portugal de quinhentos e saber experimental

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Quadro sociocultural e histórico‐ literário do Portugal Quinhentista A importância do saber experimental Prof. Maria Luísa de Castro Soares, Universidade de Trás‐os‐Montes e Alto Douro UTAD Imagem: azulejaria portuguesa imagem de Lisboa

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Page 1: Portugal de Quinhentos e saber experimental

Quadro sociocultural e histórico‐literário do Portugal Quinhentista

A importância do saber experimental

Prof. Maria Luísa de Castro Soares, Universidade de Trás‐os‐Montes e Alto Douro

UTAD

Imagem: azulejaria portuguesaimagem de Lisboa

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Quadro sociocultural e histórico‐literário do Portugal Quinhentista 

Descobrimentos e monopólio do império orientalrepresentam um período de mudança: “cem anos gloriosos”(Teyssier apud Soares: 9) que representam um período deauge artístico e cultural.

Há uma euforia nacional generalizada que se revela, por ex.,nos relatos sobre Lisboa. Duarte Nunes de Leão faz os“Louuores & excellencias da cidade de Lisboa”.

Fala :1‐ da “grandeza do povo”‐ a variedade de gentes ecostumes, consequência das viagens e da aculturação deoutros povos.2‐ da cidade opulenta pelo comércio e “pola majestade dosedificios”

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Quadro sociocultural e histórico‐literário do Portugal Quinhentista  (cont.)

“(…) Lisboa [é a] cidade em que mais bees da natureza& fortuna concorrem, que em outras muitas do mundo,pela salubridade & temperança dos aares, pola fertilidade& amenidade dos campos, em que todo o inuerno haflores. Pola grandeza do pouo, que agora he a maior detoda a Christandade, pola majestade dos edificios, polafermosura & commodidade do porto capacíssimo &seguro, pólo commercio & tracto das mercadorias doOriente & Ocidente, & de todas as partes do mundo, polariqueza dos cidadões, pola frequencia de tantas naçõesque a ella concorrem, que parece hum mundo abreuiado,& patria comum, polos descobrimentos, conquistas &triumphos de tantas prouincias que a esta bemauentuadacidade se deuem, a que o Indo & o Ganges cada annoseruem com seus tributos & pareas, como a senhora doOriente” (Leão apud Soares 2007: 9)

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Quadro sociocultural e histórico‐literário do Portugal Quinhentista – Imagem de Lisboa no século XVI

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Quadro sociocultural e histórico‐literário do Portugal Quinhentista (cont.)

Lisboa: cidade renascentista que se reformula em termos de urbanização e arquitetura.  É o “centro do mundo em expansão e da exploração comercial” (Soares 2003: 554).

A tendência do homem criar à luz da razão reflete‐se na arquitetura das cidades do Renascimento: os edifícios são majestosos, as ruas amplas, há organização de bairros e definição racional da cidade. 

A cidade é o “berço” e a “placenta” do Humanismo e, simultaneamente, o seu objetivo: criar cidadãos, Homens da cidade.

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Quadro sociocultural e histórico‐literário do Portugal Quinhentista (cont.)

• Na linha das grandes cidades italianas, a capital portuguesa é pólo de desenvolvimento e florescimento das artes e ciências. 

• Na verdade, torna‐se numa das grandes cidades europeias, a nível populacional e de organização ou majestade arquitetónica:

No dizer de Damião de Góis :• “A sua grandeza e magnificência são tamanhas que bem pode pedir meças a quaisquer das restantes cidades da Europa, tanto pelo número de habitantes como pela beleza e variedade dos edifícios “(Góis apud Soares: 10).

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Quadro sociocultural e histórico‐literário do Portugal Quinhentista – Imagem de Lisboa no século XVI

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Quadro sociocultural e histórico‐literário do Portugal Quinhentista (cont.)

• Portugal torna‐se, de facto, num estado renascentista,com novos sistemas sociais, políticos, jurídicos e aafirmação progressiva de uma mentalidade tradutorada mundividência moderna, centrada na “experiêncianaval transoceânica” (Saraiva; Lopes apud Soares:11).

• Numa carta de António Ferreira, há referências:a) à circulação da moeda,b) ao luxo e ao facto de, no caso português, o comércionão ser explorado pela burguesia, mas pelo rei e algumaaristocracia. Em Portugal, não há uma burguesia comvocação comercial e a nobreza aplica a riqueza em terrase no luxo sumptuário, num deslumbramento novo‐riquista, beneficiador da burguesia europeia.

