lá, fizemos o trabalho. Com cinqüenta e três dias pegamos dez

onças. Bem trabalhado. Porque eles estavam com noventa lá e não tinha

dado certo. Cachorrada fraca, né...

Então, eu gosto de trabalhar assim: respeitando sempre o adversário. A

gente nunca pode dizer assim: eu sou bom. Porque cada onça é um tipo de

trabalho que você faz. Às vezes uma acua no chão. Igual acuou uma lá,

pequeninha. Eu tive que subir no cipó. Aí o [veterinário] passou a anestesia

pro João, o João passou pra mim, eu fui lá, atirei. Trabalhamos tranqüilos.

Pegamos umas onças brabas. Porque é braba, né, acuada de cachorro. Mas

fizemos o trabalho certo. Não teve problema – cachorro arranha né – com

nós, de falar assim, que a onça deu algum piripaque com anestesia...

Porque isso sempre acostuma dar.

Ele cita a cachorrada como elemento fundamental da captura, destacando-a como

prática ou fraca para explicar o sucesso ou o fracasso da empreitada. Em seguida,

pergunto sobre os colares de rádio, imaginando a estranheza que eles teriam causado

para o caçador:

F: Mas o senhor não achou estranha a idéia de colocar colar na onça, na primeira vez

que o senhor ouviu falar nisso?

Não, coisa, o colar, o colar eu acho melhor o seguinte: pra mim que ganho

dinheiro, pra eles também que ganham, e pro bicho. Eu acho melhor o

seguinte: você põe o colar hoje, e ele tem um vencimento. Do GPS é três

203

anos. Antes de fazer os três anos você troca o colar. Você pega ela na hora

que você quer. Então, é bem mais fácil do que a outra.

F: Do que o colar antigo?

É. Então, é bem mais fácil. Você trabalha com mais segurança, você sabe

aonde é que o bicho está, você conhece o bicho...

Ele não demonstra nenhum estranhamento, ao contrário, refere-se aos colares com

conhecimento de causa. Insisto:

F: Mas o povo não estranha não, o pessoal da fazenda, quando vê uma onça de

colar?

Não, geralmente eles não adotam isso aí. Porque nós brasileiros...É o

seguinte: você quer matar o que tem. Por exemplo: você vai andando num

carro na estrada e você vê cem queixadas;se você não atirar neles, mas

mesmo na boca você atira. E não é só um, que matar tudo. Então, o

brasileiro sempre é o brasileiro. Sempre ele não concorda com as coisas. O

negócio dele é matar e acabou, né...

Essa área que eu tenho aqui, eu possuí isso aqui em 86. Eu não vou dizer

pra você que eu fui sincero; eu matei duas onças pro coronel e ele me deu

esse pedaço de terra aqui. Eu matei duas pintadas: matei uma naquele

canto de serra ali, ó [mostra o local], quando eu recebi aqui. O barraco

meu era ali embaixo. Aí eu matei lá.

Onde o homem entra acaba tudo. Então, não tem jeito. Então, a gente, pra

segurar. Pra você trabalhar tranqüilo, você tem que estar numa área

apropriada.

Tonho fala de dentro, como um agente na rede conservacionista, e em nenhum

momento se coloca, digamos, em conflito, quer seja com as onças quer seja com os

ambientalistas ou pesquisadores. Ao contrário, é como um participante nos projetos, que

ele critica a curta duração deles no trecho a seguir:

Porque rapaz, você ir daqui, com uma cachorrada dessa, pra ir num

projeto,ele tem que aturar no mínimo oito anos. Pra você pegar o primeiro

filho da onça nova, você pegara produção do filho daquela, vim, saber

aonde que tem, como é que está. Porque ali na São Bento, tem onça

204

moradeira. Ali no João, no português, tem umas onças boas. Sadia, graúda.

Então, você ir acompanhando. Isso é bom.

Porque hoje eu to velho. A qualquer momento acaba, aí aonde é que vai

arrumar outro? Outro Tonho da Onça? É difícil. Tem. O caçador de fundo

de quintal, tem vários. Porque o projeto é seguinte: pra você sair daqui,

dependendo... Porque a onça tem uma parte de lua. Umas gostam de andar

na nova, outras na minguante, outras na cheia, quarto crescente. Então, o

caçador experiente, que entende... Eu tenho pessoa de idade aqui que tem

esse trem. Então, você chega lá, por exemplo: Você pega um caçador velho,

que entende, e você fala: olha, tem uma onça comendo gado meu lá. O cara

não te fala nada. Ele vai na folhinha, e olha. Às vezes o cara é prático, olha

na lua de noite e ele sabe que lua que é. Ele fala: agora dá certo. Tem vezes

que você sai e não dá, você fica dez dias e não dá certo.

A ênfase da fala do caçador é na dificuldade da caçada de onça e na eficiência e na

especialização dele mesmo como caçador e de seus cachorros. Tonho descreve não a

caçada tradicional, mas especificamente a captura para a pesquisa científica, onde a

dificuldade é maior por causa da anestesia. Ele explica o contraste entre as dez onças

capturadas – num período de 53 dias – e a ausência de capturas anteriores – em três

meses – através da eficiência dos cães e o conhecimento do caçador.

No trecho a seguir, ele relata como a caçada de onça, tradicionalmente praticada por

peões ou capatazes de fazendas, se tornou uma profissão para ele:

F: Como foi que o senhor começou a mexer com onça? Foi com que idade?

Pois é, eu comecei com uns tios meus. Eu perdi meu pai com um ano de

idade, aí saí da minha mãe e fui com eles. Meus tios tinham cachorro, meu

avô tinha cachorro. A primeira onça que eu fui e coisa, eu tinha sete anos

de idade. Pegava boi lá. Naquela época não vendia boi gordo, era boi

magro.

Onça pegou um boi, aí nós fomos. O velho foi na frente e eu fui meio

escondidinho por detrás. Quando chegou lá, o velho falou: agora você vai.

Aí fomos: botou cachorro, acuou. Na loca, aí o velho empurrava eu nas

costa, assim, pra chegar, que o trem tava meio brabo, bufando duro,

arrancando na cachorrada. Foi junto com o velho, aí matou. E aí continuei.

205

A cadela da minha avó pariu, ela falou: tira um pra você. Tirei. Aí comecei.

E fui. Aí eu perdi meu tio, ele caiu dentro do rio Taquari com um caminhão.

Tinha ido buscar uma carga. Aí eu passei pro outro. Meu tio falava assim:

Onça e peixe não leva ninguém pra frente.

E meus primo, filho do velho, hoje é formado, é médico, é advogado, é

engenheiro... Os cara da minha idade. Aí o velho falava: Peixe e onça, isso

não dá dinheiro! E eu pensava assim (fui criado meio embolado com peão):

Ué, mas todo mundo tem um serviço. Será que esse não vai dar?

Aí minha avó tinha dado esse cachorro. Depois, passou, a cadela pariu, eu

pedi uma cadela. Aí eu vim. Não tinha dinheiro pra comprar uma arma, pra

matar, aí cortava, furava a faca assim, punha no pau, amarrava com

arame, subia no pau e soltava. Parda. Pintada não podia...

Aí, com treze anos, um tio meu foi em Campo Grande e me deu um revólver

de presente. Aí eu fui começando, e fui indo. Tomava conta da fazenda dos

velhos, meus tios.Eles diziam: hora que você quiser caçar, onde você

quiser, você só me avisa...

F: E essa história de que antigamente o pessoal caçava na zagaia?

Eu conheço vários. Povo antigo, assim, de oitenta anos, noventa. Tem aqui

em Rondonópolis. Tem Seu Velho Fino mesmo... Ele é um homem muito

prático. Muito prático. Mas eu ver, na zagaia, nunca vi. Eu conheço a

zagaia, Seu João tem lá guardado. Porque aquele tempo era o tempo,

vamos dizer assim, dum povo bruto. Porque primeiro: arma num existia,

naquela época. Era igual carro antigamente – seu pai deve ter alcançado

isso daí. Por exemplo: antigamente, quem usava um carro era Seu Doutor.

F: Mas quando o senhor ganhou o primeiro cachorro, e começou a treinar... foi

aprendendo na prática mesmo, a pegar onça?

É, eu ia com os outro mais velho, porque naquela época não tinha esse

negócio, por exemplo: você era uma criança. O que o velho falou ali, ou

certo, ou errado, falou, né? Aí eu ia com eles e fui aprendendo...

F: E o filho do senhor aprendeu também a mexer com onça?

Olha, ele faz o serviço, coisa, mas ele ainda está um pouco novo. Só que a

gente mais nova precisa de mais uma experienciazinha. Porque às vezes

206

afoba em certas horas, então você tem que ter mais um pouco de

tranqüilidade. Mas se precisar de eu mandar ele em São Paulo, Goiás,

qualquer lugar aí: Pega os cachorros, vai lá faz o serviço porque eu não

posso por isso, por aquilo... Ele vai. Acabar não acaba não. Tem muita.

Em outro trecho da entrevista, ele observa:

Eu tenho bastante conhecimento com onça. Porque a vida toda é essa, né?

Quarenta anos de onça é muito tempo. Isso aqui onde nós estamos hoje

[aponta em volta], é tudo de onça: gado, terra, essas coisa que eu tenho. Só

não mulher e os filho... E você segurando a coisa.

Depois de um momento de silêncio, complementa:

E aí, nós mudamos o trem, de lá passamos pra anestesia. Porque na época

o conhecimento era pouco.

F: Mas foi com quem, com o Peter Crawshaw?

O Peter. O Fernando foi também. Essa gurizada que está mexendo com

onça, tudo passou aqui, toda essa gurizada.

F: E como é que prepara a anestesia na hora? Tem que dar uma olhada...

Não, eu gosto assim, eu trabalho assim: eu gosto de chegar na frente, olhar

o bicho. Às vezes você perde, você fala assim: essa onça dá 100 quilos. É

preferível você dar a menos um pouquinho do que dar a mais. Se você der a

mais pode complicar depois se você der a menos você tem o recurso.

Em seguida ele reforçaria a importância da anestesia para o sucesso da

empreitada:

Sempre eles reclama que eu sou um pouco chato. Porque eu gosto de olhar

tudo. Porque cê olhando, cê sabe aonde cê tá. Porque o veterinário entrega

a anestesia procê aqui – o dardo – aí eu ponho na espingarda... Você viu

como fez, então cê sabe aonde você tá. Porque às vezes, no momento, o

veterinário é novo, o biólogo é novo... Pode acontecer. Não é que o culpado

é o veterinário... Às vezes a onça é braba, ela bufa aqui... arranca no

cachorro ali... Às vezes o cara pode errar a coisa. Aí errou. Errou a

anestesia, errou tudo. Errou pra nós, errou pro cachorro, errou pra onça.

Tudo.

207

Em outro trecho, a referência é à captura de uma fêmea na São Bento. Ele lista os

medicamentos disponíveis, definindo o de sua preferência:

Então eu gosto de trabalhar com aquela Zooletil. Eu não gosto daquela

Quetamina, Roncon, eu não gosto não. Zooletil, você dá, por exemplo, cê

calcula a onça... Aí você pede: oitenta quilos a fêmea, por exemplo. Aí cê dá

pra oitenta. Ela segura duas horas, três horas, cê trabalha tranqüilo...

Como essa de noventa e dois quilos. Eu perdi doze quilos nela, pedi

oitenta... Mas tava no chão, né... lugar ruim, né...

Outro aspecto importante, nesse caso, é a escolha do tipo e da dosagem da droga de

acordo com o peso da onça. Reações aos medicamentos já causaram a morte de animais

capturados (Crawshaw e Quigkey 1984), e todo o processo precisa ser sempre

acompanhado por um veterinário especializado.

Tonho participou de alguns dos principais projetos de pesquisa sobre a onça-pintada

no Brasil, trabalhando com pesquisadores como Sandra Cavalcanti e Peter Crawshaw,

entre outros, além da colaboração mais recente com Fernando Azevedo. Foi também o

caçador mais mencionado em entrevistas feitas no decorrer da pesquisa para este

trabalho, sendo talvez o mais conhecido de toda a região pantaneira.

No decorrer da entrevista, evitei fazer perguntas diretas sobre as caçadas que

pudessem ser remetidas a uma espécie de abordagem investigativa da situação atual da

caça. Essa escolha respeitou principalmente a forma como meu interlocutor descreveu

sua trajetória e sua inserção nos projetos de pesquisa. A definição detalhada da “onça

comedeira” (acima), no entanto, foi a deixa para que eu perguntasse a opinião dele

sobre a proibição da caça. Na resposta, o caçador define o que considera um modelo de

preservação das onças ideal:

F: E na opinião do senhor, a caçada de onça tinha que ser mesmo proibida pelo

governo ou permitida em alguns casos?

Eu sou contra. Eu vou ser sincero pro senhor, que eu sou contra. Tudo é

igual a um casamento: se você vai casar, você e a sua noiva, você tem que

ter estrutura. Então, eu acho que o Ibama, ele falha nessa parte. Mas isso é

comum, qualquer um de nós pode falhar. Porque se ele tem uma área de

cento e trinta mil hectares, cento e vinte... Ele tem que ter cinco mil

formada, tem que ter umas duas mil vacas. A onça come,sobra, e dá

208

manutenção dentro da área;um fogo que vai entrar. Você corta a boca do

vizinho – nãoestá comendo só a minha, está comendo a minha e está

comendo a dele também, então vamos parceirar, vamos chegar onde tem

que chegar.

Agora, hoje pra nós, por exemplo: se pegar um bezerro meu aí. Eu tenho

dez! Se pegar um é um prejuízo grande pra mim. Eu vou perder o bezerro e

vou perder a vaca boa de leite; só daí a nove meses, pra frente...

F: E não tem a quem recorrer, não é?

Nãm tem. Porque você vai no Ibama, ele não está nem aí pra você. Porque

o dele (gesto de dinheiro) vem. Fim do mês o dele vem, e ele não quer

saber. Você paga imposto,o dele vem. O dele vem e o seu pula. Então, as

coisas têm que ser bem conversadas, bem arrumadinhas, pra chegar à

realidade. Porque se o senhor no meio de uma vacada de cinqüenta vacas,

você perde dez...

F: É diferente do cara que tem dezesseis mil...

É diferente. Você perde dez, e aqueles dez ali são uma manutenção que você

tem de fazer. Agora, o cara segura a sua renda.Você só vai lá pro bicho

comer, só vai lá. Não, vamos sentar, vamos conversar, vamos ver aonde que

está o erro. Eu sou dessa opinião. Juntando tudo,você tem força pra chegar

aonde precisa. Eu, de preservar qualquer tipo de bicho, eu sou a favor.

F: Mas hoje em dia tem mais onça que antigamente ou menos? Ou continua a

mesma coisa?

Olha, do conhecimento de vida que eu tenho, de sete anos pra cá, que eu

comecei a ver os bicho... Com sinceridade: hoje tem mais. Tem mais. E

antigamente o povo matava mais. Só que hoje, em muitas áreas aí,o povo

mata muito com veneno. A gente tem que ser sincero, tem que falar a coisa

boa e falar a parte crítica, mas com sinceridade. Então, eles põe estricnina,

eles põe atrin...

F: Bota na carcaça...

A gente tem que ser sincero em todas as partes. A parte boa a gente tem que

contar, a parte crítica, você tem que situar isso daí, pra todo mundo saber.

209

Porque às vezes o cara põe o veneno assim – se ele ir lá matar o cara vai lá

e prende. Ele põe o veneno, e acabou. Vai morrer pra lá. Só que não morre

só ela. O que pôs a boca ali vai. Cachorro, urubu, vaca... Por exemplo: a

gente não gosta de citar o lugar e quem é quem, quem não é quem. Você

bota uma estricnina numa carniça, num bezerro.Aí a onça vem ali, come,

morre. Aí o seu fulano lá pega aquilo ali e joga dentro do rio. Eu pergunto

pra você: que é que dá? Dá coisa errada. Então isso é errado.

Porque hoje,qualquer um de nós, por exemplo, se uma onça está te dando

prejuízo, você pode ir no Ibama, e eles vão te dar a mão. Demora um

pouquinho, mas eles têm que dar uma mão pra você. Eles têm onde pegar,

têm o recurso certo. Porque nós aqui em Rondonópolis não temos essa

arma.

F: De anestesia?

Eu não tenho porque eu não posso ter. Porque eu não sou um biólogo, não

sou um veterinário. Isso daí está lançado por eles lá mesmo, é lei. Tem que

ter licença.Então eu não posso ter uma arma dessa aqui, se não eu já tinha

há muito tempo.

F: Mas a maioria dos fazendeiros, hoje em dia, o senhor acha que está mais pra

preservar a onça, ou o pessoal vai mesmo atrás?

Olha, eu vou ser sincero pra você com toda a sinceridade: nós brasileiros

Não é um não, nós... Noventa e nove por cento o negócio é acabar. Isso daí

tem que ser sincero.Porque hoje, pra você ter uma onça de colar... O Brasil,

eu conheço de ponta a ponta. Pouco fazendeiro que tem onça na região com

colar, pouco. O Ibama tem condição de fazer projeto bom. Mas só que ele

não faz.

F: Mas o que é que o senhor acha desse tipo de projeto? Dá certo?

Dá. O projeto dá certo. Enquanto o fazendeiro queira, dá certo. Mas na

área do Ibama é melhor ainda. Aqui nós temos uma reserva aqui do Ibama,

Caracará, aqui em Poconé. Uma área igual aquela, no Brasil é difícil. Tem

onça, lá. Só que nós que trabalha, acha difícil o acesso. Que está em vigor é

só da Sandra, que eu conheço, e do Fernando. Eles estão de parabéns

210

.Então, se você fazer o projeto no lugar adequado ali é bom. Agora não

pode é pingar, assim, aqui e ali.

F: Entendi... Mas às vezes acontece também do fazendeiro do lado não gostar do

projeto...

Não, a maioria é contra. É contra o projeto. Porque o problema dele é o

gado. Agora, se o Ibama tivesse um jeito, os menino lá, de pagar o que

come – registro tem, certinho... Esse trem do Fernando lá é bem

arrumadinho, o da Sandra também é. Porque nós trabalhamos juntos há

muito tempo. Então, a coisa é bem certinha. Você, com um projetinho certo,

você vence a batalha. Funciona. Porque ali, o Fernando também acho que

vai fazer isso, comeu, pagou, né... Porque se não, o cara do lado pode ficar

revoltado, falar: ah, está protegendo a onça aí e ela está comendo meu

gado.

As perguntas a seguir, em outro trecho da entrevista, abordam diretamente o tema do

conflito na relação entre fazendeiros e onças:

F: E a onça, como é que é? Que bicho que ela pega mais? É mais o gado ou é mais

bicho do mato?

Rapaz, as nossa, aqui da região, gosta muito do gado. Gosta muito do gado.

Porque uma onça comedeira, pelo conhecimento que eu tenho, uma onça

comedeira come quinze bezerros por mês. Uma onça. Dois dias em cada

carniça. Esse é o normal da onça comedeira.

F: E é uma onça que fica só no gado?

Só no gado. Porque a onça é o seguinte: a onça é igual a nós: o cara não

vicia com porcaria aí... A onça, por exemplo, que pegar um cavalo, ela vai

comer só cavalo. Se ela pegar carneiro, só vem no carneiro; se ela pegar o

bezerro, só vem no bezerro. Por exemplo, lá no Seu João: a tabela que

come de lá é bastante.

F: Pega muito bezerro dele?

Óia, tem um prejuízo assim duns quinhentos, seiscentos bezerros por ano. E

isso aí eu falo pra você porque eu tenho conhecimento. Eu fico lá direto

com ele.

211

F: Tudo pra onça, isso?

É, tudo na onça.

F: E quantas cabeças ele tem lá?

Ele tem umas dezesseis mil vacas. O dele lá é tudo registradinho. Lá não

tem o negócio, por exemplo, diz que... Diz que eu vi... Não: lá ou é ou não é.

Lá você tem de anotar e trazer pra ele. Se for bicheira é bicheira.

Em outro trecho, ele compara o papel do caçador ao de um policial:

Você vê: vou fazer sessenta e três anos. O único bicho que eu gosto de

caçar é onça. Primeiro: É difícil.Porque se ela fosse fácil não tinha mais

nenhuma no mundo. Caçador de onça, todo mundo quer ser, por causa do

nome. É igual a você pegar um policiamento. O bandido perigoso vai lá e

faz o que faz, e coisa, mas se não é o polícia você não pega ele. Porque nós

não temos aquele conhecimento pra pegar o trem, então, cada macaco no

seu galho.

(...)

Eu comparo a onça igual um trabalho da polícia – um bandido. Só que a

onça não tem o que nós temos. Ela tem força, tem tudo, mas não sabe usar.

F: E o senhor, na sua carreira de caçada, chegou a matar quantas onças?

Rapaz, eu, de noventa pra cá eu não contei mais. Até noventa eu tinha

seiscentas. Já anestesiei bastante. Não é que a gente seja melhor... No

Brasil, o único homem que anestesiou mais onça fui eu. E eu acho que

passa de mil onças, anestesiada, pega a primeira vez, a segunda vez...

Porque quarenta anos são muitos dias, né?

F: E pra matar ela, qual arma que o senhor usava? Trinta e oito?

É. Hoje eu uso ele. Nesse trabalho aí eu uso, levo. Porque é uma segurança

da equipe. Se a onça vir, você tira o revólver e atira no chão. No baque, ela

não vem em você. Ela volta. Você não está com aquele material ali pra

fazer o outro lado. Tem uma segurança. É igual a um polícia hoje. O polícia

trabalha, por exemplo, ele vai prender um bandido. Ele só vai puxar aquele

trem quando precisa. Então, a gente é a mesma coisa.

F: E o senhor usa algum tipo de esturrador, ou já usou?

212

Rapaz, eu sou um tipo dum cara assim: O trem que eu gosto mesmo é do

cachorro. Eu gosto de ver o cachorro trabalhar. Eu gosto de trabalha

assim: vamos? Vamos. Pega cavalo de madrugada, sai. Ó a carniça, ó a

batida. Ver o cachorro trabalhar, ver a peça que você tem boa.

O conhecimento do caçador se refere principalmente aos cães: o reconhecimento

daqueles que são os melhores farejadores, as formas de comunicação com eles na

perseguição, a ordem em que eles são soltos, tudo isso faz parte do saber aplicado na

caçada.

4.5. O cão mestre

Os cães onceiros são os principais elementos de ligação entre as fontes

bibliográficas e as fontes orais citadas ao longo deste capítulo. Se, por um lado, a figura

do zagaieiro representa nessas fontes o passado de uma tradição de caça, o símbolo

extinto do enfrentamento entre o homem e a fera, os cães, por outro lado, representam

sua continuidade, a eficiência e a possibilidade de sucesso na caçada. Pereira da Cunha,

o primeiro caçador naturalista da linhagem estabelecida no capítulo anterior, a partir de

Roosevelt, afirma:

“Uma das maiores, senão a maior dificuldade para a realização de uma

caçada de onça consiste em Mato Grosso ou em qualquer parte, na

obtenção da cachorrada; esses cães onceiros, não constituindo uma raça

fixada como a dos nossos veadeiros, ou como as diversas raças de cães

estrangeiros, são de obtenção assaz difícil e trabalhosa e, se considerarmos

o número dos que morrem “em combate”, fácil tornar-se-á avaliar das

dificuldades a que aludo”. (1949: 77)

Nesta outra passagem, o narrador aguarda com expectativa a chegada de cães vindos

de outra fazenda para uma caçada, e refere-se a onceiros com os quais já havia caçado

anteriormente:

“O veterano mestre onceiro “Visconde”, cuja grande prole fazia-lhe glória,

estava, com outro cão mestre seu descendente, “Mestrinho”, na Fazenda

Firme”. (: 82)

213

Mas em seguida, ele é surpreendido pelas péssimas condições dos mesmos:

“No outro dia (...) chagaram os pobres cães. Coitados! (...) o velho e

valente ‘Visconde’ (...) viera magro, cheio de bichos, gafeirento e trôpego”.

(: 83)

A primeira viagem do Comandante Pereira da Cunha pela região é de 1913, e seu

livro foi publicado em 1922. A referência ao cão “mestre” é o registro mais antigo

citado aqui, e aponta para quase um século de história dessa tradição regional. Sasha

Siemel, que viveu no Pantanal entre 1923 e 1947, escreveu seus livros de aventura

depois que deixou a região. Em Tigrero! (1953), publicado em inglês, ele utiliza o

termo “master-dog”. No trecho a seguir o caçador descreve a cena em que recebe seu

primeiro cão do zagaieiro Joaquim Guató:

“Na manhã seguinte, Joaquim veio à minha cabana. Com ele, na guia,

havia dois cachorros. (...) ‘Eu só vou caçar de novo na segunda lua’, o

velho índio disse. (...) É você que vai caçar, e estes dois cachorros são

mestres. Mas o maior é mudo na caçada e você vai ter que conhecê-lo

melhor para caçar com ele.”

Eu vou levar o menor (...)

‘O cachorro pequeno é Valente’, ele disse. ‘Ele é um mestre’”. (Siemel

1953: 117)71

Nesta outra passagem, Siemel cita seus outros cães e relata que a fama de seus

auxiliares de caça entre os fazendeiros era igual à dele próprio:

“Os fazendeiros sabiam da minha caçada e frequentemente mandavam

notícias de tigres que estavam dizimando seu gado; e eu atravessava os

pântanos a cavalo ou em lombo de mula, com meus quatro cachorros –

Valente, Vinte, Pardo e Tupi – que eram tão famosos quanto eu”. (:240)72

71 The next morning Joaquim came to my hut. With him on leach were two dogs. (…)“It will be the second moon before I hunt again”,the old Indian said. (…) You are the one who will hunt, and either of these dogs is a master-dog. But the larger one is mute on the chase, and you will need to know him better to hunt with him.”

“I shall take the smaller one (…)”

“The small dog is Valente,” he said. “He is a master-dog.” (Siemel 1953: 117) 72 The fazenderos knew of my hunting, and often sent word of tigres destroying their cattle; and I would set out across the marshes on horse or mule, with my four dogs – Valente, Vinte, Pardo and Tupi – which were as well known as I was. (: 240)

214

Tony Almeida, o último citado na linhagem histórica deste capítulo, faz observação

semelhante à de Pereira da Cunha, cinqüenta e quatro anos depois da publicação do

livro deste sobre as caçadas com Roosevelt. Sobre a dificuldade de se conseguirem os

cães onceiros, Almeida afirma:

“[B]ons cães de jaguar são a coisa mais difícil de encontrar em Mato

Grosso. Aqueles que os têm normalmente se recusam a vendê-los por

dinheiro algum. Nem mesmo um belo revólver Smith & Wesson niquelado, o

sonho de qualquer vaqueiro, consegue comprar um bom cachorro”.

(1976:13)73

Relatando as dificuldades que enfrentou até conseguir caçar sua primeira onça, o

autor considera os cães essenciais para o sucesso da caçada:

“Não adiantava caçar mesmo na melhor região de jaguar se você não

tivesse cães bons e bem treinados. Caçar um felino tão esquivo quanto o

jaguar (...) sem bons cachorros era uma perda de tempo e esforço. Agora,

depois de muitos anos de experiência, nós descobrimos que às vezes outros

métodos podem ser empregados para atrair o jaguar (o chamado com

esturrador). Basicamente, no entanto, bons cachorros são essenciais a uma

caçada bem sucedida”. (Idem)74

Os cães onceiros possuem uma série de características específicas a partir das quais

são designados pelos caçadores nesses relatos históricos. A categoria fundamental para

uma atualização do tema na etnografia é a do mestre, que procuro explorar nesta seção.

A designação foi mencionada em todas as entrevistas realizadas com caçadores (ou ex-

caçadores) para esta pesquisa. Na entrevista feita com Seu Inácio, em que ele mostra

seus cães (Op. Cit.), por exemplo, pergunto o que faz com que um cão seja chamado de

mestre. Ele responde:

73 [G]ood jaguar-dogs are the hardest thing to come by in Mato-Grosso. Those who have them usually refuse to sell at any price. Even a shiny, nickel-plated Smith & Wesson revolver, the dream of every vaqueiro, will often not buy a good hound. (1976: 13) 74 [T]here was no use in hunting even in the best jaguar country if you did not have good, well-trained hounds. To hunt a cat as elusive as the jaguar (…), without good dogs, was a thorough waste of time and effort. Now, after many years of experience, we have found that at times other methods can be employed to bring a jaguar to bag [O chamado com esturrador]. Basically, however, good dogs are essential to a successful hunt. (Idem)

215

Ah, ele tem que ser bom. Ele tem que apanhar a batida e ir até acuar ela. Se

ele achou a batida da onça, ela pode andar essa hora assim, ou então lá

pras seis da tarde... E lá pras oito hora da manhã do outro dia, ele panha a

batida e vai até acha ela. Ele não larga, vai até descobrir ela. Ele cansa,

vai na água, daí traz ele, põe ele na batida outra vez e vai embora. Ele

panha a batida e acua, vai te descobrir ela. Fica junto ali acuando ela. E se

ela subir, ele fica em baixo acuando. Aí os companheiro ajuda ele, né...

F: E o senhor escuta o latido?

E já sei a hora que ela tá subida e que ela tá no chão... Pra cima ele tem

outro latido, né... e pra baixo já é outro, outra acuação.

O principal atributo do mestre é, portanto, o faro. De acordo com o caçador, o que o

distingue é a capacidade de seguir o rastro mais de doze horas depois da passagem da

onça. Seu Inácio se refere ainda à onça “subida” e à onça “no chão”, e reconhece o tipo

de acuação ouvindo os latidos.

Os cães foram também o principal assunto abordado na entrevista que fiz com

Tonho da Onça (a última durante o trabalho de campo), e na ocasião tive a oportunidade

de visitar com ele o canil onde criava seus mestres, numa chácara afastada da cidade.

Logo que chegamos ao local, o caçador me levou por uma trilha ao lado da casa

principal até os recintos dos cachorros. Segui-o filmando em vídeo, e transcrevo abaixo

seus comentários:

Então vamo lá ver algum cachorro agora?[som de passos, latidos]

F: Tem quantos aí, Seu Tonho?

[Começa a contar:] Quatro, seis, oito... (...), dezenove... Tem vinte.

Na imagem filmada, os cachorros aparecem divididos em grupos, dentro de recintos

simples, gradeados na frente. Ele vai apontando um a um:

Esse aqui é mestre. Aquele branco lá é mestre; aquele preto lá no meio é

mestre... Essa cadela aqui; aquele cachorro vermelho – aquele que tá

deitado lá. Aquele peludinho lá do canto... Essa cadela aqui é boa também.

Essa daqui... Essa vermelha... Aquele preto lá... Novo aqui só têm três: essa

daqui é nova, aquele vermelho lá, e aquele que tá deitado ali...

F: Mas tem algum que seja o que o senhor mais confia, que bota na frente mesmo?

216

Essa cadela branca aí pode soltar na frente; esse branco aqui... Esse

vermelho aqui... Aqueles quatro lá do canto pode...

F: E como é que é o nome dos mestres aí?

Olha, o nome daquele pretão lá chama Maconha. Aquele lá chama

Brinquedo; aquele que está ali, branco, chama Palanque... Esse aqui chama

guri, esse vermelhinho aqui. Aquela cadela que tá ali chama Doida...

Aquele que tá deitado ali chama Barão, e aquele outro peludinho lá – é um

cachorro de madame, a raça dele. O nome dele é Vovô... Mas é bom: cê

pode andar com ele solto e não corre outro bicho, só onça.

E tem aquela cadela vermelha, mestre também, chama Chalana; e tem a...

Como é que é o nome da outra cadela? Eu esqueci o nome da outra

cadela...

F: O senhor é que botou o nome dos cachorros todos?

É, eu ponho, os meninos meus põe, os netinhos meu põe...

F: E por que é que é Maconha?

Não, é porque quando nós peguemo ele, ele era um cachorro bem ligeiro.

Ele saía, passava na frente dos mestres e ia. Aí o (...) falou: vamo por o

nome desse cachorro de Maconha. Aquele cachorro ali é bem bom, coisa...

Aquele ali, ele não vale nada. Nego pode me dar duzentos mil, trezentos mil,

que eu nem olho. Qualquer um deles aí...

F: E qual é o melhor deles todos?

Rapaz, tudo faz a parte deles aí. Aí cada um quer ser melhor do que o

outro...

F: E tem, assim, um que é melhor no faro, outro que é melhor na acuação...

Tem, tem. Por exemplo: o Maconha mesmo, no pau ele não é bom, pra

acuar no pau... Ele acua de roda. Mas se o bicho pular, ele sai. Aí, no pau

mesmo, é o Brinquedo mesmo, esse pequenininho, e esse Palanque... E a

cadela lá, e aquela outra cadela vermelha lá. O Barão... O Barão, se ele

acuar a onça, ele fica de baixo do pau, mas não late. Então, cada um tem

um jeito. Batida não, batida todos eles trabalha bem.

217

F: Mas tem um cachorro que o senhor fale que foi o melhor que o senhor já teve?

Rapaz, eu já tive vários cachorro bom, coisa... O melhor que eu tive era um

tal do Aparecido, velhinho, pé duro. Ele durou onze anos na minha mão.

Morreu aqui, gordo. Esse você podia por no meio de dez cachorros, de

vinte, de trinta, sozinho... O trabalho dele era um só.

Minha principal preocupação, quando procurei Tonho, era obter uma descrição

detalhada do trabalho dos onceiros. Eu não conseguira observá-lo trabalhando, e queria

tentar suprir a ausência dessa descrição in loco da captura com narrativas dos

participantes. Transcrevo abaixo trechos da gravação (feita em vídeo) procurando

estabelecer vínculos entre as categorias utilizadas por ele e as que aparecem nas outras

fontes citadas neste capítulo:

F: Tem um cachorro que o senhor bota primeiro?

É, tem um. É o mestre que eles fala.

F: E como é que a gente sabe quando o cachorro é mestre?

Olha, cê vai andando aí, aí você acha a batida da onça, ou a carniça, cê

põe o cachorro. Aí ele sai trilhando, vai. Vai lá na onça, esse é mestre.

Agora o cachorro que você põe e ele sai louco procurando, não acha... não

é mestre não. (...)

Você chegou e achou a batida, a carniça tá aqui, você põe. O cachorro sai

barruando, você solta mais cachorro, vai lá, acua, cê pega... Então, você tá

trabalhando com a cachorrada, você tá vendo quem é quem.

F: E pelo latido o senhor sabe se ele achou a onça?

Sabe. Eu sei se é pintada; eu sei se é parda; eu sei se é bicho à toa...

F: E um mestre, hoje em dia, vale muito?

Rapaz, pra mim não tem preço não. Pra vender eu não vendo não. Porque o

cachorro você tem que ter o mestre, tem que ter o meio, que é o que

aperta... e cê tem que ter o bom de pau... É, então você tem que ter tudo

essa média. Porque o cachorro ruim, ele te dá prejuízo. Aqui não pára. Nós

dá pros outros, qualquer coisa nós faz. Não adianta você ter, porque o

gasto é grande.

