possíveis diálogos com imagens do feminino no cinema

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1 POSSÍVEIS DIÁLOGOS COM IMAGENS DO FEMININO NO CINEMA: O OLHAR É DE E PARA QUEM? Fernanda Ferrari Pizzato Universidade Federal de Pernambuco-UFPE Resumo Este trabalho teórico busca compreender a maneira como a mídia de filmes vem retratando as identidades femininas. Atualmente, esta vem assumindo uma importância cada vez maior, pelo mercado a que está atrelada e também por proporcionar e produzir valores. Seguindo essa idéia, faz-se necessária a compreensão do segmento feminino a partir desse meio formador de subjetivação, opinião e de “tradução” dos grupos culturais, visto que, deste são decorrentes interpretações e modos de agir próprios e partilhados dentro de nossa sociedade. E, nesse sentido, também, de nos indagarmos a respeito do modo como essas representações têm possibilitado a construção de identidades ditas femininas, dentro dos debates acerca da desnaturalização de papéis. Nessa linha, a investigação tem por base a perspectiva teórica que estuda o gênero como categoria analítica mutável. Palavras-chave: Filmes, identidade, feminino e gênero. Problemática Este trabalho tem por objetivo compreender de que maneira a mídia de filmes vem retratando as mulheres no cinema, ou melhor, como vem sendo examinado o lugar do gênero neste meio de comunicação social. Procura-se, portanto, descrever e analisar como os filmes mais locados pelas clientes de uma vídeo locadora, localizada num bairro de classe média na cidade do Recife, significam um certo lugar para o gênero feminino no discurso cinematográfico. Verifica-se ser importante: (1) nesse primeiro momento de apenas expor as possibilidades de posicionamento do feminino nos filmes e não necessariamente contextualiza-los com seu local de produção a fim de obter os possíveis significados dessa construção num dado contexto sócio-histórico; (2) compreender como o cinema tem possibilitado um diálogo com sua platéia; e (3) também, se é “válida” a consideração de que nos filmes, de grande distribuição como os Hollywoodianos, as imagens femininas são construídas a partir de um olhar masculino.

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Possíveis diálogos com imagens do feminino no cinema

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POSSÍVEIS DIÁLOGOS COM IMAGENS DO FEMININO NO CINEMA:

O OLHAR É DE E PARA QUEM?

Fernanda Ferrari Pizzato Universidade Federal de Pernambuco-UFPE

Resumo Este trabalho teórico busca compreender a maneira como a mídia de filmes vem retratando as identidades femininas. Atualmente, esta vem assumindo uma importância cada vez maior, pelo mercado a que está atrelada e também por proporcionar e produzir valores. Seguindo essa idéia, faz-se necessária a compreensão do segmento feminino a partir desse meio formador de subjetivação, opinião e de “tradução” dos grupos culturais, visto que, deste são decorrentes interpretações e modos de agir próprios e partilhados dentro de nossa sociedade. E, nesse sentido, também, de nos indagarmos a respeito do modo como essas representações têm possibilitado a construção de identidades ditas femininas, dentro dos debates acerca da desnaturalização de papéis. Nessa linha, a investigação tem por base a perspectiva teórica que estuda o gênero como categoria analítica mutável. Palavras-chave: Filmes, identidade, feminino e gênero. Problemática

Este trabalho tem por objetivo compreender de que maneira a mídia de

filmes vem retratando as mulheres no cinema, ou melhor, como vem sendo examinado o

lugar do gênero neste meio de comunicação social. Procura-se, portanto, descrever e

analisar como os filmes mais locados pelas clientes de uma vídeo locadora, localizada

num bairro de classe média na cidade do Recife, significam um certo lugar para o

gênero feminino no discurso cinematográfico. Verifica-se ser importante: (1) nesse

primeiro momento de apenas expor as possibilidades de posicionamento do feminino

nos filmes e não necessariamente contextualiza-los com seu local de produção a fim de

obter os possíveis significados dessa construção num dado contexto sócio-histórico; (2)

compreender como o cinema tem possibilitado um diálogo com sua platéia; e (3)

também, se é “válida” a consideração de que nos filmes, de grande distribuição como os

Hollywoodianos, as imagens femininas são construídas a partir de um olhar masculino.

