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Leitura

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  • possvel facilitar a leituraum guia para escrever claro

  • Yara LiberatoLcia Fulgncio

    possvel facilitar a leituraum guia para escrever claro

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    ndices para catlogo sistemtico:1. Leitura funcional : Lingustica aplicada 418.4

    Editora ContextoDiretor editorial: Jaime Pinsky

    Rua Dr. Jos Elias, 520 Alto da Lapa05083-030 So Paulo sp

    pabx: (11) 3832 [email protected]

    www.editoracontexto.com.br

    Liberato, Yara possvel facilitar a leitura : um guia paraescrever claro / Yara Liberato, Lcia Fulgncio. 2. ed. So Paulo : Contexto, 2010.

    ISBN 978-85-7244-351-7

    1. Leitura 2. Leitura Compreenso 3. Leitura Dificuldades 4. Leitura Pesquisa 5. LegibilidadeI. Fulgncio, Lcia. II. Ttulo.

    06-9353 CDD-418.4

    Copyright 2007 das autoras

    Todos os direitos desta edio reservados Editora Contexto (Editora Pinsky Ltda.)

    2010

    Proibida a reproduo total ou parcial.Os infratores sero processados na forma da lei.

    Capa e diagramao Gustavo S. Vilas Boas

    Reviso Lilian Aquino

  • Sumrio

    Introduo .......................................................................................... 9

    Um modelo de descrio da leitura ............................................. 13 Informao visual e informao no-visual ......................................... 13 Previses ....................................................................................... 15 Aspectos do funcionamento do sistema visual .................................... 19 O crebro no v o que os olhos percebem .............................. 19 Ver toma tempo .................................................................... 19 O fatiamento na leitura .......................................................... 21 Ver algo episdico .............................................................. 23 Inferncias .................................................................................... 25 Implicaes para o aprendizado da leitura ......................................... 28

    A utilizao do conhecimento prvio .......................................... 31 A elaborao de inferncias ............................................................. 31 Expectativas e a noo de esquema ................................................ 36 O uso do conhecimento prvio em textos didticos ............................ 43

    Tpico ................................................................................................ 53 Tpico sentencial e tpico discursivo .........................................................................53 A importncia do tpico na compreenso do texto ............................. 55 Como ajudar o leitor na identificao de tpicos ................................. 56 Tpicos e a distribuio do dinamismo comunicativo .......................... 64 Tpico e pargrafo ......................................................................... 68 A teoria do pargrafo ............................................................. 68 O tpico como elemento unificador do pargrafo ...................... 72

  • Exemplos de paragrafao ineficiente ....................................... 73 Marcao de pargrafo desnecessrio .............................. 73 Ausncia de marcao de pargrafo

    em local adequado ....................................................... 75 Composio interna inadequada ..................................... 77

    Elementos dados e anfora ............................................................ 79

    A viso tradicional .......................................................................... 79 A noo de consciousness: elementos dados e novos .......................... 80 Uma nova noo de anfora ............................................................ 83 A interpretao de anforas e a legibilidade ....................................... 85 O problema da ambiguidade .................................................. 85 O efeito do tpico ................................................................. 88 A utilizao do conhecimento prvio do leitor ........................... 91 Conhecimento de classes e seus membros ....................... 93 Elementos dados no marcados como tais ................................ 95 Catforas .............................................................................. 99

    Vocabulrio ..................................................................................... 103 De que composto o lxico da lngua ............................................ 103 Os mecanismos de decodificao

    das palavras e de obteno de informao ....................................... 105 A importncia da compreenso dos itens lexicais .............................. 108 Casos em que a escolha do

    vocabulrio pode dificultar a leitura ................................................ 109 O entulhamento de itens desconhecidos ................................. 109 Um caso especial: o uso intencional

    da vaguido e de vocabulrio obscuro ................................... 111 O uso eventual de lxico desconhecido.................................. 113 Conceito conhecido, mas forma desconhecida ............... 114 Forma e conceito desconhecidos .................................. 115 Forma conhecida e conceito desconhecido .................... 117 Uso de termos genricos e vagos ........................................... 119 Uso de vocabulrio incorreto ............................................... 119 Estratgias de favorecimento da aprendizagem lexical ....................... 121

    Estrutura interna das sentenas ................................................. 127 Estilo escrito x estilo falado ............................................................ 127 Inseres .................................................................................... 130

  • Comprimento das sentenas ........................................................... 136 Hierarquia de constituintes ........................................................... 139 Negativas duplas .......................................................................... 140 Passivas x ativas .......................................................................... 144

    Efeito do gnero textual ............................................................... 149 Mrio A. Perini

    Ler sem entender? ........................................................................ 150 O que entender? ..................................................................... 152 Os dois gneros ........................................................................... 152 Caractersticas do texto informativo ................................................. 154 Lendo textos informativos .............................................................. 155 Razes: na escola ......................................................................... 156 Razes: textos obscuros................................................................. 157 Solues? .................................................................................... 158

    Concluso ........................................................................................ 159 Uma falsa dicotomia: ler compreender ou criticar? ......................... 159 Todo texto passvel de interpretaes mltiplas?............................. 162 Um adendo: a legibilidade na traduo........................................... 162 Resumindo a proposta: como facilitar a leitura de textos informativos .. 165

    Referncias bibliogrficas ............................................................ 167

    ndice remissivo ............................................................................ 173

    As autoras ........................................................................................ 175

  • Introduo

    Se no somos inteligveis porqueno somos inteligentes.

    Rousseau

    Em qualquer atividade profissional, e mesmo na vida cotidiana, todos precisam conhecer os caminhos da escrita tanto para escrever de forma inteligvel quanto para ler com compreenso. Ler e escrever implicam em comunicao, e para atingir esse objetivo preciso que o texto seja compreensvel. Este livro prope estratgias de como escrever textos informativos mais claros. Mostra tambm o que se pode fazer para definir a legibilidade do texto, visando a interferir no processo do aprendizado da leitura, de maneira a facilit-lo.

    Tratando dos fatores que podem constituir dificuldade para a leitura de um texto, sobretudo aqueles de carter didtico, acreditamos que possvel alterar a forma lingustica de um texto de modo a facilitar sua compreenso. Esperamos, com isso, contribuir para a tarefa de professores e de autores de textos informativos e didticos. Para autores, sugerindo-lhes caminhos para a elaborao de textos mais legveis, adequados a seu pblico especfico. Para professores sejam eles professores de portugus, ou de geografia, histria, cincias, ou mesmo de matemtica sugerindo-lhes possveis parmetros para a avaliao de textos com que devam trabalhar, e sugerindo-lhes como prever e suprir as dificuldades que os alunos experimentam na leitura dos textos disponveis.

  • 10 possvel facilitar a leitura

    No captulo Um modelo de descrio da leitura apresentada uma descrio de como se processa a leitura: por exemplo, quais os passos que permitem chegar interpretao do texto, quais os tipos de informao que o leitor precisa utilizar para compreender, como atua a memria durante a leitura, dentre outros aspectos. No captulo A utilizao do conhecimento prvio examinamos como importante o conhecimento de mundo e do assunto do texto para se poder fazer inferncias, ligar as partes do texto, estabelecer nexo lgico entre as informaes e compor a paisagem mental do texto. Os captulos Tpico e Elementos dados e anfora tratam de problemas relacionados ao discurso, isto , questes que vo alm do mbito da sentena, atingindo a organizao do texto como um todo. No captulo Tpico examinamos como importante para a compreenso a correta identificao do tpico (isto , do assunto sobre o qual se fala), e como a paragrafao se relaciona com a estruturao dos diversos subtpicos do texto. No captulo Elementos dados e anfora examinamos em que sentido a interpretao das anforas (como os pronomes, por exemplo) pode interferir na facilidade com que se l um texto. No captulo Vocabulrio tratamos da importncia do conhecimento do lxico na compreenso, e no captulo Estrutura interna das sentenas tratamos de fatores sintticos, relacionados com a estrutura interna da sentena. O ltimo captulo, Efeito do gnero textual, escrito pelo professor Mrio Perini, comenta a tendncia de escrever e ler textos informativos como se fossem literrios, confundindo os dois gneros. Abordamos assim aspectos sintticos, semnticos, discursivos e cognitivos envolvidos na habilidade da leitura, apontando como os textos podem ser construdos com mais clareza, de modo a privilegiar a legibilidade.

    Os fatores sintticos so talvez os menos prejudiciais se comparados com os demais, mas tambm comprometem a legibilidade, principalmente quando se acumulam no texto. Por outro lado, o emprego de vocabulrio conhecido, claro e preciso de fundamental importncia para a compreenso do texto. J a avaliao correta do conhecimento prvio do leitor talvez seja a maior garantia de legibilidade de um texto. Isto , o uso adequado do conhecimento prvio do leitor pode compensar qualquer outro fator de dificuldade apresentado por traos de natureza discursiva, sinttica ou lexical, dissolvendo possveis problemas.

    Como ilustrao, so apresentados exemplos retirados de livros didticos. A escolha desses livros foi feita de forma totalmente aleatria, isenta de qualquer pressuposto ou de qualquer inteno que no a de exemplificar o que se afirma com um material autntico, preparado para ser utilizado realmente no aprendizado das disciplinas do ensino fundamental. No pretendemos, de forma alguma, criticar qualquer autor, mesmo porque o fato de haver passagens que possam apresentar problemas, segundo nossa anlise, no significa que todo o livro tenha uma legibilidade comprometida.

  • 11Introduo

    Optamos pela colocao das notas no rodap da pgina para que a legibilidade deste livro no seja prejudicada. Dessa forma, o leitor no precisa interromper a leitura para procurar a pgina onde estaria a nota.

    Esperamos que as observaes que fazemos sobre a legibilidade dos textos possam esclarecer, em parte, o que constitui a dificuldade de um texto e assim possam contribuir para que seja facilitada a tarefa de ler. No temos, em absoluto, a pretenso de esgotar o assunto. A leitura , sem dvida, um campo de pesquisa que tem ainda muito a ser explorado.

    * * *

    Este trabalho se iniciou com Mrio Perini, um dos primeiros linguistas brasileiros a se voltar para o problema da leitura funcional. J no final da dcada de 1970 apresentou um trabalho sobre leitura no Congresso da AILA, realizado em Montreal. Mais tarde publicou vrios outros artigos sobre o assunto, quando o interesse pelo estudo da leitura j havia se difundido e produzido frutos.

