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    POUL ANDERSON

    A GUERRA DOS HOMENS ALADOS

    Tradução de:AFFONSO BLACHEYRE

    EDIÇÃO EM EPUB: EXILADO DE MARÍLIA

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    Capítulo 1

    O Grande Almirante Syranax hyr Urnan, Comandante-emChefe hereditário da Frota de Drak'ho, Pescador do MarOcidentais, Chefe do Sacricio do Oráculo da Estrela Polar, aiu as asas e voltou a fechá-las, em um trovão de espanto. P

    momentos aquilo fez os papéis na escrivaninha revoar.— Não! Impossível! Houve algum engano.— Como quiser o meu Almirante — disse o Ocial Exe

    utivo Delp hyr Orikan, com mesura sarcástica. — Os batedornada viram.

    A expressão de raiva perpassou o rosto do Capit

    T'heonax hyr Urnan, lho do Grande Almirante e seu herdeiSeu lábio superior ergueu-se, fazendo os colmilhos caninaparecer em relance branco contra o focinho escuro.

    — Não dispomos de tempo para gastar com sua insolêncExecutivo Delp — disse, friamente. — Eu aconselharia meu pa dispensar o ocial que não demonstrar mais respeito.

    Sob as correias bordadas que lhe indicavam o cargo,orpanzil de Delp retesou-se. O Capitão T'heonax deu upasso em sua direção. As caudas se curvaram e as asas se abam, em presteza para a luta, até que o aposento estivesse che

    de seus corpos e seu ódio. Em movimento calculado, que paia ocasional, T'heonax baixou a mão para o ancinho de obsid

    ana que trazia à cinta. Os olhos amarelos de Delp reluziam, dedos se fechavam em sua própria machadinha.

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    A cauda do Almirante Syranax bateu no chão. Eracomo uma bomba explodindo ali mesmo. Os dois jovensnobres sobressaltaram-se, lembraram-se de onde estavame devagar, músculo após músculo voltando ao repouso,por baixo da pelagem castanha luzidia, afrouxaram os

    corpos.— Basta! — disse o Almirante, com brusquidão.— Delp, sua língua ainda haverá de metê-lo em en-

    crencas. T'heonax, já me aborreci com seu despeito. Vocêterá a oportunidade de lidar com os inimigos pessoais,quando eu for comida de peixes. Enquanto isso, poupe-

    me os poucos ociais competentes que tenho!Era o discurso mais rme que alguém já o ouvira pro-nunciar por bastante tempo. Seu lho e o subordinadorelembravam-se agora de que aquela criatura grisalha,de olhos embaçados, acossada pelo reumatismo, já fora ovencedor da Armada Maion (mil asas de chefes inimigos

    haviam sido dependuradas, em espetáculo sinistro, nosmastros da Frota). E ainda era o chefe deles, na guerracontra a Revoada. Tomaram a posição de respeito, dequatro, esperando que ele prosseguisse.

    — Não me interprete de modo tão liberal, Delp - disseo Almirante, em tom mais suave. Estendeu a mão para

    a prateleira acima da mesa e tirou dali um cachimbo decabo comprido; começou a encher-lhe a panela com algasmarítimas secas, extraídas da bolsa à cinta. Entrementes,seu corpo velho e endurecido acomodava-se melhor no

     banco de madeira e couro.Foi surpresa para mim, naturalmente, mas supus que

    nossos batedores sabiam ainda usar um telescópio.Descreva-me outra vez, com exatidão, o que ocorreu.

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    — Uma patrulha efetuava reconhecimento rotineiro acerca de trinta obdisai, a norte-noroeste daqui — explicouDelp, com cautela. — Isso seria na faixa geral da ilha cha-mada... não consigo pronunciar aquele nome selvagem,senhor; ele signica Bandeiras Desfraldadas.

    — Sim, sim — assentiu Syranax. — De vez em quandoeu consulto os mapas, sabia?Theonax sorriu. Delp não era criatura da corte, daí sua

    deciência. O avô fora simples Fabricante de Velas e o painunca atingira mais do que o posto de Capitão de umasó jangada. Tal ocorrera após a família ter sido enobre-

    cida, por serviços heróicos prestados na batalha de Xarif-ha, naturalmente. Mas não tinham sido destacados paresdo reino, eram uma corja de mãos sujas, pouco acima dospróprios subordinados.

    Syranax, que corporicava a resposta dada pela Frotaàqueles dias sombrios de fome e debandada, havia escol-

    hido os ociais na base de capacidade comprovada e nadamais. Assim aquele simplório Delp hyr Orilcan se vira empouco tempo guindado ao segundo posto mais elevadoem Drak'ho. Sua ascensão, todavia, não aparara as ares-tas de educação, nem lhe ensinara a lidar com verdadeir-os nobres.

    Se Delp era querido pelos marinheiros comuns, tantomais desagradava a muitos aristocratas. Aos olhos destesera ainda um parvenu, um cacete, e tivera a coragem decasar-se com uma Axollon! Após se fecharem na morte asasas protetoras do velho Almirante

    Theonax saboreava antecipadamente o que sucederia,

    então, a Delp hyr Orikan. Seria muito fácil descobrir al-guma acusação nominal.

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    O Executivo engoliu em seco.— Desculpe, senhor — murmurou. — Eu não preten-

    dia.. ainda somos muitos novos em todo este setor domar. Os batedores viram o objeto à deriva.

    Não se parecia a coisa alguma que conhecessem. Dois

    deles voltaram para dar parte e pedir orientação. Fuipessoalmente examinar o caso. Senhor, é verdade!Um objeto utuante, seis vezes mais comprido que

    nossa maior canoa, semelhante a gelo, mas diferente —e o Almirante balançava a cabeça de pelos grisalhos. De-vagar, pôs isca seca na panela do cachimbo, mas foi com

    violência desnecessária que enou a vareta naquele cilin-dro de madeira. Retirando a vareta, acendeu o fogo epuxou tragadas profundas.

    O cristal de rocha que receber o melhor polimentopossível poderia parecer-se um pouco àquilo, senhor —sugeriu Delp. — Mas não brilharia tanto. Não teria o

     bruxuleio.E existem animais correndo em volta dele?Três, senhor. Têm perto de nosso tamanho, são um

    pouco maiores, mas sem asas e sem cauda. Ainda assim,não são apenas animais... ao que creio. Parecem usarroupas e eu... não creio que a coisa brilhante fosse feita

    para ser um barco. Navega de modo abominável e pareceestar afundando.Se não é barco e não é uma tora de madeira largada

    de alguma praia — disse Theonax — nesse caso, rogo quediga de onde vem. Das profundezas?

    Dicilmente, Capitão — respondeu Delp, tomado de

    irritação. — Se assim fosse, as criaturas em cima seriampeixes, ou mamíferos do mar, ou.. . bem, estariam adapta-

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    dos à natação, e não ocorre isso. Parecem-se a formas ter-restres típicas, sem capacidade de voar, a não ser pelo fatode que têm quatro membros.

    Devem ter caído do céu, então, ao que presumo —zombou Theonax.

    Para mim não seria surpresa — retorquiu Delp, emvoz baixíssima. — Não existe qualquer outra direção quereste.

    Theonax sentou-se sobre as ancas e se punha boquiaberto, mas o pai apenas assentiu.

    Ótimo — murmurou Syranax. — Estou satisfeito por

    ver alguém dotado de um pouco de imaginação, entrenós.Mas de onde eles voaram? — explodia Theonax.Talvez nossos inimigos de Lannach possam explicar

    — propôs o Almirante. — Eles podem cobrir uma partemaior do mundo, a cada ano, do que nós em muitas

    gerações; e encontram uma centena de outras Revoadas bárbaras, nos trópicos, trocam notícias com eles.E fêmeas — observou Theonax, falando naquela mis-

    tura de desaprovação e afetação com que toda a Frota en-carava os hábitos dos migrantes.

    É deixar isso para lá — retorquiu Delp, com aspereza.

    Theonax eriçou-se.Seu cachorrinho esfregador de convés, como se at-reve...

    Cale a boca! — estrugiu Syranax e, após uma pausa,prosseguiu: — Mandarei fazer indagações entre nossosprisioneiros. Enquanto isso, é melhor mandar uma canoa

    rápida para recolher esses seres, antes que o objeto ondeestão utuando afunde de uma vez.

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    Eles podem ser perigosos — advertiu Theonax.De pleno acordo — concordou o pai. — Se forem, é

    melhor que estejam em nossas mãos do que, digamos, dosLannach'honai, que podem encontrá-los e fazer uma ali-ança. Delp, tome Neninis com boa tripulação, e ponha

     bastante vela. E traga aquele camarada de Lannach quecapturamos, como é que se chama? O lingüista prossion-al...?

    Tolk? — e o Executivo encontrara diculdades parapronunciar aquele nome estranho.

    Sim. Talvez ele possa falar com as criaturas. Mande

     batedores de volta para me informar, mas que bemlonge da frota principal, até termos certeza de que as cri-aturas são inofensivas a nós. Da mesma forma, até que eutenha reduzido quaisquer medos supersticiosos a respeitode demônios do mar, existentes nas classes mais baixas.Seja educado se puder, use a força caso seja necessário.

    Sempre poderemos pedir desculpas mais tarde.. ou jogaros corpos na água. Agora, pule!Delp pulou.

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    Capítulo 2

    Sentia-se como se a desolação o encerrasse entre quatmuralhas. Mesmo em cima daquele casco baixo, que oscilapara todos os lados, o resto do cruzador espacial abatido, EWace podia ver uma imensidão de horizonte. Achava que

    imples tamanho daquele anel imenso, onde o sol empalidido pela geada encontrava-se com o cinzento que eram

    nuvens, a espuma da tempestade e grandes ondas, bastapara apavorar um homem. A probabilidade da morte fora erentada antes, na Terra, por muitos de seus ancestrais, mas

    horizonte da Terra não era distante assim.

    Que casse de lado o fato de que se encontrava a cerde cem anos-luz de seu próprio Sol. Distâncias assim eragrandes demais para serem compreendidas; tornavam-imples números, não assustavam alguém que levava em con

    a pseudo-velocidade de espaço-nave em impulso secundárm parsecs por semana.

    Mesmo os 10.000 quilômetros de oceano aberto à colonizão humana solitária naquele mundo, o posto comercial, cotituía apenas mais um número. Mais tarde, se tivesse vid

    Wace passaria momentos agoniantes, imaginando como enviuma mensagem que varasse o espaço vazio, mas no momenstava ocupado demais em manter-se vivo.

    A largura do planeta, entretanto, era algo que ele podia vEla o impressionara antes, em sua estada de dezoito mese

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    mas ele estivera isolado, tanto psicológica quanto sica-mente, por uma tecnologia de máquinas invencível.Agora, estava sozinho em nave que afundava e era duplaa distância que tinha de percorrer com o olhar, por cimade ondas geladas, até a orla do mundo, em comparação

    ao que sucederia na Terra.O cruzador de espaço sacudiu-se, recebendo impactoselvagem das ondas. Wace perdeu o equilíbrio e escor-regou por placas metálicas lisas. Frenético, agarrou-se aocabo de luz, que prendia as caixas com alimentos à torrede navegação. Caiu para o outro lado, as botas e roupas

    serviriam para fazê-lo afundar como se fosse pedra.Agarrou-o a tempo e, assim, conseguiu parar. Desapon-tada, a onda esbofeteou-lhe a cara com a mão salgado eúmida.