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Quadro sociocultural e histórico‐literário do Portugal Quinhentista (cont.)

• CONSEQUÊNCIAS:• Portugal é mero entreposto. Pode dizer-se que os

Descobrimentos estão por detrás das mudançasoperadas no homem ocidental, sem que osportugueses tenham acompanhado esses ritmosinovadores, com base no método experimental(Soares 2007: 11).

• Depois de Portugal ter “mudado o futuro domundo” (Ribeiro apud Soares 2007: 11) ficoudesajustado; incapaz de conseguir “acompanhar oritmo da transformação moderna verificada emalguns países (Holanda, Inglaterra, França)”(Idem, 11).

• Em carta “A João Roiz de Sá de Menezes”, diz Sáde Miranda:

“Destes mimos indianos,hei gram medo a Portugal ”

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Quadro sociocultural e histórico‐literário do Portugal Quinhentista (cont.)

• Se excetuarmos as reações de Sá de Miranda eas considerações da figura do Velho do Restelo n’Os Lusíadas (Soares 2007: 71-87), é numaambiência de orgulho nacional e patriótico quese vive a expansão em Portugal.

• O sentimento de confiança na magnificência dosDescobrimentos encontra expressão em todos oscampos da cultura. A nota comum aos textos decronistas, poetas, gramáticos, homens deciência, sábios é a euforia nacional, aconsciência da grandeza do que fora feito. Oorgulho dos portugueses reflecte-se nas obras deJoão de Barros, Castanheda, Góis, Garcia deResende, Gil Vicente e nos homens de ciênciaque vêm desfazer os erros do saber Antigo (e.g.Duarte Pacheco Pereira)

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Quadro sociocultural e histórico‐literário do Portugal Quinhentista (cont.)  A importância do saber experimental  

“Nunca os nossos antigos antecessores, nem os outros, muito mais antigos, doutras estranhas gerações, puderam crer que podia vir tempo que o nosso Ocidente fora do Oriente conhecido e da Índia pelo modo que agora é. Porque os escritores que daquelas partes falaram, escreveram delas tantas fábulas, por onde a todos pareceu impossível que os indianos mares e terras, do nosso Ocidente se pudessem navegar.

Ptolomeu escreve, na pintura das suas antigas tábuas da cosmografia, o Mar Índico ser assim como uma alagoa, apartado por muito espaço do nosso mar Oceano Ocidental, que pela Etiópia Meridional passa; e que entre os dois mares ia uma ourela de terra, por impedimento da qual para dentro, para aquele golfão Índico, por nenhum modo nenhuma nau podia passar. Outros disseram que este caminho era de tamanha quantidade, que por sua longura se não podia navegar, e que nela havia muitas sereias e outros grandes peixes e animais nocivos, pelo qual esta navegação se não podia fazer.

Pompónio Mela no princípio do seu segundo livro e assim no meio do terceiro De situ orbis, e mestre João de Sacrobosco, inglês, excelente autor, na arte da astronomia, no fim do terceiro capítulo do seu Tratado da Esfera, cada um destes em seu lugar, ambos disseram que as partes da equinocial eram inabitáveis pela muita grande quentura do sol. De onde parece que segundo sua tenção aquela tórrida zona por esta causa se não podia navegar, pois que a fortaleza do sol impedia não haver aí habitação de gente.

O que tudo isto é falso. E como quer que “a experiência é madre das cousas, por ela soubemos radicalmente a verdade ”  (Duarte Pacheco Pereira in Esmeraldo de Situ Orbis apud Soares 2007: 14).

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Quadro sociocultural e histórico‐literário do Portugal Quinhentista (cont.) 

A importância do saber experimental 

• Além de Duarte Pacheco Pereira, navegadorexperiente que rejeita certos mitos Antigos, emEsmeraldo de Situ Orbis, realçamos também ossólidos conhecimentos de cosmografia de D. João deCastro, nos seus Roteiros de Lisboa a Goa e Roteirodo mar Roxo e o rigor do seu mestre, Pedro Nunes(1502‐1578), geógrafo e matemático que, a partir de1547, foi cosmógrafo‐mor de El‐rei D. João III e ficouconhecido pelo seu Tratado da Sphera.

