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UFRJ HELENISMO E CLASSICISMO NA ESTÉTICA ALEMÃ Pedro Süssekind Viveiros de Castro Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Roberto Machado Rio de Janeiro Fevereiro de 2005

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UFRJ

HELENISMO E CLASSICISMO NA ESTÉTICA ALEMÃ

Pedro Süssekind Viveiros de Castro

Tese de Doutorado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Filosofia (PPGF), Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas, da

Universidade Federal do Rio de

Janeiro, como parte dos requisitos

para a obtenção do título de

Doutor em Filosofia.

Orientador: Roberto Machado

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2005

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ii

HELENISMO E CLASSICISMO NA ESTÉTICA ALEMÃ

Pedro Süssekind Viveiros de Castro

Orientador: Roberto Machado

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia

(PPGF), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do

título de Doutor em Filosofia.

Aprovada por:

Presidente, Prof.

Prof.

Prof.

Prof.

Prof.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2005

iii

Castro, Pedro Süssekind Viveiros de.

Helenismo e classicismo na Estética alemã/ Pedro Süssekind Viveiros de. – Rio de

Janeiro: UFRJ/ Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/ Programa de Pós-Graduação

em Filosofia, 2005.

ix, 279f: 30cm.

Orientador: Roberto Machado

Tese (doutorado) – UFRJ/ Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/ Programa de

Pós-Graduação em Filosofia, 2005.

Referências Bibliográficas: f. 272-279.

1. Estética. 2. Filosofia Alemã. 3. Classicismo de Weimar. I. Machado, Roberto. II.

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,

Programa de Pós-Graduação em Filosofia. III. Título.

iv

Agradecimentos

a meu orientador Roberto Machado, com quem foi um grande prazer trabalhar nos

últimos quatro anos; a Fernando Rodrigues, Vladmir Vieira e Viviane de Lamare,

meus colegas do grupo de estudos sobre a época de Goethe; ao CNPQ, instituição

da qual fui bolsista; a Fátima Saadi, Ricardo Barbosa e Pedro Costa Rego, cujos

comentários e textos foram fundamentais para esta tese; a Nina Becker, pela

paciência e pelo apoio.

v

RESUMO

Helenismo e classicismo na Estética alemã

Pedro Süssekind

Orientador: Roberto Machado

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Filosofia (PPGF), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do título de

Doutor em Filosofia.

O presente estudo pretende mostrar como se articulam o helenismo e o

Classicismo na estética alemã da época de Goethe. Para isso, é necessário analisar

as obras de alguns dos principais teóricos desse período, como Winckelmann,

Lessing, Goethe e Schiller. A obra de Winckelmann será considerada como uma

fundamentação do Classicismo helenista alemão da última década do século

XVIII, cujo projeto era imitar o ideal de beleza da arte grega. Já a obra de Lessing

será pensada como o início a uma crítica ao Classicismo francês, propósito que

orientou o Sturm und Drang, ou pré-Romantismo, no qual Shakespeare foi

considerado como modelo para a dramaturgia alemã. Posteriormente, na fase

clássica de Goethe e Schiller, denominada Classicismo de Weimar, este estudo

pretende ressaltar a retomada das idéias de Winckelmann. Goethe e Schiller

propõem uma discussão teórica e uma realização artística do Classicismo,

incorporando a fundamentação e a crítica, já que a questão do helenismo, da

imitação dos gregos antigos, se insere em uma discussão sobre os parâmetros para

a criação artística moderna.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2005

vi

ABSTRACT

Grecism and Classicism in German Esthetics

Pedro Süssekind

Orientador: Roberto Machado

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Filosofia (PPGF), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do título de

Doutor em Filosofia.

The following work intends to show how the Classicism and the Grecism are

articulated in the German esthetics at the time of Goethe. Therefore, it is

necessary to examine the works of theoreticians like Winckelmann, Lessing,

Goethe and Schiller. Winckelmann’s work will be considered as a foundation to

German Grecism and to the classical period that took place at the last decade of

the eighteenth century, based on the imitation of the ideal of beauty in Greek art.

Lessing’s work will be analyzed as the beginning of a criticism on the French

Classicism, a criticism that oriented the Strum und Drang, literary movement in

which Shakespeare was considered a model to German dramaturgy. Thereafter,

this work intends to show how the classical period of Goethe and Schiller, known

as Weimar Classicism, renews Winckelmann’s ideas. Goethe and Schiller propose

a theoretical discussion and na artistic realization of the Classicism; in doing so,

they articulate Winckelmann’s foundation and Lessing’s criticism, since the issue

of Grecism - as the imitation of the ancient Greeks - is discussed as a standard to

modern poetry.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2005

vii

Sumário

Introdução ........................................................................................................... 1

1. O helenismo ..................................................................................................... 1

2. O Classicismo .................................................................................................. 6

3. Poética e Estética ............................................................................................ 9

4. Goethe “e” Schiller ......................................................................................... 12

5. O método ......................................................................................................... 14

Capítulo 1 - O Laocoonte ou sobre as bases do Classicismo de Weimar ...... 17

1. A Alemanha da época de Goethe ................................................................. 17

2. Crítica e criação ............................................................................................. 20

3. Helenismo ....................................................................................................... 24

3.1. O papel de Winckelmann ........................................................................... 24

3.2. Goethe leitor de Winckelmann .................................................................. 29

3.3. A imitação dos antigos ............................................................................... 31

4. A teoria crítica de Lessing ............................................................................ 43

4.1. Lessing e o teatro alemão .......................................................................... 43

4.2. O grito de Laocoonte ................................................................................. 47

5. O Laocoonte retomado por Goethe e Schiller ............................................ 57

5.1. Laooconte como herói trágico .................................................................. 57

5.2. A análise da escultura ............................................................................... 63

Capítulo 2 - Shakespeare contra o Classicismo francês ................................ 75

1. Sófocles e Shakespeare ................................................................................ 75

viii

2. A recepção de Shakespeare ......................................................................... 79

3. Lessing: a luta contra os cânones clássicos ................................................ 81

4. Shakespeare no pré-Romantismo ............................................................... 85

4. 1. Lenz versus Goethe ................................................................................. 89

4. 2. Herder e o pensamento histórico ........................................................... 93

5. Consideração sobre o Romantismo ........................................................... 100

6. Schiller crítico de Shakespeare ................................................................. 105

7. Goethe e Shakespeare ................................................................................ 109

7.1. Para o dia de Shakespeare ...................................................................... 111

7.2. Shakespeare e o sem fim ......................................................................... 114

7.3. Wilhelm Meister ...................................................................................... 127

Capítulo 3 - Goethe e Schiller ....................................................................... 139

1. Weimar ....................................................................................................... 139

2. Viagem à Itália ........................................................................................... 145

3. A teoria da arte de Goethe ........................................................................ 153

3.1. A mímese e o estilo .................................................................................. 153

3.2. O projeto classicista ................................................................................ 160

3.3. Antigos e modernos ................................................................................. 170

4. Schiller e a teoria da arte moderna........................................................... 175

4.1. A repercussão de Schiller ....................................................................... 175

4.2. Questões estéticas .................................................................................... 180

4.3. Tragédia e liberdade: o exemplo de Maria Stuart ............................... 190

5. Schiller e a Grécia ....................................................................................... 197

ix

Capítulo 4 - A poética no Classicismo de Weimar ........................................ 205

1. O encontro ................................................................................................... 205

2. Caminhos para uma mesma meta ............................................................. 211

3. A via de Goethe ........................................................................................... 216

4. O pensamento especulativo de Schiller ..................................................... 223

4.1. A carta de aniversário ............................................................................. 223

4.2. O ingênuo e o sentimental ....................................................................... 227

4.2.1. Conteúdo histórico ................................................................................ 227

4.2.2. Os termos ............................................................................................... 232

4.2.3. Labirinto terminológico ........................................................................ 237

4.2.4. A dimensão estilística e pessoal ............................................................ 246

5. A poética dos gêneros .................................................................................. 251

5.1. Schiller e o condicionamento histórico ................................................... 251

5.2. O estudo dos clássicos .............................................................................. 253

5.3. A correspondência .................................................................................... 254

Conclusão ......................................................................................................... 263

Bibliografia principal....................................................................................... 272

Bibliografia secundária.................................................................................... 275

Introdução

1. O helenismo

No final do século XVIII, o Classicismo alemão, na literatura, foi marcado

sobretudo pela idéia de uma imitação do ideal de beleza dos gregos antigos. A

concepção do helenismo, no sentido dessa proposta de imitação dos gregos,

encontra-se a princípio na obra do historiador da arte e arqueólogo Johann

Joachim Winckelmann, cujo projeto foi retomado e desenvolvido depois por

Goethe e Schiller. Vista sob a ótica desses autores, a Grécia se tornou um ponto

de referência para a Estética moderna alemã, mesmo no caso daqueles que

procuraram questionar seja a necessidade de imitar os antigos, seja a visão que se

tinha deles. Assim, o helenismo não se restringiu ao movimento literário orientado

pelo estudo da Antigüidade clássica, mas foi retomado e debatido na Alemanha ao

longo de todo o século XIX, tanto por poetas, quanto por filólogos e filósofos.

Em seu primeiro livro, de 1871, quando ainda era professor de filologia,

Nietzsche se refere à “nobilíssima luta de Goethe, Schiller e Winckelmann pela

cultura” como o tempo em que o espírito alemão se esforçou com mais vigor para

aprender dos gregos.1 Segundo o autor, a aspiração de “chegar por uma mesma

via à cultura e aos gregos” se tornou cada vez mais fraca na Alemanha, o que

justificaria seu próprio esforço de compreensão dos gregos em O nascimento da

tragédia. Esse esforço era mais filosófico do que filológico, como demonstra a

polêmica suscitada pelo livro entre os cientistas da época. Em todo caso, a visão

dionisíaca de Nietzsche contesta justamente aquela concepção da época de

Goethe, na qual se valorizava sobretudo o caráter luminoso, solar, apolíneo da arte

grega, ou seja, o ideal de perfeição e beleza identificado na cultura dos antigos.

1 NIETZSCHE. O Nascimento da tragédia. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 121 (§ 20).

2

Questionando essa concepção, buscando definir a relação dos gregos com o

pessimismo, seu “anseio do feio”, suas imagens de “tudo quanto há de mais

terrível, maligno, enigmático, aniquilador e fatídico no fundo da existência”, o

filósofo procurou identificar a concepção de mundo presente nos mitos e na

música que deram origem à tragédia grega.2 Assim, era com o helenismo de

Winckelmann, Goethe e Schiller, mais do que com as teorias filológicas de seus

contemporâneos, que Nietzsche dialogava, a fim de defender uma nova visão da

Grécia e da maneira como a Alemanha moderna poderia se apropriar da arte

grega. Essa discussão levou o autor, na tentativa de autocrítica escrita

posteriormente sobre seu primeiro livro, a propor um subtítulo: Helenismo e

pessimismo.

Como afirma E. M. Butler, em seu estudo A tirania da Grécia sobre a

Alemanha, “a Grécia de Winckelmann foi o fator essencial no desenvolvimento da

poesia alemã ao longo da segunda metade do século XVIII e de todo o século

XIX”.3 É possível estender essa afirmação à filosofia, lembrando o modo como

Nietzsche valoriza, no helenismo de seus precursores, os esforços para aprender

com os gregos. Em todo caso, se a expressão “a Grécia de Winckelmann” define a

formulação inicial do projeto de imitação que fundamentou o Classicismo alemão,

foi a retomada dessa visão inicial por Goethe e Schiller que, ampliando as

considerações de Winckelmann sobre as artes plásticas, estabeleceram a

concepção alemã moderna da Antigüidade grega.

Herder, um dos principais teóricos alemães do século XVIII e um

admirador entusiasmado do gênio de Goethe, defendeu a idéia de que a teoria de

Winckelmann era “apenas uma indicação” para o artista alemão que fosse capaz

2 Idem. “Tentativa de autocrítica”, § 4. Op. cit., p. 17. 3 BUTLER, E. M.. The tiranny of Greece over Germany. Cambridge, University Press, 1935, p. 6.

3

de criar “homens gregos e uma arte grega”.4 Numa carta a Goethe de 1794, que

depois se tornaria famosa por dar início à longa correspondência entre os dois

grandes nomes da literatura alemã da época, Schiller também se refere à criação

de uma Grécia na Alemanha moderna. Nesse caso, trata-se diretamente da Grécia

“criada” nas obras da fase clássica de Goethe, a quem Schiller atribui um espírito

grego, lançado no mundo moderno e nórdico.5 O sentido dessa atribuição seria

discutido e elaborado, posteriormente, num longo ensaio teórico sobre a poesia

ingênua e a sentimental. Seguindo as indicações de alguns dos principais teóricos

da época, identifica-se no Classicismo de Goethe a elaboração e a realização do

projeto winckelmanniano de imitar os gregos. Especialmente a maneira como

Schiller compreendeu essa realização esclarece a questão fundamental da

exemplaridade dos antigos, ou seja, da retomada do ideal de beleza grego na arte

moderna. Assim, é a Grécia de Goethe que constitui o ponto de referência para

todo o helenismo alemão, ao estabelecer uma visão da cultura antiga como ideal

de beleza, de harmonia e de medida.

Estudar a Grécia de Goethe implica uma investigação do sentido da

imitação, no contexto do Classicismo alemão do final do século XVIII. Nesse

estudo, a pesquisa das bases do projeto classicista alemão, de sua elaboração

teórica e de sua realização artística, pode esclarecer os princípios da relação dos

alemães com os gregos ou, em outras palavras, a maneira como a questão dos

antigos e dos modernos se delineou no período clássico da literatura alemã.

4 HERDER. “Denkmal Johann Winckelmanns”, em Sämtliche Werke. Nachdruck der Ausgabe. Berlin 1892. Hildesheim 1967. VIII, 483. Ver também SZONDI, Peter. Poetik und Geschichtsphilosophie I. Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1974, p. 63-64. 5 Carta de 23 de agosto de 1794. GOETHE E SCHILLER.. Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller. Frankfurt, Insel, 1977, p. 34. Ver: Companheiros de Viagem. São Paulo, Nova Alexandria, 1993, p. 24

4

2. O Classicismo

É preciso evitar uma certa imprecisão no uso dos termos “clássico”,

“Classicismo” e “Neoclassicismo”. A designação “período clássico” pode se

referir seja à fase de maior florescimento nas artes de um país, seja à Antigüidade

greco-latina, seja ainda ao movimento artístico moderno que abrange desde o

Renascimento ao Classicismo do século XVIII. Nesse sentido de uma referência à

época moderna que assumiu os antigos como modelo, só o Romantismo é

identificado pelos historiadores da arte como uma ruptura com a tradição

classicista.

O termo “clássico” vem do latim classicus, que significava “pertencente à

primeira classe, que é de primeira ordem, de elite”. Como esclarece Anatol

Rosenfeld, em “Romantismo e Classicismo”, “o termo vem de classis, “frota” em

latim, e refere-se aos classicis, “os ricos que pagavam impostos pela frota”.6

Assim, inicialmente, classicus era o cidadão que, por sua riqueza, pertencia à

primeira das cinco classes de Roma. Por derivação, classicus scriptor passou a ser

o escritor que, pela correção da linguagem, podia ser considerado de primeira

classe, de primeira ordem; essa idéia foi retomada pelos eruditos alexandrinos que

selecionaram os escritores greco-latinos considerados modelares. Nos séculos

XVII e XVIII, clássico era o autor lido e comentado nas escolas, nas classes

escolares, sentido que levou à designação de clássicos aos períodos em que a

literatura ou a cultura de determinada nação tiveram seu apogeu.

Para evitar a imprecisão dos termos, é possível restringir “Neoclassicismo”

especificamente ao período do século XVIII em que as artes plásticas e a

arquitetura retomaram os modelos do período clássico greco-latino. Trata-se de

6 ROSENFELD, Anatol. GUINSBURG, J. (org.). O Romantismo. São Paulo, Perspectiva, 2002, p. 262.

5

uma reação ao Barroco e ao Rococó, muitas vezes associada à teoria da arte de

Winckelmann. O Classicismo, por sua vez, implica a compreensão do clássico

como um conceito estilístico que diz respeito exclusivamente à Antigüidade, ou

melhor, à fase da cultura grega e latina que foi considerada, desde o

Renascimento, como modelo incontestável para a cultura moderna. Nesse sentido,

o Classicismo está ligado, nas artes, à adoção de certos preceitos que derivam das

produções artísticas antigas ou de sua sistematização teórica. Esse caráter

normativo do Classicismo remete à Poética de Aristóteles, que se tornou uma

referência para a teoria da arte elaborada a partir do Renascimento. No século

XVII, por exemplo, a interpretação rigorosa do tratado aristotélico constituiu o

fundamento teórico do Classicismo francês, considerado o auge dessa tradição

poética especialmente na história do teatro.

A dramaturgia clássica francesa de Racine, Corneille, entre outros, tornou-

se o modelo para a literatura alemã até a segunda metade do século XVIII. No

entanto, o Classicismo alemão que se desenvolveu no final desse século não

seguiu o modelo francês. Uma diferença fundamental entre os dois projetos

orientados pelo conhecimento da Antigüidade clássica era a noção de um ideal de

perfeição da arte grega, como Winckelmann tinha identificado no caso da

escultura. Goethe e Schiller também se basearam em Aristóteles, Homero e

Sófocles para elaborar uma poética, mas não pretendiam apenas definir regras da

arte válidas em qualquer época, nem copiar a forma das obras antigas. Sua

intenção, ao estudar os gregos, era o questionamento das formas artísticas de seu

tempo e a busca de um ideal que pudesse ser seguido pela poesia moderna.

Assim, a obra de Winckelmann pode ser considerada como uma

fundamentação do Classicismo alemão do final do século XVIII, cujo projeto era

6

imitar o ideal de beleza da arte grega. O autor define esse ideal a partir da análise

das características particulares das obras-primas antigas, numa reflexão que

ressalta as condições de surgimento da escultura grega. Segundo F. Schlegel,

“Winckelmann aprendeu a observar a Antigüidade como um todo, dando o

primeiro exemplo de como se deve fundamentar uma arte pela história de sua

formação”.7 Um dos principais exemplos, nessa reflexão sobre a arte grega, é o

Laocoonte, tema retomado tanto por Lessing, para discutir as fronteiras entre a

poesia e as artes plásticas, quanto por Goethe e Schiller, entre outros autores.

Nesse debate estético, o ponto de partida era a consideração das características

específicas de uma obra, de tal maneira que a análise da escultura do sacerdote

troiano Laocoonte, e do trecho de Virgílio que se refere ao mesmo personagem,

tornou-se uma referência central tanto para a elaboração dos temas mais gerais da

teoria da arte, quanto para a concepção do ideal de beleza da Antigüidade clássica.

Além de debater com Winckelmann a respeito da interpretação do

Laocoonte, a fim de criticar os pressupostos teóricos tradicionais, Lessing aborda

duas das principais questões da literatura alemã do final do século XVIII: a crítica

aos princípios classicistas herdados da França e a valorização do gênio moderno

com base em Shakespeare. É possível mostrar como essa crítica ao Classicismo

francês orienta o Sturm und Drang, ou pré-Romantismo, movimento que

consagrou Shakespeare como modelo para a dramaturgia alemã, no contexto de

um questionamento da necessidade de imitar os gregos antigos.

Posteriormente, na obra de Goethe e Schiller, evidencia-se uma ruptura

com o pré-Romantismo e uma retomada do Classicismo, baseada nas idéias de

Winckelmann. Essa retomada pode ser compreendida como um aperfeiçoamento

7 SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre a poesia. São Paulo, Iluminuras, 1994, p. 45.

7

teórico e uma realização artística do Classicismo, incorporando a fundamentação

e a crítica, já que a questão do helenismo, da imitação dos gregos antigos, se

insere numa discussão sobre os parâmetros para a criação artística moderna. Por

isso, o Classicismo de Goethe e Schiller só pode ser compreendido a partir da sua

relação com o Sturm und Drang, movimento baseado justamente numa

contestação do Classicismo francês. Essa relação deve ser levada em conta não só

porque os dois escritores participaram do pré-Romantismo quando jovens, mas

também porque a crítica aos princípios seguidos pelo Classicismo francês foi

fundamental para o debate acerca do modelo da Antigüidade na literatura alemã.

Assim, o estudo do helenismo e do Classicismo acompanha o

desenvolvimento da teoria estética alemã a partir da segunda metade do século

XVIII. A questão da imitação de um modelo antigo ou de um modelo moderno

orienta, por sua vez, o desenvolvimento da literatura alemã. E essa questão foi

amplamente trabalhada por Goethe e Schiller, tanto no campo teórico quanto na

prática artística. Por um lado, eles retomaram na fase clássica de sua literatura a

idéia winckelmanniana de imitação dos gregos; por outro lado, discutiram as

referências do teatro clássico francês e de Shakespeare, numa retomada do debate

iniciado por Lessing. Tendo em vista uma crítica da produção artística de seu

tempo, o Classicismo de Weimar buscava aprender com os gregos antigos um

ideal de beleza, para fundamentar e debater a poesia moderna.

Goethe e Schiller foram considerados, em sua época de juventude, os

grandes talentos da literatura alemã, a ponto de serem equiparados ao gênio de

Shakespeare. Não se trata portanto de teóricos ou historiadores da arte, mas de

dois poetas que elaboraram teorias estéticas, de modo que seus esforços teóricos

nunca deixaram de ter sua prática artística como referência. Por mais que os dois

8

escritores tenham elaborado um projeto que se baseava no estudo da Antigüidade

clássica, eles não pretendiam simplesmente copiar a arte do passado. Sua intenção

era discutir os fundamentos de sua própria criação, ou seja, de uma poesia

moderna. Com isso, revela-se a questão paradoxal desse projeto, em sua dimensão

histórica: a Antigüidade era vista como ideal, como algo de exemplar, ao mesmo

tempo que se reconhecia o condicionamento temporal e cultural da arte. Tendo em

vista esse condicionamento, os antigos não podiam simplesmente definir regras ou

fornecer modelos formais a serem copiados na prática artística do final do século

XVIII.

Para Friedrich Schlegel, em suas Conversas sobre a poesia, a maneira

como Goethe imitou seus modelos, inclusive os gregos, não diz respeito à forma

exterior das obras. “Este é o caráter da verdadeira imitação, sem o que uma obra

mal pode ser uma obra de arte! O modelo, para o artista, é apenas estímulo e meio

para individualizar os pensamentos daquilo que pretende criar”.8 Assim, os

gêneros poéticos imitados têm uma função que se integra às pretensões do artista,

em seu tempo. Esse sentido de uma apropriação dos gêneros pode esclarecer o

propósito de Goethe e Schiller, durante o Classicismo, como uma busca do ideal

de perfeição que Winckelmann tinha identificado nas esculturas da Antigüidade

grega. A verdadeira imitação pressupõe um reconhecimento da dimensão histórica

na poética dos gêneros e, com isso, uma reflexão sobre os antigos e os modernos.

3. Poética e Estética

A classificação de obras literárias de acordo com gêneros tem a sua raiz no livro

III da República de Platão, no qual Sócrates explica que há três tipos de

8 Ibidem, p. 75.

9

narrativas, separados de acordo com a maneira como as ações são apresentadas

pelo poeta. Trata-se de uma classificação que a tradição incorporou depois na

distinção entre a poesia dramática, a lírica e a épica, embora o filósofo não use

exatamente esses termos. O primeiro tipo mencionado por Sócrates é uma

“espécie que é toda imitação”, na qual o poeta não se manifesta, deixando falar os

personagens, como ocorre na tragédia e na comédia. O segundo tipo é “narração

pelo próprio poeta” como nos ditirambos. E o terceiro tipo une ambas as coisas e

pode ser encontrado nas epopéias, em que ora se manifesta diretamente o próprio

poeta, ora falam personagens.9

No terceiro capítulo da Poética, Aristóteles também faz referência às três

maneiras de imitar a natureza na poesia, afirmando que “é possível imitar os

mesmos objetos nas mesmas situações, numa simples narrativa ou pela introdução

de um terceiro, como faz Homero”, ou “insinuando a própria pessoa sem que

intervenha outro personagem”, ou ainda “apresentando a imitação com a ajuda de

personagens que vemos agirem e executarem eles próprios”.10 Basicamente ele

mantém a divisão feita por Platão. A epopéia (Homero) mistura a narrativa direta

com personagens que falam, no segundo gênero apenas o poeta se manifesta e o

terceiro diz respeito às poesias em que não há manifestação direta, apenas falas de

personagens.

Com base em Aristóteles, consagrou-se a tradição das Artes Poéticas, tanto

entre os romanos, quanto entre os teóricos modernos após o Renascimento. Nessa

tradição, a Poética de Aristóteles se tornou o modelo para uma teoria que

constitui, ao mesmo tempo, “uma resposta para a questão sobre o que é a poesia e

9 PLATÃO. República, III, 394c. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1987, p. 118. 10 Ver ARISTÓTELES. Poética, 1448 a. São Paulo, Ars Poética, Tradução de Eudoro de Souza, 1992, p. 23.

10

uma instrução sobre como se deve escrever uma epopéia, um drama”.11 Como

observa Szondi em suas conferências sobre Poética e filosofia da história, a

tradição da teoria da arte seguiu esse modelo normativo – por exemplo desde a

Arte poética, de Horácio (século I A. C.), até o Ensaio de uma arte poética cristã,

que Gottsched publicou em 1730. – Apenas no final do século XVIII o modelo

começou a ser questionado em favor de um pensamento estético novo:

Pois nas últimas décadas do século XVIII e nas primeiras do XIX constituiu-se, com grande diversidade, um outro gênero da poética, que não poderá ser abolido. Trata-se da poética filosófica, que não busca regras a serem empregadas na práxis, nem diferenças a serem consideradas na escrita, mas um conhecimento que se basta a si mesmo. Assim, a poética constitui uma parte da estética geral, pensada como filosofia da arte. Na época de Goethe, ela se torna cada vez mais um domínio dos filósofos.12

Essa mudança de fundamento definiria os rumos das teorias estéticas a

partir do final do século XVIII. Isso significa que, embora ainda continuem a ser

escritas obras meramente normativas sobre os gêneros da poesia, a filosofia da

arte passou a ocupar o terreno que antes era restrito às poéticas. Assim, mesmo as

definições acerca dos gêneros artísticos passaram a ser integradas a um

pensamento histórico e filosófico. A “poética dos gêneros” continuou a ser

pensada, mas agora como parte de um contexto mais geral, para o qual se

consagrou então o nome de estética.

Sobretudo a partir da Filosofia da arte (1859, publicação dos cursos de

1802-1805) de Schelling e da Estética (1835, publicação dos cursos de 1818 a

1829) de Hegel, os gêneros não seriam mais pensados como normas atemporais,

mas como manifestações históricas da arte. Assim, a filosofia se apropria da

11 SZONDI. Poetik und Geschichtsphilosophie I. Studienausgabe der Vorlesungen Band 2. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1974, p. 13. 12 Idem, p. 14.

11

poética, para questionar a essência do épico, do lírico e do dramático, que deixam

de ser apenas gêneros classificatórios. Como afirma Emil Staiger, em seus

Conceitos fundamentais da poética:

Os ramos, as classes multiplicaram-se desde a Antigüidade. Os nomes Lírica, Epopéia e Drama não bastam para designá-los. Os adjetivos lírico, épico e dramático, ao contrário, conservam-se como nomes de qualidades simples, das quais uma obra pode ou não participar.13

A ruptura com a tradição normativa e classificatória possibilitou uma filosofia da

arte que reflete, por exemplo, sobre o conceito de trágico desvinculado do gênero

poético tragédia. Possibilitou também a teoria da literatura que interpreta as obras

não só de acordo com os conceitos da essência dos gêneros antigos (os adjetivos

épico, lírico e dramático), mas também segundo uma compreensão das mudanças

históricas e das interferências entre esses gêneros. São exemplos desse tipo de

reflexão as noções atuais de “drama lírico” ou “teatro épico”. E Szondi considera

que, “na pré-história” das poéticas do século XIX que consolidaram essa ruptura,

encontram-se as idéias de Goethe e Schiller.14

De fato, em muitos pontos, as teorias dos dois escritores, voltadas para a

prática artística, anteciparam e influenciaram de modo decisivo a estética

posterior. A discussão presente nos ensaios e na correspondência de Goethe e

Schiller orientou o desenvolvimento de uma poética dos gêneros de caráter

histórico, não só na estética idealista e na romântica, como também na teoria da

literatura que sucedeu a esses movimentos. Quanto aos românticos, por exemplo,

a oposição entre ingênuo e sentimental, formulada por Schiller com base numa

comparação de sua criação poética com a de Goethe, constitui uma das bases da

reflexão sobre clássicos e românticos de Friedrich Schlegel. Já Hegel reconhece

13 STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975, p. 186. 14 Ver SZONDI. Poetik und Geschichtsphilosophie II. Studienausgabe der Vorlesungen Band 2. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1974, p. 41.

12

Schiller, em sua Estética, como um precursor do projeto idealista de uma

superação do abismo entre a razão e a sensibilidade na filosofia kantiana.

A indicação e o comentário dessas influências se articula ao estudo das

teorias que fundamentaram o Classicismo alemão desenvolvido na última década

do século XVIII e no início do XIX. Em todo caso, mais do que suas teorias, as

obras literárias dos dois escritores tiveram uma influência incalculável sobre a

literatura moderna e se tornaram realmente, na Alemanha, as referências clássicas

tanto para os defensores quanto para os contestadores do seu projeto artístico. Por

isso é preciso levar em conta sempre, no estudo das questões teóricas de Goethe e

Schiller, a referência a essas obras.

4. Goethe “e” Schiller

Estudar a relação, a rivalidade e a colaboração entre Goethe e Schiller é

fundamental para a compreensão do Classicismo alemão. Embora haja traços em

comum em suas trajetórias, já que ambos foram consagrados como dramaturgos

no contexto do Sturm und Drang, depois colaboraram intensamente no período

que ficaria conhecido como Classicismo de Weimar, os caminhos que levaram

cada um dos escritores a essa colaboração foram bastante diversos. E, mesmo

durante a fase em que se corresponderam e fizeram vários projetos em comum,

manteve-se entre Goethe e Schiller não só uma rivalidade, mas também uma

diferença fundamental na maneira de pensar. Nesse caso, a relação entre eles

passou pelo esforço de articular e compreender essa diferença e resultou numa

concepção da arte em que os dois caminhos antagônicos passaram a estabelecer

um diálogo. O Classicismo de Weimar incorporou as questões do realista Goethe,

que tinha como ponto de partida a observação dos objetos naturais, mesmo em

13

suas considerações sobre a arte, e do idealista Schiller, cuja teoria estética se

baseava sobretudo no estudo da filosofia de Kant.

É comum ser referir aos dois escritores com esta conjunção aditiva, “e”,

para designar as concepções classicistas ou as críticas às tendências literárias,

durante a fase de colaboração. A ordem em que os dois escritores são

mencionados pode ter ou não um sentido hierárquico, como mostram alguns dos

comentários sobre esse “e” que liga os dois grandes nomes da literatura alemã de

seu tempo. Nietzsche, por exemplo, ao mencionar o “famigerado ‘e’” da

expressão Goethe e Schiller, num aforismo do Crepúsculo dos ídolos, temia que a

ordem pudesse ser invertida, porque via na expressão uma hierarquia.15 Thomas

Mann contesta essa visão em seu ensaio “Goethe e Tolstói”:

Nietzsche uma vez nos repreendeu, a nós alemães, a falta de tato no uso da palavra “e” [...] ...dizíamos “Goethe e Schiller”, e ele temeu que ainda pudéssemos dizer “Schiller e Goethe” [...] Foi uma precipitação e uma arbitrariedade não-justificada de Nietzsche proclamar com seu escárnio daquele “e” uma hierarquia, ou impor como indiscutível o duvidoso, até o que é e podia continuar sendo a coisa mais duvidosa do mundo.16

Thomas Mann chama a atenção, em seguida, para o caráter profundamente

“antitético” da ligação entre Goethe e Schiller, na qual está contida uma oposição

de seus modos de pensar. As vias divergentes que levaram os dois escritores para

a fase de colaboração estão na base de sua ligação, fundamental para o

desenvolvimento do Classicismo alemão. Especialmente no caso da questão dos

antigos e dos modernos, ou seja, da imitação dos gregos no contexto de um

projeto moderno, é só o debate entre os dois escritores que define o sentido do

projeto classicista.

15 NIETZSCHE, Friedrich. Götzen-Dämmerung – Strefzüge eines Unzeitgemässen (16). Werke in drei Bänden. Band II. Munique, Hansen Verlag, 1994 p. 1000. 16 MANN, Thomas. Goethe’s Laufbahn als Schriftsteller. Frankfurt, Fischer, 1982, p. 68. MANN, Thomas. Ensaios. São Paulo, Perspectiva, 1988, p. 61.

14

5. O método

A expressão “época de Goethe” – Goethezeit – foi consagrada por alguns teóricos

da literatura alemã, como Lukács e Szondi, para designar um momento de

transição fundamental na história da Estética.17 A princípio, trata-se de uma

referência ao tempo de vida de um autor, que vai de 1749 a 1832 e abrange quase

um século de evoluções no campo de estudos acerca da arte. Mas o que importa

nessa designação não é simplesmente o período determinado entre essas datas, por

ter coincidido com certas circunstâncias históricas. Goethe estudou em sua

juventude os grandes teóricos da arte do século XVIII, como Winckelmann e

Lessing, combateu o Classicismo francês, leu a Crítica do Juízo de Kant em 1790,

e décadas depois viu o surgimento da filosofia da arte de Schelling e Hegel. Em

todo caso, denominar uma época usando o nome de um autor vai além de uma

referência temporal, já que ressalta a importância que esse autor teve para a época,

ou mais especificamente para os movimentos artísticos e as teorias da arte

elaborados então.

A obra e o pensamento de Goethe constituem um ponto de referência

fundamental para o momento de transição, na Estética alemã, que abrange desde

as teorias da arte de Winckelmann e Lessing, passando pela elaboração do

Classicismo de Weimar e pelo nascimento do Romantismo, até perto da

publicação dos cursos de Estética de Hegel. Uma questão marcante, em todo o

desenvolvimento da teoria da arte dessa época, foi o helenismo, ou seja, o debate

acerca da concepção e da imitação dos antigos. O Classicismo de Goethe,

elaborado com a colaboração fundamental de Schiller, estabelece os parâmetros 17 Ver: LUKÁCS. Goethe und seine Zeit. Berlim, 1950; SZONDI. Poetik und Geschichtsphilosophie I e II. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1974.

15

para esse debate, formulando uma visão da Grécia que se baseia nas reflexões de

Winckelmann sobre o ideal de beleza dos antigos.

Mas, na própria obra desses autores que desenvolveram e realizaram o

projeto classicista, especialmente na teoria literária de Schiller, é possível

identificar um questionamento da exemplaridade da arte grega, uma crítica da

nostalgia e uma defesa da poesia moderna. A consciência do caráter histórico da

criação artística implica uma reflexão sobre o fundamento do Classicismo, ou

seja, sobre o sentido da imitação dos antigos. Para esclarecer a maneira como essa

questão dos antigos e dos modernos foi pensada na época de Goethe, é necessário

apresentar o debate entre os autores, no contexto cultural da Alemanha do século

XVIII. Esse esforço de contextualização requer uma série de informações

históricas e biográficas, a partir das quais as questões teóricas podem ser

analisadas de acordo com as críticas, os propósitos e os esforços de colaboração

dos escritores da época.

Em primeiro lugar, é preciso investigar a maneira como Winckelmann

compreendeu os gregos, com base numa observação das obras de arte da escultura

antiga e numa análise formal que leva em conta suas condições de surgimento. Já

no contexto do debate entre os escritores do século XVIII, as críticas de Lessing e

a interpretação de Goethe e Schiller a respeito do projeto de imitação dos antigos

proposto por Winckelmann fundamentam o Classicismo alemão. Em segundo

lugar, o estudo da recepção de Shakespeare na Alemanha da época de Goethe é

fundamental para a compreensão da defesa da cultura moderna, na teoria da arte

desenvolvida pelo pré-Romantismo e pelo Classicismo de Weimar. A valorização

de Shakespeare articula uma crítica ao Classicismo francês e implica um

questionamento da exemplaridade dos antigos. Em terceiro lugar, a análise da

16

relação entre Goethe e Schiller esclarece as questões mais importantes de sua

teoria estética, na qual o esforço de justificar o antagonismo inicial entre os dois

escritores, baseado em modos opostos de fazer poesia, está ligado tanto ao

desenvolvimento de uma poética moderna, quanto à reflexão sobre os antigos e os

modernos.

Não que seja necessária uma tentativa de recuperar a compreensão das

questões no momento em que foram formuladas, abrindo mão das interpretação

que vieram mais tarde. As indicações de Friedrich Schlegel e Hegel, por exemplo,

são decisivas para mostrar como Goethe e Schiller influenciaram a teoria da arte

alemã posterior. Já as análises e comentários de autores do século XX, como

Georg Lukács, Walter Benjamin e Anatol Rosenfeld, orientam a leitura e a

compreensão da teoria da arte do século XVIII e de seu contexto histórico. Peter

Szondi, especialmente, indica a necessidade de situar a obra de Goethe e Schiller

num momento de transição da Estética, no qual a arte passou a ser pensada

histórica e filosoficamente, não mais segundo a perspectiva normativa tradicional.

No entanto, mesmo que a recepção e a interpretação das obras da época de

Goethe condicione a concepção que se tem delas, só o esforço de interpretá-las

diretamente esclarece e atualiza as suas questões. Nesse caso, tanto as

informações contextuais quanto as indicações interpretativas visam a enriquecer e

tornar mais precisas as análises dos próprios textos, apresentados de acordo com o

debate em que eles se inserem.

17

CAPÍTULO 1

O LAOCOONTE OU SOBRE AS BASES DO CLASSICISMO DE WEIMAR

1. A Alemanha da época de Goethe

Em seu “artigo enciclopédico”, Walter Benjamin chama a atenção para o fato de

que Goethe teve, durante a vida inteira, uma certa resistência em relação aos

grandes centros urbanos. Depois que partiu definitivamente de Frankfurt, sua

cidade natal, só a visitou duas vezes, assim mesmo de passagem, e nunca pôs os

pés em Berlim. As únicas exceções a essa característica do autor foram as visitas a

Roma e Nápoles, durante a longa permanência na Itália. Goethe passou a maior

parte de sua vida em Weimar, que na época tinha aproximadamente 6.000

habitantes. Embora esses fatos estejam ligados à personalidade do escritor, eles

são indicativos também da situação política da Alemanha na segunda metade do

século XVIII. Segundo as informações fornecidas por Benjamin, Frankfurt tinha

apenas 30.000 habitantes em 1749, ano do nascimento de Goethe, e Berlim, a

maior cidade do império alemão, contava com 126.000, enquanto Paris e Londres

já tinham ultrapassado os 500.000 habitantes cada uma.18 Como a revolução

burguesa na Europa dependeu em larga escala das grandes cidades, esses números

demonstram o atraso no desenvolvimento da burguesia alemã, da qual Goethe foi

a princípio um dos maiores expoentes e um defensor político.

Socialmente, a Alemanha do século XVII era caracterizada pelo poder dos

príncipes territoriais e pela fraqueza das camadas médias; economicamente, pelo

declínio das cidades mais poderosas, que vinham perdendo sua importância

comercial para os centros holandeses e ingleses desde o século XVI, quando

18 Ver “Goethe, artigo enciclopédico”, ensaio escrito em 1926 para a Grande Enciclopédia Russa. BENJAMIN, Walter. Dos ensayos sobre Goethe. Barcelona: Gedisa editorial, 1996, p. 139.

18

começaram as grandes navegações e o comércio marítimo no Oceano Atlântico.

Essa situação específica da Alemanha, do ponto de vista social e econômico, era

também o resultado de um longo período de guerras e conflitos, no qual o Sacro

Império Romano-Germânico enfrentou a Reforma luterana e as revoltas

camponesas. O ápice dessas revoltas, a Guerra dos Camponeses ocorrida de 1524

a 1526, forneceu a Goethe o argumento para sua primeira peça, Götz von

Berlichingen. A ideologia que motivava os camponeses era uma expressão da

contestação religiosa baseada na idéias de Lutero, embora ele próprio tenha

rejeitado as exigências dos rebelados e apoiado o direito dos príncipes alemães de

acabar com as sublevações. Como o imperador Carlos V, em atenção ao papa e à

força política dos seus aliados católicos do Sacro Império, não podia assumir a

posição de chefe da igreja luterana, que consolidaria o poder imperial, a Reforma

luterana concedeu aos príncipes o poder religioso, no mesmo momento em que o

fim das revoltas camponesas garantia seu poder político.

Quase um século depois, a Guerra dos 30 Anos (1618-48), que foi tema de

estudos históricos e da trilogia teatral Wallenstein, de Schiller, causou o colapso

final do comércio alemão e a destruição de muitas das cidades importantes do

país. Com a Paz de Vestfália, ao final da guerra, a soberania dos príncipes

territoriais alemães foi consolidada, mantendo-se sem um controle político central

até a unificação de 1870. Assim, quem dominava politicamente o país eram

grandes proprietários de terra que, ao contrário dos monarcas ingleses e franceses,

não tinham nenhum interesse na prosperidade da burguesia. Em comparação, os

outros países da Europa ocidental tinham passado por um processo em que o

19

poder foi centralizado por meio da vitória das monarquias sobre nobreza feudal,

com o apoio da burguesia ascendente nas grandes cidades.19

Considerando essas características políticas, sociais e econômicas, não era

de se estranhar que as grandes cidades alemães tivessem, no ano de nascimento de

Goethe, uma população muito menor do que a de Paris ou Londres, enquanto as

várias pequenas cortes continuavam a se desenvolver, tanto do ponto de vista

econômico quanto cultural. Nesse caso, as camadas médias urbanas, excluídas da

atividade política, não tiveram na Alemanha o mesmo florescimento da França ou

da Inglaterra. No século marcado pela ascensão da burguesia européia, que

culminou na Revolução Francesa, os burgueses alemães não prosperavam e, nos

vários principados em que o país se dividia, os governantes territoriais construíam

grandes castelos que imitavam os do rei da França, decorados com um luxo à

altura da corte de Versailles, como os de Nynphenburg, Schleissheim,

Ludwigsburg, o Zwinger de Dresden ou o Sansssouci de Potsdam. Apesar de

todas as diferenças políticas e econômicas, a vida cultural dos principados

alemães seguia o modelo da corte francesa, cujo gosto artístico foi o ponto de

referência na Alemanha daquela época, especialmente durante a primeira metade

do século XVIII. Também na literatura desse período, a tendência dominante foi a

de um Classicismo baseado no modelo francês, estilo que teve como expoentes

Johann Christoph Gottsched (1700-1766) e Christoph Martin Wieland (1733-

1813).

19 Ver HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 598-600. Para uma comparação entre a formação do Estado na Alemanha, França e Inglaterra, ver: ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro, Zahar, 1993, p. 91-97.

20

2. Crítica e criação

No capítulo intitulado “Lessing e Winckelmann” de seu livro a respeito da

Alemanha, publicado em 1813, Madame de Staël considera que “a literatura

alemã talvez seja a única que começou pela crítica; em outros lugares, a crítica

vem depois das obras-primas; mas na Alemanha ela as produziu”.20 A observação

da escritora francesa não só ressalta um aspecto determinante e exclusivo do

desenvolvimento literário alemão, mas também indica a importância fundamental

dos teóricos da arte do século XVIII nesse desenvolvimento. Com os escritores

Winckelmann e Lessing, cria-se na Alemanha como que um ideal teórico da arte,

quando o país não tinha uma literatura nacional autêntica, enraizada em sua

própria cultura, e se pautava pelo gosto e pelos padrões importados da França.

Posteriormente, em meio aos debates acerca desse ideal, a cultura alemã seguiria o

caminho de uma crítica intensa ao Classicismo e ao racionalismo franceses,

durante o movimento pré-romântico do qual participaram Herder, Goethe e

Schiller. No teatro, na poesia e no romance, foi essa postura crítica que abriu o

caminho para o surgimento de uma produção literária própria. Assim, na época de

Madame de Staël, e com a contribuição de seu livro, tanto o chamado pré-

Romantismo quanto o Romantismo propriamente dito, enraizados na cultura

alemã, chegaram a exercer grande influência inclusive sobre os autores franceses.

Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) foi um crítico severo das artes

plásticas de sua época, especialmente do Barroco e do Rococó na escultura e de

um falso realismo na pintura. No primeiro caso condenava o exagero dos

seguidores de Gian Lorenzo Bernini (1568-1680), no segundo, a cópia da natureza

ao estilo de pintores holandeses como Dou (1613-1675) e Van der Werff (1659-

20 STAËL, Madame de. De l’Allemagne. Paris: Garnier-Flamarion, 1968, p. 183.

21

1722). Essa investida contra o que considerava uma arte decadente era baseada em

uma comparação com a produção artística do Renascimento – Rafael,

Michelangelo – e da Antigüidade clássica, o que levou Winckelmann a formular o

ideal de imitação dos antigos, como um princípio a ser seguido pelos artistas de

seu tempo. Essa teoria influenciou, a partir de então, o desenvolvimento da

literatura e da teoria da arte na Alemanha, ligado aos estudos clássicos e ao

helenismo.

Já Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) foi, além de um grande crítico

literário, um dos maiores nomes da dramaturgia alemã na época do Iluminismo.

Sua polêmica contra os padrões do gosto francês, baseada em uma valorização de

Shakespeare como modelo para o teatro alemão, foi seguida em larga escala pelos

pré-românticos como Herder, Goethe e Lenz. Em seu Laocoonte, ele discutiu o

ideal de beleza defendido por Winckelmann, para demonstrar a diferença que

havia em considerar a caracterização de Laocoonte no campo da literatura ou das

artes plásticas. Essa definição de fronteiras entre as artes contrariava uma longa

tradição, que remonta ao famoso verso ut pictura poesis, “poesia como pintura”,

da Ars Poética [361] de Horácio, retomado pelos teóricos renascentistas. A crítica

a esse princípio tradicional de identificação entre poesia e pintura também

marcou, de modo decisivo, a estética e a literatura posteriores.

Assim, de acordo com os ideais teóricos do século XVIII, a arte grega era

o modelo a ser seguido para os artistas modernos, e Shakespeare era o modelo a

ser seguido pelo teatro alemão. No primeiro caso, indicava-se a via do

Classicismo, no segundo, a do pré-Romantismo, movimento que ficou conhecido

sob o título de Sturm und Drang, “tempestade e ímpeto”. No entanto, esses ideais

teóricos necessitavam de uma criação artística à sua altura, como reconheceu

22

justamente o grande nome da teoria pré-romântica Johann Gottfried Herder (1744-

1803), autor de Idéias sobre a filosofia da história da humanidade e de diversos

ensaios. Em seu escrito de 1777 sobre Winckelmann, ele afirma que “a teoria do

belo mais plena de sentimentos, apresentada com a simplicidade, a dignidade e a

força dos antigos, como fez Winckelmann, é apenas um aceno para aquele que

deve vir, para o novo Rafael e Angelo dos alemães, que crie para nós homens

gregos e uma arte grega”.21 Esse trecho é citado pelo teórico da literatura alemã

Peter Szondi, para demonstrar que, segundo a perspectiva de Herder, quem

realizou o ideal de uma arte nacional vigorosa e autêntica foi um dramaturgo, e

não um artista plástico.

Em um texto de 1773, no qual a obra de Shakespeare é defendida como

modelo para o teatro nacional alemão, Herder já tinha identificado Johann

Wolfgang von Goethe (1749-1832), o autor da peça Götz von Berlichingen,

publicada no ano anterior, como um gênio alemão à altura desse modelo. Do

mesmo modo que o texto sobre Winckelmann, o ensaio sobre o dramaturgo inglês

termina com uma referência ao futuro, o anúncio de um movimento que se

inaugurava na Alemanha do final do século XVIII. Herder se dirige pessoalmente

ao jovem escritor que conhecera em Estrasburgo, poucos anos antes: “...você, meu

amigo, que se reconhece nesta leitura, [...] ainda pode ter seu sonho doce, digno,

de produzir sua homenagem a ele [Shakespeare] a partir da nossa época de

cavaleiros, em nossa língua”. E aconselha, após a afirmação de que inveja o sonho

de Goethe: “não arrefeça sua nobre atividade alemã até que ela seja coroada”.22

Nesse caso, Herder retoma a posição de Lessing a respeito do teatro nacional,

21 HERDER. “Denkmal Johann Winckelmanns”, em Sämtliche Werke. Nachdruck der Ausgabe. Berlin 1892. Hildesheim 1967. VIII, 483. Ver também SZONDI, Peter. Poetik und Geschichtsphilosophie I. Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1974, p. 63-64. 22 HERDER. Op. cit., V, 231.

23

valorizando Shakespeare em detrimento dos dramaturgos franceses, e enxerga na

peça sobre o cavaleiro alemão Götz von Berlichingen uma obra emblemática, que

estava de acordo com os parâmetros defendidos no seu ensaio. Assim, ele

identificava no jovem escritor alemão um realizador do ideal teórico discutido

inicialmente por Lessing.

Para Szondi, é como se a poesia pudesse ser colocada no lugar da pintura,

e o novo Rafael e Michelangelo dos alemães também fosse incorporado pelo

jovem Goethe, segundo a teoria histórica de Herder que se encontra na base do

movimento pré-romântico. A promessa de uma arte grandiosa na Alemanha, para

a qual Winckelmann acenaria, teria seu desdobramento na literatura. A fase

posterior da produção literária do autor de Götz von Berlichingen e do grande

sucesso da época, o romance epistolar Os sofrimentos do jovem Werther, contraria

em grande medida os preceitos pré-românticos, para decepção de Herder e de

todos os defensores do Sturm und Drang. Contudo, tanto as obras dessa fase de

Goethe (como a peça Ifigênia em Táuris e o poema épico Hermann e Dorothea)

quanto as idéias sobre a arte que ele passou a defender só podem reforçar a noção

de que se trata do realizador, na literatura alemã, do ideal clássico de

Winckelmann. Especialmente após sua viagem de dois anos à Itália (1786-1788),

Goethe renovou o helenismo alemão, procurando incorporar à sua obra a beleza e

os limites aprendidos com o estudo da arte grega. Junto com Friedrich Schiller

(1759-1805), outro antigo participante do movimento pré-romântico, ele

inaugurou em Weimar um novo Classicismo, que não se reduzia à elaboração

teórica, como o de seu precursor, mas se refletia amplamente na produção artística

dos dois grandes nomes da literatura alemã, na virada do século XVIII para o

XIX.

24

3. Helenismo

3.1. O papel de Winckelmann

Apesar de sua enorme importância na história da cultura alemã, Winckelmann não

é um autor muito lido e estudado atualmente, pelo menos não na medida que se

esperaria a partir dos comentários feitos por seus contemporâneos ou sucessores.

Herder e Goethe escreveram longos ensaios em homenagem a ele, Madame de

Staël, em seu célebre livro sobre a cultura alemã, chamava a atenção dos leitores

franceses para “o homem que fez uma verdadeira revolução na Alemanha na

maneira de considerar as artes, e entre elas a literatura”.23 Contribuem para esse

declínio do interesse pelas obras de Winckelmann tanto as dificuldades do estilo e

da escrita, repleta de referências aos debates travados pelos teóricos da arte da

época, quanto a imprecisão, evidenciada à luz de análises posteriores, dos dados

históricos fornecidos pelo autor.

Além de ser considerado o fundador da arqueologia moderna, em função

de seus estudos das escavações de Pompéia e Herculano, Winckelmann

estabeleceu novos parâmetros para a história da arte, influenciando todo o seu

desenvolvimento posterior. Segundo os próprios historiadores da arte, ele também

teve um papel decisivo no movimento neoclássico, embora esse papel talvez

revele uma má interpretação de sua teoria acerca da imitação dos antigos. Como

aponta Gerd Bornheim, em seu ensaio “Introdução à leitura de Winckelmann”,

“os seus autênticos continuadores não são os escultores e os pintores” que

seguiram o caminho do academismo e da cópia, “mas os poetas”, 24 sobretudo

Goethe em sua fase clássica. De fato, Winckelmann pretendeu indicar um

23 STAËL. Op. cit., p. 185. 24 BORNHEIM, Gerd. Páginas de filosofia da arte. Rio de Janeiro, Uapê, 1998, p. 106.

25

caminho para a produção artística, especialmente no campo da escultura,

defendendo o modelo dos gregos antigos, mas as suas idéias não podem ser

reduzidas ao princípio que norteou o movimento neoclássico. Elas se inserem em

um projeto mais amplo de análise e compreensão da arte grega, um esforço de

interpretação que influenciou decisivamente a literatura e a filosofia alemãs nos

séculos seguintes.

Até os trinta anos de idade, Winckelmann ainda não tinha começado a

realizar aquela que seria a tarefa de sua vida, dedicada ao esforço de esclarecer a

produção artística da Grécia antiga. Nascido em 1717 em Stendal (Magdeburg),

filho de um sapateiro, interessado desde jovem pela literatura clássica, ele teve a

oportunidade de estudar teologia e medicina na Universidade de Halle graças a

uma bolsa. Foi preceptor, como muitos dos jovens letrados alemães de seu tempo,

depois se tornou secretário do conde de Bürnau, no castelo de Noethernitz, em

Dresden, cidade que era considerada a Florença do norte da Europa porque

dispunha de excelentes coleções de obras da Antigüidade e do Renascimento. No

próprio castelo de Noethernitz, havia mais de 150 obras de imitadores de Bernini,

o mais importante artista do período barroco. A observação dessas esculturas

contribuiu para a formulação das críticas de Winckelmann a esse estilo, que ele

considera, em sua primeira obra, uma forma decadente de arte. Em 1755, quando

o autor trabalhava como bibliotecário particular do conde de Bürnau, foi

publicado em Dresden o escrito Reflexões sobre a imitação das obras gregas na

pintura e na escultura. Esse trabalho, que recomenda aos artistas da época, em

lugar da imitação direta da natureza, a imitação da arte grega, considerada como

modelo do ideal de beleza, teve uma repercussão considerável e fez de

Winckelmann uma espécie de porta-voz dos estudos clássicos na Alemanha.

26

Nesse sentido, uma frase do começo das Reflexões marcou época: “O único

caminho para nos tornarmos grandes e, se possível, inimitáveis, é a imitação dos

antigos...”.25

A obra de Winckelmann se insere, assim, na tradição da célebre Querelle

des anciens e des modernes, desenvolvida na França do século XVII. A querela

começou em 1653, com discussões sobre o uso do maravilhoso na literatura,

intensificou-se em 1687 com a leitura do poema de Perrault O século de Luís XIV,

que defendia a superioridade da literatura francesa moderna sobre a dos gregos e

latinos, e se estendeu até as primeiras décadas do século XVIII. Em resumo, os

partidários dos antigos (Boileau, La Fontaine) defendiam a aplicação rigorosa da

teoria clássica e a volta às fontes da Antigüidade grega e latina. Os partidários dos

modernos (Thomas Corneille, Perrault) consideravam que tinha havido um

enriquecimento cultural e artístico, por isso defendiam a superioridade de sua

época. E os conciliadores (Fénelon, Fontenelle) tinham uma posição

intermediária, segundo a qual a literatura clássica devia ser considerada como

exemplo, mas sem frear a evolução cultural.26

Mas o Classicismo alemão, que se iniciava tardiamente, no século XVIII,

distanciou-se em muitos aspectos da versão francesa e do ideal renascentista.

Como aponta Gerd Bornheim, a originalidade de Winckelmann já se encontra no

fato de ele entender, por “antigos”, os gregos da época clássica, enquanto tinha

predominado, do Renascimento ao período barroco, uma noção de “antigo”

vinculada mais fortemente à tradição romana. Embora não faça sempre distinções

históricas precisas entre as estátuas de cada período, Winckelmann “soube

25 WINCKELMANN. Réflexions sur l’imitation des oeuvres grecques en pinture et sculpture (Coleção bilíngüe de clássicos estrangeiros). Alerçon (Orne), Aubier, 1990, p. 94. 26 Ver RIGAULT, H. Histoire de la Querelle des Anciens et des Modernes. Paris, 1856. Também NELSON, Robert. “The Ancients and the Moderns”, em: A New History of French Literature. Cambridge, Harvard, 1994, p. 364-369.

27

emprestar aos gregos e ao que considerava ser a Grécia clássica uma importância

bem definida, situando-os, sobretudo, em tal perspectiva que os antigos passaram

a ter uma nova modalidade de presença na cultura do Ocidente”.27 Com isso,

tornou-se possível ver o mundo antigo por uma perspectiva nova, que marcou o

helenismo da cultura alemã da época de Goethe.

Logo após a publicação de seu primeiro livro, Winckelmann se converteu

ao catolicismo (sua família era protestante), embora não acreditasse na fé cristã, a

fim de ter a oportunidade de ir para Roma, onde trabalhou a princípio como

bibliotecário do cardeal Archinto. Visitou as ruínas de Pompéia e Herculano em

1762, na primeira de suas viagens a Nápoles, e no ano seguinte se tornou

superintendente das antigüidades romanas na capital italiana, depois passou a ser

o secretário particular do cardeal Albani, um dos maiores colecionadores da

época. Foi nesse período que ele preparou a sua obra mais completa, História da

arte da Antigüidade, publicada em Dresden em 1764. Nesse livro, Winckelmann

descreve e analisa uma variedade muito maior de obras antigas, a partir dos

mesmos princípios que tinham sido expostos nas Reflexões. A idéia de que os

gregos foram os únicos, entre todos os povos, a atingir o pleno desenvolvimento

da forma bela, como se a natureza se revelasse ao artista em estado de perfeição,

justifica a defesa da imitação de sua arte. As análises de esculturas, como ponto de

partida da teoria, têm a intenção de demonstrar a noção da beleza ideal como meta

da criação artística antiga. Para isso, o autor se baseia, desde seu primeiro escrito,

nas condições de surgimento da escultura grega, descrevendo os artistas como

observadores dos atletas nos ginásios. Ele procura, assim, entender concretamente

as obras de arte produzidas, do ponto de partida dos escultores, a observação dos

27 BORNHEIM, Gerd. Op. cit., p. 79-80.

28

corpos belos, até os procedimentos técnicos envolvidos. Foi esse procedimento

inovador, no século XVIII, de análise da gênese das obras, das condições culturais

e do ambiente em torno delas, que marcou profundamente o desenvolvimento

posterior da história da arte.

Em 1768, Winckelmann tinha a intenção de voltar à Alemanha para uma

visita breve, após o seu longo período de permanência na Itália, mas desistiu no

meio da viagem, em função da melancolia que sentiu ao contemplar a paisagem

de seu país natal. A Alemanha parecia triste ao autor das Reflexões, apaixonado

pela natureza e pelo ambiente artístico das cidades italianas. No entanto, a decisão

de retornar o quanto antes a Roma acabou se revelando uma fatalidade, pois foi

em Trieste, durante a viagem de volta, que Winckelmann foi assassinado a golpes

de punhal por um homem que acabara de conhecer. Goethe faz referência a esse

episódio em seu livro de memórias, intitulado Poesia e Verdade, oferecendo

também uma depoimento acerca da importância do autor para os estudantes da sua

geração. Adam Friedrich Oeser (1717-1799), que tinha sido um dos mentores de

Winckelmann em suas concepções sobre a arte, era naquele tempo, em Leipzig, o

professor de pintura de Goethe, que conta:

De repente os jovens estudantes ouvem dizer, jubilosos, que Winckelmann vai voltar da Itália, visitar o príncipe [de Dessau] seu amigo, hospedar-se de passagem em casa de Oeser e, por conseguinte, aparecer na nossa roda. Não tínhamos a pretensão de entrar em conversa com ele, mas esperávamos [...] ver esses homens, que nos eram tão superiores, passear diante dos nossos olhos. O próprio Oeser encontrava-se num estado de verdadeira exaltação ao simples pensamento de rever o seu amigo, e foi como um raio em céu azul que estourou em nosso meio a notícia da morte de Winckelmann. [...] Esse horrível acontecimento produziu um efeito imenso. Foram lamentos e gemidos universais. A morte prematura de Winckelmann fez sentir mais intensamente o valor da sua vida.28

28 GOETHE. Memórias: Poesia e Verdade. Volume 1. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986 (2ª edição), p. 247. Para mais detalhes a respeito da vida e da obra de Winckelmann, ver a introdução de Léon MIS, em: WINCKELMANN, Op. cit., p 5-78.

29

3.2. Goethe leitor de Winckelmann

Na primeira década do século XIX, um projeto de Goethe em conjunto com

Heinrich Meyer e o filólogo August Wolf incluía, além de ensaios dos três

escritores, a publicação das cartas, então ainda inéditas, do autor das Reflexões e

da História da arte na Antigüidade a seu amigo Berendis. Terminado em 1805, o

texto de Goethe sobre o teórico da arte que tanto influenciou sua literatura procura

apresentar a vida e o trabalho de Winckelmann no contexto do século XVIII. No

entanto, a idéia central é justamente mostrar o autor não como um homem

moderno, integrado ao modo de pensar da sua época, mas como um homem de

espírito grego, que encontrou no estudo da arte e da cultura da Antigüidade algo

que correspondia à sua própria natureza. Com isso, Goethe articula seu tema à

discussão mais fundamental acerca do antigo e do moderno, questão que

constituía uma das bases das teorias da arte alemãs do século XVIII, como uma

reapropriação da Querelle francesa.

Dando a essa discussão o sentido específico de uma análise da

personalidade – como voltaria a fazer anos depois em “Antigo e moderno” – o

escritor faz uma comparação entre as características do homem moderno e as do

antigo, para situar Winckelmann não como defensor dos antigos, mas como sua

“reencarnação”.29 Essa comparação é introduzida como uma referência, um

exemplo, que esclarece uma gradação a respeito do quanto um homem pode

chegar a alcançar em vida. O uso de forças particulares possibilita algumas

realizações relevantes, a combinação de diversas faculdades atinge algo de

extraordinário, mas “...só é possível alcançar algo único, inesperado, caso todas as

29 Ver GOETHE. “Winckelmann”, em: Goethe Werke, VI - Vermischte Schriften, Frankfurt, Insel Verlag,1965, p. 267-268.

30

qualidades de um homem estejam reunidas, como aconteceu com muitos dos

antigos”. O exemplo de uma realização plena, apresentado na frase pelo “como

aconteceu”, justifica a comparação feita logo em seguida com o homem moderno,

que “muitas vezes se perde no infinito, antes de retornar a um ponto de referência

limitado, enquanto os antigos sentiam-se em casa nas fronteiras de seu belo

mundo”. Assim, haveria uma completude bem delineada, em harmonia com o

mundo em torno, comparada à dispersão e à generalização. Goethe aponta aqui,

em sua crítica ao homem moderno, o risco de se perder o foco, em função de um

saber excessivamente especializado, dividido em campos do conhecimento

desconectados entre si. Nesse sentido, Winckelmann é considerado como espírito

antigo por ter sido capaz de explorar várias áreas do conhecimento, mas sem

perder o foco daquela que correspondia à sua natureza e que concentrava todas as

suas atividades em uma única meta, conjugando a inclinação e a necessidade. Para

completar o círculo que delimita a comparação “nas fronteiras de seu belo

mundo”, o autor de espírito antigo tem como meta justamente a compreensão da

Antigüidade.