    Estremecendo de frio, Wace acabou de enar a últimacaixa no lugar e arrastou-se para a escotilha de entrada.

    Era uma porta de emergência, pequenina e horrível, maso convés de passeio, com sua superfície luzidia e por baixo, onde os passageiros haviam passeado enquantoos raios de gravidade do cruzador tinham mantido asustentação pelo céu, estava submerso e o mesmo ocorriaa seu portal ornamentado e feito de bronze.

    A água enchera o compartimento de motores,destruído na queda, quando haviam caído. Desde entãoaquilo estivera vazando por tabiques retorcidos e chapasde casco violentadas, até que tudo estivesse prestes aefetuar um último mergulho profundo ao leito do mar.

    O vento passava dedos muito nos por seus cabelos

    encharcados e tentava manter aberta a escotilha, quandoele quis fechá-la, após ter entrado. Teve de travar luta com

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    a tormenta. Tormenta? Com os diabos, não! Tinha apen-as a velocidade de uma brisa mais forte, porém com seisvezes mais pressão atmosférica do que a Terra, caso emque tal brisa se parecia a uma tempestade terrestre. Quese desgraçasse PLC 2987165 II! Que se danasse o próprio

    PL e que se danasse Nicholas van Rn, e de modo aindamais especial que se condenasse Eric Wace, por ser imbe-cil o bastante para trabalhar na Companhia!

    De modo rápido, enquanto lutava com a escotilha,Wace olhou por cima da espuma, como a procurar so-corro. Viu de relance apenas o sol avermelhado e grandes

    nuvens, carregadas de tempestade escura ao norte e al-guns pontinhos que eram provavelmente os nativos. Queo demônio fritasse aqueles nativos em grelha lenta, pornão virem ajudar! Ou, ao menos, que se afastassem de-centemente enquanto os seres humanos se afogavam, emvez de adejarem no ar, gozando a cena!

    — Tudo em ordem?Wace fechou a escotilha, trancou-a bem e desceu a es-cada. Ao pé da mesma, teve de segurar-se por causa dasoscilações fortes. Ainda ouvia as ondas batendo no cascoe o vento gemendo.

    Sim, minha senhora. Em ordem tão boa quanto antes.

    O que não é grande coisa, não? — e a Dama SandraTamarin iluminou-o com a lanterna. Ao lado daquelafonte de luz ela não passava de outra sombra, na escur-idão da nave. — Mas você se parece a um pinto molhado,meu amigo. Venha. Temos, ao menos, roupas secas paravocê.

    Wace assentiu e despiu a jaqueta encharcada, e compontapés no ar livrou-se das botas. Teria regelado lá fora,

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    sem elas — não podia estar a mais de cinco graus C —mas pareciam ter absorvido metade da água do oceano.Os dentes estralejavam tiritando, enquanto a acompan-hava pelo corredor.

    Ele era um jovem alto, de raça norte-americana, ca-

     belos avermelhados e olhos azuis, traços audaciosamentemarcados e o corpo musculoso. Começara como aprendizde armazém, aos doze anos de idade, na Terra, e agoraocupava o cargo de agente da Companhia Solar de Tem-peros & Bebidas para todo o planeta conhecido pelo nomede Diomedes. Não se tratava de carreira das mais met-

    eóricas — a política adotada por Nicholas van Rn era ade promover o subordinado de acordo com os resultadosobtidos, e isso signicava que os elementos dotados de es-pírito rápido, arma ligeira e olho cravado na oportunid-ade maior se viam favorecidos. Mas fora uma carreira boae estável, tendo por futuro cargos em lugares menos isola-

    dos e desagradáveis e, nalmente, uma posição qualquerde executivo na central, mas de que adiantava, se águasalienígenas iriam tragá-lo em questão de horas?

    Ao nal do salão, onde a torre de navegação se erguia,voltava a ver aquela luz de sol raivosa e cor de cobre, bem

     baixa no céu coberto de nuvens e fumaça, ao sul do Oeste,

    ao cair do dia. A Dama Sandra apagou a lanterna e apon-tou para o macacão estendido na mesa. Ao lado da peçade roupa havia os complementos externos, acolchoados,enluvados e protegidos, de que ele necessitaria antes devoltar a arriscar-se naquela primavera equinocial.

    Vista tudo — disse ela. — Quando o barco começar

    a afundar, teremos de abandoná-lo na maior pressa pos-sível.

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    Onde está o Libero van Rn — indagou Wace.Fazendo alguns trabalhos de última hora na jangada.

    Aquele homem é habilidoso com as ferramentas, não?Mas acontece que já foi tripulante comum.

    Wace deu de ombros e esperou que ela saísse. —

    Mude de roupa, já disse — insistiu ela.Mas...Ah — e leve sorriso surgiu-lhe aos lábios. — Não sabia

    que existe um tabu de nudez na Terra.Bem... não é exatamente assim, mas, anal de contas,

    a senhora é de nascimento nobre, eu apenas um comerci-

    ante...É de planetas republicanos como a Terra que vêm osmaiores pretensiosos de todos — foi o que ela disse. —Aqui, somos todos seres humanos. Depressa, mude deroupa. Voltarei às costas, se o deseja.

    Wace tratou de envergar o traje o mais depressa pos-

    sível. A hilaridade da Dama Sandra tinha sido um recon-forto inesperado. Ele pensou que a sorte sempre pareciaproteger aquele bode velho e barrigudo, van Rn.

    Não estava certo! Os colonos de Hermes tinham sido,em sua maior parte, gente grande e clara e os descend-entes haviam saído éis — especialmente os aristocratas

    — depois de Hermes ter-se instalado como Grão Ducadoautônomo, durante o Rompimento. A Dama SandraTamarin era quase tão alta quanto ele e a informe roupade inverno não lhe escondia de todo a feminilidadeexível e completa. Tinha rosto forte demais para ser be-lo: testa ampla, boca larga, nariz arrebitado, malares sa-

    lientes, mas os olhos verdes e grandes, de cílios cinzen-tos, encimados por sobrancelhas grossas e escuras, eram

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    os mais belos que Wace vira até então. O cabelo era com-prido, liso, louro-acinzentado, preso em nó naquele in-stante, mas ele já o vira solto e utuando, sob uma coroaducal, à luz das velas.

    Terminou, Libero Wace?

    Oh... sinto muito, minha senhora. Estava pensando.Um momento, apenas — e ele envergou a túnica acolcho-ada, mas deixou aberto o fecho corredio.

    Ainda havia algum calor humano no casco do cruzad-or. — Sim. Peço que me perdoe.

    Não foi nada — disse ela, e se voltou. No reduzido es-

    paço de que dispunham, seus corpos se roçaram. Ela er-gueu o olhar para o céu. — Aqueles nativos continuam lápor cima?

    Imagino que sim, minha senhora. Estavam altos de-mais para que eu pudesse ter certeza, mas são capazes desubir alguns quilômetros sem qualquer diculdade.

    Estive pensando, Comerciante, mas não tive a opor-tunidade de perguntar. Achei que não podia existir anim-al voador do porte de um homem, mas ainda assim essesdiomedanos têm envergadura de asas de morcego que vaia seis metros. Como pode ser?

    — E pergunta, em ocasião como esta?

    Ela sorriu.Temos, apenas, de esperar o Libero van Rn. O quemais podemos fazer, senão comentar o que é curioso?

    Nós... o ajudamos a terminar aquela jangada, ou logoestaremos naufragados!

    Ele me disse que só tem baterias para um maçarico

    cortante, de modo que qualquer pessoa por lá atrapalha,em vez de ajudar. Por favor, continue falando. Os que

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    nasceram na nobreza de Hermes também têm seus cos-tumes e tabus, e isso inclui o modo correto de morrer. Oque mais é o homem, senão um conjunto de costumes etabus? — e sua voz forte denotava despreocupação, elasorria um pouco, mas Wace pensava em que parte de

    tudo aquilo era representação.Ao inferno com a farsa de "sorria-que-isso-não-é-nada"! Foi o que Wace quis dizer. Estamos no oceano deum planeta cuja vida é puro veneno para nós.

    Existe uma ilha a centenas de quilômetros daqui, massabemos apenas vagamente em que direção se acha. Po-

    demos completar ou não uma jangada a tempo, jangadafeita de tambores vazios de combustível; e podemoscarregá-la ou não com nossas rações de tipo humano, sehouver tempo; e pode ser que, com ela, agüentemos ounão o tempo que se forma em tempestade para o norte.Eram nativos, os que voavam baixo sobre nós, poucas

    horas antes, mas desde então passaram a nos ignorar... ouvigiar... tudo, menos oferecer ajuda.Alguém que te odeia ou ao velho van Rn, foi o que

    teve vontade de dizer. A mim não, não sou tão importanteque alguém me odeie. Mas van Rn é a Companhia Solarde Temperos & Bebidas, que constitui grande poder na

    Liga Polosotécnica, que é a grande força na galáxia con-hecida. E tu és a Dama Sandra Tamarin, herdeira do tronode todo um planeta — se viveres para tanto — que rejeit-ou muitas ofertas de casamento feitas por homens de tuaaristocracia decadente e endógena, preferindo de modopúblico procurar em outro lugar o pai de teus lhos, de

    modo que o próximo Grão Duque de Hermes seja um

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    homem, e não um cabide risonho de roupas. E muitoscortesãos devem sentir pavor a teu acesso ao trono.

    Oh, sim, queria dizer, existem muitas pessoas quesairiam ganhando, se Nicholas van Rn ou Sandra Tamar-in deixassem de voltar. Fora atitude cavalheiresca e cal-

    culada, para que ele te oferecesse transporte na nave par-ticular, em Antares onde os dois conheceram, de voltaà Terra, com paradas em pontos interessantes pelo cam-inho. Quando nada, ele pode procurar concessões comer-ciais no teu Ducado. Na melhor hipótese... não, dicil-mente uma aliança ocial; existe nele uma força infernal

    demasiada. Tu mesma (que és tão forte, linda e inocente) jamais o deixarias implantar o traseiro rotundo no AltoTrono de teus pais. Mas uma brincadeira na palha, um ad-eus berrado de longe e uma cunha enada em teu reino,para que ele possa explorar... não, tu és boa demais paraisso!

