porque teologia e filosofia

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Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture [O texto a seguir foi retirado do livro Que mundo? Que homem? Que Deus?, de Juan Luis Segundo, São Paulo, Paulinas, 1995, pp. 9-40.] Por que “somar” filosofia & teologia? Não é suficientemente intrincada a teologia para que se queira somar-lhe as obscuridades ainda maiores dos sistemas filosóficos? O cristão comum que deseja compreender sua fé — e isso é fazer “teologia” — deverá levar ainda a pesada carga especulativa desse trabalho e colocar como sua base essa terra movediça, onde as filosofias aparecem e desaparecem sem, ao que parece, dar um passo decisivo adiante? Kant, ao começar a síntese de seu trabalho filosófico — na Crítica da razão pura —, nota, alarmado, essa diferença entre as filosofias que, incessantemente, se sucedem umas às outras, e as afirmações, verificações e teorias das ciências que se criam, se mantêm e se corrigem e, assim, fazem avançar o conhecimento a passos que, mesmo não excluindo erros e retrocessos parciais, terminam somando-se e dominando campos cada vez mais extensos da natureza. No entanto, o mesmo Kant, pretendendo remediar tão triste situação, parece que não conseguiu mais do que multiplicar esses edifícios perecíveis dos sistemas filosóficos, que são abandonados tão rapidamente como foram construídos... Isto é tão real que — do ponto de vista da sociologia, pelo menos — se poderia caracterizar um certo fim da Idade Moderna e talvez o pródromo de uma certa época pós-moderna, relegando a filosofia a ser apenas um ramo do saber histórico. Quero dizer com isto que, hoje, ensina-se filosofia muito mais como “história de filosofias” do que como sistematização das conquistas do conhecimento, em seu mais alto nível. Assim, com algumas honrosas exceções — como Heidegger — no nível universitário, a filosofia entra, sociologicamente, no círculo (vicioso?) de ter como seu quase único “mercado” a formação de futuros professores de filosofia. Ninguém parece necessitar dela como tal. Ainda no século passado, mesmo que o fenômeno não alcançasse uma unanimidade total, sistemas filosóficos podiam caracterizar — pelo menos na Europa ou na América do Norte — o estilo de pensamento de sociedades inteiras. Positivismo, racionalismo, idealismo, pragmatismo chegaram, dessa maneira, a constituir-se em pautas válidas para compreender fenômenos característicos de sociedades como a francesa, a alemã, a norte-americana etc. Nessa época, modelavam políticas, sistemas educativos e outros pontos decisivos da cultura. Sem dúvida, não deixavam de ser continuidades, mas mantinham verificações visíveis que hoje estão longe de aparecer na mesma proporção. Atualmente, ninguém se animaria, penso eu, em definir com um “ismo” qualquer pensamento “reinante”, seja na Alemanha, França, Inglaterra ou Estados Unidos... É verdade que, talvez, um olhar mais aprofundado mostre que as coisas não são assim tão simples. E que o fenômeno tem matizes importantes que ainda não pusemos a descoberto.E vale a

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Page 1: Porque teologia e filosofia

Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture

[O texto a seguir foi retirado do livro Que mundo? Que homem? Que Deus?, de Juan Luis Segundo, São Paulo, Paulinas, 1995, pp. 9-40.]

Por que “ somar” filosofia & teologia?

Não é suficientemente intrincada a teologia para que se queira somar-lhe as obscuridades ainda

maiores dos sistemas filosóficos? O cristão comum que deseja compreender sua fé — e isso é fazer

“ teologia” — deverá levar ainda a pesada carga especulativa desse trabalho e colocar como sua base

essa terra movediça, onde as filosofias aparecem e desaparecem sem, ao que parece, dar um passo

decisivo adiante?

Kant, ao começar a síntese de seu trabalho filosófico — na Crítica da razão pura —, nota,

alarmado, essa diferença entre as filosofias que, incessantemente, se sucedem umas às outras, e as

afirmações, verificações e teorias das ciências que se criam, se mantêm e se corrigem e, assim,

fazem avançar o conhecimento a passos que, mesmo não excluindo erros e retrocessos parciais,

terminam somando-se e dominando campos cada vez mais extensos da natureza. No entanto, o

mesmo Kant, pretendendo remediar tão triste situação, parece que não conseguiu mais do que

multiplicar esses edifícios perecíveis dos sistemas filosóficos, que são abandonados tão rapidamente

como foram construídos...