    Preocupado com a situao de alunos mais carentes que tm problemas no aprendizado da leitura, resumiu suas ideias em um texto publicado em 1988, no qual aponta uma possvel sada para o problema: discutir e melhorar a qualidade do texto didtico, provavelmente o nico tipo de material escrito com o qual esses alunos tm oportunidade de um convvio relativamente intenso e prolongado.

    Partindo do pressuposto de que se aprende a ler lendo, afirmava que a leitura funcional nascer do convvio com o material escrito adequado, e somente dele. Props, ento, que os textos deveriam ser graduados quanto sua dificuldade de leitura, de modo que um texto de terceira srie fosse significativamente mais simples do que um de oitava srie, ou de nvel universitrio. Mas, como ele prprio afirmou, no em absoluto bvio o que constitui a dificuldade de um texto.

    Este livro o resultado da pesquisa que desenvolvemos a partir de ento, na tentativa de definir a dificuldade de leitura de um texto, ou seja, sua legibilidade. A verso que ora apresentamos o resultado da fuso de dois outros livros publicados anteriormente chamados Como facilitar a leitura e A leitura na escola que foram revistos, reformulados e ampliados.

    Registramos portanto nossos agradecimentos a Mrio Perini, que, alm de ter sido um dos iniciadores e o grande impulsionador da pesquisa sobre lingustica aplicada leitura, sugeriu e coordenou nossa pesquisa, alm de incluir neste livro um captulo de sua autoria. E agradecemos tambm a Denise Machado, que leu todo o texto e fez excelentes crticas, baseadas em sua longa experincia como professora de redao e revisora de textos.

  • Um modelo de descrio da leitura

    A leitura de que nos ocupamos neste livro aquela a que Perini (1988) chamou leitura funcional. No a simples decodificao do sinal grfico (que aprendida nos primeiros anos de alfabetizao), mas a leitura, com compreenso, de textos informativos. Nosso interesse est centrado exclusivamente na compreenso das informaes veiculadas pelo texto, de forma que no sero objeto de nosso estudo outros aspectos envolvidos na atividade da leitura, como a anlise crtica ou literria.

    Neste primeiro captulo procuraremos descrever alguns aspectos que constituem a leitura funcional, em que o leitor procura construir um sentido para o texto. A compreenso de textos um processo complexo em que interagem diversos fatores como conhecimentos lingusticos, conhecimento prvio a respeito do assunto do texto, conhecimento geral a respeito do mundo, motivao e interesse na leitura, dentre outros. Conhecer como atua cada um desses fatores imprescindvel para a discusso da prtica do ensino da leitura. Neste livro nos restringiremos a alguns deles, que passamos a expor a seguir.

    Informao visual e informao no-visualA leitura no uma atividade meramente visual. O acesso informao visual

    isto , informao percebida, captada pelos olhos (abreviadamente IV) obviamente

  • 14 possvel facilitar a leitura

    necessrio, mas no suficiente. Como sugere Smith (1989), podemos, por exemplo, enxergar perfeitamente um texto, e ainda assim no conseguimos l-lo por estar escrito em uma lngua que no conhecemos. Esse conhecimento da lngua imprescindvel e j devemos possu-lo antes de nos empenharmos na leitura do texto. Ele faz parte do conhecimento que temos, estocado na memria, ao qual damos o nome de conhecimento prvio ou informao no-visual (abreviadamente InoV).

    Alm do conhecimento da lngua, outros tipos de InoV so igualmente importantes na leitura. Por exemplo, o conhecimento sobre o assunto de que trata o texto. possvel que um leitor no consiga ler um texto que, embora escrito numa lngua que ele domina, trate de um assunto sobre o qual ele no tem informaes. Tambm nesse caso diramos que lhe falta informao no-visual adequada.

    Na verdade, a informao no-visual que utilizamos na leitura compreende tanto o conhecimento da lngua e do assunto do texto como tambm todo e qualquer outro conhecimento que possumos e que compe a nossa teoria do mundo. Isso inclui tudo o que sabemos, desde o nome de nosso melhor amigo, ou dados culturais como o de que nas festas juninas se dana quadrilha, at relaes mais complexas que podemos perceber entre objetos e acontecimentos do mundo. Todo esse conhecimento est, de alguma forma, armazenado em nossa memria, juntamente com o conhecimento da linguagem em uma parte que os psiclogos chamam de memria de longo prazo e utilizado no processo da leitura, permitindo dar sentido quilo que a viso capta. Vejamos um exemplo de como a informao no-visual pode ser importante na leitura:

    (1) A casa da Bia foi assaltada. Ela est pensando em comprar um cachorro.

    Essas duas sentenas esto relacionadas por uma srie de informaes no expressas explicitamente, como a de que quem tem sua casa assaltada pode querer buscar mais segurana, e a de que um cachorro pode guardar casas. Essas informaes devem fazer parte do conhecimento de mundo do leitor, e so utilizadas para construir a relao entre as sentenas. O leitor que compreende o texto acima imagina que o cachorro que Bia est pensando em comprar vai servir para evitar que sua casa seja assaltada novamente. Sem esse conhecimento prvio no-lingustico impossvel conectar as duas sentenas num todo coerente.

    Resumidamente, podemos afirmar que a leitura o resultado da interao entre o que o leitor j sabe e o que ele retira do texto. Em outras palavras, a leitura o resultado da interao entre IV e InoV.

    Portanto, a atividade da leitura pode ser representada pela seguinte frmula:

    LER = IV + InoV

  • 15Um modelo de descrio da leitura

    Esses dois tipos de informao (IV e InoV) mantm entre si uma relao inversamente proporcional, isto , quanto mais informao no-visual estiver disponvel ao leitor, menos informao visual ele necessitar retirar do texto (retornaremos a esse ponto mais adiante). Smith (1989) exemplifica essa relao com o fato de romances populares serem to mais fceis de ler do que, por exemplo, artigos tcnicos. Os romances podem ser lidos de forma relativamente rpida, com iluminao fraca, impresso de m qualidade e letras pequenas. Por outro lado, os textos tcnicos demandam mais tempo e ateno, e melhor qualidade de impresso. Outro exemplo do autor: nomes de cidades conhecidas em sinais rodovirios podem ser lidos a uma distncia maior do que nomes de cidades desconhecidas, em placas do mesmo tamanho. O que se passa que utilizamos nosso conhecimento prvio (ou seja, a InoV) para adivinhar, para prever parte da informao visual contida no texto.

    PrevisesAntes de examinarmos como a capacidade de estabelecer previses atua na

    leitura, preciso observar, primeiramente, que a capacidade de prever empregada no somente quando ns estamos lendo, mas a todo momento, seja qual for a atividade que estejamos praticando. Na nossa vida diria usamos constantemente o conhecimento armazenado na memria, toda a nossa teoria do mundo, para fazer previses acerca daquilo que acreditamos ser mais provvel acontecer no futuro. Baseados na nossa experincia individual e no nosso conhecimento geral do mundo, formulamos previses com relao quilo que esperamos que se realize.

    Por exemplo, quando estamos dirigindo um carro e vamos atravessar uma rua, olhamos primeiro para os lados. Fazemos isso porque supomos que outros carros possam cruzar a rua onde estamos. Prevemos tambm que, se os dois carros cruzarem a rua no mesmo instante, vo bater; e se isso acontecer, que o acidente pode danificar os carros e machucar pessoas; que, se os carros estragarem, tero de ir para uma oficina; e assim por diante. Ento, se olhamos para os lados antes de atravessar um cruzamento, estamos agindo em resposta s previses que formulamos para essa situao.

    Nem sempre nossas previses so conscientes, mas elas so certamente bastante precisas. Tanto que, se uma previso falha, ficamos surpresos. Por exemplo, no nosso caso anterior, vimos que podemos supor que outros carros venham a atravessar a rua; no entanto, se no lugar de um carro virmos um elefante ou um disco voador, ficaremos surpresos, porque isso no corresponde s nossas previses (isto , quilo que esperamos que acontea).

    Esse tipo de habilidade de estabelecer previses (ou de prever o que provavelmente acontecer) aplica-se tambm leitura: o leitor est constantemente

  • 16 possvel facilitar a leitura

    fazendo previses sobre o que provvel que aparea num determinado texto. Vejamos agora alguns exemplos de como funciona a previso na leitura.

    O leitor pode fazer previses com base no seu conhecimento sobre as combinaes de letras possveis numa lngua. Por exemplo, existe um produto cuja marca N***TURAL. Provavelmente todos lemos a a palavra natural, apesar de a letra A no estar representada por seu smbolo convencional, e sim pelo desenho ***. Chegamos a essa interpretao com base em nosso conhecimento a respeito de que tipo de letra seria possvel nesse contexto (entre a letra N, em incio de palavra, e a letra T): em portugus, poderamos ter a somente uma vogal, nunca uma consoante. Baseados tambm no nosso conhecimento lxico, que inclui a palavra natural como um item j existente na lngua, chegamos ento identificao do nome do produto.

    Um outro exemplo, apresentado por Perini, Fulgncio & Rehfeld (1984), o seguinte: imaginemos a situao de termos de ler um manuscrito de uma pessoa que escreve as letras U e N da mesma forma e encontramos a sequncia mostrada na seguinte figura:

    Jnliana senton na rna.Apesar de termos seis vezes a repetio da forma grfica n, ela ser lida trs vezes

    como N e trs vezes como U: a interpretao ser Juliana sentou na rua, e no Jnliaua seuton ua rna, ou qualquer outra coisa parecida. Na verdade, o leitor acredita ver N em na e U em rua. Isso se deve previso que fazemos baseados na probabilidade de ocorrncia de letras naquele contexto e na existncia de um item lxico com aquela composio.

    Esse , de fato, um dos principais problemas que dificultam a tarefa de reviso de textos. Conduzido pelas previses, o leitor no v letra por letra de cada palavra nem mesmo todas as palavras do texto. Nas situaes em que possvel prever a ocorrncia de determinada letra ou palavra, o leitor simplesmente passa por cima da forma visual, completando com suas previses a informao presente naquele trecho. Por isso, muitas vezes o revisor nem mesmo percebe alguma incorreo na escrita e deixa passar erros de imprensa.

    Temos ento, na compreenso de um texto, uma espcie de colaborao ou de interao entre a informao visual e o nosso conhecimento anterior.

    Esse processo de compreenso explicado pela formulao de estratgias. O leitor est equipado com uma srie de tcnicas heursticas (ou estratgias perceptuais) que lhe permitem recuperar o sentido do texto atravs de pistas fornecidas pela informao visual. Essas estratgias so de vrios tipos: ortogrficas, morfossintticas, semntico-pragmticas e discursivas. Um exemplo de estratgia ortogrfica pode ser formulado aproximadamente da seguinte maneira:

    a. se encontrar a letra J no incio de uma palavra (ou slaba), considere que a letra seguinte s pode ser uma vogal.