218

O tema da compra e venda dos cães onceiros é mencionado por Almeida (1976:

Op.Cit) e é abordado também na seção 2.3 deste capítulo. No primeiro canil de cães

onceiros que conheci, em 2006, pertencente a um projeto conservacionista instalado

numa fazenda tradicional pantaneira, o administrador da propriedade relatou que

“antigamente um bom onceiro podia ser trocado por várias cabeças de gado” (FC

03/2006). Ele levava dois cães atrelados na guia, um deles um pequeno vira-lata,

chamado Mestrinho, que explicou que era o único mestre no canil.

Os cães de caça têm a reputação de não se tornarem obedientes como os cachorros

de casa, e são amarrados em pares para facilitar seu controle [Cit: Distinção entre

hounds e dogs]. Perguntado sobre as características do mestre, mencionou a reputação

desses cães de saber que a onça pode subir nas árvores e, principalmente, o fato de o

mestre seguir apenas o rastro da onça, e de nenhum outro animal.

Essa característica fundamental do onceiro seria citada muitas vezes durante a

pesquisa de campo. Um exemplo é a entrevista de Seu João, na Fazenda São Bento.

Quando questionado sobre as características do mestre e a criação dos cães, ele afirma:

É um cachorro que ele não vai ligar pra outros tipos de bicho, ele vai

trabalhar naquilo. Então, mesmo cachorro novo, você vai olhar nele no

meio de dez, doze cachorros, e sempre tem um ou dois que vai ser o mestre,

e você já escolhe pra mestre. (FSB 04/2008)

O tema também seria abordado, mais tarde, na entrevista com Tonho da Onça:

F: E é verdade que o cachorro mestre não corre outro bicho?

Não. Porque o cachorro novo, ele corre tudo quanto é porcaria, se você

deixar... Sempre eu brinco com todo mundo: cachorro de pobre corre tudo

quanto é porcaria. Porque tem aqui no Mato Grosso. Tem vários... Mas só

que é um cachorro que corre tudo. Não tem uma cachorrada firme.

O caçador ilustra seu argumento com uma história ocorrida na campanha de capturas

(então recente) na Fazenda São Bento:

Aconteceu um caso comigo mais o Fernando, lá... A onça tinha pegado a

novilha era onze horas da manhã. Aí o João foi lá, ligou. No outro dia nós

foi de madrugada. Eu cheguei na carniça e falei: Fernando, essa carniça

aqui tá meio variada, essa carniça aqui... a onça não voltô essa noite. Aí eu

soltei os cachorro lá, fui trabalhando, trabalhando... Aí o veado correu

219

assim, do lado direto, e a cachorrada passou aqui [mostra]. Tinha cachorro

na frente, cachorro no meio, cachorro atrás, cachorro mais atrás... Aí ia

trilhando um cachorrinho (até dum amigo meu que tinha levado, doutor

Brás), passou mais o cachorro mestre.

O Fernando falou: cachorro tá correndo veado...

Eu falei: vai te lascar, rapaz! – E arranquei o cavalo até ali o mato.

Aí já tinha quatro cachorro na onça, já. Cheguei lá, a onça braba demais,

daí foi chegando a turma. Peguemo a onça, essa, noventa e dois quilos.

Fernando falou: Tonho, eu achei que o cachorro tava correndo o veado.

Eu falei: rapaz, você repara... Cê ta é acostumado com mercadoria ruim.

Você repara cachorro trabalhá, né?

A resposta do caçador à provocação mostra como é a reputação dele que está em

jogo na ação dos cães, em particular do mestre. Tony Almeida (1976) observa, sobre

este tema específico, que a categoria do mestre se refere a um ideal nunca plenamente

realizado na prática:

“Na teoria esses cães mestres perseguiriam apenas onças, porém mesmo

com os cães de caça mais bem treinados isso às vezes não acontece na

prática”. (: 13)75

Dois métodos foram citados, durante a pesquisa de campo, para o treinamento dos

cães. O primeiro usava um gato previamente encharcado com banha de onça e solto no

campo para ser perseguido pelos cães. O segundo utilizava o couro de uma onça, preso

no alto de uma árvore. Na entrevista com Tonho, ele não menciona nenhuma técnica

específica para este fim, e afirma apenas que colocava os mais novos junto com os

mestres, para eles irem aprendendo. Insisto no tema:

F: Mas e se o senhor pegar uma cachorrada que nunca correu onça?

Aí não tem jeito, não tem jeito, tem que ter o mestre. Agora, o mestre que é

o difícil. O cachorro de você por ele na batida e ir no bicho.

F: Não tem nada que o senhor faz para ele aprender?

75 In theory these master-dogs are supposed to run nothing but cats, though even with the best-trained hounds this sometimes doesn’t work out in practice.

220

Algum cachorro, algum cachorro nasce pronto. Eu to velho. Já possuí

muito cachorro bom, muito mesmo.Tenho cachorro bom. O melhor

cachorro do mundo que eu já vi é o tal do Baixote, desse João Carlos. Esse

cachorro não tinha dia. O único cachorro do mundo que eu já vi bom. Esse

cachorro não tinha dia, não tinha hora. Podia a onça passar aqui hoje,

agora. Amanhã nesse horário você por e ele pegar. Só que era vagaroso.

Ele era baixinho assim, ó. Cachorro melhor do mundo que eu já vi. E eu

tenho muitos anos de caça, conheço cachorro.

F: Mas era por que, era o faro dele?

Não, o cachorro era fora de série. E esse cachorro era dum apartamento

em São Paulo, lá, duma colega dele lá. É, e não corria bicho à toa nenhum.

Barruou, era a parda ou a pintada. Aí ele foi no Estados Unidos e importou

esse bludihound, só que veio ao contrário. Esse daí era vermelho e veio

preto. Aí ele cruzou esse baixote com a cadela pura. Você podia pegar no

canil, igual os meus lá, e por na batida da onça, que ia embora. Então,

cachorro assim não dá trabalho.

Neste sentido, a declaração pode ser aproximada mais uma vez de Almeida (1976),

que dissocia a qualidade dos cães como onceiros de seu pertencimento a determinada

raça:

“A raça ajuda, mas às vezes um cão mestiço bem treinado vale muito mais

do que o melhor fox ou bear-hound importado”. (: 13)76

O autor menciona cães de caça à raposa e ao urso. No trabalho de campo, registrei

menções às seguintes raças: Foxhound, Bloodhound, Coonhound e Rodesiano. A raça

de onceiros mais comumente encontrada no Pantanal, pelo que pude constatar, é a dos

cães chamados localmente de americanos, que pressupus serem originários da raça

foxhound americano. No entanto, as declarações de Almeida (acima) e do próprio

Tonho sobre o cachorro “de apartamento” mostram que a raça do cachorro não é o fator

determinante na seleção do mestre. Ainda sobre a mesma questão, pergunto para este

último:

76 The breed is a help, but sometimes a well-trained mongrel will be worth much more than the best imported fox- or bear-hound. (: 13)

221

F: Mas qualquer cachorro pode virar mestre ou depende da qualidade dele?

Rapaz, sempre a gente procura assim, de descendência. Não é qualquer um

não. Porque o cachorro você traz, vamos dizer assim, de família, né... Igual

a esse meu aqui. Aquela cadela vermelha lá é da linhagem antiga dos

cachorro meu, uma vermelha que tá ali [mostra]. Tem aquela cadela que eu

falei procê, que já tá velhinha, tem treze anos de serviço...

O que caracteriza os cachorros, neste trecho, é a linhagem produzida pelo caçador.

Esse mesmo sentido pode ser encontrado em Pereira da Silva (1949), que cita o nome

de um criador de cães como designação para uma “raça” de onceiros:

“No rio Taquari, afluente da margem esquerda do Paraguai, existe um

fazendeiro, Sr. “Janjão” de Barros, cujos cães onceiros têm fama

tradicional, fama tão grande que para dar idéia da excelência de qualquer

cão onceiro, basta que se diga: é raça do ‘Janjão’”. (1949: 77)

É o criador que valoriza seus cães, que responde pela qualidade deles. Tonho conclui

sua explicação:

É da linhagem antiga, de vinte anos pra trás, que eu tenho. Então, daquela

linhagem tem aquela cadela, tem aquela ali... E tem esse preto aqui e

aquele vermelho lá. E tem essa ninhadinha nova aqui, que é da mesma

família. Então você vem pegando a descendência.

A partir dos cães, como representantes da continuidade de uma prática tradicional,

procurei descrever a caçada de onça, neste capítulo, como um conhecimento

especializado dominado por especialistas. Tal conhecimento, além da própria

performance no campo, envolve a criação, o cuidado e a seleção dos cães como atores

principais. A caçada em si, regida pela interação entre humanos e cães, envolve o

trabalho cooperativo entre duas espécies, cada uma delas guiada por um sentido

diferente – os humanos pela visão e os cães pelo olfato – e capazes de se comunicar à

distância por chamados e sinais sonoros.

O que distingue o cão mestre é a qualidade do faro, em primeiro lugar, e a idéia de

que ele não segue outro animal que não seja a onça. Em seguida, a capacidade de se

comunicar com o caçador à distância, principalmente durante a acuação; é pelo som que

o caçador pode saber o que vai encontrar, se uma onça subida (fácil) ou uma onça

acuada no chão (difícil, e por isso mesmo, como vimos, o prêmio máximo da caçada

222

esportiva). Tonho aponta três especialidades de cães diferentes: o mestre, o do meio, e o

bom de pau. O primeiro é bom farejador, o segundo vai ajudar a subir a onça, e o

terceiro vai mantê-la no pau. O latido dos cães na caçada é chamado de barruar, termo

que descreve o uivo característico das raças de caça (hounds). Pelo latido do cachorro, o

caçador percebe quando ele “firma na batida”, e então vai soltando o restante dos cães

enquanto segue a matilha.

Os cães farejadores são capazes de detectar e rastrear a onça até encontrá-la, a partir

de vestígios que para os humanos são imperceptíveis. Mas, diferentemente da caçada às

raposas, por exemplo, na qual eles são os responsáveis também pelo abate do animal

perseguido, no caso dos grandes felinos, cabe ao caçador a tarefa da captura (seja ela

um abate ou uma anestesia). Os cães perseguem e acuam a onça para que o caçador

humano possa estabelecer contato visual com ela. A cena da onça em cima da árvore,

acuada pelos cães, substitui aqui a imagem dela diante do bezerro predado. Seguindo o

exemplo do capítulo anterior, a caçada pode ser descrita, assim como a lida, a partir de

dispositivos de rastreamento – o faro dos cães – e de captura – a arma ou o

tranqüilizante.

No caso dos projetos científicos, as técnicas tradicionais de caça fazem parte de um

horizonte de práticas – o campo (field site) – onde elas se combinam com uma série de

outras técnicas. O objetivo da captura é a coleta de amostras biológicas e a colocação de

coleiras com rádio-transmissor nas onças, para que passem a ser monitoradas através de

sinais de rádio (mais antigos) e sistemas GPS (mais recentes). O rádio é também um

novo dispositivo de rastreamento, e o pesquisador captura coordenadas e produz mapas

a partir delas. A relação entre os métodos tradicionais de rastreamento (que envolvem o

conhecimento local e o uso de cães) e as técnicas de telemetria será o tema principal do

próximo capítulo.

223

ANEXO F – Imagens Capítulo 4

Capa livro sobre Tonho da Onça, o caçador que virou defensor dos animais.

224

Arquivo João E. Batista Arquivo João E. Batista

Arquivo Tonho da Onça

Março de 2008

No alto, Seu João e Tonho com os cães na época das capturas na San Francisco (2003-2004). No

centro, Ribusca e Valente, dois onceiros. Abaixo à esquerda, Tonho e seus onceiros; à direita, um

típico americano.

225

© Projeto Onça-Pantaneira

Funcionários da Fazenda São Bento posam a equipe do Projeto Onça Pantaneira

junto à onça anestesiada, em 2008.

226

Capítulo 5 - Rede coleira

Introdução

A série de fotos que serve como referência para a pesquisa etnográfica, que designei

na introdução como seqüência 1, mostra uma onça-pintada puxando a carcaça de um

bezerro, em meio a um emaranhado de cipós; ela usa uma coleira. O ponto de partida

para este capítulo é o recorte deste elemento isolado da imagem e o objetivo é seguir o

percurso dele na etnografia. Neste caso, a coleira é o elemento da imagem que se

articula mais diretamente às práticas científicas empregadas no estudo das onças, e ela

é, portanto, o principal agente da rede científica que procurarei mapear a seguir.

O conceito de redes sociotécnicas, forjado por Latour, foi o que tomei como

referência para os capítulos anteriores, que chamei de rede gado e de rede caça. Em

ambos os casos, é possível discernir uma série de horizontes de práticas diferentes: as

técnicas em si, as alianças necessárias para sua reprodução, a comunidade de

praticantes, e a face pública dessas práticas. Os exemplos fornecidos por essas duas

redes também demonstram a interdependência dessas práticas heterogêneas na rede de

conservação animal e no estudo da onça-pintada. Contudo, no que se refere a esta rede

científica, os temas tratados até aqui diriam respeito principalmente às alianças entre

cientistas e não-cientistas.

Latour situa a primatologia e os chamados science studies no mesmo plano, como

disciplinas empíricas, refutando a oposição tradicional entre natureza e cultura que

fundamenta o mito de que a realidade natural seria estudada pela biologia enquanto a

antropologia estudaria a construção social dos fatos científicos:

“A descoberta dos science studies não é que a ciência pode ser influenciada

ou distorcida por fatores “externos” como ideologia, política, preconceitos

culturais ou paixões psicológicas. (...) A descoberta é ainda muito mais

interessante: (...) é que os fatos são entidades em circulação em uma rede

complexa”. (2000: 365)

A partir dessa “descoberta” (o termo é usado com ironia), a oposição moderna entre

aspectos naturais e culturais é considerada uma interrupção artificial naquilo que os

“science studies” pretendem descrever:

227

“O objetivo da ciência é misturar, produzir mediações entre o que os

primatas fazem e o que os cientistas dizem sobre eles”. (Idem)

Latour argumenta que é justamente porque o cientista o fabrica que o fato se torna

independente do seu trabalho; a própria autonomia do fato científico residindo na

qualidade de sua fabricação:

“Para eles [praticantes de ciência], a intensidade do trabalho e autonomia

do que o seu objeto de estudo são sinônimos. Quanto melhor fabricado um

fato, tanto mais independente ele é”. (: 368)

Contrariando o que considera uma discussão ultrapassada sobre o determinismo

biológico e o determinismo social, Latour propõe, para o estudo desse sistema

circulatório da ciência, um modelo com cinco horizontes de práticas: (1) O campo ou

laboratório, uma unidade produtora de dados; (2) a comunidade científica que constitui

uma disciplina autônoma e torna os dados relevantes; (3) as alianças com não-cientistas,

relações com agências e fundações que financiam a pesquisa; (4) as relações públicas, a

divulgação por meios não-científicos e, por fim, (5) o conceito ou teoria que integra as

massas de dados e os contextos de circulação, o coração do sistema.

Como Latour argumenta, se qualquer um dos cinco horizontes for esquecido, a rede

complexa da prática científica torna-se insustentável. No caso particular das onças,

essas alianças parecem desempenhar um papel crucial na sustentação da rede, na

medida em que a conservação se associa de forma determinante tanto à pecuária, com a

qual forma uma unidade quase indissociável, quanto à tradição dos cães onceiros,

auxiliares fundamentais no estabelecimento do campo.

O estabelecimento de unidades produtoras de dados é o principal aspecto que a

coleira de rádio torna visível no campo, e elas se referem, neste sentido, ao primeiro

horizonte do modelo latouriano. Procuro a seguir rastrear os aspectos técnicos e

históricos dessas práticas. Além disso, a coleira remete também a outros três temas

complementares, que dizem respeito à rede científica do estudo de carnívoros, a serem

explorados mais diretamente neste capítulo. O primeiro deles é a comunidade de

pesquisadores à qual o projeto de conservação das onças se acha vinculado; o segundo,

a divulgação científica; o terceiro, finalmente, o conjunto de conceitos ou teorias que o

estudo das onças produz.

228

5.1. Captura e divulgação

A divulgação científica tem uma importante função para a conservação e o estudo

das onças. As informações produzidas pela pesquisa de doutorado de Fernando

Azevedo na San Francisco, por exemplo, publicadas em uma série de artigos científicos

em revistas especializadas, circularam também em pelo menos outros dois registros. Em

primeiro lugar, ao longo do tempo, o projeto recebeu equipes de filmagem que

realizaram matérias e documentários sobre ele, destinadas não só ao público científico

que sai em busca dessas publicações e se interessa de fato em ler este tipo de trabalho,

mas também a um público mais amplo, não especializado. Um exemplo dessa

circulação de informações é a origem do próprio projeto Onça Pantaneira, estabelecido

depois que o proprietário da Fazenda São Bento assistiu a um programa de televisão

sobre a pesquisa com as onças na Fazenda San Francisco.

Por outro lado, a face pública da pesquisa, além de atrair investimentos, é também o

que dá suporte ao diálogo entre os pesquisadores e os moradores locais, em particular os

vaqueiros, que são fundamentais para o sucesso das propostas locais de conservação.

Neste caso, além do contato dos pesquisadores com os moradores da fazenda onde o

projeto está sediado, as informações circulam também graças a encontros e workshops

organizados com representantes dos fazendeiros.

A divulgação, de forma geral, representa uma esfera de circulação dos dados

científicos em que eles são apresentados para o público leigo, então, a forma com que

aparecem neste âmbito é bem diferente daquela em que são discutidos nos artigos e na

literatura especializada. Ou seja: um determinado aspecto da pesquisa como, por

exemplo, a predação das onças sobre o gado, tem duas leituras distintas: Na tese de

doutorado do biólogo referido acima o assunto é complexo; apresenta resultados

parciais e discussões articuladas com uma série de outras questões ecológicas; é,

portanto, um problema em aberto (Azevedo 2006). Enquanto isso, em programas de TV

e matérias de revistas sobre a pesquisa, assim como nos encontros com fazendeiros, o

mesmo tema é exposto de modo diferente, buscando apresentar resultados concretos e

termos não problemáticos, isto é, soluções imediatas e fatos consumados bem diferentes

daqueles discutidos no âmbito científico.

Não há intenção crítica na definição desse desdobramento ligado à apresentação de

dados para públicos diferentes. Ao apontar essas características, e as diferenças entre

veículos científicos e publicações de interesse mais amplo, como mencionei

229

anteriormente, não se trata de desqualificar essa popularização das discussões. Entendo

que a divulgação seja importante no campo científico. Assim como a publicação em

revistas especializadas. Apenas quero chamar atenção para esta dupla face da produção

científica, abordada por Latour em Ciência em Ação (1998), quando descreve o

processo de purificação dos dados científicos por meio de sua inscrição em diferentes

esferas.

Para abordar o tema da divulgação científica a partir da etnografia, descrevo nesta

seção um vídeo produzido pela National Geographic Society, em 2004, sobre o projeto

Gadonça, na Fazenda San Francisco. Retornarei depois ao tema na seção seguinte, ao

tratar de encontro organizado na fazenda com a participação de pesquisadores e

fazendeiros. Neste caso, a divulgação voltada para o público local aparece subordinada

a um dos principais temas conservacionistas ligados às onças, que é a questão do

conflito. Além de divulgar dados científicos, o encontro pode ser entendido também

como uma arena pública de debates entre criadores de gado e cientistas, colocando

frente a frente visões diferentes a respeito dos significados da preservação e do papel da

onça no Pantanal.

O vídeo em questão faz parte de uma série da National Geographic chamada

Animais do Brasil - Lutando pela sobrevivência, na qual, além da onça-pintada, foram

produzidos filmes curtos sobre outros animais da fauna brasileira, como o lobo-guará, o

muriqui, e o peixe-boi. O episódio sobre a onça-pintada foi filmado na Fazenda San

Francisco, em 2004. Assim como a maior parte da iconografia sobre a conservação da

vida selvagem, especialmente aquela produzida para televisão, o filme não é um

documentário, mas sim um programa com formato pré-determinado que utiliza imagens

documentais e informações científicas para passar uma mensagem conservacionista.

Minha intenção aqui é operar uma superposição das imagens da onça veiculadas nessa

mensagem audiovisual (entendendo-a como um exemplo de ecologia popular) às

imagens analisadas no capítulo anterior como parte do léxico da tradição naturalista

representada pelos caçadores.

O narrador resume o enredo da história logo no início do filme feito para a tv:

O reino da onça-pintada, o maior predador da América do Sul, está

ameaçado. Pecuaristas estão invadindo seu território. Quando matam o

gado para se alimentar, as onças-pintadas são perseguidas e mortas por

caçadores contratados por fazendeiros, com freqüência assustadora. O

230

biólogo Fernando Azevedo e seus amigos estão correndo contra o tempo

para encontrar as onças-pintadas antes que os caçadores o façam.

O roteiro do episódio provavelmente poderia ser aplicado a qualquer outra espécie

de predador em contato com rebanhos domésticos, já que se trata de um programa em

série, que obedece a uma fórmula narrativa geral. A história de fundo é uma “corrida

contra o tempo” para salvar as onças; uma corrida disputada entre o biólogo e os

caçadores contratados por fazendeiros. O pesquisador é apresentado da seguinte forma:

O biólogo brasileiro Fernando Azevedo é um estudante de doutorado da

Universidade de Idaho. Ele não está conduzindo o seu estudo em algum

confortável laboratório climatizado, mas sim no Pantanal do Brasil, a

maior planície alagada do mundo. Esta é uma região onde poucos são

corajosos o suficiente para entrar. É o território de caça do maior e mais

temível predador da América do Sul: a onça-pintada.

No capítulo anterior, a partir de uma seqüência histórica de relatos de caçadores,

apontei duas imagens que, juntas, corresponderiam a uma visão tradicional, ou até

mesmo caricatural, das onças. A primeira é a de fera ameaçadora, do animal maior, mais

desafiador, valorizado como troféu, e a segunda é a da figura heróica do caçador ou do

zagaieiro que a enfrenta. A descrição da onça no trecho acima, extraído do programa de

televisão, como “o maior e mais temível predador” repete com exatidão a figura

tradicional, assim como a imagem do biólogo, descrito como o herói com coragem

suficiente para entrar no território selvagem.

A narração prossegue apresentando os personagens:

A missão de Fernando combina o objetivo de sua pesquisa científica com

um objetivo que ele considera ainda mais importante: promover a

coexistência de onças-pintadas e os fazendeiros região. (...)

Matar onças-pintadas é um crime ambiental, mas apenas no papel,e talvez

dezenas sejam mortas anualmente no Pantanal.

As imagens mostram o biólogo encontrando um bezerro ferido, e identificando o

ataque como sendo de uma onça-pintada. O narrador afirma:

Isso torna as coisas mais difíceis para Fernando, pois ele precisa organizar

uma expedição de caça tradicional para encontrar a onça-pintada que

231

matou o bezerro. O plano é capturá-la e instalar um colar de rádio para

que ela possa ser acompanhada e protegida.

A partir daí, o filme mostra uma caçada tradicional. Ao longo do vídeo, a caçada é

descrita como “um tipo diferente de expedição de caça” e “uma corrida para salvar a

vida do grande predador”. Um plano longo mostra Seu João a cavalo soltando um

grupo de cães que estão atrelados em pares, e o seguem. Tonho da Onça se junta a ele

no caminho, segurando um laço a moda dos vaqueiros, assim como outros participantes

da caçada. Em outra cena, cavaleiros e cães atravessam uma baía, passando por dentro

d’água.

O narrador afirma que a caçada de onça é proibida somente no papel, e que dezenas

de animais são mortos todos os anos no Pantanal. Enquanto isso a câmera corta para o

plano da cintura de um homem não identificado, que mostra um revólver. Vemos, então,

Tonho caminhando e examinando o terreno, e há, em seguida, um corte para a imagem

das pegadas de uma onça. A narração prossegue, e descrevem-se as etapas da caçada:

O primeiro passo é localizar rastros das onças. Fernando examina a área

por sinais de arranhões, fezes ou pegadas. (...) Para que os cães para

seguir o rasto do felino, eles devem encontrar impressões frescas, deixada

por um jaguar não inferior a doze horas antes.

As imagens mostram Tonho da Onça e Seu João andando de barco procurando

rastros na margem de um Corixo. Os dois coadjuvantes são apresentados da seguinte

maneira:

O projeto de Fernando convenceu alguns caçadores a mudar de lado.

Caçadores como Tonho e João, que já mataram dezenas de onças-pintadas

no passado. Agora, em vez de matar as onças, eles estão ajudando

Fernando a salvá-las.

A câmera em movimento acompanha o grupo que avança com dificuldade por

dentro da mata, com cipós e plantas de espinho. Um dos cães é ferido acidentalmente

por um dos membros da equipe, o que interrompe a caçada. A narração continua,

enfatizando o perigo e o desgaste físico do grupo:

A captura para salvar o animal pode ser tão perigosa e desgastante quanto

a caça para matá-lo. Ninguém no grupo pode ser deixado para trás, pois

este é o território da onça.

232

Uma nova seqüência de caçada mostra um grupo grande de cães. Tonho solta um

deles. O texto do programa vincula, então, o destino da onça ao faro do cão líder:

Os caçadores encontram uma pegada fresca. Tarugo é solto para perseguir

o animal.

E descreve a performance do cão mestre:

O cão líder segue os rastros da onça, e uiva para permitir que os caçadores

saibam que está nas proximidades.

Ouvimos, nesse momento, os uivos longos do cão, enquanto a imagem mostra dez

ou quinze cachorros sendo soltos pela equipe, e disparando em direção ao som. Os

participantes da caçada (inclusive o câmera) correm atrás dos cães, procurando

acompanhá-los. A narração do programa reforça a tensão das imagens:

O dia inteiro de perseguição, o grupo está exausto. Os caçadores devem

correr para onde a onça-pintada está acuada antes que ela pegue os cães.

Este é o momento mais tenso e perigoso da caça.

Em contraponto ao movimento desenfreado da câmera, o filme corta para um plano

fechado, estático, de Tonho, João e Fernando parados em silêncio, escutando

atentamente. Ouve-se o som de uivos e latidos incessantes e a câmera volta a se

movimentar na corrida pela trilha, até que finalmente o movimento se interrompe e

exibe-se uma cena com os cães embaixo da árvore, olhando para cima. O narrador

anuncia, para surpresa da equipe, que é uma onça-parda, e não uma onça-pintada, que os

cães estão acuando.

A onça-parda aparece deitada em um galho, e começam os procedimentos de

captura. Tonho e Fernando falam a respeito do peso do animal, e o primeiro aparece

fazendo mira com a espingarda. A narração diz:

Ao invés de balas, o caçador atira um dardo tranqüilizante.

Com o disparo, o puma salta por cima da câmera e sobe para um galho ainda mais

alto. Em seguida, o filme corta para a imagem do grupo esticando uma rede de pano

embaixo de um tronco, e, em câmera lenta, vemos o felino cair. Depois da

administração do anestésico, o vídeo registra alguns procedimentos realizados quando a

onça está sedada. Até que, por fim, a coleira de rádio é colocada no animal.

233

Antes da seqüência da captura da onça-parda, o filme da National Geographic

mostra também outra modalidade de caça empregada com sucesso na San Francisco. As

imagens mostram uma armadilha de ferro sendo preparada pela equipe, usando-se, para

isso, um filhote de porco como isca. É graças a esta estratégia que finalmente a onça-

pintada é capturada. O vídeo mostra o biólogo Fernando se aproximando da armadilha,

juntamente com Tonho, enquanto o narrador afirma que foi a primeira vez em que o

pesquisador capturou uma onça-pintada no Pantanal empregando aquele tipo de ardil.

Vemos Fernando chegar com uma pistola e atirar o dardo tranqüilizante, e depois o

acompanhamos enquanto ele olha para o relógio até a onça ficar desacordada. O

narrador observa que aquela é provavelmente a onça que estavam procurando, e

descreve mais uma vez os procedimentos de pesquisa:

Fernando mede a onça, e coleta amostras de sangue para uma análise das

condições de saúde do animal e controle estatístico da espécie. (...)

Em seguida assistimos à colocação da coleira, e a voz em off do narrador afirma:

É uma fêmea. Ela é levada para outro local para ser solta. Fernando agora

sabe exatamente por onde ela anda.

A seqüência final do filme mostra Fernando com uma antena de rádio andando sobre

uma trilha suspensa. Ele encontra a carcaça de um cervo do Pantanal. De acordo com o

narrado no programa da National Geographic, isso se deu dois dias após a colocação do

colar de rádio na onça-pintada fêmea. Ouvimos, então, os bips do sinal de rádio, em

intervalos cada vez menores. Fernando afirma que a onça está parada embaixo de uma

ponte de madeira, e aponta em certa direção, dizendo: “Essa onça está exatamente aqui.

Utilizou uma trilha que a gente usou nesta manhã”.

O narrador volta a dar explicações, enquanto vemos a carcaça do cervo na imagem

esverdeada de uma câmera noturna:

Uma câmera filmadora é deixada por Fernando diante do corpo do cervo

durante a noite. Ele precisa saber se os animais que ele está acompanhando

estão mais uma vez caçando e se alimentando de presas silvestres.

Por fim, ele narra a aproximação da onça, e conclui a história:

A partir da escuridão do Pantanal, o maior predador da América do Sul

surge. É uma onça enorme, e tem um colar de rádio. Isso mostra que as

234

onças monitoradas estão mais uma vez se alimentando de presas silvestres,

e não o gado.

O filme pode ser compreendido em pelo menos dois registros diferentes. O primeiro

é a história narrada em off, que descreve a captura. A mensagem conservacionista se

completa com a onça sendo salva pelos pesquisadores, e voltando a se alimentar de

animais silvestres. A coleira é apresentada como um símbolo dessa salvação da onça. A

idéia de ‘salvar’ os animais talvez seja a mais básica no que se refere à mensagem

conservacionista. Apesar de alguns registros documentais e da citação de fatos

científicos, o objetivo do vídeo é moralista, é passar certa mensagem, e não documentar

o processo de trabalho dos cientistas, investigar ou documentar uma predação. Isso

justifica a ausência de dados sobre o tema, ou sobre o animal em questão. O recurso

narrativo é metonímico: aquela onça em particular que está sendo perseguida pelos

criadores representa a espécie, ameaçada. Ela é devolvida para a natureza pelos

biólogos. A imagem do macho dominante, o ideal apresentado no capítulo anterior, é

substituída aqui pela da fêmea em perigo.

Para que a mensagem funcione, é preciso, no entanto, que acompanhemos o narrador

no tratamento dispensado a todos os outros atores, tratados apenas como intermediários

que transportam passivamente o sentido salvacionista da conservação. Minha intenção

aqui é seguir o procedimento adotado nos capítulos anteriores, e procurar colocar em

cena todas as camadas de mediação que se interpõem entre o espectador e aquilo que ele

observa.

Os dois caçadores nativos funcionam como coadjuvantes no filme, e são

apresentados como ajudantes do biólogo em sua missão. O vídeo documenta, ainda, em

diversas imagens, aspectos do trabalho com os cães: a perseguição, a comunicação entre

o cão mestre Tarugo e seu dono, Tonho, a acuação, todas essas etapas da caçada

aparecem no filme. O enredo do programa reforça a imagem dos caçadores que

passaram a capturar a onça para preservá-la:

E assim, este magnífico predador retoma o seu lugar no topo da cadeia

alimentar do Pantanal, sem saber que a sua vida tinha sido salva por

Fernando e pelos mesmos homens que, no passado, teriam acabado com

ela.

Assim como a onça, também eles, os caçadores, de alguma forma, são “salvos” pela

ecologia. O final feliz do programa se sustenta nessa idéia da causa nobre que move o

235

grupo. O vídeo da National Geographic retrata a atividade da caça, mencionando as

onças mortas anualmente por fazendeiros. Em determinado momento o narrador do

afirma:

O destino da onça depende do faro do cão Tarugo. A ironia em tudo isso é

que, para salvar a vida do grande gato, tarugo pode perder a sua.

Talvez a ironia não esteja na segunda frase, mas na primeira: Se ignorarmos a

narrativa em off e a mensagem salvacionista, o filme torna-se um documentário

interessante sobre a caçada tradicional com cães, mostrando a aplicação dessa técnica

aos estudos de campo. A diferença na captura, com relação à caçada tradicional, se dá

do momento do tiro em diante.

Os procedimentos realizados entre a anestesia e a colocação da coleira incluem a

pesagem da onça, a avaliação da arcada dentária (o que permite ao pesquisador calcular

a idade do animal), a coleta de amostras de sangue. Durante todo esse processo, os

batimentos cardíacos do animal são monitorados. Diversas medidas são anotadas

(comprimento do corpo, cauda, dentes, orelhas, entre outras). As amostras coletadas

podem vir a dar origem a uma série de pesquisas posteriores, e a circulação delas fora

do campo é o tema da próxima seção.

5.2. A circulação das amostras pela rede científica

A seguir apresento registros de campo que descrevem de alguma forma uma rede de

pesquisadores e instituições conectadas a partir do estudo das onças no ambiente

natural. Esses registros se referem a duas visitas a laboratórios que trabalhavam com

amostras coletadas nas pesquisas de campo que acompanhei no Pantanal, e um

Workshop sobre a onça-pintada do qual participei como observador.

Pró-Carnívoros

Em junho de 2007, época em que eu ainda não tinha conseguido estabelecer uma

área de trabalho no Pantanal, visitei o Centro de Pesquisas para Conservação dos

236

Predadores Naturais em Atibaia, no interior de São Paulo. No dia em que cheguei ao

centro, por acaso, dois estagiários estavam trabalhando com amostras de sangue de

onça-pintada. Eles utilizavam a pipeta de precisão para distribuir o conteúdo de um tubo

de ensaio em seis pequenos frascos. Nas etiquetas, eram registradas as seguintes

informações: no alto, o nome da espécie, Panthera onca, em seguida o símbolo gráfico

feminino ou masculino, depois o local e a data da coleta. Entre as amostras, observei

que havia algumas provenientes das fazendas San Francisco e Caiman, as duas que

visitara no ano anterior.

Esses frascos etiquetados eram então dispostos em caixas com compartimentos

quadriculados, divididos em coordenadas cartesianas com números e letras. Além do

sangue, chegam ao laboratório do CENAP amostras de sêmen, tecidos e pelagem de

animais carnívoros. Conforme me explicou um dos técnicos do laboratório, os tecidos

não precisavam ser refrigerados, sendo preservados em solução de álcool; e a partir

desse material podem ser obtidas amostras de DNA. O sêmen, por sua vez, ficava

guardado em recipientes de nitrogênio líquido. O projeto do coordenador do Centro,

Ronaldo Morato, era formar uma coleção de gametas e futuramente de embriões,

visando a um possível manejo genético de técnicas de reprodução assistida.