Esse espírito grego de Winckelmann é percebido não só na profunda

paixão que se revela na sua consideração teórica da arte clássica, mas também nos

traços particulares da sua personalidade, ou nos exemplos de determinados fatos

da sua vida. Assim, Goethe identifica um “paganismo” que permeia as atividades

e os escritos do autor das Reflexões, manifestado na sua conversão ao catolicismo

apenas para realizar o plano de ir à Roma, apesar de uma indiferença à fé cristã.

Ressaltando outro elemento da biografia, o escritor faz uma avaliação da vida

amorosa de Winckelmann com base na noção de amizade dos tempos antigos, a

fim de mostrar que a preferência por jovens do sexo masculino estaria ligada ao

31

tipo de relação que os poetas e filósofos gregos descrevem. É como se o autor

analisado, de acordo com essa ótica, conjugasse todas as características de sua

natureza com o amor pela arte antiga, pela beleza física que encontra sua imagem

ideal na escultura grega justamente ao representar o divino. Tanto a devoção

religiosa quanto a amizade aparecem, então, sob o signo do amor pela beleza dos

gregos antigos. Assim, numa análise de caráter biográfico, Goethe homenageia o

autor que orientou o rumo de seus estudos da Antigüidade, moldando a fase

“clássica” de sua produção artística e de sua reflexão teórica.

3.3. A imitação dos antigos

O texto das Reflexões sobre a imitação das obras gregas na pintura e na

escultura contém duas noções fundamentais, que orientam toda a teoria de seu

autor. A primeira delas é basicamente didática, uma vez que a defesa da imitação

dos antigos se apresenta como uma recomendação, aos artistas jovens, de que

partam do modelo da arte grega, em vez de recorrer diretamente ao modelo da

natureza. Mas, considerada como “o único caminho para nos tornarmos grandes,

se possível inimitáveis”, a idéia de imitação constitui um dos pilares do

Classicismo alemão e se insere na tradição da Querelle entre antigos e modernos.

A outra noção central na teoria de Winckelmann é a dupla definição do ideal de

beleza da arte antiga, caracterizado como nobre simplicidade e calma grandeza.

Esse ideal, ressaltado pelo autor nas suas descrições das estátuas gregas, revelaria

a meta da arte, aquilo que a torna inimitável e, ao mesmo tempo, faz dela um

modelo a ser imitado.

Em seu ensaio sobre Winckelmann, escrito em 1805, Goethe chama a

atenção para a dificuldade inerente à leitura das Reflexões. Embora considere que

32

o escrito “contém passagens excelentes, de importância fundamental,” e “indica

corretamente a meta da arte”, ele afirma que, “quanto à forma e à matéria, a

discussão é tão barroca e estranha que seria impossível dar sentido a ela sem

conhecer as personalidades dos eruditos e críticos na Saxônia na época, as

opiniões deles, suas inclinações e caprichos...”. Ele se refere aqui a autores como

Lippert, Oesterreich, Hagedorn, Diterich e Oeser, seu antigo professor de pintura

mencionado também nas memórias, todos eles teóricos da arte com quem

Winckelmann dialoga em sua primeira obra. O método didático e anedótico

desses autores de meados do século XVIII, cujos escritos não tiveram grande

repercussão a longo prazo, também teria sido adotado pelo autor das Reflexões. O

adjetivo “barroca”, atribuído à sua escrita, indica um contra-senso entre o

propósito do texto, de criticar justamente o estilo barroco da arte de sua época, e o

texto rebuscado, construído em cima de oposições sutis, de considerações às vezes

ambíguas. É em função dessas dificuldades do texto, tanto metodológicas quanto

estilísticas, que Goethe conclui: “A obra será incompreensível para as próximas

gerações, a não ser que amantes da arte próximos ao período a façam acompanhar

por descrições detalhadas das condições em que ela surgiu”.30

No entanto, apesar de suas dificuldades e deficiências inegáveis, a primeira

obra de Winckelmann tinha sido privilegiada por Herder, em lugar da mais

completa História da arte da Antigüidade, no texto “Memorial de Johann

Winckelmann”, de 1777. Para Herder, “de certo modo a primeira obra de um

homem será sempre a sua melhor”, porque, segundo sua explicação, “depois ele

pode ganhar muito em maturidade, força, erudição e conhecimento, como

Winckelmann indubitavelmente ganhou com o passar dos anos; mas a sua

30 GOETHE. “Winckemann”, em: Vermischte Schriften, Sechster Band. Frankfurt, Insel Verlag, 1965, p. 275. Ver também GOETHE. Essays on art and literature. The Collected Works, Volume 3. New Jersey: Princeton University Press, 1994 .

33

alvorada e primeiro florescimento juvenil foram transmitidos naquela primeira

obra”. Os defeitos desse escrito “imperfeito” são destacados como qualidades:

Ele abarca mais do que tem, intui mais do que sabe, mas flutua ainda em sonhos ditosos e se entrega. Mais tarde vêm contradições, regras e inimigos que o tornam mais cuidadoso [...], na primeira obra ele trabalha ainda sem limitações, no paraíso que ele cria para si mesmo, as forças de sua alma ainda se encontram sem divisão, e ele pretende, como as crianças que começam a falar, dar tudo de uma vez, dizer tudo de uma vez.31

O texto de Herder procura definir a influência que Winckelmann teve

sobre sua própria concepção histórica da arte, vendo no autor das Reflexões um

defensor do sentimento [Gefühl] contra o racionalismo iluminista. Como teórico

do Sturm und Drang, o movimento pré-romântico que ganhava força na

Alemanha no final do século XVIII e se opunha sobretudo às regras do

Classicismo francês, Herder valorizava o direcionamento de Winckelmann para

uma interpretação direta e arrebatada das obras de arte particulares. Assim, a

proximidade por meio do sentimento se contrapõe à frieza da razão normativa, e a

busca das condições de surgimento da escultura, identificadas na observação da

natureza bela dos corpos de atletas, indica um caminho novo, uma compreensão

baseada na especificidade da cultura, da geografia e do clima. Uma compreensão

desse tipo foi defendida por Herder em seus ensaios sobre arte, especialmente no

escrito de 1773 em que ele tem como tema a obra de Shakespeare. Mas a

perspectiva histórica do autor de Idéias sobre a filosofia da história da

humanidade contradizia o caráter de modelo exclusivo da arte grega, por isso

Winckelmann também é criticado, no final do ensaio dedicado a ele, em função de

sua falta de interesse pela arte do Egito e da Ásia, identificados por Herder como

o berço cultural da Grécia antiga.

31 HERDER. Sämtliche Werke. Nachdruck der Ausgabe Berlin 1892. Hildesheim 1967. VIII, 451 f.

34

O crítico literário Peter Szondi cita os comentários de Herder em favor do

privilégio dado à primeira obra de Winckelmann, para justificar sua própria

escolha das Reflexões como tema de análise na conferência “Antigos e modernos

na estética da época de Goethe”. Segundo a análise de Szondi, o texto das

Reflexões situa seu autor na fronteira entre duas épocas da estética: a tradição

normativa e classificatória baseada na Poética de Aristóteles, que dominava a

teoria da arte iluminista, e a concepção histórica que marcaria a filosofia da arte

no século XIX.32 A posição de Winckelmann em relação à transição por que

passava a estética de sua época se manifesta já na primeira frase do escrito: “O

bom gosto, que se espalha cada vez mais pelo mundo, começou a se formar pela

primeira vez sob o céu grego”. Por um lado, a noção de “bom gosto” revela um

vínculo com a estética iluminista, na qual o domínio do gosto, como uma espécie

de senso clássico de beleza, define um critério normativo atemporal para

distinguir as obras de arte boas das ruins. Desde o Renascimento, passando pelo

Classicismo francês, tinha havido um refinamento desse critério, a princípio

ligado à idéia de autoridade dos autores antigos, determinante no pensamento

medieval, depois ao domínio da razão, com a discussão das regras da arte e de

suas funções. O bom gosto aparece então como uma capacidade de apreensão do

belo, anterior à compreensão racional, mas orientada por ela.

Por outro lado, a referência que Winckelmann faz ao “céu grego” aponta,

ainda de acordo com Szondi, uma compreensão histórica das condições de

surgimento das obras de arte em seu caráter particular, único, ligado ao clima, à

natureza do lugar e do povo nele gerado. Essa singularidade da cultura grega é

considerada logo em seguida, na segunda frase do texto:

32 SZONDI. “Antike und moderne in der Ästhetik der Goethezeit”, em Poetik und Geschichtsphilosophie I: Op. cit., p. 21-31.

35

Todas as invenções de povos estrangeiros vieram para a Grécia, apenas como a primeira semente, e assumiram uma outra natureza e configuração na terra que Minerva, diz-se, reservou aos gregos para morada, de preferência a todas as terras, em função das estações temperadas que encontrou nesse lugar que produziria homens inteligentes.

Para Szondi, desde o início a teoria de Winckelmann é marcada por uma

contradição, o que revela seu posicionamento em um momento de transição da

teoria da arte. O autor das Reflexões inaugura uma compreensão da história da arte

baseada na busca das condições de surgimento das obras antigas, “sob o céu

grego”, mas procura com isso definir um critério normativo, atemporal, um

modelo a ser imitado sob um céu diferente. Essa aporia entre a singularidade do

surgimento da arte antiga e o postulado da sua exemplaridade levaria, segundo a

análise do ensaísta Szondi, ao fracasso do projeto do Classicismo. No entanto, o

caráter histórico das investigações de Winckelmann influenciou decisivamente a

estética posterior, de Herder a Hegel, e o desenvolvimento da história da arte

voltado para a compreensão das obras em sua particularidade. Szondi ressalta que

as Reflexões se opõem à abstração das teorias normativas sobre a arte, ao oferecer

uma interpretação concreta das esculturas, a partir da descrição e da consideração

do contexto cultural, geográfico e climático em que surgiram. Nesse sentido, o

escrito remete ao diálogo com artistas, como o já citado pintor Oeser, refletindo a

atenção dedicada à prática e à técnica, em lugar da formulação de regras gerais

abstratas.

Quanto à imitação dos antigos, embora sua defesa de fato se revele como

uma formulação normativa, uma regra que contradiz o caráter histórico da arte, é

preciso ressaltar o propósito mais concreto de um questionamento do aprendizado

e da prática artística. O ponto de partida de Winckelmann é uma crítica aos

36

caminhos tomados pela arte de sua época, marcada pelo estilo barroco e pela

cópia da natureza por parte dos pintores holandeses. Essa arte se encontrava,

segundo sua perspectiva, em franca decadência quando comparada às obras-

primas do Renascimento e, especialmente, da Antigüidade grega. Por isso, ele

indica aos estudantes e aprendizes uma outra via, diferente daquela defendida pelo

escultor barroco Bernini, “que recomendava sempre aos jovens artistas estudar

preferencialmente a natureza”. Winckelmann questiona a maneira de compreender

a noção tradicional, de base aristotélica, da arte como “imitação da natureza”.

Esse questionamento diz respeito à interpretação da mímese, noção que corre o

risco de se degenerar no sentido mais fraco de mera cópia. De acordo com o texto

das Reflexões:

A imitação do belo na natureza concerne ou bem a um objeto único ou então reúne as notas de diversos objetos particulares e faz deles um único todo. O primeiro processo implica fazer uma cópia semelhante, um retrato; é o caminho que conduz às formas e figuras dos holandeses. O segundo é o caminho que leva ao belo universal e suas imagens ideais; esse foi o seguido pelos gregos.33

O segundo caminho, o caminho seguido pelos gregos, é apresentado como

um “caminho mais curto” para apreender o belo. Uma vez que a relação mesma

do homem moderno com a natureza seguiria aquele primeiro processo, limitado à

visão de objetos particulares, seria necessário aprender, ou imitar, a via de uma

outra relação com a natureza. Winckelmann descreve o caminho de síntese

seguida pelos gregos, a fim de mostrar como a “imitação do belo” vai além

daquilo que naturalmente se oferece à visão. No começo de seu escrito, ele se

refere ao aprendizado da arte na Grécia, considerada como um lugar em que a

beleza natural se mostrava “sem encobrimentos”. Segundo essa investigação das

condições de surgimento da escultura grega, a escola dos artistas seriam os

33 WINCKELMANN. Op. cit., p. 122.

37

ginásios, nos quais os jovens se exercitavam sem roupa alguma, de modo que a

beleza dos seus corpos podia ser observada nas mais variadas posições e atitudes.

Para Winckelmann, a observação possibilitada nos ginásios, aliada às condições

climáticas favoráveis, aos hábitos da época e à elevação do espírito, teria levado a

uma imitação que vai muito além da mera cópia dos exercícios acadêmicos de

observação. A partir das ocasiões numerosas de observar o belo na natureza (os

corpos despidos dos jovens), os artistas gregos teriam começado a formar

conceitos gerais da beleza presente nas partes e proporções do corpo humano, com

base em um modelo de natureza espiritual, em uma idéia de perfeição ligada, não

mais ao humano, mas ao divino.

Winckelmann exemplifica a superação da semelhança com a natureza em

duas estátuas gregas: o Antinous Admirandus, cujo corpo perfeito a própria

natureza estaria longe de criar, e o Apolo de Belvedere, que põe diante dos nossos

olhos “as proporções mais do que humanas de uma bela divindade”, algo que

mesmo a nossa imaginação não pode superar. O autor acredita que a imitação

dessas obras poderia ensinar mais rapidamente o que é o belo, “pois o artista

encontra aqui”, na primeira escultura, “a soma do que está disperso em toda a

natureza”, e aprende, pela segunda, “a que ponto a mais bela natureza pode

elevar-se acima de si própria, destemida e sabiamente”. Pelo argumento e pelos

exemplos, é evidente que a defesa da imitação dos antigos por parte de

Winckelmann não diz respeito à mera cópia das estátuas, mas à compreensão do

belo ideal que as torna um modelo a ser seguido. Nesse caso, o que se deve imitar

é o caminho de imitação tomado pelos gregos, de modo que, ao propor o modelo

da arte antiga no lugar do modelo da natureza, o autor na verdade pretende

reformular e revigorar a própria relação entre arte e natureza.

38

A famosa frase “O único caminho para nos tornarmos grandes e, se

possível, inimitáveis, é a imitação dos antigos...”, que se tornou uma divisa do

Classicismo alemão, só pode ser interpretada corretamente a partir do

reconhecimento da diferença entre imitação e cópia. Há um caráter contraditório

evidente nessa formulação, uma vez que os antigos são considerados pelo autor,

mais do que grandes, inigualáveis, inimitáveis, mas são indicados como modelo a

ser imitado. Em outras palavras, o que Winckelmann propõe, a partir de sua

constatação da grandeza da arte antiga e da decadência da arte moderna (o

Barroco, a pintura holandesa) é um caminho para alcançar a grandeza, “se

possível” uma grandeza tão “inimitável” quanto a dos gregos. O caráter

contraditório só leva a uma aporia se a imitação for compreendida como cópia,

porque a pergunta acerca da possibilidade de imitar o inimitável ficaria sem

solução. No entanto, o próprio autor esclarece a diferença entre os dois sentidos

da “imitação do belo na natureza” e indica, assim, o modelo de um caminho a ser

aprendido, a partir da observação e da compreensão da arte antiga em sua relação

com a beleza. Nesse caso, não se trata da reprodução da arte grega, mas do

aprendizado de sua grandeza exemplar e do ideal de perfeição que constitui a sua

meta. O caminho da arte antiga é definido como aquele que “leva ao belo

universal e suas imagens ideais”, para além da mera semelhança com a natureza.

Ao seguir essa via, a arte reúne as notas dispersas das belezas particulares e é

capaz de criar uma beleza superior, de dar forma por exemplo, não mais ao belo

corpo humano, mas à divindade.

O belo ideal é a segunda das noções fundamentais, ao lado da imitação dos

antigos, que articulam a teoria defendida nas Reflexões. Ele encontra a formulação

de seu caráter específico no trecho:

39

Enfim, o traço geral preponderante das obras-primas gregas é uma nobre simplicidade e uma calma grandeza, tanto na postura quanto na expressão. Assim como a profundeza do mar permanece tranqüila, por mais tempestuosa que esteja a superfície, a expressão nas figuras dos gregos mostra, em meio a todas as paixões, uma alma grande e comedida.34

As noções de nobre simplicidade e calma grandeza, identificadas como “o traço

geral preponderante das obras-primas gregas”, foram retomadas posteriormente

por diversos autores no contexto do helenismo que marcou a cultura alemã. Nessa

formulação de Winckelmann, há dois elementos constituintes do caráter das

obras-primas gregas, que não diz respeito propriamente à forma, mas à alma

revelada por meio da expressão do rosto e da postura do corpo nas esculturas. O

primeiro elemento, a nobre simplicidade, pode ser entendido em contraposição ao

rebuscamento e à complexidade exagerada do Barroco, estilo criticado pelo autor,

que defende a forma simples, sem muitos acessórios, da arte antiga. Essa

simplicidade deve ser associada à contenção, ao comedimento, como

manifestações de uma nobreza da alma. Já no caso do segundo elemento, o autor

atribui a uma característica que já identificara antes na arte antiga, a sua grandeza,

a qualidade da calma, da serenidade. Aqui, é a expressão tranqüila do rosto que

mostra, como esclarece a comparação feita na frase seguinte, a grandeza da alma.

Em sua análise das Reflexões, Szondi chama a atenção para a comparação

com o mar, feita por Winckelmann para esclarecer sua definição do traço

preponderante da arte grega.35 Trata-se de uma metáfora que estabelece uma

inversão de idéias, quase um oxímoro, uma vez que a expressão do rosto,

tranqüila, é comparada com a profundeza do mar, enquanto a alma agitada por

paixões é comparada à superfície tempestuosa. Causaria menos estranhamento a

34 Ibidem, p. 142. 35 Ver SZONDI, Op. cit., p. 43-44.

40

comparação da face com a superfície e da alma com o fundo, para manter a

relação entre interno e externo. Em todo caso, a metáfora indica uma idéia clara a

respeito da definição precedente: a expressão do rosto se mantém tranqüila, por

mais que se agitem as paixões da alma. Nessa tranqüilidade se revelam o

comedimento e a grandeza a que o autor se referia em sua definição do caráter das

obras-primas gregas.

Seguindo o seu procedimento ao longo de toda a obra, Winckelmann

procura demonstrar sua definição a partir da descrição de uma escultura, no caso o

Laocoonte, grupo estatuário que depois disso seria discutido também por Lessing,

no livro que leva o nome da obra, e se tornaria um exemplo clássico para a

reflexão acerca do sublime na arte. Atualmente se sabe da existência de um

original grego de bronze, mas no século XVIII só era conhecida a cópia romana

de mármore, encontrada em 1506 na capital italiana e abrigada no Vaticano, onde

até hoje pode ser vista. Laocoonte é o sacerdote troiano que foi incumbido de

realizar um sacrifício a Posseidon, quando os gregos simularam sua partida da

costa e se esconderam no célebre cavalo de madeira deixado como presente para o

rei Príamo. Como Virgílio conta na Eneida (II, 20), quando estava na iminência

de revelar a presença dos guerreiros gregos no interior do cavalo de Tróia, o

sacerdote foi castigado pelos deuses por meio de uma serpente gigantesca, que o

matou junto com seus dois filhos. O grupo estatuário descrito e analisado por

Winckelmann representa o pai e as crianças, presos pelos anéis da serpente, cuja

boca se fecha em uma mordida no quadril de Laocoonte. Na expressão do rosto do

sacerdote troiano se revela, para o autor das Reflexões, a alma grande e comedida

que corresponde ao belo ideal.

41

Winckelmann observa que, nessa escultura, o mais intenso sofrimento é

descoberto “em todos os músculos e tendões do corpo”, de modo que “quase

acreditamos sentir em nós mesmos diante do abdome dolorosamente contraído” a

dor de Laocoonte. No entanto, essa dor se manifesta “sem nenhuma raiva no rosto

e na posição como um todo”, o que caracterizaria a maneira como o sacerdote

suporta o seu sofrimento: “A dor do corpo e a grandeza da alma são distribuídos

com o mesmo vigor em toda a construção da figura. Laocoonte sofre, mas sofre

como o Filoctetes de Sófocles: sua desgraça atinge a nossa alma, mas

desejaríamos poder suportar a desgraça como esse grande homem”.36 Nesse

contexto, o autor faz uma crítica a Virgílo, por contar na Eneida que o sacerdote

troiano solta um “grito terrível”, o que não é representado na estátua, pois a

abertura da boca indicaria muito mais um “suspiro lamentoso”. O suspiro de quem

suporta a dor manifestaria a grandeza da alma, em uma expressão bela do

sofrimento, enquanto o grito da versão do poeta latino desfiguraria a face.

Posteriormente, essa crítica a Virgílio na comparação entre seu canto e a escultura

seria uma das grandes motivações de Lessing, em sua obra sobre as fronteiras da

poesia e da pintura, o que justifica o fato de ele ter dado a ela o nome de

Laocoonte. Em Winckelmann, não existe esse esforço de diferenciação entre as

artes, como se pode perceber também na comparação da dor sofrida pelo

sacerdote com a de Filoctetes da tragédia de Sófocles. Ele descreve a estátua para

indicar, no rosto sereno em meio aos mais terríveis tormentos corporais, a

“expressão de uma alma grandiosa”, que “vai muito além da configuração do belo

na natureza”.

36 WINCKELMANN. Op. cit. , p. 142.

42

O mesmo ideal de beleza descoberto na escultura é atribuído, nas

Reflexões, à poesia antiga, na qual Winckelmann identifica a nobre simplicidade e

a calma grandeza como o traço autêntico dos escritos gregos da época clássica.

Essa atribuição se revelaria problemática para Lessing, cuja distinção das

fronteiras entre a literatura e as artes plásticas explica as influências divergentes

que os escritos de Winckelmann tiveram sobre a cultura alemã do final do século

XVIII. A partir das diferenças estabelecidas pelo autor do Laocoonte, em sua

discussão com a teoria elaborada nas Reflexões e na História da arte na

Antigüidade, é possível esclarecer como os ideais defendidos nessas obras tiveram

um desdobramento distinto na poesia e nas artes plásticas.

No movimento neoclássico, que se iniciava no campo das artes plásticas e

da arquitetura, o princípio de imitação dos antigos se associava a uma reprodução

fria e acadêmica das proporções da arte antiga. Nesse caso, não se trata da

imitação do belo ideal, mas da cópia da forma da arte antiga, contrariando o

fundamento do classicismo winckelmanniano. Já na literatura, toda a tradição do

helenismo alemão, que marcou a cultura dos séculos seguintes, e especialmente o

ressurgimento do Classicismo em Weimar, com Goethe e Schiller, revelam uma

profunda influência das idéias de Winckelmann. A fase clássica da produção dos

dois grandes nomes da literatura alemã naquela época, quando comparada ao

movimento neoclássico, está muito mais de acordo com o sentido da frase “o

único caminho para nos tornarmos grandes, se possível inimitáveis, é a imitação

dos antigos”.

43

4. A teoria crítica de Lessing

4.1. Lessing e o teatro alemão

Além de um grande crítico literário e teatral, de acordo com vários historiadores o

fundador da dramaturgia alemã, cujas peças são encenadas até hoje com sucesso,

Lessing foi o primeiro representante alemão da burguesia a viver como um

escritor independente no século XVIII. Sua biografia tem, inicialmente, traços em

comum com a de Winckelmann ou de outros escritores daquele período. Filho de

um pastor protestante, ele nasceu em 1729 na pequena cidade de Kamenz

(Saxônia), de onde saiu para estudar teologia, depois medicina em Leipzig. Mas,

contrariando a atitude da maioria dos intelectuais de famílias burguesas naquele

tempo, Lessing não assumiu a função de preceptor, nem se tornou professor ou

pastor. Ele passou a viver apenas de suas atividades como escritor e jornalista,

mesmo que precariamente, quando isso era praticamente inviável em seu país, já

que a produção artística daquela época era financiada quase exclusivamente pelas

diversas cortes em que a Alemanha se dividia.37

Lessing teve sua primeira peça (O jovem sábio) encenada em 1748, ano

em que ainda era um estudante em Leipzig, de onde partiu logo depois para evitar

as cobranças de seus credores. Foi para Wittenberg, depois para Berlim, a maior

cidade alemã da época, na qual passou a trabalhar como colaborador do

suplemento literário Vossische Zeitung. Entre 1748 e 1760, vivendo sempre em

situação financeira precária, o escritor se envolveu em grandes polêmicas com os

representantes do “bom gosto” dominante nas artes, especialmente no teatro. Em

1759, ele escreveu as Cartas relativas à novíssima literatura, nas quais defende

suas idéias sobre a formação de um teatro nacional autêntico. Além de contrapor

37 Ver HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Op. cit., p. 606-608.

44

Shakespeare, como modelo de gênio, aos autores franceses, Lessing dirige toda a

eloqüência de seu espírito crítico contra o Classicismo acadêmico da literatura

alemã do século XVIII.

Um bom exemplo de seu estilo contundente de polemista é o início da

carta de número dezessete, na qual ele combate a literatura de Gottsched, o mais

renomado poeta acadêmico da época, professor universitário em Leipzig e grande

defensor do modelo do teatro clássico francês. Lessing começa o texto anunciando

a posição da Biblioteca das Belas Ciências e Artes Livres, periódico da época:

“‘Ninguém’, dizem os autores da Biblioteca, ‘negará que a cena teatral alemã tem

de agradecer grande parte de suas primeiras melhorias ao Sr. Prof. Gottsched’.”

Em seguida, a posição do crítico se anuncia na frase “Eu sou esse ninguém; eu o

nego redondamente”.38

De 1760 a 1765, Lessing foi secretário do governador geral da Silésia, em

Breslau, função que lhe garantiu temporariamente uma situação mais estável, no

período em que o país vivia o intenso tumulto da Guerra dos Sete Anos (1756-63).

Sua comédia Minna von Barnhelm (1767) se baseia justamente na sociedade de

Breslau durante o período da guerra. Deixando o cargo de secretário, o escritor

voltou a Berlim, com a intenção de obter uma colocação na Biblioteca Real, mas

foi preterido por Frederico II, que preferiu dar o cargo a um francês. Em 1766, foi

publicado o ensaio Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, no

qual o escritor apresenta suas teses de teoria da arte, a partir de uma análise das

afirmações de Winckelmann ao descrever a famosa escultura do sacerdote troiano.

Depois de ver seus planos de trabalho em Berlim frustrados, Lessing aceitou o

convite para se tornar um comentarista dramatúrgico (Dramaturg) no Teatro

38 LESSING. De teatro e literatura. São Paulo, Herder, 1964, p. 109.

45

Nacional de Hamburgo, o primeiro teatro nacional da Alemanha, que durou

apenas dois anos, de 1767 a 1769. Nesse período, foram redigidos os 104 textos

reunidos depois no livro Dramaturgia de Hamburgo, em que o autor desenvolve

os argumentos de sua concepção do teatro nacional em formação, polemizando

contra o Classicismo francês com base na interpretação da Poética de Aristóteles.

Ainda em Hamburgo, ele fundou também uma editora, que faliu em pouco tempo,

e a partir de 1770 tornou-se bibliotecário do duque de Braunschweig em

Wolfenbüttel, onde viveu por onze anos, até sua morte.

Foi em Wolfenbüttel que o dramaturgo escreveu as obras-primas Emília

Galotti (1772) e Nathan o sábio (1779), que se tornariam posteriormente suas

peças mais conhecidas, lidas e encenadas. A primeira é uma “tragédia burguesa”,

ambientada num principado italiano. Apesar de sua crítica à dramaturgia clássica

francesa, elaborada na Dramaturgia de Hamburgo, a peça de Lessing não se

distancia muito dos princípios formais seguidos por Corneille e Racine. Sua maior

inovação em relação ao Classicismo era justamente a protagonista de família

burguesa, contrariando a exigência dos antigos de se ater aos personagens nobres.

Formalmente, o autor respeita as unidades de tempo, lugar e ação, já que a peça se

passa em um único dia, gira em torno do plano malogrado do príncipe para acabar

com o casamento de Emília, sua amada, e se restringe a três cenários

suficientemente próximos.39 Nesse sentido, Lessing ainda não seguia a fundo o

modelo de Shakespeare que ele mesmo propusera, pelo menos não do mesmo

modo que os dramaturgos pré-românticos, como Goethe, que no Götz von

Berlichingen (1772) rompia inteiramente com as regras clássicas.

39 Para uma análise da peça, ver SAADI, Fátima. “Lessing e a tragédia burguesa”, em: Revista Folhetim, número 12, jan-mar 2002.

46

A peça Nathan o sábio, escrita justamente com o verso shakespeariano que

seria incorporado pela geração mais jovem, e depois se tornaria o verso

característico do drama clássico alemão, procura responder a uma grande

polêmica teológica em que Lessing se envolveu, a respeito da veracidade histórica

da vida de Jesus. O tema central, que se expressa na parábola dos três anéis

contada pelo protagonista, é a tolerância entre as crenças religiosas. Em vez de

escolher um herdeiro para deixar o anel que simbolizava seu poder, o rei manda

fabricar para seus descendentes cópias idênticas ao original, de modo que não se

possa distinguir um anel legítimo entre os três que são herdados. O ato

simbolizaria a legitimidade da herança que se divide em três, sem privilégio de

nenhum dos herdeiros. Com base nessa parábola, o autor procura mostrar a

autêntica verdade das três religiões monoteístas, o judaísmo, o cristianismo e o

islamismo. Anatol Rosenfeld considera essa obra, extremamente atual no tema,

“com seu translúcido jogo intelectual e sua linguagem clara, sagaz e astuta [...] um

dos mais preciosos legados que a ilustração alemão deixou aos pósteros”.40

Como crítico e escritor independente, que representava a burguesia contra

os padrões dominantes das cortes, Lessing foi o precursor de um movimento de

afirmação da cultura alemã e de rebeldia contra o predomínio do gosto francês.

Ao se voltar contra Gottsched e contra a dramaturgia clássica de Corneille,

valorizando Shakespeare em defesa do teatro nacional alemão, ele antecipou as

divisas do Sturm und Drang, formuladas depois por Herder: a originalidade do

gênio, a língua como revelação do espírito popular e o caráter nacional. Embora

sua obra teatral, com peças que se tornaram clássicas na Alemanha, não pertença

40 “Introdução”, em: LESSING. De teatro e literatura. Op. cit., p. 10.

47

ao pré-Romantismo, a teoria de Lessing constitui uma das bases mais importantes

para a reflexão estética e a produção artística posterior.

4.2. O grito de Laocoonte

No livro de memórias Poesia e Verdade, a referência à teoria da arte de Lessing é

uma das passagens em que se reconhece mais diretamente a influência de um

autor sobre a geração de Goethe. Ele conta: “É preciso ser jovem para fazer idéia

do efeito que nos produziu o Laocoonte de Lessing; arrancando-nos ao domínio

de uma estreita intuição para os espaços livres do pensamento”. Em seguida,

resume a tese do estudo sobre a fronteira da poesia e da pintura em poucas

palavras, referido-se primeiro ao verso da Ars Poetica de Horácio (361) que

identifica as duas artes, por isso é objeto de crítica ao longo de toda a obra. Para

Goethe, “o famoso ut pictura poesis, por tanto tempo mal compreendido, fora

posto de lado” pelo autor. Com isso, ficava “manifesta a diferença entre a arte

plástica e a poesia; as culminâncias de uma e de outra mostravam-se separadas,

por mais que se tocassem as suas bases”. Essa diferença é explicada, a partir do

argumento de Lessing segundo o qual a pintura e a escultura, por serem

essencialmente espaciais, representam sempre o belo e precisam evitar tudo o que

é feio, pois têm de escolher o momento fecundo e mais sugestivo que se destina à

apreciação visual. A poesia, por sua vez, por ser uma arte temporal, pode recorrer

em determinados casos ao feio, que constitui apenas uma imagem no meio de uma

sucessão. Nas palavras de Goethe: “A arte plástica devia encerrar-se dentro dos

limites do belo, embora a poesia, que não se pode dispensar de exprimir todas as

coisas, fosse autorizada a transpor esses limites”.

48

É como se a Alemanha tivesse ganhado um fundamento teórico que

redimisse o seu atraso e a sua inferioridade cultural em relação às nações

européias de tradição latina, como a Itália do Renascimento e a França do teatro

clássico. É esse o sentido da influência reconhecida:

...as conseqüências desse pensamento magnífico ofereceram-se a nós como um raio de luz, e desfizemo-nos de toda a velha crítica doutoral e magistral como de uma roupa velha. Sentíamo-nos libertados de todo mal e julgávamos poder olhar de cima, cheios de compaixão, esse século XVI, que há pouco ainda nos parecia tão admirável. [...]. Podíamos, pois, celebrar o triunfo do belo; e quanto ao feio em todos os gêneros, que afinal de contas não era possível banir do mundo, podíamos relegá-lo para a esfera inferior do domínio da arte – para o cômico.41

Goethe se manifesta como um artista que também se movia na fronteira entre a

poesia e as artes plásticas, por isso enxergava na distinção de Lessing uma espécie

de libertação. No campo da literatura, o jovem escritor se via livre do peso dos

argumentos tradicionais que condenavam uma série de recursos poéticos em nome

dos princípios clássicos da beleza. Por ser também um estudante de pintura, ele

passava a ter uma base para o desenvolvimento paralelo e complementar de seu

aprendizado.

O Laocoonte de Lessing, assim como as Reflexões de Winckelmann, tem

como ponto de partida uma crítica da teoria e da arte de sua época. Para definir a

fronteira da poesia e da pintura, o autor se volta contra toda uma tradição da

poética que, com base em Aristóteles e em seus seguidores latinos, como Cícero,

Horácio e Quintiliano, aplica os princípios das artes plásticas à retórica e à poesia.

Essa tradição encontra uma formulação antiga no aforismo de Simônides de Ceos,

citado no prefácio, segundo o qual “a pintura é uma poesia muda e a poesia, uma

41 GOETHE. Poesia e verdade. Op. cit., p. 248.

49

pintura falante”.42 Posteriormente, a mesma identificação entre as artes resulta da

interpretação tradicional do verso de Horácio ut pictura poesis, ao qual Goethe se

refere. Lessing contesta a tradição, e com isso a aplicação à literatura dos mesmos

princípios que regem a criação nas artes plásticas. Todo o seu questionamento gira

em torno da descrição do grupo estatuário Laocoonte por Winckelmann, mais

precisamente do comentário comparativo a respeito da expressão que o rosto do

sacerdote troiano tem na escultura e no poema de Virgílio. Na primeira, a boca

entreaberta indica apenas um suspiro, que estaria de acordo com o princípio de

nobre simplicidade e calma grandeza, enquanto o poeta se refere a um grito de

dor. Na censura do autor das Reflexões a esse grito de Laocoonte, Lessing

reconhece aquela aplicação dos critérios das artes plásticas para julgar o belo na

literatura. Por isso, a defesa da manifestação intensa de dor na obra de Virgílio se

apresenta como o centro da polêmica contra a teorias poéticas tradicionais. Entre

as influências para esse debate teórico, destaca-se a de Diderot (1713-1784), cujo

artigo sobre o “gênio”, na Enciclopédia, pode ser considerado uma das bases da

defesa do modelo de Shakespeare contra o teatro clássico francês.43

Do ponto de vista da criação artística, o principal objeto de crítica de

Lessing era a poesia idílica que, baseada na identificação tradicional com a

pintura, limitava-se às descrições de objetos e paisagens belos. Não se trata de

condenar toda e qualquer descrição na poesia, mas de compreender um modo de

descrição próprio, que o autor encontra por exemplo em Homero. Nesse sentido, a

argumentação do Laocoonte retoma o problema da imitação, tanto da natureza

(distinta na pintura e na poesia), quanto a dos antigos, como modelo de uma

42 Ver LESSING. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, São Paulo, Iluminuras, 1998, p. 76. 43 Ver DIDEROT. “Article génie”. Oeuvres esthétiques. Paris, Garnier, 1994, p. 9. Ver também SAADI, Fátima. “Lessing e a tragédia burguesa”. Op. cit., 2002, p. 46.

50

imitação da natureza superior à dos modernos. O caráter descritivo de cada arte

diz respeito ao modo como a natureza é imitada, e a reprodução dos temas

pictóricos na poesia estaria ligada a uma má compreensão dos limites entre as

artes. Para Lessing, o poeta que escreve descrições de belas paisagens ou flores

apenas copia a natureza da maneira como ela deve ser reproduzida na pintura.

Assim como Winckelmann criticava um falso realismo dos pintores holandeses,

baseado na mera cópia dos objetos visíveis, aqui é o realismo das chamadas

“pinturas poéticas” que se torna objeto de crítica. Um exemplo, analisado no

capítulo XVII do Laocoonte, é o poema “Os Alpes”, do suíço Albrecht Haller

(1708-1777), que o autor considera como “uma obra-prima do seu gênero”.44 É

verdade que movimentos literários posteriores, como o Romantismo, o

simbolismo e o concretismo, valorizam o caráter objetivo e direto da descrição

poética, procurando inclusive os pontos de proximidade com as artes plásticas. De

certo modo, essas vertentes contestaram as fronteiras estabelecidas por Lessing,

mas não negam nem a importância de suas críticas, no contexto em que foram

feitas, nem a relevância de sua distinção entre as artes, mesmo que ela constitua

um parâmetro a ser discutido e questionado.

Como nos escritos de Winckelmann, no Laocoonte ou sobre as fronteiras

da pintura e da poesia a análise dos exemplo concretos das obras de arte serve

como ponto de partida para chegar a conclusões teóricas gerais a respeito da

criação artística. Nesse sentido, o autor questiona a tradição normativa das

poéticas latinas que definiam as regras da arte e, de acordo com elas, julgavam a

qualidade das obras. Assim, a análise da diferença entre o Laocoonte esculpido e a

narrativa de Virgílio constitui o ponto de partida para toda a argumentação sobre

44 Ibidem, p. 204.

51

as fronteiras entre a poesia e a pintura – ou as artes plásticas em geral, já que o

tema abrange também a escultura, apesar da restrição do título. Também nesse

caso a polêmica se mostra como um traço constitutivo do pensamento de Lessing,

que inicia sua análise com a citação do trecho de Winckelmann a respeito da

“nobre simplicidade e calma grandeza”. Grande parte da descrição da escultura de

Laocoonte feita pelo autor das Reflexões é reproduzida não para demonstrar o

caráter da arte grega, mas para ressaltar o sentido de uma censura a Virgílio por

fazer seu personagem gritar, em vez de apenas suspirar como na escultura.

Lessing concorda com Winckelmann na constatação de que a beleza

constituía a norma suprema das artes plásticas nos antigos gregos, referindo-se por

exemplo a uma lei dos tebanos que ordenava a imitação do belo e proibia sob

penalidade a imitação do feio.45 O problema, para ele, era aplicar os mesmos

princípios que regem as artes plásticas à poesia. Seria esse o caso da censura a

Virgílio em nome da beleza da expressão da estátua que, em vez de escancarar sua

boca, mantém a sobriedade em um suspiro que manifesta a grandeza de sua alma.

Na poesia, o grito se insere em uma sucessão de acontecimentos narrados e não se

congela, como na escultura, num único momento representado. Por isso, quem lê

os versos ou os escuta, não pensa na abertura da boca do sacerdote, nem que seus

traços são feios em função dessa abertura. Os “clamores” aparecem como um

ponto culminante da narrativa, na ação que tem início quando as duas serpentes

alcançam os filhos de Laocoonte: “E primeiro, abraçando os tenros corpos / Dos

dois filhinhos seus, os miserandos / Membros uma e outra serpe lhes devora”. Em

seguida, os “monstros” envolvem também o pai nas dobras de seus corpos

imensos. Então Laocoonte tenta desatar os nós que o enredam junto com seus dois

45 Ibidem p. 89.

52

filhos, enquanto escorre sangue e veneno anegrado, “E clamores ao céu levanta

horrendos, / Quais do touro os mugidos, quando d’ara / Ferido se escapou e da

segure / Sacudiu da cerviz o golpe incerto”.46

Ao contrário do que ocorre quando se observa a escultura, a leitura ou a

audição da poesia pressupõem, no momento em que o grito é narrado, um

conhecimento prévio do personagem, que já tinha sido apresentado como um

patriota de boa índole e como um pai afetuoso. Por isso, segundo Lessing, quando

o sacerdote dirige aos céus seus clamores, tão terríveis quanto os de um touro

sendo sacrificado, o que se expressa é uma dor insuportável mesmo para o melhor

dos homens. Como o caráter do personagem não precisa se manifestar na

expressão do rosto, ele pode gritar sem perder a grandeza. Nesse caso, é a

escultura que, por ter a necessidade de exprimir a alma da figura que reproduz

num único gesto, deve dar à expressão do rosto os traços mais suaves e dignos de

um suspiro lamentoso. Essa comparação leva Lessing a especular a respeito da

proximidade entre a escultura e o poema, levantando três hipóteses para o fato de

as duas obras apresentarem praticamente o mesmo acontecimento. A estátua

poderia ter o próprio poema como modelo, ambos os trabalhos poderiam

reproduzir um modelo anterior, ou os versos poderiam se basear na escultura.

Havia dúvidas quanto à época em que o grupo estatuário Laocoonte foi

esculpido, mesmo por parte dos maiores conhecedores da arte antiga. Por isso, a

idéia de um modelo anterior não podia ser descartada, embora parecesse a Lessing

pouco provável. Já a hipótese de que a estátua se baseia no poema de Virgílio lhe

parecia bastante verossímil, uma vez que o poeta latino teria sido o primeiro a

contar a versão de que as serpentes matam tanto as crianças quanto o pai,

46 VIRGÍLIO. Eneida, II, 208-210 / 221-224. Tradução de José Victorino Barreto Feio. São Paulo, Martins Fontes, 2004.

53

enquanto apenas as crianças eram devoradas nas versões gregas do mito. Nesse

caso, as diferenças entre a poesia e a pintura seriam conseqüências dos diferentes

meios de expressão das duas artes. Por exemplo, não faria sentido, na narrativa,

apresentar o sacerdote e seus filhos sem roupa, durante uma cerimônia de

sacrifício, mas só o corpo nu é capaz de expressar, na escultura, o sofrimento

físico a que Laocoonte estava submetido. As artes plásticas se dirigem ao olhar,

por isso precisam deixar visíveis todos os aspectos expressivos do corpo

reproduzido. Na poesia, a imaginação possibilita que se veja através de qualquer

roupa, bastando ao escritor descrever o esforço feito pelos músculos contraídos.

A outra hipótese, de que o poeta tenha imitado a escultura, é analisada e

refutada no capítulo VI, no qual o autor considera que as modificações da

narrativa em relação à estátua não se justificam no caso de uma cópia. Essa

discussão em torno do modelo em que se basearam o escultor e o poeta remete à

questão da imitação, um problema fundamental tanto na tradição clássica grega e

latina quanto na teoria de Winckelmann. Lessing aceita a noção de que a arte

imita objetos ou ações, mas estabelece uma diferença não só quanto ao que é

imitado, como também quanto aos signos ou o meio da imitação próprio de cada

arte. Ele constata que, embora a poesia nem sempre imite fatos e objetos visíveis,

ela também realiza “pinturas poéticas”, e é nessa atividade tão próxima das artes

plásticas que se revelam as fronteiras de que trata o Laocoonte. O autor se

encarrega de esclarecer qual é o “nó da questão”, afirmando que existe uma

diferença essencial entre os objetos visíveis “pintados” na poesia e na própria

pintura. No primeiro caso, trata-se de “uma ação visível progressiva, cujas

54

diferentes partes acontecem uma após a outra”; no segundo, de “uma ação visível

inerte, cujas diferentes partes se desenvolvem uma ao lado da outra no espaço”.47

Lessing estabelece a diferença fundamental entre a poesia e a pintura, ao

definir a primeira como uma arte temporal e a segunda como uma arte espacial.

Essa diferença, que marcaria as reflexões teóricas sobre as artes a partir de então,

diz respeito tanto ao objeto próprio de cada arte quanto ao meio ou aos signos

utilizados para imitar esses objetos. São esses meios de expressão que determinam

o caráter temporal ou espacial de cada uma das artes, delimitando assim os seus

objetos. Segundo o argumento desenvolvido no capítulo XVI do Laocoonte, os

signos utilizados pela pintura são “figuras e cores no espaço”, enquanto a poesia

trabalha com “sons articulados no tempo”. Em função desses meios, as ações

constituem o objeto próprio do poeta, já o pintor e o escultor imitam os “corpos

com as suas qualidades visíveis”. Quando a pintura imita ações, ela o faz

alusivamente, por meio dos corpos, do mesmo modo que a poesia expõe corpos

alusivamente, por meio de ações.

O melhor exemplo, para ressaltar essa diferença na imitação dos objetos

visíveis, seria o modo como Homero descreve seus objetos. De acordo com

Lessing, o poeta grego não costuma estender as qualificações atribuídas às coisas

descritas, mas narrar com enorme riqueza de detalhes as ações desempenhadas. As

embarcações, por exemplo, ora são negras, ora velozes, ora côncavas, ou seja,

seus atributos não têm minúcias, como ocorre nas descrições “frias” de poetas

mais recentes. No entanto, quando as embarcações navegam, ou aportam, ou

naufragam, essas ações ganham contornos nítidos, são realçadas pelas

comparações aos movimentos de animais e aos fenômenos naturais, aparecendo

47 LESSING, Op. cit., p. 190.

55

assim em uma sucessão temporal que lhes dá vida para a imaginação. Para

reforçar sua argumentação, Lessing cita o exemplo do escudo de Aquiles, descrito

por Homero no livro XVIII da Ilíada. Em vez de copiar os traços da obra a ser

descrita, o poeta conta como o objeto foi feito, produzindo assim uma “pintura em

ação” na qual são apresentadas, com enorme riqueza de detalhes, uma série de

cenas que o deus ferreiro Hefesto teria gravado na parte frontal do escudo, para

concluir seu trabalho. Cada uma das cenas é descrita como uma ação, de modo

que chega a ser difícil converter os acontecimentos dotados de vida e movimento,

com ajuda da imaginação, nas várias reproduções imóveis que estariam presentes

no escudo de Aquiles.

No capítulo XX do Laocoonte, a questão do belo na poesia também é

exemplificada com um trecho de Homero. Lessing compara a ausência de uma

descrição de Helena, na Ilíada, com as tentativas de descrição de belas mulheres

por outros poetas. No canto III, há uma passagem que pode ser considerada não

como “pintura em ação”, mas como “pintura sem pintura”, demonstrando que a

poesia é capaz de expressar objeto visível por meios indiretos. Essa capacidade

tem um exemplo primoroso nos versos em que os anciãos de Tróia, contemplando

o exército inimigo em formação, vêem surgir Helena na torre em que se

encontravam e declaram: “É compreensível que os Teucros e Aquivos de grevas

bem feitas / por tal mulher tanto tempo suportem tão grandes canseiras! / Tem-se,

realmente, a impressão de uma deusa imortal estar vendo”.48 Para Lessing, ao

mostrar o efeito causado pela beleza nos homens que, embora velhos, a

reconhecem como digna da guerra que ameaça destruir sua cidade, Homero dá a

respeito da beleza uma idéia mais viva do que a de qualquer descrição.

48 HOMERO. Ilíada. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro, Ediouro, Canto III, v. 156-158.

56

Se a beleza pode encontrar seus caminhos próprios na poesia, diferentes

daqueles que caracterizam as artes plásticas gregas, resta saber se a feiúra, evitada

pelos pintores e escultores clássicos, precisa ser excluída também dos poemas. O

próprio Homero oferece um exemplo que contraria essa exclusão, no canto II da

Ilíada (216-219), ao descrever Tersites como “o mais feio” dos guerreiros gregos,

antes da cena em que Odisseu castiga seu atrevimento com um golpe de cetro,

provocando risos em todos os que participavam da assembléia. Nesse caso, a

figura grotesca serviria para reforçar o efeito cômico provocado pela ação que

vem em seguida. Mas Lessing cita também outro exemplo, recorrendo pela

primeira vez no Laocoonte à obra de Shakespeare. Ele compara a “feiúra

inofensiva” de Tersites, que serve para aumentar o ridículo de sua situação, à

“feiúra prejudicial” do vingativo e obstinado Ricardo III, na tragédia A vida e a

morte de Ricardo III. Ressaltada pelo próprio personagem, a sua deformidade lhe

dá um ar diabólico, que torna mais terríveis as sua maquinações e intensifica os

traços “feios” de seu caráter.

As considerações de Lessing, baseadas nos exemplos que ele analisa,

desenvolvem uma teoria estética que não está voltada para as regras da arte, como

fazia a tradição das poéticas normativas, mas para o efeito produzido pelas obras.

É a valorização do efeito que se revela nos exemplos extraídos de Homero: a

imagem da riqueza do escudo de Aquiles, obtida na descrição de sua feitura pelo

deus; a idéia da beleza de Helena, em conseqüência da reação dos anciãos; o

resultado cômico da cena com o feiíssimo Tersites. Da mesma maneira, o grito de

Laocoonte no poema de Virgílio se justifica pela sua expressividade, contrariando

a regra tradicional que, com base na interpretação questionável do ut pictura

poesis de Horácio, tinha levado Winckelmann a censurar o poeta latino. Segundo

57

Peter Szondi, essa “estética do efeito” marcou o desenvolvimento da teoria da arte

na Alemanha do século XVIII, especialmente no período iluminista.49 A ênfase no

efeito produzido pela arte não só pôs em questão as teorias normativas

tradicionais, como também possibilitou o aprofundamento de algumas das

questões indicadas por Lessing. Goethe reconhece a influência de sua teoria a

respeito das fronteiras da poesia e da pintura, mas talvez tenham sido a

valorização de Shakespeare e a crítica ao Classicismo francês os argumentos que

mais contribuíram para a geração que iniciou o movimento pré-romântico. Na

base dessa posição do autor do Laocoonte e da Dramaturgia de Hamburgo, em

defesa de um modelo para o teatro nacional alemão, encontra-se também uma

oposição entre as regras da arte (marca do teatro clássico francês) e o efeito

trágico, a catarse aristotélica, que Shakespeare alcançaria sem segui-las. Mesmo

Herder, que foi um crítico de muitas das idéias de Lessing, seguiu essa indicação

pela qual se justifica a valorização do gênio que não segue as regras da arte. A

defesa do sentimento contra a razão, ou da natureza contra a arte fria e mecânica,

por parte de Herder, Goethe, Lenz, entre outros, encontra-se profundamente

enraizada na estética do efeito.

5. O Laocoonte retomado por Goethe e Schiller

No contexto do projeto classicista que será analisado no terceiro capítulo, o

exemplo de Laocoonte foi retomado tanto com base na observação do grupo

estatuário, quanto no comentário da descrição de Virgílio. Goethe escreveu em

1798 um ensaio sobre a escultura, no qual retoma as questões de Winckelmann e

de Lessing, mas critica algumas das posições de seus precursores a partir de uma

49 Ver SZONDI, Peter. Op. cit., p. 49.

58

análise minuciosa da obra. Em todo caso, ele recorre ao exemplo debatido

anteriormente para defender, em linhas gerais, a noção de uma perfeição exemplar

da arte antiga, portanto o mesmo ideal que tinha caracterizado o classicismo

winckelmanniano. Schiller, por sua vez, citou não só a estátua, mas também a

narração que Virgílio faz da história de Laocoonte em “Acerca do patético”

(1801) como exemplo do sublime, conceito que constitui a base de suas

considerações teóricas sobre a tragédia. Desse modo, ele remete diretamente a

uma indicação de Lessing, que chegara a identificar um “traço sublime” no grito

do sacerdote troiano representado pelo poeta latino.50 Mas, quando volta ao

mesmo exemplo, Schiller se refere a uma concepção diferente do sublime,

baseada na filosofia de Kant, fazendo como que uma releitura da referência ao

Laocoonte como exemplo para a reflexão estética.

Assim, a partir da descrição nas Reflexões e da sua contestação por

Lessing, formulou-se o exemplo clássico em torno do qual se desenvolveu o

debate estético na Alemanha do século XVIII. Uma breve análise do ensaio de

Goethe e do comentário de Schiller, mostrando a relação com seus precursores,

pode apontar dois caminhos tomados pela teoria da arte seguindo as bases do

Classicismo. Por mais divergentes que sejam essas vias, elas convergiram

posteriormente para um projeto comum, elaborado sobretudo na correspondência

entre os dois escritores e na revista de arte Propileus, fundada em 1798 e dirigida

por Goethe, Schiller e pelo historiador da arte Heinrich Meyer (1760-1832). As

duas trajetórias têm em comum o fato de que a fase clássica dos dois escritores, na

teoria e na produção artística, ter sucedido ao movimento pré-romântico, que se

opunha decisivamente a certos traços do Classicismo, sobretudo em sua versão

50 Ver LESSING. Op. cit., p. 105.

59

francesa. Essa mudança de concepção será analisada posteriormente, mas é

importante ressaltar desde já que a convergência para um projeto comum se deu

por vias bastante divergentes, quase inconciliáveis, como podem demonstrar as

retomadas que Schiller e Goethe fazem do debate de seus precursores

Winckelmann e Lessing.

5.1. Laooconte como herói trágico

Schiller cita a descrição de Laocoonte por Virgílio no ensaio “Acerca do

patético”, texto que se insere numa série de obras teóricas a respeito da tragédia

escritas na última década do século XVIII. A base dessa reflexão teórica foi o

estudo da Crítica do juízo, de Kant, publicada em 1790, como demonstram as

cartas de Schiller desse período, especialmente as cartas a Christian Gottfried

Körner (1756-1832).51 A partir de seus estudos kantianos, o autor considera a

tragédia como apresentação artística em que se expressa o conflito entre os dois

lados da existência humana, entre a faculdade sensível e a moral, ou racional,

associando essa apresentação ao conceito de sublime da terceira crítica. No

entanto, a retomada desse conceito, nos ensaios, não diz respeito aos juízos

estéticos como na obra de Kant, mas ao modo como o sublime se manifesta no

caráter humano, especialmente no caráter do herói trágico, cujo fim manifesta

uma superação do conflito. Segundo essa teoria, explicitada em textos como

“Acerca da arte trágica” (1792), “Acerca da razão por que nos entretêm assuntos

trágicos” e “Acerca do sublime” (1793), o conteúdo da tragédia está ligado a uma

vitória da liberdade moral sobre a necessidade natural.

51 Ver Kallias ou Sobre a Beleza. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

60

A teoria desenvolvida por Schiller visa a definir o sentido da tragédia a

partir da filosofia moderna, portanto a refletir sobre o gênero trágico na

modernidade, preocupação decorrente de sua própria atividade como dramaturgo.

Resumindo as conclusões de seus ensaios, a forma da tragédia é a representação

apropriada para, por meio de uma imitação poética, apresentar o sofrimento e a

resistência ao sofrimento; sua finalidade é comover, ou despertar compaixão,

entendida como um prazer moral na contemplação da vitória sobre a

sensibilidade, sobre a animalidade. Nesse sentido, a apresentação da liberdade

moral só pode ser alcançada de modo negativo e indireto, por meio da

apresentação do padecimento do herói, ou seja, do “patético”, ligado ao conceito

kantiano do sublime. Esses temas serão retomados posteriormente, mas seu

resumo possibilita uma interpretação do modo como o exemplo de Laocoonte é

pensado no ensaio.

É com base na conclusão de sua teoria da tragédia que Schiller comenta,

em “Acerca do patético”, a descrição que Winckelmann faz da estátua e a

narração que Virgílio faz da história do sacerdote troiano, como exemplos do

sublime trágico. O grupo estatuário é citado para mostrar que ele pode ser

considerado como uma “medida para o que a arte plástica dos antigos era capaz de

produzir no terreno do patético”, entendido como a representação do pathos, do

sofrimento que se revela sublime quando mostra a autonomia moral do homem.

Para Schiller, essa descrição indica a luta da inteligência contra o sofrimento da

natureza sensível, revelando por um lado a animalidade e a coação da natureza,

por outro a humanidade e a liberdade da razão. Ele comenta que Virgílio descreve

a mesma cena que serviu de objeto ao escultor, mas o poeta épico não pretendia

entrar na alma de Laocoonte, como fez o escultor, pois essa descrição era apenas

61

uma passagem secundária de seu poema. Por isso, ressaltando a sua diferença em

relação ao autor do Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia,

Schiller observa:

Já conhecemos a narração virgiliana através dos excelentes comentários de Lessing. Mas o objetivo a serviço do qual Lessing a usou foi apenas o de ilustrar, neste exemplo, os limites da representação poética e pictórica, mas não o de desenvolver daí um conceito do patético. A mim, porém, quanto a esse último fim, ela não me parece menos proveitosa...52

Os versos de Virgílio são interpretados de acordo com o objetivo de

identificar a questão do patético e do sublime. Assim, as serpentes monstruosas

que foram enviada por Apolo aparecem como a força terrível da natureza, o poder

destrutivo e invencível contra o qual a capacidade física humana nada pode fazer.

Essa poderosa força natural é a primeira condição para a apresentação do sublime,

porque se impõe irresistivelmente à capacidade física humana muito mais fraca do

que ela. Ao interpretar a narração, Schiller chama a atenção para o fato de o

monstro avançar primeiro sobre os filhos de Laocoonte, expondo o sacerdote

diretamente ao conflito entre o mundo sensível e o mundo racional. Nessa

situação ou ele foge, sucumbindo ao pavor, sem levar em conta seus filhos, ou

escolhe a morte certa por livre e espontânea vontade. Essa escolha é constitutiva

da natureza humana: “fôssemos nada mais do que seres sensíveis, que não seguem

nenhum outro instinto a não ser o da conservação, aqui ficaríamos parados,

detendo-nos no estado do mero sofrimento”. Mas há “qualquer coisa em nós que

não toma parte das afecções da natureza sensível e cujas atividades não se

regulam por condição física alguma”, o que permite escapar do poder da natureza

e prova que não somos meramente seres sensíveis. Em vez de fugir, o sacerdote se

lança contra as serpentes, não por instinto natural, mas por escolha racional,

porque deve enfrentá-las em nome de sua dignidade. Assim, “sua morte torna-se 52 “Acerca do patético”. SCHILLER. Teoria da Tragédia, São Paulo, EPU, p. 127.

62

um ato de vontade”, portanto expressa a possibilidade de agir livremente diante da

imposição terrível da natureza. Schiller concluiu: “expulsos de toda fortificação

que pode formar uma defesa física para o ser sensível, atirando-nos dentro da

invencível fortaleza da nossa liberdade moral, ganhamos uma segurança absoluta

e infinita justamente por deixarmos perder-se no campo dos fenômenos uma arma

de defesa apenas relativa e precária”.53

Segundo a interpretação de Schiller, o ataque ao homem moral (o pai)

antes do ataque ao homem físico é fundamental para produzir o efeito de uma

apresentação negativa do sublime, fato acentuado na narrativa de Virgílio pelo

que já sabemos a respeito de Laocoonte antes de ler a cena do ataque das

serpentes. Nessa constatação, ele concorda inteiramente com Lessing, que já tinha

comentado a referência a uma caracterização prévia do personagem para justificar

o grito do sacerdote no poema. No entanto, como sua própria indicação da

diferença de propósitos mostra, Schiller não pretendia com isso ressaltar o traço

distintivo da poesia em relação à escultura, mas chamar a atenção para o caráter

do herói trágico. Assim, se sua grandeza moral já o torna digno de compaixão,

quando luta com uma força superior à sua, o fato de enfrentar as serpentes por

“livre escolha”, para salvar os filhos, faz dele um herói trágico cuja morte se torna

um “ato de vontade” e, portanto, uma afirmação da liberdade diante da

necessidade natural.

Essa interpretação com propósitos distintos, baseados na filosofia kantiana,

afasta Schiller da tradição aristotélica da qual Lessing é um dos principais

defensores na Alemanha, revelando sua intenção de questionar os parâmetros de

criação da tragédia na modernidade. Mesmo assim, as bases do Classicismo não

53 Ibidem, p. 132.

63

foram contestadas, uma vez que Schiller não só concorda em muitos pontos com

as interpretações de seus precursores Winckelmann e Lessing, como também

elege como tema o exemplo “clássico” de Laocoonte, na escultura e na poesia,

aceitando a sua condição de modelo para a concepção do sublime na tragédia.

5.2. A análise da escultura

Em “Sobre Laocoonte” (1798), ensaio publicado no primeiro número da revista

Propileus, Goethe não só retoma a questão da análise do Laocoonte como obra de

arte exemplar, mas também discute e critica pontos específicos das interpretações

de Winckelmann e de Lessing. Antes de analisar a escultura, ele faz uma

consideração geral a respeito das obras de arte, na qual ressoam as noções que se

encontram nas Reflexões sobre a imitação das obras gregas na pintura e na

escultura e que são questionadas no Laocoonte ou sobre a fronteira da pintura e

da poesia: a imitação do belo na natureza, a perfeição como uma combinação de

elementos particulares num todo harmonioso, a observação do corpo humano

como ponto de partida para a escultura.

De início, Goethe chama a atenção para a limitação de qualquer teoria da

arte, já que a essência de uma obra pode ser contemplada, sentida, mas não

conhecida e menos ainda expressa em palavras. A primeira frase do texto resume

seu argumento: “Uma autêntica obra de arte, como uma obra da natureza, sempre

ultrapassa infinitamente nosso entendimento”.54 Nessa frase se percebe a

tendência realista de Goethe ou, em outras palavras, a valorização do sensível

sobre o racional, da objetividade sobre a especulação. A posição que ele defende o

leva a definir o seu texto sobre o grupo estatuário Laocoonte como sendo

54 GOETHE. “Über Laokoon”. Em Vermischte Schriften. Frankfurt, Insel-Verlag, p. 256. Ver também: “Sur Laocoon”, em : Écrits sur l’art. Paris, GF Flammarion, 1996, p. 165.

64

inspirado por essa obra de arte perfeita, sem a pretensão de esgotar o assunto

tratado. Nesse sentido, sua abordagem tem um propósito inteiramente distinto, por

exemplo, daquela intenção da teoria da tragédia de Schiller, na qual os conceitos

filosóficos de patético ou de sublime, usados para caracterizar a situação trágica,

procuram revelar a essência da arte, de modo que a obra de arte particular

exemplifica aquilo que se define por meio desses conceitos. Goethe não pretende

elaborar uma filosofia da arte nesses moldes, mas uma crítica que parte da

observação e do conhecimento técnico da criação artística, aproximando-se assim

de seu precursor Winckelmann.

Naquela primeira frase do texto se encontra, numa comparação que pode

parecer apenas ilustrativa, uma questão decisiva: “Uma autêntica obra de arte,

como uma obra da natureza...”. Tanto a arte quanto a natureza produzem obras

que o nosso entendimento não é capaz de abarcar, ou que vão além do alcance de

uma descrição com palavras, o que não significa que a arte tenha de ser

semelhante à natureza. Goethe não defende a noção de que é preciso imitar a

natureza diretamente, mas a compreensão da obra de arte como um todo

“orgânico”, composto por vários elementos que se harmonizam e produzido

segundo uma série de condições que caracterizam a criação artística. Nesse

sentido, o parâmetro da comparação são as obras naturais, que podem ser

apreendidas por meio dos sentidos, mas cuja essência ultrapassa qualquer esforço

de descrição porque, para entendê-las, seria preciso conhecer a natureza em sua

totalidade. É o modo de ser das obras de arte que se assemelha ao modo de ser da

natureza, no sentido de que as leis próprias do processo que resulta em sua

produção estão submetidas a uma compreensão de totalidade. Por isso, embora

compare o nível da arte e o da natureza em termos de nosso entendimento, Goethe

65

considera “uma grande vantagem para uma obra de arte o fato de ela ser autônoma

e fechada em si mesma”.55

Assim, a comparação feita por Goethe remete a uma interpretação do

problema da mímese, da imitação da natureza e da relação entre natureza e arte.