    Mas estou a me afastar do assunto, minha cara, quisdizer Wace. E o assunto é que alguém, na tripulação daespaçonave, foi subornado. O plano foi bem preparado.Esse alguém aguardou a oportunidade e ela veio quandotu pousaste em Diomedes para ver, de verdade, como éum planeta novo e ainda bruto, planeta onde até mesmo

    os esboços continentais principais não foram cartografa-dos, nos cinco ralos anos em que um punhado de homensesteve aqui. A oportunidade chegou quando me disserampara levar-te e a meu patrão velho e mau àquelas montan-has lindas que cam no meio deste mundo e que tinhamsido observadas como cenário espetacular. Uma bomba

    no gerador principal... a tripulação liquidada, os engen-heiros e camareiros desaparecidos na explosão, o crânio

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    de meu co-piloto esfacelado quando batemos no mar, orádio estraçalhado. E os últimos destroços vão afundar,não tarda muito, antes que comecem a preocupar-se noPouso de Quinta-Feira, e venham à nossa procura. E nasuposição de que sobrevivamos, existe a possibilidade,

    por menor que seja, de que algumas naves pequenas,percorrendo um mundo quase ainda não cartografado eduas vezes maior que a Terra, consiga ver três pequeni-nos seres humanos sobre o aceano?

    Assim sendo, era o que tinha vontade de dizer, comotodos os nossos planos e atitudes serviram apenas para

    nos trazer a isto, seria ótimo esquecê-los no pouco tempoque resta e vir bear-me.Mas a garganta obstruiu-se e ele nada disse do que

    pensava.E então? — o tom de impaciência surgira na voz dela.

    — Está muito calado, Libero Wace.

    Sinto muito, minha senhora — murmurou ele.— Acho que não sei manter a conversa sob... bem, sobestas circunstâncias.

    — E eu lamento dizer que não tenho capacidade paralhe oferecer o consolo da religião — retorquiu ela, o olhardesdenhoso a magoá-lo.

    Uma onda de arrastão, comprida e acinzentada naorla, passou sobre o convés lá fora e subiu à torre. Elessentiram que o aço e o plástico tremiam sob o golpe. Pormomentos, enquanto a água se espalhava, ali caram emescuridão cega e cheia de trovões.

    E então, ao passar aquilo e Wace ver o quanto mais

    tinham afundado, pondo-se a pensar como poderiam tir-ar a jangada de van Rn pela escotilha de carga submersa,

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    surgiu algo branco, que lhe chamou a atenção. Do inícionão acreditou, e depois não acreditava porque não tinha acoragem de crer, e logo não podia mais duvidar.

    Senhora Sandra — ele falou, com cuidado imenso,pois não devia gritar-lhe a notícia, como se fosse um Ter-

    restre de baixo nascimento.Sim? — e ela não arredou o olhar da contemplaçãosoturna do horizonte setentrional, vazio de tudo, a não serpor nuvens e relâmpagos.

    Ali, minha senhora. Um pouco para o sudeste, acho.Velas, batendo no vento.

    O quê? — tinha sido um grito dado por ela. De algummodo, isso levou Wace a dar uma risada alta.É embarcação de algum tipo — apontou, para que

    visse. — E vem para cá.Eu não sabia que os nativos são marinheiros— retorquiu ela, com voz muito baixa.

    E não são, minha senhora... em volta do Pouso deQuinta-Feira — explicou Wace. — Mas este planeta égrande, tem quase quatro vezes a superfície da Terra, e sóconhecemos pequena parte de um dos continentes.

    Nesse caso, você não sabe como eles são, esses marin-heiros?

    Minha senhora, não faço a menor idéia.

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    Capítulo 3

    Nicholas van Rn veio bufando pela passarela, quando egritaram a chamá-lo.

    — Morte e inferno! — estrugia. — Um barco, é o que dizemMelhor ser um tubarão, se estiverem enganados. Com os d

    abos!Seus passos fortes levaram-no à torre, de onde espiou pe

    plástico incrustado de sal. A luz diminuía, à medida queol se punha e as nuvens de tempestade que se aproximava

    varriam-lhe o rosto vermelho.Então, onde está ele, esse barco pestilencial?

    Ali, senhor, Aquela escuna — indicou Wace.Escuna! Schnork! Raios e trovões, seu cabeça de cimen

    aquilo é vela de chalupa... não, espere, com os diabos, há umvela quadrada aberta no mastro principal, também... e, sim, uoutrigger. Sim, do modo como vem, deve ter leme bom. Boantos nos ajudem, é uma canoa de árvore, um troço cond

    nado por todos os demônios!E o que mais espera em planeta que não tem seres morta— retrucou Wace, os nervos já esgotados em demasia para embrar do respeito devido a um príncipe comerciante.

    Humm... barquinhos de couro, parece, ou jangadas, atamarãs. Depressa, roupas secas! Faz frio demais nes

    macacão.

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    Wace apercebeu-se de que van Rn estava em pé nocentro de uma poça e que a água frígida do mar escorriade sua cintura e pernas. O depósito onde van Rn estiveratrabalhando devia achar-se inundado por — santo Deus,desde horas atrás!

    — Sei onde estão, Nicholas — e Sandra partiu célerepelo corredor que se inclinava de modo ameaçador, maise mais a cada minuto, enquanto o mar entrava pela proaarruinada.

    Wace auxiliou o chefe a despir o macacão encharcado.Nu, van Rn dava a idéia de um gorila, com dois metros

    de altura, peludo e barriga enorme, ombros fortes comoarmazém feito de tolos, berrando indignado contra ofrio, a umidade e a lentidão dos ajudantes. Mas nos dedosgrossos brilhavam anéis, braceletes nos pulsos, e umapequena medalha de São Dismas pendente no pescoço.Diversamente de Wace, que achava mais práticos o cabelo

    cortado à escovinha e rosto barbeado, van Rn deixavaas madeixas oleadas e negras encaracoladas e compridas,perfumava-se de acordo com a última moda, exibia a bar-

     bicha no queixo triplo e bigodes cerrados e assustadores,por baixo do grande nariz adunco.

    Ele vasculhou o armário do navegador, arfando, até

    achar uma garrafa de rum.— Ahh!... Eu sabia que esta porcaria estava guardadaem algum lugar — disse, levando o gargalo à boca desapo e sorvendo diversos goles seguidos. — Ótimo. Muito

     bom! Agora talvez a gente possa começar a se parecer denovo a seres humanos, com amor próprio.

    Voltou-se, majestoso e redondo como um planeta,quando Sandra regressou. As únicas roupas que encon-

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    trara e que serviam para van Rn eram as suas próprias,um vestido à la pavão, camisa de renda, colete bordado,culotes e meias de seda luzidia, sapatos dourados, chapéude plumas e desintegrador no coldre.

    Obrigado — disse ele, secamente. — Agora, Wace, en-

    quanto me visto, apanhe no salão uma caixa de Perfectose uma garranha de aguardente de maçã. Vá depressa edepois saia para receber nossos salvadores.

    São Pedro, Rei dos Santos! — gritou Wace. — O salãoestá debaixo de água!

    Ah? e van Rn suspirou, desalentado. — Nesse caso,

    precisa apenas apanhar a aguardente de maçã. Vá de-pressa! — e ele estalava os dedos.Wace apressou-se a dizer.Não há tempo, senhor. Ainda tenho de preparar nossa

    última munição. Esses nativos podem ser hostis.Se já ouviram falar de nós, é possível — concordou

    van Rn, e começou a envergar a roupa de baixo, feita deseda natural. — Brrrr! Cinco mil velas, é o que eu davapara voltar a meu gabinete em Amster-dam!

    A que santo você faz a oferta? — indagou a DamaSandra.

    São Nicholas, natural! Meu xará, patrono dos viajantes

    e... É melhor que São Nicholas mande oferecer por escrito— observou ela.

    Van Rn se pôs rubro, mas não se retruca à herdeirade uma nação que tem importantes concessões comerciaisa oferecer. Desforrou-se, berrando desaforos para Wace,

    que se afastava.

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    Passou algum tempo até que estivessem lá fora. VanRn cou entalado na escotilha de emergência e foi pre-ciso puxá-lo, enquanto seus palavrões angustiados, emvoz de baixo profundo, faziam-se mais altos que o trovãoa se aproximar. O período de rotação de Diomedes era de

    apenas doze e meia horas e aquela latitude, trinta grausao norte, ainda se achava no lado hibernal do equinó-cio. Assim o sol se punha com velocidade temível. Elesse agarraram às amarrações e deixaram que o vento osmordesse, que as ondas caíssem sobre seus corpos. Nadamais podiam fazer.

    — Não é lugar para um pobre homem velho e gordo— queixava-se van Rn, com voz fanhosa. A ventaniaarrancava-lhe as palavras, jogava em frangalhos, por cimado mar agitado. Suas madeixas, que iam até o ombro,

     batiam como se fossem galhardetes abandonados. — Eufazia melhor se casse em casa na Holanda, onde há calor,

    sem perder meus últimos e pobres anos de vida por aqui.Wace esforçou os olhos, tando a penumbra. A canoase aproximara. Até um marinheiro de água doce como elepodia apreciar a habilidade da tripulação, e van Rn er-gueu louvores em voz alta.

    — Eu o nomeio para o Sunda Yacht Club, com os di-

    abos! Sim e registro o camarada na próxima regata; vouganhar muito dinheiro apostando nele!Era uma embarcação grande, com mais de trinta met-

    ros de comprimento e pé de mastro bem feito, mas di-minuída pela extensão fantástica das velas tingidas deazul. Tendo ou não balancim, Wace contava vê-la virar

    de borco a qualquer momento. Era claro que uma espécie

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    voadora tinha menos com que se preocupar, caso tal ocor-resse, do que. ..

    — Os Diomedanos — e o tom de voz de Sandra eracalmo, sob o vento estridente e as águas em rugido. —Você lida com eles há ano e meio, não? O que podemos

    esperar deles?Wace deu de ombros.O que poderíamos esperar de qualquer tribo de seres

    humanos ainda na Idade da Pedra? Podem ser poetas,canibais ou as duas coisas. Conheço apenas a Revoadatyrlaniana, que são caçadores migratórios. Ainda se atêm

    à sua lei escrita; não são muito escrupulosos quanto aoespírito dessa lei, está claro, mas de modo geral formamuma tribo decente .

    Você fala a língua deles?Tão bem quanto o meu palato humano e a cultura

    tecno-terrestre permitem, minha senhora. Não me es-

    tendo a dizer que compreendo todos os conceitos deles,mas nós nos damos.O casco partido deu uma guinada. Ele ouviu que al-

    guma parede interna, muito forçada, acabara de cederde uma vez, a entrada de mais água do mar, sentiu alentidão aumentar por baixo dos pés. Sandra cambaleou,

    esbarrando nele. Wace percebeu que o borrifo de águacongelava-se nas sobrancelhas dela.— Isso não quer dizer que vou compreender a língua

    daqui — completou. — Estamos mais longe de Tyrlan doque a Europa da China.

    A canoa quase encostara. E era tempo: os destroços

    que tinham utuado até então iam mergulhar a qualquerinstante. A canoa veio, de velas abaixadas, a porta marí-

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    tima foi jogada e braços fortes enavam remos na água.Com rapidez, em seguida, um diomedano veio voando,com a corda. Dois outros pairavam por perto e eram, domodo mais evidente, guardas a proteger o primeiro. Estepousou, tando os seres humanos.