Numa sala lateral do centro, congeladores e tanques de nitrogênio líquido ficavam

ao lado de equipamentos novos ainda encaixotados, aguardando o espaço adequado para

serem montados. Amostras de sangue enviadas de projetos em todo o Brasil se achavam

acumuladas nos freezers. Era neste local que estavam sendo armazenadas as caixas

contendo as amostras de sangue preparadas pelos estagiários. Elas seriam, depois,

guardadas em um congelador especial, numa temperatura de 80 graus negativos. Antes

disso, a posição de cada frasco devia ser registrada no banco de dados do computador,

assim como os dados referentes a cada uma das amostras.

Rodrigo, veterinário formado pela USP e responsável pelo banco de amostras,

explica que elas são divididas em vários recipientes para que possam ser aproveitadas

em diferentes pesquisas. Além disso, são registradas e armazenadas, pelos próprios

pesquisadores, em congeladores convencionais, nos laboratórios de campo. O sangue é

centrifugado, separando soro e coágulo. A partir do soro, o pesquisador explica, é

possível detectar a presença de anti-corpos, que podem indicar se um animal já foi

exposto a determinada doença.

Uma parte do sangue é misturada a um líquido de preservação para análise de DNA.

Além do CENAP, as amostras são enviadas também ao Centro de Biologia Genômica e

237

Molecular da PUC-RS, onde estão sendo feitos estudos genéticos sobre as onças. A

determinação do grau de parentesco entre os indivíduos permite estudar a viabilidade

genética de uma determinada população.

O CENAP é um órgão do Ibama, e foi criado em 1994. Dois anos mais tarde surgiria

a Pró-carnívoros, um braço não-governamental das pesquisas sobre animais carnívoros

no Brasil. O modelo – um órgão ambiental oficial vinculado a uma ONG – seguiu o

exemplo do projeto Tamar com as tartarugas marinhas (o primeiro grande projeto desse

tipo no Brasil, dos anos 80). A organização e a manutenção do banco de amostras

biológicas é uma das principais atividades do centro de pesquisas, que atua também em

outras duas frentes. A primeira é a organização de um banco de dados com registros de

espécimes em zoológicos e criadouros particulares no Brasil. A outra é a prevenção e o

atendimento de casos de predação de animais domésticos, que envolve o

armazenamento de dados e o atendimento de ocorrências de conflito entre esses animais

e as populações humanas.

Uma das principais apostas dos pesquisadores do centro, como método de prevenção

de ataques de onça, era a utilização de cães guardiões. Alguns filhotes da raça Kuwasz –

pastor húngaro usado para proteger os rebanhos europeus dos lobos e ursos – tinham

sido levados, com excelentes resultados, para propriedades no interior de Minas e São

Paulo, que estavam enfrentando problemas com ataques de onça-parda. No entanto, eles

ainda não sabiam até que ponto o uso desses cães funcionaria com a onça-pintada e com

o gado. O principal problema desse método, de acordo com Rogério, era financeiro:

pois são raças caras, e um filhote pode custar mais de dois mil reais. E a proposta do

pesquisador era a criação de um canil que atenderia aos casos de conflito.

Fundo para a Conservação da Onça Pintada

Em agosto de 2007, ocorreu o I Workshop sobre Distribuição, Manejo e

Conservação da Onça-Pintada no Brasil, organizado pelo FCOP – Fundo para

Conservação da Onça Pintada, em parceria com a CI – Conservation International. O

congresso realizado na sede do Parque Estadual do Cantão, na Ilha do Bananal. Como

havia conhecido recentemente os pesquisadores, pedi ao coordenador do grupo, Leandro

Silveira, para participar do evento. Ele respondeu que, “apesar de ser um evento muito

especifico a pessoas que tem dados sobre a espécie...”, eu poderia participar.

238

O objetivo principal do Workshop era a elaboração do “Plano de Ação para a

conservação da onça-pintada no Brasil”. Três categorias foram utilizadas no evento

para se falar das estratégias de conservação das onças. A primeira era Espécie-chave, o

que se refere à importância ecológica do predador em determinado ambiente. A

segunda, Espécie bandeira, por se tratar de um animal carismático, que chama a atenção

pública para a conservação ambiental. Por último, foi utilizado o termo espécie guarda-

chuva, que junta um pouco as duas coisas, ou seja, a idéia é que, preservando um

predador de topo de cadeia, preserva-se toda a cadeia.

O interessante na utilização desses termos me pareceu a constituição das estratégias

discursivas conservacionistas específicas para a espécie. Animais como baleias,

golfinhos e primatas, por exemplo, sucitam estratégias conservacionistas ligadas à

identificação e à inclusão: há todo um arsenal retórico ligado às discussões sobre os

direitos dos animais, aos sentimentos, e à inteligência. Animais predadores, por outro

lado, especialmente aqueles que são uma ameaça para os seres humanos – “men-eaters”,

como se diz em inglês – motivam outras modalidades de argumentos. E termos muito

mais ligados ao gerenciamento dos recursos ecológicos, e à lógica do manejo dos

recursos naturais. Os grandes felinos se incluem nesta última categoria, mas são

admirados, ao mesmo tempo, por sua beleza, força e agilidade, sendo considerados

animais carismáticos, o que coloca a retórica da conservação em uma posição

intermediária.

O exercício proposto inicialmente no workshop era denominado PHVA (Population

habitats and viability analysis), e consistia na compilação de dados e na elaboração de

variáveis a serem inseridos em um programa de computador (RAMAS). O computador

elaborava, então, mapas complexos e previsões de quadros futuros para a espécie em

termos estatísticos. Um cálculo importante para a elaboração de planos de manejo desse

tipo é o da “capacidade de suporte” de determinado ambiente. As informações brutas

foram colocadas em mapas quadriculados, nas paredes de um grande auditório, com os

registros de presença de onças no Brasil, subdivididos em biomas: Amazônia, Cerrado,

Pantanal, Caatinga e Mata Atlântica. Os participantes do workshop foram convidados a

marcar nesses mapas seus próprios registros, usando as seguintes categorias para definí-

los: rastros, observação direta, relatos e armadilha fotográfica.

Uma etapa importante das pesquisas sobre onças é o chamado “geo-

referenciamento”, com a utilização de coordenadas de GPS e fotos de satélite. Um

conceito da ecologia ligado a esse aspecto geográfico é o de “área fonte”, definida por

239

abrigar populações residentes de uma espécie. O tamanho dessas populações e a

conexão entre essas áreas são os elementos utilizados para a os cálculos da distribuição

atual e da viabilidade populacional. A conectividade entre elas é formulada a partir de

conceitos como “corredores” e “trampolins”.

Para elaborar os mapas, no Workshop, foram incluídas como “áreas fonte”

(possíveis refúgios), as Unidades de Conservação e as terras indígenas em território

brasileiro, sendo que praticamente não existem dados científicos sobre essas últimas. É

curioso que onde existe mais conhecimento etnográfico é onde existe menos

conhecimento científico sobre a onça. Um fator importante, muito discutido no evento,

foi a implantação das RPPNs (Reservas Particulares do Patrimônio Nacional), que são

consideradas um instrumento chave na preservação do Pantanal.

Os pesquisadores participantes foram convidados também a indicar três ameaças

principais para cada bioma a partir de uma lista. Houve um consenso em torno da

“perda de habitat”, mas os outros itens variavam. A caça, de modo geral, é considerada

a segunda ameaça principal. Os grupos, divididos por bioma, discutiam a partir daí os

mesmos temas, pré-estabelecidos, em torno de estratégias de conservação e de manejo

para a onça. As ameaças eram analisadas, e recomendações de soluções eram

selecionadas a partir de tabelas. Essas recomendações incluíam cercas elétricas, animais

sentinelas, alarmes sonoros, barreiras visuais, entre outros.

Leandro Silveira, organizador do evento, comentou em sua apresentação que

considerava mais difícil repelir espécies de predadores do que de presas com métodos

como alarmes sonoros e barreiras visuais, por causa da curiosidade natural dos

primeiros. (Ou seja, é mais fácil manter um bando de queixadas longe de um campo de

milho do que uma onça longe de um cercado de ovelhas). O biólogo contou, por conta

disso, a história das armadilha para pacas, usando tiros de espingarda, que atraiam

onças-pintadas. A onça aprendeu a associar o barulho do tiro às pacas mortas, e passou

a se aproveitar das armadilhas, chegando antes dos caçadores.

Acompanhei mais de perto a discussão do grupo do Pantanal, já que era o bioma

onde pretendia concentrar minha pesquisa de campo. Participaram dessa discussão

pessoas com pesquisas feitas na região: além do já citado Leandro Silveira, organizador

do evento, havia Ricardo Boulhosa, ligado à Pró-carnívoros e à organização WCS, e

Cyntia Cavalcante, da REPAMS, uma ONG que trabalha com RPPNS, ligada à

Secretaria Regional de Meio Ambiente do MS e ao IPP – Instituto Parque Regional do

Pantanal.

240

Os pesquisadores distinguiram duas realidades: pecuaristas tradicionais e

proprietários que investem no turismo, enfatizando que esses últimos são uma minoria

na região. Perguntei a Boulhosa quem seriam os representantes dos pecuaristas nessa

discussão, e ele me apontou, entre outros, a Associação dos proprietários rurais do Mato

Grosso do Sul. Há também uma Associação dos donos de pousadas. O conflito de base

é entre a expansão da fronteira agropecuária e a conservação ambiental ligada ao

ecoturismo.

Assim como nas outras regiões, a principal ameaça ao meio ambiente foi

considerada, como já assinalei, a “perda de habitat”. As recomendações apontadas

foram relacionadas às seguintes questões: fiscalização, incentivo às RPPNS e o manejo

das propriedades rurais. Segundo Boulhosa, o custo elevado da limpeza de campo, que

preserva a vegetação nativa, se torna tão alto, por causa da burocracia do Ibama, que é

mais fácil e mais barato desmatar. Essa primeira discussão apontava para questões a

serem apresentadas, para todos os participantes, no último dia do evento. Nessa segunda

arena, Boulhosa declarou que considerava fundamental fazer o fazendeiro ver a onça

como benefício, e sugeriu uma espécie de certificado orgânico, com fazendas com

presença de espécies-bandeira.

Um trabalho citado como exemplar foi o programa de compensação financeira usado

pela equipe de Silveira em fazendas do Pantanal, financiado pela CI (Conservation

International). Os peões da fazenda receberam câmeras para registrar os ataques de

onça, e os pesquisadores tinham dois dias para fazer a comprovação. Se fosse

comprovado o ataque, a ONG arcava com o prejuízo, pagando o preço médio do boi na

região. (Um pesquisador do CENAP, que entrevistei em outra ocasião, afirmou sobre

isso que as onças matam muito menos gado do que os fazendeiros sempre alegaram, e

que o projeto era bom por mostrar a eles a quantidade real).

O complemento desse trabalho, tendo em vista uma mudança na imagem local da

onça, era o chamado Projeto Onça-Social, que oferecia assistência médica aos

moradores das fazendas. O problema do programa de compensação financeira, de

acordo com os participantes, era que ele tinha um prazo para acabar, o que poderia gerar

um efeito rebote quando os proprietários deixassem de receber os recursos.

A “caça cultural” foi considerada a segunda principal ameaça para a onça-pintada no

Pantanal. Foi muito discutida no evento a questão do manejo dos “animais-problema”,

passíveis de identificação. A remoção desses animais é a maior demanda dos

proprietários rurais, mas é considerada a última opção pelos pesquisadores. Um

241

problema sério é para onde levá-los. Por lei, o Ibama pode autorizar o abate desses

animais. A discussão teve um desdobramento especifico no caso do Pantanal,

relacionado à legalização da caça esportiva. Um dos representantes do Ibama, presente

ao encontro, defendeu a regulamentação da caça com o argumento de que os

pantaneiros sempre fizeram esse controle. Para minha surpresa, muitos pesquisadores

concordavam com o argumento. Em relação ainda à questão da caça, um dos presentes

deu o exemplo do porco-monteiro, um animal exótico que teria seu impacto local no

ecossistema compensado pelo alívio na pressão da caça das espécies nativas de porco do

mato. “Quando o exótico é bom...”, completou.

Durante o Workshop, havia também um grupo de discussão em torno da medicina

veterinária, ou medicina da conservação, que também fazia parte do evento. Mariana

Furtado, veterinária ligada ao FCOP, Fundo para a Conservação da Onça-Pintada, que

organizou o evento, me falou que esse era um campo em formação, e que apenas

recentemente o trabalho com animais silvestres se tornara uma disciplina opcional na

USP. O trabalho de doutorado da pesquisadora envolvia a identificação de doenças e

parasitas em onças-pintadas, por meio da análise das amostras de sangue das onças e de

animais domésticos que vivem em torno do Parque Nacional das Emas, em Goiás.

Os principais campos envolvidos no workshop foram genética, medicina da

conservação, ecologia e biologia. No plano institucional, são diversos atores envolvidos

com a conservação da onça-pintada. Três Ongs trabalham diretamente com onças: o

FCOP, que organizou o evento, o Ipê, que atua principalmente na Mata Atântica, e a

Pró-carnívoros. A estrutura do workshop revelava um modelo de produção de

conhecimento baseado no estabelecimento de consensos em torno de estratégias de

conservação para a espécie. Uma questão fundamental para o sucesso de um evento

daquele tipo é a validação dos dados. Quem são os participantes que falam pelas onças?

Qual o peso deles no campo científico? São perguntas ligadas à questão da

representação.

Nesse sentido, era notável a ausência de pesquisadores importantes, do ponto de

vista da estrutura política: principalmente de pesquisadores ligados ao CENAP e à Pró-

carnívoros. Essa ausência era reveladora de um conflito político interno, que culminaria,

mais tarde, no rompimento definitivo entre os responsáveis pelo FCOP (que

organizaram o evento) e o Instituto Pró-Carnívoros, ao qual eles se achavam vinculados

até então.

242

Genética da conservação

Outro destino para as amostras biológicas obtidas nas pesquisas de campo com as

onças no Pantanal é o laboratório de genética da PUC-RS. Em julho de 2007, visitei o

laboratório, em Porto Alegre, para fazer uma entrevista com Eduardo Eizirik,

pesquisador associado à ONG Pró-carnívoros. O laboratório era equipado com

tecnologia de ponta, e o geneticista me explicou que os equipamentos não deixavam a

dever a nenhum dos laboratórios nos quais ele trabalhara fora do Brasil. Enquanto tirava

de uma gaveta uma série de chapas de raio-X, o pesquisador afirmou que há dez anos,

quando fizera o mestrado, ele era obrigado a radiografar a seqüência de bases de DNA e

contar uma a uma, usando uma régua, para passar os dados para o computador. Em

2007, ele já podia realizar no próprio lap-top análises que seriam inconcebíveis há

alguns anos, o que usou como dado capaz de ilustrar a explosão recente de métodos e

possibilidades de pesquisa em genética.

Um dos principais métodos responsáveis por essa explosão, de acordo com

Eizirik, foi o desenvolvimento do PCR, a Reação em Cadeia da Polimerase. O método,

descoberto por acaso, se baseia em reações químicas que replicam as seqüências de

bases. Uma das salas do laboratório abrigava algumas máquinas de PCR: caixas-pretas,

devidamente patenteadas e produzidas em série, nas quais era possível ler

Termociclador; Effect cycling. A máquina – como explicou o cientista – replica uma

amostra de DNA, e o que ela produz são “seqüências” analisadas depois com o uso de

gelatina, gel, e corantes.

Isolado numa sala ao lado, o pesquisador mostrou também o equipamento principal

centro de pesquisas: um Seqüenciador Automático de DNA – uma máquina grande e

compacta onde eram processadas as bases, após passarem pelo PCR. O equipamento

ficava conectado diretamente ao computador, onde podiam ser visualizadas as

seqüências de bases. Ele explicou que a PUC-RS foi uma das dez instituições que

recebeu uma daquelas máquinas, adquiridas pelo governo brasileiro para o projeto

genoma humano.

De acordo com Eizirik, a biologia da conservação devia muito a esses avanços

dos métodos de pesquisa em genética. Um exemplo disso era o trabalho realizado com

as amostras de fezes. Se pudesse escolher – ele afirmou – não trabalharia, no entanto,

com amostras de fezes ou pêlos, pois o DNA que pode ser obtido nessas amostras era

muito precário. Ele mostrou então as etapas da pesquisa: as amostras são guardadas em

243

uma sala isolada, e manipuladas nas chamadas Capelas, utilizadas para isolar o material

no momento da manipulação.

Esse avanço no campo da genética pode ser diretamente relacionado ao surgimento

de uma nova técnica de pesquisa de campo, apresentada no Workshop de Tocantins

(2007) pela pesquisadora Carly Vynne, da Universidade de Washington. Carly

desenvolveu sua pesquisa no Parque das Emas, em parceria com a equipe do FCOP,

mapeando a presença de onças e outros animais através das fezes. A indicação do local

onde foram encontradas as amostras era lançada no computador gerando mapas com a

localização dos animais, enquanto o material coletado no campo podia gerar

informações genéticas graças às novas técnicas desenvolvidas em laboratório.

Entre outros resultados interessantes, Eizirik e sua equipe haviam identificado a base

molecular do melanismo na onça-pintada, isolando a modificação genética que gera essa

característica (Eizirik et al. 2003). O pesquisador contou que foi estabelecida uma

relação entre esse trabalho, publicado em uma prestigiada revista americana, e alguns

estudos sobre um gene que afetava a resistência à AIDS, e que, por conta disso, houve

uma grande repercussão dos resultados dessa pesquisa no campo da genética. O estudo

da genética dos felinos também levara a uma reavaliação recente da classificação das

sub-espécies da Panthera onca, mostrando que a maioria das categorias tradicionais

(determinadas por diferenças taxonômicas) não descreviam uma diferenças genotípicas

significativas. As diferenças de tamanho entre as onças de campo aberto – como as do

Pantanal – e as de mata fechada foram identificadas pelo estudo com diferenças

fenotípicas, associadas ao tipo de habitat e à disponibilidade de presas em cada uma das

regiões (Eizirik 2006). Uma das conseqüências disso é que o termo Panthera onca

palustris, usado para designar a onça pantaneira (Almeida 1976; Crawshaw e Quigley

1984) caíra em desuso em 2007 na literatura especializada.

O livro Manejo e Conservação dos Carnívoros Neotropicais, publicada pelo Ibama

em 2006 (Morato et al), é um apanhado de toda a produção recente da área no Brasil. O

sumário do livro é um excelente resumo das áreas de pesquisa associadas sob este

guarda-chuva interdisciplinar. Ele é dividido em cinco partes: Genética e Sistemática de

Carnívoros, Conservação situ (levantamento e monitoramento, estudos de distribição,

padrões de uso, hábitos alimentares), Predação de Animais Domésticos por Carnívoros

Silvestres; Banco Genômico e Manejo em Cativeiro; e Medicina da Conservação. A

genética e o manejo em cativeiro se referem, de modo geral, a estudos de laboratório.

244

As práticas de campo, por sua vez, estão ligadas aos três outros campos e agregam

principalmente pesquisadores provenientes de biologia, veterinária, zoologia e ecologia.

A Conservação in situ pesquisa os processos ambientais, a relação entre as populações

de animais e plantas, a ecologia da paisagem e a ecologia das espécies animais, como os

seus hábitos alimentares e o seu uso do hábitat, por exemplo. A Medicina da

Conservação é desenvolvida pelos médicos veterinários que trabalham com animais

silvestres de vida livre; eles são os responsáveis pela preparação dos anestésicos nas

capturas de animais pelos biólogos, e realizam pesquisas com as amostras de materiais

biológicos coletadas no campo.

A Predação de Animais Domésticos é o campo de pesquisas voltado

especificamente para o tema do conflito entre produtores rurais e os carnívoros

silvestres, em engloba estudos sobre a própria predação (a relação predador-presa entre

os carnívoros e os rebanhos domésticos), técnicas de manejo, estratégias de

conservação, além de estudos sobre a Percepção Local (voltados para as comunidades

rurais que convivem com os carnívoros).

No que se refere à produção de textos e material discursivo, as práticas ecológicas

do Manejo e da Conservação operam em (pelo menos) três diferentes circuitos: (1) A

área científica, que inclui os artigos científicos e acadêmicos, que circula pela rede de

colegas, o público interno; (2) a área de divulgação, com matérias de jornal, revistas e

programas televisivos, voltados para o público externo urbano; e (3) a área técnica:

manuais sobre o problema da predação, técnicas de manejo, que é destinada ao público

rural: agricultores, pecuaristas, e produtores. No caso das práticas de campo, os projetos

de pesquisa sobre onças trabalham dentro das fazendas e em contato direto com os

vaqueiros, e o trabalho de Conservação é fortemente voltado para as comunidades

rurais.

5.3. Conflito e Conservação

No dia 26 de maio de 2008 foi organizado na Fazenda San Francisco, em Miranda,

um encontro entre pesquisadores, representantes de órgãos públicos, Ongs e

proprietários rurais para debater os rumos da conservação da onça na região. O evento

foi coordenado por Fernando Azevedo, pesquisador associado ao Instituto Pró-

carnívoros, e pelo técnico do programa Pantanal do WWF-Brasil, Ivens Teixeira

Domingos. O objetivo dos organizadores era reunir fazendeiros e ambientalistas para

245

apresentarem e debaterem propostas que associavam de diversas formas a preservação

da biodiversidade à criação do gado, tendo a onça como elemento chave para a

discussão.

Além das instituições já mencionadas, o encontro contou também com a

participação de representantes de uma série de outras entidades: a Embrapa Pantanal,

principal instituição governamental de pesquisa na região; a World Conservation

Society (WCS); o Centro Nacional dos Predadores (Cenap), vinculado ao Instituto

Chico Mendes (antigo Ibama); a Secretaria de Meio Ambiente e a Polícia Florestal do

MS; além Federação de Agricultura do Estado do Mato Grosso do Sul (Famasul) e da

Associação de Proprietários de Reservas Particulares do Patrimônio Natural de Mato

Grosso do Sul (Repams). A platéia era composta pelos representantes das instituições

citadas, alguns proprietários rurais da região, funcionários da Fazenda San Francisco,

do Projeto Gadonça e do Projeto Onça Pantaneira. Acompanhei o evento, registrando

as apresentações dos participantes em um gravador portátil, e transcrevo o trecho em

que o pesquisador apresenta a equipe de trabalho e os parceiros dos dois projetos:

Eles têm objetivos mais ou menos parecidos, e eles têm como equipe de

trabalho eu; o Henrique, que é o biólogo de campo responsável lá na São

Bento; nós temos o Ricardo Costa, que é o biólogo responsável pelo

trabalho aqui; nós temos nosso prático de campo de campo que é o João,

que é o famoso João da Onça. O restante da nossa equipe está lá na São

Bento. São vinte e dois cães, e seis cavalos, que é nossa tropa de lá.

Também fazem parte da nossa equipe.

(...) Nós temos como principais apoiadores e financiadores esses institutos:

o Pró-carnívoros; a Fazenda San Francisco; a Fazenda Real - Filial São

Bento, que é a fazenda do Projeto Onça Pantaneira; temos o WWF Brasil;

o Centro Nacional dos Predadores, que é o antigo Ibama, que agora foi

dividido e que no Senado está sob a jurisdição do Instituto Chico Mendes de

Biodiversidade; temos o apoio da Fapesp, que é um fundo de financiamento

do Estado de São Paulo; e da empresa Premier Pet.

Foi por meio desses projetos que eu cheguei às duas fazendas. Meu objetivo era

desenvolver um estudo etnográfico nos dois locais, que estivesse voltado para essa

relação complexa entre a conservação das onças e a criação de gado, e para os múltiplos

papéis que a onça parecia desempenhar nessas regiões. O tema da predação das onças,

246

que é como os pesquisadores designam os eventos de ataque ao rebanho doméstico,

representa uma área específica de pesquisa e também de um conjunto de práticas

conservacionistas, e as publicações ligadas a ele se desdobram tanto em artigos

científicos (como o citado) quanto em manuais para proprietários rurais e para o público

não-científico em geral. Na apresentação para os proprietários rurais, (op.cit) o biólogo

também aborda o tema da seguinte forma:

Com relação ao gado, a gente tinha a preocupação de examinar... descobrir

quais os fatores que levam uma onça a decidir comer o gado, ao invés de

comer, por exemplo, uma capivara, um cervo... E é a grande pergunta que

tem nessa região aqui do Pantanal, da gente que convive com o gado e com

a onça. A onça sempre é vista como um problema, porque ela come o gado.

Ora, se ela come o gado, a gente tem que descobrir porque é que ela come

o gado.

E conclui sua apresentação apontando uma aliança possível entre a pesquisa e a

criação do gado:

Bom, o que eu tentei fazer até agora pra vocês foi mostrar o que é que o

biólogo tem de bom pra poder produzir para o entendimento da predação

no Pantanal. Quer dizer: como é que a gente pode, de uma forma bem

simples, ajudar os pecuaristas também. Não está sendo um trabalho

simplesmente científico. Já foi publicado em revistas internacionais, etc. e

tal, mas a nossa preocupação não é de isolar a onça pra ela não ser extinta.

É fazer com que haja um convívio da onça com a pecuária. Porque as duas

coisas vão continuar; por mais que a gente queira acabar com a onça,

ainda tem onça aqui...

Uma das publicações em revistas internacionais mencionadas nessa comunicação é

um artigo sobre o tema da predação do gado pelas onças-pintadas (Azevedo; Murray,

2007). O artigo é resultados do estudo realizado na Fazenda San Francisco, entre 2003 e

2004, que serviu de base para sua Tese de Doutorado na Universidade de Idaho (EUA).

Nele, os autores definem esse tipo de predação como uma fonte de conflito (“human-

carnivore conflict”) e um fator de ameaça para a espécie.

O conflito entre humanos e animais, no caso, se refere particularmente à atividade

da caçada de onça, utilizada como forma de solucionar o problema da predação pelo

247

criador de gado. Pretendo manter o tema conservacionista do conflito no plano das

categorias, por assim dizer, nativas, e não tomá-lo como categoria analítica, o que foi

feito no campo da antropologia por John Knight (2000). O termo “predação”, em seu

sentido ecológico mais amplo, se refere a qualquer relação predador-presa. No caso das

práticas de campo dos biólogos que trabalham com as onças, no entanto, a expressão

ganha um sentido mais específico, e é utilizado para designar especificamente a

predação do gado pelas onças, ou como substituto para ‘o problema da predação’. É

nesse sentido que vou utilizar o termo em meu trabalho. Outra dimensão da relação

predador-presa presente no tema do conflito seria o caso (ou a ameaça) do ataque a um

ser humano por uma onça.

Minha intenção no presente trabalho é descrever o tema da predação do gado por

onças a partir de outra perspectiva. No caso desta etnografia, feita em fazendas onde

existem projetos voltados para a conservação das onças, esse tipo de predação não

remete apenas ao tema do conflito, mas também em diversas relações de aliança

estabelecidas no campo pesquisadores, vaqueiros, proprietários e caçadores.

O evento aconteceu ao final do meu primeiro período de pesquisa de campo na

região, e obtive o consentimento dos participantes para registrar todas as apresentações

em áudio, utilizando um gravador portátil. Os principais temas discutidos no encontro

estavam relacionados à conservação da vida selvagem e ao conflito entre criadores de

gado e onças, a primeira entendida aqui como uma ciência multidisciplinar e o segundo

como seu principal objeto de preocupação (“matter of concern”, para usar uma

expressão latouriana).

De acordo com o que foi apresentado, a necessidade de lidar com aqueles que vêem

a onça como ameaça e a busca de um modelo participativo parece ser a tônica das

estratégias das entidades ambientalistas que atuam na região. Algumas das questões

colocadas foram: Quanto de lucro uma onça proporciona a um fazendeiro que trabalha

com turismo? Quanto de prejuízo causa a um criador de gado? Como aferir valor à

biodiversidade? Como reverter o incentivo ao desmatamento através de ferramentas

político administrativas?

Um dos motivos para a criação do Centro Nacional dos Predadores (Cenap), em

1994, pelo governo federal foi a necessidade de lidar com o tema do conflito, conforme

explicou em sua palestra Rogério Cunha de Paula, representante da instituição. O

pesquisador falou sobre o programa que coordena, voltado especificamente para o

atendimento a casos de conflito, e comentou que a espécie responsável pela maior parte

248

deles é a onça-parda. De acordo com sua apresentação, uma série de experiências com

manejo desses animais, como a captura e translocação daqueles que atacassem os

rebanhos, resultou em exemplos mal sucedidos no passado. Em relação ao Pantanal, o

palestrante apontou a valoração da onça-pintada como representante da biodiversidade

local e abertura de um canal mais direto de discussão com os produtores rurais como

estratégias fundamentais de conservação da biodiversidade.

O Dr. Roberto Coelho, dono da San Francisco, discorreu no encontro a respeito da

questão: “O que representa para um produtor rural pantaneiro abrigar um projeto de

pesquisa sobre a onça?” De acordo com ele, o interesse da fazenda em receber o

projeto foi gerado por dois motivos: o incremento do turismo e a preocupação com a

predação da onça sobre o gado. Os dados sobre a morte de cada animal já eram

registrados na fazenda, o que auxiliou o trabalho de pesquisa. O fazendeiro relatou que a

onça é a espécie mais procurada por turistas, fotógrafos e visitantes na San Francisco,

tendo um papel central no turismo ecológico regional. De acordo com ele, o diferencial

das fazendas pantaneiras é a vida selvagem, e a diminuição da predação é possível

graças à manutenção da fauna nativa e à adoção de medidas mais intensivas de manejo

do rebanho. As maiores causas de morte de gado na fazenda – afirmou – não são as

onças, mas sim cobras e ervas tóxicas.

De modo geral, as propostas que foram apresentadas durante o encontro,

relacionadas ao tema do conflito (e de sua mitigação), poderiam ser divididas em duas

vertentes. A primeira voltada para as onças – tecnologias preventivas (a eficácia de

diversos tipos de repelentes e barreiras), instrumentos de controle de pragas, e a

capacidade do ambiente e alterações ecológicas – e a segunda para os fazendeiros e para

o desenvolvimento sustentável da pecuária e da cadeia produtiva da carne – selo

orgânico, selo de biodiversidade, entre outros assuntos. A seguir vou apresentar alguns

exemplos de cada uma dessas duas vertentes e das discussões que eles suscitaram.

O biólogo Ricardo Boulhosa apresentou no encontro alguns resultados do trabalho

que desenvolveu entrevistando fazendeiros de todas as regiões do Pantanal. No trecho a

seguir, o pesquisador define o conflito e aponta para algumas propostas de mitigação

voltadas para a diminuição do ataque dos predadores sobre os rebanhos domésticos:

[O]nde ocorrerem os carnívoros e a presença do homem com alguma

atividade econômica com a criação, vai ter conflito. Você tem diferentes

espécies no mundo todo: leão na África, tigre na Ásia, a onça aqui, o lobo

249

no hemisfério norte... Sempre vai ter esse tipo de problema quando você tem

esses tipos de animais. Então, uma das coisas que dentro desse problema da

predação, e de tentar mitigar conflitos. (...) E tem essa questão, que o

carnívoro é um animal de adaptação. Então, ou ele se acostuma com o

estímulo antagônico, ou aprende um jeito de driblar, de passar... Então, o

animal descobre que tem cerca elétrica lá, mas tinha um vãozinho que o

cara esqueceu de eletrificar a cerca, e ele passa por ali... Descobre e passa.

A pesquisa do biólogo, utilizando um questionário extenso, foi realizada para um

programa de extensão da WCS. A Wildlife Conservation Society é uma ONG

internacional, com sede no Bronx Zoo, em Nova York, uma das mais antigas

organizações não-governamentais que existem no mundo, criada em 1895. A

instituição, chamada então de New York Zoological Society, foi responsável, no final

dos anos 1970 e início dos 1980, pelo primeiro grande projeto de pesquisa envolvendo a

técnica da telemetria aplicada à onça-pintada na natureza, desenvolvido por George

Schaller.

Boulhosa relata que epois disso a WCS permaneceu algum tempo sem projetos na

região, até que um novo programa no Pantanal se iniciou em 2002. Mais tarde este

programa interrompido para uma reavaliação porque, de acordo com o biólogo,

continha alguns erros estratégicos:

Então, em 2005, eu fui contratado, fiquei contratado até janeiro deste ano

[2008], para fazer essa reavaliação, entender melhor a questão do conflito

e dos problemas que os fazendeiros têm no Pantanal. (...)

E um dos grandes problemas que teve o programa, no Brasil, foi que no

início eles chegaram querendo ensinar o fazendeiro como é que se fazia

isso. E aí chegaram aqui e quebraram a cara, porque a realidade era de

uma coisa muito distinta da outra, e sem a experiência do pessoal local,

você não vai conseguir criar um novo modelo. E esse modelo tem que ser

freqüentemente adaptado a modificações comportamentais e também

modificações do ambiente.

Em seguida ele lista os objetivos atualizados do programa:

[O] programa de extensão visa trazer o pecuarista para trabalhar em

conjunto com a conservação.(...) [E]m poucos locais no mundo você pode

250

encontrar uma biodiversidade tão grande convivendo com uma atividade

econômica, como é o caso no Pantanal. (...)

O pesquisador observa que o projeto era voltado especificamente para a onça-

pintada, o que diz respeito mais à dimensão externa da captação de recursos para o

projeto do que propriamente à realidade local:

Aí por uma série de questões: é mais fácil conseguir financiamento, lá fora

é um bicho muito mais carismático em termos da importância e do status de

conservação dela. (...)

Ele comenta, contudo, que:

E se você for pensar em conservação de onça-pintada, você tem que pensar

na conservação dos grandes felinos, e incluir o problema que a parda traz.

Quando Boulhosa descreve a reavaliação do programa e todo o investimento que foi

necessário ao estudo do tema para se chegar ao ponto atual, é este o aspecto que gostaria

de reter: a qualidade na formulação do problema. O biólogo formula da seguinte forma

o conflito, como objeto para o qual as ações conservacionistas se voltam:

Então, aí estão os objetivos do programa (...). O objetivo principal era

promover a conservação da onça-pintada no Pantanal. E as ações para

mitigar o conflito entre a onça-pintada e os fazendeiros. Essa era a ação

principal do projeto, você tentar diminuir o conflito que existe entre essas

duas partes.