Nas Reflexões de Winckelmann, a abordagem desse problema partia de uma

crítica da imitação direta da natureza (defendida por Bernini ou posta em prática

pelos pintores holandeses), para definir a arte grega como um outro tipo de

imitação, que não resulta em meras cópias, mas leva às imagens ideais, ao belo

universal. Goethe parece aplicar esse mesmo argumento, que definia a arte grega

como modelo a ser imitado, ao processo de criação artística considerado

genericamente. Para ele, a observação da natureza e o conhecimento do objeto

constituem uma condição inicial para que o artista, por meio de sua sensibilidade,

de sua busca de harmonia, de suas escolhas e de sua intuição da beleza, faça uma

obra de arte que vai muito além da simples cópia dos objetos naturais e alcança

uma perfeição ideal. Aplicando o argumento de Winckelmann acerca da arte

grega ao processo de criação artística em geral, Goethe aceita a exemplaridade

daquela imitação identificada no caso dos antigos. Assim como fez o autor das

Reflexões, ao descrever as condições de surgimento da arte grega com base na

observação do atletas nos ginásios, Goethe considera o conhecimento do corpo

humano em suas diferentes partes, em suas proporções, em suas finalidades

internas e externas, nas formas e nos movimentos, como ponto de partida

necessário para o escultor. É a partir do conhecimento do objeto a ser reproduzido

que se definem as condições para a realização de uma obra de arte elevada: o

característico, fruto da observação; a expressão das paixões no repouso ou no

55 Ibidem, p. 258.

66

movimento; o ideal, revelado na escolha do momento culminante a ser

representado; a graça, adquirida pela maneira de representar, segundo a ordem, a

simetria etc.; e a beleza, como uma submissão a um ideal capaz de integrar até

mesmo os extremos da natureza humana num todo harmônico. De acordo com

essas condições, o processo da criação artística parte da observação da natureza e

passa pelo aprendizado das características particulares do objeto observado,

apresentados em harmonia, para alcançar a perfeição por meio de um ideal

artístico mais elevado.

Após a consideração geral, feita no início do texto, Goethe pretende

mostrar que o grupo estatuário Laocoonte satisfaz todas essas condições definidas

para a obra de arte “perfeita”, “mais elevada”, “mais eminente”. No início de sua

análise da escultura, ele observa que, entre todas as condições definidas antes, a

que parece mais problemática no caso do grupo estatuário em questão é a

condição da graça. A princípio, a noção de gracioso, ligada a uma harmonia das

partes que compõem a obra, estaria em contradição com a primeira impressão a

respeito de um grupo estatuário que representa extremos do sofrimento humano,

com as figuras do sacerdote e de seus dois filhos atacados pelas serpentes. Mas,

segundo a explicação do autor, os antigos eram capazes de “facilitar a

compreensão visual” por meio da simetria, tornando claras e compreensíveis

mesmo as obras mais complexas. Assim, o grupo do Laocoonte, embora

extremamente movimentado, possui uma composição simétrica, harmoniosa e

agradável à vista, como um modelo de “variedade, de calma e de movimento, de

oposições e gradações sutis”, de modo que seus elementos diversos “atenuam pela

graça e pela beleza as tempestades do sofrimento e da paixão”.

67

Por um lado, essa explicação a respeito da graça remete diretamente à

comparação das paixões de Laocoonte com a superfície tempestuosa do mar, feita

por Winckelmann, ou à interpretação de Lessing, segundo a qual a expressão no

rosto do sacerdote teria traços atenuados em nome da exigência de beleza que

imperava sobre a escultura na Antigüidade. Por outro lado, ela revela uma

intenção inteiramente diferente por parte de Goethe, já que ele, em vez concentrar

sua análise na figura principal do grupo como tinham feito seus precursores,

procura desde o início estudar a obra como um todo, interpretando cada um de

seus elementos quase com o mesmo peso. A análise da escultura estabelece um

diálogo com as interpretações de outros autores, seguindo um fio condutor bem

definido que se apresenta numa série de descrições da obra analisada, cada uma

feita para ressaltar determinadas características.

A primeira descrição diz respeito a uma questão discutida anteriormente

por Lessing: a redução da figura aos traços essenciais; questão que Goethe ressalta

ao resumir a situação representada à de “um pai com dois filhos correndo o risco

de sucumbir a duas criaturas perigosas”. Essa redução está ligada à escolha do

momento mais expressivo, necessária para que uma obra de arte ganhe vida

quando contemplada, para que ela apresente seu sentido pleno, que se renova ao

olhar de cada espectador. No ensaio de Lessing sobre a fronteira da pintura e da

poesia, tanto a redução aos traços essenciais quanto a escolha do momento

oportuno revelam as características específicas das artes plásticas, consideradas

como artes espaciais, por isso chamam a atenção para as limitações impostas ao

escultor, mas que não poderiam ser aplicadas ao poeta. Não é essa a intenção de

Goethe, como ele indica ao afirmar: “Se devesse explicar esse grupo sem

conhecer outra interpretação, eu o chamaria de um idílio trágico”. Essa frase pode

68

remeter a Schiller, que tinha escolhido a situação de Laocoonte como exemplo do

trágico, mas pode ser lida também como uma espécie de justificativa da mistura

entre poesia e escultura mesmo reconhecendo a importância da distinção

estabelecida por Lessing. Nesse caso, após fazer essa espécie de pedido de

licença, Goethe elabora sua descrição numa história reduzida aos traços

essenciais, na qual se revela a situação representada como momento culminante:

“Um pai dormia ao lado de seus dois filhos, eles foram enlaçados por serpentes e,

ao acordar, tentam agora se livrar dessa rede viva”.

A situação representada na escultura dá, em função da escolha do

momento e da capacidade do artista, uma idéia dinâmica que se descobre com

toda evidência, segundo Goethe, quando o espectador fecha os olhos diante da

obra, abrindo-os em seguida para ver o mármore em movimento. Essa situação

dinâmica é obtida pelo escultor segundo um princípio de gradação, que o autor

chama de “ciência suprema” e que pretende demonstrar em sua segunda descrição

do grupo estatuário. A partir dela, a análise é muito mais detalhada do que as de

Winckelmann e Lessing, nas quais a atenção estava voltada para a figura central

da escultura, a figura do sacerdote troiano. Goethe observa que o filho mais velho

está preso pela serpente apenas por uma de suas pernas, mas o outro, enlaçado

mais de uma vez, faz com o braço direito uma tentativa de se libertar, enquanto

sua mão esquerda segura a cabeça de uma das serpentes; já o pai tenta se livrar da

situação, segurando o corpo da outra serpente, que reage com uma mordida perto

de sua cintura. A explicação da postura de Laocoonte na estátua retoma o tema da

polêmica de Lessing com Winckelmann, numa crítica às interpretações dos dois

escritores.

69

A posição do corpo é explicada segundo o princípio de apresentar um

efeito sensível e mostrar, ao mesmo tempo, sua causa, que seria a mordida da

serpente. Para Goethe, a posição do sacerdote troiano corresponde inteiramente a

essa causa: ele dobra o corpo na direção contrária à da mordida, contraindo o

abdome, e inclina a cabeça em direção à parte atingida, reagindo precisamente ao

momento do ataque da serpente. O fato de que toda a posição seria alterada, caso

mudasse o ponto da mordida, demonstraria a espantosa ciência do artista, que

soube escolher o ponto ideal para dar ao corpo um caráter dinâmico que combina

o esforço de luta e de fuga, a atividade e a passividade, a revolta (nos gestos dos

braços que seguram a serpente) e a rendição (no corpo que se dobra à dor da

mordida). Contrariando a oposição feita por Winckelmann entre a dor sensível

manifesta no abdome contraído e a expressão “tranqüila”, Goethe considera que

mesmo os traços do rosto são determinados pela sensação imediata da dor.

O próprio autor chama a atenção para o fato de estar contestando aquela

oposição entre o lado corporal e o espiritual, identificada nas Reflexões, ao afirmar

que não pretende reduzir a natureza humana negando o papel das forças

espirituais. Ele reconhece as “aspirações e sofrimentos de uma natureza

grandiosa”, assim como o terror e os sentimentos paternais que se misturam na

situação, de modo que a vida espiritual estaria representada em seu nível mais

elevado ao lado da vida corporal. Assim, Goethe afirma não discordar

inteiramente de Winckelmann, cuja descrição da figura de Laocoonte como uma

representação dos sofrimentos físicos em conflito com o espírito elevado foi

aceita também por Lessing. Mas ele faz uma ressalva dirigida diretamente ao

segundo, quando afirma que é preciso tomar cuidado para não transpor para a

própria obra o efeito que ela produz sobre os espectadores. Em sua interpretação,

70

Lessing tinha falado do efeito do veneno e de um combate contra a morte,

comentários negados aqui com o argumento de que os dentes da serpente acabam

de tocar o corpo do sacerdote, ainda saudável e combativo.

Assim, Goethe concorda com seus precursores em alguns aspectos, mas

identifica o conflito do homem físico e do homem espiritual a partir de uma

interpretação nova, baseada na transição de um estado a outro. Por representar um

momento de transição, a estátua conserva um traço claro do estado anterior e, com

isso, unifica num mesmo momento representado o esforço combativo (atividade

física), visível no gesto dos braços que seguram a serpente, e o sofrimento

(submissão à dor, resignação na qual se revela o lado espiritual), visível na

contração do corpo e na expressão do rosto.

Na terceira descrição da escultura, o autor chama a atenção para as duas

serpentes e as três pessoas, cuja representação acentua a expressividade do objeto

escolhido: “homens que lutam contra criaturas perigosas”. O fato de não se tratar

de uma oposição simples, concentrada num único ponto, como poderia acontecer

no caso de outra criatura representada e de um único homem, dá uma certa calma

e unidade ao grupo, incluindo ao mesmo tempo uma diversidade expressiva. As

serpentes são capazes de paralisar três pessoas, cada uma de modo diferente, o que

revela uma primeira gradação: uma delas apenas enlaça, a outra reage aos esforços

da figura central com uma mordida. Já as pessoas representadas são descritas

como um homem forte, mas já velho, que ainda tem energia física, dois meninos

que, comparados ao adulto, revelam-se como naturezas sensíveis à dor. Um dos

filhos se debate, sem saída, o pai luta e é ferido, o outro filho tenta escapar do

único laço que o prende.

71

Para Goethe, cada figura exprime uma dupla ação, de modo que as três

interagem em diversos níveis. Essa observação o leva a descrever a escultura com

mais detalhes, para esclarecer cada uma das ações exercidas e o sentido que ela

tem para o todo. Um dos filhos “eleva o braço direito a fim de poder respirar mais

livremente e, ao mesmo tempo, apóia a mão esquerda sobre a cabeça da serpente”,

em sua situação de prisioneiro, ele quer “diminuir o mal presente e evitar um mal

ainda maior”. O pai tenta se libertar com os braços e, ao mesmo tempo, seu corpo

faz um gesto de fuga. O outro filho tenta se soltar do laço que o prende e se

assusta com o gesto do pai, como uma espécie de observador presente na própria

obra, uma testemunha participante. Segundo a interpretação de Goethe, o

momento representado é o ponto culminante no qual se resumem todos os

extremos da situação, o que se revela claramente caso a ação que resulta nesse

momento seja acompanhada desde o início até depois do clímax alcançado. No

momento culminante, um dos corpos é incapaz de se defender, o outro se defende

mas é ferido, o terceiro tem ainda esperança de fugir e contempla com desespero

os demais.

O autor afirma que, em face dos sofrimentos próprios e alheios, o homem

possui apenas três sentimentos: o medo, o terror e a compaixão. Ou seja, “o

pressentimento inquieto de um mal que se aproxima, a percepção súbita do

sofrimento presente e o envolvimento diante de um sofrimento presente ou

passado”.56 Há uma observação, nesse contexto, que remete diretamente à

definição, feita por Lessing, da fronteira de pintura e poesia:

As artes plásticas, que sempre trabalham em vista da representação do momento específico, recorrerão sempre, quando se trata de escolher um

56 Ibidem, p. 259. É possível reconhecer nessa afirmação uma referência à Lessing, que define medo, terror e compaixão na Dramaturgia de Hamburgo (Ver LESSING. De teatro e literatura. São Paulo, Editora Herder, 1964, p. 56), tema a ser tratado no segundo capítulo deste estudo.

72

tema patético, a um objeto capaz de despertar o terror, enquanto a poesia remete aos objetos que provocam medo e compaixão.

Mas Goethe menciona essa distinção entre os dois campos da criação

artística justamente para demonstrar que seu exemplo, o Laocoonte, constitui uma

“realização suprema” das artes plásticas por ultrapassar sua fronteira. Nesse

sentido, se a figura central do pai é capaz de despertar o terror, no mais alto grau –

como percepção súbita do sofrimento presente –, a obra também representa o

medo e a compaixão, tanto para amenizar a impressão violenta do terror quanto

para abarcar os três sentimentos que compõem uma totalidade espiritual. No

grupo estatuário, o filho mais novo provoca a compaixão e o mais velho, o medo

(uma vez que lhe resta a esperança de escapar). Os três sentimentos que abarcam

todo o escopo da situação patética estariam representados, assim, no Laocoonte, e

de tal maneira que o efeito desses sentimentos também se expressa na própria

obra, porque é a compaixão pelo filho mais novo que move o esforço do pai, que

no entanto se vê na terrível situação da qual não pode escapar, enquanto o filho

mais velho demonstra medo diante do mal que o ameaça. Por isso, Goethe

considera que essa obra “trata seu tema de modo exaustivo e preenche todas as

condições exigidas pela arte...”.

A relação entre a representação de Laocoonte na escultura e a narrativa de

Virgílio só é considerada no final do ensaio, como “algumas observações a mais

sobre a relação do tema com a poesia”. O autor concorda inteiramente com

Lessing, ao considerar injusta em relação a Virgílio a comparação com o grupo

estatuário, considerado a obra-prima mais bem realizada no campo das artes

plásticas. No entanto, o argumento de Goethe não diz respeito à fronteira entre as

duas artes, mas ao caráter episódico da descrição da cena na Eneida. Nesse caso,

ele admite que existe na narrativa um exagero, mas procura justificá-lo pela

73

função de argumento retórico que a história de Laocoonte tem no poema. É Enéias

quem narra a história, para explicar como ele e seus compatriotas cometeram o

erro imperdoável de permitir a entrada do Cavalo de Tróia na cidade. A cena

descrita com serpentes enormes que saem do mar a fim de atacar os filhos e o pai,

que grita em vão por socorro, é chamada de “extravagante e repulsiva” por

Goethe. Sua função seria a de causar uma impressão exagerada no ouvinte do

texto declamado, para que ele aceite a entrada do cavalo na cidade sem condenar o

erro do herói. Assim, como a história de Laocoonte constitui apenas um meio

retórico, sendo secundária no poema, ela não poderia servir de base para uma

comparação que visa a saber se a situação do sacerdote e de seus filhos é um

objeto apropriado para a poesia.

Em sua introdução aos Escritos sobre a arte de Goethe, Todorov chama a

atenção para a diferença de propósito da estética de Goethe em relação às teorias

de seus precursores Winckelmann e Lessing, embora a mesma obra sirva de

exemplo para as reflexões teóricas dos três autores. Essa diferença caracterizaria

uma “estética orgânica”, em comparação com uma “estética mimética” e uma

“estética genérica”.57 Em outras palavras, a explicação que cada um dos autores

dá, ao interpretar o grupo estatuário, segue um princípio distinto: no caso de

Goethe, a composição; no de Winckelmann, a imitação; no de Lessing, as

características de cada gênero e o seu efeito.

Nas Reflexões, é preciso justificar por que o sacerdote troiano mantém uma

expressão de serenidade mesmo na representação de um grande sofrimento físico.

Seria “natural”, ou seja, seria uma imitação fiel da natureza mostrá-lo

desesperado, mas os artistas antigos expressam uma perfeição, caracterizada pela

57 Ver “Goethe sur l’art”. TODOROV, Tzvetan. Em: Écrits sur l’art. Op. cit., p. 38.

74

nobre simplicidade e pela calma grandeza, e esse caráter indica o caminho de uma

imitação da natureza voltada para algo que vai além da natureza, para o belo ideal.

Já Lessing explica a mesma serenidade nos traços do sacerdote não pelo ideal,

mas pelas exigências específicas da escultura, considerada como arte espacial,

distinta do gênero a que pertence a poesia, uma arte temporal. Goethe, por sua

vez, procura demonstrar que, na obra de arte perfeita, cada elemento se justifica a

partir da relação com os outros elementos, para compor um todo como “modelo

de simetria e variedade, de calma e de movimento, de oposições e gradações

sutis”.

Assim como na obra de Winckelmann, para Goethe o Laocoonte mostra

que a arte ultrapassa a simples imitação da natureza; assim como na obra de

Lessing, a estátua é analisada segundo a especificidade da escultura. Consciente

tanto da questão da mímese quanto da distinção entre os gêneros artísticos,

Goethe propõe uma interpretação mais elaborada da obra de arte que se tornou o

exemplo clássico do debate teórico na estética alemã do século XVIII.

75

CAPÍTULO 2

SHAKESPEARE CONTRA O CLASSICISMO FRANCÊS

1. Sófocles e Shakespeare

No final do século XVIII, a teoria da arte na Alemanha sofreu uma modificação

profunda, ligada sobretudo à valorização de Shakespeare (1564-1616) por parte do

Sturm und Drang, o pré-Romantismo alemão. Os teóricos da época da juventude

de Goethe, como Herder e Lenz, não pretendiam abandonar os esforços de seus

precursores nem negar inteiramente a tradição, mas repensá-la em busca de uma

arte nacional autêntica. Para isso, era necessário contestar os fundamentos do

Classicismo francês que moldava o gosto da época, e a obra de Shakespeare

serviu como principal modelo de uma criação artística contestadora. Contra as

normas rigorosas do teatro clássico de Racine e Corneille, impunha-se o modelo

do gênio, definido como aquele que não segue as regras tradicionais da arte. Com

isso se oferecia uma resposta para a dificuldade, no desenvolvimento teórico do

pré-Romantismo, de encaixar a obra de um dramaturgo moderno em toda uma

estrutura de pensamento baseada nos padrões clássicos e nos parâmetros da

tradição de base aristotélica.

Enquanto as teorias iluministas sobre a arte tinham discutido sobretudo as

especificidades da criação artística grega, defendida como modelo, a estética que

começava a surgir no final do século XVIII dizia respeito, cada vez mais, aos

parâmetros da arte moderna. Tornava-se necessária uma mudança de perspectiva,

para afirmar esses novos parâmetros da criação artística diante do modelo antigo,

considerado antes insuperável. Pois, se o belo fosse definido segundo o modelo da

Antigüidade, como a modernidade poderia ser afirmada? De que modo as

76

inovações de Shakespeare, por exemplo, poderiam ser defendidas? – Nesse caso,

como afirma Peter Szondi em “Antigos e modernos na estética da época de

Goethe”, aos poucos a própria “pergunta pela essência do belo se tornou uma

pergunta pela existência de diversos tipos de belo, pela possibilidade de o belo

sofrer alterações”.58

Com base em uma nova perspectiva acerca da relação entre os antigos e os

modernos, as obras da Antigüidade Clássica passaram a não ser vistas

necessariamente como a realização mais elevada da criação artística, a ponto de

servir de modelo do belo para sempre. O tema dos antigos e dos modernos não era

novo, ele remetia por exemplo à célebre Querelle des anciens e des modernes, o

debate ocorrido na França nos séculos XVII. No caso dos teóricos pré-românticos

alemães, a retomada desse tema teve a intenção justamente de contestar o

Classicismo que dominava a reflexão sobre a arte e a produção artística de sua

época. E essa contestação teve como fundamento a noção de gênio, associada por

Lessing à criação artística de Shakespeare.

Na Crítica do Juízo (1790), de Kant, encontra-se a definição do gênio

artístico que não segue as regras tradicionais. Segundo o filósofo, toda arte

pressupõe regras, mas as chamadas belas artes, por outro lado, se caracterizam por

uma exigência de originalidade, da qual depende sua beleza. A mera reprodução

de regras estabelecidas não produz uma obra de arte bela, de modo que o criador

precisa ter um talento específico para, segundo a sua própria natureza, dar regra à

arte. O gênio é definido então como esse talento: uma faculdade produtiva inata

do artista, que pertence à natureza e que possibilita a criação da arte segundo

regras, sem seguir as regras já estabelecidas. Por isso, “o gênio opõe-se totalmente

58 SZONDI, Peter. Poetik und Geschichtsphilosophie I. Studienausgabe der Vorlesungen Band 2. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1974, p. 17.

77

ao espírito de imitação”.59 Esse talento inato não pode ser ensinado ou explicado

nem mesmo pelos próprios artistas, incapazes de “indicar como suas idéias ricas

de fantasia e contudo ao mesmo tempo densas de pensamento surgem e se reúnem

em suas cabeças”. E no entanto uma outra característica da arte bela é justamente

a de que seus produtos têm de ser exemplares, ou seja, modelos que servem de

parâmetro para os outros. Não modelos a serem copiados, mas modelos que

definem as regras da arte para a posteridade e, com isso, constituem os meios de

orientação para que novos artistas, dotados de gênio, criem obras belas originais.

Seria possível falar, então, de um outro sentido de imitação, que faz parte do

processo de criação artística em sua relação com a arte herdada da tradição e com

a natureza.

Kant definia assim a noção que fundamentou a valorização de

Shakespeare, desde Lessing, contra o caráter mecânico e artificial do Classicismo

francês. Com base na concepção de um gênio artístico que não segue a tradição,

um dramaturgo moderno que rompe com o modelo clássico pode ser contraposto

tanto ao teatro rigoroso, que respeita a regra das três unidades, quanto à exigência

classicista de copiar a arte dos antigos. Mas, por outro lado, era a volta aos gregos

e a interpretação da Poética de Aristóteles que fundamentavam a teoria da arte

alemã de Winckelmann e de Lessing. A arte grega era vista como um ideal a ser

imitado e, ao mesmo tempo, como o modelo de uma tendência artificial, presa a

regras que não diziam respeito às condições históricas e culturais específicas da

Alemanha moderna. Winckelmann propôs a imitação dos gregos, mas procurou

definir no que consistia o ideal artístico a ser imitado. Na obra de Lessing, a busca

de modelos para uma arte nacional autêntica começava a pôr em questão a

59 KANT. Crítica da faculdade do juízo, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1993, p. 154. A concepção do gênio se encontra nos parágrafos 46 e 47.

78

exemplaridade dos antigos, mas sua teoria não pretendia, por exemplo, contestar

Aristóteles como parâmetro teórico, apenas criticar a maneira como a Poética fora

interpretada na França da época moderna.

A partir dessas bases, o problema seria, então, como afirmar a

modernidade sem renegar a Antigüidade, ou como permanecer fiel à Antigüidade

sem precisar renegar a si mesmo. E esse problema se vinculou fundamentalmente

à recepção de Shakespeare pelos alemães nas últimas décadas do século XVIII e

no início do XIX. Para Szondi, “tornou-se cada vez mais claro que não era viável

considerar Shakespeare como um classicista, com isso se revelou cada vez mais a

necessidade de desenvolver um sistema do belo, um sistema da poesia, em que

Shakespeare tivesse o seu lugar, tanto quanto Sófocles”.60 Primeiro Lessing,

depois Herder, Lenz e também o próprio Goethe fundamentaram essa discussão e

procuraram mostrar, de modos bastante complementares, que justamente por não

seguir as regras clássicas o dramaturgo inglês era o modelo a ser seguido.

2. A recepção de Shakespeare

Historicamente, a recepção de Shakespeare na Alemanha pode ter seu início

datado ainda do século XVII, quando algumas companhias de atores ingleses

percorriam a Europa representando peças elisabetanas. Mas as montagens teatrais

daquela época eram baseadas em versões simplificadas das obras, representadas

normalmente apenas em inglês e, em geral, sem indicação alguma do nome de

seus autores. Na França, por exemplo, a primeira tradução de algumas das peças

de Shakespeare só seria publicada na metade do século XVIII, em uma versão

muito deturpada pelas exigências do gosto clássico. Na Alemanha, também

60 Ibidem, p. 17.

79

predominava então a influência do Classicismo francês, ponto mais alto, na

história do teatro, de um movimento que teve início já na Renascença, com o

estudo da Antigüidade e dos escritos de Aristóteles como fundamento da idéia de

peça rigorosa.

Na teoria da arte que se desenvolveu a partir do período renascentista, a

Poética de Aristóteles era interpretada como se tivesse estabelecido prescrições

eternas para toda a dramaturgia possível. Essas regras, consideradas como

independentes da história ou da nacionalidade, ganharam sua definição mais

precisa e rigorosa justamente na França do século XVII, com L’art poétique de

Boileau e com os grandes clássicos do teatro, como Racine e Corneille. A

dramaturgia alcançava então uma perfeição extrema, na qual a beleza equilibrada

dos versos, o caráter cerimonioso e até o vocabulário selecionado refletiam o

gosto e o refinamento da corte francesa absolutista, como uma glorificação da

aristocracia. Segundo Anatol Rosenfeld, que resume a história do período em seu

livro sobre o teatro épico: “Proclamando-se herdeira exclusiva de Aristóteles,

fiada em regras absolutas e universais, independentes das situações histórico-

geográficas, a dramaturgia clássica se afigurava aos olhos do mundo como um

modelo insuperável”.61

As tendências do Classicismo francês foram importadas pela Alemanha de

Gottsched, que em 1730 publicou seu Ensaio de uma arte poética cristã. O autor

seguia toda uma tradição em que a Poética de Aristóteles tinha se tornado, ao

mesmo tempo, o ponto de referência para definir o que é a poesia e uma instrução

sobre como se deve escrever uma epopéia ou uma tragédia. Esse modelo

normativo remete a uma longa tradição de interpretação de Aristóteles, iniciada

61 ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo, Editora Perspectiva, 2002, p. 64.

80

com a Arte poética, de Horácio (século I A. C.), entre outras obras antigas.

Os teóricos alemães do século XVIII começarão a questionar o

Classicismo francês justamente com base em uma interpretação renovada de

Aristóteles e, por outro lado, na oposição do gênio de Shakespeare ao parâmetro

de teatro de Corneille e seus compatriotas.

O dramaturgo inglês será o modelo para os alemães em sua tentativa de

formar um teatro nacional, ganhando uma importância crescente tanto como

referência para a produção dramatúrgica quanto na elaboração das teorias

estéticas. Ao comentar a valorização de Shakespeare por sua geração no livro de

memórias Poesia e verdade, Goethe escreve:

Shakespeare é admirado pelos alemães mais do que pelos outros povos; mais, talvez, do que pelos seus próprios compatriotas. Encontrou entre nós, em abundância, a justiça, a eqüidade e a deferência que negamos uns aos outros. Homens eminentes dedicaram-se a apresentar o seu gênio sob a mais favorável das luzes...62

No entanto, foi um poeta que ainda defendia o modelo dos franceses quem

ofereceu ao público alemão a primeira tradução de Shakespeare, já na segunda

metade do século XVIII. Christoph Martin Wieland (1733-1813) traduziu, em

prosa, vinte e duas das trinta e seis peças do dramaturgo, e esse trabalho foi

publicado na Alemanha entre 1762 e 1766. Mais tarde (1775-7), essa primeira

tradução das peças seria revista e completada por Eschenburg. Goethe menciona,

nas memórias, o aparecimento da “tradução de Wieland, que foi devorada e

depois recomendada aos amigos e conhecidos”. Em seguida comenta que

“Shakespeare, traduzido em prosa primeiro por Wieland e depois por Eschenburg,

pôde difundir-se rapidamente como livro em geral fácil de entender e ao alcance

de todos os leitores”.

62 GOETHE. Memórias: Poesia e Verdade. Op. cit., p. 377

81

Essas traduções anunciaram e moldaram o pré-Romantismo, já que o gosto

do jovem Goethe, do jovem Schiller e de seus contemporâneos se formou com a

leitura das obras de Shakespeare em versão alemã. A partir de então, essas obras

constituíram o modelo supremo da luta contra os cânones clássicos da

dramaturgia, o que marcaria não só a produção artística daquele período, mas

também o Romantismo. Para Otto Maria Carpeaux, “a história da literatura alemã

do século XVIII pode ser dividida em duas fases: antes de Shakespeare-Wieland e

depois de Shakespeare-Wieland”.63 De fato, a tradução teve uma influência

decisiva, como indica Goethe em seu comentário, mas no campo da teoria a

discussão a respeito do poeta inglês como modelo oposto ao do Classicismo

proveniente da França tinha começado alguns anos antes.

3. Lessing: a luta contra os cânones clássicos

Na décima sétima das Cartas a respeito da nova literatura, publicadas em 1759,

Lessing defende a idéia de que os dramaturgos alemães deveriam seguir o modelo

de Shakespeare e critica os trágicos franceses, que para ele interpretaram mal as

regras de Aristóteles. De início, o autor apresenta a oposição: “Se se tivesse

traduzido, para o nosso público alemão, as obras-primas de Shakespeare com

algumas discretas modificações, estou certo de que isso teria dado melhores

resultados do que tê-lo familiarizado tanto com Corneille e Racine”.64 De fato,

como ele previu, a tradução das obras por Wieland seria publicada alguns anos

mais tarde e teria um grande impacto sobre os leitores alemães. O autor da carta

argumenta, em seguida, que o povo alemão sentiria mais prazer com as peças do

dramaturgo inglês do que com as francesas, porque “um gênio só pode ser

63 CARPEAUX, Otto Maria. Literatura Alemã. São Paulo, Nova Alexandria, 1994, p. 53. 64 LESSING. De teatro e literatura. São Paulo, Editora Herder, 1964, p. 111.

82

inflamado por outro gênio, e com maior facilidade por um que pareça dever tudo

apenas à natureza e que não intimide pelas árduas perfeições da arte”. Com essa

definição de que o gênio é um artista que parece dever tudo à natureza e não segue

as regras da arte, Lessing defende uma idéia que será fundamental tanto para os

pré-românticos quanto para os românticos e que terá sempre Shakespeare como

referência. Mas a intenção do autor, com isso, não era contestar a importância de

Aristóteles e do estudo da Antigüidade, propondo um modelo artístico

inteiramente novo e desligado da tradição. Pelo contrário, para destruir a função

de modelo do Classicismo francês, era necessário, como aponta Anatol Rosenfeld,

demonstrar que a teoria e a obra dos franceses, em seu rigor clássico, deformavam

o pensamento aristotélico, ou seja, que elas não correspondiam ao que a Poética

realmente dizia.65

Voltando à carta:

E, mesmo a decidir a questão segundo o modelo dos antigos, é Shakespeare um poeta trágico infinitamente superior a Corneille, embora este conhecesse muito bem os antigos e aquele não os conhecesse quase nada. Corneille se lhes aproxima pelo arranjo mecânico e Shakespeare pelo essencial.

Desse modo, cria-se uma inversão polêmica, uma vez que o dramaturgo genial,

aquele que não segue as regras, é considerado superior ao dramaturgo “rigoroso”

mesmo segundo o modelo dos antigos. Para fazer tal afirmação, Lessing se baseia

em uma nova interpretação do pensamento de Aristóteles, na qual destaca a

importância do efeito produzido pela tragédia, a célebre questão da catarse

aristotélica. Foi nos seus ensaios incluídos na Dramaturgia de Hamburgo (1769)

que o teórico alemão desenvolveu essa discussão, procurando mostrar os

equívocos cometidos pelos clássicos franceses. A própria base da compreensão do

efeito catártico da tragédia estaria errada, como ele demonstra na septuagésima 65 Ver ROSENFELD, Anatol. Op. cit., p. 64.

83

quinta parte do livro: “Aristóteles não foi por certo quem efetuou a divisão,

justamente censurada, das paixões trágicas em compaixão e terror. Ele foi mal

entendido, mal traduzido”.66 Para Lessing, Corneille teria interpretado

equivocadamente ou deturpado todas as definições aristotélicas da tragédia,

especialmente ao compreender que a purificação (catarse) diz respeito a todas as

paixões apresentadas, por meio do terror e da compaixão. Segundo o autor da

Dramaturgia, Aristóteles se refere à purificação justamente das paixões

despertadas pela tragédia, ou seja, do próprio medo e da compaixão. Pois, segundo

Lessing, o filósofo “fala de compaixão e medo, e não de compaixão e terror”. A

diferença entre a tradução do fóbos aristotélico por “terror” ou “medo” é essencial

nessa argumentação, como se percebe com a continuação do trecho citado:

...o medo, nele, não é de modo algum o medo que o mal iminente de outrem desperta por esse outrem, porém o medo por nós próprios, que brota de nossa semelhança com a personagem sofredora; é o medo de que as calamidades a ela destinadas nos possam atingir a nós mesmos; é o medo de que nós próprios possamos nos tornar o objeto compadecido. Numa palavra: esse medo é a compaixão referida a nós mesmos.67

Assim, Lessing procura mostrar que o conceito de compaixão em

Aristóteles, no qual estaria como que incluído o “medo”, é o essencial no efeito

catártico da tragédia. E as regras mecânicas do Classicismo francês se baseariam

justamente em uma compreensão equivocada desse conceito de compaixão, o que

teria levado os poetas trágicos a elaborar suas peças de acordo com a divisão das

paixões trágicas em compaixão e “terror”. Uma vez que a catarse, entendida como

purificação da compaixão (pelo outro) e do medo (a compaixão referida a nós

mesmos), seria o objetivo último da tragédia em Aristóteles, todos os recursos

para produzir essas duas paixões e a sua purificação deveriam ser usados. Lessing

66 LESSING. Op. cit., p. 56. 67 Ibidem, p. 56.

84

considera que as regras limitadoras de tais recursos se baseiam em uma

interpretação equivocada e levam a um procedimento mecânico, incapaz de

despertar as paixões e a sua purificação. Em outras palavras, os nobres príncipes e

heróis em cena, o rigor e a exatidão, os limites de tempo e lugar podem dar a uma

peça um caráter majestoso, sem erros, mas em nada contribuem para a emoção.

Como afirma Anatol Rosenfeld, “no fundo, Lessing se dirige contra o éloignement

[distanciamento] clássico”.68 Por isso, ele criticou muitas vezes a norma antiga de

apresentar apenas personagens nobres e justificou a representação de burgueses no

teatro. Ao contrário de Racine, que em seu segundo prefácio a Bajazet por

exemplo defendia a noção de que “o respeito que se tem pelos heróis aumenta na

medida em que eles se distanciam de nós”, para Lessing a emoção se intensifica

justamente com a aproximação dos personagens.

Ainda na carta dezessete, Shakespeare é contraposto ao caráter “mecânico”

dos clássicos franceses, como um autor que, sem seguir quaisquer regras, obtém o

efeito catártico: “O inglês alcança quase sempre a meta da tragédia, por mais

estranhos e peculiares que sejam os caminhos por ele escolhidos, e o francês

[Corneille] quase nunca atinge esse fim, ainda que palmilhe os mais aplainados

caminhos dos antigos”. Por isso, Lessing chega a comparar o poeta inglês ao

maior nome da tragédia grega: “Após o Édipo de Sófocles nenhuma peça no

mundo pode exercer maior impacto sobre as nossas paixões do que Otelo, do que

Rei Lear, do que o Hamlet”. Essa equiparação, que será retomada pelos teóricos

pré-românticos, indica a necessidade de uma teoria da arte que pudesse pôr lado a

lado o dramaturgo moderno e o antigo, que questionasse as diferenças e as

identidades de uma arte nova em relação ao modelo clássico.

68 ROSFELD. Op. cit., p. 64.

85

4. Shakespeare no pré-Romantismo

Por volta de 1770, iniciou-se na Alemanha o movimento cultural que

posteriormente ficaria conhecido pelo nome de Sturm und Drang (“Tempestade e

ímpeto”) – título de uma peça do poeta e dramaturgo Friedrich Maximillian

Klinger (1752-1831). Como teve características semelhantes às do período

romântico que se consolidou no século XIX, como a valorização da poesia

popular nacional e a defesa de novos parâmetros para a criação poética moderna,

esse movimento também é chamado de pré-Romantismo. A questão do gênio,

definido por Kant e Lessing como o talento artístico que não precisa seguir as

regras da arte, exerceu grande influência sobre a geração de autores pré-

românticos, para a qual o modelo continuou a ser Shakespeare. Esses escritores,

entre os quais se incluem Goethe e Schiller na primeira fase da sua produção

literária, combateram as normas convencionais do Classicismo francês e

privilegiaram os impulsos e elementos naturais, não racionais. No livro XI de suas

memórias, ao falar das tendências seguidas por sua geração quando eles eram

jovens, Goethe conta:

...fomos de repente libertados e desembaraçados do espírito francês. A maneira de viver dos nossos vizinhos nos parecia excessivamente imobilizada e aristocrática; sua poesia era fria, sua crítica negativa, sua filosofia abstrusa e contudo insuficiente; de modo que estávamos a ponto de nos abandonar [...] à natureza inculta, se uma outra influência não nos tivesse há muito tempo preparado para concepções filosóficas e prazeres intelectuais mais elevados, mais livres, e não menos verdadeiros do que poéticos...69

Que outra influência era essa? Para o autor das memórias, quase não era preciso

dizer, pois era evidente que se tratava de Shakespeare. A valorização de suas

peças, lidas na tradução de Wieland ou no original, ou mesmo nos fragmentos das

69 GOETHE. Memórias: Poesia e Verdade. Op. cit., p. 377.

86

antologias, tinha o tom de uma devoção religiosa, a ponto de Goethe dizer,

alguma páginas depois: “Shakespeare exerceu tal influência sobre o nosso círculo

de Estrasburgo que, assim como há homens fortes em Bíblia, nós nos tornamos

pouco a pouco fortes em Shakespeare”.70

O Sturm und Drang se desenvolveu sobretudo no campo do teatro, com os

grandes escritores que foram capazes de construir a base para a dramaturgia

nacional alemã. Destacam-se no período as peças dos jovens Goethe e Schiller,

como Götz von Berlichingen, do primeiro, publicada em 1773, ou Os salteadores,

do segundo, que veio a público quase dez anos mais tarde. As duas peças

contradizem praticamente todas as regras do estilo clássico e possuem um forte

cunho shakespeariano. No entanto, apesar de o movimento pré-romântico ter em

seu centro a produção dramatúrgica, uma das obras mais emblemáticas do período

foi o romance epistolar de Goethe publicado em 1774 com o título Os sofrimentos

do jovem Werther. O livro ultrapassou as fronteiras nacionais e tornou o seu autor

famoso em toda a Europa, depois passou a ser uma das referências fundamentais

para o Romantismo alemão e, ainda hoje, uma das obras mais conhecidas

internacionalmente de toda a literatura alemã.

Do ponto de vista da teoria da arte, a nova geração, após Lessing, ainda

estava interessada na equiparação de Shakespeare a Sófocles, ou seja, na

consideração do dramaturgo inglês a partir do estudo dos antigos, mas já via suas

obras segundo uma perspectiva que contrapunha a força da natureza ao frio

racionalismo dos clássicos franceses. Percebe-se isso claramente no ensaio “Para

o dia de Shakespeare”, que Goethe escreveu ainda muito jovem, em 1771. Ele se

pergunta: “o que o nosso século se atreve a sentenciar a respeito da natureza?

70 Ibidem, p. 388.

87

Como podemos conhecê-la, nós que, desde a juventude, sentimos tudo sufocado e

afetado em nós, e vemos da mesma maneira nos outros?”. E, na resposta, afirma

que “a natureza profetiza a partir de Shakespeare”.71

Dois anos depois, em 1773, foi publicado também o ensaio de Herder

sobre o poeta inglês, num panfleto intitulado Do estilo e da arte alemães [Vom

deutscher Art und Kunst]. Influenciado por Lessing, entre outros, Herder foi o

primeiro autor a pensar a obra de Shakespeare em uma contextualização histórica

rigorosa. Com isso seu texto inaugurou uma vertente que mais tarde marcaria a

reflexão teórica do Romantismo e do Idealismo. Outro escritor alemão da geração

de Goethe, neste caso um dramaturgo, foi motivado por um entusiasmo

equivalente pela obra do dramaturgo inglês em suas Notas sobre o teatro. Michael

Reinhold Lenz (1751-1792) escreveu um trabalho de grande importância por

retomar a discussão a respeito das regras clássicas e do gênio shakespeariano.

Em suas memórias, escritas décadas mais tarde, Goethe apontaria esses

textos de Herder e Lenz sobre Shakespeare como as referências fundamentais para

entender a posição dos pré-românticos:

Para quem quiser apreender diretamente o que se pensou, exprimiu e debateu nessa sociedade viva, será preciso ler a memória de Herder sobre Shakespeare na brochura Do estilo e da arte alemães e as Notas sobre o teatro de Lenz [...]. Herder penetra nas profundezas do gênio de Shakespeare e as expõe admiravelmente. Lenz porta-se mais como iconoclasta para com a tradição teatral e não quer ouvir falar de ninguém que não seja Shakespeare.72

Embora o texto contenha uma crítica ao procedimento de Lenz, por se dispersar

“sem medida nos detalhes e desfiar um fio interminável”, a indicação não deixa de

admitir que o estudo dos dois textos constitui a base para se compreender também

a posição do próprio Goethe em relação a Shakespeare.

71 GOETHE. Escritos sobre literatura. Rio de Janeiro, Editora 7letras, 2000, p. 31. 72 GOETHE. Op. cit.. p. 377

88

4. 1. Lenz versus Goethe

Durante o período do Sturm und Drang, Lenz e Goethe mantiveram relações

cordiais, mas elas se deterioraram posteriormente a ponto de tornar impossível a

convivência entre ambos. A trajetória dos dois não podia ser mais divergente:

enquanto o autor do famoso Werther foi convidado para a corte de Weimar pelo

duque Karl August, ganhou depois um título de nobreza e viveu mais de oitenta

anos de intensa produtividade, o arrebatado Lenz morreu pobre e louco aos 41

anos. Do mesmo modo que outros grandes nomes da literatura alemã (por

exemplo Lessing antes dele e Hölderlin depois), Lenz sofreu as conseqüências de

romper com a família, que o queria pastor, e tentar viver como escritor num

período em que não havia um mercado alemão para os bens culturais. Os autores

daquela época, por mais talentosos que fossem, dependiam em grande medida de

mecenas nobres, e portanto também de suas ligações sociais. No caso de Lenz, o

seu caráter instável, a incapacidade de adaptação, a carência afetiva e o

infantilismo, apontados em cartas de seus contemporâneos, atrapalharam sua

carreira já tão pouco viável naquela época

Nas memórias de Goethe, há um registro do período do Sturm und Drang

que demonstra claramente a tendência à falta de medida, tanto no caráter quanto

no estilo de Lenz, assim como a peculiaridade do vínculo que se criou entre os

dois escritores nos anos de juventude:

Mal havia aparecido Götz von Berlichingen quando Lenz me enviou, no papel ordinário de que habitualmente se servia, uma longa exposição sem o menor espaço em branco, nem nas margens, nem no alto, nem ao pé das páginas. Essas folhas traziam o título Sobre o nosso casamento. Se ainda existissem, nos dariam mais luzes do que me deram na ocasião, pois eu não sabia naquela ocasião o que pensar dele e do seu gênio. O objetivo principal desse longo escrito era comparar o meu talento com o seu. Lenz parecia ora subordinar-se, ora igualar-se a mim; mas tudo isso era

89

torneado com tanta alegria e tanta graça que acolhi da melhor vontade o pensamento a que ele me queria conduzir, tanto mais que realmente tinha grande estima pelo seu gênio; no entanto, instei infatigavelmente com ele para que renunciasse às suas divagações e fizesse uso, de modo consentâneo com as regras da arte, daquele talento plástico com que o dotara a natureza. Respondi-lhe amigavelmente e, como ele reclamava a mais íntima das uniões, segundo dava a entender o estranho título daquelas folhas, a partir de então comuniquei-lhe todos os meus trabalhos já terminados ou em projeto. Em troca ele enviou um após outro os seus manuscritos, O governador, O novo Menoza, Os soldados, as Comédias imitadas de Plauto e a tradução da peça de Shakespeare que acrescentou como suplemento às suas Observações sobre o teatro.73

A relação entre Lenz e Goethe se deteriorou durante a estada do primeiro

em Weimar. Em 1776, pouco antes de ser nomeado conselheiro pelo duque, o

próprio Goethe tinha convidado seu colaborador do período pré-romântico para

visitá-lo, mas a incapacidade de adaptação de Lenz acabou por torná-lo muito mal

visto pela corte. Suas gafes eram contadas como anedotas e sua presença na

cidade pareceu incomodar muito a Goethe, nessa época em que ele se afastava dos

arroubos juvenis do Sturm und Drang. O diário de Goethe registra, no dia 26 de

novembro, uma “burrada de Lenz”, que já tinha sido chamado de “monstrinho”

em uma carta a Charlotte von Stein. Pouco tempo depois, Goethe solicitou ao

duque que seu antigo convidado fosse expulso de Weimar, em função de um

incidente não mencionado.74 Após a partida forçada da corte, a fragilidade do

caráter de Lenz se agravou, e em 1777 ele teve sua primeira crise, com delírios

místicos e acessos de paranóia, seguidos depois por tentativas de suicídio. Sua

família se reconciliou com ele em 1779, o que parece ter estabilizado um pouco

seu estado mental durante os anos seguintes, nos quais ele trabalhou como

professor em Riga e São Petersburgo. Mas a situação de Lenz piorou rapidamente

a partir 1788, até a sua morte quatro anos mais tarde, em Moscou.

73 Op. cit., Livro XIV, p. 463. 74 Ver “Lenz e Goethe”. SAADI, Fátima. Introdução para a edição das Notas sobre o teatro e Regras para atores, Rio de Janeiro, 7letras, no prelo.

90

As Notas sobre o teatro foram escritas no período de juventude e de

colaboração com Goethe, e serviram de prefácio à adaptação de Lenz para a peça

de Shakespeare Trabalhos de amor perdidos. Segundo seu autor, embora tenha

sido publicado em 1774, o texto fora lido dois anos antes em uma reunião em

Estrasburgo, mesma cidade onde Goethe tinha vivido, de 1770 a 1771, conhecido

Herder e “descoberto” Shakespeare. As Notas têm muito em comum com o ensaio

de Goethe “Para o dia de Shakespeare”, com sua luta contra as regras do

Classicismo francês e sua busca pela fundamentação do gosto e do teatro

nacional. Há, no texto de Lenz, cheio de exclamações e de arroubos típicos do

pré-Romantismo, uma longa discussão a respeito da Poética de Aristóteles,

analisando a definição de poesia como imitação e a definição de tragédia. A

versão, um pouco confusa, dessa definição por parte de Lenz diz: “É, pois, a

tragédia a imitação de uma ação, elevada, completa e importante, numa

linguagem agradável e variada, segundo a condição dos personagens da ação e

não por meio de um relato.”75 É com base nela que o autor das Notas passa a

considerar a importância da fábula e as regras derivadas de Aristóteles, tendo em

vista sempre a diferença entre a tragédia clássica francesa e a obra de

Shakespeare.

Um dos pontos mais marcantes dessa discussão é exatamente a análise da

regra das três unidades, considerada uma “norma tão temível e tão

lastimavelmente famosa” graças aos franceses, e “que só causou tanto

estardalhaço por ser insignificante”. Sobre a unidade de ação, Lenz afirma que

existe uma diferença entre a maneira como os antigos gregos viam o teatro, com a

75 LENZ, J. M. R.. Notas sobre o teatro. Tradução de Fátima Saadi, p. 11.

91

atenção voltada para a ação, e a maneira moderna, com a atenção voltada para o

personagem principal. Ele pergunta então:

Que culpa temos nós se não conseguimos mais encontrar nenhum prazer em ações descosidas e se já estamos velhos para desejar ver um todo? Que culpa temos nós se queremos ver homens onde eles só viam o destino inexorável e seus misteriosos influxos?76

Quanto à unidade de lugar, o autor das Notas aponta que se trata, no fundo, de

uma “unidade de coro”, pois no teatro grego as pessoas aparecem como que

cumprindo os desígnios do destino. Por isso, tudo convergiria para um mesmo

lugar, no qual o coro se encontra para justificar o fato de se reunirem ali as

pessoas necessárias para o desenvolvimento da trama.

Já a unidade de tempo estabeleceria a diferença essencial entre a tragédia e

a epopéia, uma vez que Aristóteles afirma, no trecho do fim do quinto capítulo da

Poética citado por Lenz:

A epopéia e a tragédia concordam somente em serem, ambas, imitações de homens superiores, em verso; mas difere a epopéia da tragédia pelo seu metro único e a forma narrativa. E também na extensão, porque a tragédia procura, o mais que é possível, caber dentro de um período do sol, ou pouco excedê-lo, porém a epopéia não tem limite de tempo...

Segundo Lenz, essa diferença formal é apenas uma conseqüência da diferença

entre a “representação”, na tragédia, e a “narração”, na epopéia. A imitação de

uma ação que se passa em um só dia é mais adequada à montagem das peças

gregas, restrita a algumas horas, enquanto a forma narrativa pode se desdobrar e

se estender sem ter tal preocupação. Mas, para Lenz, se a ação representada

exigisse um tempo mais longo, como ocorre com peças modernas, não haveria

necessidade de se manter fiel à unidade de tempo. Assim, o rigor da regra apenas

limita, força o autor a restringir sua criação e, quando aplicado a obras modernas,

não respeita as diferenças do teatro dessa época em relação ao antigo.

76 Ibidem, p. 17.

92

Seria justamente esse o problema dos franceses: “Eles levaram essas regras

a um ponto tal que qualquer homem, em sã consciência, se angustia diante delas.

Em nenhum lugar do mundo existem pessoas que observem de forma mais

obsessiva as três unidades”.77 Para Lenz, a excessiva fidelidade às regras, muito

maior do que a dos próprios gregos, levou os autores franceses a uma repetição

insuportável, sem a menor naturalidade. Nas tragédias, “seus heróis, heroínas,

burgueses, burguesas têm todos o mesmo rosto e a mesma forma de pensar, do

que resulta uma grande uniformidade na ação”. Já nas comédias, “alguns traços

caricaturais isolados não chegam sequer a esboçar caracteres”. Por isso, o autor

das Notas afirma ter encontrado, nas peças clássicas, “tanta semelhança com a

natureza (ou ainda menos) quanto nos participantes de um baile de máscaras”.

Em contraposição ao Classicismo desenvolvido na França, Shakespeare é

mencionado como um dos grandes gênios que “já consideravam o teatro segundo

seu próprio ponto de vista, não sob o prisma de Aristóteles”. Para demonstrar isso,

Lenz faz uma comparação entre as peças Julius Caesar, de Shakespeare, e La

mort de César, de Voltaire, na qual ressalta a superioridade das soluções e a

naturalidade do dramaturgo inglês. O argumento de Lenz para fazer essa

comparação se baseia na contestação da aparente superioridade do teatro clássico

francês, do ponto de vista formal, e na demonstração de que a sua suposta

perfeição é destituída de substância. Sem ser fiel às regras, Shakespeare alcançaria

o máximo de emoção: “Roma não chorou por César como o fez Shakespeare”.

4. 2. Herder e o pensamento histórico

77 Ibidem, p. 20.

93

Herder foi, na juventude de Goethe, praticamente um mentor, que por certo tempo

permaneceu como um de seus principais interlocutores no campo da filosofia e da

teoria da arte. Posteriormente, na época do Classicismo de Weimar, essa

influência perdeu muito de sua importância para Goethe. Em todo caso, as idéias

de Herder sobre Shakespeare e a valorização do teatro nacional autenticamente

alemão foram fundamentais para o autor do Werther. Aliás, a divergência

posterior não impediu Goethe de reconhecer isso em suas memórias, escritas já no

período de maturidade da sua produção literária.

Embora tenha partido, em grande medida, das considerações de Lessing,

Herder não estava especialmente interessado, como seu precursor, em reconciliar

Shakespeare com o cânone aristotélico. Justamente essa reconciliação, ou a

tentativa de “salvar” o dramaturgo inglês são posturas criticadas por ele no início

de seu ensaio. Herder pensou a relação entre a poesia dramática moderna e a

antiga a partir de sua filosofia da história, mostrando como a intenção de copiar os

parâmetros de uma época passada, atribuída por ele ao Classicismo francês,

constitui um contra-senso. Segundo ele, o caminho de Shakespeare precisa ser

diferente daquele que orienta a criação artística de Sófocles, mas é justamente por

respeitar a diferença de caráter histórico que o poeta inglês consegue atingir o

mesmo fim, do ponto de vista dramático.

O ensaio sobre Shakespeare tem início com a constatação de que uma

grande biblioteca já foi escrita sobre ele, contra ele e a favor dele, demonstrando

que Herder se ocupou longamente com o assunto e conhecia os comentários de

seus precursores franceses, ingleses e alemães. No entanto, seu propósito não era

o de aumentar tal biblioteca, ou seja, o de tomar uma posição contra ou a favor,

mas o de revelar um novo entendimento a respeito da questão debatida por tantos

94

outros. Toda a argumentação de Herder se baseia, então, numa análise do

surgimento da arte trágica na Grécia antiga, com o intuito de mostrar que ela é

fruto de condições históricas e sociais distintas das modernas, ou, mais

especificamente, já que está em jogo também o caráter nacional, das condições do

norte da Europa após a Idade Média:

Na Grécia surgiu o drama de um modo como ele não poderia surgir no norte. Na Grécia ele foi o que não poderia ser no norte. No norte ele não é nem poderia ser o que foi na Grécia. Portanto o drama de Sófocles e o drama de Shakespeare são duas coisas distintas, que a rigor mal podem compartilhar do mesmo nome.78

Segundo a tese de Herder, o fato de os termos “tragédia”, “comédia” e

“drama” serem de origem grega não justifica que as obras de arte desses gêneros

tenham, necessariamente, a mesma forma que tinham na Antigüidade. As

características do teatro grego, como a “simplicidade da fábula”, a “sobriedade

dos costumes” e a “unidade de lugar e de tempo” derivariam, assim, das

condições de surgimento desse teatro. A tragédia grega teria surgido da

improvisação do ditirambo, da dança mímica, e especialmente do coro, base a

partir da qual se desenvolveram as inovações de Ésquilo (dois personagens

contracenando, além do coro) e Sófocles (terceiro personagem e cenografia).79 A

simplicidade da fábula resultaria da “unidade da ação que se encontrava diante

deles; que segundo a situação de sua época, pátria, religião e costumes não podia

ser nada além de uma unidade”.80 Para Herder, a unidade de lugar dizia respeito

ao fato de essa ação única e curta ocorrer apenas num local, no templo ou no

palácio, com o coro justificando a convergência da ação, como se a sucessão de

cenas não deixasse de ser o desdobramento de uma única cena, daquela cena

78 HERDER, J. G. “Shakespear”. Em: Werke, Band I: Herder und der Sturm und Drang (1764-1774). Munique, Carl Hanser Verlag, 1984, p. 527. 79 Ver ARISTÓTELES. Poética, 1449 a. 80 HERDER. Op. cit., p. 529.

95

original que o coro representava. E a unidade de tempo seria uma conseqüência

inevitável dessas condições que se impunham naturalmente, segundo o espírito

nacional e histórico.

Com base nessa análise inicial, Shakespeare será considerado como poeta

moderno e nórdico, em uma comparação com os gregos antigos que ressalta não

só a diferença entre as épocas e os povos, mas também as conseqüências dessa

diferença para a estrutura das obras. Como resume Anatol Rosenfeld, ao comentar

o texto de Herder, “as três unidades, longe de serem resultado de raciocínios

estéticos, decorrem das condições em que o teatro grego surgiu”. Nesse caso, as

regras deixam de ter o caráter atemporal que lhes é atribuído pela tradição das

poéticas normativas. “A estrutura diversa da obra de Shakespeare é, por sua vez,

resultado de condições inteiramente diversas. O tratamento livre de espaço e

tempo faz parte da unidade orgânica de sua obra”.81 Enquanto o poeta grego tinha

como ponto de partida a unidade dos mitos, o coro e o ditirambo, o poeta moderno

parte de uma grande variedade histórica, com diversos povos, dialetos e

influências. Com isso, os caminhos tomados por Sófocles e por Shakespeare, os

maiores nomes da poesia de suas respectivas épocas, precisavam ser diferentes, ou

mesmo opostos, para tornar possível a criação de obras de arte próprias de cada

período. Por isso, Herder considera que a exigência de simplificação de acordo

com a idéia de peça rigorosa, que copia a forma grega, estaria baseada em uma

falta de compreensão da história.

Para o autor do ensaio, no caso dos gregos as regras da arte não eram

artificiais, mas derivadas da própria natureza. Assim, ele conclui: “Percebe-se

claramente que a arte dos poetas gregos tomou o caminho oposto daquele que lhes

81 ROSENFELD. O teatro épico. Op. cit., p. 66.

96

atribuímos hoje em dia. Penso que eles não simplificavam, mas diversificavam”. E

ele procura demonstrar o desenvolvimento dessa diversificação, de “Ésquilo em

relação ao coro, Sófocles em relação a Ésquilo”, a partir do ponto de partida uno e

simples constituído pelo mito. Em outras palavras, “não era nunca o caso de criar

um todo a partir de várias partes; mas várias partes tinham de ser criadas a partir

de um todo”. A dificuldade seria então justamente desdobrar a ação em início,

meio e fim, tendo em vista esse ponto de partida único e completo do mito, do

coro e do ditirambo. A riqueza da arte de Sófocles seria a de criar, a partir de tal

unidade, “um belo labirinto de cenas, no qual a grande preocupação era mover seu

público com a ilusão da unidade prévia no ponto mais complexo desse labirinto”.

Ao considerar brevemente o pensamento de Aristóteles, Herder chama a

atenção para o fato de que ele “afirma expressamente” que os parâmetros de

duração, com isso também o modo, o tempo e o espaço, “não podem ser

determinados por quaisquer regras”. Nesse caso, o autor do ensaio concorda com

a posição de Lessing, para quem as regras derivadas de Aristóteles pelo

Classicismo francês na verdade não foram reconhecidas pelo filósofo grego. Por

isso, Herder exclama, anunciando sua crítica aos clássicos franceses: “Ah se

Aristóteles ressuscitasse e visse o uso falso e oposto de suas regras em um drama

de outro tipo!”. Embora elogie a beleza da forma alcançada pela tragédia clássica

francesa, o autor procura mostrar que se trata de uma beleza artificial, enquanto a

arte grega se mostra como uma criação natural. Sua questão será, então, se é

possível ir além da precisão formal alcançada por Corneille, Racine e Voltaire de

acordo com os princípios da peça rigorosa, contestando o caráter artificial de sua

arte.

97

A mera cópia da estrutura formal de uma outra época é cega para as

mudanças históricas, para as condições atuais de compreensão da obra e as

exigências atuais do público. Pois “assim como tudo muda no mundo, também a

natureza que criou o drama grego precisa mudar”. Se, como Herder constata, “a

concepção de mundo, os hábitos, a situação da república, a tradição da época

heróica, a crença, até mesmo a música, a expressão, a medida da ilusão se

alteraram”, por que fazer um teatro preso à forma grega? Além disso, a tentativa

de ser fiel a tal forma teria levado os franceses a uma produção dramática que,

justamente por seu anacronismo, não atingiria o efeito das obras gregas. Segundo

o autor, ser igual a Sófocles, no sentido de copiar sua forma, não significa ser fiel

aos princípios que deram origem à obra do tragediógrafo grego. Ser igual, nesse

sentido, é ser como um “boneco”, ao qual faltam “espírito, vida, natureza, verdade

– todos os elementos que nos tocam...”. Assim, a questão de Herder era saber:

...se a cópia de épocas, costumes e ações estrangeiros em meia verdade, com o objetivo de torná-los próprios para a representação em uma estrutura semelhante à antiga, pode ser igualada a uma imitação que era, a rigor, a mais elevada natureza nacional?82

Em seguida, ele conclui sua crítica com a constatação de que “todo o

drama francês se converteu em uma coleção de belos versos, sentenças e

sentimentos – mas o grande Sófocles permanece o que era antes...”. Com isso,

prepara-se a equiparação entre o poeta antigo, não alcançado em sua grandeza

pelos tragediógrafos clássicos, e o grande gênio moderno de Shakespeare, como já

tinha feito Lessing. Após concluir os argumentos de sua crítica, Herder procura

mostrar a possibilidade de um povo inventar seu próprio drama, sem copiar o

drama do passado. Aqui, ele retoma a noção de gênio que também estava presente

82 HERDER. Op. cit., p. 533.

98

no texto de Lessing, para argumentar a favor de uma estrutura nova como uma

necessidade derivada de condições históricas novas.

E se houvesse, nessa época alterada feliz ou infelizmente, um gênio que retirasse de seu material naturalmente, com grandeza e originalidade, uma criação dramática, assim como fizeram os gregos a partir do seu; e se a criação alcançasse o mesmo objetivo, mas de modos muito diversos... Seria o caso de condenar o segundo tipo de drama por ser diferente do primeiro? Toda a sua essência, virtude e perfeição se baseia no fato de não ser o primeiro: uma planta diferente cresceu do solo fértil do tempo.83

Esse gênio capaz de criar a partir das circunstâncias históricas de seu

tempo, do modo de ser da sua nação, é Shakespeare. Tendo um ponto de partida

inteiramente diferente do grego, sua obra precisa ter também uma estrutura

diferente, uma forma que não surge do ditirambo e do coro, mas das farsas

medievais e do teatro de marionetes. Com isso, em Shakespeare, tudo é distante

dos gregos: a história, a tradição, os costumes, a religião, o espírito do tempo, do

povo, da comoção, da língua. Mais do que qualquer outro autor, é o poeta inglês

quem satisfaz a exigência de espírito local e histórico que constitui a base da

argumentação de Herder. Por isso, Shakespeare é “o novo Sófocles”, o gênio que

seria louvado por Aristóteles caso ele voltasse, em contraposição aos clássicos

franceses que, em sua tentativa de copiar a arte grega, não respeitaram nem as

mudanças do tempo nem o caráter nacional.

Shakespeare não tinha à sua frente nenhum coro; mas representações populares e de marionetes – muito bem! Ele criou [...] a partir disso a magnífica obra que vive diante de nós! Ele não encontrou nenhum caráter simples do povo e da pátria, mas uma variedade de situações, modos de vida, mentalidades, povos e dialetos [...], então ele criou poeticamente situações e homens, povos e dialetos, rei e bobos, bobos e rei, fazendo deles um todo magnífico! Ele não encontrou um espírito simples da história, da fábula, da ação: tomou a história como a encontrou, e reuniu com espírito criativo o produto mais variado em um todo fantástico.

83 Ibidem, p. 535.

99

Herder afirma ainda que se sente mais próximo de Shakespeare do que dos

gregos, não só historicamente, mas também porque o dramaturgo inglês nos

apresenta “homens do norte”, noção que justifica uma identificação entre o caráter

nacional inglês e o alemão. “Quem poderia imaginar um poeta maior do que ele

para o povo do norte e para este período da história?”, Herder se pergunta.