Isto é tão real que — do ponto de vista da sociologia, pelo menos — se poderia caracterizar um

certo fim da Idade Moderna e talvez o pródromo de uma certa época pós-moderna, relegando a

filosofia a ser apenas um ramo do saber histórico. Quero dizer com isto que, hoje, ensina-se

filosofia muito mais como “história de filosofias” do que como sistematização das conquistas do

conhecimento, em seu mais alto nível. Assim, com algumas honrosas exceções — como Heidegger

— no nível universitário, a filosofia entra, sociologicamente, no círculo (vicioso?) de ter como seu

quase único “mercado” a formação de futuros professores de filosofia. Ninguém parece necessitar

dela como tal.

Ainda no século passado, mesmo que o fenômeno não alcançasse uma unanimidade total,

sistemas filosóficos podiam caracterizar — pelo menos na Europa ou na América do Norte — o

estilo de pensamento de sociedades inteiras. Positivismo, racionalismo, idealismo, pragmatismo

chegaram, dessa maneira, a constituir-se em pautas válidas para compreender fenômenos

característicos de sociedades como a francesa, a alemã, a norte-americana etc. Nessa época,

modelavam políticas, sistemas educativos e outros pontos decisivos da cultura. Sem dúvida, não

deixavam de ser continuidades, mas mantinham verificações visíveis que hoje estão longe de

aparecer na mesma proporção. Atualmente, ninguém se animaria, penso eu, em definir com um

“ ismo” qualquer pensamento “ reinante” , seja na Alemanha, França, Inglaterra ou Estados Unidos...

É verdade que, talvez, um olhar mais aprofundado mostre que as coisas não são assim tão

simples. E que o fenômeno tem matizes importantes que ainda não pusemos a descoberto.E vale a

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pena, mesmo numa forma pouco acadêmica, fazer algumas reflexões sobre tais matizes ou

correções.

Especialização das ciências e reflexão filosófica

Recolocando o problema mencionado por Kant, como vimos, poderemos comprovar que as

ciências — primeiro as naturais e depois as do espírito — adquiriram seu status científico e

começaram a caminhar com passos firmes à medida em que se especializaram e, conseqüentemente,

se afastaram da filosofia que antes as englobava.

Aqui, seria possível perguntar pela origem dessa especialização. E, seguindo um pouco mais

fundo na questão, pela origem dessa crescente diferenciação. Talvez, a resposta mais simples que se

possa propiciar — a olhos de bom tanoeiro — é que as ciências foram diferenciando-se e depois

afirmando-se (com seus progressos), na mesma medida em que criaram, cada uma num

determinado campo do saber, instrumentos de medição e de manipulação cada vez mais precisos.

Ou seja, a partir do momento em que se prenderam à medição empírica.

Mesmo que a divisão entre ciências da natureza e ciências do espírito tenha aparecido cada vez

mais claramente como inadequada, serviu ainda durante muito tempo para dividir, grosso modo, os

terrenos onde a ciência reinava incontestavelmente e aqueles onde as disciplinas pertencentes (pelo

menos parcialmente) ao terreno filosófico ainda tinham muito que dizer. Também nos campos do

espírito, o descobrimento de medidas e instrumentos mais precisos e eficazes foram inclinando cada

vez mais para a ciência os conhecimentos sistemáticos, que, em outras épocas, foram filosofia.

Creio não ter sido nenhuma casualidade o fato de que a psicanálise, minada como estava de

hipóteses filosóficas, fosse aceita a modo de uma ciência um pouco especial. A “prática

psicanalítica” tornou isso possível, assimilando o que parecia — e era, segundo o título de uma das

obras de Freud: “metapsicologia” — a solução de problemas.empíricos da psique humana.

Agradando ou não aos puritanos do positivismo, algo que se enfrenta com êxito para com a

experiência, em terrenos tão intrincados e difíceis como os sonhos, as neuroses etc., “merecia” um

rótulo que a resgatasse da areia movediça dos sistemas filosóficos, e lhe permitisse ingressar nas

universidades propriamente ditas, como um (autêntico) saber que transformava a realidade.

Assim, durante a Idade Moderna, os grandiosos avanços das ciências naturais e, em menor grau,

os das ciências do espírito, estiveram em proporção direta com sua diferenciação e especialização.