Por atacarem os rebanhos domésticos, as onças tendem a gerar atitudes negativas, e

são perseguidas pelos criadores de gado. Por outro lado, são animais considerados

ameaçados de extinção, objetos de investimento em pesquisa e de campanhas

conservacionistas promovidos por organizações ambientalistas. No primeiro caso, o que

está em jogo é a invasão do espaço humano pelo animal selvagem: a onça come o que é

do homem, e por isso é perseguida. No segundo, a invasão do espaço natural pelas

atividades humanas. Boulhosa acrescenta ainda esta nova dimensão ao problema,

quando afirma:

Ou então o conflito que existe com a outra parte, que são os pesquisadores,

Ongs, e os fazendeiros. Que é o que a gente tem visto muito aqui no

Pantanal. Existe um conflito muito grande, e às vezes não é nem em relação

251

à onça, mas sim entre os caras que trabalham com a onça e os caras que

são os fazendeiros. É uma outra coisa que esses programas de extensão têm

que criar: permitir que exista um diálogo, e troca de informações e ações,

entre as duas partes. É uma coisa que a gente tem batido: na necessidade

de vocês conseguirem ter um diálogo harmônico entre as partes, para

procurar soluções.

A palestra do Dr. Roberto Coelho, no encontro, apresenta um caso que pode ser

tomado aqui como exemplo dessa cadeia de conflitos. O evento narrado pelo fazendeiro

evidencia as dificuldades envolvidas na conservação de uma espécie. Atividade que

tende a gerar atitudes negativas de determinados grupos, e que, ao mesmo tempo, é

objeto do investimento em pesquisa e de campanhas conservacionistas promovidos por

outros grupos.

Reproduzo abaixo o caso narrado por ele e os comentários feitos pelos participantes

do encontro. O trecho propositadamente longo que transcrevo a seguir permite observar

as respostas e reações diversas apresentadas no calor da hora:

Dr. Roberto: Nós temos uma reação negativa dos vizinhos, por questões

relativas à indenização do gado morto. O projeto conseguiu agregar as

fazendas vizinhas... O Fernando teve um excelente relacionamento com o

pessoal, mas a expectativa deles era serem indenizados pelas perdas,

totalmente... E na medida em que o projeto aumentou de área, aumentaram

as despesas também. Então, na hora de indenizá-los, não se pôde fazer a

indenização de acordo com o que o cara imaginava que o gado dele valia...

E no encerramento da primeira fase, o pessoal ficou decepcionado. Então,

numa das fazendas, que é arrendada, um manejo horrível; o cara é

usineiro, arrenda... O dono não entende nada de fazenda, mora em Campo

Grande, vem uma vez por ano; arrendou para outro cara que é um desastre

– alto nível de perda. Então, na hora que o projeto deu uma paradinha,

entre a fase 1 e a fase 2, o cara começou a perseguir as onças e... Eu não

posso falar, mas a minha percepção foi que ele deve ter eliminado várias

onças, porque aqui na fazenda a gente diminuiu a constatação de presença

delas, o rádio-sinal também desapareceu...

Então, houve uma reação negativa. A outra fazenda (do outro lado) é uma

fazenda limpa, bem conduzida, mas que, com o aumento da predação,

252

passou a não admitir mais perdas. Os caras tomaram a chave da fazenda

que a gente tinha para entrar e estar vistoriando, e devem ter perseguido as

onças lá...

Walfrido Tomaz (Embrapa): E esse aumento da predação, foi em função de

que?

Carol Coelho: Eles pararam de matar enquanto o projeto estava

implantado, e aí houve uma certa... E quando se desentenderam com o

projeto e teve esse aumento da predação, aí eles voltaram [a matar].

Dr. Roberto: Tem uma discussão muito grande se a indenizar as perdas é

bom ou não, então eu estou apresentando porque eu percebi isso daí. Eu

percebo até no tratamento, como eu sou tratado na cidade, pelos colegas...

Então, é uma coisa que tem que se pensar. Eu acho que essa questão de

indenização é complicada por isso, porque todo o projeto de pesquisa, ele

não tem garantia de verba ao longo do tempo. Então ele tem o rebote: se

você entra, promete muito e depois não consegue manter, você tem um

rebote negativo, então tem que tomar cuidado com isso também. Por isso

que eu acho...

Participante (Polícia Florestal): O pessoal passou a olhar o seu trabalho

com olhos... De forma depreciativa...

Dr. Roberto: É, o pessoal falava: “O Roberto está lá ganhando dinheiro

com turismo, então ele agüenta, lá, cuidar das onças... Mas eu não, eu

tenho que ganhar dinheiro com meus bezerros...” O cara pensa assim,

entendeu?

Fernando Azevedo: Só para explicar, alguém perguntou se teve

indenização. Não, o que a gente tinha intenção, como o Roberto explicou

era de... No início, a gente ia trabalhar só aqui dentro, então o dinheiro que

viria, por exemplo, dos ecovoluntários, serviria para eu repassar para o

Roberto, e poder minimizar. Só que aí, o que acontece: a onça começou a

estender a área dela para as fazendas vizinhas. O que era uma fazenda

passou a ser três, aí já não tinha recursos mais. Aí a gente rateou esses

recursos, e dividiu igualmente. Mas não era o valor da perda que eles

tinham... E uma coisa importante de se falar: o fulano do lado de lá, não

tem manejo, o do lado de cá tem, então a realidade é completamente

diferente. Ele vai ter muito mais perda do que esse daqui... Então, como é

253

que você vai tratá-los de forma igual? Não pode. Então, tudo isso a gente

precisa pensar, antes de começar a definir o que é um programa de

ressarcimento.

Participante [pesquisadora da Embrapa]: Então, quer dizer, teve um tipo

de indenização... Fernando: Não foi indenização. Indenização você paga,

foi uma tentativa de valorizar quem estava participando do projeto...

Rogério [Cenap]: Mas, só um parêntese: as pessoas entenderam o incentivo

como um ressarcimento... Aí na hora que acaba o incentivo, o cara fala

“pô, continua predando...” Esse é o grande problema do ressarcimento. Na

hora que seca a fonte, aí vem toda a... Parece um açude: você vai enchendo,

na hora que estoura a barragem a água transborda para tudo que é lado...

Participante (Polícia Florestal): Mas porque acontece um caso como esse

de lá, da falta de manejo?

Fernando: Porque é o seguinte: você pega uma propriedade, dentro de uma

invernada de seis mil hectares... você põe dois peões só, morando num

barraco, sem energia, sem nada, sem nem comida – eles ficavam pescando,

etc. e tal – e você põe lá duas, três mil cabeças de gado, numa invernada só,

sem divisão nenhuma... Não tem manejo. Lá ela come. É diferente do outro

vizinho, que tem dez funcionários, várias invernadas... Então, no caso um, o

manejo era totalmente deficitário, e ele tinha a mesma expectativa do outro

lá...

É importante falar isso pelo seguinte: o que vocês estão escutando do

Rogério, por exemplo, é o final do assunto, que é o pedido da indenização,

a expectativa da indenização. Mas tem o outro lado da moeda também.

Porque tem o proprietário que mereceu, são coisas desiguais. Nós tivemos

uma onça que utilizava a San Francisco, foi para essa [fazenda] sem

manejo comer o gado lá – porque era um chamativo: “vem comer aqui que

aqui não tem nada de manejo” – e foi morta (...)

Dr. Roberto: É a rádio-peão. Esse é o caso que o Fernando estava falando:

em setembro de 2005, ela foi atirada com espingarda 12... Ela foi atirada

assim, deve ter levado uns dois dias para morrer...

Rogério[Cenap]: É por isso que acontece a maioria dos acidentes.

Dr. Roberto: Feita a denúncia pela equipe do projeto... Nós denunciamos

em todos os níveis: Polícia Militar Ambiental, Secretaria do Meio

254

Ambiente, Ibama... E não aconteceu absolutamente nada... Para receber a

denúncia... Eles não querem saber o que aconteceu. (...) [E]sse assunto aí

não tem repercussão nenhuma. Por isso é que eu estou dizendo: não tem

indicação nenhuma de que a sociedade brasileira tenha desejo de preservar

esse animal. Nem as autoridades.

Rogério: Dentro do governo, a nossa dificuldade para botar o caçador de

onça na cadeia... Mesmo dentro do governo, com todos os canais, a polícia

federal, com a parte de fiscalização, é muito difícil.

O conflito entre fazendeiros e onças, neste caso, aparece como uma reação a um

conflito anterior, entre fazendeiros e pesquisadores. Uma das questões de fundo,

definidas abaixo pelo Dr. Roberto Coelho é: quem paga a conta pela preservação?

Aí acontece o seguinte, onça-pintada só tem aqui no Pantanal e na

Amazônia. Se querem realmente preservar, não é só dar porrada no

fazendeiro não! As ONGs tem que dar porrada no governo, e a Embrapa

também. Porque o governo não está fazendo nem um tipo de ação nesse

sentido, então, a leitura nossa é que para ele não interessa...

Os desdobramentos do caso conectam uma série de atores e mobilizam o que

poderíamos chamar de diversos níveis nos quais eles atuam. O caso discutido durante o

encontro na fazenda relata ao mesmo tempo um conflito local – a eliminação de onças

que atacam o gado – e um segundo conflito, gerado em cascata, entre o agente

conservacionista e o fazendeiro.

Ele coloca em cena, assim, um tema recentemente abordado, de diversas formas, na

antropologia, seja por autores que têm o conservacionismo como tema (Milton), seja

por aqueles que trabalham com as controvérsias entre as organizações ambientalistas e

as populações nativas (Einarson; Knight 2001; Guha 2002).

Conflito como tema conservacionista

O conflito entre o projeto conservacionista e os fazendeiros aparece já no primeiro

estudo de campo sobre a espécie, realizado por George Schaller. As considerações de

Schaller sobre o ocorrido mostram como a Fazenda Acurizal, que servia como base para

o estudo na época, teve que ser abandonada depois que duas onças foram mortas pelos

peões:

255

Duas onças-pintadas foram mortas. Se não houver uma mudança de

atitudes local, apenas um grande parque nacional pode salvar a onça do

Pantanal. (2007[1980]: 75)

Um dos vaqueiros relatou que as ordens para atirar em todos os jaguares

tinha sido dada por Geraldo, o gerente que verificava o rancho de tempos

em tempos em nome do proprietário ausente. Na opinião de Geraldo, o

gado e onças não podiam coexistir77. (: 72)

Depois que a maioria dos animais de estudo foi morta pelas mãos de

vaqueiros da fazenda, em 1978 (...), o projeto estabeleceu uma nova base

mais ao sul do Pantanal. (: 63)

Quando apresenta, numa coletânea recente de artigos, o seu relato de campo da

época (1980), Schaller afirma: “O trabalho continua no Pantanal, especialmente com o

conflito entre onças e fazendeiros, os quais não gostam dos felinos por causa dos

ataques ocasionais ao gado” (2007: 63. Tradução minha). Na literatura posterior sobre

os temas da conservação e do manejo da vida selvagem na região do Pantanal, o tema

do conflito entre as comunidades rurais e os predadores carnívoros afirmou-se como

importante área de estudos.

O trecho abaixo, transcrito da entrevista feita com Peter Crawshaw, que também

participou desse estudo pioneiro, evidencia que o trabalho quase foi interrompido por

causa do evento:

E depois que eles [Mason e Dantas] foram embora, a gente estava dizendo:

mas onde é que está essa fêmea? A gente sabia, procurava em todos os

lugares que sabia que ela andava... Aí que eu fui saber, quase que por

acaso, (...) que tinham matado as nossas onças. Aí sim, o George se

desesperou, né? Ia desistir do estudo, ia voltar para os EUA. Aí sentei lá,

ficamos conversando: não, vamos achar outro lugar...

77Two jaguars were killed. Unless local attitudes change, only a large national park can save the

pantanal jaguar. (…)[A] cowhand further related that orders to shoot all jaguars had been given by Geraldo, the absentee manager who checked on the ranch at intervals on behalf of the absentee owner. In Geraldo’s opinion, cattle and jaguars cannot coexist. (…) After most of our study animals were killed by ranch hands in 1978 (…) we established a new base farther south in the Pantanal on the Miranda ranch.

256

Em seguida, Crawshaw descreve a descoberta da fazenda para onde o projeto seria

transferido:

Aí também, coincidentemente, dois ou três dias depois, chega o George

Schwaitzer. Pousou com o avião dele lá em Acurizal – ele tinha escrito para

o George [Schaller] dizendo que qualquer hora iria visitar – e, quando ele

chegou, nós estávamos nesse momento negro do projeto. E ele conhecia os

Klabin, da Miranda Estância. Ele que nos apresentou para a família

Klabin.

Na época da entrevista eu ainda não havia lido o livro de Tony Almeida (1976). No

trecho abaixo ele tece alguns comentários a respeito:

F. Mas esse Tony Almeida, antes disso, ele já fazia todas essas anotações?

Isso é que é impressionante dele, né? Você vê, isso foi publicado em 1976, o

original. Antes da gente começar. Quer dizer, até o nosso estudo, isso aqui

era tudo que tinha. Ele anotava dieta, tinha tudo anotado. Extremamente

metódico.

Em seguida ele comenta as práticas de caça:

Eu comecei como caçador, então eu não tenho preconceito. Eu tenho

preconceito, sim, conta crueldade desnecessária. Mas se você não tem um

pré-conceito muito negativo contra os caçadores, e você lê esse livro aqui

(do Tony Almeida), o que eles faziam era manejo de onça. Era uma forma

de manejo. Porque era um esquema muito bem montado. Eram fazendeiros

específicos que entravam em contato com ele (...). E você vê a aventura que

era cada caçada dessa daqui, os caras tinham que trabalhar mesmo para

conseguir chegar, não era uma coisa fácil.

O estudo na Fazenda Miranda Estância, Sul do Pantanal, teve início em 1980, ano

em que Schaller deixou o Brasil para iniciar um projeto sobre os pandas na China.

Howard Quigley chegou então ao projeto, para substituí-lo, trabalhando juntamente com

Crawshaw até 1984. Na mesma entrevista, este último relata que o período na Miranda

Estância foi o mais produtivo no estudo das onças, tanto do ponto de vista da técnica

quanto da logística, com a captura e o monitoramento de um número significativo de

animais. Um dos fatores determinantes para isso eram, a seu ver, os cães:

257

E aí que nós começamos a pegar mais onças. Eu comecei a investir. Nós

treinamos a nossa cachorrada... Eu pegava cachorro emprestado, treinava.

E acabamos ficando independentes: Nós tínhamos os nossos próprios

cachorros, cavalos, tudo.

Crawshaw não faz nenhum tipo de juízo moral ou recriminação em relação à caça

esportiva. Ao contrário, aponta-a como uma forma legítima de manejo. O tema,

entretanto, é controverso. A colaboração de caçadores nativos para o estudo da onça é

herdeira da longa tradição pantaneira das caçadas, e, como tal, ela talvez possa ser

abordada maneiras diferentes. Em artigo sobre os métodos de campo para o estudo das

onças, Furtado e outros (2008) observam:

“A captura de onças-pintadas com cães treinados são atualmente o método

de captura mais freqüente”.78 (: 41)

Fazendo as seguintes ressalvas:

“Apesar de eficiente, o método oferece algum risco para todos os

envolvidos.” (Idem)

“Finalmente, é importante se considerar que a caçada de onças-pintadas é

proibida na maior parte dos países onde a espécie ocorre e a contratação

de caçadores e cães de caça viola princípios legais e éticos.” 79 (: 42)

Em geral, até meados o início da década de 1990, todas as fazendas da área de

estudo praticavam a caçada de onça como retaliação aos ataques ao gado, e era costume

a manutenção de cães onceiros e um caçador local entre os funcionários na maioria das

propriedades pantaneiras. As únicas fazendas da região a proibir a caçada de onças na

região de estudo antes dos anos 1990 foram as fazendas resultantes da divisão da antiga

Miranda Estância, partilhada em processo hereditário em 1985. Entre 1980 e 1984, a

fazenda foi também sede da primeira pesquisa sobre a onça-pintada realizada no Brasil,

por Peter Crawshaw e Howard Quigley, dando continuidade à pesquisa iniciado por

George Schaller em 1977 na Fazenda Acurizal, região de Cáceres (Crawshaw 2006;

78 Tradução minha: Capturing jaguars with trained hounds is currently the most frequently used

captured method. 79Although efficient, the method does offer some risks to all parties involved. (…) Finally, it is

important to consider that hunting of jaguars is prohibited in most of the jaguar’s range contries and the contracting of hunters and hounds violates legal and ethical principles.

258

Crawshaw e Quigley 1991; Crawshaw e Quigley 1984; Schaller e Crawshaw 1980). No

relatório final do projeto realizado na fazenda, Crawshaw e Quigley afirmam:

“Em Miranda, a taxa de mortalidade de filhotes é baixa, atingindo

principalmente os animais adultos, sob forma de caça direta, movida por

fazendeiros, empregados e "desportistas". Como exemplo, até 1966, a

fazenda Miranda contratava caçadores profissionais para diminuir o

número de felinos e a sua predação no gado. Um desses caçadores [Seu

Celestino] matou, em um período de 8 anos (1959-1966), 68 pintadas e 275

pardas, apenas na área da fazenda”.

(...)

“Embora essa atividade tenha sido proibida a partir de 1966, o controle é

dificil e, ocasionalmente, alguns animais são mortos para "diversão" dos

peões e para treinar cachorros, uma vez que um bom cachorro onceiro e

um revolver 38 são os maiores símbolos de status entre pantaneiros. Pelo

menor risco que a caçada envolve e pelo seu maior número, geralmente são

as pardas que mais sofrem. Tivemos conhecimento de 10 onças pardas

mortas durante o período do projeto na fazenda (1980-1984), excluindo

aquelas mortas acidentalmente por anestesia no projeto, e 5 onças pintadas

entre 1979-1983”.

Os autores observam ainda que:

“Considerando-se a ação persistente e localizada dos caçadores, não é de

se estranhar o fato de a espécie ter sido virtualmente erradicada em várias

regiões do Pantanal, dado o seu baixo potencial reprodutivo e à

sensibilidade a alterações no habitat, provocadas pela pecuária”.

(Crawshaw e Quigley 1984)

O tema da colaboração dos caçadores nativos aparece também em uma série de

entrevistas realizadas ao longo do trabalho de campo com pesquisadores ligados a esses

estudos. Um exemplo é a entrevista com a pesquisadora Sandra Cavalcanti, da

Associação Pró-Carnívoros, registrada em 2007. Na gravação, formula a seguinte

questão:

F: Um assunto que tem aparecido desde que eu comecei a investigar isso é o assunto

dos caçadores, da contratação de caçadores para as capturas. Tem caçadores que são

259

contratados definitivamente pelos projetos de pesquisa e outros que são contratados

ocasionalmente nos períodos de captura. Como é que você vê isso?

Minha opinião nisso daí eu até já discuti, dentro da Pró-carnívoros, a gente

já conversou. Cada um tem a sua opinião. A minha é que o ideal – e a gente

está caminhando nesse sentido – é a gente ter o nosso próprio canil, com

cachorro treinado, e uma pessoa contratada só para fazer isso. No entanto,

a realidade é um pouco longe disso, hoje. Leva tempo até você ter os

cachorros bons. Mas o ideal eu acho que é você ter os seus cachorros e o

seu time.

Em Foz do Iguaçu [1990-1995], a gente demorava cento e não sei quantas

noites com armadilha aberta – vai lá todo dia, checa, e tal – até você pegar

uma onça. No Pantanal, quando nós começamos a trabalhar aqui, em 2001,

que foi o primeiro projeto com onça na região [depois do projeto na

Miranda Estância da década de 80], a gente pegou oito onças em menos de

um mês, com cachorro. É muito. Então, é muito mais eficiente.

Agora, tem aquele problema: eu estou ali, tenho que fazer aquele trabalho,

eu vou pegar quem tem experiência. Por um lado, tem gente que fala: ah,

mas o cara caça... É, mas é uma realidade. O cara caça. Ponto. Eu vejo

isso como uma faca de dois gumes, porque eu preciso de uma pessoa que

saiba o que fazer, e ao mesmo tempo tem a questão da caça. Tudo bem, o

cara caça. Agora, ele trabalhando com a gente, a gente está dando para ele

a oportunidade de ver o outro lado. Porque, trabalhando com a gente ou

não, o cara caça. Ponto final. Só que tem caçador e tem caçador…

O tema é abordado também na entrevista com Fernando Azevedo (2008: Op. Cit),

responsável pelos projetos que acompanhei durante o trabalho de campo. Em entrevista

com o biólogo, pergunto:

F: E os antigos caçadores que estão trabalhando com vocês... Como é que você vê

isso? Tem pessoas que pararam de caçar e estão trabalhando pela preservação... Até que

ponto o trabalho de vocês muda a mentalidade do pessoal?

Olha, na verdade a impressão que eu tenho é que não muda, não, viu? O

que acontece é que, enquanto eles estão empregados de um lado, de uma

forma oficial – contratado, com carteira, etc – eles deixam de caçar. Agora,

260

no momento que faltar, e não tiver outra opção, ele volta a caçar. É uma

questão mais econômica, não é uma questão de mudança de mentalidade. A

mudança se faz do fato de que, por trabalhar com a gente, os caçadores

tomam consciência de que é errado. É contra a lei... E começam a perceber

que existe um outro lado, gente que trabalha para o outro lado. Mas a

partir do momento que for necessidade mesmo, precisar fazer, eles vão

fazer. Não conheço nenhum que parou. (Ent.03/2008)

A caçada com cães é o principal método de captura utilizado no campo, e minha

intenção neste trabalho é enfatizar a continuidade dessa prática na pesquisa científica. O

dilema ético apresentado acima pode ser entendido como um desdobramento interno do

tema conservacionista do conflito. Entendo-o, neste caso, primeiramente como um

conceito proveniente da Ecologia. Como todo o conceito científico, ele é algo que diz

respeito simultaneamente a uma realidade observável no campo e a uma construção

teórica.

Tematizando o conflito entre humanos e animais de uma perspectiva antropológica,

John Knight (2000) contrasta o simbolismo conservacionista às imagens produzidas no

âmbito da eliminação de espécies daninhas às atividades humanas, em particular a

agricultura e a pecuária:

“Enquanto o simbolismo do animal nocivo (wildlife pestilence) tem a ver

com uma ameaça natural sobre a cultura, o simbolismo da conservação

animal (wildlife conservation) é baseado numa ameaça cultural à

natureza”. (2000: 17)80.

O autor opõe o simbolismo da conservação ao simbolismo das espécies nocivas ou

pragas. De acordo com o autor, o tema específico do conflito humanos-animais recebeu

pouca atenção da antropologia, apesar de estar presente em estudos clássicos da

disciplina. Ele cita como exemplo a afirmação de Evans-Pricchard de que os ataques de

predadores ao gado são associados pelos Nuer a faltas cometidas pelo dono do gado.

Outra perspectiva sobre o tema, de acordo com a genealogia estabelecida por

Knight, é dada pelas abordagens antropológicas do simbolismo animal e das

classificações: Edmund Leach estuda o uso do termo “vermin” nas categorias animais

80While the symbolism of wildlife pestilence has to do with nature’s threat to culture, the symbolism

of wildlife conservation is based on culture’s threat to nature.

261

do vocabulário inglês em termos de um cruzamento de fronteiras simbólicas. Um

aspecto histórico do conflito abordado também pelo autor é o modo como a colonização

humana sobre o território selvagem, em diversas culturas, é descrito a partir da expulsão

de animais:

“Os ‘wolfers’ na América colonial eram conhecidos como ‘bulwark’ do

progresso no Oeste, porque erradicavam os lobos, tornando a terra de

fronteira segura para o estabelecimento dos rebanhos e comunidades”.

(Knight 2001)

Knight investiga em particular o simbolismo negativo de determinadas espécies de

predadores para populações nativas que convivem com elas, ligado a um processo de

criminalização e condenação moral que freqüentemente acompanham a eliminação ou o

controle sistemático dessas espécies.

Na reflexão ambiental, por outro lado, Knight aponta que o tema do conflito se

refere às ameaças humanas sobre o espaço natural, um dos temas-chave do

conservacionismo. Os termos predação e conflito, no âmbito da conservação das onças,

designam exatamente a eliminação sistemática movida pelos fazendeiros como forma de

retaliação diante dos ataques das onças ao gado. É este o conflito sobre o qual os

projetos de conservação atuam.

A seguir cito definições diferentes para esse mesmo tema em três artigos científicos,

procurando descrever a instauração dele como uma área independente de pesquisa. No

primeiro deles, Crawshaw e Quigley (1984) não utilizam o termo conflito, mas

descrevem as práticas tradicionais para lidar com a predação e registram uma série de

dados sobre o abate de onças na região de estudo durante o período em que estiveram lá.

Entre os dados, os autores reportam a morte acidental de onças causada pela anestesia.

Por fim se referem à erradicação local da espécie em áreas do Pantanal:

“Como exemplo, até 1966, a Miranda Estância contratava caçadores

profissionais para diminuir o número de felinos e a sua predação no gado.

Um desses caçadores matou, em um período de 8 anos (1959-1966), 68

pintadas e 275 pardas, apenas na área da fazenda”.

(...)

Embora essa atividade tenha sido proibida a partir de 1966, o controle é

dificil e, ocasionalmente, alguns animais são mortos para "diversão" dos

262

peões e para treinar cachorros, uma vez que um bom cachorro onceiro e

um revolver 38 são os maiores símbolos de status entre pantaneiros”.

Azevedo e Murray (2003: op. cit) utilizam o termo “conflito humanos-carnívoros” e

estabelecem como tema central desse conflito a predação do gado. Os autores ressaltam

a importância do estudo quanto aos fatores causadores dessa predação para a

conservação da espécie.

A predação de gado por grandes carnívoros é uma fonte importante, mas

pouco compreendido de conflitos humanos-carnívoros.

(...)

A ameaça potencial ou real aos seres humanos e seus animais domésticos

pode levar à perseguição ativa dos carnívoros por seres humanos, e

constituir um fator significativo de declínio de muitas populações de

grandes carnívoros no mundo.

(...)

No entanto, a avaliação da magnitude predação do gado pela onça-pintada

ou de fatores predisponentes à predação de gado por onças-pintadas tem

sido limitada.

Silveira e Boulhosa (2008), por sua vez, falam em “conflito humanos-predadores”, e

indicam modos de manejo deste conflito. Citam também as onças-problema e a caça

esportiva como ferramenta nessa prática:

Os grandes carnívoros, como a onça-pintada, que necessitam de áreas

extensas e uma base estável de presas naturais para viver, são empurrados

para situações em que competem com os seres humanos por comida e

espaço.

(...) A identificação e implementação de práticas de boa gestão exige um

bom conhecimento do local dos conflitos e suas características ecológicas,

sociais e culturais.

(...)

O Pantanal constitui a terceira grande zona de conflito onça-fazendeiro no

Brasil. (...)

263

A eliminação de onças-problema deve ser considerada apenas onde a alta

abundância do felino é comprovada. A caça esportiva como ferramenta de

gestão poderia ser testado neste bioma.

Como se pode observar, a partir dessas citações, o tema tem uma série de

ramificações e recebe tratamentos diferentes em cada artigo. Minha intenção com esta

breve compilação foi apenas a de ilustrar alguns dos modos de exposição do problema e

chamar a atenção para sua afirmação como um campo específico dentro da discussão

sobre a conservação.

O que Knight propõe como tarefa para a antropologia, numa perspectiva “cross-

cultural”, é investigar a multiplicação desse tipo de conflito local (entre fazendeiros e

onças, por exemplo) em uma série de outros conflitos, desta vez entre grupos humanos:

entre ambientalistas e ruralistas, entre comunidades rurais e órgãos de manejos da vida

silvestre ou entre o conservacionismo stritu-senso e a Etnoconservação. Em relação à

posição dos grupos nativos de agricultores e fazendeiros, ele afirma:

O controle de espécies daninhas é visto como uma atribuição da lei.

Quando há uma condenação da opinião pública urbana em relação às

práticas locais (caça) ou o apoio a campanhas conservacionistas, essa

interferência externa pode estimular o conflito local com animais selvagens,

na medida em que se torna o símbolo de dominação externa. (: 21)

Chama atenção também para o fato de que esse tipo de conflito coloca

freqüentemente em campos opostos, do ponto de vista político, biólogos da conservação

e antropólogos, nos casos em que o conflito se refere aos grupos estudados por esses

últimos. Casos nos quais os antropólogos evidentemente tendem a tomar partido da

comunidade humana estudada e a denunciar a dominação externa. As acusações parte a

parte de antropocentrismo e etnocentrismo, no entanto, fazem parte de uma longa e

desgastada tradição.

O argumento de Knight contrasta dois tipos de simbolismo: um nativo, que condena

a espécie nociva, e um conservacionista, que condena a ação humana. A partir deste

argumento, o conflito entre pesquisadores e fazendeiros colocaria em cena duas visões

distintas, ou explicações distintas para o comportamento da onça. A explicação nativa

diria que a onça vicia no gado e por isso precisa ser abatida. A explicação

conservacionista diria que a onça ataca de forma oportunista o gado e precisa ser

preservada.

264

A partir da crítica feita por Knight (2000), o papel da antropologia seria explicar o

papel simbólico da onça na cultura local, enquanto o papel da biologia seria explicar o

papel da onça no ecossistema local. Apesar de se colocarem em pólos opostos no plano

político, tanto o antropólogo quanto o biólogo compartilham assim o mesmo modelo

epistemológico.

Ambos pressupõem o que Tim Ingold designa como um duplo afastamento em

relação à experiência empírica: um plano das relações ecológicas, acessado pela ciência

(no qual se dá a predação), e um segundo plano das relações sociais, simbólicas

(inclusive as científicas) acessado pela antropologia (Ingold 2000). Para que a

antropologia social possa falar das outras culturas em termos simbólicos ou metafóricos,

como mostra Ingold, ela precisa estar ancorada nessa realidade única à qual uma

determinada cultura (não por acaso a sua própria) tem acesso privilegiado (Idem).

No entanto, o que o próprio Knight faz, no final das contas, é tratar igualmente o

simbolismo da espécie nociva (tradicional) e o simbolismo conservacionista (moderno),

tomando o conflito humanos-animais como dado, como uma realidade lá fora. Ao fazer

a comparação entre as duas culturas, ele se baseia nas oposições clássicas da

antropologia social, reforçando a idéia da realidade estudada pela biologia e da

construção social estudada pela antropologia. Os fantasmas do universalismo e do

relativismo permanecem. Os animais, no caso, apesar de não se restringirem ao papel

material dos fatos objetivos científicos, são tomados como repositórios de projeções de

grupos humanos; ameaçados ou ameaçadores, eles ou são representações ou então são

representados por esses grupos.

5.4. O rastro das coleiras

A coleira que aparece nas três fotografias da sequência 1 era um das dez coleiras

utilizadas pelo Projeto Onça Pantaneira, e combinava um sistema de telemetria

tradicional (por rádio) a um GPS portátil. A união desses dois dispositivos diferentes no

mesmo objeto representava um avanço tecnológico importante em relação aos modelos

usados no projeto anterior de Fernando Azevedo, na Fazenda San Francisco.

No dia 23 de outubro de 2008, o biólogo fez um sobrevôo sobre a São Bento,

utilizando essa nova tecnologia. O pesquisador me explicaria mais tarde que o novo

sistema de GPS era programado para registrar localizações via satélite de três em três

horas, e que as localizações iam sendo armazenadas no dispositivo durante os intervalos

265

entre a captura dos dados.Assim, enquanto com o modelo antigo ele conseguia apenas

uma localização para cada onça quando sobrevoava a área de pesquisa (na San

Francisco), com o novo (na São Bento), ele podia obter centenas de localizações com

um único sobrevôo. O monitoramento aéreo, fundamental para a pesquisa, era feito em

intervalos regulares no avião particular do proprietário da fazenda, que acompanhava na

ocasião o trabalho do biólogo.

Cerca de meia hora depois que o pequeno aeroplano pousou naquele dia, duas

caminhonetes vindas da pista de pouso, na sede, passaram apressadamente pelo retiro.

Seu João tinha chegado logo antes para pegar água gelada no freezer da cantina, onde eu

estava almoçando. Antes de entrar na caminhonete, ele explicou que o grupo estava

indo “fazer o download de um macho que o Fernando localizou”. Uma das coleiras

falhara durante o processo de captação dos dados, e os pesquisadores fizeram nova

tentativa por terra a partir do sinal de rádio, mas não conseguiram completar o

procedimento.

O macho referido por Seu João era Mirão, que seria fotografado dez dias depois

junto à carcaça do bezerro predado. A identificação do animal, como relatei na

introdução, foi feita pelo biólogo a partir da comparação entre a imagem obtida pela

armadilha fotográfica naquela noite uma fotografia anterior tirada durante a captura. O

evento ilustra a importância dessa técnica de rastreamento para o projeto.

Originadas no manejo de animais de caça nos EUA, as armadilhas fotográficas

(camera traps) foram desenvolvidas na biologia de campo em pesquisas de campo com

tigres na índia (Sunquist 1981). O equipamento é composto por caixas de plástico

resistente, sensores de movimento e câmeras automáticas, sendo que o animal é

identificado pelo padrão das pintas, que produzem uma espécie de impressão digital de

cada indivíduo (Silver, 2005: 3). A partir daí, a técnica passou a ser utilizada para outras

espécies “crípticas” de felinos, tais como leopardos e onças-pintadas (Silver, 2005: 3),

sendo utilizadas para estimar a abundância e a distribuição dessas espécies no ambiente

natural. Na pesquisa de campo, as câmeras são dispostas em pontos chave, a partir da

observação de rastros e outros sinais da passagem de animais, ou então apontadas para

os restos de uma preza, como no caso do bezerro predado.

Em 2006, quando visitei pela primeira vez o projeto da San Francisco, as armadilhas

ainda usavam filme em película, e o mesmo Henrique precisava ir até a cidade de

Miranda para revelá-los. Conforme pude apurar mais tarde, a adaptação das câmeras

digitais à função era dificultada pelo gap que havia entre o disparo e o registro da

266

imagem. Contudo, o problema já fora solucionado em 2008, e isso permitiu, no caso do

bezerro abatido na São Bento, a identificação quase imediata da onça responsável pela

predação.

Conforme relatado na introdução, o objetivo de Seu João e Henrique, a partir do

momento em que identificaram o animal na fotografia, foi obter as localizações

armazenadas no colar que não tinham sido coletadas no dia do sobrevôo. Acompanhei

naquele dia os pesquisadores na tentativa de monitoramento do sinal de rádio específico

da coleira daquela onça, com Seu João dirigindo enquanto Henrique vasculhava a área

com a antena. O equipamento para a captura dos dados do GPS incluía ainda um

notebook e uma segunda antena receptora, levados conosco no carro, mas eles não

chegaram a ser utilizados. Conforme narrado na introdução, apesar das insistentes

tentativas feitas naquele dia, o indivíduo procurado não foi localizado. Na estrada

interna da fazenda, o biólogo detectou a presença de uma das fêmeas monitoradas pelo

projeto, mas os dados daquela coleira já estavam atualizados. Com a antena direcionada

para um capão de mata nas proximidades, pude ouvir no fone de ouvido os bips em

intervalos regulares que indicavam que a onça não estava em movimento, conforme me

explicou o pesquisador, observando que provavelmente ela estava descansando durante

as horas mais quentes do dia.