  • 17Um modelo de descrio da leitura

    isso que nos faz ler Juliana na sequncia escrita Jnliana, em vez de Jnliana, apesar de a letra U estar grafada de forma idntica letra N.

    Da mesma forma como atuam as previses de nvel ortogrfico, atuam tambm as previses relacionadas morfossintaxe: o leitor tem interiorizadas as regras morfossintticas da lngua e pode prever as sequncias de palavras ou sintagmas possveis na formao de sentenas. Por exemplo, se encontra uma sequncia do tipo

    Maria ...

    espera que depois venha um adjetivo (como em Maria simptica) ou um sintagma nominal (como em Maria uma fera). Outras estratgias morfossintticas lhe permitem prever outras sequncias, como por exemplo:

    b. se encontrar uma conjuno, marque o incio de uma orao.

    Existem tambm estratgias semntico-pragmticas: so aquelas baseadas em conhecimento prvio relacionado com o significado das expresses, com o assunto tratado no texto e com as condies conhecidas do mundo exterior. Essas estratgias so muito teis para ajudar o leitor na interpretao de certos segmentos lingusticos. Por exemplo, num texto sobre culinria, podemos esperar que sejam indicados nomes de alimentos e no de venenos ou de dinossauros. Ento, se estamos lendo uma receita e encontramos a indicao

    (2) Acrescente um pouco de endvia

    mesmo sem saber exatamente do que se trata, e sem conhecer a palavra endvia, podemos prever que se trata de um alimento.

    O leitor emprega tambm estratgias discursivas que lhe permitem fazer previses a respeito de certos aspectos da organizao do texto como um todo. Diante de um texto de propaganda, de um editorial de jornal, de um romance policial, de um conto de fadas ou de um memorando, o leitor faz previses diferentes quanto forma de cada texto e quanto ao estilo de cada um, com base no que ele sabe a respeito da organizao de cada gnero discursivo. Portanto, o conhecimento prvio a respeito dos gneros textuais tambm contribui para a previsibilidade do que se espera que aparea no texto, tanto com relao sua forma quanto com relao ao contedo.

    No vamos nos estender mais aqui sobre esse ponto. O que pretendemos com esses exemplos foi mostrar como o leitor eficiente utiliza seu conhecimento prvio, lingustico e no-lingustico, para fazer previses durante a leitura.

    Vimos que o leitor eficiente no se concentra exclusivamente no material visual para obter informao. Ele pode formular previses acerca do que supe que venha a aparecer no texto e, dessa forma, pode compreender o texto muito mais rapidamente,

  • 18 possvel facilitar a leitura

    saltando algumas partes altamente previsveis, completando a informao a contida com as previses formuladas. Mas se o leitor no dispe de informao no-visual adequada, muito pouco do texto pode ser previsto e, nesse caso, o leitor precisa buscar muito mais informao no material escrito.

    O processamento que se baseia principalmente na informao visual chamado ascendente, ou bottom-up; e o que utiliza basicamente informao no-visual chamado descendente, ou top-down. Os dois processos se alternam e atuam ao mesmo tempo na atividade da leitura. Podemos ento dizer que a leitura eficiente resultado da interao de ambos os tipos de processamento. Kato (1985) identifica trs tipos de leitor, com base nesses dois processamentos:

    Teramos o tipo que privilegia o processamento descendente, utilizando muito pouco o ascendente. o leitor que apreende facilmente as ideias gerais e principais do texto, fluente e veloz, mas por outro lado faz excessos de adivinhaes, sem procurar confirm-las com os dados do texto, atravs de uma leitura ascendente. [...] O segundo tipo de leitor aquele que se utiliza basicamente do processo ascendente [...], que apreende detalhes detectando at erros de ortografia, mas que, ao contrrio do primeiro, no tira concluses apressadas. , porm, vagaroso e pouco fluente e tem dificuldade de sintetizar as ideias do texto por no saber distinguir o que mais importante do que meramente ilustrativo ou redundante. O terceiro tipo de leitor, o leitor maduro, aquele que usa, de forma adequada e no momento apropriado, os dois processos complementarmente. (p. 40-41)

    Podemos ento dizer que a leitura fluente feita atravs de um processamento parcial do material visual, sendo completada pelas previses. Como veremos mais adiante, o que previsvel muitas vezes nem processado visualmente: o leitor simplesmente salta aquele trecho, completando a informao a contida com o que ele prev que deve aparecer naquele trecho.

    Resumindo o que vimos at aqui, chegamos concluso de que a informao visual e a informao no-visual mantm uma relao inversamente proporcional na leitura: quanto mais InoV o leitor tiver disponvel sobre um determinado texto, menor quantidade de IV ele necessitar para compreend-lo; e o inverso tambm verdadeiro: quanto menos InoV o leitor possuir, mais ele precisar se valer de cada detalhe do material impresso. E mais ainda: quanto mais IV o leitor necessitar, mais difcil e trabalhoso ser ler o texto. E se a InoV muito escassa (como, por exemplo, quando lemos um artigo tcnico de nvel avanado que pressupe noes que no possumos), a compreenso pode se tornar impossvel, porque o leitor fica excessivamente dependente da IV e demora demais na decodificao dos smbolos grficos e na procura do significado de cada item. Isso dificulta a montagem das informaes do texto. Essa dependncia exagerada da informao visual pode dificultar

  • 19Um modelo de descrio da leitura

    a leitura e at mesmo torn-la impossvel, pela simples razo de que a quantidade de IV de que podemos dispor a cada momento limitada. Smith (1989) explica essa limitao mostrando trs aspectos do funcionamento do sistema visual:

    1. o crebro no v exatamente o que percebido pelos olhos;2. ver toma tempo;3. ver algo episdico.

    Ainda segundo Smith, essas limitaes tm trs implicaes para a leitura: a leitura deve ser rpida, deve ser seletiva e depende daquilo que o leitor j sabe. Vejamos, de maneira bem resumida, cada um dos trs pontos citados.

    Aspectos do funcionamento do sistema visual

    O crebro no v o que os olhos percebemO estmulo visual no vai diretamente do olho ao crebro. As fibras nervosas

    que ligam o olho ao crebro tm pontos de interconexo onde ocorre uma anlise complexa e uma transformao de sinais. Ao chegar ao crebro, o sinal percebido reprocessado, de tal maneira que, por exemplo, ao observarmos um prato redondo sobre uma mesa, ns o vemos como uma forma circular, embora do ngulo pelo qual observamos, o olho esteja captando uma imagem com certeza oval. Da mesma forma, ao observarmos um quadro na parede, se no estamos exatamente de frente para ele, a imagem que sensibiliza nossos olhos um trapzio; apesar disso, ns o vemos como uma forma quadrada ou retangular. Podemos dizer, ento, que os olhos captam informao visual, mas o crebro que v.

    Ver toma tempoAs pesquisas mostraram que o tempo durante o qual o olho deve ficar exposto

    a uma informao visual, para perceb-la, muito pequeno: cerca de 50 milsimos de segundo; mas que o crebro leva mais tempo para processar essa informao: cerca de 1/4 de segundo (ou 250 milissegundos). O crebro requer tempo para tomar suas decises e interpretar o que que foi visto.

    Portanto, na hiptese de que durante a leitura o crebro tivesse de ver todas as palavras e todos os smbolos impressos, ele seria capaz de processar, no mximo, 4 palavras por segundo ou 240 palavras por minuto (isso se tomarmos a palavra e no cada letra, por exemplo como a unidade perceptual). Mas o que acontece que leitores eficientes

  • 20 possvel facilitar a leitura

    conseguem ler mais do que 240 palavras por minuto, isto , conseguem interpretar uma quantidade maior de material do que a capacidade mxima de interpretao a partir da viso. Esses dois fatos parecem contraditrios, mas possvel explicar esse aparente paradoxo se aceitamos que, para ler, o crebro no precisa ver tudo o que est impresso no papel: ele pode prever parte da informao e saltar aqueles trechos que podem ser completados sem a necessidade de intermediao da viso.

    Sabemos, alm disso, que o tempo gasto pelo crebro na interpretao de um estmulo diretamente proporcional ao nmero de alternativas entre as quais o crebro deve decidir. Um exemplo de como isso funciona fornecido por experincias em que se pede a uma pessoa para dizer o que viu numa projeo rpida de uma imagem qualquer. O tempo gasto para a resposta vai variar dependendo do que ela esperava ver. Se projetamos a letra A e nada lhe dizemos, o tempo que a pessoa gastar para identificar a imagem como sendo a letra A ser maior do que se lhe for dito antecipadamente que o smbolo projetado uma letra. Ser menor ainda se lhe dissermos que a letra ocorre na primeira metade do alfabeto, e ainda menor se a informao for de que se trata de uma vogal.

    Na leitura, imprescindvel que o crebro possa fazer uso da informao no-visual a fim de reduzir o nmero de alternativas. A informao visual permanece disponvel ao crebro por pouco tempo, aps ter sido captada pelo olho. Uma vez que o crebro tenha feito uma primeira identificao da informao visual, ela jogada em um estgio da memria chamado memria de curto prazo (MCP),1 onde permanece na sua forma literal at que seja construdo um significado para ela. A MCP tem uma capacidade reduzida, de cerca de cinco a nove unidades. Essas unidades so mantidas na MCP na sua forma literal somente at o significado ser computado; uma vez montado o significado, ele enviado para a memria de longo prazo (MLP), que uma memria duradoura, e a forma literal esquecida. Nessa passagem da memria de curto prazo para a memria de longo prazo, a informao recodificada: o contedo literal perdido e somente o contedo semntico (isto , o significado) memorizado.

    Tambm o tempo de permanncia dos itens na memria de curto prazo limitado: seu contedo apagado pela entrada de novos itens. E mesmo que no entre informao nova, o contedo da MCP apagado aps um curto espao de tempo. por isso que, quando algum nos informa um nmero de telefone que no conhecamos antes, ficamos repetindo o nmero na cabea at que possamos disc-lo ou anot-lo. Se no repetimos o nmero, fazendo com que ele torne a dar entrada na MCP, ns o esquecemos rapidamente.

    1 Na primeira verso deste livro, os dois tipos de memria foram chamados de memria de curto termo e memria de longo termo, mas a praxe na literatura lingustica acabou consagrando os termos memria de curto prazo e memria de longo prazo, respectivamente, que adotaremos de agora em diante.