    Tyrlan, estando mais ao norte, seus habitantes aindanão haviam regressado das zonas tropicais, e era aqueleo primeiro diomedano que Sandra vira. Ela estava, en-tretanto, molhada, resfriada e cansada demais para ad-mirar e graça sobre-humana de seus movimentos, masolhou-o atentamente. Talvez tivesse de viver com aquela

    raça por muito tempo, se não a matassem.Ele era do tamanho de um homem de estaturapequena tendo, além disso, cauda grossa, de um metro decomprimento, terminando em leme carnudo e as formidá-veis asas quirópteras, dobradas ao comprido das costas.Os braços encaixavam-se por baixo das asas, perto do

    meio de um corpo luzidio e parecido ao de uma lontra,e assemelhava-se surpreendentemente a um ser humano,até as mãos musculosas e de cinco dedos. As pernas eramde forma menos conhecida, inclinadas para trás, com pésde quatro esporas, que podiam ser os de uma ave derapina. A cabeça, encimando pescoço que teria sido duas

    vezes mais comprido do que o humano, era redondo,com testa alta, olhos amarelos, membranas nictitantes por baixo de orlas de sobrancelhas grossas, a cara de nariznegro e focinho comprido, com bigodes de gato, bocagrande e dentes ursinos de um comedor de carne que setornara onívoro. Não exibia ouvidos externos, mas uma

    elevação muscular na cabeça ajudava a controlar o vôo.

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    lhe haviam atirado, apontou para ela e para os seres hu-manos, fez gestos.

    — Compreendo — disse van Rn. — Mais perto queisso eles não se atrevem. Com facilidade o barco deles

     bate no nosso e quebra. Temos de passar essa corda no

    corpo e eles vão puxar de lá. Meu bom São Cristóvão, quecoisa precisa fazer um pobre velho, de ossos doloridos!— Mas existe nossa comida — observou Wace. O cruz-

    ador celeste saltava e afundava cada vezmais. O diomedano saltitava, tomado de nervosismo.— Não! Não! — berrou van Rn, que parecia ter a

    impressão de que apenas berrando bastante poderia at-ravessar a barreira lingüística. Seus braços pareciam ummoinho de vento a se movimentar. — Nunca! Com-preendeu, seu miolo de farinha? É melhor afogar nesteoceano dos infernos que tentar comer o que vocês comem.Nós morremos! Dor de barriga! Suicídio! — e ele apon-

    tava a boca, batia no abdómen, fazia gestos na direção dasrações.Sombrio, Wace reetia que a evolução era algo

    miseravelmente exível. Ali estava um planeta com ox-igênio, nitrogênio, hidrogênio, carbono, enxofre, uma

     bioquímica de proteínas que formava genes, cromos-

    somas, células, tecidos — protoplasma, a julgar porqualquer denição razoável — e o ser humano que ten-tasse comer alguma fruta ou carne de Diomedes morreriaem dez minutos, tendo sofrido mais de cinqüenta reaçõesalérgicas mortíferas. As proteínas não eram do tipo certo.Na verdade, apenas doses de imunização impediam que

    os homens contraíssem febre de pólen crônica, asma e ur-ticária, só por respirarem o ar ou beberem a água dali.

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    próprio ocupado em discutir com o chefe diomedano.Como aquilo se efetuava, sem que uma só palavra deidioma verdadeiro pudesse ser entendida por ambos,Wace não sabia, mas haviam alcançado o ponto em que,indignados, os dois berravam um com o outro. No exato

    instante em que Wace cerrou os dentes e se jogou na águavan Rn, em atitude de rebeldia, sentou-se.Quando o homem mais jovem fez sua chegada à

    canoa, inteiramente encharcado, tornou-se evidente queo comerciante saíra vencendo. Um diomedano podia sus-pender no ar cerca de cinqüenta quilos, por distâncias

    curtas. Três deles improvisaram uma cadeirinha e carre-garam van Rn ali, por cima da água.O comerciante ainda não chegara à canoa, quando o

    cruzador afundou.A canoa agüentava cerca de cem nativos, todos eles

    armados, alguns com capacetes e peitorais de couro lam-

    inado e endurecido. Uma catapulta, que na escuridão maldava para ser vista, achava-se montada na proa. A popaostentava uma cabine, feita de troncos novos, amarradoscom sargaços, que tinha quase a altura de um casteloem caravela medieval. Em cima do teto, dois timoneiroslutavam com o leme comprido.

    — É fácil ver que encontramos um navio da Armada— resmungou van Rn. — Não é tão bom. Com comer-ciantes eu sei falar. Com algum ocial dos infernos, detranças douradas no cérebro, só dá para gritar.

    Ele ergueu os olhos pequenos, cinzentos e próximosum do outro, vendo o céu noturno onde o relâmpago se

    desencadeara.

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    — Eu sou um pobre e velho pecador — berrou. — Masisso, não mereci! Está me ouvindo?

    Após algum tempo os seres humanos foram levados,em meio a corpos demoníacos e ágeis, na direção da cab-ine. A canoa começara a correr diante do temporal,

    usando duas velas maiores e outra menor. A oscilaçãoe o sobe-desce, o estrondo das ondas, vento e trovão,haviam esmaecido na consciência de Wace. Ele só queriadescobrir um lugar seco, tirar as roupas e jogar-se em al-guma cama, dormir por cem anos a o.

    A cabine era pequena. Três seres humanos e dois

    diomedanos quase não deixavam mais espaço para sen-tar. Mas estava quente, e uma lâmpada de pedra pendiado teto, fazendo iluminação fraca, cheia de sombras quese moviam de modo grotesco.

    Ali encontraram o nativo que fora primeiramente aseu encontro. Empunhava a adaga de vidro vulcânico,

    desembainhada, e estava acocorado como um leão à es-preita; mas metade de sua atenção parecia dedicada aooutro, que era mais magro e mais velho, com faixas gris-alhas no pelo e se achava atado a um poste, por laço decouro cru.

    Sandra estreitou os olhos. O desintegrador que van

    Rn lhe dera deslizou discretamente para seu regaço, en-quanto se sentava. O diomedano com punhal relanceou oolhar pela arma e van Rn praguejou:

    — Cabeça de vento, deixou que ele visse a arma?O primeiro autóctone disse algo ao que estava amar-

    rado. Este último emitiu uma resposta com grunhido, de-

    pois voltou-se para os seres humanos. Quando falou, nãoparecia a mesma "língua.

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    — Ah, intérprete! — observou van Rn. — Você falarangli, hem? Ah-ha! — e batia nas coxas, satisfeito.

    — Não, espere. Vale a pena tentar — interveio Wace epassou para o tyrlaniano. — Compreendeu? Só nesta lín-gua podemos nos entender.

    O cativo ergueu a crista da cabeça, sentou-se sobre asmãos e ancas. Quando respondeu, era quase inteligível.— Fale devagar, por favor — pediu Wace, e sentiu que

    a sonolência o abandonava por completo.O signicado, ainda que espesso, foi percebido.Você não usa uma versão do Carnoi que eu tenha

    ouvido antes.Carnoi?... — sim, espere um pouco, certo tyrlaniano sereferira a uma confederação de tribos muito ao sul, comnome assim. — Estou usando a língua da gente de Tyrlan.

    Não conheço essa raça. Eles não hibernam em nossasterras. Nem os Carnoi, de modo costumeiro, mas de vez

    em quando, quando estamos todos na Zona tropical, umdeles passa por perto, de modo que... — e a coisa se tor-nava ininteligível.

    O diomedano com punhal disse algo, levado por im-paciência, obteve resposta sucinta. O intérprete voltou aWace.

    Eu sou Tolk, um moohra de Lannachska.Um quê, de o quê? — indagou Wace.Não é fácil, até mesmo para dois seres humanos, con-

    versarem quando têm de fazê-lo no dialeto diferente deuma língua que não é a materna de ambos. Os sotaquescondensados, impostos pelas cordas vocais humanas e

    ouvidos diomedamos — eles ouviam mais além no sub-sônico, mas não iam tão alto em intensidade — e a curva

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    de resposta máxima era diferente — tornavam aquilo umrecurso penoso e lento. Wace levou uma hora para obteralgumas frases com informações.

    Tolk era especialista em línguas da Grande Revoadade Lannach. Cabia-lhe aprender todas as línguas que

    chegassem ao alcance da tribo, e eram muitas. Talvezseu título pudesse ser designado como o de Arauto, poisentre as obrigações que lhe cabiam achava-se incluída boasoma de declarações cerimoniosas, e presidia um corpode mensageiros. A Revoada achava-se em guerra com osDrak'honai, e Tolk fora capturado em refrega recente. O

    outro diomedano presente chamava-se Delp, e era ocialde elevada patente dos Drak'honai.Wace adiou maiores declarações a respeito de si

    próprio, menos pelo desejo de ser sigiloso do que por per-ceber como seria difícil a empreitada. Mas pediu a Tolkpara advertir Delp no sentido de que os alimentos vindos

    do cruzador, embora fossem assenciais aos seres vindosda Terra, matariam um diomedano.E por que haveria eu de dizer-lhe isso? — perguntou

    Tolk, com sorriso humanamente desagradável.Se não disser, poderá ter diculdades, quando souber-

    em que não o fez — observou Wace.

    É verdade — e Tolk falou com Delp, e o ocial emitiuuma resposta rápida.Ele diz que não serão maltratados, a menos que o

    tornem necessário — explicou Tolk. — Ele diz que vocêdeve aprender a língua deles, para que possam falar umcom o outro.

    — O que foi isso? — interrompeu van Rn. Wace o pôsa par e van Rn explodiu.

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    — O quê? O que diz ele? Ficar aqui até... ora, milparafusos! Pelo santo demônio! Eu falo com esse sapoimundo!

    Ato contínuo, ergueu-se um pouco, ia car em pé. Asasas de Delp estralejaram juntas, ele exibiu os dentes. A

    porta foi escancarada e dois guardas olharam para o in-terior. Um deles empunhava machadinha, o outro estavacom um ancinho de madeira, as pontas em fragmentos depederneira.

    Van Rn levou a mão à arma, a voz de Delp se fezouvir estridentemente. Tolk traduziu:

    — Ele disse para haver calma.Após mais conversas e mediante grande esforço eadivinhação da parte de Wace:

    — Ele não quer o mal de vocês, mas tem que pensarem seu próprio povo. Vocês são uma novidade. Talvezpossam ajudá-lo, talvez sejam tão malécos que não se

    atreve a soltá-los. Precisa de tempo para vericar. Vocêsvão tirar todas as roupas e objetos e deixar aos cuidadosdele. Receberão outra roupa, porque parece que não têmpelo.