Minha intenção durante o trabalho de campo era registrar todas as etapas do

processo, do sinal de rádio até o resultado final do processo. Um dia depois do registro

fotográfico da onça com o bezerro predado, no entanto, Henrique precisou deixar a

fazenda inesperadamente, e algumas questões sobre o trabalho de monitoramento

ficaram incompletas nas minhas anotações. Alguns meses depois de encerrar a pesquisa,

enviei para o biólogo algumas perguntas sobre a obtenção das localizações, que ele me

respondeu gentilmente por email. Transcrevo abaixo as minhas perguntas seguidas

dessas respostas, que fornecem uma boa visão geral do procedimento utilizado no

campo:

F: As localizações das onças em GPS são obtidas a partir de que procedimento?

Você liga um dispositivo no computador para fazer o download no local? A que

distância precisa estar?

Uma vez que localizou o animal que você quer com o receptor VHF, você

vai precisar de um receptor UHF conectado a um computador para obter

as localizações armazenadas no GPS da coleira. Com eles em mão, você

267

usa um software próprio dos colares para entrar em contato com a coleira,

e então pode baixar os dados armazenados nela até o momento que quiser

(tipo a última data da última vez em que fez esse procedimento), ou baixar

tudo que estiver armazenado. Este mesmo software é usado para mandar

fazer o "drop off" da coleira, ou seja, mandar ela se soltar do animal se for

do seu interesse. A distância que a gente precisa estar p/ o procedimento

varia um pouco, mas não é muito grande, cerca de 150m do animal, às

vezes menos.

F: Esses dados depois são lançados em um programa específico para gerar os mapas

com os territórios usados pelas onças? Qual?

Os dados são transformados em uma planilha de excell, e esta é usada para

gerar o mapa em um software próprio para isso. Esses softwares são

conhecidos como Sistemas de Informação Geográfica - SIG (ou GIS em

inglês). Existem alguns disponíveis e nós usamos um programa chamado

ArcView ou ArcGIS (ambos da ESRI).

F: Os dados de predação (as localizações das presas) e as localizações das onças

podem ser combinados? Ou são planilhas separadas?

Nós temos um banco de dados com várias planilhas diferentes, cada uma

específica para um aspecto da pesquisa. (...). Todas as planilhas têm um

campo onde você insere as coordenadas geográficas do evento, de forma

que possa gerar os mapas no SIG a partir das planilhas. O SIG permite que

com uma imagem de satélite da área de pano de fundo, você adicione

quantas camadas de dados quiser por cima. Como se fossem transparências

sobrepostas sobre um mapa geral da área. Assim você sobrepõe os dados

de predação com as localizações de onça e assim por diante.

Observei algumas vezes no laboratório de campo os dados referentes às outras onças

do projeto. As localizações e os seus respectivos horários podiam ser visualizados em

séries de pontos espalhados, formando, em alguns locais, o que Henrique identificou

como “aglomerados”, ou podiam ser convertidos em tipos diversos de polígonos

irregulares, de acordo com o tipo de análise que o biólogo quisesse fazer.

O equipamento usado no projeto era de uma marca suíça chamada Televilt. O

projeto ainda estava em fase inicial, e era cedo para uma avaliação do modo como a

268

nova tecnologia incidia nos dados sobre o comportamento e a história natural das onças.

O tema será retomado adiante a partir de entrevista realizada em 2007 com a

pesquisadora Sandra Cavalcanti, responsável pelo primeiro trabalho de campo sobre a

onça-pintada a usar coleiras GPS, realizado também no Pantanal.

Peter Crawshaw iniciou a carreira como biólogo de campo em 1978, no projeto

pioneiro de George Schaller (Op. Cit) sobre a onça-pintada no Pantanal, sendo depois

responsável pela seqüência do estudo na fazenda Miranda Estância, juntamente com

Howard Quigley (Crawshaw e Quigley 1984). Mais tarde o pesquisador brasileiro

coordenou o Projeto Carnívoros do Iguaçú, no sul do Brasil, onde surgiu uma nova

geração de pesquisadores voltados para o estudo desses de animais. No início da década

de 1990, Crawshaw fundou, juntamente essa nova geração que havia trabalhado com

ele, o Instituto Pró-Carnívoros e o Centro Nacional de Predadores do Ibama, os pilares

institucionais da conservação e da conservação e da pesquisa das espécies de carnívoros

no Brasil. A trajetória pessoal do biólogo se confunde, portanto, com a história de seu

campo de pesquisa, em especial no que diz respeito à onça-pintada, espécie com a qual

trabalhou durante a maior deste tempo.

“A história da pesquisa sobre carnívoros no Brasil”, texto de Crawshaw que

introduz a coletânea Manejo e Conservação de Carnívoros Neotropicais (2006), é uma

das raras abordagens sobre o tema com um viés histórico. No artigo, que poderia ser

definido como uma peça de divulgação científica, ou popular, o autor narra sua própria

experiência pessoal e faz um panorama dos últimos trinta anos. No trecho a seguir, ele

aponta as origens do campo:

“Pelo que entendo, a assim chamada "moderna" pesquisa sobre carnívoros

no Brasil começou em finais dos anos setenta, com dois estudos que foram

realizados quase simultaneamente. Um deles era um estudo sobre a onça-

pintada (Panthera onca) pelo Dr. George Schaller, no Pantanal de Mato

Grosso, e o outro um estudo sobre o lobo-guará (Crysocyon brachyurus),

por James Dietz, na Serra da Canastra , no Estado de Minas Gerais,

sudeste do Brasil (Dietz, 1984). Ambos os estudos usaram a rádio-

telemetria, então em seus primórdios, para acompanhar animais individuais

na natureza; assim, constituíram a base de uma nova era para a pesquisa

de campo moderna sobre carnívoros no Brasil”. (2006: 18. Tradução

minha)

269

Em relação aos antecessores e precursores dessa nova era para a biologia, o autor

afirma:

“Antes dos estudos acima mencionados, a maioria das informações sobre

carnívoros provinha de relatos de naturalistas e exploradores, geralmente

associados a acervos de museus para estudos taxonômicos. No caso da

onça-pintada, uma das únicas fontes de informações publicadas sobre a

espécie na natureza era o livro por Almeida (1976). Como guia para

caçadores de troféus, Tony Almeida mantinha registros detalhados sobre

medidas, sexo e conteúdo do estômago de animais abatidos por ele próprio

e seus clientes. Ele também fornecer algumas informações sobre as escalas

do território estimado de cada animal, com base em rastros e outros sinais

de indivíduos previamente identificados”. (2006 a: 18-19)

Além disso, o caçador e seu associado Richard Mason participaram diretamente das

primeiras capturas, como o biólogo relata em seguida:

“Para aumentar a eficiência na captura de indivíduos a serem equipados

com colares de rádio e acelerar o estudo de telemetria, Schaller decidiu

aproveitar a competência de um caçador experiente. (...) O projeto

contratou Tony Almeida e seu sócio Richard Mason para capturar as onças

na fazenda Acurizal”. (Idem)

O elemento crucial na definição de uma origem histórica para a pesquisa de campo

moderna, de acordo com ele, é a introdução da técnica da telemetria, que distingue os

estudos inaugurais de Schaller e Dietz de todo conhecimento sobre a história natural

produzido antes deles (2006 a). Em uma conferência intitulada Histórico da rádio-

telemetria no estudo de felinos no Brasil (2006 b) Crawshaw apresenta três diferentes

sistemas utilizados no decorrer das pesquisas das quais participou, apontando uma série

referências a outros cientistas:

“O primeiro sistema utilizado para onças-pintadas no Pantanal foi

produzido por Johnson & Smith, EUA, sendo o mesmo utilizado na época

por Maurice Hornocker no puma americano, operando na faixa de 30 MHz.

O colar era um conjunto formado por uma cinta de cobre, que servia como

antena para transmissão do sinal, acoplada à uma caixa metálica que

protegia os componentes eletrônicos do transmissor.

270

O segundo sistema utilizado para onças-pintadas no Pantanal foi produzido

pela Davtron Eletronics (150 Mhz), por indicação de John Weaver, que teve

uma breve participação no projeto. Foram aparelhadas duas fêmeas de

onças-pardas e uma fêmea de onça-pintada, no início do projeto na

Miranda Estância.

O terceiro sistema utilizado, produzido pela Telonics (150 MHz) foi

introduzido com a chegada de Howard Quigley no projeto em Miranda.

Com esse sistema, foram aparelhadas seis onças-pintadas (2 machos e 4

fêmeas) além de uma fêmea jovem de onça-parda. Das onças-pintadas, 4

animais pertenciam a uma mesma família (1 fêmea adulta com três filhotes

de duas ninhadas subseqüentes), e os outros dois eram mãe e filha”.

O estudo acompanhou, em certo sentido, a consolidação da técnica da telemetria

como principal ferramenta nos estudos de campo da biologia da conservação. Em

outubro de 2007, durante a primeira fase da minha pesquisa de campo, fiz uma

entrevista com Peter Crawshaw na casa onde ele morava em Corumbá. Na conversa

transcrita a partir do registro de áudio, pergunto sobre a chegada dele no primeiro

projeto, onde trabalhou com Schaller a partir de 1978, e ele acrescenta alguns novos

dados ao histórico da telemetria:

F. E como é que eram as técnicas de pesquisa? Já utilizava telemetria?

Ele já tinha inclusive posto um colar em um macho de onça-parda, lá. Mas

ele não tinha muita experiência – lembra que era bem no início... Quer

dizer, os únicos outros projetos que tinham trabalhado com carnívoros

eram nos EUA, que foi com o urso-pardo – o Grizzly. Foram o irmãos

Craighhead que desenvolveram o sistema de telemetria especificamente

para trabalhar com o urso pardo. Aí um orientado deles, um estudante

desses irmãos, que trabalhavam lá em Yellowstone, começou a desenvolver

o sistema para trabalhar com o puma. E esse cara, o Maurice Hornocker,

era muito amigo do George Schaller, e foi ele que recomendou e ajudou o

George a comprar o equipamento todo que nós usamos aqui. Só que eram

uns colares enormes, pesadões, com mais de um kg, e falhavam muito.

O livro de Frank Craighead Track of the Grizzly (1979) narra como ele e o irmão

John, ambos biólogos, iniciaram, em 1959, um estudo sobre o urso Grizzly em

271

Yellowstone, sendo ajudados por dois amigos, um operador de rádio amador e outro

engenheiro eletrônico, no desenvolvimento do sistema de rastreamento dos animais via

rádio. A nova técnica abriria uma série de possibilidades de pesquisa ligadas à

consolidação de um novo ramo científico, o da Biologia da Conservação. A técnica

seria utilizada em pumas por Hornocker, ainda nos EUA, e através dele seria trazida ao

Brasil, mas ainda era um modelo rudimentar de coleira, conforme relatado por

Crawshaw. Ele prossegue:

“Aí o George trouxe um outro rapaz [John Weaver], em fevereiro de 1978,

que, esse sim, tinha feito o mestrado dele com coiote, usando rádio-

telemetria, então tinha mais experiência. Foi ele que começou a introduzir a

metodologia correta no monitoramento por rádio-telemetria. (...) Aí,

quando o Howard [Quigley] veio, no início de 81, ele já trouxe todo um

esquema novo, que era da Telonics – que é esse que a gente usa até hoje”.

(Ent. 10/2007)

O sistema Telonics seria adotado, por exemplo, no projeto de doutorado de

Fernando Azevedo sobre as onças na Fazenda San Francisco, em 2003 e 2004, o que

sugere que ao longo de vinte anos ele tenha se estabelecido como padrão no campo da

pesquisa sobre felinos feita no Brasil. Apesar da ausência de mudanças significativas na

tecnologia de transmissão de rádio, no entanto, durante o período, o registro da posição

dos animais foi imensamente facilitado ao longo do tempo com o desenvolvimento de

programas de computador e, posteriormente, de equipamentos portáteis de GPS, na

década de 90. Não demoraria muito para que o GPS fosse incorporado à coleira de

rádio, o que marcaria uma nova geração de equipamentos de telemetria. A seguir

Crawshaw narra os procedimentos necessários para o monitoramento dos animais antes

disso:

“Uma vez encontrado um animal, a sua posição era determinada por

triangulação, com o auxilio de uma bússola. Três azimutes de diferentes

pontos determinavam o cruzamento de três retas, marcando a sua

localização. A localização era plotada em um mosaico de fotos aéreas”.

(escala 1:20.000)

272

O projeto Carnívoros do Iguaçu, coordenado por Crawshaw, foi responsável pela

formação de uma nova geração de pesquisadores de campo, alguns dos quais

estabeleceriam projetos próprios no Pantanal mais tarde, como Azevedo. Outro exemplo

é a pesquisadora Sandra Cavalcanti, responsável pelo primeiro projeto a utilizar a

coleira equipada com GPS para a onça-pintada, entre 2001 e 2007. Também entrevistei

a pesquisadora em outubro de 2007, alguns dias depois do encontro com Crawshaw. A

entrevista também foi gravada. No trecho a seguir pergunto sobre a experiência dela

com as mudanças nas técnicas de campo:

F: Quando você começou, lá em Foz do Iguaçu, a tecnologia de telemetria era muito

diferente? Mudou muito? O tamanho do colar...

O tamanho do colar não mudou tanto. Os colares não mudaram muito de

tamanho, mas a técnica mudou muito, muito mesmo. Na época que eu

comecei com o Peter [Crawshaw], na primeira vez lá em Iguaçu, era VHF.

Então, por exemplo: você punha um colar em cada onça. Então, isso não

era problema, porque no seu receptor você programava determinada

freqüência e você sabia que era só a onça número um, isso não era

problema. No entanto, você precisava achar o indivíduo, e aí você fazia o

que nós chamamos de triangulação. A gente usava uma antena

unidirecional. Então a gente achava o animal e pegava a coordenada de

onde a gente estava, pegava a bússola e lia o azimute, e tal, e então punha:

coordenada tal, azimute tal. (...) Aí a gente andava mais pra frente, pegava

outra leitura na onça, outra leitura com a bússola. Depois andava mais

para frente... Então pegava as três leituras. E tudo isso, assim, meio rápido,

né? Porque entre uma e outra você não queria que a onça já tivesse

andado.

E era bem legal, por que na época, o Peter tinha um mapa de Foz do

Iguaçu, do Parque, e ele tinha uma folha de papel vegetal em cima para

cada onça. Uma folha de papel vegetal para cada onça! Então a gente

punha aquele papel vegetal meio transparente ali em cima, e aí a gente via

a estrada no mapa e falava: tá, a gente está aqui. Aí a gente pegava uma

régua com o compasso e a gente desenhava o ângulo, tal, e aí a gente fazia

a triangulação no mapa, para ver onde estavam as onças.

273

Aí depois, na verdade, teve um programa, o “Locate”, que era um

programa que você só punha a coordenada, de onde você estava, e ele fazia

a triangulação pra você, e te dava a coordenada da onça. Aí já ficou bem

mais moderno! Mas depois, com o advento do colar GPS, aí a coisa mudou

de figura... (...)

Quer ver, vou te mostrar uma foto: isso aqui é o território de uma onça.

Olha o tanto de informação que a gente tem. Basicamente, ele desenha o

território da onça para você, tá vendo? Aqui, ó: essa vermelhinha é aqui,

essa daqui é isso aqui... Antigamente, na época do Peter em Iguaçu, a gente

tinha, sei lá: Em cinco anos que a gente trabalhou em Foz do Iguaçu, a

gente tinha quinhentas localizações no total. Hoje, aqui, a gente tem treze

mil [em dois anos].

O estudo sobre a onça-pintada coordenado por Sandra Cavalcanti significava um

retorno, vinte anos depois, à área de estudo de Crawshaw e Quigley, na Miranda

Estância. Nesses vinte anos, muita coisa havia mudado, e a antiga fazenda fundada

pelos ingleses tinha sido dividida em propriedades menores (Benevides e Leonzo 1999).

O projeto de Sandra foi sediado numa delas, a Fazenda Sete.

A pesquisa de Fernando Azevedo na San Francisco, nessa mesma região, é um

pouco posterior, tendo sido iniciada em 2003. Neste intervalo temporal entre o trabalho

de Crawshaw e Quigley (1984) e as duas novas pesquisas, o campo de pesquisas sobre

carnívoros tinha se estabelecido institucionalmente no Brasil, e os métodos de pesquisa

haviam evoluído bastante. Podemos citar entre as principais mudanças no campo: a

revolução da genética, o avanço da informática, o surgimento dos dispositivos portáteis

de GPS e a evolução dos métodos de análise dos dados na área da biologia da

conservação.

As coleiras de rádio haviam sido testadas e desenvolvidas em inúmeros estudos de

campo durante esse intervalo, tornando-se mais leves, fáceis de manusear e confiáveis,

porém a tecnologia da telemetria permaneceu praticamente inalterada até então. O

sistema de telemetria empregado no estudo de campo de Fernando Azevedo na San

Francisco, por exemplo, em 2003 e 2004, foi o mesmo (Telonics) usado por Crawshaw

Quigley entre 1980 e 1984. O projeto de Sandra Cavalcanti teve início no ano 2000,

utilizado o mesmo método, mas passaria no ano seguinte a pesquisadora adotaria os

274

novos colares GPS, uma tecnologia ainda muito cara na época e nunca testada com

onças até então.

Os trabalhos desses dois representantes da nova geração, ambos associados ao

instituto Pró-Carnívoros e ex-assistentes de campo de Peter Crawshaw em Iguaçu,

tinham como principal referência científica o estudo pioneiro na Miranda Estância, e

podiam comparar os seus resultados sobre a região os de seus antecessores. O trabalho

de Crawshaw e Quigley (1984) é amplamente citado em artigos científicos e trabalhos

científicos produzidos pelos dois pesquisadores (Azevedo e Murray 2007; Cavalcanti

2006; Azevedo 2006), mas a referência histórica aparece também de depoimentos

registrados durante o trabalho de campo, mesmo que indiretamente. Quando apresenta o

seu trabalho desenvolvido na San Francisco para o público (Ap. 05/2008), por exemplo,

Fernando Azevedo se refere a diversas informações estabelecidas pela tradição sobre o

comportamento da onça:

A princípio, eu tinha dois objetivos: um era estudar como é que a onça se

distribui numa região e os hábitos alimentares dela; e o segundo objetivo,

mais prático, era analisar o que é que faz a onça comer o gado. Porque é

que ela come o gado?

E apresenta uma série de hipóteses de trabalho com as quais trabalhou, contrastando-

as com essa tradição:

A gente achava, em princípio, analisando outros trabalhos, de outras

regiões, que a onça estabelecia território. Para onça, ninguém tinha feito

isso antes: analisar se ela é territorialista ou não. As pessoas falavam que

era, mas não tinham dados científicos. Então, nós analisamos isso. E

também, saber se dentro do território da onça, tem áreas que elas usam

mais; seria o centro do território. Era uma coisa que a gente queria

estabelecer, para ver se existia mesmo.

Como a apresentação não era para uma platéia de especialistas, e se destinava

principalmente ao público leigo, incluindo produtores rurais, ambientalistas e

administradores de fazendas, o biólogo não cita as fontes com as quais está dialogando.

Essa distinção entre a face pública e a face técnica da ciência, que é marcante aqui, foi

discutida na seção 4.2. Assumo como hipótese que o biólogo se referia principalmente

aos estudos de Crawshaw e Quigley (1984) e Schaller e Crawshaw (1980), sem

275

descartar que algumas declarações possam ser referidas também ao conhecimento dos

caçadores nativos. Ele prossegue:

Também se falava muito que a onça, tendo um território, não deixava outra

onça entrar no território dela. Nós estudamos isso também. E também se

dizia que a onça comia de tudo; o que tinha na frente ela comia. Ou seja,

ela é oportunista, qualquer coisa ela come. Isso é que a gente queria

analisar também: se é assim, ou ela seleciona, ou não. Foi motivo do nosso

campo essa pesquisa também.

Em seguida o biólogo reporta alguns dos resultados de seu trabalho de campo:

A pesquisa mostrou que as onças são seletivas e não oportunistas.(...)

Os tamanhos de áreas de vida foram semelhantes entre os sexos, quer dizer,

não teve muita diferença do tamanho do território do macho pro território

da fêmea. Tiveram mais ou menos um tamanho igual, tanto na área geral do

território, quanto no centro do território deles. Quer dizer, os centros, onde

as onças usam mais, também tiveram tamanhos semelhantes entre os

machos e as fêmeas. (...)

E contrasta mais uma vez as informações (sem citar fontes) com a tradição:

Os resultados foram diferentes daqueles com outros grandes felinos, que

registram nenhuma sobreposição territorial entre os machos. Houve

sobreposição, mas não no centro do território. O mesmo com as fêmeas.

(...)

Isso aqui vai de encontro com o que a gente achava, quer dizer, dentro do

território do macho, está o território de mais de uma fêmea. Realmente,

foram de duas fêmeas para cada macho, praticamente. Só que não é uma

diferença muito grande. A gente esperaria ter machos com territórios bem

maiores.

As observações do cientista são exemplos de como um novo estudo apresenta

inovações ou confirma aquilo que estabeleceu como hipóteses. Ele coloca como

hipótese que a onça constitui territórios, o que depois é confirmado por seu estudo,

observando que “as pessoas falavam que era, mas não tinham dados científicos”

(Op.Cit). Trata-se de um bom exemplo do modelo baseado na comprovação científica.

Em outro trecho, o cientista afirma que, ao contrário do que preconizava a tradição, “A

276

pesquisa mostrou que as onças são seletivas e não oportunistas (...)”. Desta vez, não só

a hipótese disseminada pela tradição mostrou-se falsa, como também a pesquisa revelou

algo que o biólogo articularia depois uma série de outros dados, como a distribuição das

capivaras nos canais de irrigação da fazenda e os registros de predação do gado

divididos em classes de idade.

Em 2001, depois de trabalhar um ano com a telemetria convencional, a pesquisadora

Sandra Cavalcanti introduziu nos estudos sobre a onça-pintada um novo tipo de

equipamento: o colar GPS. Os sistemas de GPS, que entraram em operação em 1995, já

vinham sendo usados nos estudos de campo sobre as onças há algum tempo, e não

tardaram a aparecer no mercado coleiras de rádio equipadas com os dispositivos. O

equipamento ainda era recente e dispendioso quando a pesquisadora se propôs pela

primeira vez a utilizá-lo, enfrentando a resistência de pesquisadores mais antigos,

conforme ela relata em entrevista:

Mas eu lembro que na época, quando eu escrevi a primeira proposta

pedindo esses colares para onça-pintada, os grandes nomes de onça – na

verdade o Howard Quigley, o Allan Rabinovitz – disseram:

– Não, nós já pensamos nisso, para esse bicho, mas o problema é que esses

colares hoje são muito grandes, muito brutos, e o animal é um predador,

então a gente tem que tomar cuidado, porque quando ele for matar uma

presa, pode ser que na hora do ataque, que ele vai abrir a boca, aquilo lá

pode atrapalhar...

O que na verdade não foi bem o caso, né... Eu escrevi essa proposta, aí fui

visitar essa empresa, o representante na Califórnia, peguei os colares lado

a lado, comparei com o VHF, e eles eram praticamente do mesmo tamanho.

F: E o fabricante era na California?

Não, o fabricante era na Suiça, da marca Televilt81. E na época só tinha

três colares que faziam o que eu queria fazer, que era o remote download,

que você puxa a informação sem ter que tirar o colar do pescoço da onça.

Mas eu acho que na época era a única sem ter que tirar o colar. As outras,

você tinha que pegar de volta, para aí você conectar o colar no computador

e repassar as informações. E o da “Televilt” era legal porque você podia,

81 A mesma marca usada por Fernando Azevedo na São Bento a partir de 2008

277

se você programasse o colar para ele fazer o upload num determinado dia,

você ia lá e fazia isso quando você... A cada três semanas eu pegava as

informações.

A nova tecnologia, originada pela junção entre o GPS e os colares de rádio

tradicionais, é apontada pela pesquisadora como uma espécie de segunda revolução no

campo (depois da introdução da telemetria), responsável por uma série de revelações

inovadoras sobre o comportamento das onças, informações subverteram paradigmas

estabelecidos e modificaram diversos aspectos da história natural das onças tidos antes

como fatos consumados.

A partir de um modelo realista estrito, o colar GPS seria mais um filtro, um

intermediário entre o conhecedor e o objeto de conhecimento. E, nesse sentido, ele

atualizaria o ideal de um conhecimento racional tecnológico feito de verdades objetivas.

Por outro lado, enquanto prótese visual que permite visão totalizante, e um olhar de

cima, se aproxima de algo que Donna Haraway define como “god-trick”, corporificado

pelos satélites. A visão de lugar nenhum ligada ao militarismo, ao capitalismo e ao

colonialismo norte americanos são o ‘outro’ paradigmático para o projeto científico

feminista da autora, de uma objetividade corporalizada (‘embodied objectivity’), que

recusa de qualquer transcendência:

“O conhecedor é sempre parcial, nunca inteiro, simplesmente lá, é sempre

construído e reunido de forma imperfeita, e só assim capaz de se juntar ao

outro”. (: 193)

A alternativa formulada por Haraway é um conhecimento situado, baseado na

agência do objeto de conhecimento, na visão do mundo como entidade ativa e não

passiva. Nessa perspectiva o corpo se tornaria indistinto da mente, um agente, uma

localização, não um recurso, e as fronteiras entre animal e humano, ou entre máquina e

organismo, se mostrariam como questões em aberto.

A técnica reduz a forma das onças de habitarem o mundo a um pequeno número de

marcas relevantes, bits de informação, sinais que podem ser rastreados pelos cientistas.

O colar faz apenas uma coisa: emite um sinal para o satélite. Esse sinal pode ser

rastreado e deixa uma série de vestígios que os cientistas são capazes de localizar a

partir desse sinal: pelos, fezes, pegadas, animais abatidos – todos esses rastros fazem

parte de uma história natural que as ações da onça escrevem.

278

A unidade produtora de dados, a onça-de-colar, um sistema de comunicação atrelado

ao animal vivo, pode ser definida, nesse sentido, como um cyborg, no sentido original

do termo (organismo cibernético) mencionado por Haraway na formulação de um de

seus conceitos chave. Os objetos – diz Haraway são “projetos de fronteira”, não existe

uma visão passiva, sem mediação:

“Os dispositivos protéticos da visão mostram que todos os olhos, incluindo

os nossos próprios olhos orgânicos, são sistemas perceptivos ativos”.

(1989: 190)

É nesse mesmo sentido que Latour propõe o abandono da metáfora ótica no estudo

das práticas científicas, da idéia de uma janela a partir da qual olhamos para o real. De

acordo seu argumento, o realismo tradicional apaga todas as mediações e preconiza um

olhar direto, sem mediação, um observador que vê o mundo através de uma janela.

Assim, todos os aparatos de estudo aparecem como filtros que distorcem o real,

tornando tanto o trabalho quanto o observador invisíveis (: 367). A idéia da proposição,

formulada por ele como alternativa, provém do modo como os próprios cientistas falam

sobre o seu trabalho quando estão em campo ou no laboratório:

“Na prática científica, o trabalho e a autonomia do objeto de estudo são

sinônimos: quanto mais um fato é fabricado, mais ele é independente”. (:

370)

A partir do sentido dado por Latour (2000), a coleira GPS deve ser tratada como um

mediador ativo em uma cadeia de mediadores (que inclui os militares e o capitalismo), e

não como um intermediário passivo entre o observador e os animais lá fora. Desta

forma, ela deixa de ser um símbolo desse olhar divino, de uma espécie de visão total na

qual o próprio dispositivo tecnológico desaparece, e passa a ser um elemento que

introduz mais um ponto de vista; um mediador que torna o objeto de estudo mais

articulado com aquilo que o cientista declara sobre ele.

Um dos principais temas da pesquisa de Sandra Cavalcanti é o da predação da onça

sobre o gado, assunto diretamente conectado por ela ao tema da conservação:

Eu acho que hoje você tem um problema que eu acho que é o problema

principal, o maior desafio hoje para a gente: O Pantanal tem o habitat

quase intacto. Claro que estão transformando algumas áreas de pastagem,

mas o ambiente está lá, e as espécies de presa estão presentes. Então, na

279

verdade, no pantanal, não é a falta de presas naturais que faz a onça atacar

o gado. Hoje, no Pantanal, o gado faz parte da dieta natural de onça. Eles

estão disponíveis. São fáceis, são muito mais bobos e fáceis de pegar do que

uma espécie de presa nativa.

Mostrando no computador as localizações obtidas através da coleira GPS ela afirma:

E aí a gente vê a proporção, do que elas matam de doméstico para nativo. E

aqui você vê que não tem aquela onça que você fale: uma vez que ela

começa a matar o gado, ela fica especialista, ela só quer matar o gado.

Mentira...

F: E essa questão do chamado animal problema?

O animal-problema não existe. O animal é oportunista, e se tiver animal

dando sopa, ela vai matar. Mas ela mata outras espécies também. Então,

por exemplo, essa aqui matou pouquíssimo (o azul escuro é gado). Essa já

matou bastante.

Um exemplo proveniente da pesquisa, citado pela pesquisadora, era o de um velho

macho de onça-pintada monitorado pelo projeto, apelidado de Vovô, que seria o

protótipo do animal-problema: previamente ferido por caçadores, o animal tinha perdido

dois caninos, e os restantes estavam bastante desgastados. No entanto, era uma onça que

se alimentava de porcos-do-mato e outras presas silvestres e raramente atacava o

rebanho da fazenda, enquanto animais jovens e saudáveis utilizavam o gado como presa

principal.

Ela explica também que o colar GPS permitiu que encontrasse muito mais presas do

que se achava antes. Nas imagens que ela mostra no computador, as coleiras produzem

pontos no mapa, com localizações e horários. Cada onça corresponde a uma mancha de

cor diferente e muitos pontos juntos significam o que ela chama de “aglomerados”, que

indicam possíveis locais onde a onça se alimentou. Visitando esses locais logo que

obtinha os dados, a equipe de campo encontrou restos de animais como tatus, que nunca

seriam localizados através da telemetria convencional.

Ao longo da entrevista, a pesquisadora aponta uma série de novidades que o estudo

produziu. Mitos, modelos, conceitos que antes eram tidos como fatos e que caem por

terra com o uso da nova tecnologia. Por exemplo, em relação às interações sociais entre

as onças, ela afirma:

280

Aí a gente olhou essa associação espacial-temporal. E a gente tinha vinte

um pares de onça para os quais a gente tinha localização simultânea, no

mesmo dia e na mesma hora... A gente viu que o observado na verdade era

bem diferente do esperado. A gente tinha 54 pares de localizações de onças

que a gente sabia exatamente a distância entre as duas onças naquele dia e

naquela hora, e a média foi 40 metros. E você pode ter certeza que, se tiver

uma onça a quarenta da outra, elas sabem que a outra está ali. O mais

legal é que não teve diferença entre as distâncias entre macho e fêmea e

macho e macho, então, quer dizer, esses encontros ou interações sociais

não eram necessariamente relacionados com cruzamento de macho e

fêmea. A gente tinha macho e macho perto um do outro também.

Em seguida acrescenta algumas observações sobre o acasalamento e a dispersão dos

filhotes:

E os dados mostram que os machos e fêmeas se associam ao longo do ano

inteiro, não tem estação de monta. Não tem uma época de acasalamento.

Eles se encontram o ano inteiro. Então, a gente descobriu que tem uma falta

de uma estação de cruza definida, as fêmeas entram em contato com os

machos mesmo antes dos filhotes dispersarem... Que era também outro

mito: a mãe está com os filhotes, aí ela dispersa os filhotes, aí ela vai

acasalar de novo... E a gente viu essa fêmea com esses filhotes, depois a

gente a viu com um macho colarizado, um dos nossos de colar, e depois

fotografamos ela com os filhotes de novo.

Ela encerraria, em seguida, o assunto citando um artigo clássico sobre o

comportamento de gatos, que associa às novas descobertas sobre as onças:

De fato tem esse cara que escreveu um artigo clássico de comportamento

do gato doméstico, Leyhausen82, e ele sugere que, talvez, a palavra

“solitário” não seja necessariamente oposta a “social”. Você não precisa

ser ou “solitário” ou “social”... Você pode ser um animal solitário, que se

vire sozinho, mas de tempos em tempos, você vai se encontrar com outros

indivíduos da sua espécie.

82 Paul Leyhausen 1979. Cat Behavior: The Predatory and Social Behavior of Domestic and Wild

Cats, translated by Barbara A. Tonkin.New York: Garland STPM Press.

281

Talvez o exemplo mais interessante de proposição dado por Sandra Cavalcanti na

entrevista seja o modo como ela descreve o uso do território pelas onças:

Em teoria, eles diziam que os machos não sobrepõem os territórios. Então,

dentro do território de um macho, você tem o território de duas ou três

fêmeas, mas os machos em si não sobrepõem os territórios. E na verdade a

gente descobriu que não tem nada a ver isso. Isso [mostra na tela] são os

territórios de fêmeas, durante a cheia e durante a seca... Então, na cheia

elas sobrepõem os territórios sim, e na seca elas têm territórios mais

exclusivos. Mas na verdade, quando você vai nos machos... aí: são todos

machos [mostra na tela o mapas com os territórios contornados em cores

diferentes]. Um é esse território, o outro é esse, outro esse... A taxa de

sobreposição é gigante, chega a até 70% do território de um macho. Então,

na verdade, quem tem os seus territórios definidos são as fêmeas, e os

machos estão em tudo que é lugar, andando o máximo possível...

A partir dos dados gerados pelo estudo, ela desconstrói o paradigma da descrição de

ocupação do território baseada no macho dominante estabelecido pela tradição

(Almeida 1976, Schaller 1980). As onças se tornam mais sociáveis, e a sociedade delas

é determinada pelo território das fêmeas e não dos machos. A questão se torna ainda

mais interessante quando formulada por uma mulher num campo dominado

historicamente por cientistas homens.

A pesquisadora, usando uma expressão de Latour (2000), dá às onças a oportunidade

de se comportarem de maneira nova, diferente do esperado. Nesse sentido, a partir da

introdução de um novo instrumento de pesquisa, ela pode falar de ações e

comportamentos das onças aos quais não tínhamos acesso antes. É um exemplo de

como a inclusão de novos mediadores ativo entre aquilo que as onças fazem na natureza

e aquilo que podemos dizer sobre elas significa um acréscimo de realismo na descrição.

282

ANEXO G – Imagens Capítulo 4

©Projeto Gadonça

Cenas do trabalho de campo dos biólogos. Na primeira foto, Henrique identifica o predador

fotografado pela armadilha fotográfica; na imagem seguinte, Fernando examina a carcaça

de um búfalo; No meio, Henrique usa o equipamento de telemetria; em baixo, onça

capturada na Fazenda San Francisco pelo Projeto Gadonça, em 2004.