Ou seja, em proporção inversa com sua (antes suposta) pertença a um saber indiferenciado que fazia

uso de instrumentos tão vagos e grosseiros como os conceitos de Deus, homem, universo, com suas

correspondentes relações causais e finalísticas. O positivismo científico acreditou estar no ponto de

passagem, ou haver passado já, da etapa metafísica (= filosófica) à última (segundo a história

seriada de Comte): a científica.

Dir-se-ia, assim, que esta proporção inversa entre a dimensão das (ou o interesse suscitado pelas)

ciências e da filosofia, respectivamente, acabaria reduzido o campo desta última em algo que não se

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poderia definir ou medir. Em outras palavras, em algo que, ao não estar com o pé firme no

empírico, necessitasse de base sólida para marcar um avanço seguro e sustentável. O último reduto

da filosofia seria, assim, a ontologia. Para designar essa área, prefiro o termo “ontologia” ao de

“metafísica” , usado por Comte, já que “metafísica” — semelhante à “metapsicologia” , da qual fala

Freud — pode, utilmente, designar essa zona dos problemas últimos da própria ciência. Ao

contrário, entende-se normalmente ontologia como a área dos grandes conceitos abstratos: o ser, o

espírito, a matéria, o universo e sua última origem (valha o paradoxo), todos esses elementos que a

ontologia procuraria sistematizar em sua essência e em suas respectivas relações.

E, precisamente, seria essa a filosofia que estaria moribunda, epistemologicamente reduzida a

um estatuto dessas meias ciências que, como a história da astrologia, ajudam a compreender para

onde se orientou, no passado, a curiosidade do espírito humano, à falta de rumos certos. Fora desse

campo histórico e, conseqüentemente, empírico, a filosofia não seria, então, capaz de fixar por si

própria uma linguagem de afirmações verificáveis, única comunicação, que — pareceria —

veiculava uma autêntica informação.

No entanto, essa espécie de caricatura desalentadora daquela que, no princípio, foi a fonte das

ciências, e converteu-se em sua rainha, para depois decair em importância, à medida em que as

ciências se independizavam dela, é uma imagem enganadora ou, se se prefere, uma meia-verdade.

Mesmo que, sociologicamente, não se possa negar grande parte daquilo que os fatos mostram nesse

campo da moderna “divisão do trabalho” , específica da função de conhecer a realidade.

De fato, qual seria, hoje, a situação “epistemológica” — isto é, relativa ao modo e possibilidades

de conhecer — das ciências? A rejeição do filosófico do plano do científico perdeu muito de sua

virulência e — eu diria mais — da incontestável vigência que teve em épocas não muito

longínquas.1

Existe um caso excepcional, que não pode ser passado por alto. Refiro-me ao que se costuma

chamar, mesmo que de um modo bastante ambíguo, de “ciências puras” . Seu tipo seria a

matemática ou a lógica formal. Dir-se-ia que essas “ciências” conseguem o ideal de deixar a

filosofia completamente fora de seu caminho. Mas, na realidade, sua “pureza” consiste apenas no

fato de que não se aplicam à realidade externa ao sujeito que conhece: são ciências que, mais do que

a realidade, exploram as leis do conhecimento, e sua identificação com o próprio fato de conhecer

toma ali o lugar de verificação. Dizia que a ambigüidade latente no estatuto dessas ciências consiste

em que, no fundo, são tão “puras” que acabam sendo a própria “ filosofia”. De fato, também aqui a

1 Cito ao acaso, como exemplo recente, a resenha publicada no início de 1989, numa revista

francesa, a propósito do livro La mélodie sécrète, de Trinh Xuan Thuan, professor da Universidade de Virgínia (Estados Unidos): “‘A existência do ser humano está inscrita na propriedade de cada átomo, estrela e galáxia do Universo, e em cada lei física que rege o cosmo’. Isso está escrito num livro que surge nestes dias (Ed. Fayard, Paris) e que vai criar outro big bang no lanterneau científico; porque é a primeira vez, há muito tempo, que um cientista de raça pura se dá ao luxo, em pleno centro de uma obra científica, de escrever um capítulo advogando... a existência de Deus”.

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sociologia tem algo interessante para dizer, pois mostra que isso, que ainda subsiste da investigação

filosófica, tem o mesmo objeto dessas que são chamadas de ciências puras. Não será esta uma das

exceções que confirma a regra?