  • 21Um modelo de descrio da leitura

    E por isso tambm (isto , pelo fato de o material contido na MCP ser perdido to rapidamente e pelo fato de a MCP ter um contedo to limitado) que, quando uma pessoa tenta ler muito vagarosamente, no consegue compreender e integrar as informaes do texto: se a leitura lenta, o material percebido sai da MCP e esquecido antes mesmo que o crebro consiga organiz-lo em unidades de significado, e possa enviar o contedo semntico para a memria de longo prazo.

    Para perceber melhor como isso funciona, e como breve o tempo de permanncia de uma informao na MCP, basta tentar lembrar a forma exata da sentena que voc acabou de ler. possvel que voc recupere o significado, presente na sua memria de longo prazo e o que esperamos, se voc est dando sentido ao que est lendo mas a forma literal da sentena (que seria lembrada se ainda estivesse presente na MCP) dificilmente ser recuperada. Ela se perdeu, saiu da MCP to logo o significado foi processado.

    A cada final de sentena o leitor processa a interpretao daquele trecho e passa a informao percebida para a memria de longo prazo. Por isso a ltima palavra de cada frase fixada mais demoradamente do que as outras palavras. Isso acontece porque nesse momento o leitor est fechando o sentido da sentena, e por isso pra naquele ponto. Segundo Perfetti (1985), esse momento requer um processamento extra para agrupar as partes da sentena, integrar os trechos que tinham sido mal compreendidos e integrar as informaes num todo coerente o que leva tempo.

    O fatiamento na leituraDissemos anteriormente que a capacidade da MCP varia em torno de sete

    unidades; a cada uma dessas unidades armazenadas na MCP chamamos fatia. Miller (1956) foi o primeiro a usar o termo fatia (chunk), quando estabeleceu que a capacidade da MCP poderia ser traduzida em 7, mais ou menos 2 fatias.

    Observe que somos capazes de repetir sete letras aleatrias (com uma pequena margem de mais ou menos dois itens), como por exemplo:

    i a 1 t r e u

    Mas se agrupamos essas letras numa palavra, como

    l e i t u r a

    a memorizao fica muito mais fcil, e podemos repetir uma sequncia de bem mais de sete letras, como na palavra legibilidade. Isso acontece porque as letras, agrupadas em palavras, passam a compor uma unidade, uma vez que formam um

  • 22 possvel facilitar a leitura

    elemento significativo. Com isso, passam a constituir um nico item presente na MCP, isto , uma nica fatia.

    O mesmo processo que vimos no fatiamento de letras acontece com as palavras: podemos repetir (na mesma ordem) uma sequncia de sete palavras aleatrias:

    no encontrou irmo meu Shopping amigo o

    E se, novamente, agrupamos essas palavras em unidades significativas maiores, todo o processo se repete: podemos reter mais facilmente essas palavras, porque cada grupo formado que constituir uma fatia de informao contida na MCP.

    Meu irmo encontrou o amigo no Shopping.

    Agrupando as palavras em unidades maiores, podemos guardar literalmente uma frase de bem mais de sete palavras. Por exemplo:

    (3) Semana que vem vou devolver o livro que peguei emprestado na biblioteca.

    Quando fatiamos a sentena podemos fazer recortes em lugares diferentes, formando fatias maiores ou menores. Um exemplo do fatiamento de (3) poderia ser o seguinte:

    (3) Semana que vem | vou devolver | o livro | que peguei emprestado | na biblioteca. |

    Teramos, nesse caso, cinco fatias. Mas poderamos fatiar diferentemente, formando fatias menores (de at uma nica palavra) ou maiores. Poderamos, por exemplo, formar uma nica fatia para o grupo

    | vou devolver o livro |

    Mas observe que no qualquer reunio de palavras que pode constituir uma fatia: | o livro | pode ser uma fatia, mas devolver o no. Isso porque o livro compe uma unidade, um constituinte na lngua (ao contrrio de devolver o, que qualquer um sente que no gruda bem).

    As fatias contidas na MCP sejam elas compostas de nmeros, letras ou de qualquer outro tipo de informao correspondem sempre a algum tipo de material j presente como uma unidade na memria de longo prazo. Assim, por exemplo, Independncia ou Morte pode ser uma fatia porque essa expresso est guardada como um todo nico, dessa mesma forma, na nossa memria.

  • 23Um modelo de descrio da leitura

    J no caso do recorte de fatias lingusticas que no constituem expresses prontas, j decoradas, o trabalho do leitor ser mais complicado do que a simples busca na memria de longo prazo de um material a presente de forma literal. Isso acontece porque as fatias que identificamos numa sentena como

    (3) Semana que vem | vou devolver | o livro | que peguei emprestado | na biblioteca. |

    no se encontram presentes, dessa mesma forma, na MLP. O fato que estamos constantemente interpretando (e fatiando) sentenas novas, que nunca vimos antes, e por isso essas fatias no podem estar armazenadas literalmente na memria. Por outro lado, sabemos que essas mesmas sentenas so construdas de acordo com regras da lngua que esto essas sim presentes na memria permanente do falante. com base nessas regras da lngua que o leitor poder fatiar as sentenas, procedendo a um duplo trabalho: ter de buscar na memria as regras da lngua que lhe permitem montar fatias novas, e comparar o material percebido com essas estruturas lingusticas presentes na MLP. Em outras palavras, o leitor ter de construir as fatias, encaixando o que ele captou dentro de esqueletos sintticos buscados na MLP, de forma a agrupar as palavras em constituintes. por isso que devolver o no pode constituir uma fatia, isto , porque no corresponde a nenhum tipo de unidade possvel presente na MLP.

    Ento podemos dizer que o processo de fatiamento de sentenas novas (isto , sentenas que no so frases feitas ou que no foram decoradas) no envolve apenas a busca de material j pronto na MLP, mas faz uso de informao a presente para proceder ao recorte das fatias lingusticas.2

    Embora no possamos aumentar o nmero de fatias retidas na memria de curto prazo j que a capacidade da memria mantm-se sempre constante , podemos aumentar o tamanho da fatia. Quanto maior a fatia, isto , quanto mais elementos puderem ser agrupados em unidades significativas, maior ser a quantidade de material que a memria de curto prazo poder guardar.

    Vimos ento que o material que entra na MCP tem de ser organizado em fatias. E para que isso acontea preciso que o crebro veja sentido na informao que entra na MCP, isto , preciso que o crebro identifique unidades significativas nessa informao. E quanto maiores essas unidades, mais rpida e eficiente ser a leitura.

    Ver algo episdicoQuando lemos, nossos olhos se movimentam. Esse movimento ocular executado

    na leitura no linear e contnuo, como se o olho estivesse escorregando pelo

    2 Para mais detalhes sobre esse processo de fatiamento lingustico, veja-se Perini, Fulgncio e Rehfeld, 1984, p. 45-84 e Frank Smith, 1989, especialmente os captulos 3-5.

  • 24 possvel facilitar a leitura

    papel. Ao contrrio, um movimento que poderia ser descrito como um salto rpido e irregular, um pulo de uma posio para outra. Esse pulo chamado sacada e pode ser facilmente observado se olharmos para o olho de uma pessoa enquanto ela l.

    Esse movimento se faz em todas as direes: para frente, para trs, para cima ou para baixo da linha do texto. A cada vez que o olho realiza uma pausa entre um salto e outro, diz-se que ocorre uma fixao e durante as fixaes, isto , quando o olho est relativamente imvel, que a informao coletada.

    A nica finalidade de uma sacada, seja em que direo for, movimentar o olho a fim de coletar mais informao. A velocidade com que os olhos se movem de uma fixao para outra estabelecida pelo tempo necessrio para que o crebro extraia um sentido de cada nova entrada de informao. O tempo gasto em cada fixao condicionado pela compreenso, e no vice-versa. Isso significa que a compreenso no pode ser melhorada com o simples aumento na velocidade das fixaes. No se pode acelerar a leitura apressando os olhos, isto , fazendo um maior nmero de fixaes num mesmo perodo de tempo. Isso teria como consequncia uma confuso adicional para o crebro, em vez de acelerar suas decises. No haveria tempo para o crebro decidir sobre uma poro de informao antes que ela fosse apagada por uma nova entrada, o que obviamente prejudicaria a compreenso em vez de melhor-la.

    Vamos explicar melhor: como vimos, a memria de curto prazo opera tomando como unidades as fatias, que so elementos significativos. Para montar as fatias, preciso que o crebro veja sentido no material percebido; no basta captar muito material, se o crebro no v relao entre as suas partes, e portanto no pode agrupar os sinais visuais em fatias de significado. Alm disso, para que a leitura possa prosseguir, necessrio que entre sempre mais material na MCP. Para isso, preciso limpar a MCP continuamente, porque a capacidade de reteno da MCP limitada e se esgota em pouco tempo. Por isso, o material guardado de forma literal na MCP deve ser interpretado to rapidamente quanto possvel, para que o significado montado possa ser enviado para a memria de longo prazo, e a ento possa entrar mais material na MCP. Quando o significado passado para a memria de longo prazo, as fatias saem da MCP; a MCP ento esvaziada, permitindo a entrada de mais material.

    O segredo da leitura fluente trabalhar paralelamente e eficientemente com a IV e a InoV, de forma a montar as fatias lingusticas e compor o significado de forma rpida, enviando imediatamente para a memria de longo prazo a informao captada. Ao montar o significado e mandar essa informao para a MLP, mais material pode ser captado e todo o processo se repete.

    Assim, no existe uma taxa de leitura melhor: ela depende da dificuldade da passagem que est sendo lida, ou melhor, das habilidades do leitor para interpretar aquela passagem. Se a leitura muito lenta e o leitor d muita ateno a detalhes, no conseguindo processar mais do que poucas letras, palavras ou conceitos individuais, o significado global

  • 25Um modelo de descrio da leitura

    do texto pode se perder definitivamente. A leitura deve ser, portanto, relativamente rpida, mas no indiscriminada. O crebro deve operar seletivamente, fazendo um uso mximo daquilo que j sabe, e analisar o mnimo de informao visual necessria para a verificao ou modificao do que pode ser previsto no texto. Assim, cada fixao abrange uma grande quantidade de informao visual, mas o crebro s se detm no processamento de parte dela: a parte que no pode ser prevista ou que necessria verificao das previses feitas. Portanto, fazer uma leitura eficiente faz-la rpida e seletivamente.