283

Acima, o biólogo Ricardo Costa coleta fezes de onça que em seguida são levadas para o

laboratório de campo do Projeto Gadonça; no centro, o crânio e o esqueleto de uma fêmea

morta por outras onças; Abaixo à esquerda, o crânio de uma das onças do projeto que foi

encontrada morta com um tiro numa fazenda vizinha; à direita, coleção de crânios de

animais predador pela onça na São Bento.

284

Capítulo 6: Rede Onça

Introdução

Antes de avistar uma onça pela primeira vez, eu já havia passado pelo menos seis

semanas no pantanal, a maior parte do tempo acompanhando projetos de pesquisa sobre

a espécie. Na San Francisco, tive a oportunidade também de algumas saídas nos

chamados “safáris noturnos”, e apesar da grande quantidade de animais nativos, não

havia visto nenhuma onça. Em todo o período de pesquisa de campo na região, com

duração aproximada de cinco meses, observei (e filmei) onças em apenas duas

oportunidades, nesses passeios turísticos noturnos. Nos dois eventos (aparentemente

com a mesma onça) o animal faz o mesmo movimento: se afasta lentamente dos olhares

humanos, atravessando um canal de irrigação de arroz em direção à mata na outra

margem. No segundo caso, segundos depois que desliguei a câmera, ele esturra,

produzindo o som característico da sua espécie, não registrado.

Mesmo os biólogos que trabalham com a espécie, pelo que pude perceber, raramente

vêem seu objeto de estudo, e sua presença é documentada no campo na forma de

vestígios, traços deixados pela sua passagem, como animais abatidos, rastros, além das

fotografias feitas com as armadilhas fotográficas. A presença da onça é, em geral,

documentada no campo sob a forma de vestígios, de traços deixados pela sua passagem,

como animais abatidos, pegadas, além das fotos captadas por meio das armadilhas

fotográficas. Na primeira viagem de campo que fiz à fazenda, em 2006, para conhecer

o Projeto Gadonça, Henrique, que era o biólogo de campo naquela ocasião, afirmou:“A

maior parte do tempo a gente trabalha com rastros, vestígios, parece que estamos

perseguindo um fantasma”.

Também naquela oportunidade, o biólogo me mostrou algumas fotografias

resultantes da pesquisa realizada até então, que incluíam imagens de onças

surpreendidas quando passavam na frente das armadilhas fotográficas, tiradas com

flash, além de uma série de fotos de animais mortos; corpos ensangüentados e semi

devorados de presas das onças. Essas fotos eram chocantes para um “leigo” como eu,

mas os olhos treinados do pesquisador enxergavam nelas somente as evidências e os

sinais deixados pelo predador: a forma como abateu a presa, o tipo de local onde a

consumiu, entre outras coisas. Perguntado sobre esse aspecto de “médico legista”

285

daquele que realiza o trabalho de campo, o biólogo brincou, na época, dizendo que

quem quer estudar onças tem que se acostumar com bicho morto.

Eu ia ter mesmo afinal que me acostumar com as carniças, que acabaram sendo o

mote do primeiro capítulo. Durante o período todo de campo, fiz também o meu próprio

inventário de vestígios, acumulando fotos de animais mortos ebatidas de onça em

algumas ocasiões [ANEXO 7]. Numa dessas oportunidades, em 2008, anotei:

Caminho da Fazenda São Bento até o Buraco das Piranhas No caminho,

cruzamos com o pessoal da fazenda, e Seu Máximo comenta com Henrique

que um caminhoneiro havia visto um ‘arrastador’ na estrada. Quando

chegamos ao local, encontramos rastros frescos. Henrique identifica como

sendo de duas onças, e acha que provavelmente se trata de uma fêmea com

filhote. Um pouco mais à frente, encontramos marcas de um animal arrastado

ao longo de pelo menos uns cinqüenta metros. O barro está amassado e há

rastros da onça ao longo do trecho do arrastador. Em algumas partes, as

pegadas entram para o mato na beira da estrada, onde há um corixo, e há

marcas ainda molhadas.

A relação possível com a onça é quase sempre indicial, indireta: Os rastros de

animais mortos deixados por ela são também o principal tema da relação entre

vaqueiros e os biólogos. Também a escrita desta tese, afinal, é feita com diversos tipos

de vestígios, resultantes da minha própria experiência com um objeto em fuga, um

fantasma.

De acordo com Latour (2000), uma declaração pode ser verdadeira ou falsa,

enquanto uma proposição pode ser articulada ou inarticulada, sendo a primeira forma

ligada à idéia de comprovação científica e a segunda à prática da ciência. O contraste

pode ser aproximado da distinção feita por Isabelle Stengers entre ciências de campo e

ciências de laboratório emA Invenção das ciências modernas (1993[2002]). O livro

narra o surgimento das ciências modernas conectado a esse dispositivo singular que é o

laboratório, um dispositivo de definição daquilo que é e daquilo que não é científico,

distinção entre verdade e ficção. Enquanto o laboratório é formulado a partir de um

modelo jurídico, o campo tem como propriedade intrínseca a relação indicial dos

cientistas com seus objetos de estudo, onde cada testemunha é percebida como tendo

uma história singular e local.

286

De acordo com Stengers, a ciência moderna nasce da “descoberta de que o poder da

ficção, a invenção do laboratório, pode ser voltado contra o arbitrário da ficção (...).

[Pode] remeter ao arbitrário da ficção tudo o que não é ciência”( :154). As ciências de

laboratório são caracterizadas a partir daí como modelos teórico-experimentais. Em

contraste, ela afirma que “a incerteza irredutível é a marcadas ciências de campo”. (:

174). O experimento de laboratório, presenciado por especialistas é substituído pelo

caráter contingente, narrativo de práticas que envolvem uma relação diferente com o

objeto de estudo:

“Encontra-se, na prática de “campo” (...) tantos instrumentos sofisticados

quanto num laboratório experimental, a mesma invenção que concerne ao

significado de uma medida. Porém, não encontram dispositivos

experimentais no sentido galineano, que conferem ao cientista o poder de

pôr em cena sua própria questão, ou seja, de depurar um fenômeno e de lhe

conferir o poder de depor a esse respeito; os instrumentos do naturalista,

ou do cientista de campo, abrem-lhe a possibilidade de reunir os indícios

que o orientarão na tentativa de reconstruir uma situação concreta, de

identificar relações, não de representar um fenômeno como uma função

munida de suas variáveis independentes”. (: 169)

Mais do que apenas demarcar fronteiras entre práticas laboratoriais e práticas de

campo83, entretanto, Stengers se refere neste caso a uma concepção de ciência orientada

pelos princípios que o campo instaura. Utiliza como referência, nesse sentido, a crítica

de Stephen Jay Gould ao modelo teórico-experimental dos chamados neo-darwinianos,

os quais, de acordo com ela, conferem um caráter finalista à evolução, encontrando na

seleção natural a razão de ser de qualquer característica dos seres vivos. Gould é

designado por ela como um “narrador darwiniano”, alguém que pensa a evolução sem

a pressupor nela uma noção de finalidade, e cuja crítica ao determinismo biológico “não

se faz em nome de outro paradigma, mas constitui antes o adeus da ciência da evolução

à ambição de julgar segundo um paradigma” (: 169).

As práticas dos cientistas de campo e naturalistas são descritas, neste sentido, em

termos de reunir indícios, identificar relações, acompanhar, ao invés de provar

cientificamente:

83Cientistas que trabalham no campo podem se pautar apenas por princípios teóricos-experimentais em suas pesquisas, enquanto pesquisas de laboratório podem se basear nos parâmetros narrativos do campo.

287

“[O] autor, aqui, sabe que o campo não fará dele um juiz. Nenhum campo

vale por todos, nenhum pode dar crédito aos ‘fatos’ no sentido experimental

do termo. O que um campo pode afirmar, outro pode contradizer sem que

por isso um dos testemunhos seja falso(...). “Os cientistas nesse caso não

são juízes e sim investigadores (...). A dinâmica do ‘fazer existir’ e da prova

não são mais assunto de poder, e sim questão de processos que se trata de

acompanhar”. (: 171)

A autora estabelece, portanto, uma distinção entre aquilo que os cientistas fazem no

laboratório (comprovar, simular) e aquilo que fazem no campo (acompanhar, narrar).

Além da distinção entre ciências de campo e ciências de laboratório, no entanto, ela

especifica nas práticas do campo uma terceira situação, na qual podemos incluir

simultaneamente a primatologia, a antropologia e os science studies:

“Completamente outra, entretanto, é a situação do autor científico quando

aqueles com quem lida (...) são suscetíveis de “se interessar” pelas

questões que lhes são propostas, de interpretar de seu próprio ponto de

vista o sentido do dispositivo que os examina com atenção, ou ainda de

passar a existir num modo que integra ativamente o problema”. (1993:

177)

A diferença estabelecida por Bruno Latour (2000) entre o modelo icônico clássico e

um segundo modelo, que podemos chamar de indicial (orientado pela imagem da trilha,

conforme visto anteriormente), se refere ao papel conferido aos atores em cada um

desses modelos:

“Enquanto uma declaração implica na existência de humanos falantes

cercados de coisas mudas, uma proposição implica em que nós somos

levados a falar de determinada forma por aquilo de que falamos”. (2000:

374)

Este capítulo final, em que procuro formular uma rede onça, é dividido em duas

partes, e propõe uma discussão sobre diferentes métodos de pesquisa. Na primeira parte,

apresento as entrevistas que fiz durante o período de campo utilizando um questionário

fixo. As entrevistas produziram dois tipos de material: fichas que preenchi na hora

resumindo as respostas dos entrevistados e transcrições dos registros em áudio.

288

A partir das primeiras, elaborei uma série de análises quantitativas, usando

ferramentas estatísticas para comparar as respostas, produzindo tabelas, gráficos e

números. As segundas foram colocadas em série e usadas para formular uma espécie de

classificação pantaneira, uma compilação do vocabulário para descrever as onças. Tanto

as narrativas quanto os quantitativos são apresentados como declarações sobre o

comportamento animal (no sentido latouriano) e esse experimento do questionário pode

ser definido como aplicação de um modelo teórico-experimental (nos termos de

Stengers). Na discussão final desta primeira parte procuro contrapor este modelo a uma

interpretação simbólica ou cultural das mesmas declarações, definindo o contraste entre

as duas possibilidades como uma espécie de double-bind conceitual.

Na segunda seção, diversos registros narrativos e materiais iconográficos sobre as

onças são conectados aos temas discutidos nos capítulos anteriores, tomando como

ponto de partida a noção de proposição formulada por Latour e o caráter narrativo e

indicial das ciências de campo apontado por Stengers (2003). Utilizando como guia o

Reassembling the Social (2005) Latour, obra que funcionou de modo paradigmático,

para mim, na construção da perspectiva e da argumentação adotada neste trabalho, a

parte final do capítulo é o esboço de uma descrição associativa da onça pantaneira, que

procura definir os contornos darede sociotécnica traçada ao longo da tese.

6.1. Rascunho para um artigo científico

Introdução

Procuro analisar, nesta seção, o conjunto de entrevistas realizadas por mim durante o

período de trabalho de campo, registradas em áudio e, ocasionalmente, em vídeo. Elas

utilizavam um questionário composto de perguntas abertas, mas não ficavam restritas a

essas questões iniciais, que serviram de roteiro geral para as conversas. O formato

questionário foi inspirado principalmente em estudos provenientes dos campos da

Biologia da Conservação e da Etnobiologia.

O questionário estava incluído na proposta apresentada por mim para os biólogos, e

posteriormente para gerentes e proprietários das fazendas onde fiz trabalho de campo, e

foi uma peça importante de negociação para a estadia nesses locais ao longo de 2008.

289

Depois que retornei da última viagem, o material gravado foi transcrito, mas somente a

parte narrativa me interessava naquele momento. Quando passei a usar o questionário

nas entrevistas, em março de 2008, anotei:

O papel do questionário era servir como uma explicação para o que eu estava

fazendo ali, tanto para os biólogos quando para os fazendeiros. Os moradores

locais são muito importantes para as estratégias de conservação da onça na

região, e a relação deles com a onça é o horizonte comum entre a minha

pesquisa e a dos biólogos. Como método de pesquisa, não gosto dos

questionários. Acho o resultado de uma pesquisa feita somente com entrevistas

bastante duvidoso, porque as perguntas muitas vezes condicionam as respostas.

Apesar disso, o trabalho com as entrevistas tem sido bastante produtivo, já que

dá credibilidade à minha pesquisa, me faz conhecer muitas pessoas das

fazendas e cria um ambiente favorável para novas conversas. Por outro lado, a

convivência com os entrevistados no dia-a-dia me ajuda a tentar entender

melhor as motivações daquilo que falaram quando perguntados diretamente, e

também daquilo que não falaram.

As fichas que iam sendo preenchidas por mim ao longo das entrevistas, material que

continha anotações feitas no calor da hora, com base no roteiro de perguntas, foi

deixado de lado até o início da redação da tese, quando resolvi, afinal, utilizá-lo. O que

essas fichas contêm são, basicamente, dados quantitativos. As questões fixas envolvem

diversos temas ligados à conservação das onças, identificados a partir da minha

experiência de campo anterior com cientistas e conservacionistas (relatada brevemente

na primeira parte da tese) e também a partir da literatura pesquisada a respeito do tema

(Banducci 2007; Conforti e Azevedo 2003; Lourival 1997; entre outros).

De um ponto de vista etnográfico, eram as perguntas que eu levava prontas comigo,

que eu levava “de casa”. Eu ainda não conhecia a maior parte das pessoas com as quais

iria trabalhar ao preparar o questionário em 2007, durante a negociação fracassada com

uma das ONGs atuantes na região, e tendo passado apenas duas semanas na região

durante o ano anterior. Naquele momento, eu tinha, portanto, muito mais dados sobre os

cientistas, e sobre as práticas conservacionistas, do que sobre as fazendas e seus

moradores.

O papel do questionário, além da utilização como chave para a minha entrada no

campo, era abordar um assunto de interesse comum entre a ecologia e a antropologia: os

290

modos de classificação e de percepção dos moradores locais em relação ao ambiente

natural e à fauna regionais, em particular às onças. A premissa que utilizei para a análise

do material é de que a relação entre humanos e onças, como objeto de estudos, está

situada em uma zona interdisciplinar, uma zona de fronteira entre as ciências humanas e

as ciências da natureza. O que a análise do material demonstra, no entanto, é que relação

entre cultura e ambiente – na divisão acadêmica entre as ciências humanas e ciências

naturais – é muitas vezes uma escolha entre cultura ou ambiente, o que inviabiliza

qualquer efetivo diálogo interdisciplinar.

Apresento em seguida duas abordagens a respeito das entrevistas. A primeira delas,

predominantemente quantitativa, é uma análise comparativa das respostas contidas nas

fichas. O formato é intencionalmente inspirado em artigos científicos (Op.Cit) que

investigam aspectos da cultura local relacionados à vida selvagem, modelos textuais

provenientes das áreas da biologia da conservação e da etnobiologia. O objetivo do

questionário era investigar as formas utilizadas pelos moradores das fazendas

pantaneiras para classificarem e interagirem com as onças e com os outros animais que

os cercam. E ele talvez pudesse ser mesmo definido, nesses termos, como um

experimento etnobiológico. Na discussão final deste experimento, as mesmas questões

são abordadas a partir dos registros de áudio das entrevistas, resultantes de transcrições.

Tratando-se, nesse caso, de testemunhos pessoais, relatos de encontros e descrições do

comportamento das onças.

Área de Estudo e Entrevistas

O trabalho de campo foi realizado em fazendas localizadas na região da bacia do Rio

Miranda, no Pantanal do Mato Grosso do Sul, e dividido em duas áreas diferentes.

Utilizo como referência para classificá-las a divisão da região em dez pantanais

distintos, com base nas características ecológicas de cada região (Adámoli 1982). A

partir dessa classificação, a primeira área (área 1) está situada na região do Pantanal do

Miranda, com influência do Pantanal do Aquidauana, enquanto a segunda área (área

2), apesar de se estender até as margens do Rio Miranda, tem sua maior parte situada na

zona do Pantanal do Abobral. [Mapa].

Foram entrevistados moradores de 11 fazendas diferentes, sendo todas elas

dedicadas à criação de gado de corte. Além da pecuária, as outras atividades

291

desenvolvidas nessas propriedades foram o ecoturismo (em três delas) e o plantio de

arroz irrigado (em apenas uma). A área somada de todas as fazendas totalizou 162 mil

hectares, e a quantidade total do rebanho bovino nelas girava em torno de 70 mil

cabeças na época da pesquisa.

Um total de 65 entrevistas com moradores da região de estudo foi registrado ao

longo do trabalho de campo, em 2008, sendo que todas elas foram registradas em

gravador portátil na ocasião e posteriormente transcritas. No que se refere ao perfil dos

entrevistados, foram registradas as seguintes ocupações: proprietários rurais (5),

capatazes (11), peões de gado (17), empreiteiros (7), tratoristas (5), cozinheiras (4),

faxineiras (3), profissionais de turismo (6), administradores (2), guias de campo (2), e

caçadores (2). Um total de 40 entrevistados (62% do total) trabalhava diretamente com a

pecuária, incluindo capatazes, peões (campeiros, salgadores e praieiros), empreiteiros

(responsáveis por cercas e serviços gerais) e tratoristas.

Metodologia

O primeiro objetivo do questionário era investigar as terminologias nativas e a

classificação das onças no vocabulário regional, assim como aspectos da ecologia e do

comportamento dois animais observados pelos entrevistados. A partir da compilação

das designações das onças, procurei formular um esboço para uma classificação

pantaneira. O questionário utilizava em seguida algumas hipóteses ecológicas sobre o

ambiente do pantanal e o conflito entre fazendeiros e onças na região, a partir das quais

foram formuladas na entrevistas. As perguntas incluem imagens utilizadas nas

estratégias de conservação das onças-pintadas, entre elas – as da espécie bandeira, da

espécie chave e da espécie guarda-chuva (Silveira 2004; Morato et al 2006) .

Em termos ecológicos, a interação entre as onças e as comunidades rurais da região

pantaneira incluiria potencialmente relações de conflito e a predação (Azevedo e

Murray 2003). A relação de competição pode se referir tanto à predação do gado por

parte das onças como também à caça de animais silvestres por parte dos humanos

(Silveira et al 2008). As relações de predação, por sua vez, incluiriam a eliminação das

onças, percebidas ou como uma ameaça ao gado ou à própria vida humana, assim como

a relação inversa, isto é, casos de ataques onças a pessoas (Knight 2001).

292

A partir da formulação genérica do conflito por Knight (2001), estabeleci como

hipóteses de trabalho que as onças poderiam ser percebidas: como causadoras de

prejuízo (espécies “nocivas” ou “daninhas”), como competidoras (em relação ao gado

ou em relação às presas silvestres) e também como uma ameaça direta para os

moradores locais. As perguntas feitas nas entrevistas abordavam diretamente esses

temas, assim como os conceitos da ameaça de extinção e do animal problema,

provenientes do léxico conservacionista.

O questionário foi dividido em seis temas: (1) relações com animais, (2)

comportamento das onças, (3) tradição regional de caça, (4) predação do gado, (5)

ataques ao ser humano e, finalmente, uma (6) a classificação pantaneira das onças. Cada

um desses temas inclui um conjunto de questões, apresentadas a seguir:

1. Relações com a fauna

1.1. Qual é o animal ou bicho que melhor representa o pantanal?(Para colocar numa

capa de livro, por exemplo).

1.2. A quantidade dos seguintes bichos está diminuindo, aumentado, ou continua

igual? (a) Capivara; (b) jacaré, (c) porco, (d) onça.

1.3. Algum animal causa prejuízo à fazenda? (espécies daninhas)

1.4. Já observou alguma onça no ambiente natural?

1.5. As onças estão ameaçadas na região?

1.6. Qual a importância da onça para o Pantanal?

Resultados

1.1. O primeiro tema das entrevistas era a relação dos moradores das fazendas com a

fauna regional, de forma geral. Inicialmente, os entrevistados eram solicitados a

escolher um animal para representar o Pantanal na capa de um livro. Foram citados os

seguintes animais: onça, tuiuiú, cervo-do-pantanal, tamanduá-bandeira, capivara,

lobo-guará, jacaré-do-pantanal, periquito-rico, ariranha, carcará, e cavalo pantaneiro.

A inclusão deste último se deve em parte ao uso local dos termos “animal” e “bicho”;

sendo o primeiro reservado pelos pantaneiros aos animais de criação e o segundo aos

293

animais silvestres (Banducci 2007). Os três mais citados foram: a onça, em 52% das

entrevistas, o tuiuiú, em 13%, e o cervo, em 6%.

1.2. A segunda questão tinha o formato de múltipla escolha. Eu mencionava 4

animais, e perguntava se a quantidade deles na área da fazenda estava aumentando,

diminuindo, ou continuava a mesma. O aumento na quantidade de jacarés foi

mencionado por 62% dos entrevistados, e o de capivaras por 60%, enquanto a

quantidade de porcos-do-mato foi considerada estável em 65% das entrevistas.

Praticamente a metade dos entrevistados (49%) apontou um aumento na quantidade de

onças, enquanto 42% consideraram a população delas estável.

1.3. A terceira questão era se algum animal causava prejuízo aos moradores da

fazenda. Os animais citados como prejudiciais à criação de gado foram: onça, cobra

(boca-de-sapo e cascavel), morcego, mosca, porco, e tatu, os dois últimos por fazerem

buracos no campo, perigosos para o trabalho a cavalo; em relação à lavoura de arroz,

foram citados: capivara, rato e paturi; e, finalmente, em relação aos pomares das casas:

papagaio e periquito; o jacaré foi apontado como problema para a pesca e também para

pecuária, por ficar nos reservatórios de água feitos para o gado. A onça foi a mais

citada, por 38% dos entrevistados, seguida pela capivara (18%) e pela cobra (17%).

1.4 A grande maioria dos entrevistados (92%) afirmou ter visto pelo menos uma vez

na vida uma onça no ambiente selvagem. O resultado foi diretamente influenciado,

entretanto, pela presença do turismo na fazenda. Quanto à freqüência dos encontros

25

12 11

5 4

onça capivara cobra papagaios jacaré

38% 18% 17% 8% 6%

animais que causam prejuízocitações

294

entre vaqueiros e onças no campo, excluindo portanto situações de captura e turismo, o

tempo médio citado em relação ao último avistamento foi maior do que três anos.

1.5. Num total de 41 respostas, 23 entrevistados (56%) consideraram que a onça não

está ameaçada na região, enquanto 18 (46%) afirmaram que está.

1.6. A importância da onça foi conectada ao turismo em 8 entrevistas, sendo que em

uma delas foi feita a ressalva de que “pro pantaneiro não é de proveito”. Outros 8

entrevistados mencionaram a “beleza” do animal. O equilíbrio na cadeia alimentar foi

citado em 6 ocasiões. Em 5, a onça foi considerada um “símbolo” para a região, e o

mesmo número de entrevistados (5) citou a ‘herança para os filhos’ ou para as ‘futuras

gerações’, como motivo para a preservação da espécie. Em 3 entrevistas, a resposta foi

“nenhuma”[importância], e em 2 ocasiões os entrevistados consideraram as onças em

geral propriamente nocivas dizendo que “era melhor se ela [a onça] não existisse” e que

“se pudesse matava tudo”.

2. Ecologia das onças

2.1. Quais são os animais que a(s) onça(s) atacam para comer?

2.2. Existe algum animal que a onça não ataca?

2.3. As espécies de onças disputam entre si o território e as presas?

Resultados

2.1. No que se refere aos hábitos alimentares, os entrevistados listavam livremente

os animais dos quais a onça se alimenta. Um total de 48 respostas foi obtido para a

onça-pintada, sendo que 17 entrevistados (26%) não souberam ou não quiseram

responder a questão. Em 22 entrevistas, foram citadas presas da onça-parda. No caso da

onça-pintada, a análise levou em conta o número de citações e também os animais

citados em primeiro lugar (como presa principal), enquanto no caso da parda, devido ao

menor número de dados, foi usado somente o número total de citações. Os animais

citados como presas da onça-pintada (o número de citações se acha entre parênteses)

foram os seguintes: Capivara (33), gado (32), jacaré (24), cervo (16), porco (8),

queixada (6), veado (5) cateto (3), ema (2), cachorro (2) tamanduá (2), tatu (1), cavalo

(1) e anta (1).

295

Tabela 2: Hábitos alimentares da onça-pintada (Panthera onca)

PRESAS DA ONÇA-PINTADA

Citação Nome científico Nº cit. Em 1º

CAPIVARA Hydrochaeris hydrochaeris 33 18

GADO Bos taurus 32 16

JACARÉ Caiman crocodilus 24 6

CERVO Blastocerus dichotomus 16 1

PORCO Sus scrofa ou Tayassu sp. 8 1

QUEIXADA Tayassu pecari 6 1

VEADO Mazama sp. 5 1

CATETO Tayassu tajacu 3

EMA Rhea americana 2

CACHORRO Canis familiaris 2

TAMANDUÁ Myrmecophaga tridactyla 2

CAVALO Equus caballus 2

ANTA Tapirus terrestris 1

TATU Dasypus sp. e outras 1

Para fazer uma análise estatística das principais presas, incluí as citações referentes

ao queixada, ao cateto e ao porco em uma só categoria: porcos. Fiz o mesmo com o

cervo e o veado, incluídos na categoria cervídeos. O gráfico seguinte mostra as cinco

categorias mais citadas em relação ao total de respostas válidas (48) e o número de

vezes em que apareceram em primeiro lugar nessas respostas. Apesar da coincidência

entre as cinco categorias mais citadas nas áreas 1 e 2, o número de citações para cada

uma variou, o que alterou de forma significativa a ordem delas em termos de

importância. Na área 1, a capivara foi a mais citada (84%), seguida pelo jacaré (64%), e

o gado (52%); já na área 2, o gado foi o mais citado (83%), seguido pela capivara

(57%), e pelos os porcos (52%). A causa mais evidente dessa diferença é a grande

concentração das entrevistas (80%) em uma única fazenda da área 1, sendo que nela os

casos de predação do gado são raros e uma pesquisa científica (conhecida pela maioria

dos entrevistados) apontou capivaras e jacarés como as principais presas silvestres da

onça-pintada.

296

As categorias utilizadas para as presas das onças-pardas (novamente com o número

de citações entre parênteses) incluíram entre os animais domésticos: bezerro (11),

69% 67%

50%44%

35%42%

33%

15%

4% 4%

CAPIVARA GADO JACARÉ CERVÍDEOS PORCOS

PRESAS DA ONÇA-PINTADA (TOTAL)

Nº CIT EM 1º

84%

64%52% 48%

20%

60%

24%12%

4%

CAPIVARA JACARÉ GADO CERVÍDEOS PORCOS

ÁREA 1Nº CIT EM 1º

83%

57% 52%39% 35%

61%

22%9% 4% 4%

GADO CAPIVARA PORCOS CERVÍDEOS JACARÉ

ÁREA 2Nº CIT. EM 1º

297

carneiro (9), cabra (1), potro (4) e galinha (1); e entre os animais selvagens: ema (7),

tatu (4), capivara (2), veado (2) e passarinho (1). Para análise estatística, incluí carneiros

e cabras na categoria “caprinos”.

No que se refere à divisão entre animais domésticos e selvagens, as citações

referentes às 5 principais presas da pintada incluem apenas uma categoria doméstica

(gado), enquanto as citações referentes às 5 principais presas da parda incluem somente

duas categorias de animais selvagens (ema e tatu). Além disso, dois termos utilizados

neste último caso designam classes de idade específicas para as espécies domésticas

(bezerro, potro). Essas diferenças vão reaparecer no tema 5 do questionário, específico

sobre a predação do rebanho bovino pelas onças. De forma geral, estudos científicos

feitos na região apontam uma diferença no tamanho dos animais predados pelas duas

espécies e sugerem uma distinção nos tipos de hábitat usados por cada uma (Azevedo &

Murray 2007; Silveira 2004), o que é confirmado pelas entrevistas do presente estudo.

Os gráficos abaixo mostram uma comparação entre as classe de presas citadas para a

onça-pintada e para a onça-parda:

CAPIVARA24%

GADO24%

JACARÉ18%

PORCOS12%

CERVOS15%

OUTROS7%

PRESAS DA ONÇA-PINTADA5 ANIMAIS MAIS CITADOS

Nº CIT = 132

298

2.2. Os animais citados como evitados pela onça foram: o búfalo, o gado tucura

(bovino pantaneiro), a anta e o [tamanduá] bandeira.

2.3. De um total de 31 respostas para a questão, 20 entrevistados (65%) afirmaram

que a onça-parda vence a onça-pintada em confronto direto, o que indicaria uma relação

[inesperada] de dominância da segunda em relação à primeira.

Entre as 20 declarações desse tipo, 5 foram afirmações atribuídas a terceiros,

antecedidas pelas expressões “diz que...”, ou “o povo antigo fala que”. Apenas um

desses 5 entrevistados, no entanto, disse não acreditar no fato quando foi indagado a

respeito. Afirmações dizendo o contrário – a pintada como vencedora do confronto –

foram feitas por 7 dos entrevistados que responderam à questão (23%).

Outros 4 entrevistados disseram que as duas onças evitam-se mutuamente. A relação

de cada onça com o ser humano foi diferenciada a partir de uma série de parâmetros: A

parda foi descrita como habitante das mesmas áreas onde vivem os moradores das

fazendas (cerrado, parte alta), enquanto os territórios que foram citados para a pintada

(sujo, pantanal, brejo, beira de rio) foram em geral locais inabitados e selvagens.

Em 3 entrevistas foi mencionado ainda que a parda “cuida da gente”, “acompanha

no campo” e protege a pessoa”.

BEZERRO26%

CAPRINOS24%EMA

17%

TATU9%

POTRO10%

OUTROS14%

PRESAS DA ONÇA-PARDA 5 MAIS CITADOS

299

3. Predação do gado

3.1. Quais são as principais causas de mortalidade do gado na fazenda?

3.2. Existem onças que se alimentam só de gado?

3.3. Existe algum método para prevenir os ataques e o prejuízo?

3.4. Quantidade de gado abatido por onças na fazenda (apenas para proprietários e

capatazes)

Resultados

O tema da predação foi abordado apenas com funcionários de fazendas que

trabalhavam diretamente com a pecuária, incluindo capatazes, retireiros, peões,

empreiteiros e tratoristas, num total de quarenta entrevistas. Os dois últimos grupos

correspondem, somados, a 7 entrevistados, e não podem ser considerados propriamente

“vaqueiros” especializados, mas são pessoas que trabalham no campo e cujo trabalho é

fundamental para o funcionamento da unidade produtiva da fazenda.

3.1. Nessas 40 entrevistas, as categorias usadas como causas para a mortalidade do

gado foram: “onça”, “cobra”, “erva” (plantas tóxicas), “doença” e “seca”. A onça

foi citada por 69% dos entrevistados (27), sendo mencionada em primeiro lugar por

62% deles (24). A segunda de mortalidade causa mais citada foi a cobra, em 44% das

entrevistas, sendo 38% das vezes como primeira (15). Nenhuma outra categoria foi

mencionada como causa principal, sendo que a erva foi citada em 5 oportunidades, a

seca em 4, e a doença em 3.

3.2. Em relação ao ataque das onças ao gado, uma questão discutida no campo do

manejo da vida selvagem é a individualização do chamado animal problema. Entre os

40 entrevistados, 7 negaram a existência de onças que usam exclusivamente o rebanho

doméstico (18%), enquanto 11 não quiseram ou não souberam responder à questão

(28%). Os 22 restantes (55%) consideraram que determinadas onças se alimentam

exclusivamente do gado, classificando-as com os termos: “matadeira”, “comedeira de

gado”, “comedeira de carneiro” (parda), e “[onça] que vicia no gado”.

Essa relação de proximidade e distância também aparece na distinção entre as presas

das onças, sendo que as presas citadas para a pintada incluíram principalmente o gado

300

solto no campo, enquanto a parda foi descrita como responsável pelos ataques à criação

de carneiros e de animais que vivem nos quintais das casas. Muitas vezes esses são

animais que pertencem aos moradores e não à ‘Fazenda’, como é o caso em geral do

gado. Isso fez com que a parda fosse qualificada de “sem vergonha”, “abusada” e

“covarde”, entre outros adjetivos negativos.

No trecho abaixo, o morador de uma fazendarelata os ataques aos seus carneiros:

A parda tem mais mas é mais difícil ver, porque ela é velhaca. (...) Ela tá

pegando mais é meus carneiro, aqui, e os carneiro da fazenda. Agora,

deixou solto ela pega.

E: Então está dando mais prejuízo que a pintada...

Ah, ela tá... pra mim ela já me matou sete carneiros. E bem dentro do retiro

aqui, ó, bem nesse quintalzinho aí ela matou. (...) E o pior é que você nem

vê o barulho... o bicho é desgramado, Já comeu sete carneiro. Comeu não,

ela mata, mas não conseguiu tirar lá de dentro. (...) Uns dois ela comeu.

(E08/FSF 2008)

3.3. Dentro do mesmo universo de 40 entrevistas, 5 (13%) consideraram que não há

solução para prevenir os ataques da onça ao rebanho. Nas entrevistas restantes, as

formas de prevenção mencionadas foram: manejo do gado (14), preservação da fauna

local (9), eliminação da onça (9), remoção da onça (6), investimento em turismo (4),

limpeza do campo (2), e criação de reservas (2). No geral, o manejo da onça (através de

remoção ou eliminação) foi o método mais citado, em 15 casos, ou 38% das entrevistas,

enquanto o segundo método foi o manejo do rebanho (através do sistema rotativo),

citado em 14 casos, ou 35% das entrevistas. Outras causas foram citadas em 10

ocasiões, ou em 25% das entrevistas.

4. Ataques ao ser humano

4.1. A onça é uma ameaça para o ser humano?

4.2. Uma onça pode atacar uma pessoa em quais situações?

4.3. Conhece algum caso de ataque? Qual?

Resultados

301

4.1. Nas respostas à primeira questão, a maioria dos entrevistados (42) não

considerou a onça como uma ameaça à vida humana, o que corresponde a 65% do total

de entrevistas. Em 21 entrevistas (32%) ela foi apontada como ameaça, enquanto 2

entrevistados não souberam ou não quiseram responder à questão.

4.2. As situações mencionadas como perigosas para um encontro foram: quando a

onça está acuada por cães, citada 19 vezes; quando ela está se alimentando (“na

carniça”), citada 13 vezes; e quando está com filhotes (“parida”, ou “de cria”), citada 12

vezes. Os três casos foram considerados situações de defesa. Nos casos em que a onça

foi considerada uma ameaça, foi mencionada a situação de uma “onça que deu carreira

em peão” e também da “onça que perdeu o medo de gente” por causa do turismo, o eu

foi apontado um risco para trabalhadores.