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A análise de obras de ficção surgem a partir da importância cada vez maior

assumida pela produção e difusão do audiovisual no mundo contemporâneo, não

somente pelo mercado a que está atrelada, mas também por proporcionar e produzir

valores éticos e morais (informações disponíveis no sítio do Ministério da Cultura).

Seguindo essa idéia, faz-se necessária a compreensão do segmento feminino a partir

desse meio formador de subjetivação e opinião visto que, deste podem ser decorrentes

interpretações e modos de agir, específicos e partilhados, dentro de nossa sociedade.

Desde que as pessoas começaram a se engajar no mundo do cinema, a

tornarem-se, de fato, espectadores, vivência do século XX, que se obtêm nas imagens

projeções, construções e idealizações:“Certas representações do universo

cinematográfico começam a encher a cabecinha das nossas meninas modernas” (Del

Priore, 2005; 275). A história das mulheres está relacionada com o cinema de forma

bem clara, pois as mesmas formaram a maior parte do público nos primórdios da

história dessa mídia. De acordo com De Laurentis1 (2003) a imagem da mulher é

universal na cultura ocidental e também é anterior ao cinema, mas este possibilitou a

ampliação e o aprofundamento do olhar sobre as questões dos sujeitos.

Outra noção que deve ser esclarecida para a compreensão dos

questionamentos abordados neste trabalho é a de cinema, pois ao nos referirmos ao

mesmo tratamos de uma história e uma cultura, muito particularizadas, tanto de acordo

com o contexto-local de produção como quanto o público que o contemplará. Ou seja,

podem ser analisados dois aspectos dentro do campo do cinema: por um lado a

construção de personagens (femininos e masculinos) enquanto “meros” objetos da

produção e também, por outro, a inserção da platéia nesse diálogo e como essa

“relação” pode se repercutir nas suas vivências.

Este trabalho, deter-se-á no cinema Hollywoodiano contemporâneo, pois

este, com seu formato específico, se consolida como uma das principais tendências no

momento artístico cinematográfico2 e, além disso, acredita-se que o mesmo atenderá a

uma perspectiva sócio-cultural de análise, esta, nesse momento, envolvida pela idéia da

1 Autora de grande importância para a compreensão do desenvolvimento da crítica feminista no cinema. E, este trabalho se utilizou do seu texto Imagenação (`Imaginig`- Bloomington: Indiana University Press, 1984), que encontra-se no Caderno de Pesquisa e Debate do Núcleo de Estudos de Gênero UFPR. 2 Esta referência acena e se aplica as representações e formas de linguagem disseminadas pela indústria cinematográfica estado-unidense.

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constituição de um olhar sobre a construção dos papéis do gênero feminino neste tipo

de mídia.

Alguns questionamentos acerca de um modo de fazer cinema e dos “efeitos”

do mesmo para o público devem ser levados em conta para o desenvolvimento dessa

análise, como por exemplo: De que modo essas representações têm possibilitado a

construção de identidades ditas femininas? Como os sujeitos femininos constituem e são

constituídos na linguagem do cinema? De que forma recebem e vem a interpretar as

mensagens transmitidas?

Para o esclarecimento dessas indagações, frente ao objetivo de analisar o

retrato de mulher sob “formato” de imagens, será realizado, a princípio, uma discussão

teórica a respeito de gênero e mais especificamente do gênero para e no cinema. Serão,

neste momento, levantados pontos de relevância teórica que tem por base o estudo de

gênero como categoria analítica, a qual nos oferece a possibilidade de desconstrução de

possíveis estereótipos fornecidos pelo conjunto de imagens do filme e também dos

espaços mostrados. Este trabalho, portanto, constará de uma segunda parte em que

mostrarei os resultados obtidos a partir de entrevistas semi-estruturadas realizadas com

algumas clientes da referida vídeo locadora.

Desenvolvimento

Segundo De Laurentis (2003) as feministas têm se envolvido de forma

contundente nos diversos segmentos que o cinema proporciona a serem analisados e o

fazem, segundo a pesquisadora, porque acreditam que essa mídia, em específico,

oferece por conta das imagens um diferenciado modo de representação e de

significação, os quais vêm proporcionar um melhor entendimento de questões de gênero

e da contribuição para formação de idéias dos sujeitos em sua sociedade.