    A probabilidade de acerto na previso se relaciona inversamente com o nmero de alternativas com que o crebro deve lidar, isto , quanto menor for o nmero de alternativas, maiores sero as possibilidades de a previso se confirmar. Isso pode ser verificado a partir do exemplo que se segue. Imagine uma pessoa esperando um nibus em um ponto por onde ela sabe que s circulam os de nmero 2003, 3002 e 3040. Ao avistar ao longe o letreiro de um nibus onde consegue ler 20..., essa pessoa no precisa ler o restante do nmero. Ele poder ser imediatamente previsto, uma vez que no h, entre as alternativas possveis, outro nibus cujo nmero comece com 2. Assim, a informao captada imediatamente associada unidade maior 2003, armazenada na memria de longo prazo da pessoa. Se, ao contrrio, o algarismo inicial identificado 3, a pessoa dever ainda decidir entre duas alternativas, e para isso dever buscar mais informao no letreiro do nibus verificando os ltimos algarismos (ou, pelo menos, o penltimo).

    A InoV deve, ento, ser utilizada para reduzir o nmero de alternativas enquanto lemos. Se sabemos que um determinante (como o, esse, aquele) inicia um sintagma nominal, as alternativas sobre a palavra que o segue so reduzidas. Se encontramos a palavra desconhecida endvia numa receita culinria, as possibilidades sobre seu significado so reduzidas. A seletividade para a coleta e anlise da informao visual depende, assim, do uso de estratgias eficientes de utilizao da InoV.

    Mas o leitor usa a InoV no somente para fazer previses, como tambm para inferir, ou seja, para deduzir certas informaes no explcitas, que so importantes para que ele possa conectar as partes do texto e chegar, enfim, a uma compreenso coerente e global do material lido. Veremos, a seguir, alguns exemplos de como o leitor estabelece e utiliza inferncias na leitura.

    InfernciasGeralmente pensamos (incorretamente) que, quando lemos, vamos juntando

    uma palavra com a outra e com isso captamos a informao. Mas no bem assim. A obteno de informao no se faz exclusivamente pela compreenso das palavras

  • 26 possvel facilitar a leitura

    presentes no texto. O significado no computado somente atravs dos elementos explcitos, e a informao literal no exprime tudo o que o autor tem a inteno de comunicar. O significado global no simplesmente uma soma do significado individual de cada palavra, mas vai alm disso: para entender um texto, o leitor precisa tambm construir a lgica que relaciona as informaes apresentadas, elaborando as pontes de sentido que ligam as vrias informaes. O leitor precisa conectar as partes para dar coerncia ao conjunto.

    Vamos retomar o exemplo 1:

    (1) A casa da Bia foi assaltada. Ela est pensando em comprar um cachorro.

    Como vimos, a conexo lgica entre as duas sentenas do exemplo 1 no apresentada explicitamente. Essa relao tem de ser construda pelo prprio leitor com base no seu conhecimento do mundo, isto , com base na sua InoV. Ou seja: o texto 1 no diz nada a respeito de qual a relao entre o cachorro e o assalto, mas o leitor constri sozinho essa relao, a partir de uma srie de conexes lgicas que ele prprio elabora, pensando mais ou menos do seguinte modo:

    a) quem tem uma casa assaltada fica temeroso de que tal fato se repita;b) alguns tipos de cachorro tm a fama de tomar conta do seu territrio;c) se um cachorro defende a moradia e se Bia quer ter sua moradia defendida, ento Bia vai comprar o cachorro para defender a sua casa.

    a operao descrita no item c que confere lgica ao texto e liga as duas sentenas. essa a relao entre o cachorro e o assalto que faz do exemplo 1 um texto, e no duas sentenas isoladas e desconexas.

    Essa relao entre as sentenas no est visualmente presente, mas foi acrescentada ao texto pelo prprio leitor. Quem entendeu o exemplo 1 necessariamente construiu a relao lgica que ligou as duas sentenas, recuperando da memria as informaes que permitiram conectar os fatos. Isso quer dizer que o leitor acrescentou dados ao texto, ao elaborar uma ponte de sentido que no estava explcita. esse processo de deduo de informaes no explcitas, de acrscimo de dados ao texto e de construo de pontes de sentido que tem o nome de inferncia.

    V-se ento que o autor no explicita todas as informaes, e que o leitor tambm responsvel pela construo do sentido. Cabe ao leitor inferir as relaes implcitas e elaborar o significado, montando o quebra-cabeas do texto com as peas de informao que lhe so transmitidas explicitamente.

    Para isso ele precisa ter na sua memria os dados que o autor no explicitou. Por exemplo, se algum no sabe que um cachorro pode servir para proteger uma

  • 27Um modelo de descrio da leitura

    casa, certamente no vai entender o texto. Sem o conhecimento prvio, fica impossvel montar a lgica que liga as informaes.

    O conhecimento prvio sobre o assunto do texto, que permite a elaborao de previses e inferncias, provavelmente o aspecto mais importante de todos no tratamento da legibilidade. Para que um texto seja legvel indispensvel que o leitor tenha conhecimentos prvios que lhe forneam os instrumentos para a construo das relaes lgicas e das pontes de sentido. Sem o domnio desse tipo de informao no-visual, a leitura praticamente impossvel, ou pelo menos muito mais difcil. Dada a importncia para a legibilidade, trataremos mais a fundo desse assunto no prximo captulo.

    Resumindo as observaes feitas at aqui, podemos dizer que no possvel ler um texto valendo-se apenas de IV, isto , dos sinais grficos; a leitura o resultado da interao entre a IV, fornecida pelo texto, e a InoV, que o conhecimento prvio armazenado na memria do leitor. O leitor eficiente utiliza esse conhecimento prvio para fazer uma leitura rpida e seletiva atravs da previso de parte do material do texto. Alm disso, a InoV tambm utilizada pelo leitor para completar as informaes implcitas e elaborar inferncias, que contribuem na construo do sentido do texto.

    O estabelecimento de inferncias, bem como a formulao de previses, so processos que fazem parte da linguagem em geral, e portanto esto presentes tanto na compreenso da fala quanto da escrita.

    Para compreender, no basta saber a lngua; para ler, no basta ver e decodificar aquilo que est impresso no papel. necessrio, igualmente, fazer uso da informao no-visual, tanto para adiantar e antecipar as informaes que so previsveis quanto para inferir dados, deduzindo as informaes no explcitas. Essas informaes inferidas so necessrias para ligar trechos, construindo a coeso do texto, e tambm para elaborar a lgica e a coerncia do discurso.

    Em outras palavras, a leitura pressupe pelo menos dois processos que dependem de conhecimento prvio, isto , de informao no-visual: de um lado, a previso, que acelera e portanto facilita a leitura; de outro, a inferncia, que completa e possibilita a conexo e a compreenso do material expresso no texto. Ento, se um leitor tem informao no-visual insuficiente, de se esperar que tenha dificuldades na leitura:

    seelenopodepreveretemdeprestaratenoatodoomaterialvisual, lendo palavra por palavra, a velocidade de leitura pode cair a ponto de tornar impossvel a compreenso global do texto; seelenopodefazerinferncias,tambmdificilmentecompreenderoque l, uma vez que impossvel mencionar explicitamente toda a informao necessria compreenso de um texto.

  • 28 possvel facilitar a leitura

    Implicaes para o aprendizado da leituraA partir do que vimos na seo anterior, podemos dizer que uma das razes

    pelas quais o aprendizado da leitura pode ser to difcil para as crianas que s vezes elas tm pouca informao no-visual relevante. Assim, uma maneira de facilitar o aprendizado da leitura seria fornecer ao aluno textos cuja leitura no dependesse de InoV que ele no possui. Isso inclui todo tipo de conhecimento prvio, lingustico e no-lingustico.

    Os pesquisadores concordam, em geral, que lendo que se aprende a ler. Kleiman (1989a), por exemplo, diz que o caminho para chegar a ser um bom leitor consiste em ler muito (p. 8). Smith (1989) afirma pgina 103: como muitos outros aspectos da leitura fluente, a seletividade para coleta e anlise de amostragens da informao visual disponvel no texto vem com a experincia da leitura.

    Se o aprendizado da leitura adquirido atravs da prtica, seria til que as dificuldades fossem introduzidas paulatinamente. Isso implica, principalmente, no exigir conhecimentos prvios que o leitor no possui. Mas alguns materiais iniciais de leitura podem no estar favorecendo a utilizao do j escasso conhecimento prvio de que dispe a criana: no apenas o conhecimento de mundo, que certamente menor que o de um adulto, mas o prprio conhecimento sobre como ler.

    Se, como vimos, ler depende da utilizao de estratgias eficientes, e se existem estratgias de compreenso que so especficas do texto escrito, ento de se esperar que a criana que est aprendendo a ler no domine perfeitamente essas estratgias. Seu conhecimento lingustico prvio deve abranger apenas as estratgias adequadas ao estilo oral. Assim, as estratgias adequadas leitura devem ser gradativamente adquiridas pela criana, e sugerimos que esse aprendizado deva aproveitar ao mximo o conhecimento prvio que a criana possui. E aqui entram questes fundamentais: possvel ensinar a ler? possvel ensinar e treinar o uso de estratgias? Se sim, como? Todo tipo de estratgia ensinvel?

    essa proposta que procuraremos desenvolver neste livro. Discutiremos algumas caractersticas do texto didtico que parecem apresentar dificuldade para o aprendiz, porque exigem dele habilidades (estratgias) e conhecimentos que ele no possui. Argumentaremos que essas caractersticas podem ser evitadas nos textos apresentados aos leitores iniciantes, com o objetivo de facilitar o aprendizado da leitura. No se trata de lhes negar o acesso a textos mais difceis. Naturalmente o bom leitor deve ser capaz de ler textos de estrutura mais complexa. Mas propomos que essa complexidade, ou dificuldade, seja graduada, incrementada passo a passo, e que os textos no apresentem, num mesmo trecho, diversos pontos de dificuldade o que poderia tornar a leitura um desafio rduo, por vezes insupervel.

  • 29Um modelo de descrio da leitura

    Acreditamos que, se as complexidades que um texto pode apresentar forem dosadas e apresentadas ao leitor iniciante de forma gradativa, a criana ser capaz de vencer a tarefa de aprendizagem da leitura com mais tranquilidade, porque ser capaz de compreender o que l e poder crescer aos poucos. Construindo ou selecionando textos segundo esse critrio, acreditamos que o aluno poder adquirir as estratgias de maneira eficaz e sem os traumas que costumam surgir com o fracasso diante de tarefas impossveis. Poder at mesmo gostar de ler!

  • A utilizao do conhecimento prvio

    A elaborao de infernciass vezes um texto est adequadamente estruturado do ponto de vista formal isto ,

    est bem composto com relao ao aspecto sinttico, semntico, discursivo, ortogrfico , mas ainda assim pode ser pouco legvel; quer dizer, o texto, ainda assim, pode ser considerado incompreensvel por alguns leitores. Isso pode parecer estranho primeira vista: como um texto formalmente bem organizado pode ser de difcil compreenso?