Segundo ele, a própria natureza nórdica e o caráter dos homens de seu tempo se

fazia presente no palco, de modo grande e profundo. Por isso, como Lessing já

tinha argumentado, Shakespeare deveria ser o modelo para o teatro nacional

alemão, que procurava seu caminho ainda sob o jugo da influência francesa.

Após fazer alguns comentários elogiosos sobre as tragédias Rei Lear,

Macbeth e Otelo, Herder retoma de novo a idéia, tão cara aos pré-românticos, de

que Shakespeare é irmão de Sófocles, idéia que ganha consistência pela noção de

que ambos são fiéis à natureza do seu povo e de seu tempo. Nesse caso, no lugar

da oposição entre antigo e moderno, surge a oposição entre o caráter artificial e o

natural, ou seja, entre a criação artística mecânica, baseada em regras frias, caráter

que Herder identifica nos franceses, algumas vezes de modo forçado e exagerado,

e a criação que surge do elemento nacional e histórico próprio, caráter identificado

em Sófocles e Shakespeare. Para reforçar essa oposição, na conclusão do ensaio o

elogio ao gênio do poeta inglês lhe atribui a capacidade de revelar o destino

humano e o acontecer histórico, em uma criação que ultrapassa todos os limites

das regras e as separações de gêneros.

100

5. Consideração sobre o Romantismo

Sem a pretensão de investigar detalhadamente um assunto tão extenso, que

exigiria no mínimo um capítulo à parte, essa consideração visa apenas a indicar

um percurso que mostra a dimensão da importância de Shakespeare em diferentes

fases do movimento romântico, nascido na Alemanha durante a última década do

século XVIII. Nesse caso, a indicação pode servir como parâmetro comparativo

para que se compreenda melhor, em seguida, a mudança na avaliação do

dramaturgo por parte Goethe, caso se compare seu texto escrito no período do

Sturm und Drang com um ensaio de décadas mais tarde. Existe uma continuidade

entre a posição dos autores pré-românticos em relação a Shakespeare e a dos

poetas românticos alemães, que produziram, além de diversos ensaios de crítica

literária a respeito de Shakespeare, ainda mais elaborados do que os de seus

precursores, uma nova tradução de suas obras, de muito melhor qualidade do que

a anterior. Quando as tendências do Romantismo alemão foram transmitidas aos

franceses, elas constituíram a base para uma grande batalha contra os cânones

clássicos da poesia e do teatro no próprio país de Corneille, Racine e Molière.

Grandes nomes da poesia romântica francesa, como Victor Hugo e Alfred de

Vigny, herdaram dos alemães o culto pelo gênio anti-clássico de Shakespeare.

O Romantismo alemão teve como primeiro centro a cidade de Jena, na

qual os irmãos Schlegel fundaram a revista Athenäum ainda no final do século

XVIII, em competição com as Horen, de Schiller. Johann Gottlieb Fichte (1762-

1814), professor de filosofia em Jena naquela época e também um colaborador

das Horen, foi uma das maiores influências para os poetas mais novos, que

começavam a combater a tendência clássica da literatura de Goethe e Schiller.

Assim, o início do movimento romântico não só coincidiu com a fase final do

101

chamado Classicismo de Weimar, como também aconteceu em uma cidade muito

próxima. Por vários anos, antes de se mudar para Weimar, o próprio Schiller

viveu em Jena, recebendo visitas de Goethe ou indo ao seu encontro

periodicamente. Em suas cartas, os dois criticam duramente a revista de August

Schlegel, que anteriormente também tinha sido um colaborador das Horen.84

August Wilhelm Schlegel (1767-1845), o mais velho dos dois irmãos,

lançou as bases para a interpretação romântica de Shakespeare em suas preleções

Sobre Literatura e Arte Dramática [Über dramatische Kunst und Literatur], que

foram ministradas em Berlim a partir de 1801. August Schlegel também traduziu

treze peças do dramaturgo inglês entre 1797 e 1810, e posteriormente outro poeta

romântico, Ludwig Tieck (1773-1853), completou essa tradução em verso. O

resultado obtido por eles é muito superior ao do trabalho de Wieland, como

comenta Otto Maria Carpeaux em sua história da literatura alemã:

...talvez seja a melhor tradução de qualquer poeta que existe em qualquer língua: é inteiramente fiel ao original inglês e, no entanto, uma criação poética original em língua alemã; é mesmo, depois da Bíblia de Lutero, o mais importante marco na evolução da língua literária alemã. Conseguiu incorporar Shakespeare totalmente à literatura dos alemães.85

Já Friedrich Schlegel (1772-1829), também poeta e crítico literário, além

de romancista e professor, analisou igualmente Shakespeare e apontou, tanto em

sua obra quanto na de Goethe, os sinais precursores do Romantismo. É o que ele

faz, por exemplo, em Conversa sobre a poesia, texto publicado nos dois últimos

cadernos da Athenäum, em 1800. Ao tratar das “épocas da arte poética”, Friedrich

Schlegel comenta brevemente o itinerário da obra de Shakespeare, desde as

primeiras peças, “incompletas e sem perspectiva, mas profundas, grandiosas e

84 Ver cartas de julho de 1798, em GOETHE/SCHILLER. Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller, Frankfurt: Insel Verlag, 1977, p. 655-659. 85 CARPEAUX, O. M.. Op. cit., p. 108.

102

cheias de engenho”, até o período de maturidade.86 Nesse período, o autor destaca

as novelas “que ele remodelou para o palco com profunda engenhosidade,

reconstruiu e dramatizou de maneira fantasticamente atrativa, numa escala nunca

antes alcançada”. E conclui chamando a atenção para os traços de Romantismo

presentes na obra comentada:

Essa maturação refluiu também para as peças históricas, dando-lhes a plenitude, encanto e espirituosidade, sendo todos os seus dramas insuflados pelo espírito romântico que, unido à grande profundidade, os marca de forma característica, deles fazendo um fundamento romântico do drama moderno que durará por toda a eternidade.

Além das análises e da tradução, o irmão de Friedrich, August Schlegel

contribuiu diretamente para a transmissão das tendências românticas alemães à

França, pois foi amante e conselheiro de Madame de Staël, cuja obra De

l’Allemagne moldou em grande medida o intercâmbio cultural entre os dois

países. Mais uma vez, na versão francesa do movimento romântico, Shakespeare

será o modelo usado para combater o Classicismo, em uma época na qual o teatro

rigoroso de Racine e Corneille ainda definia os parâmetros da dramaturgia

francesa. Um dos momentos mais marcantes do conflito entre clássicos e

românticos na França foi a estréia da peça Hernani, de Victor Hugo, em 1830,

dois anos depois do êxito de uma companhia inglesa que apresentara peças do

dramaturgo inglês em Paris. A peça de Victor Hugo obteve grande sucesso apesar

de contrariar os cânones da dramaturgia clássica, e o entusiasmo de seu autor por

Shakespeare o levou a chamá-lo de “o maior criador depois de Deus”, e a

defender calorosamente, em seu prefácio a Cromwell, a noção de gênio como

justificativa para o projeto romântico: “em nome da verdade, todas as regras são

abolidas”.87

86 Ver SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre poesia. São Paulo, Iluminuras, 1994, p. 43-44. 87 Ver CARPEAUX, Op. cit., p. 70.

103

Stendhal (Henry Beyle, 1783-1842) também tinha retomado vários

elementos da discussão sobre o clássico e o romântico em seu ensaio

“Shakespeare e Racine”, de 1823, ano em que os românticos já tinham conseguido

algumas pequenas vitórias no teatro francês, mas o conservadorismo ainda

predominava. O autor, que postumamente seria considerado um dos grandes

nomes da literatura no século XIX graças a seus romances O vermelho e o negro e

A cartuxa de Parma, pergunta: “Para escrever tragédias que possam interessar o

público em 1823 é necessário seguir os passos de Racine ou os de Shakespeare?”.

E logo a seguir ele afirma: “Dirijo-me sem receio algum a essa juventude perdida

que acreditou ser patriotismo e honra nacional vaiar Shakespeare por ser inglês”.88

O debate em torno de Shakespeare e Racine se resumiria, para o escritor, em saber

se a obediência às unidades de lugar e de tempo leva ou não a peças que

interessam vivamente aos espectadores de sua época. Stendhal critica essa

obediência, que afirma ser um mau hábito francês profundamente enraizado, ao

narrar o suposto diálogo entre um acadêmico e um romântico. Nessa conversa, o

segundo interlocutor argumenta, por exemplo, que “na Inglaterra, há dois séculos;

na Alemanha, há cinqüenta anos, escrevem-se tragédias cuja ação dura meses

inteiros e a imaginação dos espectadores a isso se presta muito bem”. Ao

combater as regras rígidas do teatro francês, Stendhal defende o Romantismo,

como um movimento artístico autêntico de sua época, contra o Classicismo

acadêmico. Assim, o efeito obtido por Shakespeare em suas peças, sem seguir a

regra das três unidades, deveria ser imitado pelos dramaturgos do século XIX, em

lugar dos rigores do Classicismo. Stendhal argumenta, contra a unidade de tempo:

É interessante, é belo ver Otelo, tão terno no primeiro ato, matar sua mulher no quinto. Se essa transformação ocorre em trinta e seis horas, é

88 STENDHAL, “Racine e Shakespeare”. Em: Johnson. Prefácio a Shakespeare. São Paulo, Iluminuras, 1996, p. 85.

104

absurda e desprezo Otelo. Macbeth, homem honrado no primeiro ato, seduzido por sua mulher, assassina seu benfeitor e rei e se torna um monstro sanguinário. [...] ...essas mudanças de sentimentos no coração humano são o que a poesia pode oferecer de mais admirável aos olhos dos homens, aos quais ela comove e ao mesmo tempo instrui.89

Essa proposta de Shakespeare como modelo era, aliás, a mesma dos

alemães desde o pré-Romantismo, quando discutiam o modelo para formar seu

teatro nacional. No entanto, embora siga muitas das idéias herdadas da Alemanha,

Stendhal tem uma postura nacionalista e exige que a nova tragédia francesa rejeite

a “balbúrdia alemã que hoje muita gente chama de romântica”. Como que para

justificar sua polêmica com o país vizinho, ele em seguida critica Schiller, um dos

maiores nomes da dramaturgia alemã moderna, que teria copiado Shakespeare e

sua retórica, mas sem ter “coragem de apresentar a seus compatriotas a tragédia

exigida pelos seus costumes”. Assim como os alemães pré-românticos procuraram

se livrar do domínio do gosto clássico francês, Stendhal tentava evitar que a

defesa do Romantismo fosse moldada pelos autores da Alemanha. Mas o escritor

a quem ele dirigiu sua crítica não foi um defensor incondicional de Shakespeare,

como Lenz por exemplo, nem um crítico contundente do Classicismo francês,

como Herder. A posição de Schiller na verdade tinha uma certa ambivalência, por

mais que suas primeiras peças fossem marcadas pelas tendências do pré-

Romantismo.

6. Schiller crítico de Shakespeare

89 Ibidem, p. 110.

105

Schiller leu Shakespeare pela primeira vez aos dezesseis anos, estimulado por um

dos seus professores da Academia Militar de Stuttgart, onde estudou em 1775 e

1776. Embora tenha sido bastante influenciado pelo dramaturgo em suas

primeiras peças, alguns anos mais tarde, a reação inicial à leitura foi muito menos

calorosa do que a de seus contemporâneos do Sturm und Drang, mencionada por

Goethe nas memórias e no ensaio de 1771. Schiller, por sua vez, refere-se a esse

seu primeiro contato em Poesia ingênua e sentimental, escrito em 1795-96. Nesse

livro, Schiller retoma muitas das concepções teóricas de seus precursores, mas

elabora as questões de modo original, segundo uma nova terminologia. Ele

trabalha, por exemplo, com a noção de gênio exposta por Kant na Crítica do juízo

(1790) e mencionada por Lessing, entre outros, dentro de uma contextualização

histórica que remete também a Herder, pois a caracterização dos poetas ingênuo e

sentimental diz respeito à época em que suas obras florescem e às condições que

exercem influências sobre eles. O tema fundamental do livro é o modo de criação

artística, em sua relação com a natureza. Basicamente, há “duas maneiras poéticas

de criar completamente distintas, mediante as quais se esgota e mede todo o

domínio da poesia”.90 Numa delas, a ingênua, o poeta é natureza, na outra, a

sentimental, ele busca a natureza perdida. É segundo tais termos que a oposição

entre antigo e moderno e entre clássico e romântico é redefinida, de modo a ser

pensada a partir de outra perspectiva.

Schiller não subordina a sua caracterização dos modos do fazer poético,

ingênuo e sentimental, à diferença entre antigos e modernos. A poesia ingênua

caracteriza o modo antigo, assim como a sentimental é essencialmente moderna,

mas também existem poetas ingênuos modernos. A diferença está no

90 SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental. São Paulo, Editora Iluminuras, 1991, p. 57.

106

procedimento reflexivo do caráter sentimental, que busca a natureza perdida e

segue o impulso de restabelecer a sua unidade, enquanto o gênio ingênuo cria

como a própria natureza. Nesse caso, a noção mesma de gênio estará ligada, para

Schiller, à definição da poesia ingênua, como ele afirma expressamente: “Todo

verdadeiro gênio tem de ser ingênuo, ou não é gênio. Apenas sua ingenuidade o

torna gênio...”.91 O autor esclarece a definição do gênio como artista que não

segue as regras da arte a partir dessa caracterização, pois o poeta que é natureza

“tem de solucionar as tarefas mais complexas com despretensiosa simplicidade e

desembaraço”. Em outras palavras, ele se legitima como gênio justamente por

“triunfar sobre a arte complexa”, por criar uma obra que não parece fruto de sua

habilidade técnica, mas tem uma espontaneidade como a das coisas geradas pela

natureza. O gênio “não procede segundo princípios conhecidos, mas segundo

inspirações e sentimentos; suas inspirações, porém, são estros de um deus [...], e

seus sentimentos são leis para todos os tempos e todas as estirpes humanas”.

Shakespeare aparece como gênio do tipo ingênuo, no exemplo dado por

Schiller para avaliar sua própria reação à leitura do modo de poesia assim

caracterizado. A posição apresentada aqui está muito distante da veneração dos

teóricos do pré-Romantismo e, além disso, não está ligada diretamente à

contestação dos parâmetros do Classicismo francês. Shakespeare é citado ao lado

de Homero, “duas naturezas sumamente distintas e separadas pela imensurável

distância entre as épocas, mas de todo iguais nesse traço de caráter”, como poeta

que “foge do coração que o busca, do desejo que quer envolvê-lo”, de modo que

“a seca verdade com que trata o objeto aparece não raro como insensibilidade”.

Por isso, Schiller conta que, ao travar contato pela primeira vez com o poeta

91 Ibidem, p. 51.

107

inglês, indignava-se por sua frieza e insensibilidade, que lhe permitiam

interromper com gracejos de um bufão as cenas mais elevadas de suas tragédias.

Educado pela leitura de poetas modernos, sentimentais, o jovem estudante alemão

considerava insuportável que “o poeta não se deixasse apreender em parte alguma

e, em parte alguma, quisesse prestar-me contas”. Como Schiller explica, ele ainda

não era capaz de entender uma poesia sem reflexão, “de entender a natureza em

primeira mão”, pois “só podia suportar sua imagem refletida pelo entendimento e

ajustada pela regra”.92

Num dos ensaios que escreveu sobre a arte trágica, Schiller também se

manifesta a respeito de Shakespeare num tom bem menos laudatório do que o de

seus contemporâneos pré-românticos, embora retome posteriormente algumas das

idéias principais destes. No texto intitulado “Acerca da arte trágica”, de 1792, ele

faz críticas ao Rei Lear por enfraquecer a compaixão do espectador: “Não é

pequeno o prejuízo causado ao nosso interesse pelo infeliz Lear, maltratado por

suas ingratas filhas, quando esse ancião infantil entrega com tanta leviandade a

sua coroa...”.93 Algumas páginas depois, em uma afirmação inteiramente contrária

à luta travada por Lessing, Lenz e Herder contra o Classicismo francês, ele

considera o Cid de Corneille “sem objeção, no que diz respeito à intriga, a obra-

prima do palco trágico”.

Já no texto escrito como prefácio para a sua peça A noiva de Messina, de

1803, “Acerca do uso do coro na tragédia”, por exemplo, Schiller assumirá a

mesma posição dos autores do Sturm und Drang, ao criticar o Classicismo francês

pela sua falta de compreensão dos antigos:

...os franceses, que a princípio nada haviam compreendido do espírito dos antigos, introduziram no teatro, de acordo com o sentido mais

92 Idem, p. 58. 93 Em: SCHILLER. Teoria da tragédia. São Paulo, EPU, 1991, p. 92.

108

comum e empírico, uma unidade de lugar e de tempo, como se aí houvesse outro lugar que não o espaço ideal, e outro tempo que não a ininterrupta seqüência da ação.94

Assim como Herder tinha feito, Schiller procura mostrar nesse ensaio que

a tragédia grega se originou do coro e, também, que o uso do coro era fruto da

própria natureza dos gregos, uma vez que as ações e os destinos dos heróis

pertenciam ao domínio público. Historicamente, a emancipação do coro na

tragédia seria uma conseqüência do fato de que o dramaturgo moderno não

encontra mais o coro na natureza, no modo de ser do público e na relação que ele

estabelece com a ação representada. Assim, o autor argumenta a favor de sua

tentativa, em A noiva de Messina, de fazer uso do coro em uma tragédia moderna,

justamente porque o coro ressaltaria o caráter de símbolo da montagem teatral.

Para Schiller, o coro era como uma muralha viva que isolava a tragédia do mundo

real, “preservando o seu terreno ideal e a sua liberdade poética”.

O uso do coro por um poeta moderno seria uma tentativa de buscar a

natureza perdida, nos termos de Poesia ingênua e sentimental, ou seja, de

transformar o mundo comum e artificial dos modernos no ideal poético, vivo e

natural dos antigos. Ao isolar a reflexão da ação, o coro possibilitaria algo como

uma purificação da tragédia, uma introdução do conceito geral, objeto da reflexão

característica da poesia moderna, sentimental, na própria composição poética. Em

todo caso, o projeto de reintroduzir o coro na tragédia moderna se restringiu à

peça A noiva de Messina e foi muito criticado pelos autores da época, como

Schlegel, Schelling e Hoffmann, mas isso não impediu a repercussão da

justificativa teórica desse projeto. As idéias defendidas por Schiller foram

retomadas, entre outros, pelo filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) em O

Nascimento da tragédia, de 1872. Ao criticar a concepção de Schlegel, Nietzsche 94 Idem, p. 76.

109

afirma que “uma compreensão infinitamente mais valiosa do significado do coro

já nos fora revelada por Schiller no famoso prefácio à Noiva de Messina...”. Para

o filósofo, trata-se de uma luta contra o conceito vulgar do natural, ou seja, da

ilusão naturalista exigida no teatro moderno, de modo a restituir à arte trágica o

seu caráter ideal e simbólico.95

É nesse contexto que Schiller critica os franceses e elogia Shakespeare:

“Introduzido na tragédia francesa, o antigo coro a revelaria em toda a sua

indigência, destruindo-a; à tragédia de Shakespeare daria, sem dúvida, sua

verdadeira significação”.96 Com essa postura, o autor revela seu vínculo com o

movimento pré-romântico, mas a teoria da tragédia de Schiller em geral o

distancia dos teóricos desse movimento e constitui a base teórica do período

clássico de sua produção poética, fundada na filosofia kantiana.

7. Goethe e Shakespeare

Goethe foi um dos principais responsáveis pela valorização de Shakespeare no

Sturm und Drang, e o impacto causado pela leitura do poeta inglês está registrado

tanto no ensaio de 1771, “Para o dia de Shakespeare”, quanto nas memórias

escritas décadas mais tarde, entre 1808 e 1814. No ensaio, sem entrar em detalhes

autobiográficos, o autor adota um tom laudatório e exaltado como o de Lenz, para

se referir à importância de sua descoberta de Shakespeare, como um mundo novo

que se abria. Já em Poesia e verdade, Goethe conta que seu primeiro contato com

as obras que marcaram sua formação literária se deu em Leipzig, por meio da

antologia Beauties of Shakespeare, de Dodd. Depois veio a leitura da tradução de

95 NIETZSCHE. O nascimento da tragédia. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1993, p. 54. Ver também A Noiva de Messina, São Paulo, Cosac e Naify, 2004, p. 209. No mesmo livro, encontram-se publicados o parágrafo de Nietzsche e os trechos com as críticas de Schlegel, Schelling e Hoffmann à peça. 96 Ibidem, p. 80.

110

Wieland-Eschenburg, na versão em prosa que divulgou as peças entre os jovens

alemães daquela geração.97

Um novo ensaio sobre Shakespeare foi publicado por Goethe no fim de

sua vida, em 1826, incluindo dois textos escritos na mesma época das memórias, e

constitui sua reflexão teórica mais completa acerca da obra do poeta inglês e das

diferenças entre os antigos e os modernos. O texto de “Shakespeare e o sem fim”,

escrito na verdade entre 1813 e 1816, é sóbrio ao analisar a obra do ídolo de

juventude de acordo com pontos de vistas diversos, chegando a fazer críticas à sua

dramaturgia. Pela comparação entre os dois ensaios de Goethe, percebe-se

claramente a diferença de perspectiva entre o autor apaixonadamente exaltado do

Sturm und Drang e o escritor clássico, moldado pela experiência como diretor da

companhia de teatro de Weimar, pelos anos da correspondência com Schiller, pelo

estudo dos antigos e pelo empenho em definir e exercitar os diversos gêneros

poéticos.

Entretanto, é importante levar em conta, também no caso da valorização de

Shakespeare e da justificativa dessa valorização, que muito do pensamento teórico

de Goethe se encontra inserido em sua produção artística. No romance Os anos de

aprendizado de Wilhelm Meister, publicado em 1796 com base em uma versão de

1785 intitulada A missão teatral de Wilhelm Meister, Goethe oferece um

panorama da formação de um teatro nacional alemão. Era uma questão decisiva

para a vida cultural daquele período, como Lenz, Herder e, antes deles, Lessing já

tinham apontado. A descoberta de Shakespeare pelo protagonista constitui um dos

momentos mais importantes do romance, tanto na versão inicial quanto na final, e

contrapõe uma visão nova a respeito do teatro ao ponto de vista nacionalista ou ao

97 Ver GOETHE, Poesia e Verdade, Op. cit., p. 377.

111

gosto do Classicismo francês, representados por outros personagens. Na

elaboração dessa descoberta, as considerações a respeito da dramaturgia e as

teorias sobre uma montagem alemã de Hamlet, no Livro V do romance, indicam a

intenção que Goethe tinha de discutir tanto a importância de Shakespeare para a

formação do teatro nacional alemão, quanto os critérios que deveriam ser

adotados para a montagem de suas peças.

A incorporação da teoria ao desenvolvimento do romance chega a tal

ponto, que o autor se manifesta diretamente, no capítulo 6 do livro V, anunciando

ensaios de sua autoria aos leitores. Depois de se referir aos diálogos sobre a arte

dramática entre o protagonista e Serlo, o diretor da companhia teatral, Goethe

escreve: “Wilhelm costumava tomar nota de uma ou outra dessas conversas e,

para não interromper demasiadamente nossa narrativa, iremos expor em outra

ocasião tais ensaios sobre arte dramática àqueles de nossos leitores que pelo

assunto se interessarem”.98 O capítulo seguinte inclui também uma longa

discussão entre Wilhelm e outros membros da companhia sobre “qual dos gêneros

seria superior: o drama ou o romance”, nos moldes dos debates sobre os gêneros

literários freqüentes na correspondência de Goethe com Schiller.99

7.1. Para o dia de Shakespeare

A importância que Shakespeare teve para Goethe em sua juventude foi explicitada

no seu ensaio de 1771: “A primeira página dele que li foi uma identificação por

toda a vida, e quando tinha terminado a primeira peça, fiquei como um cego de

nascença a quem um gesto milagroso dá, num instante, a visão”. Em seguida, no

mesmo tom de veneração, ele ressalta a novidade que a obra recém-descoberta

98 GOETHE. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo, Ensaio, 1994, p. 300. 99 Ibidem, p. 302-304.

112

constituía naquele momento: “Reconheci, senti vivamente a minha existência

expandindo-se numa infinidade, tudo era novo, desconhecido, e a falta de costume

com a luz me fazia doer os olhos”.100 Pelo tom, esse texto da época do Sturm und

Drang se assemelha muito ao ensaio de Lenz sobre Shakespeare; pelas idéias que

defende, ele também se aproxima do texto de Herder, que possui um tom mais

sóbrio, sem deixar de ser um elogio exaltado. Embora seja um relato pessoal, mais

do que uma consideração teórica bem articulada sobre um tema, encontra-se no

centro do ensaio de Goethe a noção de uma crítica ao teatro francês baseada na

valorização do dramaturgo inglês.

A equiparação a Sófocles, presente em Lessing e especialmente em

Herder, é retomada aqui de um modo passional: “Quanto ao teatro grego, que os

franceses tomavam como modelo, segundo suas qualidades internas e externas,

era mais fácil que um marquês pudesse imitar Alcibíades do que seria possível a

Corneille seguir Sófocles”. Goethe não justifica seu ataque aos clássicos franceses

de modo linear e fundamentado, como fizeram seus contemporâneos pré-

românticos ao remeter a discussão à Poética de Aristóteles, mas afirma por

exemplo que a armadura grega é muito grande e pesada para os franceses, ou que

“todas as peças trágicas francesas são paródias de si mesmas”. Nesse caso, a

crítica serve apenas para a comparação com a “grandeza colossal” de

Shakespeare, poeta capaz de dar expressão ao todo da natureza, oferecendo uma

perspectiva unificadora que rompe com o gosto estragado pela artificialidade do

Classicismo:

O teatro de Shakespeare é uma bela caixa de raridades, na qual a história do mundo passa diante de nossos olhos, suspensa nos fios invisíveis do tempo. [...] ...as peças todas tratam do ponto secreto (que nenhum

100 “Para o dia de Shakespeare”. GOETHE. Escritos sobre literatura, Rio de Janeiro, 7letras, 2000, p. 26.

113

filósofo chegou a ver e determinar) em que o caráter particular de nosso eu, a liberdade pretendida de nossa vontade encontra-se com o andar necessário do todo. Todavia, o nosso gosto deteriorado ofusca de tal modo os olhos que quase precisamos de uma nova criação, para sairmos dessa obscuridade.

Para Goethe, em uma afirmação que remete ao seu célebre poema pré-

romântico sobre o personagem do mito grego, Shakespeare “rivaliza com

Prometeu, imitando a cada traço seus homens”, criando como a própria natureza

cria.101 Mais do que os outros autores de sua geração que escreveram sobre o

mesmo tema, Goethe valoriza em Shakespeare acima de tudo o gênio da natureza.

Esse foi um tema fundamental em sua obra, desde o Werther até os romances da

maturidade, nos quais a questão da relação do indivíduo com a natureza ainda

ocupará uma posição central, passando pelos seus poemas e por seus vários

estudos científicos naturalistas. Embora Goethe não retome explicitamente a

noção de gênio mencionada por Lessing para se referir a Shakespeare, nem o tema

da rigidez e do equívoco das regras do Classicismo, ele procura mostrar que a

grandeza do poeta é a de ser um profeta da natureza, a de criar homens que são

natureza, diante dos quais os personagens de outros autores “parecem bolhas de

sabão”. Nesse sentido, Shakespeare alcançaria um ponto secreto que nenhuma

filosofia chega a determinar, por expressar uma verdadeira união com a natureza

em sua totalidade, contrariando toda a afetação e o caráter artificial que definiam

o gosto da época. Essa valorização da natureza influenciará de modo decisivo

tanto a noção do poeta ingênuo de Schiller, quanto a defesa de Shakespeare como

precursor do Romantismo por parte de Friedrich Schlegel, entre outros.

7.2. Shakespeare e o sem fim

101 Ibidem, p. 30. Ver o poema de Goethe Prometheus, escrito por volta de 1773, em: Goethe, Werke I, Frankfurt: Insel Verlag, 1993, p. 50.

114

O segundo ensaio de Goethe é dividido em três partes, que analisam “Shakespeare

como poeta em geral”, “Shakespeare comparado com os antigos e os novos” e

“Shakespeare como autor de teatro”. Embora a versão integral só tenha sido

publicada em 1826, as duas primeiras partes foram escritas em 1813, como o

próprio autor esclarece ao introduzir a terceira, de 1816. Nessa pequena

introdução à terceira parte, ele afirma que o texto acrescentado diz respeito

também ao teatro alemão e ao “propósito, compreendido por Schiller, de

fundamentá-lo para o futuro”, ou seja, de estabelecer as bases para o teatro alemão

posterior.102 Comparado com o texto exaltado de juventude, esse ensaio revela

muitas diferenças marcantes, ligadas tanto a uma visão mais clássica do seu autor,

preocupado em classificar, explicar e definir vários aspectos da obra em questão,

quanto às suas experiências como diretor da companhia de teatro de Weimar. Não

se encontra mais, em “Shakespeare e o sem fim”, o elogio incondicional ao poeta

da natureza, mas uma análise que contém, inclusive, algumas críticas ao

dramaturgo inglês quanto à estrutura de suas peças e à dificuldade de montá-las. A

idéia central do ensaio é a de que Shakespeare se presta mais à leitura do que à

montagem teatral ou, em outras palavras, de que ele é maior como poeta do que

como autor de teatro.

A posição defendida por Goethe constitui uma resposta às exigências dos

autores românticos da época, especialmente Tieck, um dos responsáveis pela nova

tradução de Shakespeare. Para esses autores, suas peças deveriam ser montadas

nos palcos alemães sem alteração alguma, com total fidelidade ao texto. Como o

próprio Goethe indica, trata-se de uma questão que remete diretamente à

discussão travada por Wilhelm Meister e Serlo, no romance de 1796,

102 “Shakespeare e o sem fim”, em: GOETHE. Escritos sobre literatura, Op. cit., p. 50.

115

especificamente acerca da montagem alemã de Hamlet. A experiência de Goethe à

frente de uma companhia de teatro pode identificá-lo com as objeções do diretor

teatral Serlo, que em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister acaba

convencendo o protagonista a abandonar sua exigência de fidelidade ao texto da

peça. Como resultado das discussões entre os personagens, o próprio Wilhelm

fundamentará depois a necessidade de fazer certas adaptações em Hamlet para o

palco alemão.103

Embora o ensaio “Shakespeare e o sem fim” tenha uma perspectiva muito

diferente daquela de “Para o dia de Shakespeare”, Goethe não deixa de retomar

algumas de suas idéias da época do Sturm und Drang. Em todo caso, ele procura

dar a elas uma explicação sóbria, influenciada em muitos pontos pelo ensaio de

Herder, como atesta o fato de que os dois textos começam de modo muito

semelhante. Enquanto o de Herder falava da grande biblioteca que já fora escrita

sobre o dramaturgo inglês, Goethe afirma inicialmente, antes de anunciar os

propósitos de cada parte da sua análise: “Já se disse tanto a respeito de

Shakespeare que parece não restar mais nada para dizer...”. Outro ponto de

interseção com Herder é a constatação de que as poesias de Shakespeare devem a

grande riqueza de sua composição à pátria em que floresceram, ou seja, às

condições históricas, geográficas e culturais específicas. Goethe diz:

Em toda parte está a Inglaterra, banhada pelo mar, cercada de neblina e nuvens, no lugar de todas as regiões do mundo. O poeta vive para o tempo de dignidade e importância, apresentando-nos sua forma, também sua deformação, com grande jovialidade, e ele não teria um efeito tão forte em nós se não se equiparasse ao tempo em que viveu.104

Em seguida, no que pode ser entendido como uma crítica à comparação

feita por Lenz entre o Júlio César de Shakespeare e La mort de César de Voltaire,

103 Ver GOETHE, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, Op. cit., livro V, capítulo 6. 104 GOETHE. Escritos sobre literatura , Op. cit., p. 40.

116

o autor contesta a opinião de que o poeta inglês teria apresentado

“primorosamente os romanos”. Goethe discorda abertamente disso, ao afirmar que

para ele todos os personagens de Shakespeare são “notoriamente ingleses, mas

trata-se decerto de homens, homens desde o princípio, e neles a toga romana

também veste bem”. Ao justificar esse anacronismo, seu argumento já contém,

embora de forma velada, aquilo que constituirá depois um dos pontos de sua

crítica: a necessidade que o leitor tem de se adaptar ao que Shakespeare faz. Como

se existisse um ajuste necessário, que pode ser feito na leitura sem problemas, mas

que não pode ser transposto para o palco sem prejuízo. Para o autor, “alguém que

já se adaptou à situação passa a achar seus anacronismos muito louváveis, e

justamente o fato de repudiar o figurino exterior é o que faz suas obras tão vivas”.

Na primeira parte do ensaio, sobre “Shakespeare como poeta em geral”,

tudo gira em torno da idéia de que as obras do poeta se destinam mais para a

imaginação do que para a visão. É dessa idéia que derivará a crítica, a ser

desenvolvida em outros termos na terceira parte do ensaio, segundo a qual as

peças em questão se prestam mais à leitura do que à montagem teatral. Goethe

afirma:

Shakespeare fala ao nosso sentido interior; por meio deste anima-se de imediato o mundo de formas da capacidade imaginativa, criando um efeito de plenitude, do qual não sabemos dar nenhuma satisfação, pois aqui se encontra o fundamento daquela ilusão de que tudo se passa diante de nossos olhos. Todavia, quando se consideram as peças de Shakespeare com exatidão, elas contêm muito menos ação sensível do que palavra espiritual. Ele deixa acontecer o que é fácil de imaginar, o que é melhor imaginado do que visto. O espírito de Hamlet, as bruxas de Macbeth, algumas atrocidades ganham o seu valor antes de tudo pela capacidade imaginativa, e a variedade de pequenas cenas intercaladas baseia-se puramente nessa faculdade.105

A partir dessas observações, ele conclui que “todas essas coisas passam por nós de

modo leve e conveniente enquanto lemos, mas aparecem na representação como 105 Ibidem, p. 38.

117

algo carregado e perturbador, mesmo repugnante”. Assim, o impacto que a leitura

das obras de Shakespeare tem sobre a imaginação seria, muitas vezes, diminuído

pelas dificuldades de representá-las, ou pela inadequação das cenas à montagem

teatral.

No entanto, embora contenha o fundamento para a crítica que será

elaborada na terceira parte, essa primeira constitui em seu conjunto um elogio à

grandeza do poeta. Justamente a riqueza de sua poesia, que se dirige de modo tão

direto à imaginação e revela com tanta profundidade a natureza, parece não se

adequar aos limites da montagem das peças. As obras perderiam no palco muito

do vigor e do impacto que possuem na leitura, mas nesse primeiro momento o

autor está mais preocupado em descrever e louvar tal vigor poético do que em

criticar as limitações dramatúrgicas acarretadas por ele. Assim, Goethe retoma o

argumento de seu ensaio de juventude, ao mostrar a grandeza de Shakespeare

como uma espécie de profeta da natureza, igualado “ao espírito do mundo”, para o

qual nada está velado. O caminho do poeta seria “o de ir revelando o mistério,

fazendo-nos confidentes antes da ação, ou precisamente no decorrer desta”. Como

o autor comenta, é por isso que todos os personagens de Shakespeare são

eloqüentes, e mesmo os acontecimentos em segundo plano se voltam para uma

revelação expressiva da natureza: “Pronto, o mistério precisa vir à tona, e as

pedras devem anunciá-lo. [...] ...os elementos, fenômenos do céu, da terra e do

mar, trovão e relâmpago, animais selvagens levantam suas vozes...”. Mesmo as

artes e ciências, os ofícios e negócios do mundo civilizado aparecem e se

expressam como tesouros revelados pelo poeta. Mas esse vigor expressivo da

poesia de Shakespeare, capaz de penetrar tão profundamente no domínio da

natureza, por isso exaltado acima de tudo pelo jovem pré-romântico, indica um

118

problema para o gosto clássico de Goethe em relação ao teatro. Tal ressalva pode

ser percebida por sua observação de que a revelação do mistério, por parte de

personagens e fenômenos secundários, muitas vezes se dá “contra qualquer

verossimilhança”. Para o autor do Wilhelm Meister, toda a riqueza das obras de

Shakespeare se mostra mais na leitura, mesmo que seja em voz alta, do que nas

tentativas de transportar a enorme diversidade de suas cenas para o palco.

A segunda parte do ensaio tematiza uma comparação entre a poesia antiga

e a moderna, na qual o autor pretende estabelecer também a diferença de

Shakespeare em relação aos poetas românticos, que ele chama de os poetas “mais

novos” [Neuesten]. Para isso, Goethe retoma a definição schilleriana do poeta

ingênuo, usada aqui em oposição não ao sentimental, mas especialmente ao

romântico. Seu argumento diz respeito, em primeiro lugar, ao que torna a obra de

Shakespeare autêntica e substancial: o fato de ela estar voltada para o presente,

sem a nostalgia que caracterizaria os poetas novos. Todos os elementos mágicos

da poesia teriam, nessa obra, um papel secundário, sem contradizer o fato de que o

poeta cria a partir das condições da sua própria época e da sua própria vida. Para

Goethe:

O interesse que o grande espírito de Shakespeare desperta encontra-se no interior do mundo: pois se profecia e loucura, sonhos, pressentimentos, sinais, fadas e gnomos, fantasmas, monstros e feiticeiros constroem um elemento mágico que paira em sua poesia no tempo certo, contudo essas aparições não são de forma alguma o ingrediente principal de suas obras. A verdade e o valor de sua vida é que constituem a base ampla na qual aquelas coisas repousam; por isso, tudo o que ele escreve nos parece tão autêntico e substancial. Assim, já se pode perceber que ele não é um poeta destes novos, que foram chamados românticos, pertencendo muito mais àquele gênero ingênuo, já que sua obra diz respeito na verdade ao presente e ele quase não toca no lado mais delicado, aproximando-se da nostalgia apenas em pontos extremos.106

106 Ibidem, p. 42.

119

A crítica ao Romantismo se dirige contra a sua volta ao passado, que para

o autor teria um caráter artificial, e à valorização dos elementos fantásticos,

irreais, também pensados como uma fuga do presente. Com base nessa crítica,

Goethe defende a noção de uma poesia moderna não romântica, separada dos

antigos por um precipício, não apenas do ponto de vista da forma, mas segundo

seu sentido mais íntimo e profundo. Ao propor a comparação, ele se posiciona

diante de toda a tradição da querela entre os antigos e os modernos, herdada da

França e discutida em outros termos pelos grandes teóricos iluministas alemães,

como Winckelmann e Lessing. A versão de Goethe das oposições entre antigos e

modernos remete também à argumentação desenvolvida por Schiller em Poesia

ingênua e sentimental. Para o autor de “Shakespeare e o sem fim”, da mesma

maneira que o antigo se opõe ao moderno, seria possível opor “ingênuo” e

“sentimental”, ou “pagão” e “cristão”, ou “heróico” e “romântico”, ou “real” e

“ideal”. No entanto, ele não explica cada uma dessas oposições, apenas as

enumera até citar as duas que constituirão a base de seu argumento sobre a

diferença entre a poesia antiga e a moderna. A “necessidade”, no campo do

“antigo”, “ingênuo” e “pagão”, é contraposta à “liberdade”, no campo do

“moderno”, “sentimental” e “cristão”, da mesma maneira que o “dever” se opõe

ao “querer”.

Especialmente esses últimos termos articulam a comparação feita em

seguida, pois, para o autor, “os maiores tormentos, assim como a maioria das

coisas a que o homem pode estar exposto, surgem de um daqueles mal-entendidos

entre dever e querer, mas também entre dever e realizar, entre querer e realizar”.

Enquanto a poesia antiga seria dominada por uma desproporção entre dever e

realizar, na moderna a vontade é que estaria em conflito com a realização. Cada

120

época revelaria o predomínio de um desses conflitos, “mas como dever e querer

não podem ser radicalmente separados no homem, é preciso que se encontrem

sempre ambos os aspectos, ainda que seja um em primeiro plano e o outro num

plano secundário”. Segundo a definição do ensaio, o dever consiste em uma

imposição feita ao homem, o que implica aceitar a necessidade apesar de tudo, e o

querer vem do próprio homem para tentar se impor, como afirmação da liberdade.

Goethe procura mostrar que, apesar do predomínio de cada oposição em

uma época, o querer e o dever estão sempre presentes em seu conflito com a

realização. Nesse caso, “a tragédia antiga diz respeito a um dever inevitável, que é

apenas aguçado e acelerado por meio de um querer agindo em sentido contrário.

Aqui é onde se assenta tudo que há de terrível no oráculo, a região na qual Édipo

reina sobre tudo mais”. Já no drama desenvolvido na época moderna, um dever

monstruoso seria solucionado por um querer, o que nos daria ao final o consolo

após expectativas penosas. Goethe define os dois termos que se encontram na

base de sua comparação, antes de retomar a análise da obra de Shakespeare.

Segundo essa definição, “todo dever é despótico. Isso pertence à razão, como a lei

da moral e da cidade; ou à natureza, como as leis do devir, do crescimento e

perecimento, da vida e da morte. Estas, sobretudo, nos fazem estremecer, sem a

ponderação de que através delas se visa ao equilíbrio do todo”. Quanto ao

segundo termo, ao defini-lo o autor já indica que o seu predomínio representa um

enfraquecimento:

O querer, em contrapartida, é livre, parece livre e favorece os indivíduos. Por isso o querer é lisonjeiro e tem de apoderar-se dos homens logo que dele tomam conhecimento. É o deus dos novos tempos; entregues a ele, nos amedrontamos diante das contrariedades, e aqui se encontra o fundamento pelo qual nossa arte, assim como nossa mentalidade, permanecem eternamente separadas das antigas.107

107 Ibidem, p. 46.

121

Goethe critica a tragédia moderna, em comparação com a antiga,

justamente por estar baseada no querer, “o deus dos novos tempos”, e não no

dever. Segundo tal concepção, o dever tornaria a tragédia “grande e forte”, porque

está ligado com a sociedade e com a natureza, e o querer a faria “fraca e

pequena”, porque valoriza acima de tudo o indivíduo. Essa comparação prepara a

análise da obra de Shakespeare, autor que se destacaria singularmente por ligar o

antigo e o novo de uma maneira exuberante. Na obra do poeta inglês, Goethe vê

um equilíbrio entre o dever e o querer, uma conjugação dos dois termos sem o

predomínio da vontade característico nos poetas novos. Nesse caso, Shakespeare

não só se diferenciaria de tais poetas, mas também seria capaz de ultrapassar o

abismo que separa a própria poesia antiga da moderna. Nas palavras do ensaio:

Talvez ninguém tenha apresentado de modo tão magnífico o primeiro grande enlace do querer e dever no caráter individual como ele fez. A pessoa, considerada a partir do caráter, deve: ela é limitada, determinada a algo particular; mas como ser humano ela quer: é ilimitada e exige o universal.

Assim, existiria na obra de Shakespeare a conjunção de um conflito

interior, que diz respeito à vontade do indivíduo e à sua própria capacidade ou

incapacidade de realizá-la, e de um conflito exterior, no qual as circunstâncias se

contrapõem ao querer até torná-lo um dever indispensável. Em Hamlet, por

exemplo, o conflito interior se expressa na melancolia do protagonista, desde o

monólogo inicial da peça, sendo transformado em um dever pelo espírito do rei.

Durante toda a ação, a partir desse momento, a vontade e a necessidade entram em

choque tanto entre si, quanto com a possibilidade de realização. Para mencionar

outros exemplos dados pelo autor no ensaio, as feiticeiras de Macbeth teriam o

122

mesmo papel de exteriorizar o conflito que seria apenas interior, articulando

querer e dever, assim como fazem os amigos de Brutus, na peça que leva o seu

nome. De acordo com a conclusão de Goethe, “um querer que ultrapassa a força

de um indivíduo é moderno. Mas Shakespeare não o faz surgir de dentro, e sim

alterar-se por uma ocasião exterior, por isso ele se torna um tipo de dever,

aproximando-se dos antigos”.

Em outras palavras, seguindo ainda a argumentação do ensaio, os

personagens da poesia antiga expressam, como indivíduos, um certo equilíbrio

entre querer, dever e realizar, pois a sua vontade não vai além do que é possível ao

homem. O conflito interior não é exacerbado como na poesia moderna, em que o

indivíduo geralmente quer mais do que pode. No entanto, o dever dos antigos

aparece como algo impositivo em demasia, de modo que a necessidade exclui em

última instância quase toda a liberdade individual, e segundo Goethe isso “não se

encaixa mais em nosso modo de sentir”. Ao contrapor o conflito interior, entre a

vontade e a realização, e o exterior, entre a necessidade e a realização,

Shakespeare seria capaz de aproximar as duas perspectivas e fazer a ligação entre

o mundo antigo e o novo. Caso se queira aprender com ele, é essa a questão que

deveria ser estudada, de acordo com a recomendação que o autor do ensaio faz ao

Romantismo alemão, na qual considera o poeta inglês como o “grande mestre”

que já realizou o “milagre” de “conciliar em nós aquela grande oposição que

parece inconciliável”. Com isso ele conclui a segunda parte do ensaio.

Em seguida, após um breve esclarecimento a respeito da época em que os

textos foram escritos, Goethe anuncia sua intenção de discutir a questão de

Shakespeare como autor teatral. A terceira parte, incluída posteriormente, retoma

um tema que já tinha sido abordado por Lessing, ganhara uma importância ainda

123

maior para Lenz e Herder, no período do Sturm und Drang, e que no início do

século XIX era debatido pelos poetas românticos. A questão decisiva, na

retomada de Goethe, é saber se o dramaturgo inglês deveria ou não servir de

modelo para o teatro nacional alemão. Ao contestar a valorização incondicional de

Shakespeare, o autor do ensaio se opõe tanto à perspectiva dos autores da nova

geração, quanto à perspectiva que ele mesmo compartilhava, quando jovem, com

seus contemporâneos do pré-Romantismo. Essa mudança de visão foi influenciada

sobretudo pelos anos do Classicismo de Weimar e pela experiência, nessa cidade,

à frente de uma companhia teatral.

Além de ser autor do célebre romance Werther, Goethe já era um

dramaturgo bem sucedido em 1775 – suas peças Clavigo e Götz de Berlichingen

foram montadas por companhias de teatro importantes na Alemanha –, ao aceitar

o convite do duque Karl August para ir a Weimar. Mais de uma década depois,

quando o duque decidiu criar uma companhia oficial de teatro em sua corte,

Goethe acabara de chegar de sua longa viagem à Itália (1786-1788) e foi nomeado

diretor. Nessa época, o teatro produzido pelo escritor não seguia mais a oposição

pré-romântica aos franceses, como se pode perceber por exemplo na Ifigênia, cuja

versão em versos foi terminada ainda durante a viagem. Anatol Rosenfeld a

considera, “entre as peças alemãs de importância, a que mais se aproxima da arte

de Racine”, em função de “seu decoro, sua bienséance, a estilização requintada e

a rigorosa observação das unidades clássicas de ação, tempo e lugar, a

interiorização radical da ação confiada quase totalmente à palavra”.108 A partir de

1794, o rico debate com Schiller na correspondência entre os dois escritores revela

sua orientação clássica, com o estudo dos autores antigos e a definição rigorosa

108 Ver ROSENFELD, Anatol. O teatro moderno. São Paulo, Editora Perspectiva. Coleção Debates, 1977, p. 14.

124

dos gêneros literários, o que se reflete também na elaboração e na montagem das

peças em Weimar. Um momento marcante desse intercâmbio foi a primeira

montagem, em outubro de 1798, de O acampamento de Wallenstein, de Schiller,

pela companhia de teatro dirigida por Goethe. Muitas das cartas trocadas nesse

ano e no anterior contêm referências ao trabalho na peça, a primeira de uma

trilogia, acompanhado com interesse pelo interlocutor que, por sua vez, tinha

contado antes com uma intensa participação de Schiller na redação final do

romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.109

As duas primeiras partes do ensaio sobre Shakespeare, de 1813, ainda

foram escritas durante o período em que seu autor se manteve à frente da

companhia de teatro de Weimar, e a terceira data justamente do ano em que ele

abandonou o cargo, 1816. Nessa parte, a idéia central é expressa claramente com a

afirmação: “O nome e o mérito de Shakespeare pertencem à história da poesia;

mas trata-se de uma injustiça contra todos os autores teatrais dos tempos remotos

e tardios pôr o seu mérito na conta da história do teatro”.110 Com isso, começa a se

delinear a perspectiva clássica do autor em sua crítica à dramaturgia do poeta

inglês. Contrariando não só a tendência do Sturm und Drang, mas também a

posição dos poetas românticos, Goethe considera necessário “ponderar as

condições” em que Shakespeare se encaixou e não recomendá-las nem como

virtude nem como modelo. Essa ponderação recorre inicialmente a um

procedimento característico do Classicismo de Weimar: a definição dos gêneros

literários. No caso do ensaio, trata-se da “epopéia”, do “diálogo”, do “drama” e da

“peça teatral”, considerados como formas próximas, que muitas vezes se

confundem na prática. Goethe define:

109 Sobre a montagem de Wallensteins Lager em Weimar, ver cartas em Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller, Frankfurt, Insel Verlag, 1977, p. 679-683 e nota da p. 695. 110 GOETHE, “Shakespeare e o sem fim”, Op. cit., p. 51.

125

A epopéia transmite tradições orais à massa, narradas por um indivíduo. O diálogo é uma fala em sociedade restrita, onde a massa, quando muito, pode ouvir. O drama requer uma fala baseada em feitos, mesmo que seja conduzido apenas pela capacidade imaginativa. A peça teatral requer os três juntos, à medida que ela ocupa o sentido da visão e pode ser acompanhada sob condições determinadas de uma presença local e pessoal.

A distinção entre o drama e a peça teatral serve para apontar que as obras

shakespearianas pertencem ao primeiro gênero, de modo que as exigências teatrais

pareceriam fúteis a seu autor. Como já tinha argumentado na primeira parte do

ensaio, Goethe considera que se trata de uma poesia feita mais para a imaginação

do que para os olhos. Nesse caso, o fato de a ação saltar de localidade em

localidade, deixando para trás uma série de acontecimentos intermediários, em

vez de criar lacunas nas peças, estimularia a capacidade imaginativa do leitor. É

possível entender essa ponderação como uma referência à célebre regra das três

unidades, tão discutida durante o Sturm und Drang, só que Goethe não procura

justificar a desobediência a essa regra com base em Aristóteles, e sim chamar a

atenção para o caráter não teatral da obra em questão. Enquanto os jovens pré-

românticos valorizaram Shakespeare como modelo para o teatro alemão, segundo

a contraposição do gênio, que não precisa seguir as regras tradicionais, aos

clássicos “mecânicos”, aqui Goethe questiona a importância do poeta para a

história do teatro. A análise feita nesse ensaio, muito distante do elogio

incondicional do texto de juventude, é moldada pelos anos em que o escritor tinha

estudado e debatido longamente, sobretudo com Schiller, os parâmetros da poética

antiga e da moderna.

As questões técnicas das montagens teatrais tinham sido um tema

recorrente para Goethe, não só desde a primeira versão do romance protagonizado

por Wilhelm Meister, mas também no exercício da atividade de diretor da

126

companhia de teatro de Weimar. Nesse caso, Schiller foi igualmente o interlocutor

preferencial, tanto como colaborador na elaboração definitiva de Os anos de

aprendizado, quanto na discussão do projeto teatral da companhia, como autor da

trilogia de Wallenstein. Houve também algumas montagens de peças de

Shakespeare em Weimar nesse período, inclusive uma adaptação de Romeu e

Julieta a que Goethe se refere no final de seu ensaio. De acordo com a perspectiva

clássica e técnica elaborada pelo escritor, tanto em debates teóricos gerais quanto

em adaptações específicas, o grande poeta Shakespeare não se encaixaria bem nas

exigências próprias do teatro. Essa crítica segue, em linhas gerais, a perspectiva de

Schiller, que não se opunha radicalmente às regras do Classicismo e, embora

reconhecesse o mérito do poeta inglês, fazia ressalvas a determinados pontos de

suas obras. Assim como seu principal interlocutor, que conta em Poesia ingênua e

sentimental ter se indignado com a interrupções das cenas mais elevadas por

gracejos de um bufão, o autor do ensaio considera que Shakespeare quase destrói

o conteúdo trágico de Romeu e Julieta com as figuras cômicas da ama e de

Mercutio.111

Em todo caso, Goethe procura relativizar sua crítica à dramaturgia

shakespeariana, ao afirmar que, se o modo de proceder do poeta inglês encontra

uma “certa resistência” no palco, é a estreiteza da forma teatral que restringe o seu

gênio. Assim, a apresentação das suas obras nessa forma apenas facilitaria a

imaginação do leitor, como se sugerisse que os acontecimentos imaginados com

tanta riqueza um dia pudessem realmente acontecer diante dos seus olhos. Em

outras palavras, a limitação imposta pelo palco não negaria o grande mérito de

Shakespeare como poeta. Mas a conseqüência dessa crítica dirigida a ele como

111 Ibidem, p. 54.

127

autor de teatro é um questionamento da noção de uma necessária fidelidade ao

autor, nas montagens alemães de suas peças. Dirigindo-se diretamente contra a

posição defendida pelos poetas românticos, a favor da fidelidade, Goethe contesta

o “preconceito”, “introduzido furtivamente na Alemanha”, de que seria preciso

representar Shakespeare palavra por palavra. Por isso, para reforçar a

contraposição às idéias de Tieck e dos irmãos Schlegel, o ensaio termina com um

elogio de Friedrich Schröder (1744-1816), ator e diretor teatral de Hamburgo que

foi responsável por adaptações de diversas obras shakespearianas. Segundo

Goethe, “Schröder ateve-se unicamente ao que era eficaz, jogando fora todo o

resto, inclusive algo de necessário, quando aquilo lhe parecia perturbar o efeito

em sua nação, em seu tempo”. Nesse caso, é possível considerar que foi ele quem

serviu de modelo, em grande medida, para o que Serlo e Wilhelm Meister fazem

com Hamlet na ficção. Ao mencioná-lo, Goethe parece apontar que o debate sobre

a fidelidade, retomado por ele no ensaio, remete às discussões que ele já tinha

elaborado em seu romance.

7.3. Wilhelm Meister

Na Alemanha do final do século XVIII, uma das questões culturais mais

importantes, que começou a ser discutida por Lessing e seus contemporâneos, era

a ausência de um teatro nacional autêntico. O que predominava naquela época, no

meio teatral, era o gosto classicista herdado da França, contudo alguns alemães

menos conservadores começavam a considerar um modelo oposto a ser seguido.

Nesse contexto, a ambição de estabelecer as bases para um teatro nacional se

moldou, no Sturm und Drang, sobretudo pela valorização de Shakespeare contra o

Classicismo. Goethe oferece um panorama dessa questão em seu romance Os

128

anos de aprendizado de Wilhelm Meister, no qual descreve de modo muito

preciso também o entusiasmo e o encantamento produzidos pelo dramaturgo

inglês nos autores de sua geração. A relação do protagonista com o teatro era,

aliás, o tema central da primeira versão da obra, terminada em 1785, ainda no

espírito do pré-Romantismo. Mas a redação final do romance, realizada de 1793 a

1795, no período do Classicismo de Weimar, desenvolve a história da formação

de Wilhelm Meister para além das questões exclusivamente teatrais. A influência

e a colaboração ativa de Schiller contribuíram de modo decisivo para essa

mudança na estrutura da obra.

Para Lukács, em seu ensaio sobre o romance, “Os anos de aprendizado de

Wilhelm Meister de Goethe é o mais significativo produto de transição da

literatura romanesca entre os séculos XVIII e XIX. Exibe traços de ambos os

períodos de evolução do romance, tanto ideológica quanto artisticamente”.112 Em

A teoria do romance, de 1920, o ensaísta já tinha analisado a obra como uma

tentativa de síntese de duas configurações distintas da relação entre o indivíduo e

o mundo.113 No texto específico sobre o livro, de 1936, essa análise é aprofundada

com a intenção de mostrar que a realização dos ideais humanistas da revolução

burguesa ocupa um papel central na versão definitiva, segundo um processo de

formação do indivíduo.

Como romance de formação, Os anos de aprendizado descreve o longo

percurso do protagonista, desde o período juvenil marcado por grandes paixões,

passando pela busca da realização artística no teatro, até o momento de uma

convivência harmônica e produtiva com outros indivíduos livres e bem formados.

Goethe estabeleceria então, por um lado, um vínculo com a literatura anterior,

112 LUKÁCS. “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”. Em: Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo, Editora Ensaio, 1994, p. 593. 113 Ver LUKÁCS. A teoria do romance, São Paulo, 34 letras, 2000, p. 138.

129

iluminista e renascentista, pelos traços utópicos de seu ideal de educar a

humanidade – a concepção de que o desenvolvimento das paixões humanas sob

uma direção adequada leva a uma harmonia da personalidade e da existência

social. Por outro lado, o Wilhelm Meister já apontaria uma contradição insolúvel

entre os ideais juvenis de seu protagonista e a realidade social vigente, nos moldes

do que depois se tornará um dos pontos centrais do Realismo, por exemplo com

Balzac e Stendhal. Ao incorporar os traços do período anterior e anunciar os

movimentos por vir, o romance constituiria a síntese de um momento de transição.

Como cita Lukács, a própria definição do romance moderno, na Estética

de Hegel, contém uma referência ao romance de Goethe, embora diga respeito em

grande medida ao Dom Quixote:

O romanesco é o cavaleiresco que se torna novamente sério, com um conteúdo real. A casualidade da existência exterior transformou-se numa ordem rígida, segura, da sociedade burguesa e do Estado, de tal modo que em lugar dos objetivos quiméricos que o cavaleiro criava para si mesmo surgem agora a polícia, os tribunais, o exército, o governo. Com isso se modifica também o cavaleirismo dos heróis que atuam nos romances modernos. Enquanto indivíduos, contrapõem-se com suas metas subjetivas de amor, honra, ambição, ou com seus ideais de aprimoramento do mundo, a essa ordem subsistente e à prosa da realidade, que lhes obsta por toda a parte o caminho. [...]Pois bem, essas lutas nada mais são no mundo moderno do que os anos de aprendizado, a educação do indivíduo junto à realidade presente, e por isso conservam seu verdadeiro sentido. Pois o fim de tais anos de aprendizado consiste em que o sujeito apare as arestas, conforme-se com seu desejo e sua opinião às situações existentes ou à racionalidade delas, insira-se no encadeamento do mundo e obtenha nele um ponto de vista apropriado.114

Schelling também tinha definido o romance com base em uma referência às

mesmas obras, de Goethe e de Cervantes, a ponto de considerar que em sua época

só existiam dois romances dignos do nome, o Dom Quixote e o Wilhelm

114 Trecho citado em LUKÁCS, . “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”. Op. cit., p. 604.

130

Meister.115 Segundo Lukács, essa observação se justifica pelo fato de se tratar de

duas obras que dizem respeito a momentos de crises de transição, na relação

problemática entre o indivíduo e a sociedade.

No entanto, a repercussão do romance de Goethe também criou uma

grande polêmica, por contrariar abertamente o projeto dos poetas românticos e já

conter traços fundamentais do Realismo. Novalis (Friedrich von Hardenberg,

1772-1801) criticou duramente Os anos de aprendizado, livro que considerava

contrário a toda a poesia, embora valorizasse a apresentação de um processo de

formação do indivíduo. Por isso, Novalis teve a pretensão de superar

poeticamente a obra de Goethe, escrevendo um romance em que a prosa realista

desse lugar gradativamente, no percurso de formação do protagonista, a uma

existência poética. O seu Heinrich von Ofterdingen não foi concluído, mas os

fragmentos escritos são preenchidos por um ambiente onírico, sem contato com a

descrição da realidade. Para Lukács, a contraposição do autor do Wilhelm Meister

ao Romantismo estava ligada exatamente à tendência revelada pelos fragmentos

de Novalis: “Contra essa dissolução da realidade em sonhos, em representações

ou ideais puramente subjetivos, é que se dirige a luta do humanista Goethe”.

Ao comparar a versão definitiva do romance com A missão teatral, Lukács

chama a atenção para o fato de que “a primeira versão ainda está inteiramente

concebida e composta no espírito do jovem Goethe”. Nesse caso, “seu ponto

central [...] é o problema da relação do poeta com o mundo burguês, e “o teatro

significa aqui uma libertação da alma poética da indigente e prosaica estreiteza do

mundo burguês”.116 De modo que o autor pré-romântico, por mais realistas que

fossem suas descrições, não estaria tão distante das reivindicações de Novalis. Já

115 Ver SCHELLING, Filosofia da arte, São Paulo, Edusp, 2001, p. 304. Referência de Lukács em “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”. Op. cit., p. 610. 116 LUKÁCS. “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”. Op. cit, p. 593.

131

na versão publicada em 1796, moldada pelo Classicismo de Weimar, o teatro não

seria mais uma missão, e sim um ponto de transição para a formação humanista da

personalidade e para a adequação ou inadequação ao mundo da sociedade

burguesa. Em uma representação da sociedade como um todo, o autor mostrará

que a realização artística de Wilhelm Meister não o liberta completamente dos

conflitos entre seus ideais e a realidade social. O equilíbrio diante desses conflitos

será encontrado pelo protagonista apenas na associação com outros indivíduos

“formados”. Essa convivência independe da classe social, uma vez que Wilhelm é

de família burguesa, enquanto sua futura esposa Natalie e o irmão Lothario são

nobres. Para Lukács, trata-se da utopia goethiana de uma realização efetiva do

ideal de educação humanista. Mas a fina ironia do autor no tratamento do assunto,

o caráter ambíguo de seus personagens e o grande realismo de sua descrição da

sociedade certamente o afastam da defesa unilateral dessa utopia.

Sendo o teatro apenas um momento do todo, Goethe retirou da versão

definitiva muitos dos acontecimentos descritos na primeira versão, como por

exemplo as questões relativas à montagem de uma peça de autoria de Wilhelm

Meister. Por outro lado, como aponta Lukács, ele não só manteve o tratamento da

“questão shakespeariana”, mas também deu ainda mais importância à montagem

de Hamlet pelo protagonista. O ensaísta explica esse fato da seguinte maneira:

...para Goethe a questão shakespeariana ultrapassa em muito a esfera do teatro. Shakespeare é, para ele, o grande educador para uma humanidade e personalidade totalmente desenvolvidas; seus dramas são modelos de como o desenvolvimento da personalidade atingiu a plenitude nos grandes períodos do humanismo e de como esse desenvolvimento deveria se completar no presente. A representação de Shakespeare nos palcos da época é forçosamente um compromisso. Wilhelm Meister não deixa jamais de sentir o quanto Shakespeare se estende para além dos limites daquele palco. Esforça-se para salvar de algum modo, em tudo que for possível, o que há de mais essencial em Shakespeare. Eis por que, em Os anos de aprendizado, a representação de Hamlet, ponto culminante dos esforços teatrais de Wilhelm Meister, converte-se numa clara configuração do fato de que teatro e drama, e mesmo a arte poética, não

132

são senão um aspecto, uma parte do extenso complexo problemático da educação, do desenvolvimento da personalidade e da humanização.