    Após Wace ter interpretado para van Rn, o comerci-ante disse, surpreendentemente calmo:

    — Acho que não temos outra coisa a fazer, neste mo-mento. Eu posso derrubar muitos deles. Talvez possamostomar todo o barco, mas não podemos navegar até voltarpara casa. Morreríamos a caminho. Se eu fosse mais

     jovem, sim, pelo bom São Jorge, lutaria por questão deprincípios gerais. Sozinho eu o arrebentaria e faria um

    xilofone nas costelas do sujeito, era capaz de obrigar toda

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    usar coisas mais avançadas, de relógios a réguas de cál-culo e motores Diesel, e poderiam pagar preços propor-cionalmente mais elevados.

    Recordou-se, então, de onde estava: a jangada Ger-unis, quartel-general do Ocial Executivo Chefe da Frota;

    e lembrou-se, também, da criatura amável que se achavasentada no convés superior, conversando com ele e que,na verdade, era o seu captor.

    Quanto tempo decorrera, desde a queda? Quinze diasdiomedanos? Seria mais de uma semana, no cômputoterrestre. Uma porcentagem da comida terrestre já fora

    gasta.Ele se lançara a aprender a língua dos Drak'ho,usando para isso o colega de prisão, Tolk. Era uma sorteque, por necessidade, a Liga houvesse aperfeiçoadomuito antes os princípios pelos quais a instrução podiaser transmitida dentro de tempo mínimo. Quando se vê

    adequadamente focalizada, a mente treinada só precisaouvir algo uma vez. Tolk utilizava sistema quase idêntico;podia nunca ter visto o metal, mas o Arauto era se-manticamente avançado.

    Pois bem — disse Wace, ainda com hesitações e la-cunas no vocabulário, mas de modo adequado para o to

    em mira. — Você sabe que esse mundo-bola gira em voltado Sol?Bom número, entre os lósofos, acredita nisso — disse

    Delp. — Eu sou criatura prática, nunca me importei muitose fosse assim ou assado.

    O movimento de seu mundo é incomum. Na verdade,

    por muitos aspectos este lugar é invulgar. O seu sol é maisfrio e vermelho do que o nosso, de modo que seu lar tem

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    menos calor. O sol tem uma massa... como dizer?... oh, va-mos chamar de peso. .. não muito menor que o nosso; e seacha a quase a mesma distância. Assim, Diomedes, comochamamos o seu mundo, tem o ano um pouco maior queo nosso, na

    Terra. Setecentos e oitenta e dois dias diomedanos,não é? Diomedes tem o dobro do diâmetro da Terra, masfaltam-lhe as substâncias pesadas que são achadas namaioria dos mundos. Daí esta gravidade. Assim é queeu peso apenas um décimo a mais, neste planeta, do quepesaria na Terra.

    — Não compreendo — declarou Delp.Ora, bem, deixe para lá — exclamou Wace, de-salentado.

    O que é tão incomum no movimento de Ikt'ha-nis? —perguntou Delp. Era o nome que davam àquele planeta,e não signicava "terra", mas em língua onde os nomes

    fossem comparados, poderia ser traduzido por "Oceanes-ta", e era feminino.Wace precisou de tempo para responder, pois os de-

    talhes técnicos ultrapassavam-lhe o vocabulário.A questão era simples. A inclinação axial de Diomedes

    alcançava quase noventa graus, de modo que os pólos

    se encontravam virtualmente no plano da eclíptica. Masesse fato, conjugado ao sol fraco, frio e ultravioleta, criaraaquele tipo de vida.

    Em qualquer dos pólos quase metade do ano era pas-sada em noite total. A luz diurna sem m, da outra met-ade, não servia de compensação, na verdade; havia es-

    pécies solares, mas eram hibernantes sem importância.Mesmo à latitude de quarenta e cinco graus, uma quarta

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    parte do ano era escuridão, em inverno mais rigoroso doque a Terra conhecera em qualquer época. Era até essaextensão do norte ou sul que qualquer diomedano inteli-gente conseguia viver: a migração anual gastava partedemasiada de seu tempo e energia, e assim recaíam em

    luta estagnante pela existência, em nível paleolítico. Ali,a trinta graus ao norte, o Inverno Absoluto durava umasexta parte do ano, pouco mais de dois meses terrestres— e o vôo até o terreno equatorial de procriação e avolta durante essa época durava apenas algumas sem-anas. Desse modo, os Lannachska eram criaturas de al-

    gum cultivo e conhecimento. Os Drak'honai tinham-seoriginado de distância ainda mais ao sul.Não se podia ir além de certo ponto, entretanto,

    faltando metais. Diomedes, naturalmente, dispunha demagnésio, berílio e alumínio em abundância, mas de queadiantavam, se era preciso aperfeiçoar, antes, a tecnologia

    eletrolítica, que necessitava de cobre ou prata?Delp inclinou a cabeça.Está dizendo que é sempre equinócio, em sua Terra?Não é bem assim. Mas coisa bem próxima, comparada

    a seus padrões!Aí está o motivo para sua falta de asas. A Estrela Polar

    não lhes deu asas, porque não precisam delas.Sim, talvez. De nada nos valeriam, aliás. O ar da Terraé rarefeito demais para que alguém de seu tamanho ou domeu pudesse voar por força própria.

    O que quer dizer, rarefeito? O ar. .. é ar.Este ar é tão denso, que se tivesse quantidades pro-

    porcionais de oxigênio, ou mesmo de nitrogênio, eu es-taria envenenado. Por sorte, a atmosfera diomedana tem

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    79% de néon. O oxigênio e nitrogênio são participantesmenores, as pressões parciais deles não alcançam muitomais do que na Terra. Da mesma forma, o gás carbônico eo vapor de água.

    Após momentos, Wace prosseguiu:

    — Vamos falar a nosso respeito. Você entende que asestrelas são outros sóis, como o seu, porém muito maisdistantes; e que a Terra é um mundo em estrela assim?

    Entendo. Ouvi quando nossos lósofos falavam.Acredito em você.

    E compreende qual é nosso poder, para atravessar

    o espaço entre as estrelas? Sabe como podemosrecompensá-los por sua ajuda e nos devolver, como nos-sos amigos podem puni-los, se nos mantiverem aqui?

    Por momentos Delp abriu as asas, o pelo eriçou-se nascostas e os olhos se tornaram frinchas amarelas. Ele per-tencia a uma raça altiva.

    Não tardou, porém, a afrouxar o corpo. Por cima doabismo das raças o ser humano podia perceber como Delpse achava perturbado.

    — Você próprio contou, Terra'ska, que atravessaramo oceano vindos do oeste, e em milhares de obdisai nãoviram uma só ilha. Isso conrma nossas explorações por

    lá. Não poderíamos voar tão longe, levando vocês ou,mesmo, uma mensagem a seus amigos, se não temosonde parar e descansar às vezes.

    Wace assentiu, devagar, com cuidado.Percebo. E não poderiam levar-nos em canoa rápida

    antes que nossa comida acabasse.

    Receio que não. Mesmo com vento a favor por todoo caminho, um barco é muito mais lento que as asas.

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    Levaríamos meio ano, ou mais ainda, para ir de barcopela distância de que você fala...

    Mas deve haver algum modo...Talvez. Mas estamos travando uma guerra dura,

    lembre-se. Não podemos desperdiçar muito esforço ou

    trabalhadores, por causa de vocês. Não creio que o Almir-antado pense, sequer, em fazer a tentativa.Ao sul cava Lannach, ilha do tamanho da Bretanha.

    Dali Holmenach, um arquipélago, curvava-se em direçãoao norte por algumas centenas de quilômetros, indo a re-giões ainda mergulhadas no inverno. Desse modo as il-

    has agiam como fronteira e escudo, denindo o Mar deAchan, protegendo-o das grandes correntes frias de OOceano.

    Era onde estavam os Drak'honai.Nicholas van Rn, em pé no convés principal do Ger-

    unis, tava a parte principal da Frota, os olhos fuzilantes.

    O casaco e calças de tecido grosseiro, feitos às carreiraspor um fabricante de velas, irritavam a pele que desdemuito se acostumara a tecidos mais caros. Estava fartode presunto ao açúcar e pêssegos com conhaque, aindaque, terminada essa alimentação, começasse a fome quelevaria à morte. A noção de ser prisioneiro, cujos desejos

    ninguém precisava consultar, causava-lhe a mais com-pleta angústia. A reexão que o fazia imaginar quantodinheiro a Companhia devia estar perdendo, por falta desua supervisão pessoal, causava mal quase idêntico.

    — Bah! — trovejou. — Se eles quisessem levar a gentede volta, seria possível.

    Sandra dedicou-lhe um olhar de fastio.

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    — O que estarão fazendo os Lannacha, enquanto osDrak'honai juntam esforços para nos levarem de volta?— retorquiu. — Ainda está bem renhida, a guerra, deles.Drak'ho poderia perder, não?

    Mas que absurdo dos infernos! — e ele brandia o

    punho peludo e cerrado no ar. — Enquanto eles camnessas briguinhas, por causa de territórios sem pé nemcabeça, a Temperos & Bebidas está perdendo um milhãode créditos por dia!

    Para ambos os lados a guerra é questão de vida oumorte — observou ela.

    Para nós também — e ele esgaravatou o bolso, procur-ando o cachimbo, lembrou-se de que os meers-chaums es-tavam no fundo do mar, gemeu. — Quando eu descobrirquem colocou a bomba em meu cruzador... — não lheocorria a idéia de apresentar desculpas a ela, por tê-lametido em tal situação. Mas, anal, talvez fosse ela a

    causa indireta da diculdade. — Bem, é verdade quetemos de resolver a questão aqui, ao que vejo —prosseguiu, com mais calma. — Terminar a guerra paraeles, de modo que possam fazer coisas importantes, comolevar-me para casa.

    Sandra fez carranca, do outro lado das águas que cin-

    tilavam com a luz do sol.Você se refere a ajudar os Drak'honai? A mim nãoagrada. Eles são os agressores. Mas, também, estavamcom as mulheres e os pequeninos passando fome... — elateve um suspiro. — É difícil desemaranhar a coisa toda.Que seja assim, então.

    Oh, não! — e van Rn coava a barbicha: — Nós va-mos ajudar o outro lado. Os Lannachska.

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    O quê! — e ela recuou da amurada, o queixo caiu. —Mas... mas...!

    A questão — explicou,van Rn — é que preciso de unsnegocinhos na política. É necessário ao comerciante hon-esto, que procura apurar um pouco de lucro, com muito

    esforço, ou estão algum político do diabo vem e arrancao dinheiro deles, para alguma escola idiota ou pensãode velhice. A política aqui não é muito diferente do quetemos pela galáxia. É uma cultura de aristocratas poder-osos, esta Frota, mas o equilíbrio do poder está no trono...o Almirantado. Pois bem, o Almirante cou velho e o

    lho, o príncipe da coroa, tem mais força do que deviater. Eu co de ouvidos em pé para os mexericos, eles es-quecem como a gente escuta melhor que eles nessa atmos-fera densa que parece sopa de ervilha com salsichas. Eusei. Aquele é durão, o T'heonax.