    Para esclarecer esse ponto vale lembrar o que vimos no captulo anterior: a interpretao do que lido no se processa exclusivamente com base no material presente no texto. Quando lemos, no estamos jogando unicamente com aquilo que expresso de modo explcito, mas tambm com um mundo de informao implcita, no expressa claramente no texto, mas totalmente imprescindvel para se poder compor o significado.

    O leitor deve acrescentar conhecimentos extras quilo que vem dito literalmente. Essas informaes fornecidas pelo leitor, que servem para criar lgica no texto, so essenciais para a compreenso daquilo que o autor quer comunicar. Como vimos no primeiro captulo, esse processo de elaborao ativa de conhecimentos, a partir de relaes que estabelecemos entre o que dito e o que conhecemos anteriormente, que chamado de inferncia.

    Vamos ver um exemplo. Eu posso escrever para um amigo e dizer somente o seguinte:

    (1) O Z passou.

  • 32 possvel facilitar a leitura

    Esse amigo vai compreender a mensagem porque ele sabe completar o que eu no disse, ou seja, ele sabe se o Z passou no vestibular ou no exame para motorista, por exemplo. J para outra pessoa que no conhece bem o Z e no sabe que tipo de exame ele fez, a mesma informao teria de ser transmitida de forma diferente, talvez explicitando melhor os detalhes. Ns moldamos a forma da mensagem dependendo daquilo que sabemos que o nosso interlocutor pode deduzir e completar. Esse um dado importante, porque indica que, quando escrevemos, precisamos moldar o texto de acordo com o possvel leitor, tendo em vista o tipo de conhecimento prvio que ele possui, e a sua capacidade de completar o que no est expresso claramente no texto.

    Um outro exemplo de como fazemos inferncias apresentado pelo seguinte par de sentenas:

    (2) Roslia est plantando a flor no jardim. (3) Roslia est plantando a flor no vaso.

    Em (2), compreende-se que a Roslia est no jardim (junto com a flor), mas na frase (3) infere-se que somente a flor est no vaso, mas a Roslia no. Isso parece evidente, mas quem formulou esse dado foi o leitor, porque essa diferena no est escrita na frase. Em princpio poderia haver ambiguidade, mas qualquer dvida desfeita por causa do nosso conhecimento de como as coisas funcionam no mundo, bem como das dimenses de um vaso e de um jardim. V-se ento que a utilizao do conhecimento prvio e a formulao de inferncias so operaes corriqueiras, que fazemos a todo momento, sem nem mesmo perceber.

    O que acontece que nem tudo dito explicitamente; nem tudo colocado s claras e nem preciso, porque sabemos deduzir e completar o que no est no texto. O significado de uma mensagem no computado s a partir dos elementos que esto explcitos. Na verdade, o leitor tem de completar uma parte da informao que no est visvel, e para isso usa os conhecimentos que ele j tinha para dar coerncia ao texto.

    Vejamos como se d o estabelecimento de inferncias, atravs de alguns exemplos apresentados por Castelfranchi e Parisi (1980):

    (4) Hoje Pedrinho veio buscar o av. O velhinho caminhava apoiando-se numa bengala.

    Para compreender esse texto, o leitor tem, entre outras coisas, de compreender quem que caminhava apoiando-se numa bengala, ou seja, quem o velhinho. Em outras palavras: para integrar as duas sentenas, o leitor tem de relacionar o velhinho a um dos dois indivduos mencionados: a Pedrinho ou ao av. Mas a qual deles? O texto no esclarece esse ponto, mas seguramente todo mundo liga o velhinho ao av, e entende que era o av que caminhava com

  • 33A utilizao do conhecimento prvio

    uma bengala. Essa ligao (isto , a correferncia entre velhinho e av) no est expressa no texto. S possvel elaborar essa inferncia atravs do conhecimento enciclopdico que as pessoas tm sobre av, que inclui no somente o significado bsico da palavra (pai do pai ou pai da me), mas tambm informaes do tipo: em geral os avs so pessoas mais velhas. Esse conhecimento enciclopdico anterior, no-verbal, que privilegia a ligao entre velhinho e av, e descarta uma possvel ligao de referncia entre Pedrinho e velhinho.

    Esse exemplo evidencia que a integrao das sentenas de maneira coerente no depende somente da compreenso daquilo que est expresso explicitamente: depende tambm de certos conhecimentos implcitos, que estabelecem os elos para a ligao lgica das sentenas.

    Outro exemplo semelhante o seguinte:

    (5) Meu cachorro est passando mal. O meu pai disse para lev-lo clnica veterinria.

    No exemplo (5) aparece o pronome lo, que remete a quem deve ser levado clnica veterinria. Qual o referente do pronome (isto , a entidade para a qual o pronome aponta): o cachorro ou o pai? Em princpio o pronome deveria ser ambguo, j que ele est completamente livre, tanto na sintaxe quanto na semntica, para se referir ao cachorro ou ao pai. Mas nesse caso no temos nenhum problema na identificao da entidade qual o pronome se refere, e entendemos imediatamente que quem deve ser levado clnica o cachorro. O nosso conhecimento prvio sobre animais e o que se faz quando eles esto doentes, mais a nossa tendncia a ligar as informaes e procurar um elo lgico entre os dados apresentados nas sentenas, privilegia a ligao entre o pronome e o cachorro. Na verdade, a gente nem percebe que o pai tambm poderia ser levado clnica veterinria (por exemplo, ele poderia trabalhar l). Esse exemplo mostra que a identificao do referente de pronomes s vezes feita atravs de inferncias, que tm por base o conhecimento prvio.

    Nos exemplos (4) e (5) vimos casos de utilizao do conhecimento prvio na interpretao do referente das palavras velhinho e lo. Palavras como essas, quepodem remeter a vrias entidades e evocar referentes diferentes, dependendo do contexto em que se encontram, so chamadas anforas. A identificao do referente das anforas pode ser um problema importante na leitura. Retornaremos a essa questo no captulo Elementos dados e anfora, quando esse assunto ser examinado mais detalhadamente.

    Tambm dentro da prpria sentena pode ser necessrio inferir relaes no especificadas, com base em outros conhecimentos possudos pelo leitor. Esse o caso, por exemplo, da interpretao da preposio de nas seguintes frases:

  • 34 possvel facilitar a leitura

    (6) O gato morreu de medo. (causa) (7) O gato morreu de noite. (tempo) (8) uma garrafa de vinho. (contedo da garrafa) (9) uma garrafa de vidro. (material com que foi feita a garrafa)

    Como explicam Castelfranchi e Parisi (1980), nesses casos a preposio de tem um contedo semntico vago, pouco especfico, e a relao que se estabelece (de tempo, causa, contedo, etc.) construda com base no nosso conhecimento prvio, a partir do que julgamos que seja vivel ou plausvel naquela situao. A relao no especificada identificada pelo leitor com base em informao no-visual, isto , com base no seu conhecimento permanente. Guiado pelo contexto, o leitor infere qual o contedo cognitivo a ser completado.

    Observe-se que, no nvel sinttico, no possvel explicar a diferena de interpretao entre as sentenas. Isto , a relao sinttica entre os termos de (6) e (7) de um lado, e de (8) e (9) de outro, igual. Na verdade, o leitor baseia a interpretao das sentenas de (6) a (9) no apenas na sintaxe, mas tambm no seu conhecimento de como as coisas se estruturam e se relacionam no mundo.

    a capacidade que o leitor tem de fazer inferncias que permite ao autor no colocar no texto toda a informao necessria sua compreenso. Quando se l, por exemplo,

    (10) Enquanto Alade estava cozinhando, um pingo de gordura fervendo caiu no seu brao.

    infere-se imediatamente que Alade se queimou, e por isso essa informao no precisa vir expressa no texto. Da mesma forma, se algum me diz que

    (11) Artur est trabalhando.

    e eu sei que Artur trabalha na Faculdade de Letras, da eu posso concluir inferencialmente que Artur est na Faculdade de Letras.

    Como mostram esses exemplos, a construo de inferncias tem como consequncia a gerao de conhecimentos novos com base nas informaes do texto e nos conhecimentos j possudos anteriormente. Quer dizer, quando construmos uma inferncia, acrescentamos mais dados alm dos que j estavam expressos, e inclumos informaes extras ao texto.

    Essa informao adicional, elaborada pelo leitor, passa igualmente a fazer parte do seu conjunto de conhecimentos, do mesmo modo como acontece com as informaes transmitidas literalmente no texto. A capacidade inferencial de tal forma inerente compreenso da linguagem que o leitor, quando memoriza

  • 35A utilizao do conhecimento prvio

    as informaes recebidas, incorpora a esse elenco tambm a informao inferida, sem nem mesmo perceber que essa informao no estava explcita no texto. Esse dado inferido, que na verdade construdo pelo leitor, entra na memria como se fizesse parte do texto, do mesmo jeito que as informaes literais.

    Johnson, Bransford & Solomon (1973) (apud Bransford & McCarrell, 1977) comprovaram esse fato quando realizaram uma experincia em que foram apresentados, a dois grupos de leitores, textos como os apresentados a seguir:

    (12) Fernando queria consertar o armrio. Estava batendo um prego quando o telefone tocou.

    (13) Fernando queria consertar o armrio. Estava procurando um prego quando telefone tocou.

    Aps a leitura de (12) e (13), os sujeitos dos dois grupos deveriam ler o texto (14) a seguir, e dizer se o tinham lido anteriormente:

    (14) Fernando queria consertar o armrio. Estava batendo um prego com o martelo quando o telefone tocou.

    Note-se que o martelo no foi mencionado em nenhum dos textos iniciais (12) e (13), mas o grupo que leu o primeiro texto (o de nmero 12) que leva inferncia do uso de um martelo afirmava ter lido o texto final (14). J o grupo que leu o texto (13) que no pressupe o uso do martelo dizia ter lido um texto diferente de (14). Vemos assim que o material inferido memorizado pelo leitor juntamente com as informaes explcitas. Essa experincia mostra que o que armazenamos da leitura o sentido que construmos para o texto e no sua forma literal e, principalmente, mostra que desse sentido fazem parte as inferncias que elaboramos.

    Vamos examinar agora um pequeno texto e levantar as inferncias envolvidas na sua compreenso.