O resultado de um fazer cinematográfico pode oferecer motivações para um

diálogo com questões de cunho social que atravessam as disciplinas acadêmicas; a

escolha deste “material” fez-se por perceber que, assim como outras práticas artísticas,

esta também acaba por evidenciar o particular mesmo trazendo a tona elementos que

volvam o universal: “... a imagem cinematográfica é singular [possui] uma combinação

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de elementos que não podem ser catalogados, como as palavras, em léxicos ou

dicionários” (De Laurentis, 2003; 12). O cinema oferece, deste modo, um vasto campo

de identificação para os sujeitos.

Assim, o uso da imagem acrescenta novas dimensões à interpretação da história cultural, permitindo aprofundar a compreensão do universo simbólico que, por sua vez, se exprime em sistemas de atitudes pelos quais se definem grupos sociais, se constroem identidades e se apreendem mentalidades (Barbosa e Cunha, 2006; 57).

E, segundo Bachelard (2000), as imagens têm a capacidade de aumentar os

valores de realidade, ou seja, a identificação com imagens tem uma grande força, assim

como as fantasias que elas nos proporcionam fazem pensar que estas sejam melhores

que a realidade. Um exame destas, sendo direcionado à análise do social e não

“simplesmente” como produto artístico, se faz de grande interesse por justamente nos

por em contato com a pluralidade de significados que as mesmas vêm a transmitir num

diálogo não linear entre o particular e o universal, o público e o privado.

As discussões sobre a mulher e o cinema já vem ocorrendo há algum tempo,

nos anos 70, as feministas que estudavam cinema debateram questões sobre a

incompatibilidades entre a mulher no cinema e a mulher “real”; muitas afirmavam que

os modelos apresentados nas imagens estavam vinculados a ideologia do patriarcado.

Segundo Almeida (2003) ficava subtendida nessa idéia que as imagens construídas pela

mídia têm uma influencia direta no imaginário da platéia, como se esta última fosse

passiva aos valores e aos conceitos expostos, e neste sentido, passiveis de disseminar

essas noções, como as desigualdades produzidas pelo patriarcalismo.

O início dos estudos das feministas sobre cinema ocorreu a partir de uma

preocupação com a representação positiva ou negativa da imagem feminina apresentada

nesse tipo de mídia. Atualmente, de maneira geral, umas das principais preocupações do

feminismo teórico com o cinema advêm de uma necessidade de reconceitualizar o lugar

da mulher no simbólico e também de compreender o processo de produção de imagens

de forma política e articulada com a prática.

Verifica-se, portanto, uma mudança na forma de analisar a imagem feminina

no cinema, pois a esta mídia pode-se tecer uma análise não somente de produtora de

imagens, mas também, - e temos o dever - de entendê-la como reprodutora de imagens

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da mulher. Existe, dentro dessa forma de compreensão, uma grande diferença quando se

passa para uma perspectiva mais interacionista de modo a proporcionar uma

(re)significação, tanto dos recursos da produção cinematográfica, de seus códigos

quanto da inclusão, nesta análise, de como esses códigos são assimilados pela platéia.

Para este tipo de compreensão se faz necessário direcionar nossa leitura das

representações de gênero no cinema; uma delas pertence ao campo sociológico e a outra

a semiologia (Kaplan, 1995; De Laurentis; 2003). De Laurentis trata da possibilidade de

uma análise que deve levar em conta tanto uma metodologia sociológica, de grande

importância para a iniciação dos estudos sobre gênero e cinema, quanto semiológica

para o estudo das relações entre o que é produzido pela indústria cinematográfica com o

público espectador e com a cultura e história que os volvem.

O nível semiológico considera o cinema como sistema de significação e,

segundo Kaplan3 (1995; 34): “A semiologia, aplicada ao cinema, tenta explicar como o

filme se comunica, como seu significado é produzido, de modo análogo a como uma

frase em linguagem escrita comunica seu significado”. Nesse sentido a mulher seria

como um signo e aí podem ser atribuídos vários significados, por exemplo, uma mulher

utilizando em sua vestimenta uma gravata pode passar a significar mulher de negócios,

cria-se um signo novo. É nesse nível de análise que a cultura “entra em ação”, pois é

ela, devido a sua diversificada “visão de mundo”, quem oferece esses possíveis

significados que são atribuídos ao signo.