Por outro lado — e qualquer que seja a resposta que se dê ao problema anterior — pareceria que

todas as ciências (aplicadas), que tiveram a pretensão de libertar-se da filosofia, chegam, mais cedo

ou mais tarde, às zonas onde lhes são questionados problemas claramente filosóficos. É difícil

arrancar dos habituais cientistas essa confissão (de culpabilidade?). Mas ela acaba aparecendo,

muitas vezes implícita, na forma desajeitada com que se trata de fugir do problema. É verdade que

as informações da imprensa, geralmente, não estão redigidas numa linguagem científica e,

provavelmente, não representam com exatidão o que o cientista teria dito. No entanto, não é raro

encontrar frases como estas: “ [...] as sondas enviadas a diferentes planetas do sistema solar e as

fotografias que elas fizeram esclarecem muito a incógnita sobre a origem do universo”. De fato, na

literatura, mesmo a científica, são abundantes as expressões sobre essa presumível origem, isto é,

sobre o big bang com o qual o universo que conhecemos teria começado. Uma enorme

concentração de energia inicial teria explodido, lançando a matéria de que estão feitas as galáxias,

com suas estrelas e planetas, em todas as direções do espaço (ainda por fazer). Nosso próprio

sistema solar estaria hoje viajando, numa velocidade fantástica, impulsionado por essa explosão, e

afastando-se de todos os demais elementos oriundos dessa deflagração...

Suponho que haja suficientes maneiras de verificar, por inferência, essas afirmações. Mas que

relação possuem com a origem do universo propriamente dito? Afirmar algo sobre isso seria tão

pouco científico como pretender que se descobriu a “origem” das espécies biológicas ao comprovar

que todas nasceram no mar e depois permaneceram nele ou o abandonaram... O que é pouco

científico, no entanto, não é dizer: até aqui chegou a ciência; mas, sim, é pouco científico dizer que

se descobriu a “origem” de algo, quando subsiste ainda por trás desse algo um visível e até enorme

porquê ou um como, que — contrariamente ao grande postulado científico da racionalidade

universal — se escamoteia.

Como se vê, não se trata de que haja ciências que, por ser da “natureza”, possam prescindir de

perguntas fundamentais. Não existe uma cortante divisão entre essas ciências e as do espírito. A

física, a química, a astronomia, a biologia, ao final dos porquês verificáveis até onde chegou o

conhecimento, colocam outros, para os quais não se têm instrumentos de medição ou técnicas de

manipulação. Antes, esses tais porquês eram matéria da filosofia, que explicitava essas questões a

partir do começo. Para tratá-las, havia métodos sobre cuja validez pode-se discutir muito. Hoje,

depois de assinar a ata de independência da ciência em questão, essas mesmas perguntas, ou outras

semelhantes, surgem ao final das explicitações e mecanismos verificáveis, mesmo que seja pelas

constantes probabilísticas. Muitas vezes, essas questões são silenciosas. O cientista tem vergonha de

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perguntar sobre o que se lhe disse que não entra no âmbito de sua ciência.2 E, geralmente, o tabu é

eficaz. Como quando se associa o big bang com a origem e, portanto, com a explicação do

universo.

Mas, outras vezes, o cientista quer ser fiel a um imperativo, que é parte da própria ciência, e

explicar aquilo que ainda não sabe se é uma lei ou o efeito do mero acaso. Ele precisa, então, ir

mais além dos porquês já conhecidos, mesmo que não vislumbre, ainda, como vai verificar o que

descubra ou deduza. Mas, em tais casos, apesar de que não costuma silenciar — como antes — a

filosofia, pratica-a muitas vezes de uma forma que chega aos limites do “amadorismo” . O novo

“objeto” desorienta. E, como era de temer-se, a falta de prática num campo que já não é puramente

científico me anima a afirmar que muitas vezes o homem de ciência faz uma má “ filosofia” . Não é

raro o fato de grandes cientistas produzirem uma má filosofia ao término das investigações

realizadas no campo empírico, onde se destacaram.