    (15) Amanh o aniversrio da Laurinha. Ana e Lusa foram comprar um presente. Elas esto pensando em comprar uma boneca. (Exemplo adaptado de Charniak, apud Castelfranchi e Parisi, 1979)

    Emprimeirolugar,seamanhoaniversriodaLaurinha,supomosque ela ganhar presentes. Essa uma inferncia baseada num conhecimento de mbito cultural, uma vez que h pases onde no se oferecem presentes no dia do aniversrio. Portanto, nem todas as pessoas poderiam construir aqui essa inferncia.

  • 36 possvel facilitar a leitura

    Apartirdoconhecimentoenciclopdicodequequandooaniversriode algum compram-se presentes para o aniversariante, inferimos que o presente que Ana e Lusa foram comprar para Laurinha. E se o presente umaboneca, inferimos a idade deLaurinha: deve ser uma criana.

    A reconstruo das inferncias envolvidas na interpretao desse pequeno texto pode parecer extensa, mas inegvel que quem compreendeu o texto teve de construir todas essas relaes. O que realmente surpreendente a facilidade e o automatismo com que realizamos todas essas operaes mentais.

    claro que nem sempre to fcil construir as inferncias envolvidas num texto; a dificuldade de compreenso da leitura pode residir exatamente na dificuldade de estabelecer as inferncias necessrias integrao das informaes.

    Vimos ento que no processo de comunicao atravs da linguagem necessrio que o leitor (ou ouvinte) acrescente ao texto uma srie de conhecimentos que ele mesmo j possui, de forma a poder estabelecer uma ligao ou uma ponte entre os elementos lingusticos realmente presentes, integrando as informaes e dando coerncia ao enunciado. como se o leitor estivesse, a todo tempo, lendo nas entrelinhas. Para se entender a linguagem preciso inferir diversas informaes que no esto mencionadas explicitamente, mas que so absolutamente imprescindveis para se poder entender a mensagem.

    A compreenso da linguagem ento um verdadeiro jogo entre aquilo que est explcito no texto (que em parte percebido, em parte previsto) e entre aquilo que o leitor insere no texto por conta prpria, a partir de inferncias que faz, baseado no seu conhecimento do mundo.

    Expectativas e a noo de esquemaVimos que as inferncias que construmos na leitura de um texto esto ancoradas

    no nosso conhecimento prvio. Mas como que esse conhecimento ativado?Para examinar esse ponto, vamos retomar o exemplo (4):

    (4) Hoje Pedrinho veio buscar o av. O velhinho caminhava apoiando-se numa bengala.

    Quando analisamos esse caso, vimos que a correferncia entre velhinho e av privilegiada com base no nosso conhecimento enciclopdico. O fato que, ao se mencionar a palavra av, o que ativado na mente do leitor no somente a definio do item, isto , pai do pai ou pai da me. Juntamente com os elementos

  • 37A utilizao do conhecimento prvio

    que definem o conceito so ativadas na memria vrias outras informaes que se relacionam a esse conceito, como, por exemplo, o de pessoa idosa. Elementos como esse no fazem parte da lista de traos semnticos obrigatrios aqueles que servem para definir um conceito; so somente noes esperadas, mas so igualmente acionadas e focalizadas quando se menciona um item lxico.

    Na verdade, uma palavra evoca na mente do leitor muito mais informaes do que os seus traos definitrios, e ativa uma rea cognitiva mais ampla, que inclui tambm os conhecimentos enciclopdicos relacionados ao conceito mencionado. Esses elementos esperados chamados expectativas so acionados juntamente com os traos que definem um item lxico, e muitas vezes so utilizados para promover a relao entre as partes de um enunciado.

    As inferncias que construmos na leitura tm como base as nossas expectativas, quer dizer, o que a gente espera que acontea ou seja verdadeiro em cada situao. Esse um tipo de conhecimento prvio especialmente importante no estabelecimento de inferncias, bem como na formulao de previses.

    Exemplos de expectativas podem ser buscados na explicitao do processo de compreenso do texto (15) visto anteriormente. Dissemos que se amanh aniversrio da Laurinha, supomos que ela ganhar presentes. Mas como pudemos elaborar essa suposio? Essa inferncia foi construda com base no nosso conhecimento prvio a respeito dos aniversrios, que promove a expectativa de que o aniversariante ganhe presentes. Dissemos tambm que se o presente uma boneca, inferimos que Laurinha uma criana. Essa inferncia se baseia na expectativa seguinte: espera-se que um brinquedo seja oferecido como presente a crianas, e no a adultos. V-se ento que inferimos certas informaes a partir daquilo que julgamos mais provvel naquela situao, ou seja, a partir das nossas expectativas.

    Estudos na rea da psicologia cognitiva (como Schank (1978), Minsky (1975) e Rumelhart e Ortony (1976)) mostram que a memria tem de ser organizada de forma a permitir ao indivduo ter acesso a informaes relevantes que se ligam a um estmulo. Essas informaes adicionais esto guardadas na nossa memria, interagindo com outras informaes, de forma a compor um quadro que define um certo tipo de conhecimento. como se cada unidade de conhecimento guardada na memria fosse interligada s demais, compondo uma espcie de tecido ou circuito cognitivo. Ao se acionar um conceito na memria, ativam-se simultaneamente outras informaes que se ligam a ele. Essa rede de informaes interligadas compe o que se chama de esquema. Um esquema inclui basicamente um ndulo central, que o conceito ativado por um estmulo (como uma palavra, por exemplo), e mais as expectativas que se ligam a esse conceito.

    Assim, por exemplo, o esquema de cachorro poderia ser representado, grosso modo, da seguinte maneira:

  • 38 possvel facilitar a leitura

    Esquema de cachorro

    Expectativa 1 serve para proteger casas

    Ncleo Expectativa 2 traos: Expectativa 3 possvel que animal pode tenha pulgas quadrpede morder mamfero, etc....

    Expectativa 4 faz carinho e companhia ao dono

    Quando o conceito de cachorro acionado na memria, ativam-se simultaneamente todas essas informaes ligadas ao ndulo central focalizado.

    Os esquemas so estruturas que representam a organizao do conhecimento armazenado na memria. So fatias do mundo dos conceitos, que podem ser ativadas na mente de um indivduo atravs de um estmulo. So formados por informaes que esto ligadas umas s outras, num processo interativo, compondo uma espcie de rede ou circuito mental. Como vimos, os esquemas se mostram necessrios ao sistema de processamento da informao, desempenhando um papel importante no estabelecimento de inferncias e na compreenso dos textos.1

    Para exemplificar a ativao dos esquemas cognitivos, vamos voltar novamente ao primeiro exemplo visto no primeiro captulo:

    (16) A casa da Bia foi assaltada. Ela est pensando em comprar um cachorro.

    Vimos que, para integrar essas duas sentenas num texto coerente, o leitor tem de criar pontes de sentido, ou seja, conexes lgicas. A integrao das duas sentenas no est explicitada, mas construda pelo leitor a partir do seu conhecimento prvio,

    1 A esse respeito, veja-se tambm Van Dijk, 2002.

  • 39A utilizao do conhecimento prvio

    que promove certas expectativas a respeito dessa situao. Ao serem ativados os conceitos de casa e assalto, o leitor levanta imediatamente diversas expectativas, dentre as quais a seguinte: quem tem uma casa assaltada provavelmente tentar evitar que isso se repita, e portanto espera-se que procure proteo. J o conceito de cachorro, evocado na segunda sentena de (16), inclui a seguinte expectativa: cachorros servem para proteger casas (como representado na expectativa n. 1 do esquema anterior). So essas duas expectativas que, ao serem acionadas e interligadas, permitem que o leitor elabore a inferncia de que a funo do cachorro ser guardar a casa, para evitar novo assalto.

    Observe-se que, se modificssemos a segunda sentena de (16), construindo (17)

    (17) Minha casa foi assaltada. Estou pensando em comprar um porquinho- da-ndia.

    seria difcil encontrar uma relao lgica no texto, uma vez que o conceito de porquinho-da-ndia no inclui expectativas que poderiam se relacionar s expectativas acionadas pela primeira sentena.

    fato que muito mais fcil entender o texto (16), em que aparece o cachorro, do que o (17), em que aparece o porquinho-da-ndia. Mas apesar da dificuldade de integrao das duas sentenas do exemplo (17), o leitor procura imaginar uma relao qualquer que possa ligar os dois fatos. Na verdade, ele sempre tenta entender duas sentenas justapostas como se fosse um texto, mesmo que isso lhe custe bastante esforo. O leitor parte sempre do princpio de que o autor no escreveu tais coisas por acaso, que ele no doido, que na verdade o escritor tem a inteno de transmitir alguma informao, e que deve haver alguma lgica subjazendo colocao apresentada. Por isso o leitor faz fora para entender e procura sempre imaginar uma conexo possvel entre os fatos relatados.

    Grice (1967) exprimiu essa ideia quando formulou o chamado Princpio Cooperativo, que consiste num elenco de convenes, estabelecidas tacitamente entre o emissor e o receptor, necessrias comunicao eficiente. Uma das convenes ou mximas, segundo a terminologia usada por Grice a seguinte:

    Mxima de Relao: seja relevante

    Essa mxima resume o princpio que orienta o leitor na busca de uma coerncia no discurso: o leitor supe que o autor queira transmitir uma mensagem e que procura ser relevante naquilo que diz; fica a cargo do leitor procurar essa relevncia e a lgica da informao.

    Vamos considerar outro exemplo:

  • 40 possvel facilitar a leitura

    (18) Joo matou Maria. Amanh vou visitar Joo na cadeia.

    Todos conseguem compreender essas duas sentenas como um texto, ou seja, todos veem a duas sentenas relacionadas entre si, e no duas frases isoladas. Ento, preciso explicar como chegamos a estabelecer essa relao; precisamos explicar, por exemplo, porque no nos parece estranho o fato de Joo estar na cadeia.

    Todo o nosso raciocnio se baseia nos conhecimentos que j possumos anteriormente, que se ligam ao esquema de assassinato. Quando encontramos a situao X matar Y ativamos imediatamente na nossa memria uma srie de outros conhecimentos ligados a essa noo, como:

    assassinatossocrimes,proibidosporlei;astransgressesleisopassveisdepunio;umadasformasdepuniocolocaroinfratornacadeia.

    Assim, baseados nesses conhecimentos, podemos ter a expectativa de que ocorram certas situaes, como a priso do assassino.

    Em outras palavras, podemos dizer que, quando o texto evoca na mente do leitor a noo assassinato, so ativados paralelamente vrios outros conceitos, dentre os quais a expectativa de que o agente seja preso. essa expectativa, portanto, que explica o fato de Joo poder ser visitado na cadeia, e confere coerncia ao texto (18). Baseados nessa expectativa, inferimos que Joo est na cadeia porque matou Maria.