    Nós, então, ajudamos os Drak'honai a ganharem da

    Revoada. E daí? Eles já estão vencendo. A Revoada sóconsegue fazer guerrilhas, por enquanto, nas partesselvagens de Lannach. Continuam poderosos, mas a Frotaestá por cima e só precisa manter o status quo para ven-cer. De qualquer modo, o que podemos nós, a quem o

     bom Deus não ofereceu asas, fazer em guerrilhas? Vamos

    mostrar a T'heonax como usar um desintegrador? Bem,como mostramos a ele o modo de achar alguém em quemusar? — prosseguia van Rn.

    Hmm... sim — e ela assentiu, hirta. — Você quer dizerque nada temos para oferecer aos Drak'honai senão ocomércio e tratado mais tarde, se nos levarem de volta.

    Exato. E que pressa pode existir da parte deles, emfazer parte da Liga? Eles têm cautela natural contra

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    desconhecidos como nós, que viemos da Terra. Preferemconsolidar-se na nova conquista, antes de lidarem comestranhos poderosos. Eu escuto os mexericos, quesabendo. Sei qual é a corrente de pensamento em torno denós. Talvez T'heonax nos deixe morrer de fome, ou corte

    nossas goelas. Talvez jogue nossa comida ao mar e maistarde diga que nunca ouviu falar da gente. Ou, mesmo,quando um barco da Liga nalmente o achar, ele diz: Já,tiramos alguns seres humanos do mar e fomos bons paraeles, mas não deu para levar de volta a tempo.

    Mas eles poderiam... mesmo... quer dizer, Libero van

    Rn, como é que você nos levaria de volta para casa, semqualquer espécie de ajuda diomedana?Bah! Detalhes! Não sou engenheiro. Engenheiros, eu

    contrato. A mim não cabe fazer o impossível, cabe man-dar os outros fazerem para mim. Mas como posso organ-izar as coisas, quando sou mais da metade prisioneiro de

    um rei que não se interessa em conhecer o meu povo? Eessa, responda!Enquanto que a tribo Lannach está apertada, e deixará

    você, como diz, fazer alguma coisa. Sim — e Sandra ria,com forte dose de bom-humor genuíno. — Ótimo, meuamigo. Agora, só uma pergunta: como é que chegamos

    aos Lannacha?Ela acenava com a mão, mostrando o terreno em volta.Era visão das menos animadoras.

    A Gerunis era jangada típica, estrutura grande, detroncos leves e duros, parecidos à balsa, amarrados entresi com espaço bastante e exibilidade para se moviment-

    arem diante do mar. Uma parede de pontaletes, atraves-sados nas toras transversais, formava espaço fechado e

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    volumoso, apoiando um convés principal, de pranchaspenosamente ajustadas umas às outras. Popa e castelo di-anteiro erguiam-se em ambas as extremidades, os telha-dos lisos sustentando a artilharia e, no caso do primeiro,o timão desproporcional. Entre eles havia cabines com

    teto de sargaço, para armazenamento, ocinas e habit-ação. As dimensões gerais eram de cerca de sessenta met-ros por quinze, anan-do-se na direção de uma proa falsa,que proporcionava uma plataforma de catapulta e algumaquadinamismo.

    O mastro dianteiro e o principal ostentavam, cada

    qual, três grandes velas quadradas. Uma mezena de tipolatino apresentava-se logo à frente da popa. Com ventofavorável — lembrando-se da força dos ventos no planeta— aquela embarcação que parecia pesadona e desajeitadaalcançava diversos nós de velocidade e, mesmo em parparado, podia ser movida a remos. Sustentava cerca de

    cem diomedanos e mais as mulheres e lhos. Deles, dezcasais eram aristocratas, com apartamentos particularesna popa; vinte eram marujos de patente, com habilidadesespeciais e direito a um aposento por família, nas cabinesdo convés principal. Os demais eram marujos comuns,alojados no castelo da frente.

    Não muito distante deles utuava o resto do esquad-rão. Havia jangadas de diversos tipos, algumas principal-mente unidades habitacionais como a Gerunis, outras deconvés tripla para carga, algumas exibindo compridos tel-heiros em que peixes e sargaços eram trabalhados. Muitasvezes juntavam-se diversas ao mesmo tempo, a m de

    formarem uma pequena ilha temporária. Amarradas aelas, ou patrulhando entre elas, viam-se as canoas com

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    utuante lateral. No céu, viam-se asas em movimento,onde os destacamentos aéreos mantinham vigilância con-tra o inimigo: eram guerreiros prossionais de tempo in-tegralmente dedicado à guerra, formando o cerne da forçamilitar de Drak'ho.

    Além desse esquadrão mais distanciado, as outras di-visões da Frota escureciam a água, até onde os olhos hu-manos alcançavam. A maioria se empenhava em pesca.Era trabalho brutalmente difícil e pesado, onde as redescompridas se viam arrastadas por força muscular. Quasetoda a vida de um Drak'ho parecia devotada a essa tarefa

    esgotante. Mas, daqueles campos uidos, estavam retir-ando uma colheita que saltava e luzia.— Precisam trabalhar como escravos — observou van

    Rn, dando um tapa na amurada rme. — Isto é madeiradura, mesmo quando verde, e eles a derrubam e trabal-ham, com ferramentas de pedra e vidro! Eu gostaria de

    contratar alguns desses camaradas, se os sindicalistas nãose metessem no meio!Sandra bateu com o pé. Não se queixara do perigo de

    morte, frio e desconforto, nem da amolação que eram aslições de língua, dadas por Tolk e passadas por Wace.Mas há limites.

    Ou você fala direito, Libero, ou irei para outro lugar!Eu perguntei como vamos sair daqui.Vamos ser salvos pelos Lannachska, naturalmente —

    disse van Rn. — Ou melhor, eles vêm roubar a gente.Sim, desse modo é melhor. E então, se eles não conseguir-em, nosso amigo Delp não pode dizer que foi nossa culpa

    sermos tão desejados por ambas as partes.O corpo dela retesou-se.

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    De que está falando? Como vão eles saber que estamosaqui?

    Talvez Tolk conte a eles.Mas Tolk está mais preso ainda do que nós, não?— É. Mas... — e van Rn esfregava as mãos. — Nós

    zemos um planozinho. Ele tem boa cabeça, esse ca-marada. Quase tão boa quanto a minha.Sandra o tava, cheia de fúria.E você se digna a me contar como planejou com Tolk,

    sob vigilância do inimigo, quando nem mesmo conseguefalar Drakho?

    Ora, eu falo Drakho muito bem — declarou van Rn,sem se afobar, descansadamente. — Não acabou de ouvirquando eu contava que escuto todo o palavrório a bordo?Você acha que só porque eu crio tantos problemas, e cosentado muitas horas todos os dias, recebendo instruçõesespeciais de Tolk, é porque eu sou um burro velho que

    não aprende com facilidade? Conversa ada? Na metadedo tempo nós murmuramos juntos, e ele me ensina suaprópria língua de Lannach. Ninguém nesta jangada con-hece a língua deles, de modo que quando nós fazemos

     barulhos engraçados falando, eles pensam que talvezTolk esteja aprendendo palavras da Terra, viu? Eles

    acham que ele desistiu de me ensinar por meio de Wace eestá fazendo força para eu aprender algum Drak'ho. Ora,ora... são uns bobocas, com os diabos! Ainda ontem conteia Tolk uma piada forte em Lannachamael, ele cou muitochateado. Aí está a prova de que o pobre e velho van Rnnão tem a cabeça cheia de banha. Não estamos falando do

    resto de minha anotomia, é claro.

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    Sandra permaneceu calada por algum tempo, procur-ando entender o que signicava aprender duas línguasnão-humanas simultaneamente, uma delas proibida.

    Não sei porque o Tolk parece chateado. A piada é boa.Escute só: havia um vendedor que viajava por um desses

    planetas coloniais, e...Dá para adivinhar o motivo — interveio Sandra, maisdo que depressa. — Quer dizer, o motivo pelo qual Tolknão achou engraçado. É que... Libero Wace estava explic-ando, um destes dias. Aqui em Diomedes eles não têmo traço de... digamos.. . sexualidade constante. Eles re-

    produzem apenas uma vez por ano, nas zonas tropicais.Não existem famílias, em nosso sentido da palavra. Elesnão considerariam nosso... — e ela corou — nosso in-teresse por todo o ano, nessas questões, como coisa muitonormal ou educada.

    Van Rn assentiu.

    Sei de tudo isso. Mas Tolk viu alguma coisa da Frota;e, na Frota, eles têm casamento, nascem em qualquer al-tura do ano, como os seres humanos.

    Fiquei com essa impressão — foi a resposta dada porSandra, lentamente — e isso me intriga. O Libero Wacediz que o ciclo de reprodução estava na hereditariedade

    deles. Instituto, glândulas, ou o que se chame agora.Como é possivel a Frota viver diversamente do que asglândulas ordenam?

    O fato é que vivem — e van Rn sacudiu os ombrosfortes. — Talvez a gente vá deixar algum cientista pensarno assunto para escrever uma tese mais tarde, hem?

    De repente ela lhe agarrou o braço e ele sentiu. O olhardela era um incêndio verde.

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    Mas você não disse... o que vai acontecer. Como vaiTolk levar notícias nossas a Lannacha? O que vamosfazer?

    Não faço a menor idéia — respondeu ele, despreocu-padamente. — Eu toco de ouvido.

    Inclinou, então, a cabeça, para olhar o céu pálido eavermelhado. A diversos quilômetros de distância, comenorme quantidade de madeira, sustentando o que eraquase um castelo inteiro, utuava o capitanea de todos osDrak'ho. Uma revoada em asas de morcego erguia-se delá, vinha em torrente na direção do Geru-nis. Baixinho,

    no céu, ouvia-se o som de uma concha em que alguémsoprava.— Mas acho que talvez vamos saber logo — terminou

    van Rn — porque essa majestade reumática vem aí, paradecidir a nosso respeito.

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    Capítulo 4

    Os soldados da guarda pessoal do Almirante, cem guerreos em tempo integral de vigilância, pousaram com louvávprecisão e levaram as armas à posição correta. A pedra polido couro bem oleado, reetiam a luz embotada do dia, em r

    ances. O vento das asas estendia-se pelo convés. Uma bandede cor púrpura, ornamentada em escarlate, desfraldava-se ala tripulação do Gerunis, respeitosamente reunida em volta ordoame e sobre o teto do castelo dianteiro, saiu-se com umoufenha aclamação ritual.

    Delphyr Orikan adiantou-se da popa e acocorou-se dian

    do soberano. Sua esposa, a bela Rodonis Axollon e os dois lnhos, vieram por trás, de barrigas no convés e asas encobrin

    os olhos. Todos usavam as faixas escarlates e braceletes de jóique eram a vestimenta ocial.

    Os três seres humanos apresentaram-se ao lado de DeVan Rn vetara qualquer sugestão de que também

    abaixassem.— Não está certo para um membro da Liga Polosotécniccar de joelhos e cotovelos. De qualquer modo, meu corpo ndá para isso — explicara.