Epistemologia científica, acaso e teleono mia

Neste momento introdutório, um exemplo poderia, talvez, lustrar o que acabo de afirmar, de

forma tão despreocupada, como poderá pensar o leitor. Ninguém discute os méritos de Jacques

Monod no campo da química genética ou da biologia em geral, méritos pelos quais obteve o prêmio

Nobel. Pois bem, Monod, como outros grandes cientistas, pretende remontar-se, o mais longe

possível, na cadeia dos porquês. Até às margens, se for possível.

Mas não quer que essas origens empurrem a mente além de empírico. Para isso, Monod acredita

ser necessário evitar uma armadilha que, por analogia com certos fenômenos religiosos primitivos,

chama de “animismo” . Epistemologicamente falando, trata-se da tendência que tem o conhecimento

humano de explicar o funcionamento das coisas (ou, no caso menos grave, o comportamento de

seres vivos não humanos) por meio de procedimentos que, a rigor, são válidos apenas para as ações

humanas. Elas são explicadas, assim, por uma “alma” que, para ser preciso, não têm. Monod

descreve, assim, o “animismo” , do qual todo conhecimento, que pretenda ser verdadeiramente

objetivo, deve fugir: “O ponto essencial do animismo (tal como creio defini-lo aqui) consiste numa

projeção da consciência que possui o homem do funcionamento intensamente teleonômico de seu

próprio sistema nervoso central à natureza inanimada”.3

2 G. Bateson escreve (Pasos hacia una ecologia de la mente. Trad. cast. Ed. Carlos Lohlé. Buenos

Aires, 1972. pp. 293-294): Se, há quinze anos, me tivessem perguntando o que eu entendia pela palavra ‘materialismo’, creio que teria dito que o materialismo é uma teoria sobre a natureza do universo, e teria aceito como algo evidente a idéia de que essa teoria é amoral, em algum sentido... Hoje, se me fizessem a mesma pergunta a respeito do significado do materialismo, responderia que esta palavra, no meu pensamento, representa uma coleção de regras a respeito de quais perguntas devem ser feitas sobre a natureza do universo” (O original dessa obra, à qual me referirei com a primeira palavra do título inglês, quando entenda que seja necessário uma melhor tradução, é Steps to an ecology of mind. Ballantine Books, New York, 1974 (3).

3 Jacques Monod, El azar y la necesidad. Trad. cast. Ed. Barral, Barcelona, 1970. pp. 41-42.

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Do ponto de vista filosófico, é imprescindível prestar uma atenção decisiva à distinção que se

faz, aqui, entre natureza inanimada e natureza viva (a mesma que entre química inorgânica e

química orgânica). Existe animismo quando se projeta o que é próprio de um ser dotado de “sistema

nervoso central” sobre os seres de uma natureza onde reina o acaso acima de todas as coisas. No

entanto, mesmo que seja perigoso fazê-lo, não é animismo atribuir “ finalidades” — Monod parece

temer infringir, aqui, tabu positivista e usa o equivalente grego de finalidade: teleonomia —,

intenções e outras atitudes “antropomórficas” ao seres vivos. De fato, é uma característica essencial

dos seres vivos “a de ser objetos dotados de um projeto, que ao mesmo tempo representam em suas

estruturas e cumprem com suas performances” .4

Não sei se o leitor terá percebido um artifício lógico (ou ilógico), muitas vezes usado por

Monod, manejado aqui ao dizer que os seres vivos são “dotados” de teleonomia. A voz passiva

permite-lhe falar de algo que existe, sem mencionar o problema de sua origem. Na voz ativa, a frase

deveria ter um sujeito para o verbo “dotar” . Ao passo que, na passiva, a frase “parece” ter sentido

ainda, mesmo que não se lhe acrescente o correspondente complemento: “ser dotado por...” .5

Seja como for, Monod encontra-se diante da antinomia de que “o princípio de objetividade” , ao

qual deve sujeitar-se a ciência (para impedir o subjetivismo animista) deveria mostrar uma

“natureza sem projetos” . Mas a característica mais visível dos fenômenos naturais associados à

“vida” é precisamente a teleonomia, ou finalidade, a fonte desses projetos vivos que são todos os

seres animados. A maneira de sair dessa antinomia, própria do neodarwinismo, consiste em fixar a

atenção em outra qualidade dos seres vivos, que, supostamente, é a “ invariância”, com a que

qualquer um desses seres se reproduz, formando outro ser igual a si mesmo.