Dentro de uma análise de nível semiológico percebe-se a inclusão do outro

sujeito-cultura numa postura ativa, de interação com o que está sendo produzido e

significado. E, neste sentido se estaria abrindo a discussão para a platéia do cinema.

Para Mayne (in Kaplan, 1995; 56): “[a crítica feminista] é examinar os processos que

determinam como os filmes provocam reações e como os espectadores a produzem”.

Pretende-se, seguindo essa idéia, mostrar a possibilidade de uma análise não somente do

conteúdo dos filmes e de como as mulheres estão representadas nestes, mas, dentro de

uma abordagem dos estudos culturais e de etnografias nos estudos de comunicação

(Almeida, 2003), de uma análise da pluralidade de vozes que “interfere” e são

“interferidas” interpretativamente dentro das narrativas do cinema.

3 Crítica feminista de representações de gênero no cinema.

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Tudo o que o cinema traz, seja em relação aos símbolos, cenários, idéias, já

fazem parte da cultura e o público nessa espécie de identificação, cada sujeito dessa

platéia, vem a (re)significar esses elementos. Ou seja, as pessoas não são passivas diante

da exposição/ assimilação de imagens. O público constrói o significado do filme. Mas,

isto não quer dizer que o filme em si mesmo não tenha sentido ou significado, o público

costuma respeitar essa condição. O significado que um filme tem para o público não é

uma tradução ou réplica do significado que o produtor/diretor quis lhe dar, mas uma

construção que envolve o filme, os conhecimentos prévios do espectador que o aborda e

seus objetivos.

Por isso se faz interessante para compreensão da mulher no cinema um

estudo de como as mulheres vem captando, recebendo as imagens. Para entender as

representações de gênero no cinema se faz necessário compreender as relações entre

este meio e a sociedade, buscando, dessa forma, analisar a recepção das mensagens

transmitidas pelo cinema e como elas são reinterpretadas pelas espectadoras dentro de

cada contexto sócio-cultural e subjetivo.

A partir daqui tem-se dois pontos fundamentais a serem explorados, neste

trabalho e nos estudos, em geral, sobre gênero e cinema: a análise de gênero, como

categoria analítica, diante da receptividade do público para com imagens e de novas

leituras acerca da noção da construção de um olhar de possível dominação masculina, o

que perpassa a idéia de submissão das mulheres.

O interesse das feministas no estudo do cinema parecia se fazer, e ainda traz

essa forma, no sentido de desconstrução de um olhar masculinista, de uma constante

representação da posição masculina, tanto dentro do cinema como na prática. Segundo

Mulvey (in Kaplan, 1995; 54) a produção cinematográfica como um todo é construída

em torno de três olhares que são marcadamente masculinos: geralmente diretores,

produtores e o próprio câmera são homens e a partir disso já temos uma noção de quem

será focalizado nas filmagens (trabalho do câmera) e também sob que perspectiva o

filme foi estruturado (a análise do olhar do diretor sob a narrativa) e, por último, o olhar

do público masculino que o assiste (facilmente identificado com os produtores da obra).

Dominante, o cinema feito em Hollywood é construído de acordo com o inconsciente patriarcal; as narrativas dos filmes são organizadas por

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meio de linguagem de discurso masculinos que paralelizam-se ao discurso do inconsciente. No cinema, as mulheres não funcionam, portanto, como significantes de um significado (a mulher real) como supunham as críticas sociológicas, mas como significante e significado suprimidos para dar lugar a um signo que representa alguma coisa no inconsciente masculino (Kaplan, 1995; 53)

Diversas pensadoras da condição feminina na história e diferentes

questionamentos teóricos foram levantados a fim de explicar a realidade social das

mulheres, mas foi, a partir dos anos 80, com a inscrição do gênero como categoria

passível de análise teórica nas ciências sociais que se possibilitou um aprofundamento e

ao mesmo tempo desdobramento de uma série de problemáticas que envolvem as

relações entre mulheres e homens.