Na verdade, embora o teatro não seja mais do que um estágio na formação

de Wilhelm Meister, nem contenha a solução dos conflitos entre o indivíduo e a

sociedade, a relação do protagonista com a arte teatral constitui o tema mais

importante dos primeiros cinco livros do romance. Com isso, Goethe retrata

detalhadamente a grande questão cultural da Alemanha de sua época, dando

atenção especial ao modo como Shakespeare se torna o modelo para a

configuração de um teatro nacional autêntico. Os debates dos personagens a

respeito da montagem de Hamlet e, finalmente, a própria montagem da peça no

livro V do romance fazem referência a um acontecimento histórico de grande

importância cultural. Como diz Otto Maria Carpeaux: “A representação de

Hamlet em Hamburgo, em 20 de setembro de 1776, é a maior data na história do

teatro alemão. Em breve será Shakespeare o dramaturgo mais representado em

palcos alemães”.117 Aliás, é importante observar que isso inclui o palco de

Weimar, sob a direção do autor de Os anos de aprendizado.

No capítulo 8 do livro III do romance, Wilhelm Meister se encontra, junto

com sua companhia de teatro, no castelo de um conde, onde os festejos pela

recepção do príncipe incluiriam apresentações de peças. Ficam claramente

indicadas três correntes teatrais marcantes para a época quando o barão, um

conhecedor do teatro alemão que fechara o contrato com o diretor da companhia,

“lamentava, porém, que o príncipe mostrasse uma inclinação exclusiva pelo teatro

francês, enquanto uma parte de sua gente, entre os quais se distinguia

particularmente Jarno, tinha uma predileção pelos monstros da cena inglesa”.118

Sabendo dessa informação, Wilhelm Meister aproveita uma oportunidade para, 117 CARPEAUX, Op. cit., p. 66. 118 GOETHE, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, Op. cit., p. 171.

133

diante do príncipe, louvar Racine e fazer considerações sobre os seus personagens

distintos da corte francesa. Ele elogia o dramaturgo francês: “Quando leio uma de

suas peças, posso sempre idear o poeta vivendo numa corte brilhante, tendo ante

seus olhos um grande rei, relacionando-se com as melhores pessoas e penetrando

nos segredos da humanidade que se ocultam por trás de preciosas tapeçarias”.119

O príncipe não se mostra nem um pouco interessado pelos comentários,

mas Jarno, um nobre misterioso, amigo do príncipe e do conde, pergunta a

Wilhelm: “Então o senhor nunca assistiu [...] a uma peça de Shakespeare?” A

resposta negativa do protagonista revela o preconceito da época, com base no

gosto classicista: “...tudo que ouvi dizer dessas peças não me despertou a

curiosidade de conhecer mais a fundo esses monstros estranhos, que parecem

ultrapassar qualquer verossimilhança, quaisquer conveniências”. Jarno aconselha

então a leitura das obras do poeta inglês e promete emprestar alguns exemplares,

com a recomendação de que “em nada poderá empregar melhor o seu tempo do

que, ao se livrar imediatamente de tudo, ver na solidão do seu velho quarto a

lanterna mágica desse mundo desconhecido”. Ele também aproveita a ocasião

para criticar duramente os clássicos franceses, marcando assim a identificação

com postura dos autores do Sturm und Drang, para quem os personagens de

Racine e Corneille eram participantes de um baile de máscaras, sem a menor

naturalidade (Lenz), ou bonecos sem espíritos e sem vida (Herder). Para Jarno,

dirigindo-se ainda a Wilhelm, “é um pecado que desperdice suas horas tentando

dar adereços humanos a esses macacos e se esforçando para que aprendam a

dançar esses cães”. Como bom teórico do teatro, consciente do gosto classicista

que impedia a apreciação das obras recomendadas, ele ainda acrescenta: “Só uma

119 Ibidem, p. 174.

134

coisa exijo: não se escandalize com a forma; o resto deixo aos cuidados do seu

justo sentimento”.

Com uma frase que lembra muito o tom de seu próprio ensaio de

juventude sobre Shakespeare, Goethe conclui o capítulo contando que Wilhelm

“...recebeu os livros prometidos e em pouco tempo, como se pode presumir,

arrebatou-o a torrente daquele grande gênio, conduzindo-o a um mar sem fim, no

qual rapidamente se esqueceu de tudo e se perdeu”. A observação “como se pode

presumir” parece indicar, em manifestação direta, a posição de total identificação

do próprio autor-narrador em relação ao acontecimento narrado. Em seguida, no

capítulo 9, a reação do protagonista à leitura das peças também contém muito da

reação contada pelo autor no ensaio de 1771. Se a primeira página tinha sido, para

Goethe, uma identificação por toda a vida, que lhe dava a sensação de recuperar a

visão após anos de cegueira, Wilhelm se isola, a partir daquele momento, num dos

quartos mais retirados do castelo onde a companhia tinha se instalado e, sem

tomar conhecimento do que se passa em torno, “vive e se move no universo

shakespeariano”. Seu espírito se agita com mil sentimentos que ele nunca tinha

conhecido, como se lê na comparação do envolvimento provocado pela leitura

com um acontecimento mágico:

Consta que feiticeiros, com o auxílio de suas fórmulas mágicas, atraem para seus aposentos um número colossal de espíritos de toda sorte. Tão poderosas são suas evocações, que em pouco tempo preenche-se todo o espaço do cômodo, e os espíritos, confinados no pequeno círculo traçado, continuam a se multiplicar, movendo-se em metamorfoses e rodopios eternos ao redor de si mesmos e sobre a cabeça do mestre. [...] Desgraçadamente, o nigromante esqueceu a palavra mágica capaz de fazer refluir essa maré de espíritos... Pois assim se encontrava Wilhelm Meister, sentado, e com movimento ignorado agitavam-se nele mil sensações e faculdades, das quais não havia tido nenhuma noção, nenhuma idéia.120

120 Ibidem, p. 178.

135

Aos poucos, em ocasiões diversas, o impacto desse primeiro contato com a

obra de Shakespeare se revela nas considerações e conversas de Wilhelm Meister

sobre o teatro. Quando ele fala aos atores de sua trupe, após a partida do castelo

do conde, recorre constantemente a exemplos tirados das peças do dramaturgo.

No capítulo 3 do livro IV, ele comenta seus estudos cada vez mais aprofundados

do personagem Hamlet, a fim de superar as dificuldades para entender seu

verdadeiro caráter. No final do mesmo livro IV, o protagonista do romance chega

à cidade, onde passará a fazer parte de uma companhia de teatro mais organizada,

dirigida por Serlo. Desde o primeiro encontro, as discussões entre os dois

personagens recaem sobre uma possível montagem de Hamlet, defendida

apaixonadamente por Wilhelm, para quem as peças de seu escritor predileto

haveriam de marcar época na Alemanha.

Goethe soube caracterizar, por meio dos dois personagens antagonistas, as

posições divergentes a respeito de como Shakespeare deveria ser encenado nos

palcos alemães. Serlo parece se basear em grande medida no diretor do teatro de

Hamburgo, Schröder, elogiado em “Shakespeare e o sem fim” pelas adaptações

que fez das peças. Desse modo, apresenta a posição defendida pelo próprio

Goethe maduro, quando era diretor da companhia de Weimar, contra a exigência

de fidelidade dos românticos. O entusiasmo de Wilhelm Meister, por sua vez,

remete à postura arrebatada dos autores pré-românticos e ao primeiro contato do

próprio autor do romance com a obra de Shakespeare. No entanto é o

protagonista, muito mais do que seu interlocutor, quem estuda e analisa a peça,

fazendo diversos comentários sobre a sua estrutura, os seus personagens e as suas

questões principais. Serlo se mostra mais interessado na repercussão que a

montagem teria, ou nas necessidades de adaptação segundo o gosto do público

136

alemão da época. Nos capítulos finais do livro IV e no início do V, as duas

posições são debatidas intensamente, até que aconteça a montagem efetiva de

Hamlet.

Quando o protagonista do romance finalmente convence o diretor da

companhia a fazer a montagem desejada, ele impõe a condição de que fosse um

trabalho inteiramente fiel ao texto integral. Serlo, por sua vez, queria o recém-

chegado como ator, por isso “teve de aceitar, não sem alguma restrição, uma das

condições impostas por Wilhelm para ingressar no teatro. Ele exigia que Hamlet

fosse representada por inteiro e sem cortes, e Serlo só consentia nesse estranho

desejo na medida do possível”.121 Como observa o narrador em seguida, “isso foi

motivo para muitas discussões...”. A partir do momento em que o diretor aceita

fazer a montagem, a questão principal do debate é a adaptação, ou seja, o que

seria possível cortar da peça sem mutilá-la. Apesar de toda a resistência inicial,

Serlo acaba convencendo Wilhelm de que os cortes são possíveis, de modo que o

defensor da fidelidade ao texto passa a ponderar as adaptações necessárias à sua

montagem no palco alemão. Percebe-se, então, que o debate travado no romance

tende para a vitória da posição que seu autor assumirá depois, no segundo ensaio

sobre Shakespeare.

Fazendo referência, mais uma vez, não só ao desenvolvimento real da

recepção do poeta inglês na Alemanha, como também à sua própria experiência,

Goethe comenta ainda que “já há algum tempo Wilhelm vinha-se dedicando a

uma tradução de Hamlet; para tanto, servia-se do engenhoso trabalho de Wieland,

graças ao qual tomara contato pela primeira vez com Shakespeare”.122 Em

seguida, o protagonista justifica a adaptação das peças e os cortes que lhe parecem

121 Ibidem. Livro V, capítulo 4, p. 289 122 Ibidem. Capítulo 5, p. 294.

137

necessários em função do gosto do público alemão, cuja visão de mundo seria

diferente daquela dos ingleses. Mesmo convencido por Serlo a fazer os cortes, ele

não aceita as censuras à estrutura da peça. Por exemplo, ao defender o poeta

contra as críticas ao excesso de ações em lugares distantes e estranhos, ele

argumenta que os acontecimentos exteriores ao reino da Dinamarca, em Hamlet,

têm essa variedade porque os ingleses estão acostumados às viagens marítimas e

aos ataques de corsários, enquanto os alemães se sentiriam distraídos e confusos

ao ver tais ações representadas no teatro. Em geral, os argumentos de Wilhelm

justificam o modelo de Shakespeare para o teatro nacional alemão, enquanto Serlo

parece incomodado pelos desvios das regras, mostrando-se assim como um

partidário do teatro clássico francês.

É notável a riqueza do debate teórico incluído por Goethe em seu romance,

no qual ele não só descreve o impacto de Shakespeare na cultura alemã e elabora

uma análise bastante detalhada do Hamlet, como também expõe as perspectivas

divergentes acerca da maneira como essa obra deveria ser montada. Ambas as

perspectivas são defendidas com grande ardor, na boca dos personagens, de modo

que o argumento em favor da necessidade de adaptação da peça se impõe aos

poucos, contra a resistência de um leitor apaixonado pelo poeta inglês. Nessa

discussão se revela tanto a polêmica do autor com os poetas românticos, elaborada

depois no ensaio terminado em 1816, quanto o percurso do próprio Goethe. Da

primeira leitura à montagem da peça, o leitor do romance pode entender a

evolução do arroubo juvenil do Sturm und Drang até a postura serena e ponderada

do Classicismo de Weimar, na qual a profunda admiração por Shakespeare

continua a existir, mas sem um elogio incondicional. Quanto à relação específica

com o teatro, a defesa exaltada do gênio da natureza dá lugar a uma visão marcada

138

pela experiência à frente de uma companhia, pelo conhecimento das dificuldades

técnicas, do gosto do público e das necessidades impostas pelas diferenças

históricas e nacionais.

139

CAPÍTULO 3

GOETHE E SCHILLER

1. Weimar

O movimento pré-romântico iniciado pelos jovens escritores de Estrasburgo,

como Lenz, Klinger e Voss, entre outros, buscava “um caminho ideológico novo

na Alemanha”, como afirma Walter Benjamin em seu “Artigo enciclopédico”.123

Tal caminho estava ligado à emancipação burguesa, nessa época em que a

burguesia alemã, de formação atrasada, não tinha condições de financiar a

produção cultural sem o auxílio dos nobres das várias cortes em que o país era

dividido. Neste contexto, Goethe, ainda um estudante de direito, surgiu como o

expoente do movimento cultural revolucionário e foi apontado por Herder, um dos

mentores do Sturm und Drang, como um autêntico gênio alemão. Proveniente de

uma família importante da burguesia de Frankfurt, dotado de um talento

extraordinário e orientado pelos grandes teóricos da época, o jovem Goethe

parecia a personalidade emblemática do pré-Romantismo quando suas primeiras

obras foram publicadas.

O Götz von Berlichingen (1772) expressa claramente, segundo a

interpretação de Benjamin, as divisões da burguesia alemã. As cidades e as cortes

representam o racionalismo iluminista sem espírito, enquanto o líder da revolta

dos camponeses, o cavaleiro que dá nome à peça, personifica os princípios do

Sturm und Drang na tenacidade de sua rebeldia. Já o romance Os sofrimentos do

jovem Werther (1774), baseado não só no amor desafortunado de Goethe por

Lotte Buff, a noiva de um amigo, mas também na história verídica de um jovem

123 BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 142-144.

140

apaixonado que se suicidara, revela o tipo do “autor genial”. Para Benjamin,

Goethe faz de seu mundo interior um assunto público e, das questões de sua

época, questões de seu mundo particular de experiências, com uma perfeição

nunca antes alcançada. A burguesia encontrava, nesse romance, a expressão plena

de sua valorização do indivíduo e de sua luta contra as convenções estabelecidas.

“Werther não é apenas aquele que ama sem felicidade, encontrando em sua

comoção caminhos para a natureza não buscados por nenhum outro desde [...]

Rousseau”, segundo a observação de Benjamin, “ele é também o burguês cujo

orgulho se choca dolorosamente contra as barreiras de classe e exige seu

reconhecimento em nome dos direitos humanos.”

Mas Goethe não era, como Herder pretendia, um entusiasta do espírito

alemão. Neste sentido ele se identificava muito mais com Winckelmann, pois

desde jovem era fascinado pela Itália, que seu pai tinha visitado alguns anos antes

de seu nascimento. De fato, a viagem àquele país de 1786 a 1788 comprovaria,

em muitos momentos, a preferência de Goethe pelas belas paisagens ensolaradas,

pelo clima mediterrâneo, ou pela vitalidade cultural e artística de cidades como

Veneza, Roma e Nápoles. Já na narrativa da viagem que fez à Suíça em 1775, dez

anos antes de conhecer a Itália, o escritor tinha descrito sua contemplação

nostálgica do caminho que leva ao território italiano, no qual pareciam se

concentrar os ideais de seu amor pela beleza natural das paisagens, seu interesse

apaixonado pela arte clássica, moldado na escola de Oeser, e suas lembranças de

infância das reproduções que enfeitavam as paredes na casa de sua família.124

Foi justamente na viagem de retorno da Suíça que Goethe conheceu o

príncipe herdeiro e futuro duque de Weimar, Karl August – um encontro que

124 GOETHE. Poesia e verdade. Op. cit., livro XIV.

141

mudaria sua vida. Em novembro de 1775, ele aceitou o convite do nobre para

visitar a corte de Weimar, que acabou se tornando sua morada desde então, por

mais de cinqüenta anos, durante os quais o escritor teve uma participação intensa

na vida política e social da cidade, como alto funcionário do governo, conselheiro

secreto, diretor da companhia de teatro e, durante algum tempo, ministro de

Estado. Em suas próprias palavras, segundo o relato de Eckermann:

Onde se encontrará, numa região tão pequena, tanto de notável? Temos também uma biblioteca escolhida e um teatro que não fica atrás, nas coisas fundamentais, dos melhores das outras cidades alemãs. Insisto portanto: fique conosco, e não só por este inverno, escolha Weimar para residência. Partem de lá os caminhos para todos os extremos do mundo. No verão, viaje e veja a pouco e pouco aquilo que deseja observar. Eu há cinqüenta anos que lá vivo, e em quantos sítios não tenho estado! – mas volto sempre com prazer...125

Em 1832, quando morreu, Goethe foi enterrado em Weimar, onde atualmente se

concentram as principais bibliotecas, museus e instituições de pesquisa ligados a

sua obra e a seu legado.

No mesmo ano de sua chegada à corte, Goethe foi nomeado pelo jovem

duque Karl August como conselheiro de legação, com uma série de incumbências

administrativas e assento no Conselho do Estado. Entre essas incumbências se

incluíam, por exemplo, a inspeção das estradas e a seleção de jovens para o

serviço militar, além da tomada de decisões relativas ao planejamento urbano e à

agricultura. Mas as atividades práticas do escritor não o impediam de trabalhar em

seus escritos, ainda que fosse durante as viagens de inspeção pelo território de

Weimar. Goethe ainda conciliava a produção poética e as incumbências

administrativas com seu grande interesse pelas ciências naturais, que mais tarde o

levaria a escrever tratados de botânica, ótica, mineralogia e meteorologia. De fato,

o escritor dedicava especial atenção, nessa época, às suas coleções de exemplares

125 ECKERMANN. Conversações com Goethe. Lisboa, Vega, sem data, p. 11 (15/09/1823).

142

dos tipos de rocha de cada região visitada, às observações das formas vegetais e

ao acompanhamento das mudanças climáticas.

O próprio Goethe, ao comentar o rumo de seus estudos naturalistas, afirma

que seu interesse por essa esfera das ciências só se desenvolveu ativamente na

época em que foi acolhido pelo círculo weimariano. Enquanto seu período de

formação juvenil nas cidades de Frankfurt, Leipzig e Estrasburgo alimentara seu

interesse pela vida social e sua inclinação para as letras, a vida no campo, com

incursões de caça ou inspeção, voltou sua atenção para a observação da

natureza.126 Os musgos da floresta da Turíngia tinham sido seus primeiros objetos

de estudo, por volta de 1777, sob a influência do doutor Buchholz, farmacêutico

da corte, pesquisa que o levou a ler os tratados de botânica mais recentes e a

acompanhar as descrições científicas com suas próprias observações. Esse

primeiro passo nas ciências naturais influenciou também seu crescente interesse

pelas formações geológicas, pela classificação dos minerais e pelo estudo das

alterações nas condições climáticas. Em 1784, Goethe fez também uma

“descoberta” científica no campo da anatomia, identificando um osso intermaxilar

que esclarecia a constituição morfológica dos ossos do crânio a partir de uma

transformação dos ossos da coluna vertebral. Essa identificação não só foi o

primeiro resultado de suas pesquisas com alguma relevância científica, como

também influenciou a noção de uma transformação no mundo orgânico a partir de

formas simples. Essa noção constitui a base de sua teoria sobre a metamorfose das

plantas, elaborada em vários anos de estudo, de observação com ou sem o auxílio

de microscópio, em visitas a estufas ou durante viagens a regiões de vegetação

diversificada.

126 Ver GOETHE.“História de meus estudos de botânica”, em: La métamorphose des plantes. Paris: Triades, 1975, p. 81-83.

143

Para Walter Benjamin, em sua análise da posição política de Goethe, a

dedicação às ciências naturais, substituindo os temas da sociedade da época

apresentados em sua produção poética, poderia ser encarada como uma espécie de

isolamento dos problemas debatidos nas cidades.127 Nesse caso, também fica

indicado o afastamento do escritor da ideologia do movimento pré-romântico,

num processo do qual a relação com o duque de Weimar e a aceitação do cargo de

conselheiro da corte são os primeiros indícios. Para a decepção de muitos dos seus

contemporâneos, o autor do Götz e do Werther estava abandonando, assim, a

defesa de posições ligadas à revolta burguesa contra as convenções aristocráticas.

De fato, a expulsão de Lenz da corte em 1776, em função das inconveniências de

seu comportamento exagerado, pode ser vista como um momento emblemático de

tal distanciamento do círculo de Estrasburgo. E a inserção definitiva de Goethe na

sociedade, estabelecida formalmente com o título de nobreza recebido em 1782,

pode indicar a conclusão do processo em que o escritor deixava de ser visto como

um expoente da ideologia burguesa. Essa mudança aos poucos começava a se

manifestar também artisticamente, nas obras escritas entre 1776 e 1786, como A

missão teatral de Wilhelm Meister, Stella e Clavigo, além dos vários poemas que

fazem parte de sua extensa produção lírica. Ainda se encontram traços marcantes

do pré-Romantismo nessas obras, mas identifica-se a busca de um estilo mais

sereno, mais preciso, livre dos arroubos e da impulsividade que tinham marcado a

fase pré-romântica da juventude.

Por outro lado, como conselheiro em Weimar, Goethe tinha um contato

mais próximo com o poder político, justamente num período de intensa agitação

das camadas burguesas, cuja ideologia encontrava fortes entraves na situação do

127 Ver BENJAMIN, Walter. “Goethe, artigo enciclopédico”, em: Dos ensayos sobre Goethe. Op. cit., p. 154.

144

país. Assim, apesar de algumas reações desfavoráveis, muitos dos revolucionários

pré-românticos seguiram ou tentaram seguir o mesmo caminho do autor do Götz

von Berlichingen. O melhor exemplo é Herder, que em 1776, contando com a

influência do conselheiro Goethe, assumiu o cargo de Superintendente Geral do

clero luterano em Weimar, onde passou a viver desde então. Essa separação entre

o domínio político-ideológico e o movimento artístico (muito diferente, por

exemplo, do que ocorreria na França revolucionária da década seguinte)

certamente diz respeito à situação da sociedade alemã no final do século XVIII.

Mas, como aponta Benjamin em seu artigo, ela expressa também a posição

política específica de Goethe, que mais tarde seria um crítico da Revolução

Francesa e um entusiasta do projeto político de Napoleão.128

O estabelecimento em Weimar do famoso escritor alemão –

internacionalmente conhecido depois do enorme sucesso do romance Os

sofrimentos do jovem Werther –, que foi acompanhado depois por Herder e por

outros intelectuais importantes (Wieland, o famoso poeta e tradutor de

Shakespeare, também já vivia naquela corte desde 1772), deu à cidade uma

posição de destaque no mapa da produção cultural da Alemanha. Na vizinha Jena,

tanto a presença dos professores universitários Fichte e Schiller, quanto o

nascimento do Romantismo na virada do século, com os irmãos Schlegel,

contribuíram para essa posição de destaque em relação às outras regiões do país.

A importância de Weimar na história literária alemã se consolidaria

definitivamente com a fase clássica da produção de Goethe, a partir de 1786, e a

intensa colaboração de 1794 a 1805 com Schiller, também em sua fase clássica –

128 Ibidem, p. 145-149 e 162.

145

período que foi chamado pelos historiadores da literatura de Classicismo de

Weimar.

2. Viagem à Itália

A estabilidade da situação de Goethe em Weimar não impediu o desenvolvimento

do que Benjamin chama de um “descontentamento patológico com a Alemanha”,

uma certa resistência, “proveniente do mais íntimo de seu ser, contra o clima e a

paisagem, contra a história, a política e o caráter do povo”.129 Nessa tendência se

revela claramente aquilo que já fora apontado na contemplação nostálgica do

caminho para o território italiano, durante a viagem à Suíça: a diferença em

relação ao ideal de Herder, que via em Goethe o grande gênio alemão autêntico, e

a proximidade com Winckelmann, que foi incapaz de voltar de Roma a seu país

natal. A partida para a Itália, em 1786, foi descrita por Goethe como uma espécie

de “fuga”, sem aviso prévio (apenas o duque foi avisado), para viabilizar um

plano alimentado desde criança mas quase inviável naquele momento, porque

suas funções administrativas, seu círculo social e o longo caso amoroso com

Charlotte von Stein o prendiam à corte.

O descontentamento do escritor com a Alemanha e a profunda

identificação com o clima e o ambiente italianos se manifestam, em gradação

crescente, nas descrições feitas em seu relato de viagem, dirigido aos amigos que

deixara em Weimar. No Tirol, ao se aproximar da fronteira com a Itália, Goethe

declara que “subindo adiante, para além de Innsbruck, a beleza é cada vez maior,

e não há como descrevê-la”. No entanto, ele a descreve minuciosamente, seja com

um olhar de pintor de paisagens, destacando o esplendor das montanhas, seja sob

129 Ibidem, p. 149.

146

a ótica de um naturalista, quando desenvolve teorias a respeito da formação

geológica, do clima e da vegetação. Numa dessas descrições pictóricas da

primeira etapa de sua viagem, ainda na região de Brenner, em 8 de setembro de

1786, define-se uma posição “entre o Sul e o Norte”, entre o destino da viagem, a

Itália, e o ponto de partida, a Alemanha, como que para estabelecer uma ligação

íntima e expressiva do ambiente em torno com a própria experiência pessoal do

viajante:

Pouco a pouco, foi escurecendo cada vez mais; os detalhes perdiam-se e as massas foram se fazendo cada vez maiores e mais magníficas; por fim, quando tudo à minha frente já se movia feito uma pintura profunda e misteriosa, tornei a ver, de súbito, lá no alto, os cumes nevados iluminados pela lua; aguardo agora que a manhã venha clarear este precipício de pedra, esta linha divisória entre o Sul e o Norte na qual me encontro fincado.130

Há também, no relato dessa mesma etapa no Tirol, vários exemplos da

importância que o autor dava à observação dos fenômenos naturais, voltada para

diversos ramos da ciência. Em sua longa consideração sobre o clima, ele

desenvolve o que chama de “estranhas teorias” de um “meteorologista

ambulante”, nas quais atribui as alterações atmosféricas a uma atuação velada e

secreta das montanhas, em função da força de atração exercida pela massa

terrestre em suas grandes elevações. Goethe acrescenta “algumas palavras sobre o

reino vegetal”, um de seus temas científicos prediletos ao longo de todo o relato

da viagem, porque essas observações se inseriam no projeto de escrever uma obra

a respeito da origem morfológica das plantas. Com grande interesse, ele comenta

os tipos de plantas que encontra, como um ácer identificado para a filha de um

harpista que conhecera, ou os primeiros lariços, subindo para Brenner, e o

primeiro zimbro, perto de Schönberg. Mais adiante, os novos tipos vegetais

observados em território italiano contribuiriam decisivamente para a teoria sobre a 130 GOETHE. Viagem à Itália 1786-1788. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 20.

147

“planta originária” [Urpflanze], exposta em A metamorfose das plantas (1790),

como registrou o autor em Palermo, no dia 17 de abril de 1787:

As muitas plantas que eu, em geral, só estava acostumado a ver em cubas e vasos, por trás de vidraças a maior parte do ano, encontram-se aqui felizes e viçosas ao ar livre e, cumprindo seu destino em sua plenitude, fazem-se mais compreensíveis a nós. À visão de tantas formas novas e renovadas, voltou-me à mente a velha fantasia de poder, talvez, descobrir aqui, em meio a toda essa variedade, a planta primordial.131

Não só as descobertas botânicas, mas também o tipo de cultivo feito em cada

região ficava registrado, desde aquele dia na primeira etapa da viagem, na

fronteira da Áustria com a Itália, até esse período passado na Sicília vários meses

depois.

No mesmo dia 8 de setembro de 1786, ainda no Tirol, Goethe descreve

também as características dos Alpes calcários, identificando os tipos de rocha de

cada trecho e recolhendo amostras, como faria depois em todas as regiões

percorridas, com especial interesse nas proximidades do Vesúvio. Ele faz

comentários sobre a variação rochosa que encontrou perto de Brenner: “Recostada

em micaxisto de um verde e um cinza escuros e perpassada de quartzo, vi uma

rocha calcária branca e compacta, exibindo a mica em sua degradação e aflorando

em massas enormes”. E, logo adiante: “Mais acima, surgiu uma espécie particular

de gnaisse, ou, antes, um tipo de granito próximo ao gnaisse, como na região de

Elbogen.” Posteriormente o escritor enviaria para Weimar as coleções de rochas

cuidadosamente catalogadas.

Para completar o escopo das observações científicas do escritor, a

aparência e os costumes das pessoas que ele encontra em cada localidade também

são apontados, em registros de caráter antropológico. No decorrer da viagem,

tanto os campos quanto as cidades da Itália suscitariam considerações

131 Ibidem, p. 314.

148

semelhantes, que tratam não só das características físicas, mas também dos

hábitos diversos, analisados em seu contexto, como resultados das condições

naturais e culturais. Em Nápoles, por exemplo, nas anotações de 28 de maio de

1787, Goethe chegaria a desenvolver um pequeno estudo das atividades dos

cidadãos, a fim de mostrar que era descabida a crítica de muitos europeus do

norte, que se queixavam do grande número de desocupados. Mas já no início de

sua estada em território italiano, ao descer de Brenner, o escritor observava uma

“mudança desagradável nas feições e na cor da pele”, especialmente no caso das

mulheres, e atribuía essa mudança à dieta dos habitantes, cuja base é a polenta. As

perguntas sobre o assunto para os moradores da região e a observações das

diferenças dos tipos humanos, de seus traços específicos, serviram de base para

uma comparação entre os costumes do tirolês alemão e do italiano, na qual o autor

associa as características físicas observadas aos hábitos alimentares e às atividades

principais de homens e mulheres em cada localidade.132

Essa postura serena de um observador especialmente dedicado, para o qual

cada nova paisagem revela inúmeras descobertas, não impede o escritor de

manifestar seu entusiasmo com a viagem. Assim, a “fuga” de Weimar para

realizar aquele plano alimentado havia tantos anos ganha o significado de uma

libertação pessoal, embora a intenção manifesta seja sempre a de retornar –

Goethe se dirige em muitas ocasiões aos “amigos” que deixara, comenta as

expectativas de seu retorno e chega a dedicar o relato da segunda etapa em

Nápoles a Herder. Como o relato da Viagem à Itália só foi publicado tardiamente

(a primeira e a segunda parte em 1816, a última em 1829), e as anotações

originais foram elaboradas durante muitos anos para chegar à versão final, deve

132 Ibidem, p. 45-46. Quanto ao relato sobre os habitantes de Nápoles, ver p. 390-397.

149

ter havido um esforço de dar, aos fatos contados, o sentido que eles ganharam na

vida do autor. Assim como nas suas memórias, ou nos trechos autobiográficos

presentes em suas obras de ficção, Goethe procura estabelecer ressonâncias entre

o conteúdo objetivo das ações ou dos acontecimentos e o desenvolvimento de um

aprendizado no campo de suas experiências pessoais. Um dos trechos mais

expressivos é o de 11 de setembro de 1786, quando o autor tinha atravessado a

fronteira e, pela primeira vez, entrado no território italiano:

E agora, ao anoitecer, com o vento suave e as montanhas rodeadas por poucas nuvens, mais fixas do que atravessando o céu, o zumbido agudo das cigarras começando a se fazer ouvir logo após o pôr-do-sol, sentimo-nos afinal em casa no mundo, e não qual estivéssemos escondidos ou no exílio. Desfruto de tudo isso como se tivesse nascido e sido criado aqui, e retornasse agora de uma caça à baleia na Groenlândia. Saúdo até mesmo a poeira desta terra....133

O fato de Goethe sentir-se finalmente “em casa no mundo” é reforçado

pela curiosa inversão entre sua verdadeira condição, como estrangeiro que visita

um local desconhecido, e a sensação exultante em que se expressa o ideal

nostálgico do sul, ligado à experiência pessoal, ao encantamento pela natureza e

ao interesse artístico. É como estudante de pintura, discípulo de Oeser, que o autor

desfruta da bela paisagem; como um autêntico seguidor de Winckelmann, ele

saúda até a poeira da terra italiana. Mas é por uma identificação mais profunda de

seu espírito que um alemão pode dizer, ao realizar o plano alimentado desde

criança de conhecer um país estrangeiro, que a sensação é de não estar mais

“escondido” ou no “exílio”, como se retornasse de uma longa viagem a um

território inóspito para o acolhimento de sua “casa”. Ele indica, com isso, o

sentimento contrário que o acompanhava antes da viagem, e que Benjamin

identificou como o seu “descontentamento patológico” com a Alemanha.

Considerando-se em casa quando chega ao território estrangeiro e, diante desse 133 Ibidem, p. 31.

150

sentimento, referindo-se ao passado em seu próprio país como um “exílio”, o

escritor ressalta não só o seu amor winckelmanniano pela beleza da Itália, mas

também a sua necessidade de tomar distância do ambiente e da cultura alemães. É

como se o itinerário da viagem e o caminho de aprendizado pessoal, ou espiritual,

estivessem em harmonia, aparecendo com a naturalidade de um movimento

preciso, pleno de sentido.

Mas esse caminho do aprendizado de Goethe na Itália só pode ser

entendido em sua plenitude a partir das considerações relativas às cidades

italianas, como Verona, Veneza, Roma e Nápoles. Há uma mudança no foco da

atenção do escritor, quando ele chega, depois de atravessar os Alpes, aos

primeiros centros urbanos percorridos em sua longa jornada. Embora mantenha

seu interesse pelas ciências naturais, especialmente pela botânica, e continue a

fazer comentários sobre as características das pessoas e das regiões, o principal

tema do relato passa a ser a arte (arquitetura, pintura, escultura). O que não muda,

apesar do novo foco da atenção, é a postura do autor em relação à natureza, uma

vez que a capacidade de observação, identificada com a de um pintor, é tão

valorizada quanto nas considerações de teor naturalista.

O pintor de paisagens que se expressa nas descrições dos Alpes dá lugar ao

aprendiz de pintura que, em Veneza, estuda os grandes mestres Ticiano e

Veronese. Depois de ver suas obras que têm cenas venezianas como tema, a

própria cidade parece oferecer a seu observador uma explicação a respeito da

luminosidade dos quadros. Goethe se refere então ao seu “velho dom de ver o

mundo com os olhos do pintor cujos quadros acabei de contemplar”, capacidade

que suscita a noção de que “os olhos se formam em consonância com os objetos

que divisaram desde a infância, e, sendo assim, o pintor veneziano há de ver tudo

151

com maior clareza e limpidez do que os outros homens”. Ele descreve seu

aprendizado, no qual as informações visuais do lugar se revelam como uma base

para a compreensão da arte ali desenvolvida:

Passeando pelas lagunas com o sol a pino, a contemplar os gondoleiros postados nas bordas de suas gôndolas, pairando com leveza em suas roupas coloridas e a remar, vendo-os, pois, desenharem-se no céu azul sobre a superfície clara da água, vi, na realidade, a melhor e mais fresca pintura da escola veneziana. O brilho do sol destacava de maneira ofuscante as cores locais, e as sombras eram tão luminosas que, comparativamente, teriam podido fazer as vezes de luzes. A mesma coisa se podia dizer dos reflexos da água do mar. Tudo isso numa pintura sobrepondo o claro ao claro, de tal modo que, para pôr os pingos nos is, foram necessárias a onda espumante e a luz radiante a iluminá-la.134

Há nessas frases um indício do futuro interesse do autor pela teoria das

cores, com base na relação entre cor, luz e olhar, interesse que o levaria a elaborar

seu estudo Doutrina das cores (1810), uma contestação bastante controversa da

ótica newtoniana. No entanto, a abordagem da questão na Itália ainda não tinha

um caráter científico, mas uma ligação com o aprendizado da pintura e o estudo

das artes plásticas em geral. Em sua descrição de Veneza com olhos de Veronese

e Ticiano, Goethe revela sua relação com a escola de Oeser e Winckelmann,

autores para os quais a interpretação das obras de arte deve ser baseada na

investigação das condições específicas de seu surgimento. Essa filiação seria

ressaltada em Roma, onde o escritor se dedicou especialmente à observação das

obras da Antigüidade clássica.

Em alguns momentos, Goethe se refere de modo direto a Winckelmann,

cujos passos seguia na capital italiana, lendo suas cartas escritas daquela cidade

para amigos alemães. Por exemplo, no dia 13 de dezembro de 1786, ao citar um

trecho do escritor que fala de Roma como “a escola suprema para o mundo todo”,

um lugar que depura e testa o viajante, Goethe considera que o pensamento se

134 Ibidem, p. 102.

152

“aplica bem” ao seu modo de observar as obras de arte e aprender com elas. Ele

conclui: “com certeza, não se tem, se não se está em Roma, a menor idéia de

como se é nela escolado. É preciso renascer, e então as idéias que se tinham antes

serão vistas como sapatinhos de criança”.135 Logo em seguida, no mesmo dia, o

escritor considera aquele ano como o mais importante de sua vida, em função do

aprendizado proporcionado pela viagem à Itália.

Se, por um lado, a viagem levou Goethe a desistir da idéia de ser um

pintor, alimentada até então apesar de seu encaminhamento para a literatura, por

outro lado, tanto sua produção poética quanto sua posição teórica no campo da

estética foram influenciados de modo decisivo por seus aprendizados ligados às

artes plásticas durante a estada na Itália. Para indicar a influência mais direta,

basta lembrar que a versão definitiva da Ifigênia em Táuris foi escrita em Roma,

num período de convívio intenso com o pintor Wilhelm Tischbein (1751-1829) e

de estudos da arquitetura e da escultura na capital italiana, sob a orientação dos

escritos de Winckelmann. Outra referência fundamental que se consolidava era a

da literatura clássica, como se pode perceber pelo plano de uma peça sobre

Nausícaa, elaborado em Palermo, enquanto o escritor relia a Odisséia.136

Evidentemente, nem todas as obras de Goethe da época tinham temas gregos, mas

a influência de seus estudos da literatura pode ser percebida também do ponto de

vista formal, por exemplo, no propósito de fazer de Hermann e Dorothea (1798),

baseado numa história da Alemanha recente, um poema épico nos moldes dos

cantos homéricos.

135 Ibidem, p. 177. Outras referências a Winckelmann se encontram nas páginas 164 e 170. 136 Ibidem, (16 de abril de 1787), p. 313. Convém notar aqui que, em 1799, os estudos de Homero também levariam Goethe à tentativa de escrever uma tragédia sobre a morte de Aquiles, nunca terminada.

153

Ao retornar a Weimar em 1788, depois de uma segunda estada em Roma,

a orientação de Goethe para as artes clássicas definiria o rumo de toda uma fase da

sua produção artística e de suas investigações estéticas, consolidando o seu

distanciamento dos ideais do Sturm und Drang. A defesa da teoria que

fundamenta esse rumo pode ser encontrada nos escritos do autor sobre arte e em

sua correspondência com Schiller entre 1794 e 1805.

3. A teoria da arte de Goethe

3.1. A mímese e o estilo

Pouco após o retorno da Itália, Goethe publicou um ensaio intitulado “Simples

imitação da natureza, maneira, estilo” (1789), no qual ficam evidentes as

mudanças de sua concepção estética. Como no caso de outros autores pré-

românticos, sua teoria fora marcada inicialmente pela noção do gênio, definido

como o que não segue as regras da arte e é capaz de dar expressão à natureza em

sua plenitude. A defesa do impulso natural na criação artística contra o

artificialismo das regras estabelecidas constitui um dos argumentos centrais, por

exemplo, de Para o dia de Shakespeare, quando o dramaturgo inglês é

contraposto aos autores do teatro clássico francês. Já no ensaio escrito depois da

viagem à Itália, o autor elabora uma teoria da arte mais objetiva, na qual o

elemento natural só pode ser expresso, em sua essência, por meio de um

conhecimento profundo do objeto e de um domínio completo dos meios artísticos

de expressão. As regras da arte não são mais contestadas de modo incondicional,

mas definidas em sua relação com as leis naturais.

O ensaio sobre “Simples imitação, maneira, estilo” se baseia em questões

discutidas, ainda em Roma, com Karl Philipp Moritz (1756-1793), autor de

154

“Sobre a imitação artística da beleza”, publicado em 1788. E os dois escritores

foram influenciados, em suas considerações sobre a relação entre arte e natureza,

pela obra de Winckelmann. Inicialmente, Goethe retoma a crítica

winckelmanniana da idéia de que o artista deve imitar diretamente a natureza, ou

seja, a crítica de um caminho de imitação que conduz à mera cópia. E, assim

como nas Reflexões de Winckelmann, a discussão em torno da mímese se insere

numa consideração sobre o aprendizado artístico, visando a apontar o modo como

se alcança um nível mais elevado da arte. O autor considera necessário definir

melhor os três termos aos quais o título de seu ensaio faz referência – a “simples

imitação da natureza”, a “maneira” e o “estilo” –, porque eles eram usados em

sentidos diversos nos textos de sua época. Sua definição tem o objetivo de

caracterizar etapas de desenvolvimento, ou modos de proceder, que vão do grau

mais baixo ao grau mais elevado de criação na arte.

A primeira expressão é definida por meio do exemplo do pintor que se

volta para os objetos naturais e os copia fielmente, procurando obter uma precisão

cada vez maior em sua imitação das formas objetivas. Goethe não condena esse

caminho, apenas o considera limitado. Se o artista for talentoso, ele produzirá

obras vigorosas e ricas, que podem alcançar um alto grau de perfeição e podem

ser bastante agradáveis. No entanto, segundo o autor, considerando as condições

desse tipo de criação, conclui-se facilmente que ela leva apenas um homem

talentoso, mas limitado, a tematizar objetos agradáveis, mas limitados.137 Nesse

caso, há não só uma limitação temática como também uma limitação artística,

quando a criação se restringe a simplesmente imitar a natureza. Quanto à primeira,

os temas precisam ser agradáveis à vista e estar disponíveis ao artista para a

137 Ver “Einfache Nachahmung der Natur, Manier, Stil”, em GOETHE. Vermischte Schriften. Op. cit., p. 252.

155

realização da cópia, o que restringe esse tipo de pintura às naturezas mortas, aos

objetos inanimados ou imóveis. Já a segunda limitação diz respeito à disposição

de espírito do artista que, com maior ou menor talento, dedica-se à tarefa de

copiar fielmente os objetos visíveis. Ele deve ser contido e tranqüilo, ficar

satisfeito com um prazer moderado e se limitar à receptividade. Em outras

palavras, como se revelará na comparação com os outros modos de criação

artística, trata-se de um homem que se contenta em reproduzir o que vê sem

expressar o que sente. Nesse caso, a arte fica limitada exclusivamente a um

conteúdo objetivo, que tem de ser adequado, por sua vez, ao trabalho do artista

que copia com fidelidade as formas dos objetos.

A definição de maneira, termo que caracteriza o segundo modo de criação

artística no ensaio, tem como ponto de partida uma comparação com o

procedimento de simples imitação da natureza. De novo, o autor desenvolve seu

argumento com base no caso concreto da relação que o artista estabelece com os

seus objetos, retomando o exemplo do pintor. Mas, nesse segundo momento,

trata-se de um criador impaciente, que não se contenta “com o desenho letra a

letra do que a natureza lhe diz”. Por isso, ele inventa um método próprio para

expressar aquilo que sente, a sua impressão pessoal diante das coisas, e com isso

dá aos objetos reproduzidos formas distintas de acordo com as exigências da

expressão de seu espírito, rompendo com a exigência de fidelidade. Cada artista

que segue esse procedimento é inteiramente diferente de todos os outros, porque

não se limita à cópia direta da natureza e procura encontrar uma linguagem

própria. Enfatiza-se assim o lado subjetivo da expressão artística.

Evidentemente, não se trata aqui de um questionamento da arte figurativa,

impensável na época de Goethe, mas da identificação de um distanciamento, no

156

qual os fenômenos visíveis são apreendidos de modo mais ponderado ou mais

leve, reproduzidos de modo mais ordenado ou mais superficial, para dar expressão

ao conteúdo subjetivo (os sentimentos do artista). Assim, a maneira se diferencia

da simples imitação da natureza não por deixar de imitar, mas por deixar de ser

simples. Contudo o autor também não pretende censurar por completo esse modo

de imitação “maneirista”, que se afasta da fidelidade à natureza, embora considere

a ênfase no lado subjetivo um outro tipo de limitação da arte. Ao apontar esse

modo de imitação como o mais apropriado para os “objetos que constituem uma

vasta totalidade”, com diversos objetos pequenos subordinados, Goethe na

verdade valoriza um uso bastante restrito da maneira, como que para ressaltar

aquela limitação. Ele dá como exemplo as pinturas de paisagens, em que os

detalhes devem ser sacrificados em nome da expressão geral, mais ampla, e seria

um erro se perder meticulosamente em cada objeto particular.

O estilo é definido como uma síntese dos dois modos de criação anteriores,

nos quais se enfatizavam ou o conteúdo objetivo ou o subjetivo. Trata-se de um

estágio superior, “a mais elevada conquista humana”, que o artista só pode atingir

depois de passar pela etapa da imitação fiel da natureza e pelo esforço de

desenvolver uma linguagem própria que expresse os seus sentimentos. A base

para alcançar esse estágio é a familiaridade com os traços característicos das

coisas, ou seja, o conhecimento do que é essencial na natureza. Goethe defende a

idéia de que o estudo aprofundado das formas naturais permite ao artista ir além

da mera cópia, perceber uma ordem na multiplicidade das coisas e, ao reproduzir

essa ordem, revelar pela arte aquela essência objetiva que ele passa a ver. Nesse

caso, a linguagem própria desenvolvida pelo artista não está a serviço do conteúdo

subjetivo, mas da expressão de uma objetividade que não se prende às aparências.

157

O autor compara o estilo aos dois modos de imitação definidos antes, a fim

de mostrar como o terceiro termo sintetiza o que é valorizado no primeiro e no

segundo:

Se a simples imitação se baseia numa existência tranqüila e amável, se a maneira apreende de coração leve e com talento uma aparência, o estilo se baseia nos fundamentos mais profundos do conhecimento, na essência dos objetos, na medida em que nos é permitido conhecê-la sob a forma de figuras visíveis e tangíveis.138

No que diz respeito à simples imitação, a relação comparativa é pensada a partir

do exemplo do pintor de flores e frutas. É natural que ele conheça e saiba

distinguir as rosas mais belas, para escolher o objeto apropriado ao seu trabalho,

mas essa escolha não pressupõe um conceito universal e preciso a respeito da

beleza da rosa. O artista pode aperfeiçoar sua capacidade de escolha, mantendo à

sua disposição um grande número de flores, reconhecendo as qualidades das cores

e das texturas e identificando o momento mais perfeito da floração. Mas é só

quando se junta ao talento e à capacidade de escolha do objeto o “conhecimento

de um botanista bem informado”, que o pintor pode formar seu estilo. Se ele sabe

reconhecer as influências das diferentes partes da flor sobre o crescimento e a

floração, se ele conhece os efeitos recíprocos das partes, as leis por trás da

aparência, pode representar não apenas o aspecto, mas as características essenciais

da rosa. Caso se distancie da forma particular do objeto imitado, ele o faz para

instruir acerca dos seus traços mais fundamentais, que fornecem um conceito mais

geral do objeto (no exemplo, a beleza da rosa).

Quanto à maneira, o autor a identifica como um “intermediário” entre a

simples imitação e o estilo, no sentido de um rompimento com a exigência de

fidelidade aos aspectos externos dos objetos naturais. Assim como o primeiro

termo, o segundo também pode ser elevado à síntese definida pelo estilo, caso se 138 Ibidem, p. 254.

158

aproxime da imitação fiel e procure exprimir não a aparência, mas os traços

característicos dos objetos por meio de uma percepção pura, ativa, de uma visão

subjetiva própria que, em vez de se afastar dos objetos, baseia-se no conhecimento

de sua essência. Enquanto a maneira em sua manifestação mais elevada se

converte em estilo quando se volta para o conhecimento objetivo, o afastamento

para o campo da subjetividade levaria a um “maneirismo vazio”.

Ao desenvolver uma reflexão sobre a imitação da natureza na arte, Goethe

retoma as questões discutidas por Winckelmann. No entanto, a princípio parece

haver um ponto de divergência, pelo fato de que a “simples imitação da natureza”

aparece como uma etapa necessária no desenvolvimento artístico, enquanto seu

antecessor opunha o “caminho” da cópia, que reconhecia na pintura holandesa de

sua época, ao caminho exemplar seguido pela arte antiga. Essa diferença pode ser

considerada como uma valorização do lado objetivo da arte, o que daria a falsa

impressão de que o autor das Reflexões defende uma criação subjetiva, quando ele

na verdade também critica o “maneirismo” barroco. Nesse sentido, Goethe

realmente procura mostrar que os dois modos de imitação modernos, criticados na

comparação com a arte antiga, têm sua importância e sua justificativa, seja em

campos específicos da pintura, seja como etapas no processo que leva ao nível

mais elevado de criação. Mas, se essa consideração o afasta de Winckelmann na

concepção da arte moderna, ela mantém uma afinidade mais fundamental com o

modelo da arte antiga.

Nas Reflexões, embora haja uma crítica da mera imitação, como cópia da

natureza, a investigação acerca dos artistas gregos também aponta para um

caminho de mímese, cujo ponto de partida é a observação dos corpos humanos

belos. Assim, descreve-se um processo de formação artística que parte da

159

observação e da imitação do belo na natureza, passa pela formulação de conceitos

mais gerais, para chegar ao “belo universal” e às imagens ideais das divindades,

representadas nas esculturas antigas. Goethe define uma relação entre arte e

natureza que se aproxima desse modelo antigo: a simples imitação se eleva ao

estilo por meio do conhecimento do que é essencial; a maneira rompe com o

caminho da cópia, em nome da expressão de conceitos mais universais, e

desenvolve a linguagem própria do artista; o estilo sintetiza as duas vias, dando

expressão plena ao que é essencial na natureza de modo único, segundo uma

linguagem universal e o estudo aprofundado dos objetos.

A visão de conjunto das diferentes configurações, a capacidade de

reproduzir os traços essenciais sem ficar preso às aparências permitem que o

artista revele a essência dos objetos que ele reproduz por meio de uma

composição precisa, significativa. Ao estudar a escultura antiga e defender sua

exemplaridade, Winckelmann definira a essência revelada pela arte como o “belo

universal”, que ganhava expressão com base no processo de observar e imitar o

belo nos corpos particulares (objetos da escultura). Embora dê exemplos da

pintura moderna, o ensaio de Goethe remete indiretamente a esse processo

identificado na arte antiga, em termos da relação entre arte e natureza, ou melhor,

da defesa de uma imitação que abandona a exigência de fidelidade para conquistar

uma expressão mais elevada. Posteriormente, o autor apontará obras de arte

gregas (o Laocoonte é o melhor exemplo) como modelos perfeitos de criações

realizadas com estilo, ressaltando o vínculo com o Classicismo de seu precursor.

Mas, com essa referência, não só se elabora uma reflexão renovada sobre a arte

moderna, como também se valoriza a noção inteiramente nova da arte como

conhecimento.

160

3.2. O projeto classicista

A revista Propileus, fundada em 1798 e dirigida por Goethe, Schiller e Meyer,

tinha o objetivo de apresentar as concepções estéticas do grupo de Weimar,

ligadas a uma defesa do modelo clássico. Lançada justamente no mesmo período

em que nascia, na vizinha Jena, o movimento romântico, a revista não teve uma

boa repercussão, por isso foi cancelada em 1800 após a publicação de apenas seis

números. Na “Introdução” incluída no primeiro número de Propileus, o sentido do

título é explicado com a seqüência de sinônimos: “o portal, a entrada, o vestíbulo,

o espaço situado entre o interior e o exterior, a meio caminho entre o mundo

sagrado e a realidade comum”.139 Evocando também “as construções que levavam

ao santuário de Atenas, ao templo de Minerva”, o termo escolhido indica que esse

“mundo sagrado” ao qual o leitor terá acesso é o mundo do “povo que possuía por

natureza a perfeição”, no seio do qual a cultura se desenvolveu “segundo uma bela

e contínua evolução”. Como tinha ensinado Winckelmann três décadas antes, o

modelo dos gregos antigos era assumido como tema de reflexão, visando à

formação dos artistas alemães modernos e ao conhecimento teórico da arte em

geral.

O helenismo constitui, assim, um traço fundamental do projeto clássico

formulado pelos escritores de Weimar, que pretendiam divulgar na revista os

resultados de seus estudos, como uma proposta voltada para o aprendizado e a

crítica. Anunciando claramente o projeto classicista, Goethe, o autor da

introdução, pergunta “qual a nação moderna que não deve aos gregos sua cultura

artística?” e, em seguida “onde está aquela que a deve mais do que a nação alemã,

139 GOETHE. “Introduction aux Propylées”. Em: Écrits sur l’art. Op. cit., p. 149. Citado a partir da tradução francesa, p. 143.

161

ao menos em certos domínios?”. Fica evidente, por trás dessas perguntas, o

“lema” winckelmanniano: “É preciso imitar os gregos para nos tornarmos

inimitáveis”, dirigido aos artistas da Alemanha. Ainda mais quando o autor da

introdução ressalta, com ponto de exclamação, o objetivo de se afastar o menos

possível da “terra clássica”, um propósito a ser recordado sempre pelo próprio

título da revista.

Nessa introdução, Goethe não só explicita como também justifica o caráter

coletivo do projeto classicista. Ele fala em nome do grupo de Weimar:

“Esperamos despertar o seu interesse por nossa revista, que conterá observações

sobre a natureza e a arte, expostas por um grupo de amigos unidos de maneira

harmoniosa”. É justamente essa “harmonia” existente entre os autores que

evidencia o fato de não se tratar de uma experiência isolada, mas de um projeto

em conjunto, baseado no “interesse comum de uma contínua formação espiritual”.

O autor defende a vantagem dessa formação conjunta, como a posse de princípios

que uma longa experiência consolidou, e que por isso não podem ser

enfraquecidos pela dúvida e pela inquietude de uma experiência isolada, no

confronto com opiniões contrárias. Reunindo ensaios do grupo que compartilha

dos mesmos princípios, a intenção mais direta da revista era apresentar a troca de

idéias entre “amigos que procuram adquirir uma formação nos domínios da arte e

da ciência”, tendo em vista a divulgação mais ampla dessa troca, a abertura do

diálogo para o público.

Na base dessa intenção de divulgar as idéias do grupo de Weimar, há duas

questões a ressaltar: a defesa de uma reflexão dialógica e a integração entre arte e

ciência. Quanto à primeira questão, a justificativa de uma reflexão conjunta, em

diálogo com outros escritores, pode ser vista como uma característica da teoria

162

goethiana e uma faceta de sua crítica da subjetividade e do individualismo

dominantes em sua época. O teórico da literatura Tzvetan Todorov chama a

atenção para esse aspecto, indicando que se trata de uma lição apresentada no

romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1796), cujo protagonista

segue um longo caminho de formação e encontra, na convivência e no diálogo

com outros indivíduos “formados”, uma via para superar o seu isolamento e o

caráter fragmentário de seu pensamento. Tal lição é formulada por Todorov nos

seguintes termos: “apenas a humanidade pode ser plena, inteligente, perfeita; o

homem isolado está condenado à incompletude”. Para expor a concepção de

Goethe a esse respeito, ele cita uma afirmação feita em carta a Schiller: “Se a

natureza é insondável, é porque um homem singular é incapaz de abarcá-la por

inteiro sozinho, mas a humanidade considerada como um todo é perfeitamente

capaz”.140

A relação entre a arte e a ciência também constitui, para Todorov, um

aspecto marcante da teoria da arte de Goethe. A princípio, a dedicação do escritor

às investigações científicas pode parecer contrastante, ou no mínimo inteiramente

distinta de sua atividade poética. Tradicionalmente, ciência e arte não se associam,

seja porque se relega esta ao campo subjetivo, como expressão dos sentimentos,

enquanto aquela expressa verdades objetivas, seja pela oposição de forma e

conteúdo, de aparência e essência, que se consagrou na teoria do conhecimento.

Nesse caso, é de se estranhar não só a capacidade de conjugar as duas ocupações

por longos períodos, sem que uma delas provoque a interrupção da outra, como

também a grande importância que um poeta e escritor consagrado dava a seus

140 TODOROV. “Goethe sur l’art”. Em: GOETHE. Écrits sur l’art. Op. cit., p. 54. A carta citada é de 21/02/1798.

163

estudos científicos, a ponto de considerá-los às vezes mais relevantes do que suas

obras literárias.

Seria possível questionar os propósitos e os méritos de Goethe no campo

da ciência, com base no desenvolvimento dos diversos ramos científicos que ele

estudou, uma vez que eles seguiram um rumo divergente de suas propostas,

marcado pela crescente especialização das ciências. Com isso, talvez se pudesse

mostrar uma interferência de sua concepção poética na pesquisa naturalista, como

algo que talvez o tenha impedido de ser um cientista nos moldes convencionais.

Mas há também um outro caminho para explicar a conjugação de arte e ciência, a

partir não das teorias científicas do autor, mas de sua concepção teórica da arte. É

como um defensor do conhecimento objetivo e um crítico do subjetivismo na

filosofia e na poesia que ele reflete sobre a criação artística, o que indica, no lugar

de uma ruptura entre poesia e ciência, uma afinidade mais profunda que é

identificada tanto no processo de criação artística quanto em seu aprendizado no

campo da arte a que se dedica. No entanto, essa afinidade não pode ser confundida

com uma semelhança da arte com a natureza, caso contrário ela cairia na simples

imitação, apontada pelo autor como uma etapa inicial no caminho que leva ao

nível mais elevado do estilo. Em outras palavras, a afinidade com o conhecimento

científico da natureza não pode negar a autonomia da arte, no sentido de uma

subordinação das suas regras às leis naturais exteriores a ela.

Assim, quando analisa uma obra de arte, como por exemplo no texto sobre

o Laocoonte, publicado também no primeiro número da revista Propileus, Goethe

faz uma referência à natureza em três níveis. A simples imitação do aspecto

externo aparece como uma primeira relação que, sob uma ótica crítica, precisa ser

aprofundada; no segundo nível, trata-se da importância do conhecimento

164

“científico” do objeto natural (no caso, o conhecimento anatômico do corpo

humano), a partir da observação e do estudo, para a criação artística; no terceiro, o

que se descreve é a composição da obra de arte como um todo “orgânico”, ou seja,

um conjunto no qual as partes se integram de modo harmonioso, assim como nos

organismos naturais. O conhecimento objetivo aparece como uma condição para

que o artista supere o nível da simples imitação, sem abandonar a objetividade, a

fim de produzir uma obra que não só ressalta os traços essenciais do objeto

imitado, produzindo um conhecimento a seu respeito, como também é composta

organicamente, da mesma maneira que os seres naturais.

Embora não haja uma referência direta neste sentido, a constatação de uma

afinidade “orgânica” no terceiro nível da relação da arte com a natureza pode

remeter a uma comparação clássica, feita por Aristóteles em pelo menos duas

passagens da Poética, cuja leitura é mencionada por Goethe diversas vezes. Uma

das passagens do filósofo diz respeito à definição do belo, no contexto de uma

justificativa de que a tragédia deve constituir um todo e ter uma extensão

determinada: “o belo, ser vivente ou o que quer que se componha de partes, não

só deve ter essas partes ordenadas, mas também uma grandeza [...]. Porque o belo

consiste na grandeza e na ordem...”. A segunda passagem retoma o mesmo

argumento, ao tratar da imitação narrativa e em verso: “una e completa, qual

organismo vivente”.141 Para Goethe, que aprofunda essa comparação e lhe dá um

sentido novo ao estabelecer uma relação com o conhecimento científico, a beleza

de uma obra de arte perfeita, como o Laocoonte, está ligada à sua composição

orgânica, na qual as diversas partes se encontram em harmonia segundo o

ordenamento que o artista lhes dá.

141 ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo, Ars Poetica, 1992, § 44 (1450 b), p.47 e § 147 (1459 a), p. 121.

165

A tripla referência à natureza pode ser esclarecida a partir da teoria do

estilo, caso se considere que o conhecimento objetivo aparece como um ponto de

partida para a atividade criadora e que, ao aprofundar sua concepção inicialmente

restrita à aparência exterior, entendendo o processo de criação que resulta no

objeto a ser imitado, o artista pode revelar algo de mais essencial, algo que não se

manifesta no aspecto visível. Mas essa expressão depende também de um domínio

da linguagem própria da arte, ou seja, depende da capacidade de criar um todo

orgânico e harmonioso com os recursos à disposição em cada domínio específico

da criação artística. Nos termos da teoria do estilo: a simples imitação, fiel ao

aspecto visível dos objetos naturais, só pode expressar com maior ou menor

perfeição a beleza natural desses objetos; a maneira, desenvolvendo uma

linguagem própria, revela o sentimento sem dar a conhecer o lado objetivo;

apenas o estilo sintetiza objetividade e subjetividade, constituindo a formulação

única, na linguagem artística, de um conhecimento da essência do objeto. A obra

de arte possui, assim, uma beleza própria, que é definida como um todo unificado

e harmonizado pelo ordenamento das partes, possuindo assim uma afinidade com

o belo natural. Mas essa beleza é obtida por meio de uma composição artística que

não reproduz fielmente o objeto imitado, justamente para expressar a sua essência

de modo pleno, com uma perfeição ideal. Assim, a afinidade só aparece quando se

abandona o nível da semelhança.

Na “Introdução aos Propileus”, Goethe retoma os argumentos de seu texto

“Simples imitação da natureza, maneira, estilo”, ao descrever a relação que o

escultor deve ter com a figura humana, objeto que não pode ser totalmente

compreendido apenas pela observação de seu exterior. Nesse contexto, o autor

afirma:

166

Se quisermos contemplar e imitar a bela totalidade unificada que se apresenta diante dos nossos olhos em ondulações vivas, é preciso desvelar o seu interior, distinguir suas diferentes partes, tomar nota das ligações entre elas e conhecer suas diferenças, é preciso se instruir acerca dos efeitos e reações, impregnar-se do que se esconde e constitui o fundamento da aparição exterior.142

O objeto não se oferece ao artista como mera aparência exterior, mas como

uma “bela totalidade unificada”, um todo orgânico que precisa ser estudado e

conhecido a partir da relação e das diferenças entre suas partes. Sem tal

conhecimento, a arte se restringe ao nível da simples imitação da natureza,

portanto a uma visão limitada ao aspecto exterior, na qual não se revela nada de

essencial. Neste sentido, a afirmação do autor de que “vemos somente o que

conhecemos” define a atividade do artista, que precisa conhecer o objeto para ver

o que constitui sua essência, ou seja, para realmente vê-lo, porque a perfeição da

contemplação se baseia no conhecimento. A compreensão do objeto como um

todo orgânico possibilita que o artista, em vez de simplesmente imitar, componha

uma obra igualmente orgânica, concebida como um todo cujas partes se

encontram em harmonia. É exatamente assim que Goethe descreverá e analisará o

Laocoonte, no ensaio incluído na revista, após a introdução na qual ele conclui:

“Um artista que conhece a história natural desvenda os objetos com perfeição

porque é capaz de reconhecer e enfatizar os elementos importantes e significativos

que dão ao todo seu caráter”.

Em vez de tratar especificamente do corpo humano, o autor se refere à

história natural, já que sua conclusão não se restringe ao caso específico da

escultura, embora esse domínio artístico seja tomado como exemplo para a

reflexão. A descrição do processo de criação da escultura pode ser considerada,

em linhas gerais, como uma apropriação da teoria de Winckelmann. Assim como

142 GOETHE. “Introduction aux Propylées”. Op. cit., p. 149.

167

seu precursor, Goethe fala de uma visão de conjunto, que constitui a condição

para se elevar às idéias e apreender o parentesco entre os objetos aparentemente

desvinculados. A “anatomia comparada prepara o terreno para um conceito geral

das naturezas orgânicas”. Nas Reflexões, o mesmo raciocínio está ligado a outros

termos, pois se refere exclusivamente aos artistas gregos, que partiam da

observação e da comparação das partes do corpo humano para formar conceitos

gerais da beleza, com base num modelo de natureza espiritual, numa idéia de

perfeição. Assim, na Introdução aos Propileus, há uma apropriação e um

deslocamento da reflexão de Winckelamann. Nesse deslocamento, por um lado

não se trata dos artistas gregos, mas daqueles artistas de qualquer época que

chegam ao nível do estilo; por outro lado, o conceito geral da beleza se refere ao

caráter orgânico das obras, talvez retomando uma comparação aristotélica, e se

baseia no conhecimento objetivo da natureza.