    Tolk de Lannach sentava-se, altivo, ao lado. de van RTinha as asas enadas em uma rede e o laço no pescoço e

    eguro por um marinheiro forte. Tinha os olhos embaçadravados no Almirante, como se fossem os de uma cobra.

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    — E os guerreiros que formavam a guarda de honrapara Delp, seu comandante, exibiam alguma parte damesma frieza, na aparência — não para Syranax, maspara o lho, o herdeiro em quem o Almirante se apoiava.Suas lanças, ancinhos, machadinhos, e zarabatanas com

     baionetas de madeira estavam empunhados em gesto derespeito total, mas, ainda assim, empunhados.A Wace pareceu que o nariz desproporcional de van

    Rn devia ter inclinação anormal à dissensão. Só agorapercebia a tensão com que seu chefe, de modo evidente,estivera contando.

    Syrariax pigarreou, piscou e apontou o focinho paraos seres humanos.— Qual de vocês é o capitão? — perguntou. A voz

    ainda era forte, mas não vinha do fundo dos pulmões ehavia, nela, um arfar mucoso.

    Waee deu um passo à frente. Sua resposta foi a que

    van Rn, apressadamente e sem se dar ao trabalho de ex-plicar, ordenou que desse.— O outro é nosso chefe, senhor. Mas ainda não sabe

    falar bem a língua daqui. Eu mesmo tenho diculdadese por isso precisamos usar este prisioneiro Lannach'hocomo intérprete.

    Theonax fez careta.E como haveria ele de saber o que vocês querem dosdizer?

    Ele nos tem ensinado a língua daqui — explicou Wace.— Como sabe, senhor, as línguas estrangeiras são a ocu-pação principal dele. Devido a essa habilidade natural,

    e a experiência que tem conosco, muitas vezes poderá

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    adivinhar o que queremos dizer, enquanto nós pro-curamos a palavra certa.

    Parece razoável — assentiu Syranax, meneando acabeça grisalha. — Está certo.

    Será, mesmo? — duvidou Theonax, dedicando a Delp

    um olhar de punhalada, que foi retribuído à altura.Então! Com os diabos, agora falar eu — e van Rn seadiantou. — Meu bom amigo... quer dizer... bem... pok-ker... qual ser a palavra? Meu Almirante, nós... quererdizer, a gente falar como bons irmãos.. . bons irmãos ser oque eu falar, estar certo, Tolk?

    Wace estremecia. A despeito do que Sandra lhecochichara, quando levados à presença das visitas, achavadifícil crer que sotaque e prosódia tão ridículos pudessemser ngidos.

    E para que? Syranax remexeu-se, impaciente.Talvez seja melhor falarmos por meio de seu compan-

    heiro — sugeriu.Tripas de foca! — berrou van Rn. — Ele? Não, não,nós falar, eu falar sozinho. Direto, de uma vez, eu falar,qual ser mesmo seu título? Nós falar como irmão, hem?

    Syranax suspirou, mas não lhe passou a idéia de con-trariar o ser humano. Um aristocrata alienígena con-

    tinuava sendo aristocrata, aos olhos daquela sociedadedominada por castas e como tal podia, com certeza, exigiro direito de falar por conta própria.

    — Eu os teria visitado antes — disse o Almirante —mas vocês não estavam em condições de conversarcomigo e havia muito que fazer. Quando se tornam mais

    desesperados, os Lannach'honai cam mais perigosos nas

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    incursões e emboscadas. É difícil passar-se um dia semtravar, pelo menos, uma batalha das menores.

    — Hem? — e van Rn contava as declinações nos de-dos. — Xammagatai... deixe ver, xammagan, xammagai...oh, sim. Uma briguinha. Eu não fazer lutas, velho Almir-

    ante... quer dizer, honrado Almirante. ..Theonax se eriçava.— Veja como fala, Terreno! — rosnou, cheio de raiva.

    Com freqüência ele estivera na jangada Gerunis, para ol-har e examinar os prisioneiros, os objetos retirados a elesestavam em seu poder. Não demonstrava grande re-

    speito, mas, como Wace achara, Theonax não era capaz deadmitir que alguém pudesse ser-lhe superior, de modo al-gum.

    Syranax deixou-se no convés, em posse de leão em re-pouso. Theonax permaneceu em pé, hirto, na presença deDelp.

    Tenho recebido informações sobre você, é claro —prosseguiu o Almirante. — Elas são... digamos... notáveis.Sim, notáveis. Foi alegado que vocês vêm das estrelas.

    Estrelas, sim! — e van Rn sacudia a cabeça, em as-somo de imbecil aição. — Nós, das estralas. Muito,muito longe.

    É também verdade que sua gente instalou um postona outra margem de O Oceano?Van Rn entrou em confabulação com Tolk. O Lan-

    nacha apresentou a pergunta em palavras infantis. Depoisde diversas explicações, o rosto de van Rn iluminou-se.

    Sim, sim, nós do outro lado do Oceano. Muito, muito

    longe.E seus amigos não virão à sua procura?

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    Eles procurar, sim, eles procurar muita coisa. Pela bar- ba de Papai Noel, procurar tudinho. Vocês tratar a gente bem, ou nossos amigos descobrir e — van Rn se in-terrompeu, parecendo confuso, voltou a confabular comTolk.

    Acredito que o Terreno quer pedir desculpas por faltade tato — explicou secamente o Arauto.Pode ser um tipo verdadeiro de falta de tato— observou Tyranax. — Se os amigos dele podem

    realmente encontrá-lo, enquanto estiver vivo, muita coisadependerá do tipo de tratamento que receber de nós,

    hem? A questão é saber se podem encontrá-lo a tempo. Oque me diz dessa, Terreno? — e empurrou a última per-gunta como se fosse uma javelina.

    Van Rn recuou, erguendo as mãos como a defender-se de um golpe.

    — Socorro! — choramingou. — Você ajudar nós, levar

    nós para casa, velho Almirante... honrado Almirante. ..nós ir para casa e pagar muito, muito peixe.T'heonax murmurava ao ouvido paterno:— A verdade aparece... embora eu já tivesse suspeit-

    ado. Os amigos dele não têm qualquer meio de encontrá-lo aqui, antes que morra de fome. Se tivessem, ele não

    estaria suplicando nossa ajuda, mas exigindo o que lhedesse na veneta.— Eu teria feito o mesmo, em qualquer hipótese— respondeu o Almirante. — Nosso amigo não tem

    grande experiência nessas questões, hem? Muito bem, é bom saber com que facilidade se pode arrancar a verdade

    dele.

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    — Assim sendo — disse Theonax, cheio de desdém,sem se dar ao trabalho de falar baixo —, o único problemaestá em arrancar algum valor desses animais, antes quemorram.

    Sandra arquejou, Wace agarrou-lhe o braço e abriu a

     boca, percebeu o murmúrio apressado de van Rn:Cale a boca! Não diga nada, seu cabeça de balde! —e o mercador retomou o sorriso tímido, a atitude de per-plexidade aita.

    Não está certo! — explodiu Delp. — Pela Estrela Polar,senhor, estes são hóspedes, e não inimigos. Não podemos

    apenas usá-los!E que mais faria você? — perguntou Theo-nax, dandode ombros.

    Seu pai piscava e murmurava, como o sopesar a ar-gumentação de ambos os lados. Alguma coisa como umafaisca saltava entre Delp e Theonax. Ela percorria as leir-

    as dos tripulantes da Gerunis e também os guardas pess-oais do Almirante, como um retesamento imperceptível,ondulações mínimas dos músculos, oscilações de armasum pouco à frente.

    Van. Rn pareceu perceber imediatamente tudoaquilo. Recuou de modo teatral, encobriu os olhos com as

    mãos e se pós de joelhos diante de Delp.Não! Não! berrava. — Você levar nós pra casa, vocêajudar nós, nós ajudar você!

    O que é isso? — fora pergunta feita no rosnado de an-imal selvagem, vinda de Theonax. Ele se lançou à frente.— Vocês estiveram com entendimento, não foi?

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    O que quer dizer? — e os dentes do Executivo es-talaram, a centímetros do nariz de Theonax, os esporõesnas asas erguiam-se como facas.

    Que tipo de ajuda essas criaturas iam oferecer-lhe?O que acha? — rebateu Delp, e lançou a luva ao ar,

    acocorou-se à espera.Theonax não recolheu a luva lançada.— Alguns poderiam supor que você estava com a

    idéia de livrar-se de rivais dentro da Frota — observou,muito satisfeito.

    No silêncio que se formou sobre a jangada, Wace

    ouvia como as formas de dragão, no cordoame, res-piravam com mais rapidez. Dava para ouvir, também, oestalar da madeira e dos cabos, o bater das ondas e o mur-múrio baixo e úmido do vento. Quase ouvia os punhaisde obsidiana serem desembainhados.

    Se um príncipe antipático encontra desculpa para

    prender o subordinado que merece a conança doscomandados, torna-se provável que surjam homens dis-postos a lutar. Não acontecia de outra maneira, ali emDiomedes.

    Foi Syranax quem rompeu o silêncio explosivo.Houve algum tipo de mal-entendido — disse, com a

    voz bem alta. — Ninguém vai acusar ninguém de coisaalguma, na base da tagarelice dessa criatura sem asas. Oque está havendo por aqui? Anal de contas, o que poder-ia ele fazer por qualquer um de nós?

    É o que resta a ver — respondeu Theonax. — Mas umaraça que sabe voar sobre O Oceano em menos de um dia

    equinocial deve conhecer algumas artes bem úteis.

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    Ele rodopiou, voltando-se para van Rn, que tremiada cabeça aos pés. No deleite do inquisidor cujo suspeitocedeu, ele disse sucintamente:

    Talvez possamos levá-los de algum modo para casa,se nos ajudar. Não temos certeza de como levá-los para lá.

    Talvez suas coisas possam nos ajudar. Mostre-nos comousa suas coisas.Oh, sim! — disse van Rn, entrelaçando as mãos,

    sacudindo a cabeça. — Oh, sim, bom senhor, eu querermostrar.

    Theonax deu ordem, um Drak'ho deslizou pelo con-

    vés, trazendo uma caixa grande.— Tenho guardado estas coisas — explicou o her-deiro. — Não mexi em nada, a não ser algumas facasfeitas dessa substância que brilha.

    Por momentos seus olhos fulguraram, em assomo desincero entusiasmo.

    — Você nunca viu facas assim, Pai. Elas não cortamnem serram, elas chegam a tirar fatias! Podem trabalhar amadeira dura!

    Abriu, então, a caixa. Os ociais de mais patente es-queceram toda a formalidade e dignidade, cercaram-no,para ver o interior. Theonax, com um gesto, fê-los recuar.

    — Vamos dar a esse monte de banha o espaço para ademonstração. Arqueiros, dardeiros — ordenou— quem atentos. Visem de todos os lados. Disparem,

    se for necessário.— Está pensando em abrir caminho lutando? — sibil-

    ou Wace. — Não pode!