    Se tivssemos, em vez do texto (18), algo como (19),

    (19) Joo matou Maria. Amanh vou ao enterro de Joo.

    a integrao das duas sentenas seria mais difcil, uma vez que o esquema de assassinato no levanta a expectativa de que o agente tambm morra. provvel inclusive que, no lugar de vou ao enterro de Joo o leitor entenda vou ao enterro de Maria. As expectativas que ativamos com relao aos conceitos ou situaes levantadas pelo texto so de tal forma poderosas que podem dirigir a leitura e guiar a interpretao. Nesse caso, como a expectativa mais forte de que Maria fosse enterrada, e no Joo, pode acontecer de o leitor nem mesmo se deter na decodificao do final da segunda sentena, porque j pode prever qual seria a informao dada nesse trecho. Assim, quando o leitor encontra vou ao enterro de..., ele salta a parte que vem imediatamente depois, completa sua interpretao com a expectativa formulada e compreende ou julga ter visto vou ao enterro de Maria.

    As expectativas variam em fora de presena, sendo algumas ativadas mais fortemente do que outras, de acordo com critrios socioculturais ou individuais. Vimos nos exemplos que mais fcil integrar o texto (18) do que (19), porque a expectativa que permite a

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    integrao das sentenas de (18) (agente de um assassinato ser preso) mais fortemente ativada do que aquelas que poderiam ligar as sentenas de (19) (como, por exemplo, agente de um assassinato ser morto). Essa explicao pertinente se considerarmos nossa cultura. Mas numa cultura diferente, onde hipoteticamente houvesse pena de morte automtica para assassinos, a expectativa agente ser morto poderia ser ativada mais fortemente do que para ns brasileiros, e permitiria que o leitor integrasse de modo mais fcil o texto (19). nesse sentido que afirmamos que as expectativas so determinadas socioculturalmente. Alm disso, podem variar de indivduo para indivduo. Por exemplo, o esquema de cachorro pode conter, para algumas pessoas, a expectativa proteo, ao passo que para outras pode se ligar a perigo, dependendo de suas experincias pessoais.

    Quando a interpretao de um texto exige uma ponte de sentido baseada numa expectativa fortemente ativada, o texto mais fcil de ser compreendido. Por exemplo, vamos imaginar um texto que fale de uma situao de compra: isso ativaria um script que inclui uma lista de detalhes que caracterizam o evento e que se ligam normalmente a essa situao, como ida a uma loja, vendedor, pagamento, dinheiro, carteira, lucro, embrulho.2 Podemos ligar com mais facilidade sentenas que envolvam uma expectativa fortemente ativada, como no exemplo a seguir:

    (20) Gostaria muito de comprar a sua rifa, mas infelizmente estou sem minha carteira no momento.

    Por outro lado, quando o texto envolve expectativas mais fracas, a ligao entre as sentenas pode ser mais difcil, como se v no exemplo a seguir:

    (21) Gostaria muito de comprar a sua rifa, mas infelizmente estou sem minha chave no momento.

    O esquema de compra ativa muito fracamente a ideia de chave (ao contrrio da ideia de carteira, que ativada fortemente). Para a compreenso de (21), o leitor deve percorrer um caminho maior. Uma possibilidade que o esquema de compra ative o esquema de dinheiro, que por sua vez est ligado a cofre, que ento ativaria chave. V-se que para integrar (21) o esforo bem maior, exigindo que se percorra um caminho mais comprido do que em (20). Em (20), a expectativa de que haja uma carteira est ligada ao esquema de compra de uma forma mais estreita, mais prxima, mais evidente. Por outro lado, a existncia da chave de um cofre nesse esquema no uma expectativa to forte; ao contrrio, uma expectativa fraca, ligada de maneira muito distante ao esquema de compra. Para fazer a ligao da chave mencionada com a situao de comprar uma rifa o leitor tem de elaborar

    2 O termo script usado por Schank (1978) para se referir ao esquema cognitivo que se relaciona a uma cena, como a situao de fazer uma compra.

  • 42 possvel facilitar a leitura

    uma poro de dedues, tem de fazer uma srie de raciocnios, e se esforar objetivamente no sentido de descobrir uma possvel relao entre os fatos. Todo esse raciocnio toma tempo, e s vezes desenvolvido at de forma consciente.

    Por outro lado, quando a ligao do texto feita atravs de uma expectativa fortemente ativada, como no caso de (20), a compreenso imediata e o raciocnio envolvido no consciente. Nesse caso, o texto compreendido mais facilmente e mais rapidamente. Chegamos ento ao seguinte princpio:

    Princpio 1: Textos cuja compreenso depende da utilizaode expectativas fortemente ativadas so mais legveis.

    Vimos ento que as palavras mencionadas ativam na mente do ouvinte ou leitor no somente o significado que as define, mas todo um esquema de conhecimentos, composto de informaes que se ligam ao conceito evocado.

    Num texto, os esquemas evocados por cada item lxico interagem uns com os outros, privilegiando certas expectativas. Por exemplo, vimos que quando obtemos a informao de que

    (22) Joo matou Maria.

    acionamos imediatamente a expectativa de que Joo seja preso. No entanto, se sabemos que

    (23) Joo matou a barata.

    ou

    (24) Um urso polar matou Maria.

    no ativamos a mesma expectativa de priso do agente, uma vez que ela s acionada na presena de um agente e de um paciente humanos. Portanto, a integrao de trs esquemas (do esquema de matar aos esquemas de Joo e de Maria, que preenchem os espaos de agente e paciente humanos) que ativa a expectativa de que o agente seja preso.

    Retomando as observaes feitas at aqui, conclumos que, para compreender um texto, no basta que o leitor tenha um conhecimento adequado da lngua; alm disso, o conhecimento prvio do leitor tem tambm de incluir as expectativas que lhe permitem fazer as inferncias necessrias. Essa capacidade de deduzir e fazer inferncias essencial na leitura, e vai alm do conhecimento das regras da lngua uma

  • 43A utilizao do conhecimento prvio

    capacidade lingustica fora da gramtica , ou seja, no decorre diretamente do conhecimento que o leitor tem da lngua.

    A ativao de expectativas ocorre em qualquer tipo de texto. Mas uma diferena interessante entre os textos literrios e os informativos o fato de que a literatura explora o aspecto de desvio da expectativa do leitor: causar ruptura da expectativa, promovendo surpresa, espanto, e criando impacto no leitor ao jogar com o inesperado, uma das caractersticas tpicas de textos literrios. Para dar apenas um exemplo, veja-se o incio de um conto:

    O homenzinho de ralo cabelo grisalho, com um discreto terno vermelho brilhante, parou na esquina de State e Randolph [...]. (Brown, 1982: 22, traduo nossa)

    Vimos nesta seo que nem todas as informaes que o autor tem em mente e pretende comunicar so colocadas explicitamente nos textos. Provavelmente isso nem seria vivel, porque sobrecarregaria os textos com um nmero excessivo de informaes. Alm disso, a explicitao de todas as informaes no necessria, porque o mecanismo da inferncia e da gerao de expectativas automtico e inerente linguagem. O que difcil, s vezes, o autor saber dosar o que deve ser explicitado no texto e o que pode ser deixado a cargo do leitor, para que ele complete com as inferncias. Nesse sentido, preciso levar em considerao dois pontos fundamentais:

    As inferncias que o leitor formula tm comobase o seu conhecimento prvio (o que chamamos InoV). O conhecimento enciclopdico e mais especificamente o conhecimento a respeito do assunto do texto que do suporte e permitem a formulao das expectativas e das inferncias. Seoleitornotemoconhecimentoprvionecessrioparaaformulaodas expectativas e das inferncias necessrias para ligar as partes do texto, no ser possvel construir as pontes de sentido isto , no ser possvel elaborar a rede de ligaes que d coerncia ao texto e portanto no ser possvel compreender adequadamente.

    Tendo em vista essas observaes, conclumos que uma das tarefas mais importantes do autor a de avaliar adequadamente o conhecimento prvio do seu provvel leitor e construir um texto que no demande inferncias que o leitor incapaz de elaborar.

    O uso do conhecimento prvio em textos didticos

    Dissemos anteriormente que os textos em geral no incluem todas as informaes de que o leitor necessita para compreend-los. Na verdade, a explicitao de absolutamente todos os conhecimentos necessrios interpretao e interligao

  • 44 possvel facilitar a leitura

    das sentenas sobrecarregaria de tal modo o texto, avolumando o nmero de informaes, comentrios e explicaes, que acabaria, sem dvida, por dificultar ou inviabilizar a leitura. No , portanto, o caso de se imaginar que textos bem construdos devam apresentar explicitamente todas as informaes necessrias sua compreenso (isso nem mesmo possvel na prtica); o que preciso observar na composio de um texto se o leitor em potencial dispe de conhecimentos que lhe permitam inferir informaes e relaes no explcitas. preciso, para isso, que o autor imagine seu provvel leitor; preciso que ele represente adequadamente o tipo de leitor para o qual escreve, aquele a quem se destina o texto. O autor dever avaliar o conhecimento do leitor com relao ao assunto tratado e sua capacidade de estabelecer as cadeias de inferncias que o levem compreenso. A partir da, o autor poder fazer as adequaes necessrias sob esse ponto de vista, modelando o seu texto de acordo com os conhecimentos prvios e a capacidade inferencial do leitor ao qual se dirige.

    verdade que nem sempre fcil imaginar o tipo de conhecimento possudo pelo leitor. Mas no caso de textos didticos (nos quais nos baseamos neste livro, para o exame da legibilidade) possvel avaliar aproximadamente os conhecimentos de um aluno mdio, ou pelo menos quais foram as informaes introduzidas nas sries anteriores e quais ainda no foram apresentadas. Podemos analisar, nos textos didticos, se as inferncias requeridas se baseiam em conhecimento prvio j possudo pelo aluno daquela srie. Dessa forma, o exame das cadeias de inferncias pode fornecer um ndice da dificuldade de um texto sob esse aspecto.

    Voltamos ento questo levantada no incio deste captulo: como um texto formalmente bem organizado pode ser de difcil compreenso? A resposta parece ser que o leitor pode no possuir os conhecimentos prvios necessrios para estabelecer pontes entre as informaes fornecidas e no ser capaz de deduzir as conexes que conferem lgica e sentido ao texto. Muitas vezes, a maneira de tornar o texto mais legvel justamente evitar a necessidade de pontes de sentido baseadas em informao de que o leitor no dispe previamente.

    Para exemplificar, vejamos inicialmente um ca