4.3. O caso de ataque de onça com o maior número de referências na pesquisa foi o

de um funcionário do governo que trabalhava com prevenção da malária. Esse foi o

caso mais citado nas entrevistas, por 7 entrevistados, sendo que todos eles afirmaram se

tratar de um ataque de onça-pintada:

No tempo que o... Sucam, que eles fala, que é malária, né... ele andava de

bicicleta, tirando sangue... aí, essa história que os mais antigo conta – eu

conheço o lugar, lá – é que a onça pegou o cara. (...) Inclusive, a turma

chama: Morro do Malária. (...) Ele vinha vindo, né, na estrada, carreteiro

antigo, né... aí ela pegou ele e arrastou pra cima lá. A turma (...) só achou

pedaço do calçado, só. (E11. FSF, 2008)

(...)

Aqui no Pantanal, nunca ouvi falar que já pegou uma pessoa, mas teve uma

história que contaram, não sei, isso aí não sei se é verdade... lá pro lado do

Nabileque, naquele fundo lá do cafezal – tem um cafezal aqui pra morraria

ali. Diz que pra lá pegou um ‘malária’ – andava de casa em casa, assim,

vendo esse bicho, o barbeiro, né... Aí diz que ele vinha (...), aí ele entrou

num capãozinho, assim, aí e... a onça tava por lá, aí pegou ele. Aí, depois

de passado uns quatro dias, por aí, acharam só a caveira dele já. A onça já

tinha comido tudo, já. Assim a turma conta, né, eu não vi. (E2 FSB 2008)

302

Apenas outros dois casos apareceram mais de uma vez nas entrevistas. O primeiro

foi um ataque ocorrido durante a captura de uma onça para um projeto científico (3

citações) na região, em que um peão da fazenda, que ajudava os pesquisadores, ficou

gravemente ferido (Dois entrevistados afirmaram que a onça foi morta no episódio, e

um não soube responder a essa questão).

O segundo, mencionado também em 3 entrevistas, foi o caso de um pescador

atacado em Cáceres (MT), enquanto acampava na beira do Rio São Lourenço. Este

caso, ocorrido em junho 2008, foi o primeiro registrado oficialmente no Brasil pelo

CENAP (Ibama) de um ataque de onça-pintada a um ser humano envolvendo predação.

O acontecimento foi tema de uma série de matérias de jornal e televisão na época, e foi

mencionado em diversas outras ocasiões, além de referências em entrevistas durante o

período de campo posterior ao ocorrido. Outros dois eventos nesse mesmo período

foram associados pela imprensa local, o que gerou novas matérias com entrevistas de

especialistas na fauna silvestre da região.

Em nenhuma entrevista a parda foi apontada como perigosa para o ser humano,

sendo caracterizada também como onça “mansa” em 4 depoimentos; a pintada foi

considerada uma ameaça em 32% das entrevistas, e apontada como perigosa apenas em

determinadas situações (“com filhote” ou “na carniça”) em 51% delas.

5. Tradição de caça

5.1. Os moradores da fazenda costumam sair para caçar?

5.2. Quais são (ou eram) as caças preferidas do pantaneiro para alimentação?

5.3. Já matou alguma onça ou participou de caçada ou captura?

Resultados

No vocabulário pantaneiro, o termo “caça” designa não só a atividade, mas também

os animais de caça, ou a carne desses animais, e a utilização desta palavra na

formulação da pergunta causou alguns mal-entendidos nas primeiras entrevistas feitas

com os moradores da área de estudo. Perguntados a respeito da “caça”, os entrevistados

interpretavam que a pergunta era sobre a quantidade de animais da região e não sobre a

303

atividade de caça. Para corrigir isso no questionário, passei a especificar a atividade na

pergunta, formulando-a como ela está apresentada acima.

5.1. No presente trabalho, foram feitas entrevistas com moradores de um total de 11

fazendas. Em cada uma delas foi entrevistado ou o proprietário ou o capataz, ou um

‘retireiro’ [responsável por uma determinada área e um lote de gado] da propriedade, o

que foi utilizado como critério para inclusão das fazendas nesta questão.

De acordo com essas entrevistas, em 2 fazendas qualquer tipo de caça é proibido

atualmente. Na primeira delas, a atividade foi totalmente proibida a partir do

desenvolvimento do turismo na propriedade, no final da década de 90. Na segunda,

onde não há turismo, a caça foi proibida há pelo menos cinco anos, desde que a área foi

adquirida pelo atual proprietário.

Em outras seis fazendas é praticada atualmente apenas a caçada do porco-monteiro.

Esse tipo de caçada é permitido por lei e praticado em muitas fazendas da região, apenas

para o consumo interno. Existem restrições em termos legais apenas para o transporte de

carne de caça para fora das fazendas por razões sanitárias.

Em outras três propriedades (nas quais o porco-monteiro está ausente), foi citada

como ocasional a caça das outras duas espécies de porcos-do-mato da região, o

queixada e o cateto.

A caçada de onça como forma de controle da predação do rebanho foi reportada em

entrevistas referentes a quatro fazendas, sendo especificada em três casos como dirigida

à onça “que mexe muito com o gado”, “que fica só no gado”, ou “quando mexe muito

com gado”. No caso restante foi mencionado o abate ocasional quando algum dos

cachorros que acompanha os peões acua uma onça no campo.

5.2. Nas respostas sobre as espécies preferidas de caça pelos entrevistados, quatro

animais forma mencionados mais do que cinco vezes; são eles: porco-monteiro (39),

queixada (24), cateto (5) e capivara (4). As outras citações foram: cervo (3), jacaré (3),

veado (3), paca (2), anta (1) e jacutinga (1). A tabela a seguir mostra o número de

citações e o percentual correspondente ao total de respostas válidas para a questão (53).

304

Tabela 3: Animais de caça

Animais de caça

Citações Nome científico

Nº de

cit.

porco-monteiro Sus scrofa 39 74%

Queixada Tayassu pecari 24 45%

Cateto Tayassu tajacu 5 9%

Capivara Hydrochaeris hydrochaeris 4 8%

Cervo Blastocerus dichotomus 3

Jacaré Caiman crocodilus 3

Veado Mazama am. e outras 3

Paca Agouti paca 2

Anta Tapirus terrestris 1

Jacutinga Aburria jacutinga 1

Tatu Dasypus sp. E outras 1

Em todas as fazendas onde foram feitas as entrevistas havia fornecimento de carne

de boi para os empregados, sendo a carne de porco (doméstico ou selvagem) apontada

como substituta eventual na dieta dos moradores.

Houve também uma diferença significativa entre as áreas, sendo que, na área 1, o

porco-monteiro foi citado em ‘apenas’ 52% das entrevistas, enquanto, na área 2, foi

citada em 96% delas (ou seja, por quase todos os que responderam à questão). O

queixada também foi citado com muito mais freqüência na área 1 (em 48% das

entrevistas), mas as citações foram concentradas principalmente em fazendas onde a

caça atualmente é proibida, sendo portanto referentes ao passado, e não à realidade

atual.

Como teste para a hipótese da competição ecológica entre onças e humanos pelas

espécies silvestres, é possível relacionar os resultados desta questão com os da questão

sobre as presas da onça (questão 3.1). Uma comparação entre os cinco animais mais

citados como caça (para alimentação humana) e os cinco mais citados como presas da

onça-pintada mostra um grau bastante baixo de superposição entre as classes:

305

O resultado indica que uma relação de competição alimentar entre humanos e onças

por animais silvestres seria pouco significativa para a região. A competição estaria

concentrada nas espécies de porcos-do-mato que foram consideradas, de modo geral, o

quinto item mais importante para na dieta da onça-pintada, e sequer foram mencionados

para a onça-parda.

5.4. Um total de 27 entrevistados (42%) afirmaram já ter participado de caçadas de

onça, sendo em 5 desses casos referentes à capturas para pesquisa científica.

6. Classificação das onças

6.1. Quais são os tipos de onça que existem na fazenda?

6.2. Qual o tipo de lugar que cada uma delas prefere?

Resultados

6.1. A classificação resultante das entrevistas distingue basicamente os mesmos dois

tipos de onça, chamadas na maior parte das vezes de pintada e parda. Os termos

74%

45%

9% 8% 6%

49%

12% 3% 2% 3%

monteiro queixada cateto capivara cervo

ANIMAIS DE CAÇA

NºCIT EM 1º

69% 67%

50% 44%35%42%

33%

15%4% 4%

CAPIVARA GADO JACARÉ CERVÍDEOS PORCOS

PRESAS DA ONÇA-PINTADA (TOTAL)

Nº CIT EM 1º

306

apareceram em todas as 65 entrevistas, sendo os únicos tipos mencionados em 30 (46%)

delas. O termo suçuarana (mencionado também como “suçarana” ou “soçarana”) foi o

terceiro mais empregado, 18 vezes utilizado para definir uma das qualidades da parda

(11), para definir um terceiro tipo de onça (5), e como um sinônimo para parda (2).

Um total de 35 entrevistas (54%) distinguiu duas qualidades para a pintada e duas

para a parda, cada uma delas com características físicas específicas. As qualidades da

pintada citadas foram: a (1) ‘malha larga’ (ou ‘malha grande’), uma onça ‘maior’, ‘mais

comprida’, e ‘mais amarelada’; e a (2) ‘malha miúda’ (ou ‘malha pequena’), ‘menor’,

chamada também de ‘canguçu’ para designar a onça ‘cabeçuda’. As duas qualidades da

parda foram a (1) ‘parda’ ou ‘pardinha’, ‘menor’ e ‘mais clara’, de ‘cor palha’; e (2) a

“suçuarana” (variantes “suçarana” ou “suçorana”) ou ‘lombo preto’, uma onça ‘mais

escura’, ou ‘com uma listra preta no lombo’, e ‘maior’.

Neste caso, porém, a suçuarana (como utilizarei de forma genérica), pronunciada

também “suçarana” ou “soçarana”, foi definida como uma variedade da parda em 11

entrevistas, (sendo que outras 10 utilizaram o termo “lombo preto” no mesmo sentido),

enquanto apenas cinco entrevistados definiram-na como um terceiro tipo de onça.

Nas entrevistas compiladas para o presente trabalho, a jaguatirica (Felis pardalis)

foi incluída em três oportunidades como um tipo de onça (oncinha), o que aponta algo

semelhante, mas não desenvolvi o tema da família dos felinos. O termo guarani

jaguaretê foi citado também duas vezes como sinônimo para pintada.

A etnografia de Álvaro Banducci (2007), em etnografia realizada no pantanal da

Nhecolândia distingue três “qualidades” de onças:

“A onça, por exemplo, um tipo específico de ‘bicho’, possui três

qualidades: a pintada, a parda e a ‘socorana’. (...)‘Soçorana’ é uma onça

de menor porte que a pintada e de coloração escura, quase preta. Alguns

informantes a definem como sendo uma variedade da onça-parda”. (: 105)

O que o autor chama de ‘qualidade’ corresponde, no presente trabalho, ao que

classifiquei como tipos. Apesar de muitas vezes mencionarem “a onça” de forma

genérica, a maior parte dos entrevistados distinguiu tipos de onça, reservando o termo

qualidade para as diferentes “qualidades” da parda ou da pintada. Isso, contudo, não foi

uma regra, e o termo qualidade também foi aplicado no mesmo sentido daquele usado

por Banducci em algumas entrevistas. A distinção mencionada pelo autor entre a

‘pintada’, a ‘parda’ e a ‘soçorana’, como três onças diferentes, apareceu também no

307

presente trabalho, porém foi menos freqüente do que a utilização do termo (com as

variantes “suçarana” ou “suçuarana”) para definir uma variedade da parda.

Tabela 1: Esboço da classificação pantaneira

TIPOS QUALIDADES CARACTERÍSTICAS HABITAT PRESAS (5 PRINC.)

1 MALHA GRANDE (5) MAIOR (5) SUJO (2) CAPIVARA (33)

PINTADA MALHA LARGA (4) MAIS AMARELA PIRIZEIRO (1) GADO (32)

JAGUARETÊ (2) MALHA VERMELHA (1) RABO COMPRIDO BREJO (3) JACARÉ (24)

ALTA PANTANAL (2) CERVÍDEOS (21)

2 MALHA MIÚDA (5) MENOR (5) BEIRA RIO (1) PORCOS (17)

CANGUÇU (5) CABEÇA GRANDE (2) MATA (2)

MALHA PEQUENA (2) MAIS ESCURA REGIÃO SELVAGEM (1)

MALHA FINA (2) MAIS BRABA PARTE BAIXA

MALHA PRETA (1) TRONCUDA CAMPO SUJO

CORIXO

1 SUÇUARANA (11) MAIOR (7) CERRADO (2) BEZERRO (11)

PARDA LOMBO PRETO (10) LOMBO PRETO (7) CERRADÃO (2) CAPRINOS (10)

PARDÃO (1) MAIS BRABA (2) MORRO (2) EMA (7)

PATA RAJADA (2) MAIS ESCURA (6) SERRA (1) TATU (4)

2 PARDINHA (5) MENOR (7) PARTE ALTA POTRO (4)

LOMBO VERMELHO (1) PALHA (1) CAMPO LIMPO

PARDA MAIS CLARA (6) PERTO DAS CASAS (4)

AMARELA (1)

TIPOS PRESAS DOMÉSTICAS ATRIBUTOS RELAÇÃO COM HUMANOS

PEGA GADO GRANDE FEROZ CASOS DE ATAQUE

PINTADA COMEDEIRA DE GADO BRABA PERIGOSA

VICIA NO GADO PERIGOSA ENFRENTA CACHORRO

DANINHA TRAIÇOEIRA AMEAÇAS:

CORAJOSA PARIDA

ANDEJA NA CARNIÇA

PEGA BEZERRO NOVO VELHACA NÃO É UMA AMEAÇA

PARDA COME BICHO PEQUENO MEDROSA FOGE

COMEDEIRA DE CARNEIRO CURIOSA TEM MEDO DO HOMEM

GOSTA DE POTRILHO ABUSADA CUIDA DA GENTE

SEM VERGONHA PROTEGE A PESSOA

MANSA ACOMPANHA NO CAMPO

308

Discussão1: cromatismo

O código cromático foi amplamente utilizado pelos moradores da região na

nomeação das onças. Um exemplo é esta descrição feita pelo capataz de uma das

fazendas da área de estudo:

Aqui tem a onça parda– aquela onça amarela – e a pintada. Tem uma

parda que o pessoal fala suçuarana – uma parda maior – e a outra parda,

menor, que fala parda, normal. E a pintada tem uma malha larga e uma

malha miúda. É a mesma onça, só que elas têm diferença; uma é mais

malha larga e outras é mais malha miúda. E a malha miúda é mais preta e

mais branca. A outra, mais malha larga, é preta, mais amarelada, e branca.

Ela meio que faz o acompanhamento da cor do sol. Mas, se você falar isso

pro Fernando [biólogo], ele fala não, tudo é uma onça só. (risos)

(E15.2008)

Em relação à onça-pintada, a distinção entre as qualidades, neste outro registro, se

baseia no desenho das pintas de cada animal:

Da malha tem diferente. Tem uma que tem a malha pequena, miúda (a maia

que a gente fala é as pintas. Ela é mais escura. Agora, tem a da malha

grande, da malhona amarela, assim, grandona. Aquela dá grande a onça.

Dessa malha pequena é mais miúda. O tamanho é menor, mas a mão dela e

a cabeça são grandes. Ela é mais escura um pouco que a outra, que a

pintada grande. (E32. 2008)

O cromatismo e os padrões gráficos são os elementos centrais na designação dos

tipos e qualidades. O nome, neste caso, corresponde a uma espécie de descrição sucinta

do animal. Esse tipo de resumo visual estabelece uma conexão imediata entre a

classificação das onças o tema do cromatismo e das marcações do gado, abordado no

capítulo 2. No caso do gado, o cromatismo da pele é uma primeira camada sobre a qual

se inscrevem os signos gráficos da linguagem dos vaqueiros. Enquanto isso, a própria

pele da onça-pintada é gráfica, e o desenho da ‘maia’ um modo de designação do

animal.

Outro critério adotado pelos entrevistados para diferenciar as onças foi o tipo de

habitat usado por cada uma. As áreas citadas como habitats para a pintada foram:

309

pantanal, brejo, mata, beira rio, pirizeiro e sujo. Para a parda foram: cerrado,

morraria, serra e Nhecolândia (uma região do pantanal mais seca, descrita como

cerradão). Também foi indicado um contraste entre locais mais selvagens (distantes)

para a primeira e mais perto das casas (próximos) para a segunda.

Seu Adão, o capataz de um retiro na Fazenda San Francisco, em Miranda. Na

passagem ele descreve como o mato tomou conta de onde antigamente havia uma trilha:

Tem muita onça aí. Agora que a gente não vê mais porque sujou muito. Pra

ver é assim, só no caso dessas em cima da gente, mesmo.

F: Sujou como? O mato está muito alto?

É, foi proibido o negócio de queimada...O Pantanal, parou de queimar, ele

suja. Tem parte antiga, que eu entrei aqui, que você andava, corria, que

hoje você não passa. Como diz o ditado: nem cobra engraxada não entra

mais. Sujou tudo.

Um dos aspectos significativos nessa oposição local entre limpo e sujo, que foi

reiterada nas entrevistas analisadas neste capítulo, é o seguinte: enquanto, de acordo

com eles, os vaqueiros apreciam esteticamente o limpo, a onça-pintada apreciaria o sujo

e a onça-parda é a que gosta (como eles) do campo limpo (tabela 2.1).

A idéia do pantaneiro de ‘limpeza’ e de ‘sujeira’, qualidades associadas ao mato

fechado e ao campo aberto, seria ainda muitas vezes repetidas em conversas com outros

vaqueiros, mas aquela era a primeira vez em que eu a ouvia. Além da evidente

associação estética, a sujeira, no caso do trecho acima, é também aquilo que impede o

movimento (nem ‘cobra engraxada’ passa!). Esta impenetrabilidade de certos matos, um

dos sentidos locais da “sujeira” é também citada em uma série de relatos de caçadas,

tanto em entrevistas como em fontes literárias. Como é o caso dos “pirizeiros”,

“caraguatazeiros” e de outras vegetações nas quais a onça gosta de se esconder, e onde

os caçadores não conseguem avançar, como descreve Almeida (1976). Veja-se, nesse

sentido, o trecho abaixo:

“O "caraguatá" (Bromelia paraguayensis) é da mesma família dos

abacaxis, e suas folhas longas e finas se estendem para cima a partir do

centro da planta até uma altura de dois metros, armadas com espinhos

enganchados longo da folha que rasgam homens e animais tentando

passagem. Mesmo os cavalo recuam para longe deles, mas um jaguar os

310

usará freqüentemente para despistar uma matilha de cães de seu encalço.

Se um capão de "caraguatá" é suficientemente grande, quando os cães

acham uma maneira de contorná-lo o jaguar já está muito distante”.(1976:

107)84

O caçador descreve cuidadosamente as espécies de plantas às quais se refere,

acrescentando:

“A planta que fornece maior proteção para os jaguares, entretanto, é sem

dúvida a moita conhecida como ‘pombeiro’ (o nome científico ainda não

descoberto por mim85 [e onde esta planta cobre grandes áreas, nem um

jaguar em cada dez irá subir em uma árvore. O pombeiro é um arbusto

denso, que cresce a uma altura máxima de três metros, com muitos das

características uma trepadeira. Os ramos têm a espessura dos pulsos de um

homem, e se espalham e contorcem em todas as direções, conectando-se

com aqueles da moita seguinte, e áreas freqüentemente com alguns acres

em extensão são cobertas por ela, tornando-se impenetráveis. Os jaguares

são capazes de se moverem sobre estas moitas com relativa facilidade, mas

elas são um pesadelo para os homens, que têm que rastejar e forçar sua

passagem através delas para tentar alcançar o felino. (Idem)

A associação da onça ao sujo traz consigo, no sentido dado pelo caçador, uma

questão ligada à acessibilidade do animal, uma idéia que podemos remeter talvez à

metáfora latouriana da trilha (2000), proposta pelo autor como imagem alternativa à

metáfora da janela, ao realismo cientificista. No caso da caçada, os caminhos 84The “caraguatá” (Bromelia paraguayensis) is the same family as pineapples, and the long, thin

leaves sprout up from a central steam to a height of six feet, armed with wickedly hooked thorns along the rims which tear at man or beast attempting passage. Even a horse will shy away from them, but a wily jaguar will often use them to throw a pack of hounds off his track. If a clump of “caraguatá” is large enough, by the time the dogs have found their way around it the cat is a long way off.

The plant which affords greatest protection to jaguars, however, is doubtless the bush known as “pombeiro” (scientific name as yet undiscovered by me [Iresine macrophylla (Pott 1984)], and where this plant covers large areas not one jaguar in ten will ever go up a tree. The pombeiro is a dense shrub, growing to a maximum height of eight feet, with many of the characteristics of a creeper. The branches, up to the thickness of a man’s wrists, lace and twine in every direction, connecting with those of the next bush, until areas often a few acres in extent are impenetrably concealed by it. Jaguars can move in and over this with relative ease, but it is a nightmare for men who have to crawl and chop their way through it to try to reach the cat. (: 107)

85Iresine macrophylla (Pott 1994) é citado como “pombeiro-branco” em Plantas doPantanal.

EMBRAPA ISBN 85-85007-36-2. www.cpap.embrapa.br/publicacoes/online/Livro025.pdf

311

percorridos pelos cães são as vias de acesso fundamentais para o caçador chegar até a

onça, mas ela se vale da paisagem para impedir-lhes o acesso.

Discussão 2: Parda e Pintada

O tema do conflito entre onças (q. 2.3) surgiu na primeira visita que fiz à área de

estudo em 2006, quando entrevistei em vídeo o capataz de um Retiro da antiga Miranda

Estância no local onde pretendia na época desenvolver a etnografia. Ele era um legítimo

‘pantaneiro’, um termo usado na região para definir os moradores antigos e que

mantém os costumes tradicionais. Disse o retireiro:

A onça-parda surra a pintada. A parda protege a pessoa, acompanha no

campo. Onça mansa... Pega rês nova, carneiro, bicho macio. Come muito

carneiro. Tem dois tipos: parda e lombo-preto, maior e mais escura no

lombo.(03/2006)

As declarações foram surpreendentes para mim na época, mas depois seriam

confirmadas pela grande maioria dos “antigos” pantaneiros’, na acepção local do termo.

A surpresa era principalmente causada pelas conversas anteriores com o capataz e com

outros moradores do retiro, nas quais a pintada tinha sido apontada como bicho

“valente”, “forte”, que “enfrenta gado grande” e a parda como ‘covarde’ e ‘maldosa’,

por pegar muito “bezerro pequeno” e “carneiro”.

Quando elaborei o questionário para usar no trabalho de campo, em 2008, incluí a

disputa entre a parda e a pintada (por território ou por presas) como uma questão fixa.

Reproduzo abaixo alguns dos depoimentos:

A pintada perde pra parda. Ela é maior, ela é mais perigosa, mas na hora

da briga ela perde. (4/2008)

(...)

Elas não combinam muito não. Dá briga. Só que, a suçuarana, a pintada

tem medo dela. Tem receio dela. Diz que ela é bem mais valente do que a

pintada. E o povo antigo sempre falava – meus tios mesmo falavam – que a

suçuarana, aonde ela tava, mesmo, que a pintada tivesse ali por perto, ela

escorraçava com a pintada pra cuidar o homem. Ela cuida, ela escorraça

com a pintada pra ficar cuidando a gente.

(...)

312

Onde é que tem onça parda, a pintada não para. Porque a parda bate nela.

E a parda é menor do que a onça pintada, mais fininha, mas a pintada

corre de onde tem a parda.

(...)

A parda, se ela achar a onça pintada na carniça, ela põe a onça pintada

pra fora. Onça parda conhece ela. E a pintada também: vê que ela vai lá,

ela larga. Ela sai rosnando, e vai embora. Aí a parda come. Às vezes dá

briga. Quando um macharrão, assim, já velhão, quer enfrentar.Aí eles

brigam. Mas a parda tem mais destreza de que a pintada. Porque a pintada,

quando ela pula mal, ela até cai, porque ela é um bicho pesado.Enquanto

isso, a onça parda tá em cima. A onça pintada, ela dá um tapa, assim, e a

parda dá duas vezes, rápido, igual gato.

(...)

Eu já ouvi falar que a parda bate na pintada, mas eu não acredito não. Diz

que a parda é muito mais rápida, tem muito mais destreza. E não foi nem

um e nem dois que eu ouvi falar. Eu conheci um bugre velho que cansou de

falar: A parda bate na pintada. Ela é bem menor, mas a agilidade dela é em

dobro da pintada. Você vê, e onça pintada não é um bicho parado...

Apenas em uma das citações acima o entrevistado afirma “não acreditar” na hipótese

pantaneira. A hipótese torna-se contra-intuitiva quando contrastada a outros elementos

descritivos, como a um tipo de onça menor e que não representa uma ameaça para o ser

humano. Em média, a onça-pintada tem praticamente o dobro do tamanho da parda, e

essas declarações em diversas situações eram vistas com ironia pelos meus amigos

biólogos no campo.

O que torna a ‘hipótese pantaneira’ especialmente interessante é o fato dela ser

mencionada no trabalho de Crawshaw e Quigley (1984). Eles afirmam:

“É comumente dito no Pantanal, por pessoas familiarizadas com a fauna,

que, em luta corporal, a parda derrota a pintada. (...) Tal afirmação não

pode ser comprovada em nosso estudo, mas em dezembro de 1982 foi

encontrada uma fêmea subadulta de onça parda, morta com uma mordida

na nuca, por um casal de onças pintadas. Nessa ocasião, foi capturada e

aparelhada a fêmea desse casal (F11). A 15 m da carcaça da parda, as

pintadas se alimentavam de um macho subadulto de anta (Tapirus

313

terrestris), recém-abatido, fugindo à nossa aproximação (Crawshaw, 1982

d). A julgar pela rigidez cadavérica, a parda havia sido morta antes da

anta, o que sugere que ela não tenha sido morta como alimento.

(... ) Outra fêmea de onça parda, adulta, foi encontrada morta em setembro

de 1980, com evidentes sinais de luta no local, mas, uma vez que já se

haviam passado vários dias, não foi possível determinar qual havia sido o

adversário. Entretanto, com base em pegadas encontradas várias vezes, o

capão era regularmente usado por onças pintadas”. (Crawshaw e Quigley

1984: 18)

E concluem que:

“Esse conjunto de observações sugere que o grau de tolerância

interespecífica deve variar com o status etário e social dos animais

envolvidos e também com as circunstâncias particulares de cada encontro.

Situações semelhantes de competição entre espécies simpátricas de grandes

felinos ocorrem na Africa entre o leão, guepardo e leopardo (Schaller,

1972), e na Asia, entre o tigre e o leopardo (Schaller, 1967; Sunquist,

1981). Schaller (1972) descreve duas instâncias em que leopardos foram

mortos por leões”. (Idem)

De acordo com a literatura científica consultada, o peso médio de uma onça-pintada,

na região, é aproximadamente o dobro do peso de uma onça-parda (Azevedo 2006;

Silveira 2004; Crawshaw e Quigley 1984; Almeida 1976). No caso, os autores se

referem a “pessoas familiarizadas com a fauna”, o que é também consonante com o

material de entrevistas analisado acima, na medida em que a hipótese é formulada por

antigos caçadores, capatazes e retireiros, isto é: vaqueiros mais velhos, com ampla

experiência de campo. Quando que “[t]al afirmação não pôde ser comprovada em

nosso estudo”, os autores pressupõe, de forma perfeitamente razoável e aberta ao

conhecimento tradicional, que os pantaneiros não estão descrevendo sua própria cultura

ou usando qualquer tipo de ‘metáfora’, mas ao contrário, que eles estão falando do

comportamento empírico das onças em seu ambiente natural.

O texto contrapõe a declaração dos moradores da região a duas evidências

encontradas durante pesquisa de campo, ambos casos de pardas encontras mortas. No

entanto, são duas evidências ‘fracas’ do ponto de vista científico, como os autores

314

deixam claro: um dos animais é um sub-adulto e o outro já não permitia uma

identificação conclusiva.

A hipótese pantaneira, entretanto, não aparece no artigo publicado pelos dois

cientistas a partira da mesma pesquisa (1991) e nas fontes pesquisadas não foi

encontrada nenhuma outra menção direta a ela para a região. No livro Jaguar (1986),

sobre a experiência de campo de Alan Rabnowitz em Belize, na América Central 86,no

entanto, a mesma afirmação é atribuída aos índios Maia residentes na região. O autor

afirma:

Apesar de pumas e onças-pintadas serem aproximadamente do mesmo

tamanho, o puma não é classificado entre os grandes felinos, que rugem87.

(...) A cabeça do puma é pequena, e seu corpo é ágil e longilíneo. Ele se

parece mais com um gato do que a onça-pintada, com seus membros curtos

e volumosos. Talvez sua constituição física, indicando que o puma seja

relativamente rápido e ágil, ajude a explicar por que o puma é muitas vezes

o vencedor nas histórias indígenas de batalhas entre onças-pintadas e

onças-pardas.88 (1986: 206)

Os exemplos refletem bem as opções que nos fornece o dualismo tradicional, em

relação às declarações de que a parda vence a pintada. No caso de Rabinowitz, ele

apenas menciona histórias indígenas (maia), sem especificar quais são, mas não parece

inclinado a levá-las muito a sério. Neste caso, elas são simplesmente descartadas como

“mitos”. Do ponto de vista do simbolismo animal, entretanto, certamente essas histórias

poderiam ser analisadas em uma rede complexa de significados culturais (sem que isso

dependesse de as onças estarem ou não se batendo lá fora).

A alternativa seria tomar as declarações dos pantaneiros como provenientes de

experiências empíricas, como fazem Crawshaw e Quigley (1984). No caso, a hipótese

não pôde ser comprovada (nem descartada definitivamente pelo estudo).

86 Uma obra de ciência popular, ou de divulgação científica.

87O tamanho das onca-pintadas nas áreas abertas do Pantanal é praticamente o dobro daquelas das florestas tropicais, como é o caso de Belize. 88Trad. Minha: Through pumas and jaguars are about the same size, the puma is not classified with the other great, or roaring, cats. The puma’s head is small, and its body, lithe and narrow. It gives the impression of being much more catlike than the short-limbed and bulky jaguar. Pehaps its physical build, allowing the puma to be relatively quick and agile, helps explain why the puma is often the victor in Indian accounts of battles between jaguars and pumas.

315

A oposição entre natureza e cultura, colocada de saída, condiciona qualquer

observação sobre o comportamento animal: ou alguma coisa é dada ou então é

construída. Assim, seríamos obrigados a escolher se vamos descrever relações

ecológicas ou relações sociais, e esse ‘double bind’ é precisamente o que tentamos

evitar.Com relação à hipótese pantaneira, podemos apenas conjecturar, já que ela não

foi suficientemente testada. O mais interessante nessa história toda seria se ela fosse

cientificamente comprovada: uma situação contra-intuitiva, que não possuía nenhuma

característica científica, produziria então novas articulações em relação àquilo que já se

sabia. Mas isso é apenas conjectura.

6.2. A onça-pantaneira: esboço para uma descrição associativa

Espreita e captura

Imagens ou vídeos registrando caçadas de onça-pintada são muito raros,

principalmente em vida livre, e não em ambientes cercados e situações controladas

(estes últimos são pródigos na iconografia da vida selvagem compilada no youtube). Em

termos de filmagens de animais em ambiente natural, conheço apenas duas, ambas feitas

no Pantanal. A primeira é um vídeo feito pelo cinegrafista Haroldo Palo Jr (cit), que

mostra uma onça capturando um jacaré, na margem de um rio. Neste caso, o vídeo já

começa depois que ela deu o bote, e mostra a onça puxando o réptil para fora da água,

imobilizando-o com uma mordida no pescoço, junto da mandíbula.

O segundo vídeo, mais recente, também envolve uma caçada na beira de um

rio, e foi filmado por cinegrafistas amadores que visitavam o pantanal, às

margens de um rio em Cárceres (MT), julho de 200889. Existem algumas

versões da filmagem no youtube. A mais completa tem sete (6:58) minutos de

duração, e foi batizada de “Ataque de onça-pintada”. Vou utilizá-la como

referência principal para descrever toda a seqüência:

O vídeo começa com uma filmagem feita de um barco a motor em movimento,

mostrando algumas capivaras na praia de um rio. Enquanto o barco passa pelas

capivaras, uma voz exclama:

89 Vídeo disponível no website: http://www.youtube.com/watch?v=FaxPBnIfcYQ.

316

-- A lá, a onça! A onça!

(Ouve-se um murmurinho de vozes)

-- A onça atrás da capivara.

A câmera procura, em movimento, até parar, ainda tremida, em um objeto

ainda bastante indefinido acima da praia, aonde termina a areia e começa a

vegetação. Com algum esforço é possível identificar a cabeça da onça na cena.

Alguém pede silêncio: Shhh!

O barco continua em movimento. A câmera agora mostra as capivaras, que

observam o movimento um pouco apreensivas, sem contudo se afastarem,

enquanto ritmo do motor diminui gradualmente.

(Nesse ponto há um corte).

O quadro seguinte já mostra a onça deitada, imóvel, totalmente deitada no chão

e com a cabeça abaixada, olhando fixamente para frente. O motor do barco foi

desligado, deste ângulo é possível vê-la de corpo inteiro.

-- Tranqüila, né!

A câmera faz um movimento da esquerda para a direita, percorrendo a praia do

ponto até onde a onça está deitada até o bando de capivaras. As capivaras

aparentemente não percebem o predador, e estão atentas aos barcos. A

aproximação em zoom da câmera faz com que os grandes roedores preencham

todo o quadro.

-- Tá magra ela – diz uma voz masculina, referindo-se à onça.

-- Ou tá parida ou é uma onça velha. – Um segundo observador acrescenta.

A câmera volta novamente para a onça, percorrendo a praia de volta. Calculo a

distância entre ela e as capivaras como algo em torno de sete ou oito metros.

As pessoas no barco continuam falando entre si:

-- Desse jeito aí ela ataca!

-- Pronta pra dar o bote.

A câmera não tem estabilidade, e sacode com o movimento do barco. Agora

está fixa na onça, e logo em seguida se afasta um pouco. É possível perceber a

tensão no corpo da onça, estendido para a frente em absoluta imobilidade.

317

Ouve-se o barulho de mais um barco que se aproxima ao longe. Alguém

comenta:

-- Ó que esses cara vão assustar!

A câmera volta novamente para as capivaras. Ouve-se o pio estridente de um

pássaro aquático. As capivaras parecem também parecem alarmadas, mas

aparentemente atribuem isso aos barcos; nada parece indicar que estejam

cientes da presença da onça. Uma voz no barco – talvez do cinegrafista –

exclama:

-- Dá pra chegar pertinho dela. Deitada...