    Dito isso, tentou colocar-se entre Sandra e a ameaçadas armas que, de súbito, os tinham rodeado.

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    — Vão encher-nos de echas, antes que...— Eu sei, eu sei — resmungou van Rn, soo voce. —

    Quando é que vocês, meninos orgulhosos, vão aprenderque o patrão, só por ser velho e sozinho, ainda não estácom teias de aranha no cérebro? Fique para trás, rapaz, e

    quando a bagunça começar, vá para o convés e cave um buraco.— O quê? Mas...Van Rn voltou-lhe as costas largas e disse, em

    Drak'ho horroroso, no tom de servil aição:— Aqui tem... como chamar isto. .. uma coisa. Fazer

    fogo. Fazer buracos. Poder crer!Um lança-chamas portátil... pequeno assim? — per-guntou T'heonax e, por momentos, o terror aguçou-lhe avoz.

    Eu já disse — interveio Delp — que podemos ganharmais, lidando honrosamente com eles. Pela Estrela Polar,

    acho que podemos levá-los a seu lar, se zermos um es-forço!Você poderia esperar até que eu estivesse morto, antes

    de car com o Almirantado.Se pretendera gracejar, as palavras explodiram como

    uma bomba. Os marinheiros mais próximos, que as

    ouviram, caram paralisados, arquejantes. Os guerreirosda guarda do Almirante puseram as mãos nos arcos ezarabatanas. Rodonis Axollon abriu as asas sobre os l-hos, e rosnou. As mulheres que trabalhavam no convés,amontoadas no castelo da frente, emitiram choraminga demedo, calculando o que se seguiria.

    Foi Delp quem salvou a situação.

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    Quietos! — berrou. — Calma, por aí! Muita calma! Portodos os demônios nas Estrelas da Chuva, essas criaturaslevaram-nos à loucura?

    Olhar aqui — prosseguia van Rn, tagarelando. — Vero desintegrador. Nós chamar de desintegrador. .. puxar

    aqui...O feixe de íons, projetado, alcançou o mastro princip-al. Van Rn o arredou no mesmo instante, mas já zera

     buraco com centímetros de profundidade, na madeiraduríssima. Sua chama entre azul e branca lambeu o con-vés, queimou um cabo enrolado, transformando-o em fu-

    maça, e arrancou uma parte de amurada, até que soltasseo gatilho.Os Drak'honai explodiram em gritos.Passaram-se minutos até que houvessem voltado às

    posições de antes. Os que tinham sido levados pela curi-osidade, nas embarcações próximas, ainda salpicavam o

    céu, em vôo de um para outro lado. Eram, entretanto,tecnologicamente avançados, a seu modo. Estavam maisagitados do que assustados.

    Deixe ver isso! exclamou T'heonax, e estendeu a mãopara a arma.

    Esperar, esperar meu bom senhor — e van Rn abria

    a câmara, em movimentos encobertos pelas mãos grossas,tirava a carga. — Tornar seguro, primeiro. Tomar, agora.T'heonax revirava o desintegrador nas mãos.— Que arma! — suspirava. — Que arma!Em pé, coberto por suor gelado, esperando que van

    Rn se saísse com a variedade de inferno que estivera

    preparando até então, ainda assim Wace reetia que oDrak'honai superestimava o valor da arma. Natural,

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    porém. Arma desse tipo só teria efeito sério na tática deluta terrestre e o velho safardana ia desarmando calma-mente todos os desintegradores. Diomedano algum, semsaber lidar com eles, ia obter resultado com os desinteg-radores.

    — Tornar seguro — burborejava van Rn. — Um,dois, três, quatro, cinco eu tornar seguro... Quatro? Cinco?Seis?

    Começava a revirar as roupas amontoadas, bem comocobertores, aquecedores, fogão portátil e outras peças doequipamento.

    Onde estar outros três desintegradores? — perguntou,anal, parecendo perplexo.Que outros três? — contrapôs T'heonax, tando-o xa-

    mente.Ter seis — respondeu van Rn, contando cuida-

    dosamente nos dedos. — Ja, seis. Eu dar todos eles ao

     bom senhor Delp.o quê?Delp saltou na direção do ser humano, praguejando e

    furioso.É mentira! Havia apenas três, e estão todos aqui,

    agora!

    Socorro! — berrou van Rn e correu para perto deTheonax. O corpo de Delp, na perseguição, chocou-secom o lho do Almirante e os dois Drak'honai rolaram,em barafunda de asas e caudas.

    Ele está tramando um motim! — berrou Theonax.Wace jogou Sandra ao convés, pondo-se por cima

    dela, enquanto o ar escurecia de projéteis.

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    Van Rn voltava-se agora, pesadamente, a m dearredar o marinheiro que montava guarda a Tolk, masesse já se afastara, tomando a defesa de Delp. Van Rnprecisou apenas tirar a rede que prendia o intérprete.

    — Agora, ir buscar um exército para nos tirar daqui —

    ordenou, e falava Lannachamael quase à perfeição. — De-pressa, antes que alguém perceber.O Arauto assentiu, sacudiu as asas e ergueu-se aos

    céus.Van Rn inclinou-se sobre Wace e Sandra.— Por aqui — dizia arquejando, em meio ao barulho.

    Uma pancada ocasional, desferida com a cauda por ummarinheiro em luta contra dois guardas, fez com que ele berrasse. — Tripa de gato! Miseráveis! — e punha Sandraem pé à força, empurrava-a para o abrigo relativo docastelo na proa.

    Lá dentro, fechada a porta, entre as mulheres e lhotes

    apavorados a tarem a luta, ele disse:— Uma pena que Delp seja vencido. Não tem possibil-idade de vencer. É um sujeito decente, talvez pudéssemoster feito negócios.

    Por todos os santos nos céus! — exclamou Wace,quase engasgando. — O senhor desencadeou uma guerra

    civil, só para que seu mensageiro pudesse fugir?E você conhece algum método melhor? — contrapôsvan Rn.

    Quando o Comandante Krakna tombou em batalhacontra os invasores, o Conselho Geral da Revoada escol-heu certo Trolwen para seu lugar. Eles eram os mais vel-

    hos, e haviam escolhido criatura relativamente jovem,mas os Lannachska achavam natural que fossem

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    comandados por jovens. Um Comandante precisava ter ovigor físico de dois, para conduzi-los em migração durae perigosa todos os anos; era raro que o Comandantechegasse a ponto de enfraquecer, ainda vivo. Quaisquerimpulsos temerários de sua idade eram controlados pelo

    próprio Conselho Geral, os chefes de clã que se haviamtornado velhos demais para voarem à cabeça dos esquad-rões, mas não tão velhos e fracos que cassem para trás,em alguma jornada hibernal.

    A mãe de Trolwen pertencia ao grupo Trekkan, umalinhagem distinta, com ricas propriedades em Lannak;

    ela própria aumentara essa fortuna, mediante negóciosastutos. Supunha que o pai do lho fosse Tornak dosWendru; e não que se importasse muito, mas Trolwenparecia-se notavelmente àquele grande guerreiro. Fora aprópria fama de Trolwen como ocial eleito pelo clã, na

     batalha, nas tempestades e nas negociações, bem como

    na rotina diária, entretanto, o que levara o Conselho aescolhê-lo como chefe de todos os clãs. Nos dez diasseguintes, ele fora o chefe de uma facção que perdia, mas,possivelmente, sua gente fora levada à força para as ter-ras altas mais devagar do que teria acontecido sem ele.

    Agora, desempenhava papel principal na força de luta

    da Revoada, contra a própria Frota.O equinócio vernal mal acabara, mas já os dias se en-compridavam, passos de gigante. A cada manhã o sol seerguia mais para o norte e um ar mais suave derretia asneves, até que os vales e baixadas de Lan-nak se tornas-sem um rodopio em água. Haviam-se passado apenas 130

    dias do equinócio ao Último Amanhecer; dali em diante,

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    por toda a noite innita do Grande Verão, nada haveria,senão chuva ou nevoeiro para encobrir um ataque.

    E se os Drakska não fossem derrotados até o outono,reetia Trolwen, sombriamente, de nada adiantaria tentarmais; a Revoada estaria nda.

    Suas asas batiam com rmeza no céu, na cadência fácile resistente de criatura nascida para voar. Tinha sob o vôoum mistério branco e interrupto de nuvem, com o mar

     bem distante por baixo, a tar por ali com brilho, comovidro polido; por cima havia o teto azul-violeta claro, anoite e as estrelas. Ambas as luas haviam subido, a apres-

    sada Flichtan, que ia de um horizonte a outro em dia emeio, e Nua, tão baixa que suas rodas se moviam commais rapidez do que ela própria. Ele aspirou a escuridãofria e utuante nos pulmões, sentiu o impulso nos múscu-los e a ondulação no pelo, mas sem o desfrute sensual deum vôo comum.

    Pensava acendradamente em matar.Um Comandante não devia demonstrar indecisão,mas ele era jovem e o grisalho Tolk, o Arauto, compreen-deria.

    — Como vamos saber se esses seres se encontram namesma jangada, como quando você partiu? — pergun-

    tara, falando no ritmo medido, que conservava o controleum vôo longo. O vento murmurava por baixo de suas pa-lavras.

    Não podemos ter certeza, é claro, chefe da Revoada —respondeu Tolk. — Mas o gordo também pensou na pos-sibilidade. Disse que daria um jeito de estar no convés,

     bem à vista, todos os dias, ao amanhecer. E depois ele ge-

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    meu, queixou-se de horas horrorosas para sair da cama. Éuma criatura estranha.

    Talvez, no entanto — e Trolwen estava preocupado —as autoridades Draka o terão trancado, desconando queo ajudou na sua fuga.

    O que ele fez provavelmente não foi observadonaquela agitação — retorquiu Tolk. — Eles, com certeza,acham que eu aproveitei a oportunidade para me soltarde algum modo. Se houve alguma coisa desagradávelpara eles, bem, o gordo já teve alguns dias durante osquais pode convencer os Drakska do contrário.

    E talvez não nos possa ajudar, anal de contas — disseTrolwen, estremecendo. O Conselho usara palavras for-tes contra aquela incursão: risco e baixas em demasia. Osclãs turbulentos haviam manifestado sua desaprovaçãocalorosamente. Ele tivera diculdades para convencê-losa todos.

    E se fosse vericado que estava desperdiçando vidasem algo tão grotesco quanto aquilo, sem servir a qualquerobjetivo. .. Trolwen era tão patriota quanto qualquer

     jovem cujo povo houvesse sofrido ataques cruéis, masnão deixara de preocupar-se quanto a seu próprio futuro.No passado, acontecera que Comandantes que haviam

    fracassado de modo fragoroso tinham sido expulsos parasempre da Revoada, como se fossem ladrões ou assassi-nos comuns.

    Ele continuou voando.Uma luz rala e fria estivera a se esgueirar no chão por

    algum tempo. Agora as nuvens mais altas começavam a

    tornar-se avermelhadas e um brilho perpassou a metadeoculta do mar. Era de importância crucial alcançar a Frota

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