A “anatomia comparada”, denominação mais científica da comparação

entre os corpos observados, preconizada nas Reflexões, também conduz de uma

forma a outra, para que a contemplação de naturezas mais ou menos aparentadas

possibilite uma elevação acima de todas as formas, “a fim de ver suas

características numa imagem ideal”. O processo de elevação a partir da

observação das formas particulares até a formulação do ideal é idêntico ao

descrito por Winckelmann, mas a versão de Goethe parece mudar o foco da

discussão. Em vez de descrever esse processo no contexto da imitação da natureza

por parte dos gregos, ele o propõe como parâmetro para os artistas de seu tempo,

falando na primeira pessoa do plural. Nesse caso, a retomada do autor das

Reflexões não visa a corrigi-lo, mas a defender a exemplaridade da relação entre

natureza e arte descrita naquele contexto da Antigüidade. Para usar os próprios

168

termos do precursor do projeto anunciado na “Introdução aos Propileus”, o foco

muda da “imitação da natureza” para a “imitação dos antigos”, como uma

aplicação direta do projeto clássico winckelmanniano.

Ainda na primeira pessoa do plural, que pode caracterizar tanto o grupo de

Weimar, especificamente, quanto os artistas modernos em geral, o autor da

introdução afirma que só podemos “rivalizar com a natureza” em nossas

atividades artísticas caso saibamos apreender o modo como ela produz suas obras.

Assim, ele recomenda por exemplo o estudo da mineralogia, tanto para o pintor e

para o escultor, quanto para o arquiteto. Ampliando o conselho, o que se propõe é

ter um conhecimento aprofundado da natureza, especialmente dos objetos que

serão imitados, para então ser capaz de “desvendar” tais objetos e enfatizar seus

traços essenciais. Essa proposta pode ser lida quase como uma descrição e uma

justificativa da formação do próprio Goethe, que procura explicitar sua concepção

da afinidade existente entre a atividade artística e a científica. Mas, no contexto da

teoria da arte, essa justificativa implica acima de tudo uma reflexão sobre a

mímese, ou seja, sobre a relação entre arte e natureza, tanto no nível da

semelhança quanto no nível da afinidade baseada na noção de orgânico.

A comparação entre a arte e a natureza é muito significativa, porque

ressalta a questão da relação entre o belo artístico e o belo natural, um problema

decisivo na estética do século XIX, como indicaria Hegel, na Estética, para

contestar a concepção tradicional de uma superioridade do belo na natureza (que

tinha marcado, por exemplo, as concepções estéticas de Kant).143 Quanto a essa

questão estética específica, Winckelmann pode ser considerado como um dos

primeiros defensores da superioridade do belo artístico, quando fala de uma

143 Ver HEGEL. “Relações entre o belo artístico e o belo natural”, em : Estética. Op. cit., p. 85, 86.

169

perfeição ideal obtida nas esculturas gregas das divindades e impossível de

encontrar na natureza. Goethe segue essa indicação, embora não aborde o

problema diretamente, revelando uma posição diferente da de seu precursor ao

tratar de uma rivalidade da criação artística com a natureza. Ele procura ressaltar a

autonomia da arte, que precisa deixar de ser fiel (simples imitação) aos objetos

visíveis, e identifica ao mesmo tempo uma afinidade de outro nível, com base no

conhecimento da totalidade orgânica. A obra de arte vai além da forma natural

bela, para ter uma beleza mais essencial que só pode ser aprendida pelo

conhecimento dos processos naturais de formação. Assim, o que ele defende é o

equilíbrio entre o belo natural e o artístico, nesse nível mais profundo.

O ideal clássico de Goethe, que fala em nome do grupo de Weimar no qual

se incluem também Schiller e Meyer, baseia-se sobretudo nas idéias de

Winckelmann. Mas as considerações feitas na “Introdução aos Propileus” se

afastam das que foram formulada nas Reflexões sobre a imitação das obras

gregas na pintura e na escultura principalmente pela valorização do

conhecimento científico da natureza, no lugar de uma tematização do belo na

Antigüidade. Se, no livro de 1755, a beleza exemplar da arte antiga era definida

segundo o duplo caráter de “nobre simplicidade e calma grandeza” dos gregos, na

introdução da revista de 1798 a arte mais elevada é considerada como

conhecimento, como síntese da autonomia e da objetividade, de modo que a

questão da beleza fica submetida à noção “científica” do organismo. É o que

Todorov denomina uma “estética orgânica” em sua introdução aos Escritos sobre

a arte.144

144 Ver TODOROV. “Goethe sur l’art”. GOETHE. Écrits sur l’art. Op.cit., p. 38.

170

3.3. Antigos e modernos

Na “Introdução aos Propileus”, a relação entre arte e natureza é abordada a partir

de duas perspectivas distintas. Na primeira, trata-se propriamente da imitação da

natureza, no sentido de uma reivindicação do conhecimento objetivo mesmo

quando se abandona o nível da simples imitação. Já a segunda perspectiva diz

respeito à questão da autonomia e da superioridade da arte em relação ao aspecto

externo do objeto imitado, quando o artista ressalta o que esse objeto tem de

significativo e “instila” nele o seu valor mais elevado. Assim, a obra de arte pode

ter proporções mais harmoniosas e formas mais nobres do que as do corpo

humano, pode ter uma regularidade, um caráter significativo, uma perfeição que o

objeto natural não tem, características que dão à arte uma beleza superior, na qual

se descobre por fim uma afinidade mais profunda com o mundo orgânico. Essa

possibilidade que o artista tem de ir além da forma natural está ligada tanto à

escolha das matérias apropriadas, fornecidas pela natureza, quanto ao tratamento

dado a essas matérias. O autor da introdução divide em três partes a elaboração

artística do objeto: o tratamento espiritual, o tratamento sensível e o tratamento

mecânico. O primeiro tipo diz respeito à elaboração do objeto em sua coerência

interna, descobrindo seus elementos subordinados; o segundo tipo está ligado à

apresentação da obra aos sentidos, como algo que agrada e chama a atenção; o

terceiro, o tratamento mecânico, refere-se ao material utilizado, que deve ser

trabalhado pelo artista segundo suas intenções.

Mas a relação entre arte e natureza, ou seja, a questão da mímese, não

constitui o único tema elaborado na introdução de Goethe para a revista que

deveria apresentar o projeto do Classicismo de Weimar. Um outro problema

discutido no texto é a relação entre antigos e modernos, numa retomada da crítica

171

às tendências artísticas contemporâneas em nome de um modelo superior,

procedimento que caracterizava o Classicismo desde Winckelmann. A defesa do

modelo dos gregos (chamados, na “Introdução aos Propileus”, de “povo que

possuía por natureza a perfeição”) esteve sempre ligada a uma identificação da

decadência da arte moderna e da necessidade de seguir um outro caminho, melhor

e mais verdadeiro. Goethe retomaria a mesma questão vários anos depois, em “O

antigo e o moderno” (1818), ensaio publicado em Sobre arte e Antigüidade, um

novo veículo de divulgação do projeto classicista de Weimar. Ao contrário do que

o título desse pequeno ensaio sugere, seu tema não é propriamente uma

comparação sobre épocas históricas, mas uma reflexão sobre as condições

favoráveis ou desfavoráveis para a criação artística. Assim, é retomada a questão

do condicionamento histórico, da vinculação da arte à sua época e à sua

nacionalidade – que pode ser considerada uma herança de Herder –, no entanto

essa retomada se volta para uma consideração sobre a formação artística e sobre o

domínio particular da vida dos grandes artistas.

O ensaio tem um caráter dialógico, já que o autor toma como ponto de

partida duas afirmações escritas por Karl Ernst Schubart (1796-1861) a seu

respeito, uma delas discordando da posição dos “admiradores dos antigos”, entre

os quais o próprio Goethe é incluído, outra que o compara a Shakespeare, dando

preferência ao escritor inglês. A intenção anunciada no início do texto é esclarecer

o seu elogio aos antigos, mostrando-o não como uma oposição aos modernos, mas

como uma via de conciliação. Em sua resposta ao “jovem amigo”, Goethe faz uma

reflexão autoral, tanto no sentido dessa referência à sua própria obra, quanto no

sentido de valorizar a situação pessoal dos artistas como uma condição para a

criação. Ao comparar as duas afirmações citadas, a que se opõe aos admiradores

172

dos antigos e a que prefere Shakespeare, ele procura solucionar a divergência em

relação à postura classicista da primeira com base na comparação de seu talento

com o do poeta que influenciou sua produção na época do pré-Romantismo. A

solução é entender a comparação entre as épocas com base na comparação entre

os poetas : “...é precisamente nesse ponto em que ele identifica minha

desvantagem em relação a Shakespeare que nós temos uma desvantagem em

relação aos antigos”.145

O ponto em questão é o elogio do talento “inconsciente de si mesmo”,

identificado no dramaturgo inglês, capaz de revelar com naturalidade a verdade e

os erros humanos “sem recorrer ao raciocínio, à reflexão, às sutilezas, à

classificação”, enquanto o escritor alemão teria a mesma intenção, mas sempre

lutando com a tendência oposta. Trata-se, portanto, de um elogio do gênio e de

uma crítica da interferência da reflexão abstrata na criação artística. Noções com

as quais o próprio Goethe concorda inteiramente. Sua justificativa da

desvantagem que ele mesmo tem diz respeito à contradição entre o

desenvolvimento do artista e sua época, cujas circunstâncias não lhe são

favoráveis e impõem diversos obstáculos, levam a diversos erros. Haveria épocas,

como a de Shakespeare (retomando assim um argumento do texto de Herder do

período pré-romântico), que permitem ao artista se formar com facilidade e criar

sem resistências e obstáculos.

No entanto, apesar de sua referência à questão histórica e à diferença entre

antigos e modernos, o autor está mais interessado em pensar as condições

particulares e pessoais que influenciam a criação artística em qualquer época. Ele

explicita essa intenção:

145 GOETHE. “Antik und modern”, em: Vermischte Schriften. Op. cit, p. 313. Ver também Écrits sur l’art. Op.cit., p. 268.

173

Abandonemos então o antigo e o moderno, o passado e o presente e digamos de uma maneira geral: toda produção artística nos transpõe a uma disposição que era a do autor. Se ela era serena e leve, nós nos sentiremos livres, se era pesada, difícil e cheia de apreensões, nos oprimirá igualmente.

Trata-se aqui, não da matéria ou do conteúdo, mas do tratamento artístico,

do desenvolvimento próprio de cada artista em sua relação com as circunstâncias

em torno dele. Essa questão é esclarecida por meio de uma comparação exemplar

entre os grandes artistas do Renascimento: Rafael, Michelangelo e Leonardo da

Vinci. O primeiro desenvolveu seu gênio no contato com os outros dois, que por

sua vez não tinham chegado realmente, “durante suas longas vidas, a alcançar a

verdadeira satisfação da atividade artística, apesar do desenvolvimento supremo

de seus talentos”. Segundo Goethe, Leonardo da Vinci ficava extenuado pela

reflexão e sofria diante das dificuldades técnicas, enquanto Michelangelo se

torturava durante seus melhores anos em busca dos blocos de mármore, em vez de

trabalhar para nos deixar um número muito maior de obras-primas. Em

contrapartida, Rafael tinha condições favoráveis para o desenvolvimento de sua

arte, por isso a exerceu durante a vida toda com facilidade, alcançando um

equilíbrio entre sua atividade e sua situação de vida.

O exemplo de Rafael é um exemplo do Classicismo, em seu sentido mais

pleno, como o autor define claramente:

Ele nunca imita a maneira dos gregos e, no entanto, ele sente, pensa e age como um grego. Estamos em presença do talento mais maravilhoso, e ele se desenvolveu numa época que foi tão favorável à arte quanto, em condições e circunstâncias aparentadas, a Grécia de Péricles.146

Assim, o que Goethe pretende definir em seu ensaio de 1818 é o equilíbrio entre

natureza e arte, entre as condições históricas ou pessoais e o desenvolvimento do

artista talentoso. Em tal consideração, a Grécia clássica aparece, assim como a

146 Ibidem, p. 315.

174

Itália renascentista, como uma condição especialmente favorável para a formação

e a criação artísticas, que possibilita o desenvolvimento dos maiores gênios. A

arte desses períodos possui, sob tais condições, uma clareza na maneira de ver,

uma serenidade na percepção, uma facilidade de comunicação que se revelam

como ideais para a criação artística de qualquer época. Ao identificar a arte grega

como a fonte original e mais rica desse equilíbrio entre o desenvolvimento

artístico e as condições naturais e históricas, Goethe reforça a noção de sua

exemplaridade. Mas, nessa reflexão autoral, ele chama a atenção para o

desenvolvimento único de cada artista em sua época, definindo o ideal na

exortação que conclui sua argumentação sobre antigos e modernos: “Que cada um

seja um grego à sua maneira! Mas que o seja!”

Comparativamente, a “Introdução aos Propileus” elabora uma reflexão

mais abrangente sobre a questão dos antigos e modernos do que a do texto

posterior, que relativiza a comparação histórica em nome de uma valorização do

caráter autoral. Naquela introdução, o autor identifica um afastamento, por parte

dos artistas modernos, nórdicos, alemães, em relação aos antigos, àqueles que

continuam a ser chamados de mestres. Como o texto está voltado para a formação

artística, o que ele ressalta é a dificuldade que um artista do norte da Europa tem,

em comparação por exemplo com um italiano, de apreciar e compreender as

obras-primas da Antigüidade, por mais que as reconheça como modelos de

perfeição. Assim, o afastamento do modelo em que a arte moderna se espelha

levaria a uma decadência, provocada antes de tudo pela falta de conhecimento e

de estudo, no caso dos artistas alemães em particular. Essa consideração crítica

tem a intenção abrangente de definir em que consiste exatamente a decadência dos

175

modernos, acentuada na Alemanha, a fim de mostrar o que eles precisam aprender

dos antigos.

4. Schiller e a teoria da arte moderna

4.1. A repercussão de Schiller

Com a peça Götz von Berlichingen (1772) e o romance Os sofrimentos do jovem

Werther (1774), Goethe foi o maior expoente do pré-Romantismo em sua primeira

década, mas ele já começava a se afastar dos princípios e ideais pré-românticos

quando Os salteadores, a primeira obra do jovem Schiller, começou a fazer

enorme sucesso na Alemanha. Desde a sua primeira montagem, de 1782, em

Mannheim, a peça foi recebida com entusiasmo tanto pelos estudantes mais

exaltados quanto pelas damas da corte, tanto pelos acadêmicos quanto pelo

público burguês em geral. Desse modo, assim como o autor de Götz von

Berlichingen, o novo dramaturgo que se destacava tornou-se desde jovem um

escritor reconhecido e um marco para o Sturm und Drang, a ponto de ser

considerado pelos críticos da época como um Shakespeare nacional.

Franz e Karl Moor, personagens de Os salteadores, marcaram época, o

primeiro como vilão que é um dos mais analisados personagens do teatro alemão;

o segundo como herói burguês que se rebela contra as condições sociais e acaba

desperdiçando sua grandeza à frente de um bando de salteadores. O caráter

indomável, selvagem, tanto no conteúdo quanto na forma da peça, escrita em

prosa, expressava o espírito do Sturm und Drang e os traços da indignação do

próprio escritor. Filho de um médico militar da cidade de Marbach, no sul da

Alemanha, Friedrich Schiller (1759-1805) sempre enfrentou restrições severas

pelas posições que defendia em seus escritos. A partir dos treze anos, ele tinha

176

freqüentado a escola militar fundada em Stuttgart pelo duque Karl Eugen; aos

vinte e um, quando já era formado em medicina e servia no regimento de

Stuttgart, sua primeira peça foi encenada em Mannheim. Por ter assistido sem

permissão à montagem de Os salteadores, o escritor foi preso por quatorze dias e

proibido pelo duque de trabalhar em qualquer escrito que não tratasse de

medicina.147

Depois da grande repercussão dessa primeira peça, no período tumultuado

pelo abandono de Stuttgart e da profissão de médico militar, Schiller escreveu em

Mannheim mais duas peças em prosa, ainda muito marcadas pelos ideais do pré-

Romantismo: A conspiração de Fiesco em Gênova (1784) e Intriga e amor

(1785). Mas com Dom Carlos (1787), primeira peça que adotou a métrica usada

na fase clássica do dramaturgo, esses ideais foram postos em questão. Nesse

período, o autor começava a se consolidar como um dos nomes mais importantes

da literatura alemã, não só como dramaturgo, mas também como historiador,

ensaísta e poeta lírico. Os estudos iniciados para a preparação de Dom Carlos

resultaram em seus primeiros escritos históricos, nos quais trabalhava ainda em

1787, quando, ao visitar Weimar e Jena, conheceu Herder, Wieland e todo o

círculo influenciado por Goethe. Dois anos depois, Schiller foi nomeado professor

de história e filosofia na universidade de Jena, por indicação do próprio Goethe,

que tinha acabado de voltar da Itália, mas os dois escritores mantiveram uma

distância cheia de reservas por muito tempo. Logo após a mudança para Jena e o

casamento de Schiller com Charlotte von Legenfeld, foi diagnosticada a

tuberculose que, a partir de 1790 até a sua morte em 1805, tornou a saúde do

escritor extremamente delicada. Vários relatos testemunham o enorme esforço de

147 Para maiores informações a respeito, ver: KOOPMANN, Helmut. Friedrich Schiller I (1759-1794). Stuttgart: J. B. Metzlersche Verlagsbuchhandlung, 1966, p.4-19.

177

superação das limitações físicas decorrentes da doença para, abandonando quase

todas as ocupações sociais, dedicar-se com afinco a terminar as muitas obras

escritas nesse período. Em suas considerações biográficas, Butler chega a afirmar

que o escritor provavelmente sabia que seus dias estavam contados, até por ser

formado em medicina, e “vivia exclusivamente” em seus pensamentos, como se

pudesse “pôr os ideais no lugar da realidade”.148

De 1791 a 1796, Schiller praticamente abandonou a produção teatral e se

voltou para teoria estética, os estudos históricos e a filosofia, produzindo seus

escritos teóricos mais importantes. A leitura da Crítica do Juízo, de Kant,

publicada em 1790, influenciou de modo decisivo todo o desenvolvimento de suas

teorias na área de estética, enquanto seu trabalho como historiador orientava-se

para o passado da Alemanha. No começo de 1791, ano em que se dedicou ao

estudo da terceira Crítica, Schiller teve de abandonar suas atividades por algum

tempo em função da grave doença recém-diagnosticada, mas retomou o trabalho

como escritor e professor após uma viagem de tratamento a Karlsbad. Suas aulas

se relacionavam ao trabalho no longo texto “A história da Guerra dos 30 Anos”

(que posteriormente seria a base para a trilogia teatral Wallenstein), e as

conferências filosóficas foram acompanhadas pela publicação de “Acerca da razão

por que nos entretêm assuntos trágicos” (1792), “Acerca da arte trágica” (1792) e

“Sobre graça e dignidade” (1793), entre outros ensaios.149 Cada vez mais, os

temas provenientes do estudo de Kant foram elaborados no contexto de uma

reflexão estética, voltada para o questionamento da autonomia da arte e da sua

relação com o Estado, o indivíduo e a vida moral. Especialmente dois de seus

148 BUTLER, E. M.. The tiranny of Greece over Germany. Cambridge, University Press, 1935, p. 177. 149 Sobre os estudos históricos de Schiller, ver KOOPMANN, Helmut. Op. cit., p.73-86. Sobre os escritos filosóficos, ver p. 95-97.

178

trabalhos tiveram uma repercussão inestimável para a literatura e a filosofia da

arte posteriores, figurando entre as principais obras da estética alemã de sua

época: Cartas sobre a educação estética do homem (1795) e Poesia ingênua e

sentimental (1796).

Depois de publicar esses dois tratados, Schiller voltou a se dedicar à

dramaturgia e produziu aquelas que são consideradas por muitos comentadores as

suas obras-primas, a trilogia Wallenstein (1797-1799), Maria Stuart (1800), A

noiva de Messina (1801) e Guilherme Tell (1802). O desenvolvimento teórico das

reflexões de Schiller sobre a tragédia, nos anos anteriores, fundamentou essa

última fase de sua produção poética, bastante diversa daquela que gerou Os

salteadores. Embora alguns temas centrais permaneçam em questão ao longo de

toda a obra do escritor, percebe-se uma mudança de abordagem desses temas,

como o Estado e a liberdade. Walter Benjamin identifica um deslocamento na

maneira como se apresenta a questão do Estado, uma vez que, nos dramas de

juventude, ele é considerado em sua relação opressiva com o indivíduo que busca

ser livre e, nos da maturidade, aparece na relação justamente com aqueles que

detêm o poder.150 Os nobres, os príncipes, os detentores do poder têm seu destino

determinado por circunstâncias históricas. Nesse caso, a questão da liberdade não

diz mais respeito às imposições sociais em oposição à vontade individual, como

em Os salteadores, mas a uma concepção filosófica mais profunda da moralidade.

Nas peças posteriores aos estudos kantianos sobre a tragédia, o que se expressa é

um testemunho da liberdade moral do ser humano, no mundo determinado pelas

leis naturais e condicionado historicamente. Como afirma Anatol Rosenfeld, “o

pensamento teórico de Schiller se manifesta, de uma ou de outra forma, em toda a

150 BENJAMIN. “Goethe, artigo enciclopédico”, em: Dos ensayos sobre Goethe. Op. cit., p. 151.

179

sua obra dramática”, justamente porque foram suas preocupações ligadas à

produção artística que orientaram as investigações estéticas a que ele se

dedicou.151

Embora Schiller tenha sido bastante conhecido no resto da Europa durante

o século XIX, esse reconhecimento não pode ser comparado à posição que o autor

tem na Alemanha. O centenário do seu nascimento em 1859 se converteu numa

grande manifestação no país inteiro, muito maior do que a comemoração pelo

centenário do nascimento de Goethe por exemplo. Thomas Mann relata esse fato

no texto que escreveu em homenagem aos 150 anos da morte de Schiller, em

1955, dando à conclusão dessa homenagem um conteúdo político ligado à

situação alemã no período pós-guerra.

Quando se comemorou [...] seu aniversário de cem anos, elevou-se uma torre de entusiasmo unindo a Alemanha. Ali se oferecia ao mundo um espetáculo que a história ainda não conhecia: o povo alemão, sempre dividido, na mais estreita união por ele, por seu poeta. Era uma festa nacional, como a nossa. Diante da atrocidade política, a Alemanha dividida em duas sente-se uma só em seu nome.152

Já na obra ficcional de Thomas Mann, encontram-se algumas alusões a

Schiller que servem de exemplo para ressaltar a repercussão de sua obra na

Alemanha do século XX. Entre elas, pode ser mencionada a tentativa de Tonio

Kröger, no conto homônimo, de convencer seu amigo Hans Hansen a ler a peça

Dom Carlos – “...algo que ultrapassa a imaginação. Há algumas passagens, você

devia ver, tão belas que provocam um abalo na gente, como se algo estalasse...” –.

Há também o breve conto “Hora difícil” [“Schwere Stunde”], que tem como

151 Ver ROSENFELD, Anatol. Teatro moderno. São Paulo: Perspectiva, coleção debates, 1977, p. 31-33. São comentadas nove peças em referência às questões teóricas do autor. 152 MANN, Thomas. “Versuch über Schiller”. em: Leiden und Grösse der Meister. Frankfurt: Fischer Verlag, 1982. p. 450.

180

personagem o próprio Schiller, num momento em que trabalha em sua casa, com

sérios problemas de saúde, mas ardorosamente dedicado a seus escritos. 153

Assim como faz Thomas Mann no texto de homenagem a Schiller, Walter

Benjamin comenta a importância das comemorações do centenário de nascimento

em seu “Artigo enciclopédico”, chamando a atenção para a importância que elas

tiveram, em comparação com as comemorações relativas ao centenário do

nascimento de Goethe. Segundo Benjamin, a figura do segundo, muito mais

conhecido atualmente, só “avançou para o primeiro plano nos anos 70 [do séc.

XIX], depois da criação do império, quando a Alemanha buscava representantes

monumentais de seu prestígio nacional”. A fundação da Sociedade Goethe sob a

proteção dos príncipes alemães e a edição Sophie de suas obras seriam indícios

desse processo.154 Até hoje, mantendo viva essa comparação entre os dois

escritores, Schiller é considerado por muitos historiadores da literatura como o

verdadeiro poeta nacional, mais do que qualquer outro o poeta clássico da escola

alemã.

4.2. Questões estéticas

Na introdução da Estética de Hegel, lê-se uma referência a Schiller que aponta o

caráter inaugural de sua teoria da arte:

Foi um homem dotado de grande sentido artístico e, ao mesmo tempo, de profundo espírito filosófico quem primeiro se ergueu contra as acepção da infinitude abstrata do pensamento, do dever pelo dever [...] e reivindicou a totalidade e a conciliação, antes de a filosofia lhes reconhecer a necessidade.155

153 Ibidem. “Tonio Kröger”, em Sämtliche Erzählungen. Band I. Frankfurt: Fischer Verlag, 1966, p. 271. O conto “Schwere Stunde” se encontra no mesmo volume, p. 364-372. 154 BENJAMIN. Op. cit., p. 176. 155 HEGEL. Estética. Coleção Os Pensadores, São Paulo: Editora Nova Cultural, 1988, p. 56.

181

O filósofo reconhece assim o papel de precursor do poeta e dramaturgo que, em

seus ensaios filosóficos, foi um dos primeiros autores a refletir sobre a arte tendo

como ponto de partida a obra de Kant. E, enfatizando a relevância desse ponto de

partida, Hegel também reconhece que a Crítica do juízo “constitui o ponto de

partida para uma verdadeira apreensão do belo artístico” e que as obras dos

demais autores a serem comentados na Estética são “tentativas para preencher as

lacunas da concepção kantiana da arte”.

Assim, levando em conta sua base kantiana, é fácil compreender por que

Schiller foi considerado na Estética como um precursor. Suas obras teóricas são

consideradas como um primeiro esforço para, ao interpretar a terceira crítica

kantiana tendo em vista uma filosofia da arte, superar as limitações impostas pela

filosofia de Kant. Ao comentar a maneira como esse precursor se insere no projeto

de “preencher as lacunas” de Kant no campo da arte, Hegel afirma ainda que “o

grande mérito de Schiller está em ter ultrapassado a subjetividade e a abstração do

pensamento kantiano, e em haver tentado conceber pelo pensamento e realizar na

arte a unidade e a conciliação como única expressão da verdade”. Na busca de

uma união de razão e sensibilidade, arte e moral, tragédia e liberdade, os ensaios

estéticos do poeta anunciavam o projeto da filosofia idealista de superar o abismo

imposto pela filosofia kantiana entre o âmbito racional e a experiência sensível.

A base kantiana dos ensaios distanciou Schiller da concepção tradicional

da tragédia, fundamentada na Poética de Aristóteles, que marcou a reflexão

teórica do Classicismo. Mas o tema central dessa teoria feita a partir de novos

princípios era o mesmo da tradicional: a arte trágica. E o autor certamente

conhecia as concepções de Aristóteles, pelo menos indiretamente, por intermédio

182

de Lessing por exemplo, pois foi só em 1797 que leu a Poética, como dá a

entender um comentário que faz a Goethe em carta de 5 de maio desse ano.156

Assim, as definições presentes nos ensaios de Schiller podem ser

interpretadas a partir de dois propósitos distintos: repensar a poética da tragédia

(os princípios e as regras de uma forma artística, a tragédia), herdada da tradição

aristotélica; e questionar filosoficamente, com base em Kant, a liberdade na arte.

Com relação ao primeiro propósito, ao qual os textos estéticos de Schiller, como

“Acerca da arte trágica”, de 1792, parecem se restringir a princípio, a tragédia é

definida como “uma imitação poética de uma seqüência concatenada de

acontecimentos (ação completa), mostrando-nos seres humanos em estado de

sofrimento e tendo em mira suscitar a nossa compaixão”.157 A definição, aqui, diz

respeito a dois aspectos que determinam qualquer gênero literário, a forma e o fim

— sendo o primeiro subordinado ao segundo. “O fim da tragédia é a comoção; a

sua forma, imitação de uma ação que conduz ao sofrimento”. É por meio da

representação do sofrimento, em uma seqüência de acontecimentos com

sentimentos alternados, que a tragédia desperta a compaixão e nos comove.

Pode-se dizer que, como em Aristóteles, trata-se de uma mímese, ou

imitação poética, na qual estão em jogo terror (aqui interpretado como

apresentação do sofrimento) e compaixão. Mas, seguindo uma linha de

pensamento iluminista, Schiller afirma que, em comparação com a grega, a arte

moderna “goza da vantagem de ter recebido matéria mais pura de uma filosofia

mais esclarecida”, estando “destinada a cumprir essa máxima exigência e a

desdobrar assim toda a sua dignidade moral”.158 Preocupado em escrever uma

tragédia moderna, ele considera necessário fundá-la na filosofia de sua época —

156 Ver Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller, p. 387. 157 “Acerca da arte trágica”. SCHILLER. Teoria da Tragédia, São Paulo, EPU, p.104. 158 Ibidem, p. 95.

183

leia-se Kant —, uma vez que a considera capaz de “emancipar” a arte, ao

esclarecer as questões da moral e da liberdade humana.

Nos ensaios escritos por Schiller, a reflexão filosófica gira em torno de

uma discussão propriamente artística acerca da possibilidade de criação e do

sentido da tragédia moderna. Ao contrário do que ocorre na cultura grega (não

emancipada, ingênua, por isso mesmo mais poética e menos filosófica), na cultura

moderna a tragédia é valorizada por sua relação com a moral: “Se temos de

renunciar para sempre a refazer a arte grega, visto que o gênio filosófico da época

e toda a cultura moderna não são favoráveis à poesia, tais momentos atuam de

maneira menos desvantajosa sobre a arte trágica, que repousa mais na moral”.

Em todo caso, se não se deve imitar os gregos, em que consiste uma

tragédia, de acordo com os parâmetros do pensamento moderno? — Trata-se de

uma questão que marcou profundamente a teoria estética e a cultura alemã nos

séculos XVIII e XIX, desde o Classicismo, passando por Schelling e Hölderlin,

até chegar a Nietzsche. A resposta específica dada pela teoria estética schilleriana

tem um caráter inaugural e parece indicar uma nova via de pensamento, em

relação aos autores anteriores a ele, justamente por ter como pano de fundo as

noções estéticas discutidas por Kant na Crítica do Juízo. Por trás da interpretação

da compaixão, definida como a finalidade da arte trágica, está a noção kantiana do

sublime, que se tornaria um dos problemas centrais em quase todos os ensaios

posteriores a “Sobre a arte trágica”. Nesses, o que se questiona ainda é a tragédia,

mas as definições passarão a ter como tema não só a sua forma e a sua finalidade

imediata, mas também um propósito mais elevado da arte em relação à existência

humana. Esse questionamento inclui toda uma tentativa de relacionar a arte e a

184

moral, a fim de pensar esteticamente a questão da liberdade (que a princípio se

vincula apenas à moral kantiana).

A teoria de Schiller sobre o sublime tem como ponto de partida um

princípio bastante simples e geral, que pode ser indicado pelo próprio título de um

de seus ensaios: “Acerca da razão por que nos entretêm assuntos trágicos” (1792).

— Muitas vezes, diante da cena de uma desgraça, de um acidente por exemplo,

não só somos atraídos a observar, como também sentimos um estranho prazer. “É

fenômeno comum em nossa natureza que o que infunde tristeza, temor e mesmo

horror nos atraia com irresistível magia e que, com igual força nos sintamos

repelidos e atraídos”.159 Esse sentimento que parece estar na base do efeito que a

tragédia provoca em nós está ligado a um conflito das nossas inclinações:

enquanto a sensibilidade é atacada pela percepção da dor, uma outra faculdade

existente em nós, não sensível, mas racional, gera o prazer de uma identificação

com quem sofre e de uma contemplação serena dessa dor alheia, sem que ela nos

afete diretamente.

O conflito entre a faculdade sensível e a racional é expresso, em termos

kantianos, pelo sentimento do sublime, pensado sempre em comparação com o

belo, que por sua vez expressa uma harmonia entre razão e sensibilidade. Ao

retomar essas noções, Schiller está interessado em como elas se manifestam no

homem, ou seja, em como se revelam o belo e o sublime no caráter humano. Para

ele, os dois sentimentos estéticos estão ligados à liberdade, cada um a seu modo,

como se pode ler em um ensaio chamado “Acerca do Sublime” (1801):

O belo já é uma expressão da liberdade […] mas da que nós, como homens livres, gozamos dentro da natureza. Sentimo-nos livres na presença da beleza porque os impulsos sensitivos se harmonizam com a lei da razão; sentimo-nos livres na presença do sublime porque os mesmos impulsos perdem toda a influência sobre a legislação da razão,

159 “Acerca da razão por que nos entretêm assuntos trágicos”. SCHILLER. Op. cit., p.83.

185

pois o que atua aqui é o espírito, como se não obedecesse a nenhuma lei senão a sua própria.160

No sublime a razão e a sensibilidade não só estão em desarmonia, como

também se contradizem diretamente, mas essa contradição nos mostra a liberdade

do homem moral em relação ao mundo físico. Ao resistir ao sofrimento de que é

vítima sensivelmente, o homem revela a faculdade racional que orienta os seus

atos. Sendo uma idéia da razão, em sentido kantiano, portanto algo de “supra-

sensível”, não pode haver nem conceito nem representação positiva da liberdade,

mas ela é apresentada sensivelmente de maneira negativa e indireta, por meio da

resistência ao sofrimento. Por isso a tragédia pode ser definida como a

“apresentação sensível do supra-sensível”.

Para esclarecer de um modo menos abstrato essa definição, é preciso

retomar a idéia de que o homem é “cidadão de dois mundos”: por um lado, ser

natural submetido às forças e inclinações da sensibilidade; por outro, ser racional

caracterizado pela vontade, que lhe possibilita decidir se deve ou não seguir tais

inclinações. Se todos os seres apenas naturais agem sempre de acordo com as

necessidades impostas de fora, o ser humano se diferencia por poder, graças ao

lado racional, ou moral, intervir com sua vontade na necessidade natural, agindo

sem estar submetido às leis desta. Pode, então, por exemplo, escolher contemplar

uma manifestação violenta da natureza, capaz de destruí-lo, e se deleitar com a

grandiosidade e com a força que, fosse ele meramente guiado pela sensibilidade, o

fariam fugir em pânico. Nesse caso, ele possui uma liberdade moral, que lhe

permite agir de acordo com princípios racionais e contrariar as inclinações

sensíveis, vencendo assim as forças naturais fisicamente superiores às suas.

160 “Sobre o sublime”. SCHILLER. Op. cit., p. 53.

186

Quando a violência da natureza o ameaça, opõe-se racionalmente a ela, por isso é

capaz de controlar ou prever os fenômenos que não poderia enfrentar de modo

direto. Expressando a racionalidade, “a cultura deve libertar o homem, ajudando-o

a preencher inteiramente o que ele é como conceito […], torná-lo apto a manter

sua vontade, pois o homem é o ser que quer”.161

Mas o privilégio da vontade humana de intervir no reino das necessidades

e dos fenômenos sensíveis não diz respeito apenas à natureza exterior, já que o

próprio homem também é um ser natural. Por mais que seja capaz de resistir às

violências exteriores, superando forças fisicamente superiores às suas, ele não

pode vencer a derradeira imposição da necessidade de sua própria natureza

corpórea: a morte. Todo o conceito de homem, como ser livre por meio da

vontade, é posto em questão por essa única subordinação à lei da natureza, que

anula a sua liberdade. “Esse único terror, de simplesmente ser obrigado ao que

não quer, há de acompanhá-lo como um fantasma…”.162

Contudo, segundo Schiller, existe uma maneira de libertação que não está

ligada à cultura física, portanto não visa dominar a natureza e opor violência à

violência, ação que se mostra impossível contra a morte. Trata-se de uma maneira

“idealista”, ligada à cultura moral, na qual o autor enxerga a possibilidade de

superar o derradeiro terror ao qual o homem está submetido enquanto cidadão de

dois mundos: “… sempre que não possa opor às forças do mundo físico nenhuma

força equivalente, e a fim de não padecer violência alguma, não lhe resta senão

anular de todo uma situação que lhe é prejudicial e destruir conceitualmente uma

violência que terá de sofrer de fato”.

161 Ibidem, p.50. 162 Ibidem, p. 50.

187

Quando “nem a sua força nem a sua habilidade podem pô-lo a salvo da

perfídia da fatalidade […], feliz dele se aprendeu a suportar o que não pode

modificar e abandonar com dignidade o que não pode salvar”.163 Mas como

aprender a suportar a dor e resistir ao sofrimento? A resposta de Schiller: por meio

da arte que, ao apresentar uma desgraça fictícia, nos põe em contato com a lei

racional que pode nos libertar, sem nos tornar indefesos como acontece com uma

desgraça real. Assim, familiarizado com a resistência ao sofrimento que lhe é

ensinada, o espírito se torna capaz de, “quando surgir uma desgraça real, tratá-la

como se fosse artificial e — supremo alvo da natureza humana! — dissolver o

sofrimento de verdade em uma emoção sublime”.164 Só a arte consolida a força

moral do homem e pode educá-lo para a liberdade absoluta, aquela que se mantém

mesmo diante do sofrimento de que ele não pode escapar. É a capacidade de sentir

o sublime, considerada por Schiller uma das mais esplêndidas faculdades

humanas, que expressa a autonomia racional e influencia a moralidade, dando a

possibilidade “destruir conceitualmente” a morte.

Embora seja um primeiro passo na elaboração dessa teoria estética, a

discussão a partir da filosofia de Kant nos ensaios tem uma orientação mais

específica para a consideração de um gênero artístico. Enquanto esses textos

elaboram uma teoria da literatura a partir das idéias trabalhadas pelo autor, em

1792 e 1793, nos seus cursos de estética, é sobretudo nas suas cartas que Schiller

analisa de modo mais direto as questões estéticas kantianas, especialmente na

correspondência com seu amigo Körner.

Em carta a Körner de outubro de 1792, por exemplo, Schiller conta estar

mergulhado na Crítica do juízo, cujo estudo já vinha sendo mencionado na

163 Ibidem, p. 66. 164 Ibidem, p. 67.

188

correspondência desde o ano anterior, e acrescenta: “Não sossegarei até que tenha

penetrado nessa matéria e que ela se tenha tornado alguma coisa em minhas

mãos”. Fica evidente, assim, a intenção de se apropriar das noções kantianas, para

pensar a partir delas. Em outra carta, desta vez a Fischenich, datada de fevereiro

de 1793, o autor esclarece sua intenção, ao afirmar que suas preleções de estética

o tinham obrigado a “conhecer Kant com tanta exatidão quanto é preciso para não

ser um mero repetidor”.165 Aquilo que a leitura da terceira crítica se tornou nas

mãos de Schiller deveria ser apresentado, a princípio, numa obra de estética

dedicada às questões do gosto, do belo e da arte, cujo título seria Kallias ou sobre

a beleza. Como o projeto não foi levado adiante, mas suas idéias fundamentais

foram amplamente discutidas na correspondência com Körner no início de 1793,

as cartas de Schiller a seu amigo escritas em janeiro e fevereiro desse ano

passaram a ser publicadas com o título pensado para o ensaio estético.

Essas cartas retomam as questões dos cursos de estética ministrados em

Jena, a fim de apresentar um resultado independente, mesmo que pensado por

meios kantianos. Assim, embora sua reflexão seja inteiramente vinculada às

concepções da terceira crítica, o autor pensa a questão do belo de um modo

próprio, procurando uma solução “apesar de Kant”. Em resumo, sua tentativa é a

de estabelecer um princípio objetivo para o belo, a partir da constatação de que,

nos juízos estéticos, atribui-se ao objeto belo uma faculdade de determinar a si

mesmo, uma vontade, de modo que esse objeto aparece como se fosse livre. Por

isso, a beleza é definida como “liberdade no fenômeno”, estabelecendo uma

analogia entre uma característica exclusiva das idéias da razão (já que em termos

kantianos só há liberdade no campo da razão prática) e o âmbito sensível dos

165 As duas cartas são citados por Ricardo Barbosa, na introdução de Kallias ou sobre a beleza (Op. cit., p. 11 e 15), na qual se encontram uma apresentação detalhada do projeto de Schiller e um resumo de seus argumentos.

189

objetos belos. Não cabe aqui detalhar a tese defendida, nem expor os argumentos

de tal defesa, mas é importante ressaltar as linhas gerais do projeto estético de

Schiller, esse estudo que procura ir além de Kant usando as concepções kantianas.

Ainda em 1793, o escritor interrompeu seu trabalho no projeto de Kallias,

cujas idéias tinha apresentado nas cartas a Körner, para escrever outro texto

profundamente marcado pelas noções kantianas, “Sobre graça e dignidade”, que

discute especificamente o belo e o sublime nas ações humanas. Depois disso, ele

abandonou aquele projeto anterior para, a partir da clareza que tinha conquistado

acerca da “natureza do belo” por meio dos estudos que resultaram nas cartas a

Körner e nos ensaios, dedicar-se a um projeto mais abrangente que teria como

tema o gosto, a beleza e a arte em termos de seu efeito sobre a formação dos

indivíduos e a cultura em geral. Esse projeto foi elaborado nas Cartas sobre a

educação estética do homem, de 1795. Logo na primeira carta desse ensaio

epistolar, no qual o autor pretende apresentar o resultado mais maduro de suas

“investigações sobre o belo e a arte”, há um reconhecimento da “origem kantiana

da maior parte dos princípios em que repousam as afirmações que se seguirão”.166

No entanto, Schiller já não estava interessado em estudar diretamente a filosofia

kantiana ou discutir os argumentos da terceira crítica, mas em formular sua teoria

estética que tinha partido das concepções presentes nessa filosofia. Como

esclarece Anatol Rosenfeld, “no centro de suas indagações estéticas encontra-se,

desde logo, o problema de determinar o lugar e a função exatos da arte [...] dentro

do contexto da sociedade e dentro das virtualidades humanas.” Essas indagações

visam à elaboração de uma teoria que, “garantindo a plena autonomia da arte,

ainda assim lhe reservam uma importante função educativa na sociedade”, teoria

166 SCHILLER. A educação estética do homem. São Paulo, Iluminuras, 1990, p. 24.

190

que se baseia na fundamentação filosófica de uma ligação entre o domínio moral e

o sensível.167 É com base na filosofia kantiana, que o autor descreve o mundo

dividido entre o âmbito sensível, determinado pela necessidade natural, e o âmbito

moral, ou cultural, que não está submetido à necessidade mas deve seguir as leis

da razão prática. Assim, a questão da liberdade aparece, a princípio, vinculada ao

mundo moral em que a vontade pode se auto-determinar. Mas, retomando a

analogia presente nas cartas a Körner e, com isso, a noção de beleza como

liberdade no fenômeno, o que o ensaio pretende é pensar a estética como uma via

para harmonizar esses dois lados antagônicos, que pela filosofia de Kant se

encontram cindidos, sem possibilidade de conciliação. Nessa reflexão, a arte surge

como uma via de educação do homem para a liberdade.

4.3. Tragédia e liberdade: o exemplo de Maria Stuart.

Se os ensaios de Schiller sobre a arte trágica podem ser considerados como um

primeiro passo na elaboração de uma estética de base kantiana, a sua obra poética

posterior a esses ensaios se revela como um exemplo da aplicação, na prática

artística, daquilo que foi formulado teoricamente. A tese central daqueles ensaios

escritos entre 1791 e 1793 é a de que a forma da tragédia é a representação

apropriada para, por meio de uma imitação poética, apresentar o sofrimento e a

resistência ao sofrimento ligado à morte. A sua finalidade é despertar compaixão:

um prazer moral na contemplação da vitória sobre a sensibilidade. A sua

influência sobre o homem é o fortalecimento da moralidade e a educação para a

liberdade, já que a visão da força moral dos heróis das tragédias ensina a lidar

167 ROSENFELD. Teatro moderno. Op. cit., p. 20.

191

dignamente com os sofrimentos vividos, sem uma entrega às dores que fazem

parte da existência humana.

Mesmo nos ensaios estéticos, a arte literária de Schiller sobressai, tanto na

clareza das formulações, quanto na precisão e na apresentação de exemplos

retirados da história e da literatura. É com eles que o autor esclarece a sua reflexão

e a torna mais eloqüente. Seguindo esse mesmo procedimento, é possível

encontrar, no exemplo de uma de suas tragédias, os principais elementos que

constituem a arte trágica segundo a teoria elaborada anteriormente. Em seu

comentário sobre a maneira como a teoria da tragédia de Schiller se expressa

artisticamente na dramaturgia, Anatol Rosenfeld dá indicações a respeito da

apresentação poética da questão da liberdade em quase todas as suas peças.168

Mas, entre a primeira fase do autor e a fase de maturidade, posterior ao

desenvolvimento teórico baseado no estudo de Kant, existe uma diferença que diz

respeito à concepção de liberdade apresentada. Nas primeiras peças, como Os

salteadores, ligadas à ideologia pré-romântica, o tema é o conflito do indivíduo

que tenta ser livre em relação às convenções sociais. Nas peças escritas no período

do Classicismo, o tema da liberdade ganha o sentido mais abrangente e mais

filosófico que tem como base a teoria da tragédia dos anos dedicados aos ensaios

estéticos. Formalmente, elas se aproximam dos princípios classicistas, pois têm

nobres como heróis e adotam uma métrica clássica. Em A noiva de Messina

(1803), ressaltando a importância que dava nessa época ao estudo das tragédias

gregas, Schiller chega a fazer uma tentativa de retomar o coro, abandonado

mesmo no teatro clássico.

168 ROSENFELD, Anatol. Teatro moderno. Op. cit., p. 31-33.

192

Em geral, as peças desse período, voltadas para personagens históricos,

como Wallenstein e Guilherme Tell, poderiam ser escolhidas como exemplo para

a realização da teoria da tragédia de Schiller, porque em todas elas a questão da

liberdade constitui um tema central e não se restringe a conflitos individuais. Mas,

em comparação com as outras tragédias históricas, Maria Stuart é a obra que

possui relação mais direta com a definição teórica elaborada por Schiller, já que

diz respeito à afirmação da liberdade no caso de uma prisioneira condenada à

morte. Toda a peça gira em torno da oposição entre a condição “sensível” de

aprisionamento e a dignidade moral.

Em todo caso, a interpretação das obras como exemplos do conceito de

tragédia não significa que seu autor tenha pretendido, em primeiro lugar,

desenvolver uma estética e, secundariamente, escrever obras exemplares. Ao

contrário, foi a prática artística que orientou desde o início o desenvolvimento da

teoria estética schilleriana, que tem o objetivo de esclarecer as questões da arte e

da literatura moderna para apresentá-las artisticamente com mais clareza. Assim,

embora o processo de elaboração parta da definição do conceito geral para a sua

apresentação sensível, Schiller não deve ser considerado como um filósofo que

exemplifica seu pensamento com obras poéticas, mas como um poeta que busca

na filosofia a definição mais precisa de seu tema. Nesse caso, a peça Maria Stuart

pode ser considerada como uma tentativa de “realizar na arte” aquilo que o autor

tinha concebido pelo pensamento, para usar as palavras da Estética hegeliana.

Trata-se de uma apresentação sensível do supra-sensível, como a tragédia foi

definida em “Acerca do sublime”, ou de uma apresentação artística da liberdade,

na qual Hegel identificou a intenção de mostrar “a unidade e a conciliação” do

sensível e do racional “como única expressão da verdade”.

193

No primeiro ato, a rainha escocesa Maria Stuart se encontra há muitos

anos aprisionada no castelo de Fotheringhay, onde espera uma sentença que pode

condená-la à morte, sob a acusação (injusta, forjada por seus inimigos) de ter

tramado um atentado contra a vida de Elisabeth, a rainha inglesa. Os sentimentos

se alternam, mas os acontecimentos se precipitam tragicamente. Lorde Burleigh,

principal defensor da execução, chega para anunciar o resultado do julgamento.

Uma fala de Maria, fazendo referência a Elisabeth, esclarece a posição das duas

rainhas, cujo conflito constitui o tema central da peça:

Eu sou a fraca; Ela, a forte. Pois bem, use a violência, Sacrifique-me à sua segurança, Mate-me! Mas confesse que tal ato Será não de justiça e sim de força!169

Logo na cena seguinte, depois da entrevista, o lorde declara:

Ela nos desafia [...]. E nos desafiará mesmo ao subir Ao cadafalso. É um coração altivo, Inquebrantável. Surpreendeu-a acaso A sentença de morte?

No segundo ato, quando a ação se desloca para o palácio de Westminster,

vêem-se os últimos esforços para evitar que se cumpra a sentença, cuja execução

depende unicamente de uma ordem da rainha inglesa. Nesse caso, a partir da

teoria schilleriana da tragédia, pode-se considerar a execução iminente como a

forma assumida pela força superior à qual a heroína trágica está submetida.

Embora venha de uma circunstância histórica, essa força tem as figuras do

cadafalso e do executor como uma representação no mundo físico.

Mas ainda resta uma esperança, pois Maria Stuart pode contar com a

intervenção do lorde Leicester, que um dia tinha sido seu amante e agora corteja

169 SCHILLER. Maria Stuart, tradução de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1955, p. 36.

194

Elisabeth. Fazendo uso de sua influência, ele tenta promover um encontro entre as

duas, por julgar que o perdão seria concedido no caso de um pedido de clemência.

Leicester usa o artifício da lisonja para alcançar o seu objetivo, e acaba

persuadindo a rainha inglesa de que, face a face, ela humilharia a sua adversária,

tanto moralmente, pela virtude, quanto fisicamente, pelo porte. Prepara-se então a

cena central da peça, a quarta do terceiro ato, a partir da qual se desdobrará a

seqüência de acontecimentos que leva ao desfecho trágico.

A princípio, antes da situação decisiva, Maria está quase resignada,

consciente da necessidade de falar com moderação, a fim de obter o perdão. E o

estado de sofrimento em que a personagem se encontrava nos atos anteriores, para

ressaltar a sua capacidade de resistência moral, chega ao limite decisivo: diante

dela estará a única possibilidade de salvação e, ao mesmo tempo, o risco de pôr

tudo a perder.

Quando finalmente as duas se encontram, há uma fala prévia de Maria

“consigo mesma”:

Seja! A mais esta provação me curvo. Impotente altivez de uma alma nobre, Longe de mim! Quero esquecer quem sou E o que sofri: lançar-me aos pés daquela Que me precipitou nesta ignomínia.170

Ela se lança aos pés da rainha, mas a provação que esperava vem logo em seguida,

da maneira mais direta possível, quando Elisabeth lhe dirige a palavra, sempre

arrogante e acusadora, respondendo a cada fala com ofensas incisivas, até fazer a

pergunta:

que penhor responderia Por vós, se num impulso de clemência Vos desse a liberdade?

Para então comentar, provocativamente: 170 Ibidem, p. 90.

195

Minha única segurança está na força. Não pode haver qualquer entendimento Com a raça das serpentes.

Fica evidente a intenção de humilhar e desmerecer a rainha escocesa,

entremeada em suspeitas e acusações de que ela teria tramado o assassinato,

seduzido o povo, reclamado o direito ao trono. Na resposta de Maria, percebe-se

que a resignação é misturada ao rancor, que um ódio latente contra a injustiça da

situação pode vir à tona a qualquer momento:

Reinai tranqüila Todo direito ao trono renuncio. As asas do meu sonho estão quebradas! Não me atrai a grandeza. Conseguistes O vosso fim: não sou senão a sombra Da Maria que fui. No longo opróbrio Da prisão relaxaram-se-me as nobres Fibras do ânimo antigo…

Ao escutar tais palavras de desistência, Elisabeth pergunta “Confessai-vos

finalmente vencida?”. E, não satisfeita, ainda pretende escarnecer da interlocutora

diante de Leicester, dirigindo-se a ele depois de um “orgulhoso olhar de

desprezo”:

Na verdade Custou barata a fama: foi bastante Dar-se a beleza a todos para em todos Achar admirador que a proclamasse!

É rompida, afinal, a barreira que continha as falas de Maria. Alguma coisa

nela torna impossível suportar a humilhação em nome da clemência, e a indicação

de Schiller, entre parênteses antes de sua fala, revela inteiramente o traço de seu

caráter que iria se fazer presente: “fervendo em cólera, mas com uma nobre

dignidade”. Ora, a dignidade é a expressão, no caráter humano, daquela

resistência ao sofrimento que apresenta a liberdade moral. Diante de uma

imposição física, no caso a ameaça de morte e a necessidade de autopreservação, a

196

heroína trágica resiste, demonstrando a superioridade de sua força de caráter, sem

se entregar ao sofrimento de que é vítima.

Deixando de lado a moderação, Maria acusa a prima de hipocrisia, e ainda

justifica sua cólera:

Sofri com paciência O que pode sofrer um ser humano. Basta destas doçuras de cordeiro! [...] Uma bastarda profanou o trono Inglês, o nobre povo da Inglaterra Foi por uma astuciosa comediante Ludibriado! Se direito houvesse Vós é que neste instante às minhas plantas Rojaríeis ao pó, pois eu sou o rei!

Elisabeth se retira apressadamente, incapaz de responder, e na cena seguinte

Maria declara que, em vez de medo da execução ou arrependimento por um ato

impensado, seu sentimento é de triunfo. A partir deste momento, a morte, que

antes era uma imposição injusta, torna-se um “ato de vontade”. Foi a própria

Maria Stuart quem escolheu, dignamente, o seu destino, em vez de se curvar às

imposições sensíveis. Nesse caso, valem as palavras de Schiller: “Fôssemos nada

mais do que seres sensíveis, que não seguem nenhum outro instinto a não ser o da

conservação, aqui ficaríamos parados, detendo-nos no estado de mero

sofrimento”. Mas, “expulsos de toda fortificação que pode formar uma defesa

física, atiramo-nos dentro da invencível fortaleza da nossa liberdade moral, e

ganhamos uma segurança absoluta e infinita…”.171

Nos últimos atos, Maria e Elisabeth parecem se equilibrar em uma espécie

de gangorra, cujo movimento se inverte caso seja considerado física ou

moralmente. Enquanto a rainha inglesa tem todo o poder nas suas mãos, Maria vai

assistir à construção do cadafalso onde será morta. Por outro lado, Elisabeth age

171 SCHILLER. Teoria da tragédia, Op. cit., p. 107.

197

cada vez mais em função da inveja e dos interesses em jogo, e a rainha da Escócia

demonstra toda a dignidade que a morte próxima permite, encantando a todos pela

força de seu caráter. Nas falas da ama – “saberá a rainha morrer como rainha, e

como heroína!”, “Nenhum sinal de queixa escapou à minha soberana” –

evidencia-se a compaixão e a admiração provocadas pela resistência ao

sofrimento.172 Schiller, para indicar novamente o sentimento de Maria ao falar, faz

uso da mesma palavra empregada antes:

Maria (com tranqüila dignidade relanceia os olhos sobre os presentes): Por que pranto e lamento? Antes devíeis Alegrar-vos comigo, pois chegada É a hora de acabar o meu tormento, De se desatarem as cadeias, De se abrir o meu cárcere.173

Maria Stuart, a prisioneira encarcerada e condenada, anuncia não só a sua

libertação do mundo físico que a oprime, mas também a sua liberdade moral

diante da própria morte, à qual se entrega dignamente, por um ato de vontade.

5. Schiller e a Grécia

Em A tirania da Grécia sobre a Alemanha, Butler considera Schiller como um

“antagonista” de Goethe e, em certa medida, de todo o projeto classicista alemão

baseado nas idéias de Winckelmann.174 Em certa medida, porque o autor foi um

dos principais participantes desse projeto, incorporando à sua prática artística e à

sua concepção teórica elementos característicos do Classicismo, como o estudo da

arte antiga ou o esforço de distinção e definição dos gêneros artísticos. Para

Butler, a posição de Schiller pode ser explicada por motivações pessoais e

artísticas que se baseiam sobretudo na relação com Goethe. Os anos que

172 Idem. Maria Stuart, Op. cit., p. 144. 173 Ibidem, p. 150. 174 BUTLER, E. M.. The tiranny of Greece over Germany. Op. cit., p. 164-200.

198

antecederam a aproximação entre os dois escritores, quando ambos se afastavam

do movimento pré-romântico, são decisivos para compreender essa explicação.

A Ifigênia em Táuris, publicada em 1787, quando o autor ainda se

encontrava na Itália, foi um marco de consolidação da fase clássica na produção

de Goethe, com a reelaboração de um tema grego (trabalhado também por

Racine), em versos iâmbicos, respeitando as três unidades. No mesmo ano, após

um longo período de preparação, saía na Alemanha Dom Carlos, que marcava

uma mudança decisiva na dramaturgia de Schiller, tanto na forma quanto no

conteúdo. Em comparação com as peças anteriores, Os salteadores e Intriga e

amor, identifica-se por um lado a transição dos dramas pessoais, em que o

indivíduo aparece em conflito com as imposições da sociedade, para um drama

político, sobre o rei da Espanha absolutista; por outro lado, trata-se da primeira

peça do dramaturgo em versos iâmbicos, forma adotada também nas obras

posteriores. Além da adoção de uma métrica que caracteriza, formalmente, o

esforço dos dois autores de estabelecer o verso mais apropriado para a língua

alemã, o projeto de Dom Carlos se identifica com o de Ifigênia por deixar de lado

os personagens burgueses da fase anterior. Se as peças pré-românticas de Goethe e

Schiller eram dramas burgueses, seguindo a ruptura de Lessing com a tradicional

restrição à aristocracia, as duas peças que inauguram a fase clássica voltam a ter

personagens nobres, como no teatro clássico francês.

Segundo Butler, Schiller considerou a Ifigênia de Goethe uma obra-prima

justamente no estilo clássico que ele buscava com Dom Carlos, e um êxito muito

maior do que o de sua própria peça. Essa comparação motivou não só o

surgimento de uma certa rivalidade entre os dois escritores, consagrados no Sturm

und Drang e em transição para uma fase nova de sua produção artística, mas

199

também o grande interesse de Schiller pela Grécia antiga a partir de 1787. Pode

ser considerado como uma primeira indicação desse interesse o poema Os deuses

da Grécia, publicado em março de 1788, após a primeira visita do autor a

Weimar. Nesse lamento pelos deuses que desapareceram, Butler vê a retomada de

várias idéias do Classicismo alemão (de Wieland, por exemplo) e, principalmente,

da imagem da Grécia evocada na Ifigênia de Goethe. Ele imagina Schiller

maravilhado pela beleza da recriação goethiana da Antigüidade, lamentando a sua

impossibilidade de realizar algo semelhante.

Em 1788, a partir da elaboração de Os deuses gregos, o poeta se dedicou

intensivamente ao estudo da literatura antiga, decidido a não ler nenhum autor

moderno por dois anos, como ele declara em carta de 28 de agosto a seu amigo

Körner. O seu projeto consistia, a princípio, em estudar os gregos nas traduções

alemães (como a de Homero por Voss), para depois ler os textos originais, apesar

do pouco conhecimento do idioma grego. Em outra carta a Körner, o escritor

resume seus objetivos:

Espero adquirir assim mais simplicidade no plano e no estilo. Depois, por meio de uma intimidade maior com as peças gregas, posso finalmente ser capaz de me apropriar dos elementos que são verdadeiros, belos e efetivos e, eliminando as imperfeições, devo formar um certo ideal a partir deles, segundo o qual o ideal que tenho agora será corrigido e aperfeiçoado.175

Esse projeto levou Schiller, mais tarde, a fazer uma tradução (incompleta)

da Ifigênia em Áulis, de Eurípides, e de trechos da Ifigênia em Táuris, entre outros

trabalhos. No entanto, se Schiller tinha decidido dedicar-se ao estudo dos gregos

antigos e à busca de um ideal a partir desse estudo, por outro lado sua postura em

relação à Grécia não tem o caráter de veneração identificado em Winckelmann ou

Goethe. Aos poucos, os comentários a respeito das peças antigas em cartas ou

175 Ver BUTLER, E. M.. Op. cit., p. 168, 169.

200

ensaios deixam claro que, apesar do reconhecimento da sua importância, trata-se

de uma postura muito mais crítica do que a de outros “helenistas”. Na comparação

da Ifigênia de Eurípides com a de Goethe, por exemplo, num ensaio crítico que

ficou incompleto, o escritor defende a superioridade da versão alemã, o que seria

impensável para um classicista tradicional. Butler reconhece, nessa comparação, a

intenção de defender a superioridade dos modernos sobre os gregos antigos,

posição que caracterizará posteriormente o desenvolvimento da teoria da tragédia

de Schiller. Assim, o projeto de estudo dos clássicos não o leva ao elogio da

perfeição exemplar dos gregos, à defesa de um modelo a ser imitado, mas à

tentativa de compreender o modo como os artistas modernos devem se aproximar

do ideal expresso pela arte antiga.

Nos ensaios escritos entre 1791 e 1796, fica evidente o “antagonismo” do

autor em relação às tendências nostálgicas do Classicismo. Depois dos anos

dedicados aos estudos de Homero e dos tragediógrafos antigos, quando começa a

desenvolver sua consideração de questões ligadas à tragédia, Schiller dá mais

importância à dramaturgia moderna do que às peças gregas. Em “Acerca da razão

por que nos entretêm assuntos trágicos” (1792), ele usa como exemplos

especialmente personagens de Shakespeare e nem sequer menciona Eurípides,

cujas peças tinha começado a traduzir alguns anos antes. Já “Sobre a arte trágica”

(1792) contém uma crítica da tragédia grega por sua “cega sujeição ao destino”,

considerada “humilhante e ofensiva” para a liberdade humana, e um elogio da arte

moderna, esclarecida pela filosofia kantiana e destinada a alcançar por isso uma

altura cristalina da emoção trágica.176 Schiller fala de uma “beleza excepcional na

176 SCHILLER. “Sobre a arte trágica”, em: Teoria da tragédia. Op. cit., p. 94-95.

201

nossa Ifigênia alemã” e, de acordo com sua concepção da tragédia como

expressão da liberdade, argumenta em favor da superioridade das peças modernas.

A defesa da superioridade da arte moderna poderia justificar o abandono

do projeto de estudo dos antigos, iniciado em 1787 após a leitura da Ifigênia de

Goethe, e o poema Os deuses gregos. No entanto, Schiller não só continuará a

estudar os antigos e a buscar a definição de um ideal poético a partir desse estudo

– como demonstra a correspondência com Goethe –, mas também participará

ativamente do projeto classicista defendido, por exemplo, na revista Propileus.

Assim, a relação do autor de Dom Carlos com a Grécia e com o Classicismo tem

um caráter paradoxal, porque integra uma posição crítica, de defesa da arte

moderna, a um reconhecimento da exemplaridade e da perfeição da arte antiga.

Esse paradoxo só começa a ser esclarecido a partir da retomada da comparação

entre antigos e modernos nas Cartas sobre a educação estética do homem (1795).