A câmera se aproxima novamente da onça, até o limite de zoom da lente, e

com isso treme mais, o quadro flutua em volta da onça até que ela preencha

quase todo o quadro. O barulho do motor do segundo barco aumenta enquanto

ele se aproxima, fora do enquadramento. Alguém grita:

-- Ó a onça aqui! Ó a onça aqui, ó!

A câmera se afasta até mostrar uma ampla faixa da praia, com a onça na linha

central da imagem, à esquerda, não é possível ver as capivaras. A câmera não

pára: faz um novo zoom, e o foco flutua entre a onça e alguns galhos na beira

do rio, na praia. O murmurinho aumenta, enquanto o motor do outro barco vai

sendo desligado.

-- Vai espantá a onça aí...

-- Ó a onça lá traz, lá, ó...

A câmera sacode, mostrando o rio, e aparece rapidamente a mão de uma pessoa

tirando uma fotografia com flash. A câmera se afastou ao máximo, e procura

enquadrar no mesmo plano a onça e as capivaras.

-- Olha ela, tá pronta pra dá o bote!

O barco onde está o cinegrafista liga novamente o motor, e se move um pouco

para a frente. A onça continua imóvel o tempo todo, e a câmera sacode,

mantendo-a em foco.

-- Vamo cercá ela e laçá ela! – diz alguém.

Uma outra pessoa pede silêncio:

318

-- Deixa ela caçá, vamo vê ela pegá o bicho aí...

O primeiro responde:

-- Ela não pega. Não vai pegá mais não.

Uma pessoa de costas passa pelo quadro, no outro barco, usando camiseta e

chapéu.

-- Tem gente, ela não pega mais – afirma um.

-- Se for pro lado dela lá, ela pega...

O vento sopra no microfone da câmera, que se afasta novamente até vermos

quase toda a extensão da praia. Em primeiro plano, os chapéus das pessoas no

barco da frente passam da direita para a esquerda, na direção contrária à do rio.

Um motor é ligado. Alguém diz:

-- Desliga! Vamo vê se ele vai terminá...

Agora uma das capivaras se aproximou, e pode ser vista na praia, no mesmo

quadro em que está a onça. A câmera continua se movimentando, e vemos

partes de barcos e pessoas de costas olhando para, para a qual dirigem

máquinas fotográficas e filmadoras.

-- Isso aí é empalhado! – zomba uma voz.

-- Parece que tá morta... Tá nada...

-- Ela só vai na certeza.

-- Ó o tanto que aquela [capivara] de lá tá gorda!

A câmera agora está fixa na onça. Durante todo o tempo da filmagem ela

esteve imóvel, deitada no mesmo lugar. O vídeo até aqui, com a onça

espreitando a capivara, durou exatamente 4 minutos e cinqüenta e dois

segundos. Nesse ponto, ela dá um salto abrupto e se lança em direção à

capivara. Uma outra filmagem, feita de um ângulo um pouco diferente, mostra

como a capivara se aproxima até o ponto em que percebe a onça, quando fica

totalmente paralizada por alguns instantes. Quando a capivara faz um

movimento para o lado em direção à água, que é o seu método de fuga, ela tira

os olhos da onça. É nesse ponto preciso que a onça dá o bote. Em

aproximadamente 2 segundos, a capivara mergulha na água e a onça também.

A câmera acompanho o movimento do bote, e mostra a mancha branca de água

319

que o impacto do mergulho levanta. Em primeiro plano um observador de boné

se recolhe instintivamente.

-- Que lindo, cara! -- diz uma voz em off – Que dez!

Mais duas pessoas estão em um outro barco muito próximas do grande borrifo

levantado pela pancada dos animais na água. Um deles rema, se afastando.

-- Eu não acredito num negócio desses.

-- Quase que pula no barco dos cara!

Enquanto isso, a câmera mostra a superfície agitada da água, e é possível ainda

perceber o movimento em círculos que se expandem a partir do ponto do

impacto. Gritos:

-- A lá, a lá ela!

-- Ihhhhh!

A câmera se move um pouco para a direita, onde surge da água a forma ainda

um pouco indefinível, da cabeça da onça vista de costas. Cinco segundos se

passaram entre o mergulho, a partir do qual predador e presa desapareceram,

submersos, e o reaparecimento da onça, aos 4:57 do vídeo. A onça nada, se

afastando, e aos poucos é possível ver que ela arrasta consigo a capivara,

mordendo-a firmemente no topo da cabeça. Esta última se debate, jogando as

pernas para fora da água. Mais gritos e exclamações.

A onça agora parece firma as patas no chão do rio, e arrasta a capivara para

fora d’água enquanto esta se debate freneticamente. Gritos:

-- Muito bem menina!

-- Ahhh!

-- Cê viu? Ela só vai na certeza mesmo!

-- Pode botar no youtube! Vai ser um dos vídeos mais vistos – afirma um

dos presentes.

-- Nem no national geographic cê vê um negócio desse.

A capivara é arrastada pela areia da praia e novamente por um trecho de água

até a vegetação mais alta da margem. A onça mantém a mordida, e olha

rapidamente em direção aos barcos antes de desaparecer em direção ao mato

fechado.

320

Vários gritos de comemoração são ouvidos, e a câmera agora mostra pelo

menos cinco barcos que com turistas que estavam observando a cena, incluindo

aquele onde está o cinegrafista. Cada barco tem pelo menos três pessoas, o que

significa que ela foi acompanhada por uma platéia de quinze pessoas. Fim.

Os turistas observam a onça, e capturam a cena em fotografias e filmagens. Também

eles praticam a espreita e a captura, nesse sentido. Dentre as imagens a que tive acesso

até hoje, contudo, considero-o o melhor registro visual de uma onça em situação de caça

já produzido, dentre os três ou quatro já feitos sem a utilização de animais em cativeiro.

Meu primeiro impulso quando encontrei o vídeo na internet foi desligar o som, para

tirar o ‘ruído’ desagradável das declarações dos turistas e guias, com os comentários

jocosos de quem parecia não se dar conta daquilo que estavam presenciando: uma

experiência única, um vislumbre inédito da história natural.

Depois disso, passei a olhar a cena de outro modo, e optei por descrever o vídeo

(acima) incluindo o áudio. As falas evidenciam o caráter caseiro do vídeo, e, juntamente

com as imagens dos barcos de turistas, acrescentam uma série de mediadores entre nós e

a cena; não a vemos “sentados confortavelmente na poltrona”, como num vídeo sobre a

vida selvagem, mas a partir do barco em movimento, acompanhados por uma série de

outros curiosos igualmente munidos de câmera. O que significa uma estocada

considerável na aura da cena.

Mais tarde, o vídeo seria mencionado no debate em torno de acusações de que as

onças dessa região estariam sendo cevadas, e por isso estariam se tornando

perigosamente acostumadas à presença de turistas. Minha impressão como espectador,

inclusive, é que o movimento dos barcos talvez tenha sido de fato um fator de distração

para as capivaras e que a onça tenha tomado partido disso em sua emboscada. Outra

estocada, desta vez no ideal da observação do comportamento selvagem autêntico.

Apenas quando esquecemos esse ideal de autenticidade e abandonamos o modelo

ingênuo da ciência que ele alimenta (ainda seguindo o exemplo proposto por Latour), é

que a série de mediadores deixa de ser um ruído e passa a acrescentar algo novo à

imagem. Mas o mais interessante é que, além de tudo isso, trata-se de um registro

inédito de um comportamento da onça.

Transcrevo abaixo alguns trechos do verbete referente à espécie (jaguar, Panthera

onça) na Wikipedia, na versão em língua inglesa da enciclopédia virtual (neste caso bem

mais rico e completo do que a versão em português). Minha intenção é mostrar como o

321

vídeo documenta visualmente com precisão alguns dos elementos chave da descrição

enciclopédica do comportamento da onça.

A onça-pintada caça por emboscada e não por perseguição. O felino

caminhará devagar pela floresta para ouvir e espreitas suas presas até

preparar uma emboscada. Os ataques da onça a partir da cobertura vegetal

normalmente partem de um ponto cego do alvo com um bote rápido; e as

habilidades de emboscada da espécie são consideradas quase inigualáveis

no reino animal tanto pelos povos indígenas quanto por pesquisadores de

campo, e provavelmente são um produto do seu papel como um predador

ápice em vários ambientes diferentes. (http://en.wikipedia.org/wiki/Jaguar)

A perseguição seria o método empregado em geral pelos canídeos (incluindo a

maior parte dos cães e dos lobos) para capturar a sua presa, mas é empregado também

por um felino como o guepardo africano, por exemplo. A onça, por sua vez, de acordo

com o trecho acima, não persegue a presa, ficando de tocaia. A enciclopédia prossegue,

mencionando exatamente o tipo de ataque que vimos no vídeo:

A emboscada pode incluir um mergulho na água atrás da presa, já que uma

onça-pintada é perfeitamente capaz de transportar a carcaça de uma presa

grande enquanto nada; sua força é tal que carcaças tão grandes como uma

novilha podem ser transportadas até o alto de uma árvore para evitar a

inundação.(Idem)

Neste outro trecho descreve-se o tipo de mordida característico da espécie:

Apesar de a onça-pintada empregar a mordida na garganta e a técnica de

sufocamento típica entre as espécies do gênero Panthera, ela prefere um

método único entre os felinos: ela penetra diretamente com seus dentes

caninos através dos ossos temporais do crânio, entre as orelhas de presa

(principalmente a capivara), perfurando o cérebro. Esta pode ser uma

adaptação de abrir cascos de tartaruga, seguindo-se exemplos de extinções

do Pleistoceno tardio, quando répteis blindados como as tartarugas que

formaram uma base de presas abundante para a onça90. (Idem)

90While the jaguar employs the deep-throat bite-and-suffocation technique typical among Panthera, it prefers a killing method unique amongst cats: it pierces directly through the temporal bones of the skull between the ears of prey (especially the Capybara) with its canine teeth, piercing the brain. This may be

322

Traduzi a expressão “stalk-and-ambush” acima como “emboscada”, mas minha

intenção, a seguir, é designar o método de caça empregado pelas onças como “espreita e

captura”. A descrição acima é produzida por especialistas, e é fundamentada em

diversos trabalhos científicos sobre a espécie. A mordida na base do crânio é também

um dos elementos utilizados pelos biólogos em trabalho de campo para identificar o

animal responsável por um ataque de pintada, como foi demonstrado no capítulo 1.

A referência para este tipo especial de mordida da onça-pintada, descrito na

enciclopédia, é um artigo científico de George Schaller de 197891, e o artigo indica que

o tema já fora analisado antes em estudos taxonômicos sobre a espécie. No artigo

popular de Schaller , de 1980 (2007: Op. Cit), ele a descreve da seguinte maneira:

“Como de costume, o felino tinha matado a capivara com uma mordida na

base do crânio. A onça-pintada traz a cabeça dentro de sua boca e, com os

caninos opostos, perfura os ossos até o cérebro. Esta técnica é notável não

só pela precisão com que os caninos perfuram o crânio, sobre ou perto das

orelhas, mas também pela a força necessária para penetrar meia polegada

de osso. Jaguares podem matar até vacas por quebrando seus crânios,

utilizando uma força primitiva estranha mesmo aos leões e tigres, que

normalmente matam grandes presas mais facilmente por estrangulamento” 92. (2007: 68)

O exemplo apresentado aqui é um caso bastante simples do processo de purificação

científica descrito por Latour (1994; 1998), no qual as evidências de um fenômeno

natural são comprovadas no campo, publicadas em artigos científicos e estabelecidas

an adaptation to "cracking open" turtle shells; following the late Pleistocene extinctions, armoured reptiles such as turtles would have formed an abundant prey base for the jaguar.

The jaguar is a stalk-and-ambush rather than a chase predator. The cat will walk slowly down forest paths, listening for and stalking prey before rushing or ambushing. The jaguar attacks from cover and usually from a target's blind spot with a quick pounce; the species' ambushing abilities are considered nearly peerless in the animal kingdom by both indigenous people and field researchers, and are probably a product of its role as an apex predator in several different environments. (...)

The ambush may include leaping into water after prey, as a jaguar is quite capable of carrying a large kill while swimming; its strength is such that carcasses as large as a heifer can be hauled up a tree to avoid flood levels. (http://en.wikipedia.org/wiki/Jaguar) 91Schaller, G. B; Vasconcelos, J. M. C. (1978).Jaguar predation on capybara. Z. Saugetierk. 43: 296-301 92Trad. Minha: As usual, the cat had killed the capybara with a neat bite into the skull. The jaguar takes the head into its mouth and, with opposing canines, punctures the bone to the brain. This technique is noteworthy not only for the precision with which the canines pierce the skull on or near the ears but also for the strength needed to penetrate half an inch of bone. Jaguars may even kill cows by crunching open their skulls, using a primitive force alien to lions and tigers, which usually dispatch large prey more fastidiously by strangulation. (2007: 68)

323

como fatos consumados na literatura enciclopédica93. O que pretendo, neste capítulo, é

traçar associações entre essas referências científicas e alguns registros orais coletados

no campo, sem estabelecer entre eles nenhuma diferença a priori (tratando, digamos,

uma delas como projeção cultural e a outra como constatação objetiva, o “matter of

fact”).

O que está em jogo neste capítulo é a articulação entre diversas descrições a respeito

do comportamento animal baseadas na experiência empírica de quem as enuncia.

Retomo a partir daqui a descrição dos métodos de caça empregados pela onça – nos

quais ela utiliza dispositivos de espreita e rastreamento (“stalk and ambush”) – citando

uma entrevista com Seu Inácio gravada durante o trabalho de campo, em novembro de

2008. O caçador pantaneiro descreve em detalhes, a certa altura, os sentidos da onça na

perseguição de sua presa:

Olha, ela quando sai pra caçar, ela não sabe se o vento tá assim, porque

ela não tem faro, moda cachorro. Ela só escuta e enxerga. É igual a nós.

Mesma coisa que você sentir uma catinga dum troço.Você não sabe, não

sente. Então a onça, ela sai pra caçar; se ela enxergou um cervo, ou uma

capivara, ela vai assondar (sic.). Mas se a capivara sentiu, aí a capivara

vai embora. Ela não liga mais.

A idéia de “assondar”, no sentido empregado por ele, corresponderia a um dos

aspectos do que estou procurando definir como “espreita”. O caçador prossegue:

E se ela achou o cervo é a mesma coisa, se o cervo tá entretido, pastando

ali, tá comendo, ela vai chegando, chegando, vai chegando – e o cervo não

ver ela e não sentir ela – aí ela pega o cervo. Mas se o cervo sentir ela não

pega. Se ele entrar pra lá, virar pra lá e virou pra cá, ela não sabe aonde

que foi. Só enxergar ele que ela vai atrás, mas se não ela não vai.

O jogo entre predador e presa que o caçador descreve está baseado na relação entre

ver e ser visto. A onça só é capaz de seguir sua presa na medida em que a vê, mas, a

partir do momento em que é avistada, ela abandona imediatamente a caçada. Neste

outro trecho da entrevista, o caçador narra a captura de uma vaca que assistiu, junto com

o pai, durante uma caçada:

93 Um processo por sinal cada vez mais rápido, como mostra esse exemplo da Wikipédia.

324

Ela andava um bocadinho, assim, e na hora que a vaca tava pastando ela

andava ligeiro, pra chegar onde a vaca estava. Quando a vaca levantava,

ela parava; do jeito que ela ia andando ela parava. Não mexia nem com o

rabo, nem com nada. Paradinha. Aí, quando a vaca baixava pra pastar ela

continuava outra vez. Quando a vaca ia assustar, ela já tava junto, bufando.

Ela só deu um berro assim, correu, e quando a vaca quis correr, ela pulou

na vaca e pegou.

O caráter furtivo da aproximação se refere a essa alternância entre movimento e

imobilidade, entre visibilidade e invisibilidade. No caso do vídeo do Youtube, a onça

permanece oculta para a capivara até o último segundo antes do bote, apesar de ela se

manter desde o início evidente para nós. A espreita, neste caso, se resume a um estado

de completa imobilidade, uma longa espera pelo momento exato do bote. Essa espera é

compartilhada pelos turistas que observam (e filmam) o evento, num jogo de cena onde

as capivaras, como protagonistas ingênuas, estão cientes da platéia que as observa dos

barcos, mas ignoram a presença ameaçadora da outra personagem com a qual

compartilham o palco.

Seu Inácio compara os sentidos das onças aos dos cachorros. Os cães usados nas

caçadas de onças são farejadores (hounds, em inglês), e caçam perseguindo a sua presa

a partir do código olfativo. Sobre a onça, ele observa que ela não tem faro e atribui as

limitações da onça a um equilíbrio natural entre os seres vivos:

Porque se ela tivesse faro, não escaparia nada dela. Ela pegava a batida do

bicho e ia até alcançar. Deus põe toda a natureza bem feita. Por que se ela

tivesse o faro dum cachorro, não escaparia nada dela. O que pegasse na

batida, ia até pegar. Porque ela tem resistência, na água e no seco é a

mesma coisa, não tem problema nenhum.

Como foi descrito no capítulo 3, os cães trabalham de modo cooperativo com o

caçador humano para a captura da onça, fornecendo, para este último, os códigos

auditivos (o barruar dos cães) e visuais (a acuação) de que ele precisa para a captura de

sua presa. Os sentidos do caçador são, por assim dizer, ampliados naqueles de seus cães.

Os cães se vêem na estranha situação de caçarem um animal que pode abatê-los, e

mantêm com a onça essa ambígua relação predador-presa. Somente a participação do

caçador humano faz com que a perseguição através do faro resulte em algum tipo de

captura, seja a eliminação da onça, seja a anestesia.

325

Em termos de modalidades de caça, temos, portanto, dois códigos descritos pelo

caçador: a caçada dos cães – baseada no rastreamento olfativo e na perseguição – e a

caçada da onça – baseada na aproximação furtiva e no código visual da espreita. Os cães

se comunicam à distância com os humanos pelos uivos característicos. Seu Inácio se

refere de forma breve também ao código auditivo: “Escutar, ela escuta de longe.

Qualquer movimento de qualquer bicho ela sabe que bicho que é aquilo”.

O depoimento de Seu Adão, retireiro da San Francisco, e de seu filho Nildo,

registrado em 2006, narra o encontro inesperado com uma onça-pintada que eles

tiveram no ano anterior, na área da fazenda. Neste caso, a interação é descrita pelos dois

entrevistados principalmente a partir do código auditivo:

Nildo: Eu acho que ela pensou que era boi. Porque tinha chovido e tava

aquele barrinho só, no trilheiro.

Seu Adão: Ela escuta muito, e enxerga também. Se ela saiu nele ali, é

porque ela tava pensando que era boi. Inclusive naquela noite ela pegou

dois bois. E era o casal. Só que a gente viu só uma. A gente que mora no

mato, e sabe como é que é o bicho, não tem como falar: ah, ela saiu porque

ela não escutou nosso barulho. Aonde? Tava escondida, não ia nem sair...

Como eu falei pra ele, se a gente viesse conversando, ela não ia sair em

nós. A gente ia passar pertinho dela. Ela sentiu, falou: vem uma caça aí,

vou pegar.Porque era trilheiro de boi mesmo. E ainda, por azar, tinha uma

moita bem fechada de espinho, assim, e ela tava decerto do outro lado.

Quando o cavalo meteu a cara, assim, ela veio.

Desta vez, a onça não está enxergando a presa; ela está de tocaia em uma moita, e

aguarda a passagem dos animais pelo trilheiro de gado. A espreita neste caso é auditiva.

Seu Adão fala em barulho,escuta, e atribui a investida da onça ao fato de ele e o filho

terem vindo cavalgando em silêncio. A narrativa do evento prossegue:

Nildo: Do jeito que ela saiu, ela ia pegar bem na cabeça do meu cavalo.

Veio de baixo. No que ela levantou, eu gritei: ô bicho! Depois que ela

sentou e rosnou que eu falei: é onça! O pai chegou com o cavalo do lado e

gritou. Aí ela deu tipo um mortal, assim, e saiu pra dentro do mato. E saiu

roncando. Mas antes, na hora que eu gritei, ela só sentou, igual gato senta.

E deu aquela rosnada grossa mesmo. Daí eu falei: É a onça!

326

Seu Adão: Se ela quisesse pegar, ela pegava. Não tinha mais como fazer

nada, era só ela levantar e abraçar o pescoço do cavalo. Ela veio ali na

mente que era o boi. Quando ela viu que é gente ela: opa! Acho que

conheceu já.

Nildo: Mas eu não sei não, se não é o grito, eu acho que ela pegava no meu

cavalo.

F: E se for um cara sozinho andando a pé?

Adão: Aí, se ela viesse, assim, ficava perigoso. Mas se você gritar com ela,

ela não pega, não. Eu acredito que não.

A onça rosna e depois ronca, e o pai e o filho gritam com ela, e atribuem a esse

grito a reação ‘de gato’ da onça quando esbarra em algo inesperado, primeiro sentando e

depois dando um “mortal” para trás. Uma série de outros registros etnográficos se refere

à sonoridade como elemento fundamental em relação à onça. Um exemplo é o caso

narrado por Seu Cassimiro, um antigo funcionário das fazendas San Francisco e

Caiman, que entrevistei em março de 2008 em Miranda. Ele descreve como evitou o

encontro com uma onça, nesta última fazenda, sendo avisado da presença do felino pelo

canto dos pássaros:

Eu corri duma onça lá [na Caiman]. Me levaram lá: “desmancha pra nós

essa cerca aí, vai, enrola o arame e arranca os poste”, era uns postesde

aroeira. Eu levei uma foice pra cortar aqueles matos que tavam

atrapalhando. Acerei toda a cerca, tirei todo o mato que ia atrapalhar

puxar o arame pra tirar dos postes. Aí vim afiando a foice ali pra cortar uns

pés de carandá novos que tinha. Aí escutei: passarinho brabo, brabo, que

tá. Tudo que era passarinho, ali, e aquele piozeiro. Aí eu falei “mas isso aí

não tá certo...

No capítulo 2 citei alguns registros da associação entre os pássaros e o gado bagual,

nos quais a presença do vaqueiro é denunciada para os bois. Neste caso, é o vaqueiro

que escuta os sinais sonoros. Seu Cassimiro prossegue:

Já tava perto, assim, a uns cem metros da onde eu tava, e aqueles

passarinhos ficavam no alto e aquele piozeiro ali, gritando. Aí vi um pé de

árvore bem galhado, assim, e subi nela. Eu falei “vou subir daqui e olhar”

E o capim era baixinho onde tava em baixo do pé de árvore. Tava uma

327

árvore bem copada, assim, e a onça tava ali em baixo deitada, e os

passarinhos vinham naquela árvore e gritando, acuando ela ali. Eu subi na

árvore, aqui, pra ver. E daí a um pouco aquele bicho levantou. Olhei bem.

Ela virou a cabeça e eu vi as duas orelhinhas dela – pintadona. Mas

grande... Falei: “de certo esse bicho tá querendo engraxar o bigode em

mim. Tá doido!”; peguei a foice e larguei até minha garrafa ali. Saí da

beira da cerca andei uns cem metros e saí na estrada. E toma até a sede.

O canto dos pássaros, assim como o chamado de outros animais, pode ser também

um sinal para quem está perseguindo a onça, o que é descrito por Almeida (1976). No

trecho a seguir, o caçador descreve a trama complexa dos sons do Pantanal:

“Quando a onça faz suas rondas durante a noite para caçar suas presas, o

grito de diversas criaturas da selva anuncia a sua presença na área. O

chamado rouco da garça enquanto levanta vôo, o grito da anhuma e o pio

alto do arancuã estão entre sons dos pássaros que denunciam o perigo

rondando na noite do Pantanal”. (1976: 60)94

As referências à anhuma e ao arancuã remetem mais uma vez às descrições do gado

bagual por parte dos vaqueiros, apresentadas no capítulo 2. O caçador continua seu

rastreamento sonoro do ambiente:

“Um sinal seguro de um jaguar nas proximidades é o chamado da capivara

seguido do barulho dela mergulhando na água. Freqüentemente todo o

caminho do jaguar tudo ao longo de um córrego ou rio pode ser seguido

através da noite pelos gritos e mergulhos do roedores”.(Idem)

E aponta seus principais colaboradores na caçada:

94Trad.minha: “As the jaguar makes his rounds at night and hunts his prey the cry of several jungle

creatures announce his presence in the área. The hoarse caw of the heron as it flies off, the scream of the southern screamer, o p are among the birds sounds that tell of danger abroad in the night of the swamp. An even surer sign of a jaguar on the prown is the sharp cry of the capivara and then a splash as it belly-flops into the water. Often the progress of a jaguar all along a stream or river can be followed throughout the night by the cries and splashes of the rodents. The most usefull of all jungle animals to the jaguar hunter, however, is the howler monkey. These, when they perceive a cat on the prowl, will give a hoarse bark quite unlike their usual soughing growl. They will follow the jaguar as he goes through their territory, handing him over, as it were, to their brethren in the next stretch of forest, so that unless the cat moves out into open grassland they will keep track of him until he lies up for the day and mark him down to his resting place. We have often led dogs right up to barking howler monkeys in the early morning and had them lift the jaguar from his bed. The definitive proof of a jaguar’s proximity is its own booming call, echoing out over the swamps, a sound to trill the heart of the hunter, a sound that tells us there are still some wild places left on earth”.

328

“No entanto, o mais útil de todos animais selva para o caçador de onças é o

macaco bugio. Estes, quando percebem um felino nas proximidades, dão um

latido rouco bastante diferentemente de seu urro usual. Eles seguirão o

jaguar enquanto ele atravessa seu território, conduzindo-o até o próximo

capão de floresta habitado por um novo grupo, de modo que, a não ser que

o felino saia para o campo aberto, eles o manterão sob observação até que

ele pare para descansar, marcando o local. Diversas vezes nós conduzimos

os cães pelos chamados dos bugios no raiar do dia, tirando a onça de sua

cama”. (Ibidem)

A passagem da onça pelo território é toda mapeada a partir dos chamados de outros

animais. O caçador conclui:

“Contudo, a prova definitiva da proximidade uma jaguar é seu próprio

chamado crescente ecoando através do pantanal, um som para excitante

para o coração do caçador, que nos diz existirem ainda alguns lugares

selvagens na terra”. (Ibidem)

O esturro da onça desempenha papel importante no livro de Almeida (1976), sendo a

base de uma modalidade de caça nativa utilizada por ele, com a utilização de

instrumentos para reproduzir o som das onças. O abate do Big Richard, evento chave no

capítulo 3, é um exemplo desse tipo de caçada. O autor descreve a utilização da técnica

pelos caçadores nativos que trabalham com ele usando principalmente esturradores

fabricados com cabaças95.

O uso desses instrumentos é mencionado também por Pereira da Cunha (1949), que

reporta seu uso pelos no Pantanal pelos índios Guató, os mesmos que, de acordo com o

autor, empregavam a técnica da zagaia. Os chamados ‘esturradores’ são mencionados

ainda por Crawshaw e Quigley (1984) a partir de experiências feitas Miranda Estância,

sendo que os autores citam o livro de Almeida como referência:

“O esturro de jaguares durante o período de estudo, foi registrado apenas

em quatro ocasiões, uma vez em março de 1982 (envolvendo 3 ou talvez 4

animais), abril de 1982 (2 vezes, provavelmente a mesma fêmea), e uma vez

95 Durante o trabalho de campo, eu mesmo observei instrumentos deste tipo e também outros feitos

com troncos de palmeira e couro, usados como uma cuíca. Observei diversas tentativas com esses instrumentos, mas nunca vi funcionarem.

329

em dezembro de 1983 (1 fêmea). Em adição, um macho e uma fêmea

aparelhada responderam aos esturros por nós feitos, provocados em uma

cabaça, em outubro de 1982. Aliás, essa técnica é comumente empregada

por caçadores para atrair animais à distância de tiro (Almeida, 1976,

1984). Segundo esse autor, de 11 jaguares abatidos com o emprego dessa

técnica, todos eram machos, com exceção de uma fêmea no cio; ainda

segundo o mesmo autor, várias fêmeas respondiam ao chamado, sem, no

entanto se aproximarem”. (1984)

Além desses múltiplos sons que fazem parte das relações entre humanos e onças, a

pesquisa de campo introduz também uma mediação auditiva na forma do sinal sonoro

emitido pelo equipamento de telemetria. Ao invés dos chamados do bugio ou dos pios

da anhuma, é pela intensidade dos bips ouvidos no fone de ouvido conectado à antena

de rádio que ele é capaz de determinar a distância e a direção que o animal está e

rastrear os seus movimentos. A sonoridade neste caso é a tradução do sinal emitido pela

coleira de rádio em mensagens significativas para os sentidos humanos.

Considerações finais

O problema que origina toda a controvérsia sobre as onças pantaneiras é a relação

predador-presa que elas desenvolveram com o gado. De um ponto de vista ecológico,

podemos aferir que a introdução do gado no ecossistema regional significou uma oferta

de alimento para as onças. Os ambientalistas identificam esse problema e procuram

buscar soluções para os conflitos gerados por ele.

Ocaso das onças pantaneiras, nesse sentido, pode ser referido tanto à proteção da

comunidade constituída por humanos e animais domésticos, quanto à proteção da onça

diante das ameaças humanas; tanto à figuração da onça enquanto ameaça quanto a sua

figuração como ameaçada. O primeiro caso envolveria discussões sobre a eficácia de

métodos de evitar o ataque das onças ao gado. Nesse sentido, a onça é uma força

externa que desestabiliza as relações estatais da fazenda, que ameaça as instituições

sociais. O segundo caso envolveria a eficácia de métodos de compensar financeiramente

o criador de gado pela presença de onças em suas terras, ou então métodos de

330

fiscalização e regulamentação da caça. Nesse sentido, a ação humana é que é uma força

externa que desestabiliza as relações ecológicas, ameaça o equilíbrio ambiental.

Diante da associação cooperativa entre rebanhos bovinos, matilhas caninas e

comunidades humanas, podemos nos perguntar, reproduzindo algumas indagações

feitas por Stengers sobre o lobo na fábula dos três porquinhos96: Quais seriam as outras

onças possíveis, implicadas em outras histórias que não aquelas contadas pelos

especialistas em onças ameaçadas ou em onças ameaçadoras? O que faz com que o

problema seja colocado como problema de proteção? Não teriam sido possíveis outras

relações com a onça? 97

Além de seu papel como matéria-prima para a indústria e para a cultura material dos

pantaneiros, o gado pantaneiro produz ‘cultura’ também no sentido de que fabrica o

ambiente, produz o pantanal tal qual ele é conhecido pelos fazendeiros. O gado se

adapta ao ambiente e ao mesmo tempo é um agente de transformação ambiental; abre o

campo, produz as trilhas, é seguido pelos vaqueiros, atentos a esta ‘cultura bovina’

(Campos Filho 2002). No mesmo sentido, poderíamos falar em culturas caninas, em

ambientes próprios constituídos pelo faro. O reconhecimento, nos mestres, de

habilidades e talentos específicos é a forma de associação cooperativa que conduz os

humanos até as onças.

As onças, por sua vez, são animais solitários, que resistem à formação de rebanho ou

matilha. Biologicamente, portanto, não há propriamente uma sociedade de onças, o que

no entanto não exclui o problema da socialidade entre as onças. O trabalho de campo

dos exemplos biólogos da conservação nos fornece narrativas de diferenças individuais,

como nos exemplos de Grandão e Orelha, os irmãos que compartilham o território, ou

da mãe deles, a onça Elisa, que cai diversas vezes na mesma armadilha depois de

encontrar alimento na gaiola de ferro e se recuperar da anestesia. Poderíamos falar

também, nesse sentido, em culturas felinas, diferenciando onças mansas e bravas,

andejas e moradeiras, onças matadeiras, viciadas, onças de colar.

96Utilizada para ilustrar o desafio colocado pelo ‘Parlamento das coisas’, formulado por Bruno Latour em Jamais Fomos Modernos (1994): “antes de ouvir os experts que discutirão tijolos e cimento, é necessário poder questionar o que a solução de tijolos e cimento considera incontestável, o que a história dos três porquinhos, como história moral, tem como certo. (...) No “Parlamento das coisas”, a primeira prioridade seria buscar, e mesmo estimular, os representantes que pudessem fazer valer a distinção eventual entre o lobo que é destruidor e outros lobos possíveis, que não o seriam, ou seriam menos, ou de outra forma, implicados em outras histórias”. (2003: 196)

97Stengers pergunta:“Não teria sido possível criar outras relações com o lobo? De que depende a definição do lobo como ameaça, isto é, a definição do problema como ‘problema de proteção’?” (: 196).

331

O que procurei fazer neste último capítulo foi formular articulações entre descrições

heterogêneas das interações entre as onças e seu ambiente. O objetivo final do trabalho

foi utilizar essas articulações, sustentadas pelos dispositivos comuns de captura, espreita

e rastreamento, para traçar ao final do percurso uma rede sociotécnica, designada como

rede onça. Ao longo do trabalho, estabeleci uma série de referências a códigos visuais,

sonoros e olfativos estabelecidos entre a onça e uma série de outros atores com os quais

ela entra em relação. Essas relações dizem respeito tanto à interação do predador com

suas presas quanto às práticas da caçada tradicional com cães (na qual a onça se torna

uma presa) e aos métodos de pesquisa utilizados por pesquisadores para estudá-la no

campo.

Os códigos visuais, auditivos e olfativos mencionados a partir da interação entre as

onças e os outros atores que entram em relação com elas podem ser descritos também

como elementos em dispositivos de rastreamento, espreita e captura: a predação da

capivara pela onça, a caçada com cães, os esturradores, e a pesquisa científica. Todos

esses horizontes de práticas podem ser abordados a partir dessas três categorias. O

objetivo deste capítulo foi produzir uma descrição a partir da associação de discursos e

práticas heterogêneas, interligando-os a esses dispositivos comuns.

São exemplos de dispositivos de rastreamento, por exemplo, o método de caça dos

cães onceiros (olfativo), o manejo do gado (visual), a rádio-telemetria (via rádio). A

espreita, por outro lado é o método de caça empregado pelas onças, e também a base da

fotografia de natureza, do turismo ecológico e dos vídeos de vida selvagem. Entre os

dispositivos de captura, por fim, posso listar o matadouro, o laço do campeiro, as

armadilhas fotográficas, a câmera fotográfica, o tiro do caçador, o dardo anestésico, a

localização GPS e etnografia.

A identificação desses dispositivos atravessa os horizontes de práticas descritos em

cada capítulo desta tese, traçando na etnografia associações perpendiculares entre eles.

Também o meu próprio trabalho pode ser pensado a partir deles: o rastreamento dos

acontecimentos e dos agentes na pesquisa de campo, a espreita como elemento crucial

da experiência etnográfica, e finalmente, a escrita do trabalho como uma captura dessa

experiência.

332

ANEXO H – Imagens Capítulo 6

Vestígios coletados no campo

O mapa da Rede Onça

Rede Onça.

333

334

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