O conceito de gênero, assim colocado, redireciona um “novo” caminho a ser

traçado sobre os paradigmas das ciências sociais, e também, oferece uma noção

diferenciada sobre a história e os diversos domínios que a ela pertencem. Essa mudança

paradigmática nos diversos pólos teóricos que a inclusão do gênero propõe ajuda, de

acordo com Joan Scott (1996), a compreender a dinâmica das relações de poder dentro

da sociedade, principalmente, a “visualizar” como mulheres e homens são vistos e

interpretados, dentro dos arranjos sociais, como “segmentos” opostos e inscritos numa

relação de domínio e subordinação.

Ao tratar de gênero no cinema apontamos para muitas e variadas identidades

de personagens, que produzem um ideário de coerência e substancialidade. Essa idéia de

uma identidade coesa e que possui uma localização imóvel se faz atraente ao público.

(Kaplan, 1995). E, quando consideramos as questões de identidade de gênero em

interface com a mídia, se faz necessário reavaliá-las como categorias mais fluidas de

forma que possa ser possível pensar em múltiplas posições/papéis para

mulheres/homens visto que estes vão depender do posicionamento sócio-cultural em

que estão em relação. Visto que, estamos dialogando com os delicados limites entre

público e privado, e outras categorias como etnia e classe social.

Parece ser lugar-comum localizar, dentro dos filmes, a reprodução de um

estereótipo que reforce comportamentos dominantes, muito claramente representados

por histórias de mocinhas e bandidos, e diante do que foi colocado por Kaplan (1995)

da representação de uma identidade eterna/fixa do sentido que é dado às mulheres por

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um fazer cinematográfico composto, em sua maioria, por homens. E, tais fatos, acabam

provocando uma análise de discurso essencialista de gênero no cinema. Podendo este

tratado a partir de imagens positivas e negativas, mulheres “boas” (como a branca de

neve) X mulheres “más” (como a madrasta). Segundo De Laurentis (2003), não é uma

maneira engajada de se compreender os papéis do feminino, e tal forma de investigação

não leva em conta o contexto sócio-histórico-cultural dos sujeitos.

Para tanto, se quisermos explorar o espaço oferecido pelo cinema para um

exame e uma reconceitualização das relações sociais e subjetivas, neste caso, com um

foco nas relações de gênero, estas perpassando esses dois domínios, seria preciso esse

redirecionamento do olhar de imagens já produzidas, prontas, para considerar o cinema

como processo de significação.

Método

Do ponto de vista metodológico este trabalho envolveu a Análise do

Discurso de 10 entrevistas semi-estruturadas com mulheres de 20 a 31 anos de idade da

classe média, contando também com observação da dinâmica das mulheres na vídeo

locadora. As entrevistas ocorreram num local mais reservado do referido

estabelecimento e foi utilizado gravador e fitas. Todas as mulheres escolheram filmes de

romance para falarem sobre elas próprias, sobre mulheres e, de modo, bem evidente

sobre romances4, visto que, existe um gênero fílmico próprio que aponta para esta forma

de relação. As mulheres entrevistadas foram escolhidas por serem as que mais

freqüentavam a vídeo locadora na faixa etária escolhida. Visto que, após a análise dos

filmes mais locados durante o período de um ano, encontramos nas imagens e neste

público que a demandava mulheres nesse perfil5. Nosso questionário semi-estruturado

continha perguntas acerca da imagem das mulheres nos filmes, da possível predileção

por personagens e do grau de envolvimento com o que foi visto.

4 O romance se faz também um gênero fílmico que tem como um dos pré-requisitos um “final feliz”, e alguns de seus atributos giram em torno do ideário de um par perfeito e de paixão. 5 Informações obtidas pelo próprio sistema de locações da vídeo locadora e também através de observações.

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Considerações

Os relatos obtidos indicam a existência de três enredos sobre o

posicionamento das personagens: (1) 50%, identificadas com o ideário amoroso

romântico: a mulher cinderela, em que são construídas narrativas nas quais utilizam

características do romance-romântico da literatura; (2) 40%, a mulher humorada, quase

“dona de seu nariz”, o qual atrela algumas características do romantismo à comicização

dos personagens, e o (3) 10%, a mulher realista, neste momento fica associada a mulher

que também toma atitudes atribuídas aos homens e faz uma critica a certos enredos do

romance-romântico.