Nas sexta carta do ensaio epistolar, o contraste entre a arte grega e a

moderna não é apresentado em favor da humanidade mais recente, como no texto

“Sobre a arte trágica”. A “natureza grega”, que “desposou toda a dignidade da arte

e todos os encantos da sabedoria” aparece como ideal superior, nos moldes do

Classicismo de Winckelmann, de quem o autor aproveita aliás a noção de

“simplicidade”. Schiller afirma:

Não é apenas por uma simplicidade, estranha a nosso tempo, que os gregos nos humilham; são também nossos rivais, e freqüentemente nossos modelos, naqueles mesmos privilégios com que habitualmente nos consolamos da inaturalidade de nossos costumes.177

Em outras palavras, os gregos são vistos como a realização máxima da

cultura, oposta nas Cartas ao domínio da natureza segundo a reflexão sobre o

177 SCHILLER. A educação estética do homem. Op. cit., p. 39.

202

homem como “cidadão de dois mundos”. Identifica-se então uma decadência da

modernidade no que diz respeito à relação entre natureza e cultura, decadência

exposta pela comparação com a civilização grega. Enquanto o indivíduo moderno

se afasta da natureza e se torna fragmentário, governado pela arbitrariedade do

Estado, exacerbadamente cultural, frio, mecânico, destituído de uma noção de

totalidade, o grego aparece como estágio máximo da realização humana, no qual a

natureza e a cultura se encontravam em harmonia. A crítica de Schiller não se

baseia numa visão nostálgica da Antigüidade, mas visa justamente a uma reflexão

sobre o ideal de harmonia entre o mundo da natureza e o da cultura, a ser buscado

na modernidade. Nesse caso, a “educação estética” teria a possibilidade de

orientar o homem moderno na direção desse ideal de algo que, na Grécia, existia

como uma perfeição.

A décima quinta carta retoma a questão do modelo grego, no contexto de

uma reflexão sobre o “impulso lúdico”, que unifica o impulso sensível e o formal,

o lado natural e o lado moral do ser humano. Schiller liga a noção de belo à noção

de liberdade por meio dessa reflexão em que o impulso lúdico, ligado à criação

artística, escapa tanto do constrangimento da natureza, quanto do constrangimento

da razão. Com base na noção kantiana de “livre jogo” entre as faculdades do

entendimento e da imaginação, o autor define a própria beleza como plenitude da

humanidade, por envolver o “jogo” em que a matéria e o espírito aparecem

unificados. Seu objeto é ao mesmo tempo forma (idéia) e vida (natureza), por isso

o conceito de “forma viva” serve para designar a possibilidade de harmonia entre

os dois “mundos”, da natureza e da cultura, separados na modernidade. Assim

como o homem não é exclusivamente matéria nem exclusivamente espírito, a

203

consumação de sua humanidade não pode ser mera vida nem mera forma, ela deve

ser “forma viva”, criada pelo impulso lúdico.

Na concepção das Cartas, o homem deve “jogar” com a beleza, porque

pelo impulso lúdico se alcança a plenitude de uma harmonia da “dupla seriedade”

do dever (lei, moral) e do destino (natureza). Na décima quinta carta, os gregos

são pensados como os mestres dessa concepção de plenitude humana como jogo,

por terem feito “desaparecer da fronte dos deuses ditosos tanto a seriedade e o

trabalho, que marcam o semblante dos mortais, quanto o prazer iníquo”.178 O ócio

e a indiferença caracterizavam o divino como a existência mais sublime,

verdadeiramente livre. Essa concepção dos deuses gregos como expressão da

plenitude humana remete a Winckelmann, e a referência à descrição de uma

estátua, Juno Ludovisi, como expressão do ideal de beleza apenas reforça essa

referência. Trata-se do mesmo procedimento do autor das Reflexões.

Toda a figura repousa e habita em si mesma, criação inteiramente fechada que não cede nem resiste, como se estivesse para além do espaço; ali não há força que lute contra forças, nem ponto fraco em que pudesse irromper a temporalidade. Irremediavelmente seduzidos por um, mantidos à distância por outro, encontramo-nos simultaneamente no estado de repouso e movimento máximos, surgindo aquela maravilhosa comoção para a qual o entendimento não tem conceito e a linguagem não tem nome.

Mas a constatação do belo ideal na escultura grega não leva Schiller à

defesa incondicional do modelo grego. Mesmo nesse elogio dos “mestres” do

impulso lúdico, há uma ressalva: eles transportaram para o Olimpo o que deveria

ser realizado na Terra. Na conclusão de sua teoria sobre o belo e a arte, Schiller

defenderá a noção de um “Estado estético”, em que o impulso lúdico da criação

artística educa o homem para a liberdade, harmonizando os reinos opostos das

necessidades naturais (“reino terrível das forças”) e da moralidade (“sagrado reino

178 Ibidem, p. 84.

204

das leis”). Assim, o impulso estético ergue como ideal um terceiro reino, “de jogo

e aparência”, que “desprende o homem de todas as amarras das circunstâncias,

libertando-o de toda a coerção moral ou física”.179 Esse terceiro reino é, portanto,

o reino da liberdade estética, que nos gregos aparecia como algo sobre-humano,

divinizado, e que os modernos buscam como ideal.

179 Ibidem, p. 143.

205

CAPÍTULO 4

A POÉTICA NO CLASSICISMO DE WEIMAR

1. O encontro

Como o duque de Weimar tinha aceitado, antes mesmo de seu retorno da Itália,

um pedido de dispensa das incumbências administrativas anteriores, a partir de

1788 Goethe passou a concentrar suas atividades no campo da produção cultural,

além de trabalhar em seus escritos científicos. Em 1790, ele assumiria o cargo de

ministro da cultura e da educação e, no ano seguinte, a direção da companhia de

teatro da cidade. Artisticamente, esse período consolidou o seu afastamento dos

ideais revolucionários do Strum und Drang. Não só o arrebatamento de suas

primeiras obras deu lugar à busca de clareza e serenidade, mas também o modelo

do gênio contra as regras do Classicismo foi deixado de lado, dando lugar a uma

defesa do estudo da arte e da literatura clássicas.

Nesse contexto, ao tomar contato com a repercussão da obra de Schiller,

logo após seu retorno da Itália, em 1788, Goethe se viu diante da expressão mais

festejada dos princípios e das questões ideológicas de que vinha tomando

distância ao longo dos últimos anos. O próprio escritor comenta, em texto de 1817

intitulado “Feliz acontecimento”, a “repulsa” inicial provocada pelo sucesso de Os

salteadores (1782):

Após meu retorno da Itália, onde eu havia procurado me aperfeiçoar em todos os ramos da arte, a fim de alcançar uma segurança e uma pureza maiores, permanecendo indiferente a tudo que se passava nesse ínterim na Alemanha, deparei com novas e antigas obras poéticas, apreciadíssimas pelo público e exercendo grande influência; infelizmente essas obras me causavam extrema repulsa.

Schiller é avaliado em seguida como “um talento vigoroso, mas imaturo”, que

tinha “despejado sobre a nação em uma torrente arrasadora justamente os

206

paradoxos éticos e teatrais” de que Goethe procurava se afastar. A peça Os

salteadores é vista como um produto “estranho”, de forma “selvagem”, que

recebia aplauso em toda parte, aparecendo como uma realização diametralmente

oposta aos esforços em busca de uma arte bela e serena como a contemplada na

Itália.180

A leitura de Dom Carlos (1787), uma peça bem menos “selvagem”, não

amenizou a impressão inicial a ponto de favorecer as tentativas de aproximação de

Goethe e Schiller empreendidas por amigos em comum. Além disso, o primeiro

ensaio de Schiller que trata diretamente de questões kantianas, “Sobre graça e

dignidade” (1793), contribuiu ainda mais para manter a distância, revelando o

abismo que separava os seus modos de pensar. Segundo a crítica de Goethe no

texto de 1817, o acolhimento da filosofia de Kant tinha levado o autor do ensaio a

reduzir a natureza, considerando-a apenas “em aspectos empíricos da natureza

humana”, em vez de “contemplá-la como algo independente, pleno de vida das

profundezas até o âmbito mais elevado”. A crítica se volta contra a subjetividade

do pensamento abstrato, em nome de uma visão naturalista, que orientava o

pensamento de Goethe não só em sua produção poética, mas sobretudo em seus

estudos científicos.

Schiller, por sua vez, criticava Goethe por sua postura naturalista,

identificada mesmo antes do retorno da Itália no modo de pensar do seu círculo de

seguidores em Weimar. Numa carta a seu amigo Körner de 12 de agosto de 1787,

em visita à cidade, ele observa:

O espírito de Goethe moldou todos os homens que fazem parte de seu círculo. Um orgulhoso desprezo filosófico por toda especulação e investigação, com um attachment à natureza que chega às raias da afetação, e uma confiança nos cinco sentidos, em resumo, uma certa simplicidade

180 “Feliz acontecimento” [Glückliches Ereignis]. GOETHE. Goethe Werke, Sechster Band, Vermischte Schriften. Op. cit., p. 168-172.

207

infantil da razão diz respeito a ele e a todo o seu séquito. Então é preferível procurar ervas ou praticar a mineralogia a se perder em demonstrações vazias. A idéia pode ser muito saudável, mas também se pode exagerar muito.

Já em novembro de 1789, após o retorno de Goethe da Itália e a mudança

de Schiller para Jena, este narra a seu amigo Körner um encontro no qual tinha

havido uma conversa sobre Kant – cuja Crítica do juízo seria publicada apenas no

ano seguinte. Schiller comenta a maneira como seu interlocutor “envolve” tudo o

que lê “numa roupagem própria” e o reproduz de modo “surpreendente”, antes de

concluir que, “para ele, toda a filosofia é subjetivista”. Numa declaração que

remete às observações feitas dois anos antes a respeito do círculo de Weimar, ele

afirma também que não aprecia muito a filosofia de Goethe, porque ela se baseia

exclusivamente no mundo dos sentidos. Mesmo assim, a breve avaliação da

conversa termina em tom elogioso: “Mas seu espírito age e pesquisa em todas as

direções, esforçando-se para construir um todo, e isso o torna um grande

homem...”.181

Segundo Goethe, ainda no ensaio de 1817 sobre o encontro com Schiller,

levando em conta as diferenças na maneira de pensar de cada um deles era

impossível imaginar que pudesse haver uma união, porque se tratava de “dois

antípodas intelectuais”. Mas, curiosamente, foram as pesquisas naturalistas sobre

a metamorfose das plantas que, anos mais tarde, proporcionaram a ocasião para

pôr fim aos desentendimentos. Dois fatores contribuíram para que fosse possível

uma maior aproximação: o fato de Schiller ser casado desde 1790 com Charlotte

von Legenfeld, conhecida e estimada por Goethe, e a revista literária As Horas,

cujo projeto levou Schiller a escrever de Jena para o “Senhor Conselheiro

Secreto” de Weimar, em junho de 1794. 181 Trechos citados a partir da introdução de Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller, Op. cit., p. 5 e p. 10.

208

Pouco mais de um mês depois dessa primeira carta inteiramente formal,

em 20 de julho de 1794, ocorreu o tal “feliz acontecimento” a que Goethe se

refere em seu texto: por acaso, ou talvez por iniciativa de Schiller, os dois

escritores se encontraram numa reunião da sociedade de pesquisas naturalistas

recém-fundada em Jena e, na saída, iniciaram uma conversa sobre o assunto

abordado na reunião. Esse diálogo, narrado por Goethe em seu texto de 1817,

ficaria célebre, não só por ter sido apontado como o início da amizade, mas por

expressar de modo emblemático as posições dos dois interlocutores. A primeira

observação de Schiller remete, no fundo, às críticas anteriores de parte a parte

acerca da concepção de natureza por uma ótica especulativa e subjetiva ou por

uma ótica excessivamente baseada na experiência sensível. Na saída da reunião,

ele observa que um modo de considerar a natureza em seus aspectos

fragmentários não pode agradar ao leigo interessado no assunto, ao que Goethe

responde, segundo sua própria versão, que “podia existir outro modo de

considerar a natureza, não em seus aspectos isolados e fragmentários, mas como

algo de atuante e vivente, na busca de apresentá-la como uma totalidade que se

esforça por se manifestar em suas várias partes”. Essa definição está inteiramente

de acordo com o propósito do autor em A metamorfose das plantas, seu estudo de

botânica publicado em 1790.

O problema que Schiller via na definição desse outro modo de considerar a

natureza, ainda segundo a versão de seu interlocutor, era justamente o de saber se

ele podia ser deduzido a partir da experiência sensível. Goethe conta:

Chegando à sua casa, a conversa me atraiu e me fez entrar; então descrevi animadamente a metamorfose das plantas e fiz surgir diante de seus olhos, com alguns exemplos desenhados a bico de pena, uma planta simbólica. Ele ouviu e observou tudo com grande interesse e com muita

209

simpatia, mas, quando terminei, sacudiu a cabeça e disse: ‘isso não é uma experiência, é uma idéia’.182

Essa frase de Schiller, como nota o próprio narrador, evidencia o ponto de

divergência entre os dois escritores, porque remete à concepção kantiana da

natureza exposta no ensaio “Graça e dignidade” e criticada por Goethe como um

tratamento desrespeitoso, em função do subjetivismo da filosofia. Na verdade, o

ponto de divergência que separa os dois modos de pensar é exatamente o abismo,

na filosofia de Kant, entre o âmbito sensível e o racional. Mas Goethe controlou a

sua “antiga irritação” e respondeu: “É muito agradável para mim ter idéias sem o

saber e até mesmo vê-las com meus próprios olhos”. Assim, a controvérsia que se

seguiu a essas duas afirmações opunha basicamente o realismo de um dos

interlocutores às refutações kantianas de uma possível correspondência entre uma

idéia e uma experiência sensível.

Segundo a narrativa, numa pausa da conversa, após muita luta, os dois

ainda se consideravam invencíveis, e nenhum podia julgar que tinha imposto sua

perspectiva. No entanto, começava a ser apontada a conciliação que resultou na

longa troca de cartas e na intensa colaboração entre eles no decorrer de mais de

dez anos de relações. Goethe prometeu os artigos para a revista As Horas e

Schiller escreveu em agosto de 1794, no aniversário de Goethe, uma carta que

retoma o tema dessa discussão de modo favorável a seu interlocutor. Por exemplo,

quando ele diz, em tom elogioso, “o senhor procura o essencial na natureza, mas

procura pelo caminho mais difícil...”, ou, em seguida, “o senhor concentra toda a

natureza, a fim de receber uma luz de cada elemento; na totalidade dos fenômenos

dela o senhor procura a explicação para o indivíduo”. Fica indicado, assim, aquele

outro modo de considerar a natureza mencionado por Goethe na narração do

182 GOETHE. “Feliz acontecimento”, em: Op. cit., p. 171.

210

encontro como uma busca de apresentá-la em sua totalidade que se esforça para se

manifestar em cada uma de suas partes. A ponte entre o particular e o geral, o

indivíduo e a totalidade, constitui a via de superação das divergências entre os

dois interlocutores. Schiller parece indicar a possibilidade de união que não foi

alcançada na conversa anterior.

Essa consideração da carta de aniversário, que constitui também um dos

pontos de partida para a teoria sobre o poeta ingênuo e o sentimental,

desenvolvida nos anos seguintes pelo autor, revela uma possibilidade de

comunicação entre perspectivas que pareciam antagônicas: “o que dificilmente se

pode saber (porque o gênio é para si mesmo o segredo maior) é a bela

concordância do instinto filosófico com os mais puros resultados da razão

especulativa”. Se, em termos gerais, a conciliação se refere ao gênio intuitivo e ao

especulativo, em termos específicos, ou pessoais, ela está relacionada ao encontro

dos dois escritores que representam tais gêneros e à perspectiva de uma

colaboração que de fato aconteceria a partir daquela época. Como resumiu o

próprio Schiller no início de sua carta seguinte: “os trilhos tão diferentes sobre os

quais íamos só puderam levar-nos a um encontro profícuo justamente neste

momento, e não antes”. A essa afirmação, inteiramente de acordo com a

perspectiva de Goethe sobre o “feliz acontecimento”, ele acrescenta que agora tem

esperança de que os dois possam trilhar juntos o caminho restante, anunciando o

projeto comum formulado nas cartas e nas revistas durante os anos seguintes.

211

2. Caminhos para uma mesma meta

A reflexão constitui a base da criação artística de Schiller, como afirma Goethe

numa conversa de 1823 relatada por Eckermann: “Schiller não podia proceder

com inconsciência por assim dizer instintiva; tinha antes de refletir sobre tudo o

que fazia...”, por isso não conseguia deixar de discutir detalhadamente cada um

dos seus projetos artísticos antes de realizá-los. Esse procedimento é criticado por

Eckermann, para quem a orientação filosófica de Schiller tinha prejudicado sua

poesia, porque ele “foi levado a considerar mais alta a idéia do que a natureza e

até a destruir a natureza por causa da idéia”. E Goethe concorda com a crítica,

afirmando que era triste ver um homem excepcionalmente talentoso se preocupar

com pensamentos “que de nada lhe servem”.183

O comentário feito nessa conversa ilustra muito bem a diferença no

procedimento de Goethe e Schiller como poetas. A princípio, foi justamente essa

diferença na maneira de pensar a relação entre arte e natureza que manteve os dois

escritores à distância, mesmo quando moravam em cidades vizinhas, mas ela não

impediu sua aproximação a partir do encontro em Jena e da carta de aniversário.

No entanto, no período de colaboração e diálogo, a diferença se fazia notar na

tentativa, por parte de cada um deles, de entender a maneira de pensar do outro,

seja para criticá-la e defender sua própria posição, seja para indicar uma meta em

comum, perseguida por caminhos divergentes.

Curiosamente, quando Schiller escreve a seu amigo Körner, em setembro

de 1794, a respeito daquela conversa narrada por Goethe no texto de 1817, ele

designa um tema muito diverso do mencionado por seu interlocutor, mais de

acordo com seus questionamentos estéticos. Ele conta que os dois tiveram uma

183 ECKERMANN. Conversações com Goethe. Op. cit., p. 41 (14/11/1823).

212

longa conversa “sobre arte e teoria da arte”, na qual manifestaram as principais

idéias a que chegaram, encontrando uma “concordância inesperada” entre essas

idéias provenientes de pontos de vista diversos.184 Assim, se para Goethe a

conversa teve como tema a natureza e expôs uma divergência, para Schiller o

tema foi a arte e o que se mostrou foi uma concordância, com a qual se preparava

o terreno para o debate posterior nas cartas trocadas pelos dois escritores.

Goethe, por sua vez, embora ressalte o ponto de divergência da conversa,

também confessa no texto de 1817 que, pouco a pouco, suas disposições

filosóficas começariam a se desenvolver no decurso da sua relação com Schiller.

Essa mudança de perspectiva o levaria a admitir mais tarde uma certa filiação

insuspeitada com a própria filosofia kantiana. Nas Conversações com Eckermann,

em 11 de abril de 1827, ele chega a afirmar que a Metamorfose das plantas,

embora escrita sem um conhecimento profundo da obra de Kant, estava

totalmente no espírito da doutrina do filósofo.185

Com essa afirmação bastante enigmática, Goethe aponta uma aproximação

do campo especulativo, reavaliando a sua posição da época das primeiras

conversas com Schiller, quando se mostrava como um crítico da filosofia

kantiana. Não que ele tenha abandonado sua base realista por uma filosofia que

antes condenava por diminuir a natureza e por ser subjetivista. Mas Goethe deixa

de lado a resistência caracterizada na primeira conversa e nas observações de

Schiller a Körner, quando passa a reconhecer no próprio filósofo a quem dirigia

suas críticas e cuja influência sobre Schiller lhe parecia perigosa uma concepção

184 Ver Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller. Op. cit., p. 14-15. 185 Ver CASSIRER, Ernst. Rousseau, Kant, Goethe. Deux essais. Paris, Belin, 1991, p. 95. Ernst Cassirer cita essa declaração em seu ensaio sobre “Goethe e a filosofia kantiana”, como um “enigma”, que no entanto pode ser esclarecido com referência à “crítica do juízo teleológico”, na Crítica do juízo, a partir de uma indicação de Goethe em “Einwirkung der neueren Philosophie” [“Influência da filosofia mais recente”].

213

de natureza semelhante à de seus escritos naturalistas. Com isso, ele indica que

mesmo aquela contradição aparentemente insolúvel na maneira de pensar a

natureza, na discussão de um kantiano e um naturalista, pode ser solucionada.

No entanto, se as afirmações do texto de 1817 e das Conversações com

Eckermann indicam o reconhecimento de uma possível “vitória” do saber

especulativo, ou pelo menos uma aceitação da filosofia kantiana por parte de seu

crítico realista, Schiller apontava nas cartas o caminho oposto. Para ele, era o lado

intuitivo, ligado à criação poética, que precisava de algum modo se impor ao

especulativo, ligado à filosofia. Principalmente nos primeiros anos da

correspondência, no período em que Schiller voltava a se dedicar à dramaturgia

após um longo intervalo, encontram-se algumas observações esclarecedoras sobre

essa relação entre a especulação filosófica e a arte. Em suas palavras, escritas na

carta a Goethe de 31 de agosto de 1794, impunha-se a tentativa de alcançar um

equilíbrio, “para que não surja o poeta quando se deveria filosofar, nem o filósofo

no momento de fazer poesia”. Desenvolvendo esse argumento, numa espécie de

autocrítica do gênio especulativo, o autor se classifica ainda como alguém que

oscila “num modo híbrido entre o conceito e a intuição, entre a regra e o

sentimento”, para logo em seguida constatar o risco decorrente dessa condição:

“acontece-me com bastante freqüência que a imaginação atrapalhe as minhas

abstrações e o frio entendimento atrapalhe a minha literatura”. 186

Na mesma carta em que se encontram essas palavras sobre a filosofia e a

poesia, há também uma comparação direta entre o espírito de Goethe, que tinha

sido o tema da correspondência anterior, e o de Schiller, ressaltando as limitações

186 Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller. Op. cit., p. 43. Ver Goethe e Schiller - Companheiros de Viagem, São Paulo, Nova Alexandria, 1993, p. 29.

214

do pensamento impostas pelo caráter especulativo, diante da amplitude do gênio

poético que ele descrevera.

Como a minha esfera de pensamentos é menor, talvez eu o percorra mais depressa e com mais freqüência, e exatamente por isso talvez possa utilizar melhor meu pequeno patrimônio para produzir, com a forma, uma diversidade que falta ao conteúdo. O senhor se esforça para simplificar seu grande mundo de idéias, enquanto eu procuro variedade para as minhas pequenas posses. O senhor tem um império para governar, eu só tenho uma família de conceitos bastante numerosa, que gostaria de aumentar para ter um pequeno mundo.

Essa comparação remete à carta de aniversário, na qual a identificação

entre os dois escritores estava ligada à possibilidade de conciliar o espírito

intuitivo e o espírito especulativo, com relação à meta a que os dois visam na

criação poética. Schiller reconhecia que o espírito intuitivo só tem a ver com

indivíduos, e o especulativo, só com gêneros. Mas argumentava que, “se o

intuitivo é genial, e se procura no que é empírico o caráter da necessidade, ele

então produzirá sempre indivíduos, mas com o caráter do gênero”. O problema era

discutir os caminhos diversos que podiam levar a uma convergência, de modo

que, se o espírito intuitivo “genial” é capaz de produzir indivíduos com o caráter

do gênero, o espírito especulativo também tem a possibilidade de estabelecer uma

relação de síntese entre o domínio particular e o universal. Se ele “é genial e se

não perde a experiência, na medida em que se destaca dela, então produzirá

sempre somente gêneros, mas com a possibilidade da vida e com funda relação

para com objetos reais”. Esse caminho do geral para o particular tem relação com

a maneira, descrita por Goethe no ensaio de 1789 como uma etapa intermediária

entre a simples imitação da natureza e o estilo, uma etapa na qual o artista se

afasta da natureza para formular uma linguagem própria e expressar suas

impressões subjetivas. No ensaio também se reconhece a possibilidade de um

desenvolvimento da maneira até o ponto de realizar uma síntese, voltando-se para

215

os objetos, e se tornar estilo. Já na carta, o trabalho do gênio especulativo seria o

de dar vida e forma concreta às suas idéias, enquanto o gênio intuitivo procura

dar, aos seus indivíduos ou objetos, um significado geral.

Em janeiro de 1795, Schiller retoma o tema da relação entre filosofia e

poesia, ao qual estava vinculada desde o início sua reflexão sobre o poeta-filósofo

especulativo e o poeta intuitivo, na comparação entre seu modo de pensar e o

modo intuitivo de Goethe. Além de declarar a sua grande admiração pelo caráter

não especulativo da obra de seu interlocutor, ele escreve que “toda a natureza só é

síntese e toda a filosofia é antítese”. Depois conclui a carta com a constatação de

que “o poeta é o único homem verdadeiro, e o melhor filósofo não passa de uma

caricatura dele”.187 Nessas frases, é como se Schiller assumisse a posição que, na

conversa daquele encontro que marcou o início de sua relação de amizade,

caracterizava o seu antagonista como um crítico do saber filosófico.

Assim como Goethe procurou alcançar um equilíbrio em relação ao seu

posicionamento realista de 1794, intuitivo e contrário à especulação,

reconhecendo o desenvolvimento de suas “disposições filosóficas”, Schiller

aponta a busca da conciliação no sentido oposto. O próprio Goethe reconhece essa

busca, em carta de 6 de outubro de 1795, ao fazer comentários elogiosos a

respeito dos poemas lidos por seu interlocutor em voz alta numa visita recente.

Esses poemas manifestam, segundo o elogio, um “perfeito equilíbrio” da mistura

peculiar de intuições e abstrações presente na natureza de Schiller.188 Em resposta,

o poeta afirma:

A partir de certa experiência, tenho para mim que só a rígida determinação das idéias proporciona leveza. Até então pensava o contrário e temia o rigor e a rigidez. De fato, agora estou satisfeito de não ter me aborrecido por tomar um caminho árduo, que muitas vezes

187 Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller. Op. cit., p. 81 188 Ibidem. Op. cit., p. 143.

216

considerei prejudicial para a fantasia poética. Mas claro que essa atividade exige muito esforço, pois, se o filósofo pode deixar descansar sua capacidade de imaginação, e o poeta, sua capacidade de abstração, eu preciso, nesse tipo de criações, conservar sempre as duas forças em igual intensidade…189

Em grande parte para esclarecer e tentar resolver essas questões suscitadas

pelo encontro com Goethe, Schiller começava a escrever nessa época um ensaio

sobre o poeta ingênuo, que mais tarde seria incluído no livro Poesia ingênua e

sentimental (1796), uma das suas obras teóricas mais importantes e influentes.

Nela, as distinções entre o espírito intuitivo e o especulativo se elaboram no

contexto mais amplo de uma teoria sobre os modos fundamentais da criação

poética, o que inclui tanto uma reflexão acerca do antigo e do moderno, quanto

uma consideração dos gêneros artísticos.

3. A via de Goethe

No ensaio “Simples imitação da natureza, maneira, estilo”, analisado no capítulo

anterior, Goethe procura mostrar três relações distintas do artista com seu objeto,

a primeira presa às exigências da forma exterior objetiva, a segunda condicionada

pela expressão subjetiva e a terceira, a mais elevada, uma possibilidade de integrar

o conhecimento objetivo da natureza à expressão da visão característica do artista.

Esse conceito de uma síntese do lado objetivo e do lado subjetivo da expressão

artística, ligado à concepção do estilo, também remete a um outro elemento

fundamental na teoria da arte de Goethe: a definição de símbolo. O que está em

questão, nesse conceito, é a distinção entre a expressão do particular e a do

universal, pela qual se pode explicar a diferença entre a objetividade da simples

imitação da natureza e o conhecimento objetivo que caracteriza o estilo. Uma

189 Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller. Op. cit., p. 146. Ver Goethe e Schiller - Companheiros de Viagem, Op. cit., p. 46. Carta de 16 de outubro de 1795.

217

cópia da aparência de um objeto resulta numa obra tão particular quanto o próprio

objeto copiado, enquanto o caminho mais elevado de imitação conduz a uma obra

“simbólica”, a algo de particular que significa um universal. Em outras palavras,

quando o artista é capaz de, em vez de apenas imitar a forma exterior, dar

expressão ao que é essencial no objeto com base no conhecimento da sua

natureza, o conceito universal está contido na obra de arte particular.

Goethe remete a essa concepção no primeiro ano de suas conversas com

Eckermann, quando estava preocupado em dar a seu novo discípulo algumas

lições a respeito da criação poética, aconselhando-o a buscar temas circunstanciais

e particulares, em vez de se dedicar a uma grande obra que trabalhasse uma idéia

geral. Segundo o relato, o escritor afirma que “...a compreensão e explicação do

que é particular é a verdadeira vida da arte”, por isso “enquanto nos ocupamos só

do que é geral, qualquer um nos pode imitar; mas no particular ninguém nos

imita”.190 Na coletânea das Máximas e reflexões, encontram-se declarações mais

diretas de Goethe sobre esse tema, inclusive uma definição muito precisa,

segundo a qual “o geral e o particular coincidem: o particular é o geral

manifestando-se sob diferentes circunstâncias”.191

Para o autor, o que a arte busca é justamente essa identificação entre o

domínio do particular e o domínio do geral, dando expressão assim ao

conhecimento que orientava também suas investigações científicas. Lukács indica

essa relação entre a estética e a ciência em seu texto “O problema estético do

particular no Iluminismo e em Goethe”.192 Embora tenha o propósito de discutir

as questões do materialismo e da dialética, no contexto de uma “estética

190 ECKERMANN. Conversações com Goethe. Op. cit., p. 31 (29/10/1823). 191 GOETHE. Máximas e reflexões – Obras escolhidas v. 5. Lisboa, Relógio d’água, 2000, p. 126 (máxima 491). 192 Em: LUKÁCS, Georg. Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970.

218

marxista”, o texto esclarece também alguns aspectos específicos do modo de

pensar de Goethe, pois Lukács procura demonstrar a articulação entre as duas

atividades do escritor, a poesia e a ciência, a partir de suas próprias definições. A

relação entre particular e geral aparece, assim, ligada em primeiro lugar à questão

do conhecimento científico, mais especificamente à concepção de fenômeno

originário [Urphänomen].

Em A metamorfose das plantas, investiga-se o fenômeno originário da

botânica: a planta original [Urpflanze], concebida como um arquétipo, uma

primeira forma da qual se derivam todas as formas vegetais. É essa concepção de

base que orienta também a Doutrina das cores, estudo científico do fenômeno

cromático originário, segundo um procedimento que tem a intenção abrangente de

decifrar a “linguagem” da natureza.193 Em seu “Prefácio”, o autor afirma que a

natureza fala consigo mesma e conosco por meio de milhares de fenômenos, mas

essa linguagem, por mais variada e confusa que nos possa parecer, tem elementos

que permanecem sempre os mesmos. Em meio à enorme variedade dos

fenômenos visuais, Goethe pretende identificar o fenômeno originário da cor a

partir da concepção do encontro de uma luz interna e de uma luz externa,

contrariando a ótica newtoniana. Ele indica em sua teoria, muito questionada no

campo da ciência logo depois da publicação do livro, aplicações a diversos tipos

de saber, da filosofia e da física à pintura e às técnicas de fabricação.

Segundo Lukács, o propósito dessas investigações científicas tem

implicações filosóficas importantes, ressaltadas por Hegel, em carta ao autor da

Doutrina das cores, com a exclamação: “Seja-me permitido agora falar a Vossa

Excelência também do interesse particular que possui, para nós filósofos, um

193 GOETHE. Doutrina das cores. São Paulo, Nova Alexandria, 1993, p. 36.

219

fenômeno originário, de tal modo que possamos empregar este resultado a serviço

da filosofia!”. O próprio Goethe tinha consciência dessas implicações, ligadas à

sua leitura da Crítica do juízo de Kant, já que escreveu num pequeno texto de

1820 sobre o juízo e a intuição:

Se eu anteriormente, de um modo inconsciente e por um impulso interno, encaminhei-me infatigavelmente na busca daquele modelo originário, na busca do típico, se me foi inclusive possível construir uma representação conforme à natureza, nada podia me impedir de enfrentar corajosamente a aventura da razão, como a chama o velho de Königsberg.194

Para Lukács, a pretensão de Goethe era tornar cientificamente cognoscível

o que, em Kant, não pode ser conhecido. Esse esforço de decifrar os fenômenos

originários da natureza, a partir de uma intuição da totalidade, visa a estabelecer

uma ligação entre o universal e o particular numa via que se opõe ao saber

especulativo. O ponto de partida não é o conceito abstrato, mas o particular

determinado em que se mostra o típico, o arquétipo, ou seja, o conceito geral. Nas

investigações científicas sobre as cores ou sobre as plantas, o ponto de partida é a

variedade dos fenômenos naturais, tal como ela se apresenta à experiência

sensível. O conhecimento comparativo adquirido pela observação desses

fenômenos leva à intuição da totalidade, pela qual os fenômenos podem ser

ordenados, compreendidos e mostrados como derivações de um mesmo elemento

mais essencial.

A mesma concepção da essência dos fenômenos e do conhecimento da

natureza, na qual se estabelece uma ligação entre o universal e o particular, orienta

a teoria estética de Goethe, como indica Lukács, citando a máxima: “O belo é uma

manifestação de leis secretas da natureza, que permaneceriam eternamente ocultas

194 Ver GOETHE. “Anschauende Urteilskraft”. Vermischte Schriften. Op. cit., p. 434. O trecho é citado em LUKÁCS. Introdução a uma estética marxista. Op. cit., p. 128. A frase de Hegel mencionada antes é citada no mesmo texto, p. 135.

220

para nós se não aparecessem”. Outra máxima que pode ser citada neste contexto,

em referência à idéia de decifrar a linguagem da natureza, é: “A arte é mediadora

do inexprimível...”195 Walter Benjamin também indica a afinidade entre

investigação científica e arte, ao afirmar em seu estudo sobre o conceito de crítica

no Romantismo: “Abarcar a idéia da natureza e, deste modo, torná-la apta a ser

arquétipo da arte (a ser puro conteúdo), este era, em última análise, o esforço de

Goethe em sua averiguação dos fenômenos originários”.196

Na teoria da arte de Goethe, a relação entre o particular e o universal é

pensada segundo a noção de símbolo, definida nas Máximas e reflexões. Essa

definição de símbolo em contraposição à alegoria influenciou de modo marcante a

teoria estética posterior, como por exemplo no caso de Lukács, que retoma o

conceito goethiano de símbolo, ou no de Benjamin, que valoriza a noção de

alegoria. Segundo a definição de Goethe:

Há uma grande diferença entre o poeta procurar o particular para chegar ao geral e contemplar o geral no particular. No primeiro procedimento temos uma alegoria e o particular serve apenas como exemplo, como caso exemplar do geral. Mas na segunda situação estamos de fato diante da natureza da poesia. Ela dá expressão a um particular sem pensar no geral e sem apontar diretamente para ele. Quem for capaz de apreender esse particular como coisa viva dispõe ao mesmo tempo do geral, mesmo sem disso ter consciência ou só chegando a tê-la mais tarde.197

Assim, o que diferencia o símbolo da alegoria é justamente a discrição, o

modo indireto como se estabelece a ligação entre algo de particular e algo de

universal, o que levou o autor a criticar obras por serem alegóricas, ou seja, por

remeterem de modo ostensivo e direto a conceitos gerais, usando os objetos

apenas como exemplos representativos desses conceitos. Schiller é criticado por

195 A primeira é citada em Trecho citado em LUKÁCS. Introdução a uma estética marxista. Op. cit., p. 133. A segunda se encontra em GOETHE. Máximas e reflexões – Obras escolhidas v. 5. Op. cit., p. 184 (máxima 729). 196 BENJAMIN. “A teoria da arte primeiro romântica e Goethe”. Em: O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão. São Paulo, Iluminuras, 1999, p. 116. 197 GOETHE. Máximas e reflexões – Obras escolhidas v. 5. Op. cit., p. 189 (máxima 751).

221

esse procedimento na conversa com Eckermann de 14 de novembro de 1823. O

símbolo expressa um particular “sem pensar no universal e sem apontar

diretamente para a ele”, de modo que quem compreende esse particular vivamente

apreende ao mesmo tempo, ainda que não tenha consciência disso, o universal. A

falta de consciência ou de intencionalidade da ligação que se estabelece dá, à obra

simbólica, a naturalidade e a objetividade reivindicadas pelo autor, fazendo da arte

uma “mediadora do inexprimível”. Neste sentido, a arte pode tratar de conteúdos

gerais sem se tornar vazia ou abstrata, como o subjetivismo filosófico ou o artista

maneirista criticado no ensaio sobre o estilo, porque a idéia mais geral está

presente sem abrir mão da particularidade e da concretude.

É possível estabelecer uma relação entre o conceito de símbolo e o

conceito de estilo, pois ambos procuram definir o ponto máximo da arte. Se o

estilo aparece como uma síntese do lado subjetivo e do objetivo na criação

artística, em seu nível mais elevado, o símbolo se apresenta como a síntese mais

significativa de particular e universal, na arte que atinge seu ápice. O primeiro

termo diz respeito ao artista e à sua formação, o segundo, à obra e à sua

significação. A relação entre eles pode ser estabelecida com base na noção de

conhecimento da natureza que, para Goethe, define a elaboração do estilo. É como

se o artista, ao estudar e conhecer profundamente a natureza, aprendesse a ver o

universal no particular, tornando-se capaz de expressar essa relação porque

domina os meios de sua arte e possui uma linguagem única para isso. Assim, a

objetividade, no nível do estilo, ganha um caráter simbólico, revelando o

conhecimento de que “cada um dos momentos que passa são de um valor

222

incomensurável, porque são os representantes de toda uma eternidade”, como o

velho artista Goethe declarou a Eckermann.198

É importante observar também que aquela máxima na qual a diferença

entre símbolo e alegoria é definida começa justamente com uma referência a

Schiller, indicando que os modos de relacionar o particular e o geral na poesia

caracterizam o procedimento de cada um dos escritores. “A minha relação com

Schiller fundamentava-se no fato de haver em nós um claro direcionamento para

um mesmo fim”, escreveu Goethe. Esse fim será esclarecido a seguir como a

ligação entre particular e universal, buscada pelos dois escritores. “A nossa

atividade conjunta baseava-se na diversidade dos meios com que cada um de nós

se esforçava para atingir esse fim”. Essa diferença, por sua vez, diz respeito ao

procedimento simbólico defendido por Goethe e ao alegórico, que caracteriza a

poesia de seu antigo colaborador.

A crítica ao subjetivismo e à especulação abstrata que marcou desde o

início a postura de Goethe pode ser entendida, assim, no campo da criação

artística, como uma crítica ao procedimento alegórico. Tomar um particular

apenas como exemplo de um universal ou, em outras palavras, apresentar um

objeto, um tema, como exemplo de uma idéia seria a característica de uma poesia

ligada ao pensamento especulativo. Nesse caso, os objetos naturais particulares

com que o poeta trabalha não são um ponto de partida, mas um meio de expressão

dos conteúdos subjetivos. O procedimento simbólico constitui uma outra relação

entre o particular e o geral, a partir da diversidade dos objetos naturais que

manifestam em sua particularidade a totalidade da natureza.

198 ECKERMANN. Conversações com Goethe. Op. cit., p. 35 (3-11-1823).

223

Pela articulação entre a noção de fenômeno originário, definida no campo

das ciências naturais, e a teoria estética, o caráter simbólico da arte pode ser

compreendido como a expressão de um conhecimento da essência dos objetos

particulares. Esses objetos, quando apresentados pelo poeta na obra de arte

simbólica, não são exemplos de idéias, mas remetem a uma noção dos arquétipos,

do desenvolvimento que está por trás da aparência exterior, como acontece com o

Laocoonte, segundo a interpretação de Goethe. No ensaio sobre a escultura, além

de aproximar arte e natureza, (“Uma autêntica obra de arte, como uma obra da

natureza, sempre ultrapassa infinitamente nosso entendimento...”) o autor procura

mostrar como a obra de arte constitui um todo orgânico, autônomo, em que a

composição particular alcançada pelo artista, com base no conhecimento do objeto

e no domínio dos meios de expressão, apresenta o patético em sua plenitude.

Segundo Goethe, numa interpretação dos detalhes, das particularidades, dos

recursos artísticos, o Laocoonte revela de modo ideal todos os sentimentos

humanos diante do sofrimento (a compaixão, o medo e o terror) justamente por

sua perfeição objetiva. Em outras palavras, trata-se de uma obra de arte simbólica,

um “modelo de simetria e variedade, de calma e de movimento, de oposições e

gradações sutis”, no qual se expressa plenamente algo de universal: o sofrimento

humano e a relação do homem com o sofrimento.

4. O pensamento especulativo de Schiller

4.1. A carta de aniversário

Uma das primeiras cartas incluídas na correspondência que marcou o Classicismo

de Weimar pode ser considerada como o ponto de partida para a reflexão

elaborada depois no ensaio Poesia ingênua e sentimental. Schiller escreve a

224

Goethe em agosto de 1794, pouco tempo depois do início da aproximação entre os

dois escritores, e procura expor os fundamentos dessa aproximação a partir de

considerações sobre a maneira como tinha acompanhado, desde muito tempo, o

caminho seguido por seu interlocutor. Ele descreve o “curso do espírito” de

Goethe:

Se fosse grego, ou mesmo italiano, e desde o berço fosse cercado de uma natureza privilegiada e uma arte idealizadora, o seu caminho seria infinitamente menor, talvez até supérfluo. Já na primeira observação das coisas o senhor teria apreendido a forma do que é essencial, e com as suas primeiras experiências o grande estilo se teria desenvolvido no senhor. Mas, como nasceu alemão, como seu espírito grego foi lançado na criação nórdica, só lhe restou uma alternativa: ou tornar-se um artista do norte ou dar à sua imaginação, com o auxílio da força do pensamento, aquilo de que a realidade a privou e assim engendrar uma Grécia, por assim dizer a partir do interior e por uma via racional.199

Nessa carta, Schiller procura, por comparação, demonstrar a influência que

seu interlocutor tinha sobre seu próprio pensamento, referindo-se ao “olhar

observador, que repousa tão tranqüilo e limpo sobre todas as coisas”. Ele

considera a impressão que as idéias de seu interlocutor lhe causavam uma visão

que tinha “acendido”, de súbito, uma luz inesperada sobre algumas coisas com as

quais não podia estar de acordo antes. Em termos comparativos, o autor da carta

se apresenta como um representante da filosofia e do saber especulativo, diante de

seu interlocutor que é descrito como “gênio”, de acordo com o elogio: “espíritos

como o seu raramente sabem até onde são impelidos e quão poucos motivos têm

para utilizar a filosofia, a qual só tem a aprender com eles”.

A descrição da carta remete à concepção kantiana do “gênio” exposta na

Crítica do juízo, livro que Schiller tinha se dedicado a estudar nos anos

precedentes. A carta descreve Goethe como um desses artistas geniais que,

199 Carta de 23 de agosto de 1794. GOETHE E SCHILLER.. Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller. Frankfurt, Insel, 1977, p. 34. Ver: Companheiros de Viagem. São Paulo, Nova Alexandria, 1993, p. 24

225

segundo a sua própria natureza e o modelo dos antigos, definem as regras da arte.

Mas ele retoma também uma questão característica do pensamento de Herder, já

que pensa em termos da especificidade do “grego” e do “alemão”. Se Goethe já

tinha considerado Winckelmann, em seu ensaio sobre o autor das Reflexões, como

um “espírito grego” nascido na época moderna, aqui é a ele que se atribui tal

espírito, mas a mesma atribuição ganha um sentido diferente. Essa indicação de

um caráter histórico e nacional específico, que situa a produção artística em

função de suas condições de surgimento, modifica a comparação entre o antigo e

o moderno. É nesse sentido que as palavras de Schiller podem ser consideradas

como uma interpretação e uma reapropriação do projeto classicista de

Winckelmann.

A afirmação de que Goethe foi capaz de “engendrar uma Grécia” pode se

referir tanto especificamente à Ifigênia, peça que o autor da carta admirava e cuja

leitura marcou seu interesse pelo mundo grego, quanto à fase clássica de Goethe

em termos mais gerais. Em todo caso, nessa consideração sobre o artista moderno

que recria a Grécia por um caminho racional, fica indicada a realização artística

do projeto de uma imitação dos antigos que, em vez de apenas copiar o aspecto

interior das obras de arte, recria o ideal de beleza grego a partir de um

procedimento racional, moderno. Assim, na comparação das condições específicas

de surgimento da arte, presente na construção do argumento “se fosse grego...”,

“mas por ser alemão”, indica-se o princípio de imitação dos antigos como “única

via para nos tornarmos inimitáveis”.

Justamente por ter um espírito grego sem ter nascido sob o céu grego,

Goethe pode ser um gênio que, mesmo ao estudar os antigos e tomá-los como

parâmetro, segue a sua própria natureza e não fica preso às regras da arte. Em

226

outras palavras, ele poderia ter seguido o caminho de síntese do belo na natureza,

de criação da beleza ideal a partir da observação da beleza natural, caso tivesse

crescido diante do esplendor da natureza mediterrânea e da arte antiga. Mas,

justamente por ser privado dessa natureza bela e jogado sob o céu nórdico, o seu

gênio foi levado a criar por via racional uma obra grandiosa, única e inimitável,

condicionada pelas circunstâncias de sua época. Mas é na Grécia que o gênio

enxerga o ideal de beleza com o qual se identifica e que deve ser recriado em sua

obra moderna. Schiller reconhece uma contradição entre o gênio artístico e a

época moderna, que seria discutida pelo próprio Goethe no ensaio de 1818 sobre

antigo e moderno, mas indica a necessidade de um esforço de superação genial: “o

senhor teve trabalho a mais, pois da maneira como passou da visão à abstração,

teve de transpor de volta conceitos em intuições e transformar idéias em

sentimentos, pois só através deles o gênio pode produzir”.

Como se o poeta fosse forçado, pela disparidade entre a sua realidade

pobre e a riqueza de seu espírito, a dar à sua obra enraizada na cultura alemã, no

clima e no ambiente nórdico, toda a beleza que seu olhar sabe descobrir sob a

orientação dos antigos. Assim, a noção forjada por Winckelmann de uma Grécia

antiga perfeita, equilibrada, em torno do ideal apolíneo de nobre simplicidade e

calma grandeza, pode estar presente na obra e na vida de Goethe, em seu olhar

tranqüilo e limpo sobre todas as coisas. De acordo com a interpretação que fica

indicada na carta de Schiller, em vez de copiar os antigos, o poeta aprende com

eles esse ideal de beleza para “engendrar uma Grécia” em sua obra alemã.

Tanto a relação entre a obra de Goethe e a Antigüidade quanto a questão

da exemplaridade dos gregos foram discutidas no livro Poesia ingênua e

sentimental. Nesse longo ensaio sobre a poesia, Schiller procura esclarecer sua

227

teoria a respeito da imitação dos antigos, articulando a defesa da poesia moderna

ao Classicismo. Ele também pretende fundamentar o seu próprio modo de fazer

poesia, em comparação com o modo genial de Goethe, descrito na carta de

aniversário.

4.2. O ingênuo e o sentimental

4.2.1. Conteúdo histórico

A reflexão sobre os antigos e os modernos, presente na sexta e na décima quinta

das Cartas sobre a educação estética do homem, foi retomada em Poesia ingênua

e sentimental não para elaborar uma teoria do belo artístico, como no ensaio

anterior, mas para definir dois modos de criação poética que caracterizam, por um

lado, o antigo e o moderno, e por outro lado a poesia de Goethe e a de Schiller.

Assim, a distinção entre ingênuo e sentimental tem tanto um aspecto histórico

quanto um aspecto estilístico e pessoal, que pode ser posto em evidência pela

comparação com a carta de aniversário. Mas isso não significa que o autor tenha

abandonado a base kantiana de suas reflexões estéticas, pois a questão do abismo

entre o mundo racional e o mundo natural, assim como a busca de um ideal de

equilíbrio entre os dois lados da existência humana ainda são as preocupações

fundamentais dessa reflexão estética. Como afirma Szondi, em “O ingênuo é o

sentimental”, “o ensaio Poesia ingênua e sentimental tem assim uma tripla

origem: os trabalhos poéticos de Schiller, sua tentativa de fundar, face a Goethe,

seu próprio ‘modo de criação poética’, e a retomada dos princípios kantianos”.200

A “tripla origem” diz respeito, em primeiro lugar, a uma dimensão

artística, ligada às questões do autor naquele momento decisivo que antecedeu sua

200 SZONDI. “Das Naive ist das Sentimentalische”. Schriften II. Frankfurt, Suhrkamp, 1996, p. 70.

228

retomada da criação poética, após anos de dedicação à teoria da arte. Em segundo

lugar, trata-se de uma dimensão que parece se restringir a motivações pessoais,

mas que ultrapassa o nível mais imediato dessas motivações, porque a rivalidade

entre Goethe e Schiller ganha uma grande complexidade tanto na sua elaboração

teórica, quanto no desdobramento da obra de cada um deles durante o período de

colaboração. Em terceiro lugar, há uma continuidade com todo o desenvolvimento

da teoria da arte de Schiller, elaborada em seus ensaios e cartas anteriores a partir

da filosofia de Kant, especificamente da Crítica do juízo.

Com essa indicação da origem, Szondi não pretende deixar de lado a

questão dos antigos e dos modernos, uma das dimensões mais importantes do

livro, mas apenas mostrar os pontos de partida que levam o autor a refletir sobre o

problema histórico. Justamente a discussão deste problema constitui uma das

questões que orientam a análise do ensaísta, como indica o título das conferências

de 1970 que serviram de base para o seu ensaio “O ingênuo é o sentimental”:

“Antigos e modernos na estética da época de Goethe”. Nas duas seções sobre

Schiller incluídas nessas conferências, são elaborados os temas centrais do ensaio,

especialmente a questão de saber se os conceitos de “ingênuo” e “sentimental”

têm ou não um conteúdo histórico. Pela associação desses dois conceitos aos de

“clássico” e “romântico”, consagrados a partir da obra de Friedrich Schlegel como

uma oposição fundamental na história da arte (que marcou por exemplo a

literatura francesa do século XIX), a resposta seria evidentemente afirmativa. É o

próprio Goethe quem faz essa associação, ao declarar a Eckermann em 21 de

março de 1830, décadas após o falecimento de Schiller:

O conceito de poesia clássica e de poesia romântica, que hoje corre o mundo e tantas discussões provoca, veio originalmente de mim e de Schiller. Eu seguia na poesia a máxima objetividade e não queria aceitar nenhuma outra. Mas Schiller, que via tudo subjetivamente, considerava a

229

sua atitude a única justa e, para se defender contra mim, escreveu o ensaio acerca da poesia ingênua e da poesia sentimental. Demonstrava que eu, contra a minha própria vontade, continuava a ser romântico, e que a minha Ifigênia, por causa do predomínio que nela tem o sentimento, não era de modo algum clássica, ao gosto antigo, como se poderia supor. Os Schlegel se apoderaram da idéia e a lançaram, a ponto que hoje toda a gente fala de Classicismo e de Romantismo, quando há cinqüenta anos ninguém se lembrava de tal.201

Além de estabelecer a associação dos conceitos schillerianos com a

oposição conceitual entre clássico e romântico, decisiva para todo o

desdobramento do movimento romântico (basta lembrar as definições de Stendhal

em seu texto sobre Shakespeare de 1823, ou o conflito entre Victor Hugo e o

teatro clássico francês em 1830), nessa passagem Goethe dá a sua interpretação do

propósito de seu antigo interlocutor. Segundo ele, Schiller escreveu o ensaio para

se defender contra a exigência de objetividade, em nome de sua visão subjetiva

das coisas, a fim de mostrar que mesmo no poeta “objetivo” moderno, ao tratar de

um tema antigo (a Ifigênia), predominava o “sentimento”. Trata-se certamente de

uma das dimensões mais importantes do ensaio, fundamental para a sua

compreensão, mas é preciso levar em conta também outras dimensões.

Szondi questiona a identificação do par conceitual “clássico-romântico”

como o par “ingênuo-sentimental”, aceita por muitos intérpretes. René Welleck,

por exemplo, autor da História da crítica literária 1750-1830 citada na

conferência sobre o antigo e o moderno, considerava a distinção de Schlegel uma

nova formulação, modificada, da teoria schilleriana.202 Essa associação direta é

questionável exatamente porque os conceitos de Schlegel se referem a épocas

históricas, enquanto os de Schiller, mesmo que façam referência aos antigos e aos

modernos, caracterizam sobretudo modos de criação poética. O próprio autor

201 ECKERMANN. Conversações com Goethe. Op. cit., p. 240, 241. 202 SZONDI. “Antike und moderne in der Ästhetik der Goethezeit”. Poetik und Geschichtsphilosophie I: Op. cit., p. 150.

230

considerou necessário chamar a atenção para esse fato numa nota de Poesia

ingênua e sentimental:

Talvez não seja supérfluo lembrar que, se aqui os poetas modernos são opostos aos antigos, a diferença não deve ser entendida como diferença de época, mas também como diferença de maneira. Também nos tempos modernos temos poesias ingênuas em todas as classes, embora não mais da espécie inteiramente pura, e não faltam poetas sentimentais entre os antigos poetas latinos, e mesmo entre os poetas gregos. Não apenas no mesmo poeta, também na mesma obra amiúde se encontram ambos os gêneros unidos, como, por exemplo, nos Sofrimentos de Werther, e tais produtos sempre causarão o maior efeito.203

Não é à toa que a obra citada como exemplo seja de Goethe, já que o

ingênuo diz respeito no ensaio tanto ao “antigo”, para caracterizar o mundo grego,

quanto a vários autores modernos, entre os quais o autor do Werther é o ponto de

referência fundamental. Assim, a nota de Schiller pretende esclarecer uma

imprecisão terminológica que se evidencia ao longo do livro, composto pela

reunião de três artigos publicados na revista As Horas em 1795 e 1796, Do

ingênuo, Os poetas sentimentais e Conclusão do ensaio sobre os poetas ingênuos

e sentimentais. Ao indicar essa imprecisão, Szondi chega a falar de um “labirinto

terminológico”, no qual o conceito de ingênuo designa ora os objetos e as ações

que despertam o interesse do homem moderno que contempla a natureza, ora a

poesia de Goethe, ora a Antigüidade; enquanto o sentimental define a cultura

moderna, mas também está presente como modo poético entre romanos e gregos.

Szondi procura a saída desse labirinto por meio de uma reflexão sobre a dialética

conceitual do tratado schilleriano. Seu primeiro passo é desvincular os conceitos

de ingênuo e sentimental da associação direta aos conceitos de clássico e

romântico elaborados no Romantismo, embora reconheça a influência de uma

distinção sobre a outra.

203 SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental. Op. cit., p. 61.

231

A importância de Poesia ingênua e sentimental sobre a estética posterior é

apontada desde o início das conferências de Szondi como um fato amplamente

conhecido. Welleck, por exemplo, afirmava que a teoria de Schiller se tornou a

fonte de toda a crítica literária alemã posterior e que seu método foi seguido, em

forma alterada, tanto pelos irmãos Schlegel quanto por Schelling e Solger. E dizia

ainda: “Por intermédio de Coleridge, ele chegou à Inglaterra. Seu ponto mais alto

foi alcançado na obra de Hegel, que por sua vez influenciou muitos críticos do

final do século XIX...”.204 Thomas Mann também considerava o livro de Schiller

“o ensaio alemão, no qual toda a ensaística alemã possível estava contida de uma

vez”, já que a estética alemã do século XIX girou em torno da oposição entre

espírito e natureza e da tentativa de resolver essa oposição.205

Para Szondi, era importante decidir se havia em Schiller uma estética

histórica, porque a historização da teoria da arte constitui, na sua concepção, a

característica decisiva de uma ruptura com a poética tradicional, baseada em

Aristóteles e predominante até o século XVIII. Enquanto as poéticas normativas

de base aristotélica classificam os gêneros como conteúdos atemporais, cujas leis

podem ser definidas e seguidas em qualquer época, as poéticas filosóficas de

Schelling e Hegel compreendem os gêneros em seu condicionamento histórico e

são integradas a uma estética filosófica. Schiller se vincula, por um lado, a Kant e

à filosofia iluminista, e por outro lado é reconhecido por Hegel como um

precursor. Seguindo a filosofia kantiana, quando Schiller pensa a história, volta-se

para o futuro da humanidade, em vez de fazer uma filosofia da história que

acompanha o desenvolvimento das épocas no passado. Szondi ressalta essa

204 WELLECK, René. Geschichte der Literaturkritik 1750-1830, Darmstadt-Berlin-Neuwied, 1959, p. 236. 205 MANN, Thomas. “Ist Schiller noch lebendig?”. Leiden und Grösse der Meister. Op. cit., p. 452.

232

tendência ao chamar a atenção para o fato de que Schiller não era um discípulo de

Herder, mas de Kant. No entanto, na distinção entre o ingênuo e o sentimental

existe uma dimensão histórica, ligada à comparação entre antigos e modernos e à

definição dos gêneros poéticos. Por isso, a posição de Schiller parece

especialmente paradoxal no que diz respeito à questão dos antigos e dos

modernos.

A tentativa de entender esse paradoxo passa pela definição dos conceitos

de ingênuo e sentimental, de acordo com as diferentes dimensões que eles ganham

no ensaio. Assim, o ingênuo deve ser analisado não só em relação à natureza e aos

antigos, como também em relação a Goethe e, mais amplamente, como um modo

de criação poética. O sentimental, por sua vez, deve ser analisado tanto em relação

à cultura e aos modernos, como também na caracterização do modo de criação

poética moderna ligado à obra de Schiller. Na dimensão histórica, encontra-se a

identificação com os conceitos de clássico e romântico que definem a época

antiga e a moderna. Na dimensão estilística e pessoal, a comparação com a carta

de aniversário evidencia a tentativa de fundamentar teoricamente a solução da

rivalidade com Goethe, defendendo assim o procedimento especulativo, reflexivo,

e a tendência filosófica à abstração que constituía um problema para o autor do

ensaio.

4.2.2. Os termos

No início de Poesia ingênua e sentimental, o ingênuo é definido em três níveis: o

do objeto, o da maneira de agir e o da poesia. Assim, em primeiro lugar trata-se

do objeto ingênuo e do interesse que ele desperta “em nós”, sendo a primeira

pessoa do plural usada para caracterizar a perspectiva moderna chamada depois de

233

sentimental. O autor constata “uma espécie de amor e comovente respeito à

natureza”, tanto no âmbito das coisas naturais, como plantas, animais, minerais e

paisagens, quanto no âmbito da natureza humana, nas crianças, nos “costumes da

gente do campo”, no “mundo primitivo”. Com esse último exemplo, começa a se

delinear a questão histórica que será abordada mais adiante, já que Schiller parece

igualar, no conceito de ingênuo, as paisagens naturais e os “monumentos de

tempos antigos”, ou os “produtos da Antigüidade remota”. A definição do

conceito de ingênuo tem como ponto de partida a constatação desse sentimento de

amor e respeito que é despertado, no homem moderno refinado e sensível, quando

ele é surpreendido pela visão da natureza simples em meio a relações e situações

artificiais. Tal interesse ocorre apenas sob duas condições: a de que o objeto seja

natureza e a de que ele seja ingênuo, isto é, a de que “a natureza esteja em

contraste com a arte e a envergonhe”.206

A elaboração do conceito de ingênuo nesse primeiro momento retoma os

princípios kantianos da teoria estética anterior de Schiller. Como nas Cartas,

identifica-se no homem moderno uma cisão entre o mundo natural e o cultural ou

racional, e o que se busca é a possibilidade de restabelecer a ligação entre os dois

mundos separados. É nesse sentido que se pode entender a afirmação segundo a

qual amamos na natureza ingênua não os objetos, mas a idéia exposta por eles.

Trata-se da idéia de uma autonomia, do tranqüilo atuar por si mesmos, da unidade

e da necessidade, portanto daquilo que o homem moderno perdeu. Por ser

determinado por todas as convenções do mundo cultural e incapaz de um gesto

espontâneo, por seguir leis morais, o homem moderno se comove com os objetos

em que vê representadas a força pura e livre da natureza, a integridade e a

206 SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental. Op. cit., p. 43.

234

infinitude. Assim, o que define o ingênuo é uma vitória da natureza sobre a arte,

entendendo-se arte aqui no sentido de um caráter artificial que predomina na

modernidade.

Os objetos ingênuos são natureza: “são o que nós fomos; são o que

devemos vir a ser de novo.” A natureza é definida aqui por sua autonomia: a

subsistência das coisas por si mesmas, a existência segundo leis próprias e

imutáveis. Assim, o que se defende não é a imitação artificial das formas naturais,

porque o interesse em tais objetos diz respeito ao fato de serem espontâneos,

expondo uma idéia contrária às limitações impostas pela artificialidade do mundo

moral. O que esses objetos são é o que deve ser buscado como ideal. “Fomos

natureza como eles, e nossa cultura deve nos reconduzir à natureza pelo caminho

da razão e da liberdade.” Para usar uma metáfora recorrente no ensaio, eles são

“expressões de nossa infância perdida, que para sempre permanece aquilo que nos

é mais precioso; por isso, enchem-nos de uma certa melancolia”.207

Como que para reforçar a metáfora da “infância perdida”, Schiller dá como

exemplo de objeto ingênuo a criança, na qual se expõe para nós a espontaneidade

e a “determinabilidade ilimitada” diante da qual a determinação do homem adulto

aparece como uma limitação. É com esse exemplo que o autor procura esclarecer

o segundo nível do conceito de ingênuo, quando ele não diz respeito aos objetos,

mas ao modo de agir e pensar. Neste segundo momento, o autor define como

ingênua a ação de uma criança que, ao ouvir a explicação de que a pobreza é a

causa do estado precário de um homem, pega a bolsa do pai e a entrega ao pobre.

Essa ação estaria perfeitamente certa caso a natureza saudável predominasse no

mundo social, caso a questão da pobreza pudesse ser remediada de maneira

207 Ibidem, p. 48.

235

imediata, só que a desigualdade social não deriva de condições naturais. No

mundo social, a ação é “vergonhosa”, porque demonstra uma falta de

conhecimento das regras estabelecidas, por outro lado seu caráter espontâneo, ou

seja, sua ingenuidade pode despertar no pai uma satisfação respeitosa em que se

expõe a idéia de um mundo natural harmonioso. Schiller dá ainda outros

exemplos a esse respeito, a fim de analisar ações e atitudes ingênuas, mas o

exemplo e a metáfora da criança são os mais usados no início do ensaio, porque

“nossa infância é a única natureza intacta que ainda encontramos na humanidade

cultivada”.208

Num terceiro momento, o ensaio sobre o ingênuo se volta para a questão

da poesia, retomando a noção de gênio como alguém que não segue as regras da

arte e, orientado pela natureza ou pelo instinto, seguindo inspirações e

sentimentos, cria novas regras. Para o autor, “todo verdadeiro gênio tem de ser

ingênuo, ou não é gênio”.209 Sua reflexão sobre esse tema dialoga tanto com a

terceira crítica kantiana, quanto com Lessing e com toda a teoria que, no Sturm

und Drang, fundamentou a valorização de Shakespeare sobre o Classicismo. Não

é à toa que, ao discutir o gênio na arte antiga e na moderna, é justamente a leitura

do dramaturgo inglês que Schiller comenta, em comparação com suas primeiras

impressões a respeito de Homero. Assim, é na reflexão sobre o ingênuo na poesia

que se evidencia, nessa primeira parte do livro, a questão dos antigos e dos

modernos. Por trás dela se pode identificar uma retomada, em novo contexto, da

defesa da arte moderna e da discussão sobre o modelo clássico, temas que

definem a relação do autor com o Classicismo. Também é na discussão sobre os

208 Ibidem, p. 55. 209 Ibidem, p. 51.

236

gregos e os modernos que começa a ser definido, de maneira mais direta, o

conceito de sentimental.