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Tratado da Sphera de Pedro Nunes

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Exposição comemorativa de Pedro Nunes

“novas terras, novos maresE o que mais é: novo céue novas estrelas”

Pedro Nunes

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Frente e verso de moeda de 100 escudos. Homenagem a Pedro Nunes

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Os Descobrimentos foram importantes  como atos de heroísmo, mas ainda porque vieram  através da ciência, derrubar  a mentalidade existente anteriormente, povoada de lendas e de 

imaginação. Cf. Imago Mundimedieval,  de Pierre d’ Ailly sobre a Ásia:

• “Nas Montanhas do Oriente, já para além da oikoumenê, vivem os pigmeus,homens com dois côvados de altura, que se dedicam à caça dos grous. Estagente tem três anos de gestação e morre aos oito anos de vida… Encontram‐setambém nestas regiões os macróbios, homens de doze côvados que combatemos grifos… Vêem‐se, igualmente, bárbaros que matam os pais já velhos e oscomem. Quem se recusa à prática deste costume é por eles considerado ímpio.Outros comem o peixe cru e bebem a água salgada do mar. Certos monstroshumanos têm os pés no sentido de diante para trás e com oito dedos; outrostêm cabeça de cão e peles de besta, ladrando como os cães. Há mulheres,nessas paragens, que procriam uma só vez, e os filhos, brancos à nascença,tornam‐se negros na velhice a qual, aliás, não ultrapassa a duração de umestio. Outras há porém que engravidam cinco vezes, mas cujos filhos nãovivem mais de oito anos. Há homens com um só olho, chamados arimaspos, ecinocéfalos chamados ciclopes. Tendo apenas um pé, correm no entanto com avelocidade da brisa, e quando se sentam no chão, abrigam‐se do sollevantando a planta do pé… Perto do lugar onde nasce o Ganges, há homensque vivem apenas do odor de um determinado fruto, o qual por isso mesmolevam consigo quando viajam; se acaso cheiram um mau odor, morrem logo”(Ailly in Dias apud Soares 2007: 13).

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Quadro sociocultural e histórico‐literário do Portugal Quinhentista (cont.)A importância do saber experimental (Cf. Carta de Caminha  sobre os costumes e povos do Brasil)

“A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos ebons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, nemestimam nenhuma cousa cobrir nem mostrar suas vergonhas. E estão acercadisso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto. Traziam ambos osbeiços debaixo furados e metidos per eles senhos de osso brancos, decompridão duma mão travessa e de grossura de um fuso de algodão eagudo na ponta como a furador. Metem‐nos pela parte de dentro do beiço eo que lhe fica antre o beiço e os dentes é feito como a roque de enxedrez. Eem tal maneira o trazem ali encaixado, que lhes não dá paixão nem lhesestrova a fala nem comer nem beber. Os cabelos seus são corredios eandavam tosquiados de tosquia alta, mais que de sobre pente, de boagrandura e rapados até per cima das orelhas. E um deles trazia per baixo dasolapa, de fonte a fonte pera detrás, uma maneira de cabeleira de penas deave amarela, que seria de compridão dum coto, mui basta e mui cerrada,que lhe cobria o toutiço e as orelhas, a qual andava pegada nos cabelos,pena e pena, com uma confeição branda, como a cera e não no era demaneira que andava a cabeleira mui redonda, e mui basta e mui igual, quenão fazia míngua mais lavagem pera a levantar ” (Caminha apud Soares2007:14‐15).

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Quadro sociocultural e histórico‐literário do Portugal Quinhentista ‐ Conclusão

Em Suma:• O grande contributo dos portugueses para o Renascimento foram

os Descobrimentos que, pela observação e pela experiência,alargaram o conhecimento do mundo e do homem.

• Provou‐se que:• o Índico é navegável;• a zona tórrida é habitável;• o mundo não é plano e possui diferentes regiões;• Desvendaram‐se novos climas, faunas, floras, paisagens, costumes,

abrindo‐se o horizonte humano ao reconhecimento do exótico edo relativo.

• Provou‐se a existência de antípodas.• Reconheceu‐se a variedade de línguas e de raças na uniformidade

do género humano.Erigiu-se a partir de então uma nova filosofia do

saber que se traduz num avanço quantitativo equalitativo: o saber mais de uma maneira diferente.

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Referências

SOARES, Maria Luísa de Castro (2003):“Vida áulica e idealdo cortesão no Renascimento e em Damião de Góis”. InCongresso Internacional. Damião de Góis na Europa doRenascimento. (Actas). Braga, Publicações da Faculdadede Filosofia da Universidade Católica Portuguesa: 553‐564.SOARES, Maria Luísa de Castro (2007). Do Renascimento à sua questionação I. Sá de Miranda. Vila Real: UTADSOARES, Maria Luísa de Castro (2013). Do Renascimento à sua questionação I. Camões lírico e Frei Agostinho da Cruz. Vila Real: UTAD