Identificou-se dentro destes relatos algumas associações referentes a perfis

de mulheres: a respeito dessa mulher cinderela encontramos relações com personagens

construídas como vítimas e sem ênfase no aspecto profissional ou familiar; as mulheres

humoradas, um enredo diferenciado surge, e é com o cômico que as mulheres

conseguem manejar as relações e se sentirem, em partes, menos sujeitas a apelos

masculinos e, por último, a mulher realista, associada a características que geralmente

são atribuídas aos homens, por tomar atitudes e expor suas prioridades, atribuindo

grande importância ao trabalho. Nestes dois últimos enredos as mulheres entrevistadas

faziam reflexões, talvez não aprofundadas, acerca das hierarquizações de gênero.

Compreendemos que o cinema produzido em Hollywood é atravessado pelo

patriarcalismo que opera no sentido de mostrar a mulher como alguém a margem e sem

voz ativa, há retratos de masculinidades e feminilidades que operam no sentido de uma

masculinidade heterossexual hegemônica6. Nesse diálogo parece haver a solicitação de

um parceiro para a construção de uma identidade feminina, esta sempre a espreita de

uma “deixa” masculina: “ele a transformou numa mulher de verdade ... ela merecia

respeito apesar da profissão” [trecho do discurso de uma das entrevistadas, fazendo

referência a mulher cinderela]. A entrevistada reafirma esse padrão advindo de uma

ideologia patriarcal de sociedade e de relação. E, segue a idéia, também dentro desta

dicotomia virgem-prostituta7, muito presente das representações da mulher no ocidente.

6 Connell (1987) aponta a dominação dos homens sobre as mulheres, exercida pela dinâmica cultural. 7Fazendo referência ao filme Uma Linda Mulher, em que a protagonista é uma prostituta. Este foi citado entre 7 das 10 mulheres entrevistadas. Esta dicotomização envolve a clara questão do duplo padrão de

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Há uma fixação e definições rígidas quanto a identidade das personagens principais, a

atriz, do filme em referência, foi convencionada na categoria de mulher e branca, e a

ambigüidade de classe social é logo “resolvida”, fatos que parecem transpor a

necessidade maniqueísta de produzir certas tipologias de mulheres. Outro relato que

chama a atenção para a mulher engraçada: “o bom é que ela sempre faz ele sorrir,

mesmo na confusão”, neste sentido, aqui é a mulher que contorna situações delicadas e

ainda com bom-humor, relatos de outra forma de “heroína”. Muitas das referências da

mulher realista se fazem no sentido dela ter uma postura mais objetiva em relação a

seus objetivos: “ela não devia ficar fazendo joguinho”.

Estas análises ainda estão em desenvolvimento, acreditamos que existam

muitas possibilidades de direção/produção desse olhar. As feministas revelam o quanto

produtos culturais e de mídia, como os filmes, revelam atitudes tradicionais para com o

gênero e os tipos de metas e desejos esperados em meninos e meninas.

Esse momento, iniciado a partir da década de 70, passou a vislumbrar a

necessidade de criação de filmes, dentro de seu espaço, que construíssem a mulher e o

homem enquanto representações, mas também da possibilidade da mulher de se inserir

nesses lugares, enquanto espectadora e produtora, e não, somente, o de contemplar uma

produção da mulher que atingisse expectativas de uma platéia masculina e feminina. Ou

seja, ocorreram mudanças para a inclusão do feminino num diálogo mais ativo com os

filmes (a possibilidade de se auto-representarem) e a partir disso a possibilidade de se

construírem identificações que possibilitassem a visão da mulher não como espetáculo,

como se pode observar nestes filmes mais comercializados na locadora.

São muitas as imbricações entre a arte e a vida. As formas de feminilidade

sempre foram reforçadas, imaginadas, dinamizadas, polemizadas, enfim, construídas na

cultura, através de produtos discursivos e midiáticos, que participam de uma espécie de

organização dos ideais de cada gênero, através de um conjunto de representações

históricas. Somos, dessa forma, remetidos a uma complexa relação entre a realidade e o

signo.

dominação masculino, visto que, por muito tempo existiu, e muito provavelmente, ainda exista no imaginário cultural a idéia de que a sexualidade feminina deve se dar no âmbito do matrimônio/conjugalidade e isso se faz uma premissa cultural que se desdobra numa categorização das mulheres de casa e as da rua, as boas para casar e as boas para transar.

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Referências

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