Os poetas são pensados por Schiller como guardiões da natureza, de modo

que, quando a sua relação imediata com a natureza é abalada, quando

experimentam a influência de formas arbitrárias, de uma cultura artificial,

precisam recuperar essa relação. Em outras palavras, ou os poetas são natureza

(caso do gênio ingênuo, que cria movido por um dom natural, sem refletir), ou

buscam a natureza perdida. “Daí nascem duas maneiras de criar completamente

distintas, mediante as quais se esgota e mede todo o domínio da poesia”. Assim, o

sentimental se define em oposição ao ingênuo, sem remeter apenas à distinção de

épocas, mas também à distinção de modos que podem coexistir na mesma época e

que terão seu sentido analisado especialmente na situação histórica do próprio

Schiller. Em suas palavras: “Todos os que realmente são poetas pertencerão ou

aos ingênuos ou aos sentimentais, conforme seja constituída a época em que

florescem ou conforme condições acidentais exerçam influência sobre a formação

geral ou sobre a disposição momentânea de suas mentes”.210

Para Schiller, os poetas ingênuos já não estão em seu lugar numa época

artificial do mundo, como a moderna, por isso é a poesia sentimental que se impõe

na modernidade a quem pretende realizar a tarefa de “guardião da natureza”. Em

outras palavras, mesmo na época do homem artificial, inserido na cultura que não

tem mais naturalidade, é a natureza que alimenta o espírito poético, exigindo uma

busca da harmonia perdida. Por isso, para que haja poesia, é preciso que a

unidade, a relação de harmonia com a natureza identificada no modelo do passado

humano, apareça como um ideal. Essa constatação de que o momento histórico se

210 Ibidem, p. 55.

237

caracteriza pela artificialidade está na base tanto da comparação entre antigos e

modernos, quanto da reflexão de Schiller sobre os modos poéticos existentes em

sua época.

4.2.3. Labirinto terminológico

Como indica Szondi em sua análise, existe uma ambigüidade na definição de

ingênuo e sentimental. Schiller não pretende opor duas instâncias, para

demonstrar a superioridade de uma sobre outra, como poderia dar a entender a

dimensão histórica dessa reflexão. Os dois conceitos são definidos na primeira

parte do ensaio um em função do outro, o que deixa clara a sua interdependência.

O ingênuo só se revela como ingênuo aos olhos do homem moderno, isto é, sob a

ótica do sentimental, que justamente por sua condição artificial se interessa pela

natureza e ama a idéia exposta por objetos e ações naturais. Assim, o sentimental

busca, por sua vez, justamente o que o ingênuo é (natureza), assumindo como

ideal aquilo que constitui no outro uma situação de fato. No resumo de sua

argumentação, feita no que era originalmente o início do segundo artigo publicado

em As Horas, Schiller afirma: “A natureza também agora é a única chama de que

se alimenta o espírito poético; somente dela extrai todo o seu poder e somente

para ela fala, mesmo no homem artificial inserido na cultura”.211 Assim, se

ingênuo e sentimental definem as épocas antiga e moderna, é como modos

característicos de se relacionar com a natureza.

Identifica-se um modo natural, ou seja, espontâneo, harmonioso, no qual o

indivíduo age moralmente de acordo com suas inclinações, e um modo artificial,

fragmentado, no qual as inclinações se encontram em conflito com as leis morais.

211 SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental, p. 60.

238

Aquele primeiro modo caracteriza a “bela natureza” dos gregos, esse povo que

“podia viver com a natureza livre sob seu céu feliz”, numa consideração que

retoma a noção winckelmanniana do “céu grego” e do ideal de beleza da

Antigüidade. Schiller observa como estavam próximos “da natureza simples seu

modo de representar, sua maneira de sentir, seus costumes, e que reprodução fiel

dela são suas obras poéticas”.212 Já a relação artificial com a natureza diz respeito

aos modernos, mencionados em primeira pessoa do plural: “cindidos de nós

mesmos e infelizes em nossa experiência de humanidade”. Por isso, aos olhos do

homem moderno, o modo de ser natural dos gregos é ingênuo, ou seja, ele

representa uma vitória da natureza sobre a cultura, despertando assim um amor

carregado de nostalgia. Trata-se do mesmo processo exemplificado pela infância

em relação ao homem adulto.

Schiller não pretende defender a superioridade dos antigos, mas procura

entender a questão da sua exemplaridade no contexto de uma justificativa da

poesia moderna. Para ele, o interesse pela perfeição da Antigüidade pode muito

bem levar a um elogio de sua arte em detrimento da arte moderna, como no

Classicismo da vertente “antiga” na Querelle francesa, ou mesmo nas Reflexões

de Winckelmann. “Por isso, ou não se deveria de modo algum comparar poetas

antigos e modernos – ingênuos e sentimentais –, ou só se deveria compará-los sob

um conceito mais alto comum a ambos”, o conceito de poesia.213 Nesse caso, o

resultado da reflexão sobre antigos e modernos segundo os termos ingênuo e

sentimental possibilita um questionamento do modelo antigo, sem levar ao seu

abandono. A cultura moderna não deve ser vista como inferior à antiga, mesmo

212 Ibidem, p. 55. 213 Ibidem, p. 62.

239

que a tenha como modelo de perfeição e de harmonia, justamente porque o que ela

busca não é restabelecer o padrão antigo, a forma antiga.

Essa reflexão sobre o modelo grego remete mais uma vez, segundo a

indicação de Szondi, à relação com a natureza e, com isso, à questão da imitação.

Neste sentido, o ensaio Poesia ingênua e sentimental pode ser entendido como a

justificativa teórica da posição de Schiller a respeito do Classicismo. Basicamente,

essa posição se fundamenta numa crítica da noção de uma volta ao passado, tanto

no caso de um retorno à natureza nos moldes de Rousseau, quanto no caso de um

retorno ao modelo grego nos moldes do Neoclassicismo, baseado em

Winckelmann. O estado natural, com o qual se identifica a harmonia dos gregos

com a natureza, ficou para trás e não pode ser restabelecido. Querer voltar a ele

seria um desejo semelhante ao do adulto querendo voltar a ser criança. Na

descrição do “amigo sentimental” que contempla a “tranqüila felicidade da

natureza”, Schiller chama a atenção para o fato de que as queixas contra a cultura

se dirigem às suas falhas, mas devem levar em conta as conquistas culturais para a

liberdade humana. Na natureza, o homem não é livre, ele está submetido às

necessidades naturais, limitado por suas imposições. Por isso, o autor afirma:

“Aquela natureza que invejas no irracional não é digna de nenhum respeito nem

de nenhuma nostalgia. Ela permanece atrás de ti, tem de permanecer sempre atrás

de ti”. A perda da felicidade na natureza é uma condição para a liberdade na

cultura.

Para Szondi, é como se Schiller quisesse “dar um fim às queixas e

devaneios do promeneur solitaire [de Rousseau] e lhe pusesse nas mãos, em lugar

240

do lenço molhado de lágrimas, um exemplar da Crítica da Razão prática”.214 É

com base na filosofia de Kant que Schiller defende a cultura moderna, apesar de

todas as suas falhas, em nome da razão e da liberdade. Mas tanto a infância quanto

a Antigüidade despertam um interesse, um sentimento de respeito mesclado com

nostalgia, porque têm aos olhos do adulto ou do homem moderno um caráter

ingênuo, no qual se encontra representado o que a humanidade perdeu ao se

afastar da natureza. Por isso, o autor recomenda ainda: “Mas se estás consolado da

perda da felicidade da natureza, deixa que a perfeição desta sirva de modelo para

o seu coração”.215 É assim que ele introduz a sua consideração sobre os gregos,

pensados como modelos de perfeição (ingênua) que devem acender “a chama do

ideal”.

A poesia ingênua e antiga é designada como um favor da natureza, para

ressaltar tanto a ausência da reflexão, quanto o seu caráter fortuito, encerrado nos

limites da sensibilidade. É por sua própria natureza que o gênio ingênuo dá plena

expressão à humanidade, não por liberdade, de modo que ele está sujeito à

necessidade natural e depende inteiramente da experiência. Sem um mundo rico

em formas, sem um mundo poético de harmonia com a natureza, a tarefa do poeta

ingênuo se torna impossível. Já a poesia sentimental tem, ao seu auxílio, “a

liberdade incondicionada da razão”, de modo que não depende da experiência

para criar, mas da reflexão contemplativa que se volta para fora e, assim, busca a

natureza. Irremediavelmente separado da natureza, o poeta sentimental tem de

completar o seu objeto, dar a ele a plenitude que lhe falta, por isso transporta-se

“de um estado limitado a um estado de liberdade”. Sua tarefa, assim como a do

214 SZONDI. “Antike und moderne in der Ästhetik der Goethezeit”, em Poetik und Geschichtsphilosophie I: Op. cit., p. 157. A mesma frase é usada no ensaio “Das Naive ist das Sentimentalische” [“O ingênuo é o sentimental”]. Schriften II, Op. cit., p. 75-76. 215 SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental, p. 54.

241

poeta ingênuo, é expressar a plenitude da natureza humana. Mas, no mundo

moderno cultural e artificial, não faz sentido a noção de retorno à natureza, já que

a própria intenção tem uma base artificial. Em vez de buscar o restabelecimento

do ingênuo, o que o homem moderno deve buscar é o ideal de uma harmonia que

o ingênuo representa. Assim, em Poesia ingênua e sentimental, não é o passado

que constitui o ideal, mas o futuro.

No entanto, Schiller também não critica o ingênuo em favor do

sentimental, ou o antigo em favor do moderno. Os poetas antigos e modernos só

podem ser comparados segundo um conceito mais alto comum a ambos: o próprio

conceito de poesia, como gênero a que tanto o ingênuo quanto o sentimental

pertencem. O que o ensaio defende é a existência de uma vantagem em cada

modalidade, como argumenta o resumo que originalmente introduzia o terceiro

artigo publicado em As Horas, no qual se conclui a reflexão elaborada nos dois

primeiros. “Ao poeta ingênuo, a natureza concedeu o favor de sempre atuar como

uma unidade indivisa, de ser a cada momento um todo autônomo e acabado, e de

expor a humanidade na realidade segundo seu conceito inteiro”. Assim, o

primeiro modo de criação poética se define por um favor da natureza, um dom

natural de harmonia entre o lado sensível e o racional. Comparativamente, o poeta

sentimental é dotado de um “vivo impulso para restabelecer por si mesmo aquela

unidade nele suprimida por abstração, a fim de tornar a humanidade completa em

si mesmo, passando de um estado limitado a um infinito”.216

Segundo Schiller, a tarefa da poesia, comum ao poeta ingênuo e ao

sentimental, é a de dar expressão plena à natureza humana. Nesse caso, há uma

vantagem do poeta ingênuo por apresentar como real, com perfeição, essa

216 SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental, Op. cit., p. 88.

242

natureza que o poeta sentimental apenas se empenha em alcançar como ideal. Por

outro lado, “toda realidade permanece aquém do ideal”, porque tudo o que existe

tem seus limites, mas o pensamento é ilimitado, de modo que o poeta sentimental

tem a grande vantagem de ter uma “tarefa infinita”. Assim, a caracterização das

duas espécies poéticas é pensada com base na noção de “limitação” e “infinito”,

ligada à identificação de duas vias para realizar a tarefa de “dar à humanidade a

sua expressão mais completa possível”. Pela via da unidade e da harmonia com a

natureza, “o que tem de construir o poeta é a imitação mais completa possível do

real”; pela via de uma busca da idéia de harmonia, “o que tem de construir o poeta

é a elevação da realidade ao ideal”.217 Em termos comparativos, a primeira via

caracteriza os antigos, e a segunda, os modernos. Quanto à realização da tarefa, a

vantagem é da poesia antiga, ingênua, que chega ao ponto de perfeição na

imitação do real. Quanto à meta a ser atingida, a vantagem é da poesia moderna,

sentimental, que busca o ideal infinito de uma harmonia com a natureza a partir da

cultura, a partir da liberdade.

Em carta a Humbolt de dezembro de 1795, período em que trabalhava no

terceiro artigo incluído em Poesia ingênua e sentimental, Schiller esclarece a

questão da superioridade do modo sentimental ou do ingênuo, dependendo do

parâmetro de comparação. “Pelo conceito”, a poesia sentimental é o ponto

máximo (a caminho de um ideal não alcançado), mas “pela realidade” a poesia

ingênua é mais poética, por ter realmente alcançado um conceito menos

elevado.218 Nessa carta, o autor associa a noção de conceito menos elevado à

perfeição de Homero, como um “ideal sensível” produzido pela abstração de

experiências determinadas. Com isso, ele aceita a noção de um ideal de beleza da

217 Ibidem, p. 61. 218 Ibidem, p. 138.

243

arte grega, defendida por Winckelmann em suas Reflexões, relativizando o uso do

termo “ideal” que, em seu ensaio, é reservado em muitas passagens apenas para a

poesia moderna. Assim, apenas o “ideal absoluto”, produzido pela abstração de

toda experiência e fora do mundo sensível, se restringe à busca do poeta

sentimental na modernidade.

Com base nas noções de limitação e de infinito, Schiller defende no ensaio

a superioridade dos antigos em relação aos modernos nas artes plásticas.

Retomando o argumento de Lessing a respeito da fronteira entre as artes, ele

explica a diferença relativa ao valor que as artes plásticas e a poesia modernas

têm, em comparação com essas mesmas artes na Antigüidade. Nas obras espaciais

da pintura e da escultura, voltadas para o sentido da visão, a perfeição diz respeito

justamente ao caráter determinado das formas, à limitação que caracteriza o modo

ingênuo; já na poesia, que se dirige à imaginação, pode haver uma obra-prima de

caráter ilimitado, sentimental. Se, nas artes plásticas, a perfeição do limitado

evidencia a superioridade dos antigos, na poesia os antigos só têm vantagem

quanto ao que pode ser exposto sensivelmente, o “corpóreo”, mas os modernos

possuem a superioridade na exposição das idéias e do “espírito”. Szondi chama a

atenção para a importância dessa atribuição de diferentes artes a diferentes épocas,

noção que foi retomada tanto por Friedrich Schlegel quanto por Hegel. Há, nessa

atribuição, o reconhecimento de um caráter histórico das artes, ou de seu

condicionamento histórico de acordo com as épocas em que são elaboradas.219

Quanto a essa dimensão histórica, embora associe ingênuo a antigo e

sentimental a moderno em muitos momentos de seu ensaio, Schiller admite a

existência de poetas ingênuos na modernidade e de poetas sentimentais na

219 Ver SZONDI. “O ingênuo é o sentimental”. Schriften II, Op. cit., p. 81-82.

244

Antigüidade. Tal fato parece contradizer a definição dos conceitos principais do

ensaio, caso se pretenda entendê-los simplesmente como conceitos que se referem

a épocas históricas. Por exemplo, como poderia haver poetas sentimentais no

mundo antigo, definido pela relação harmônica com a natureza? Questões como

essa indicam que a dimensão histórica de Poesia ingênua e sentimental só pode

ser compreendida, com suas contradições, se for submetida à dimensão de uma

análise dos modos de criação poética.

Na dimensão poetológica, em que se desenvolve uma crítica literária, a

questão é pensar como a poesia ingênua pode e deve aparecer no mundo moderno

essencialmente sentimental. Mesmo assim, não há uma defesa unilateral de um

dos modos de fazer poético, como sendo o mais adequado à sua época. Tanto o

puro ingênuo quanto o puro sentimental se mostram problemáticos na reflexão de

Schiller, quando ele analisa e critica as criações poéticas modernas. Uma poesia

ingênua pura, negando o caráter de sua época e o afastamento da natureza, não só

é anacrônica, como também não cumpre a própria tarefa da poesia (expressar

plenamente a natureza humana). A tentativa de restabelecer poeticamente o

antigo, de voltar ao homem natural, deixa de ser poesia, pois é feita por um

homem moderno, baseado na cultura artificial. Mas a poesia moderna puramente

sentimental, analisada por exemplo no caso de Klopstock, tende a perder o contato

com a realidade e se tornar excessivamente artificial, ou “extravagante”.

Nesse contexto, o termo “gênio” é usado sem a restrição ao ingênuo que

aparece na primeira parte do ensaio. Ao tratar do poeta sentimental, Schiller se

refere a um gênio poético que corre o risco de suprimir totalmente o conceito de

natureza, em vez de apenas se elevar acima de toda realidade determinada. Ao

deixar de lado as condições impostas pelo próprio conceito da natureza humana,

245

ao deixar a realidade para ascender às idéias, a poesia sentimental se torna

extravagante. A extravagância, risco do poeta sentimental, se opõe ao erro da

indolência, que caracteriza o risco do poeta ingênuo de ficar preso às

determinações do momento, ao particular, e não conseguir criar uma relação com

o geral. O desequilíbrio apontado por Schiller é entre a receptividade e a

espontaneidade, de modo que a falta de espírito, no caso de uma criação poética

puramente receptiva, e a falta de objeto, no caso de uma poesia inteiramente

espontânea, levam por caminhos opostos a um resultado “vazio”. Assim, tanto a

poesia ingênua quanto a sentimental têm seguidores sem vocação, cujos trabalhos

resultam ou em cópias triviais da natureza, ou em produções fantasiosas e

extravagantes.

Para usar os termos da teoria do estilo de Goethe trata-se, de um lado, da

“simples imitação da natureza”, de outro, da “maneira”, da obra “amaneirada” que

resulta da ênfase no gosto do artista e deturpa ou abandona as particularidades dos

objetos. Neste sentido, assim como Goethe vê o estilo como uma síntese do

natural e do artificial, Schiller busca uma união dos dois modos de fazer poesia.

Numa reflexão que retoma os temas do jogo lúdico e da relação entre arte e moral,

discutidos nas Cartas sobre a educação estética do homem, o autor distingue a

“parte laboriosa da humanidade” da “parte contemplativa”, mostrando que a

valorização do trabalho leva à concepção da poesia como recreação, enquanto a

valorização do lado contemplativo reivindica um enobrecimento moral como

tarefa do poeta. Como síntese dos dois modos de ser, ele considera uma classe de

homens “que seja ativa sem trabalhar”, que possa idealizar sem ser extravagante,

“que unifique em si todas as realidades da vida”. Nessa classe se encontrariam

unificados o caráter ingênuo e o sentimental, “de modo que cada um deles

246

preservaria o outro de seu extremo, e se o primeiro protegesse a mente contra a

extravagância, o segundo a salvaguardaria do esmorecimento”.220 Assim, o que

Schiller propõe no terceiro ensaio é a síntese de ingênuo e sentimental, como um

ideal humano a ser alcançado na poesia. Essa noção de síntese fica evidente pela

constatação de que “nem o caráter ingênuo nem o sentimental esgotam por

completo o ideal da bela humanidade, que pode provir apenas da íntima união de

ambos”.

4.2.4. A dimensão estilística e pessoal

É justamente em Goethe que Schiller reconhece explicitamente essa unificação de

ingênuo e sentimental, ao retomar o tema da carta de aniversário e, sem

denominar seu interlocutor, comentar o caso do poeta ingênuo genial que trabalha

com uma matéria sentimental, moderna. No Werther e no Tasso, o “perigoso

caráter do sentimental tornou-se matéria de um poeta no qual a natureza atua de

maneira mais fiel e pura do que em qualquer outro, e talvez seja, entre os poetas

modernos, o que menos se afasta da verdade sensível das coisas”.221

Trata-se aqui da dimensão pessoal e estilística de Poesia ingênua e

sentimental, que se refere à rivalidade de Schiller e Goethe e se revela

especialmente numa comparação com a carta de aniversário. A interpretação

tradicional do ensaio tende a separar os dois autores e atribuir a cada um deles o

conceito apropriado, assim como na carta o autor se caracteriza como

“especulativo” e designa seu interlocutor “intuitivo”. Nesse caso, o poeta ingênuo

Goethe seria oposto ao sentimental Schiller. Mas há uma complexidade no sentido

de cada termo, não só porque eles são pensados em dimensões diferentes, como

220 SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental, p. 101. 221 Ibidem, p. 78.

247

também por sua interdependência. Para Schiller, o gênio ingênuo se impôs a tarefa

de tratar de uma matéria sentimental e a solucionou de uma maneira admirável.

Assim, as obras de Goethe são vistas como exemplos de que a poesia ingênua

pode existir numa época artificial, marcada pelo afastamento da natureza. No livro

todo, este é o único caso mencionado de um poeta ingênuo moderno, da época de

Schiller, capaz de trabalhar uma matéria sentimental. Se a defesa da poesia

moderna, uma das preocupações do autor, depende da demonstração de que não se

pode pretender um retorno à natureza ou um retorno ao modo ingênuo, o exemplo

parece pôr em xeque toda a argumentação histórica do ensaio.

No entanto, não é possível simplesmente considerar Goethe como um

poeta ingênuo, em oposição ao modo que caracteriza a modernidade, senão o

ensaio deveria ser lido como uma crítica e uma condenação do anacronismo de

sua obra. Ao contrário, ele é o poeta que exemplifica o trabalho com uma matéria

sentimental, portanto a possibilidade de uma união dos dois modos poéticos. A

interpretação exposta nas conversações com Eckermann em março de 1830 chama

a atenção para isso, pois Goethe afirma que Schiller demonstrava o predomínio do

sentimento em sua obra e o fato de que, contra a sua própria vontade, ele

continuava a ser “romântico”, mesmo que quisesse ser “clássico”, ao gosto antigo.

Os termos ingênuo e sentimental são substituídos por clássico e romântico, mas

fica evidente a interpretação de que o ensaio procura mostrar não que Goethe era

um poeta ingênuo, mas justamente que ele era um poeta sentimental.

A relação ambígua dos conceitos nessa dimensão estilística e pessoal do

ensaio é ressaltada por Szondi, que procura resolver a questão a partir de uma

nota, incluída no início do que constituía originalmente o terceiro artigo.

Remetendo à tábua das categorias de Kant, essa nota não segue a mesma oposição

248

destacada antes no ensaio, pela qual ingênuo e sentimental apareciam como

termos opostos, tendo como síntese o conceito de “ideal”. Na nota, Schiller afirma

que o contrário da sensibilidade ingênua não é o conceito de sentimental, mas o

“entendimento reflexionante”, de modo que a disposição sentimental aparece

como síntese, como possibilidade de restabelecer o ingênuo “mesmo sob

condições de reflexão”, ou seja, mesmo na época moderna.222 Fica evidente a

ambigüidade, ligada à diferença no significado dos conceitos ao longo do ensaio,

quando se compara essa afirmação com os argumentos do primeiro artigo.

Em todo caso, o exemplo de Goethe é fundamental para a conclusão a

respeito da existência da poesia ingênua na modernidade, em função da crítica ao

anacronismo e à nostalgia dos projetos de retorno ao passado. Segundo a

argumentação desenvolvida após o trecho em que se encontra a nota sobre as três

categorias, o gênio ingênuo depende da experiência, precisa divisar uma natureza

rica em formas, um mundo poético, e sem esse auxílio externo “apenas duas

coisas podem acontecer” ao poeta. A primeira alternativa é: “Se nele o gênero é

preponderante, o gênio poético ingênuo deixa a sua espécie e torna-se sentimental

apenas para ser poético...”. Em outras palavras, se predomina a poesia (gênero), é

preciso que o poeta ingênuo se torne sentimental e abandone a poesia ingênua

(espécie). Senão ele segue o rumo da segunda alternativa: “...se o caráter da

espécie conserva a supremacia, ele deixa o seu gênero e torna-se natureza vulgar

apenas para permanecer natureza”.223 Trata-se, nesse caso, de uma crítica à noção

de retorno à natureza, concebido como um esforço que levaria o poeta a

abandonar a tarefa da própria poesia na modernidade, portanto a deixar de ser

poeta.

222 Ver SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental, Op. cit., p. 88. 223 Ibidem, p. 90.

249

É a primeira alternativa que se refere a Goethe, como o realizador da tarefa

monumental de, sendo um poeta ingênuo nascido numa época sentimental,

realizar uma obra que unifica os dois modos de criação poética. Essa realização é

indicada na carta de aniversário, que considera o autor como um espírito grego

que nasceu alemão, por isso “só lhe restou uma alternativa”. Ele teve de “dar à sua

imaginação, com o auxílio da força do pensamento, aquilo de que a realidade a

privou”, isto é, teve de completar a natureza pobre e fragmentada de sua época e

de sua nação por meio da reflexão. Mas, para Schiller, seu interlocutor não se

torna apenas um poeta sentimental como outros poetas modernos, ele realiza

também uma síntese do modo de criação antiga e a moderna, porque foi capaz de

“engendrar uma Grécia por uma via racional”.

Do mesmo modo que o poeta sentimental busca o ideal de harmonia com a

natureza identificado no ingênuo, porque a sua tarefa é a de ser um “guardião da

natureza”, o poeta ingênuo se torna sentimental para continuar a ser poeta,

alcançando pela reflexão aquilo de que a época o privou. Nesse caso, o ensaio

indica uma meta em comum, a partir de caminhos opostos, ligada ao conceito do

gênero (poesia) no qual os dois conceitos discutidos se incluem. São criticados

tanto o sentimental que se distancia completamente da natureza e se torna

“amaneirado”, quanto o ingênuo que deseja simplesmente voltar à natureza

perdida e, com isso, imita uma natureza pobre a partir de uma relação artificial.

Como demonstram o exemplo de Goethe e a reflexão comparativa sobre os

antigos e os modernos, apenas a íntima união do ingênuo e do sentimental esgota

o ideal de plenitude da natureza humana. Na carta de aniversário já se encontrava

a busca de identificar uma convergência, uma meta em comum, pois o espírito

250

intuitivo produziria indivíduos com o caráter do gênero, e o espírito especulativo,

gêneros profundamente reais e vivos.

Segundo Goethe, o ensaio de Schiller foi escrito para se defender, para

justificar sua posição especulativa e subjetiva diante da exigência de objetividade,

do caráter intuitivo genial de seu interlocutor. E, de fato, o tema da carta de

aniversário, baseado numa consideração do modo de criar dos dois escritores, tem

uma grande importância no ensaio, evidenciada especialmente na observação

sobre o poeta ingênuo numa época sentimental. Assim, o exemplo de Goethe,

ligado à dimensão pessoal e estilística, também é fundamental para a reflexão

histórica sobre antigos e modernos. No final de seu ensaio sobre Poesia ingênua e

sentimental, Szondi chega a dizer: “é da reconstrução da história de uma evolução

artística individual – a vida de Goethe – que nasce uma filosofia histórica da

arte”.224 Essa filosofia da história diz respeito, sobretudo, à posição de Schiller em

relação ao Classicismo.

A possibilidade da poesia ingênua numa época sentimental e, mais ainda, a

possibilidade da recriação de uma Grécia por via racional pode ser considerada

como uma justificativa do Classicismo, no contexto de um questionamento de seu

modelo. Ao mesmo tempo, Schiller condena a noção de volta ao passado e pensa

os antigos como modelos de uma perfeição que deve ser buscada como ideal. Não

se deve voltar a eles, mas buscar o que eles tinham intuitivamente, naturalmente,

pela via da reflexão e da cultura, tarefa que só pode ser realizada no âmbito da

poesia. Neste sentido histórico, a reflexão sobre antigos e modernos em Poesia

ingênua e sentimental constitui uma versão alemã da antiga disputa francesa

discutida na Querelle iniciada no século anterior, mas uma versão em que se

224 SZONDI. “O ingênuo é o sentimental”, Schriften II. Op. cit., p. 105.

251

procura um equilíbrio entre a noção de um modelo dos antigos e a defesa da

poesia moderna. Esse passo de Schiller influenciaria, por sua vez, a concepção de

clássico e romântico que marcou a teoria da arte no Romantismo.

5. A poética dos gêneros

5.1. Schiller e o condicionamento histórico

Em Poesia ingênua e sentimental, com base na distinção entre os termos

principais do ensaio, Schiller analisa os gêneros poéticos modernos, ou

sentimentais: a sátira, a elegia e o idílio. Não se trata de uma classificação formal,

mas de uma reflexão sobre três “estados de sensibilidade” específicos da poesia

sentimental, nos quais o que está em causa é a contradição ou concordância das

idéias com o estado real. A definição dos gêneros pela maneira de sentir se

distingue da maneira tradicional de classificar os gêneros poéticos, como explica a

nota na qual o autor observa que, “na determinação dos gêneros poéticos”, sempre

baseada nos poetas antigos e ingênuos, “é preciso ter em certa conta a poesia

sentimental”. Considerando-a como uma ampliação da verdadeira poesia, seu

afastamento das formas da poesia ingênua põe em cheque a classificação

tradicional dos gêneros, pois “nenhuma espécie de poema permaneceu de todo a

mesma que fora entre os antigos e, sob nomes antigos, amiúde se exercem gêneros

bastante novos”.225

Szondi identifica, nessa consideração de Poesia ingênua e sentimental,

uma recusa da estética tradicional de base aristotélica, segundo a qual a poética se

orienta pela classificação de gêneros atemporais, independentes do

condicionamento histórico. Com isso, Schiller inicia uma “historização” da

225 SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental, Op. cit., p. 84.

252

poética, característica que vai definir mais tarde, em Hegel e na obra dos estetas

do século XX ligados ao filósofo, a concepção dos gêneros na estética moderna.226

Consciente do condicionamento histórico das formas poéticas, Schiller demonstra

a importância de uma reflexão que leve em conta a poesia moderna e a evolução

dos gêneros. Mas isso não significa descartar a poética tradicional, já que no seu

ensaio a poesia ingênua pode ser pensada como um modelo de perfeição, mesmo

que ele critique a simples imitação desse modelo.

Como demonstrará o projeto classicista de Weimar, do qual Schiller

participa, a evolução dos gêneros e a concepção de suas formas modernas só

podem ser pensadas com base no conhecimento da arte dos antigos, da

classificação tradicional e de sua relação com um novo tipo de classificação. E, de

fato, é o estudo dos gêneros poéticos da Antigüidade que orienta, sobretudo em

1797, um ano depois da publicação do terceiro artigo de Poesia ingênua e

sentimental, as discussões de Goethe e Schiller sobre a arte poética nas suas

cartas. Nesse caso, como uma justificativa do Classicismo no contexto de uma

valorização da poesia moderna, a teoria desenvolvida no ensaio sobre o ingênuo e

o sentimental possibilita a integração de um estudo dos antigos ao projeto artístico

do autor, voltado para a elaboração de tragédias modernas. Embora aponte a

necessidade de uma renovação da teoria dos gêneros, Schiller se juntou a Goethe

num projeto que se baseia principalmente na discussão da poética a partir da arte

antiga, a fim de avaliar os possíveis desdobramentos de cada gênero na

modernidade.

226 Ver SZONDI. “O ingênuo é o sentimental”, Schriften II. Op. cit., p. 81.

253

5.2. O estudo dos clássicos

Segundo a introdução à revista Propileus, da qual participaram Goethe e Schiller,

“uma das características mais marcantes da decadência da arte reside na mistura

de seus diferentes gêneros”.227 Por isso, a teoria dos gêneros artísticos é discutida

naquele texto introdutório para esclarecer a lição a ser aprendida no estudo dos

antigos, retomando o propósito de Lessing, que tinha reconhecido anos antes a

necessidade de delimitar as fronteiras entre as artes, já que a confusão entre o

modo de ser da pintura e o da poesia levava a uma avaliação crítica equivocada.

Assim como as artes são aparentadas entre si, mas é preciso ter consciência de

suas fronteiras, os gêneros artísticos tendem a se misturar e até a se fundir, mas “o

dever, o mérito e a dignidade do verdadeiro artista reside no fato de ele separar

dos outros o ramo da arte no qual trabalha, de saber dar autonomia a cada arte e a

cada gênero”.

Goethe, que assina a introdução, considera o artista verdadeiro como um

“legislador”, que se volta para a autonomia da arte, enquanto o artista que segue

apenas a natureza seria incapaz de criar boas obras. Essa argumentação pode ser

considerada como uma crítica dos propósitos do Sturm und Drang, em nome do

ideal clássico de clareza e distinção. Para Goethe, o estudo aprofundado das obras

de arte se destina à formulação de princípios que sevem tanto para a formação do

artista, em sua atividade prática, quanto para o propósito teórico de explicar,

apreciar e julgar essas obras. A crítica teria então uma função educativa, ao lado

de uma função interpretativa, com base num conhecimento minucioso das obras.

Assim, embora os artistas modernos alemães reconheçam a exemplaridade

das obras de arte antigas, nas quais a simplicidade da forma define os gêneros

227 GOETHE, “Introduction aux Propylées”. Op. cit., p. 155.

254

com perfeição, eles não pretendem simplesmente copiar a forma antiga. Seu

interesse é combater a decadência da arte indicada por Goethe, ou seja, a mistura

dos gêneros na modernidade. Nesse caso, a defesa do Classicismo, de um estudo

da arte antiga, visa à formulação de princípios num contexto obscurecido não por

um programa que contesta a exemplaridade dos antigos, mas pela falta de

conhecimento da Antigüidade clássica. Na introdução de Goethe, tanto a reflexão

sobre o aprendizado e a prática da arte quanto a consideração sobre a teoria se

voltam para uma defesa do conhecimento detalhado – “científico” – do objeto a

ser tomado como tema. Considerando-se a própria obra de arte como objeto, no

lugar da natureza estudada pelo artista, é preciso revelar suas diferentes partes,

conhecer suas especificidades, portanto elaborar uma teoria dos gêneros em que a

arte se divide. E essa elaboração, apenas indicada na introdução aos Propileus

como uma necessidade diante da decadência da arte moderna, com base no

modelo antigo, foi justamente o tema central da correspondência entre Goethe e

Schiller. Por isso, só uma análise desse tema nas cartas dos dois escritores pode

esclarecer a importância da teoria dos gêneros para o projeto do Classicismo de

Weimar.

5.3. A correspondência

A partir de 1794, Goethe e Schiller trocaram mais de mil cartas, que tematizam

tanto questões gerais de teoria da arte, quanto detalhes dos projetos literários em

que trabalhavam. Embora a correspondência tenha diminuído muito em volume a

partir de 1799, quando ambos passaram a morar na mesma cidade, a colaboração e

o debate continuaram até a morte de Schiller em 1805. Essas cartas, com suas

considerações sobre a cultura moderna, sobre a classificação dos gêneros poéticos

255

e sobre obras como Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, Fausto e

Wallenstein, são consideradas como um dos principais documentos da teoria do

Classicismo de Weimar. Como afirma Lukács, em seu ensaio incluído no livro

Goethe e sua época: “A profunda e íntima vinculação de uma teoria estética muito

desenvolvida com uma penetração profunda nos detalhes mais refinados da

prática artística é a característica peculiar dessa correspondência”.228

Uma das principais intenções dos dois escritores, especialmente durante

todo o ano de 1797, foi definir os gêneros literários no contexto de uma reflexão

sobre a criação artística moderna. Goethe ressalta a dificuldade resultante dessa

intenção em carta a Schiller de 27 de dezembro de 1797: “Infelizmente, nós

modernos de vez em quando também nascemos poetas e perambulamos

atormentados por todos os gêneros sem saber ao certo onde realmente

estamos...”.229 Levando em conta essa decadência dos modernos e a clareza na

definição dos gêneros na arte antiga, e seguindo o rumo indicado por

Winckelmann e Lessing, Goethe considera o estudo dos autores gregos como a

base para definir os parâmetros a serem seguidos na produção poética moderna.

A Poética de Aristóteles, modelo de toda a tradição de teoria da arte latina

e classicista é considerada, na correspondência, como uma referência para a

discussão acerca dos gêneros. Curiosamente, embora tenha dedicado alguns anos

ao estudo dos autores gregos, Schiller só leu a Poética nessa época, embora

conhecesse seus argumentos por intermédio de Lessing, entre outros. Em carta de

5 de maio de 1797, ele comenta estar muito satisfeito com Aristóteles, a quem

considera “o verdadeiro juiz infernal de todos aqueles que se prendem como

escravos à forma externa e dos que tentam situar-se fora de toda e qualquer

228 LUKÁCS, Georg. “El epistolario Schiller-Goethe”. Goethe y su época. Barcelona - México, Ediciones Grijalbo, 1968, p. 119. 229 GOETHE E SCHILLER. Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller. Op. cit., p. 527.

256

forma”.230 Prender-se “como escravo à forma externa” e simplesmente imitar os

gêneros antigos era um despropósito identificado já por Aristóteles, de modo que

o Classicismo de Goethe e Schiller não deve ser entendido como uma defesa da

restrição às formas tradicionais da poesia. Por outro lado, a intenção de evitar toda

e qualquer forma era justamente o problema identificado como uma decadência da

arte moderna, o que impunha a discussão dos gêneros como modelos. A

observação de Schiller também deixa clara a intenção de pensar os gêneros

antigos em sua relação com os temas e as questões da poesia moderna, até porque

o interesse principal dos escritores, em sua troca de cartas, era o debate em torno

de sua própria criação artística. Com isso, todo o esforço para esclarecer os

problemas teóricos da arte se encontrava a serviço dessa questão de poética

prática.

Schiller, neste período em que discutia a definição normativa da poesia

épica e da poesia trágica, tinha voltado a trabalhar em sua obra teatral e pretendia,

como afirma em carta de outubro de 1797, descobrir um tema da mesma natureza

do tema do Édipo Rei, “e que teria as mesmas vantagens para o dramaturgo”, pois

“essas vantagens são incalculáveis”.231 Embora receie que o Édipo seja em si

mesmo um gênero, sem nenhuma espécie secundária, portanto uma obra

inimitável, essa tentativa de elaborar modernamente o tema presente na tragédia

de Sófocles pode ser acompanhada, segundo Butler, em quase todas as últimas

obras dramáticas de Schiller.232 Assim, a questão da possibilidade de imitação dos

antigos se articula, nas cartas, à de como elaborar uma tragédia moderna, pensada

230 Ibidem, p. 387. 231 Ibidem, p. 480. 232 Ver BUTLER, E. M.. The tiranny of Greece over Germany. Op. cit., p. 193. A carta é citada pelo autor, que analisa a elaboração do tema do destino em cada uma das peças.

257

nos ensaios teóricos de Schiller sobre a arte trágica sem ter os gregos como

referência fundamental.

Outro exemplo de desdobramento das questões formais discutidas na

cartas é o fato de Goethe ter escrito em 1797 Hermann e Dorotéia, um poema

épico em doze cantos, justamente quando um tema recorrente das suas cartas era a

poesia épica, questionada sobretudo a partir do estudo de Homero e da Poética de

Aristóteles. É natural que, após terminar o poema, Goethe tivesse a intenção de

escrever um trabalho do mesmo gênero, que se chamaria “A caçada”, baseado na

idéia que daria origem, trinta anos depois, à Novela. As discussões com Schiller a

respeito da poesia épica, as críticas feitas por seu interlocutor ao plano do poema e

o seu incentivo para a retomada do trabalho no Fausto foram alguns dos motivos

que levaram Goethe a desistir de escrever o novo trabalho naquela época.

A intenção de fazer de “A caçada” um poema épico demonstra a

preocupação do autor com a elaboração do gênero poético em que vinha

trabalhando, o que o conduziu a um problema formal, ligado à necessidade de um

“retardamento da ação” que ele identificara nas obras de Homero. Para Goethe, ao

contrário do poema dramático, que apresenta a ação de modo direto e fechado,

como ela deve ser representada no teatro, o poema épico se caracteriza por

descrever cada detalhe de acordo com sua natureza própria, avançando e

retrocedendo no tempo, a fim de retardar o curso da ação e valorizar o modo como

ela é apresentada. Toda ação deve preparar o ato heróico individual, e quanto mais

tortuoso o caminho, quanto mais cheio de conflitos e detalhes, mais se destaca o

herói quando finalmente a narrativa apresenta os seus feitos. É por isso que

Goethe comenta, na carta a Schiller de 19 de abril de 1797:

Se essa necessidade de retardamento [...] for realmente essencial e indispensável, todos os planos de andar em linha reta na direção da meta

258

deveriam ser completamente rejeitados ou considerados um gênero histórico subordinado. O plano de meu segundo poema [“A caçada”] cometeu esse erro, e tomarei cuidado quando escrever um verso que seja, até estarmos bem certos disso. A idéia me parece extraordinariamente frutífera. Se estiver correta, deve levar-nos muito adiante, de modo que faço questão de sacrificar tudo por ela.233.

Três dias depois, ele voltou a escrever sobre o mesmo problema,

reconhecendo que toda a ação, em seu plano de poema, avançava em linha reta, de

modo muito direto. Sua dúvida era “se um tal plano também se faria passar por

épico, já que ele é inserido na lei geral, segundo a qual o que interessa é o

verdadeiro como, e não o quê...”. Ou se, por desobedecer à lei de retardamento da

ação, “não se deveria incluir um poema assim numa classe subordinada de

poemas históricos”. Nesse caso, o autor demonstra o propósito de seguir

rigorosamente a norma estabelecida a partir do estudo da literatura antiga, de

acordo com um Classicismo rigoroso. Na sua resposta, em uma carta de 25 de

abril de 1797, com o mesmo espírito, Schiller desaconselha Goethe a trabalhar

num poema épico a partir do esquema planejado:

Quanto ao seu novo poema, confesso que de certa forma temo por ele [...]. A maneira como pretende desenvolver sua ação me parece mais próxima da comédia do que da epopéia. O senhor pelo menos terá muito a fazer para tirar dela o elemento que suscita a surpresa, a admiração, já que ele não é assim tão épico.234

Em 15 de janeiro de 1827, após a leitura da primeira parte da Novela,

impressionado com a exatidão das descrições, Eckermann perguntou a Goethe

sobre o esquema usado para compor uma narrativa tão precisa. Então, o velho

escritor lhe explicou que, ao retomar a idéia de trinta anos antes, não tinha

encontrado o esboço antigo, por isso trabalhara a partir de um novo esquema,

agora voltado para a elaboração do tema numa forma narrativa que incluía apenas

algumas canções em verso. Depois de pronta a novela, ele por acaso tinha achado

233 Ibidem, p. 375. Ver Goethe e Schiller - Companheiros de viagem.Op. cit., p. 105. 234 Ibidem, p. 380. Ver Goethe e Schiller - Companheiros de viagem. Op. cit., p. 109-110.

259

o esquema inicial, mas ficara satisfeito por ter adotado uma outra forma, “já que a

primeira tinha sido pensada para um tratamento épico e não se aplicaria a uma

apresentação do tema em prosa”.

Eckermann terminou de ler a novela no dia 18 de janeiro, também na casa

de Goethe, que andava de um lado para o outro no seu quarto de trabalho, durante

a leitura, e esquentava as mãos na lareira. Na longa conversa que se seguiu,

registrada integralmente nas Conversações, o escritor se declara feliz pelo

desenvolvimento de um tema que tinha guardado por tanto tempo na cabeça, sem

conseguir trabalhá-lo de maneira satisfatória. Ele considera que, quando tinha

revelado seus planos a Schiller, seu amigo o desaconselhara a levá-los adiante por

não ser capaz de perceber o que aquele assunto poderia vir a ser, “porque só o

poeta sabe o encanto que é capaz de dar ao seu objeto”. Goethe ainda acrescenta,

comparativamente, que também teria desaconselhado Schiller a escrever uma de

suas melhores peças, Wallenstein, se o autor lhe tivesse pedido uma opinião sobre

o tema, pois nunca imaginaria que aquele assunto pudesse ser tão apropriado para

uma obra teatral.

Ao concluir que a forma narrativa de fato possibilitou a melhor elaboração

do tema da caçada, em que um tigre e um leão se soltam nas montanhas, Goethe

reconheceu ter encontrado, trinta anos depois, o gênero mais apropriado para a

idéia que Schiller tinha considerado “pouco épica”. A questão do gênero ainda era

tão importante para o escritor, nos últimos anos de sua vida, que ele resolve dar ao

seu novo escrito o nome do próprio gênero em que ele se encaixa: “Sabe,” disse

Goethe, “vamos chamar-lhe simplesmente de ‘Novela’, pois o que é uma novela

senão um acontecimento inusitado? Esse é o conceito exato do que é novela, e

260

muitas coisas que correm na Alemanha com o título de novela não passam de

contos ou o que quer que sejam”.235

Apesar da evidente preocupação com as questões formais mostrada nesses

exemplos, durante o período de discussão dos gêneros nas cartas Goethe e Schiller

não pretendiam imitar simplesmente a Antigüidade. No ensaio Poesia ingênua e

sentimental, Schiller já tinha chamado a atenção para o fato de que os gêneros

sofreram transformações ao longo da história, por isso devem ser pensados no

contexto da poesia moderna. Nesse caso, a teoria dos gêneros constituía um

estudo das leis formais da poética tradicional, a fim de refletir sobre a aplicação de

tais leis formais aos temas que a época moderna oferecia ao poeta. A poesia antiga

e a Poética aristotélica são consideradas pelos dois escritores como uma fonte de

definição dos gêneros em sua pureza original não para reproduzir a forma antiga,

mas para pensá-la no contexto moderno.

Assim, o debate teórico realizado nas cartas deve ser entendido em relação

estreita com as obras dos dois interlocutores que, do ponto de vista formal,

seguem um projeto de exploração prática dos gêneros definidos por eles. Em

1797, Schiller trabalhava numa tragédia, a primeira peça da trilogia Wallenstein, e

Goethe no poema épico Hermann e Dorotéia. Justamente por isso, a sua principal

preocupação nas cartas deste ano era a distinção entre poesia épica e dramática.

Eles não pretendiam desenvolver um sistema ou uma classificação geral dos

gêneros poéticos, mas comparar as características gerais do drama e da epopéia, a

partir da definição tradicional (antiga), para discutir as suas obras em processo de

elaboração.

235 ECKERMANN. Conversações com Goethe, Op. cit., p. 156 (29/01/1827).

261

Em sua conferência “Da poética dos gêneros normativa para a

especulativa”, Szondi chama a atenção para o fato de que as concepções de

Goethe e Schiller relativas à poética dos gêneros, como foram elaboradas na

correspondência de 1797, só podem ser compreendidas com base nessa intenção

de discutir os limites entre a epopéia e a tragédia.236 Por isso mesmo, Szondi

considera que a poética dos gêneros desenvolvida nas cartas permanece como que

“na pré-história da poética idealista” de caráter especulativo, já voltada para uma

reflexão filosófica e histórica sobre os três gêneros poéticos tradicionais (o épico,

o dramático e o lírico). Essa afirmação não deve ser entendida como uma crítica à

teoria de Goethe e Schiller, mas como um reconhecimento de que essa teoria

precisa ser vinculada à sua verdadeira intenção de um esclarecimento da prática

artística.

As obras literárias de Goethe e Schiller evidenciam que seu Classicismo

não pode ser escravo da “forma exterior” da poesia antiga. Peças como

Wallenstein e Maria Stuart, que seguem o projeto elaborado nos ensaios de teoria

da tragédia dos anos anteriores, certamente não se assemelham rigorosamente às

tragédias gregas. Além disso, seria impossível explicar de acordo com as normas

da tradição poética aristotélica o Fausto, por exemplo, obra em que Goethe voltou

a trabalhar justamente em junho de 1797, aconselhado por Schiller, a partir da

versão fragmentária de 1790. Mesmo levando em conta apenas a primeira parte,

publicada em 1808, trata-se de uma peça mais semelhante aos mistérios medievais

do que às obras dramáticas gregas, uma obra híbrida, quase inclassificável, mais

uma tragicomédia com elementos épicos e líricos do que uma tragédia.

236 Ver SZONDI. Poetik und Geschichtsphilosophie II. Op. cit., p. 41.

262

Goethe e Schiller pensam a essência dos gêneros, a fim de questionar a

possibilidade de aplicar as formas puras da Antigüidade aos conteúdos de sua

época. Com isso, os conteúdos modernos e a exigência de criar sem ser escravo da

forma exterior tradicional dão um sentido novo à poética. Na correspondência,

não só o conceito de cada gênero começa a ser desvinculado de uma classificação

baseada apenas na forma, mas também as novas espécies literárias, como o

romance e o drama burguês, despontam como temas para a teoria da arte.

263

Conclusão

As teorias de Winckelmann e Lessing, ao criticar a arte de seu tempo e questionar

seus modelos, indicaram os rumos que foram seguidos pela literatura alemã da

segunda metade do século XVIII. Tanto o Sturm und Drang quanto o Classicismo

de Weimar tiveram como precursores esses dois teóricos da arte, em cujas obras

se encontram definidas as questões que orientaram os movimentos literários

posteriores na busca dos modelos para a arte alemã. Por um lado, o modelo da

Grécia antiga, proposto por Winckelmann como ideal de beleza artística,

constituiu o fundamento do helenismo que marcou a cultura alemã moderna, nas

artes e na filosofia. Por outro lado, o modelo de Shakespeare como gênio

moderno, proposto por Lessing, foi seguido pela dramaturgia pré-romântica e

romântica, influenciando de modo decisivo a produção literária na Alemanha.

A crítica da arte de seu tempo foi o ponto de partida tanto das Reflexões

sobre a imitação das obras gregas na pintura e na escultura, quanto do

Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, e essa crítica implicava

uma comparação das obras modernas com as obras-primas da Antigüidade

clássica. Nesse contexto, a representação do sacerdote troiano Laocoonte nas artes

dos antigos se tornou, a partir da crítica de Lessing à interpretação de

Winckelmann, um exemplo fundamental para o helenismo alemão. A análise da

escultura e a comparação com o poema de Virgílio indicavam as questões centrais

na teoria da arte do final do século XVIII: a imitação dos antigos, o ideal de

beleza da arte grega, a fronteira entre as artes, a comparação com as obras

modernas. Goethe e Schiller retomaram o mesmo exemplo para discutir as

questões teóricas em que se baseou a fase clássica de sua literatura.

264

Os gregos antigos se tornaram, para os alemães modernos, um modelo e

um ponto de referência na história da arte, na filosofia da arte e na filologia, e foi

Winckelmann quem estabeleceu as bases desse helenismo. Identificando a

decadência das artes plásticas de seu tempo, o autor das Reflexões criticou a via de

imitação da natureza moderna e indicou, nos gregos antigos, uma outra via, na

qual se revela outra relação entre arte e natureza. Assim, a noção de nobre

simplicidade e calma grandeza como um ideal a ser aprendido diferencia o

Classicismo de Winckelmann de toda uma tradição na qual a imitação dos antigos

gregos e romanos fora compreendida como um imperativo, um estabelecimento

de regras formais e atemporais para as artes. Sendo um dos primeiros

historiadores da arte a demonstrar o condicionamento histórico e geográfico da

criação artística, o autor das Reflexões influenciou também a concepção teórica

que, especialmente com Herder, justificaria um questionamento da exemplaridade

dos antigos e uma valorização da arte moderna e nacional.

Lessing desenvolveu a crítica da arte e da teoria de sua época num campo

mais amplo, apontando os erros de uma tradição em que os critérios para avaliar

as artes plásticas eram usados para julgar a poesia. Ao propor, em seus ensaios

sobre o teatro, uma nova interpretação da Poética de Aristóteles, que justificasse a

valorização de Shakespeare e a crítica do teatro clássico francês, Lessing se

mantinha vinculado à tradição por aceitar como parâmetro a teoria da arte do

filósofo grego. Mas, embora vinculada à tradição aristotélica, sua defesa de uma

nova dramaturgia alemã e sua busca de um modelo moderno constituíram o ponto

de referência de um movimento de crítica ao Classicismo. Depois de Lessing, o

Sturm und Drang não se voltou só contra o modelo da arte francesa, predominante

na Alemanha do século XVIII, mas se desenvolveu como uma contestação da

265

própria necessidade de imitação dos antigos. Essa necessidade foi negada em

nome da cultura popular, dos temas nacionais e do caráter nórdico, ou seja, em

nome do condicionamento histórico, geográfico e cultural da criação artística. A

valorização de Shakespeare contra o Classicismo francês, iniciada por Lessing em

suas Cartas sobre a nova literatura, foi decisiva para o movimento pré-romântico,

do qual Herder foi um dos principais teóricos, e Goethe e Schiller, os grandes

expoentes artísticos.

Assim, a fundamentação e a crítica do Classicismo na Alemanha

retomavam uma questão central da teoria da arte francesa desde os século XVII: o

debate sobre os antigos e os modernos. E, se o debate estético do Classicismo

alemão pode ser visto como uma versão da Querelle francesa, Winckelmann deve

ser considerado um partidário dos antigos, e Lessing, dos modernos. Pois o

primeiro defende a imitação da arte grega, consolidando o helenismo na literatura

e na filosofia alemã, enquanto o segundo critica o Classicismo francês por seu

rigor excessivo e propõe Shakespeare como modelo do gênio moderno, capaz de

renovar a criação artística. No entanto, como Lessing se baseia em Aristóteles, e

Winckelmann pretende que os alemães se tornem inimitáveis, esse debate sobre

antigos e modernos não opõe duas perspectivas em conflito, mas busca desde o

início uma conciliação entre a imitação dos antigos e a criação de uma arte

moderna.

O desenvolvimento da literatura alemã a partir da segunda metade do

século XVIII foi ligado à história da recepção de Shakespeare. Do ponto de vista

da teoria da arte, a defesa do gênio moderno como modelo exigia uma renovação

teórica, uma contestação das normas tradicionais a fim de justificar, por exemplo,

a equiparação de Shakespeare a Sófocles, considerado o grande nome da

266

dramaturgia grega. Depois de Lessing, Herder e Goethe fizeram essa mesma

equiparação, que se baseava numa interpretação renovada da Poética de

Aristóteles. Essa elaboração das idéias de Lessing sobre o teatro, no Sturm und

Drang, não só constituiu a base para a produção de algumas das obras-primas da

literatura alemã na modernidade, como também indica a importância da

comparação entre antigos e modernos na teoria da arte daquela época. Era preciso

que as obras da Antigüidade não fossem mais consideradas como modelos

insuperáveis, da mesma maneira que a poética não deveria mais ser vista como

um estabelecimento de regras atemporais para a criação artística. Em outras

palavras, era preciso justificar a equiparação do gênio moderno (Shakespeare) ao

antigo (Sófocles), para superar os padrões do Classicismo francês.

No entanto, justamente os dois escritores considerados como expoentes do

Sturm und Drang, cada um deles exaltado, a seu tempo, como o “Shakespeare

alemão”, dedicaram-se posteriormente a um projeto classicista. Retomando a

proposta básica de Winckelmann, Goethe e Schiller não só justificaram

teoricamente o Classicismo alemão, mas também realizaram artisticamente um

projeto de “imitação” dos gregos. Mas essa realização do Classicismo não foi um

retrocesso, no sentido de uma retomada do modelo classicista francês, que autores

como Gottsched e Wieland praticavam na Alemanha. Se, na fase clássica de

Goethe e Schiller, o ponto de partida para a criação artística foi realmente imitar

os gregos, essa imitação deve ser compreendida no sentido de uma busca do ideal

artístico, inserida num debate acerca das formas mais puras de cada gênero

poético antigo. Os dois escritores tinham em vista a possibilidade de desenvolver

esses gêneros modernamente e de buscar, em suas obras, aquele ideal de perfeição

identificado nos gregos.

267

Do ponto de vista da teoria da arte, um dos principais temas do

Classicismo de Weimar era a caracterização dos gêneros, sobretudo a tragédia e a

epopéia, não só porque Goethe e Schiller trabalhavam em obras desses gêneros,

mas também porque reconheciam a confusão entre os gêneros como o traço

marcante da decadência na poesia de sua época. Foi com o interesse voltado para

a fundamentação de sua própria obra poética que os dois escritores se dedicaram a

discutir os tipos de poesia, a partir do estudo dos clássicos gregos. Como a teoria

estava a serviço de sua prática artística, a imitação dos gregos tinha o sentido de

uma busca de fundamentos, de um aprendizado, a partir da identificação da

decadência da arte moderna. Essa postura crítica os aproxima de Winckelmann,

que indicara o caminho de buscar na arte grega um ideal de beleza para a criação

moderna. E, por outro lado, a poética dos gêneros remete a Lessing, que já havia

identificado a necessidade de criticar as bases da teoria da arte e estabelecer as

fronteiras entre os campos da criação artística. Assim, apesar das eventuais

críticas às interpretações propostas no Laocoonte e nas Reflexões, por exemplo

quando a análise do Laocoonte é retomada nos ensaios de Goethe e de Schiller,

não se pode deixar de reconhecer que as idéias desses dois precursores estavam na

base do projeto classicista do final do século XVIII.

Principalmente a partir do período passado na Itália, a produção literária de

Goethe, profundamente influenciada pelo estudo de Aristóteles e Homero, pode

ser considerada como a principal expressão artística do Classicismo de Weimar.

Com a colaboração de Schiller, Goethe formulou também, em ensaios e cartas,

uma teoria classicista da arte que se caracteriza pela relação com as ciências

naturais. Nessa teoria, há uma crítica da simples imitação, presa à forma objetiva,

e da maneira, como expressão subjetiva que se distancia dos objetos. Goethe

268

propõe, com base no conceito de estilo, uma síntese do lado objetivo e do

subjetivo da criação artística, viabilizada pelo conhecimento da natureza e pelo

domínio dos recursos expressivos da arte. No nível do estilo, a composição

orgânica da obra de arte, seguindo leis autônomas, tem uma afinidade com a

essência dos objetos naturais.

Segundo Schiller, na carta de aniversário, Goethe foi capaz de “engendrar

uma Grécia por uma via racional”. Sendo um alemão moderno, mas de espírito

grego, ele buscou em sua obra um ideal de beleza que não podia vir da imitação

da natureza. Em outras palavras, sendo um poeta ingênuo numa época

sentimental, ele teve de se tornar sentimental para completar, por meio da

reflexão, aquilo de que a realidade o privara. Com isso, a obra de Goethe se

aproximou do ideal de uma relação harmoniosa com a natureza, mas sem deixar

de ser moderna, sem deixar de trabalhar com temas sentimentais. “Engendrar uma

Grécia por via racional” é uma expressão do ideal do Classicismo de Weimar,

porque a formulação de Schiller indica o paradoxo de uma imitação dos antigos

que não pode simplesmente copiá-los ou torná-los objeto de nostalgia, nem meta

de um caminho de volta. No sentido que ganha no ensaio sobre poesia ingênua e

sentimental, a exemplaridade dos antigos diz respeito a uma relação com a

natureza que deve ser buscada como ideal pelos modernos. E Goethe, poeta

moderno de espírito antigo, ou poeta ingênuo que se torna sentimental, realizou

como nenhum outro esse projeto de imitação dos antigos.

Assim como seu interlocutor, Schiller rompeu com o Sturm und Drang,

para se tornar o principal colaborador de Goethe na fase clássica. Mas essa ruptura

só aconteceu depois da elaboração, com base na filosofia de Kant, de uma teoria

estética cuja questão central era a arte em sua relação com a cultura e a sociedade

269

modernas. O interesse de Schiller pelos gregos e, especialmente, pela arte trágica

grega dizia respeito, em primeira instância, à discussão teórica e à prática artística

ligadas às tragédias modernas. Em seu ensaio sobre poesia ingênua e sentimental,

criticando o caráter nostálgico de uma volta aos gregos, o escritor desenvolve a

noção do ideal presente na arte antiga, a ser buscado pelos modernos, e indica a

obra de Goethe como uma realização dessa busca. A teoria da arte de Schiller

antecipou, em alguns aspectos, o caminho seguido pela estética do século XIX na

Alemanha. Além de procurar superar o abismo entre o mundo sensível e o

racional, ele defende uma reflexão sobre os gêneros poéticos a partir de uma

compreensão de seu condicionamento histórico. Suas peças da fase clássica, como

Maria Stuart, A noiva de Messina e a trilogia Wallenstein, refletem tanto a

definição teórica dos ensaios anteriores (sobretudo a questão da liberdade), quanto

o estudo da arte trágica nos gregos antigos.

Os fundamentos do Classicismo de Weimar definem sua diferença em

relação ao Classicismo francês. A noção de imitação dos antigos baseada em

Winckelmann é diferente da noção normativa que estava na base do teatro

clássico francês, segundo a qual as regras para a criação artística em qualquer

época eram definidas pela Antigüidade. A crítica do Classicismo francês, desde

Lessing, e a valorização do condicionamento histórico da arte, desde Herder, não

foram deixadas de lado por Goethe e Schiller. Assim, mesmo que alguns aspectos

do teatro clássico francês tenham sido elogiados, ou até retomados pelos dois

escritores, quando ambos se distanciaram da postura contestatória do Sturm und

Drang, seu Classicismo tinha bases e propósitos distintos do anterior. Ele visava à

elaboração moderna dos gêneros poéticos, cujos arquétipos, ou formas puras,

270

eram definidos pelo estudo dos gregos antigos e pelo aprendizado do seu ideal de

beleza artística.

Comparando a posição dos dois escritores, é possível identificar Goethe

como um partidário dos antigos e Schiller como um defensor dos modernos, não

numa nova querela como a francesa, mas numa tentativa de conciliar as duas

posições. Nessa versão do debate, no contexto do Classicismo alemão, a

colaboração dos dois escritores expressa a busca de um equilíbrio entre modos

distintos de fazer poesia, um modo ingênuo e um sentimental, ou um modo antigo

e um moderno, ou ainda, segundo a definição posterior, um modo clássico e um

romântico. A teoria da arte de Schiller implicava uma redefinição desse debate, na

qual se justificava a exemplaridade dos antigos sem negar o condicionamento

histórico e as características da arte moderna. Em outras palavras, era impossível

voltar aos gregos, mas era necessário aprender com os gregos e até imitá-los,

desde que se compreendesse a imitação não como mera cópia, mas como busca de

um ideal para a arte moderna, como desenvolvimento de um estilo moderno.

Portanto, o Classicismo de Goethe e Schiller elaborou teoricamente e

realizou artisticamente o projeto formulado na frase de Winckelmann: “É preciso

imitar os gregos para nos tornarmos inimitáveis”. De fato, os dois escritores não

só tinham a Grécia antiga como modelo para a sua teoria estética e para a sua

produção poética da fase clássica, mas também consolidaram uma compreensão

da arte grega como um ideal de beleza. E tornar-se inimitável, nesse caso, era

escrever obras clássicas da literatura alemã, à altura das grandes obras-primas da

literatura dos antigos. Tanto o debate sobre a exemplaridade dos antigos e os

problemas da arte moderna, quanto o próprio estudo dos clássicos gregos estavam

a serviço, para Goethe e Schiller, de sua própria produção artística. Com isso, a

271

questão do helenismo, ou da imitação dos antigos, foi articulada a um projeto que

tinha, em linhas gerais, o propósito de fundamentar a criação de uma literatura

moderna que fosse clássica, no sentido de algo exemplar, de um ponto de

referência, de um novo parâmetro de grandeza e de perfeição a ser seguido.

272

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