Pois bem, se fosse possível mostrar — e aqui vem Darwin em pessoa — que a teleonomia

procede da invariância e não o inverso, ter-se-ia a vantagem de salvar o princípio de objetividade.6

De fato, pelo menos na aparência, a invariância é uma qualidade impessoal, ou seja, não

antropomórfica (como o seria a teleonomia). A reprodução, a grande qualidade vital, produziria

teleonomia somente quando se encontrasse em luta contra a morte, diante das mudanças externas do

ambiente. Em outras palavras: reprodução ameaçada = teleonomia.

Dessa forma, o mínimo de teleonomia — a luta pela vida ou seleção natural — e de teleonomia

quase totalmente extrínseca fica assegurado, segundo Monod. Se isso não é darwinismo puro, é

porque Darwin não conhecia, como Monod, os agentes e o mecanismo da genética, ou seja, do 4 Ibidem. p. 20. 5 Por exemplo: “...algo tirado do puro acaso” (p. 133); “... acaso captado, conservado, reproduzido

pela maquinaria da invariância, e assim convertido em ordem” (p. 110), onde “pela maquinaria da invariância” não é o verdadeiro agente, já que a invariância é o resultado de uma ação cujo sujeito fica ainda escamoteado na expressão.

6 A “seleção natural” pela pressão mortífera do ambiente, dizimando os animais que não possuem o que no começo foi uma anomalia (genética) explicaria assim, aparentemente, sem teleonomia, a “sobrevivência dos mais aptos”, expressão cunhada, parece, por Spencer, mas apropriada por Darwin. Chegar-se-ia, assim, ao que Monod chama “a única (hipótese) aceitável aos olhos da ciência moderna: que a invariância, necessariamente, precede à teleonomia” (op. cit., p. 35).

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elemento responsável da invariância.7 Isso, em sua época, levou-o demasiado próximo de um

lamarckianismo (tão errado como animista).

Mas não estaríamos, aqui, diante de uma hipótese de explicação parecida com aquela que atribui

a origem propriamente dita do mundo ao big bang? Porque, de fato, de onde provém a aparição, no

mundo inanimado, sem teleonomia alguma, dessa “necessidade” que, essencialmente, une o ser

vivo à reprodução? Essa, por mais “ impessoal” e mecânica que pareça, já encerra — e assim Monod

tem de confessá-lo8 — a teleonomia, na qual se baseia toda comunicação por códigos decifrados.

De fato, a genética é um mecanismo de comunicação e toda comunicação supõe um processo de

percepção, transformação desta em código, recepção e decodificação do código pelo receptor e

transformação da mensagem em orientações sobre como dar forma ao novo ser. Assim, dizer que,

atualmente, o mecanismo central da evolução está explicado, porque se sabe a origem da

invariância genética, é não dizer nada... A não ser que seja atribuído ao acaso.

O acaso diz respeito a uma “indeterminação” ou falta de necessidade entre diversos objetos ou

acontecimentos. O “puro acaso” , perfeito, é um conceito limite. O que o homem realmente pode

experimentar é o acaso delimitado pelo jogo das causalidades. Assim, a existência de uma realidade

dependente do acaso torna-se algo empírico, mesmo que seja apenas nessas imitações (sempre

imperfeitas) do “acaso”, que o homem constrói para finalidades diferentes, normalmente mas não

necessariamente, associadas ao jogo. Além do mais, o acaso é uma hipótese cientificamente muito

convincente para explicar certas anomalias, como, por exemplo, na reprodução genética.

No entanto, gostaria de deixar claro — e deixando de lado outras dificuldades que o conceito de

“puro acaso” possa ter — que o que um cientista não deve fazer é disfarçar com o acaso uma mera

ignorância das causas que produzem certos efeitos. Se digo, por exemplo, que é o acaso que faz

com que as coisas caiam em direção ao centro de gravidade, que para nós, na terra, é o centro do

planeta, não estou diante de uma hipótese científica, mas de uma escapatória indigna do mais

obtuso estudante de física.9 No entanto, não é supérfluo prevenir esse falso uso, pretensamente

científico, do conceito de acaso. E isso por uma razão de tipo filosófico que tem bastante relação

com o que estamos examinando aqui, em relação a Monod.

O positivismo quis construir uma ciência sem “ontologia”. Ou, talvez, poder-se-ia dizer, com a

menor dose possível de metafísica. Daí que, queira ou não, goste ou não goste Monod, a influência

determinante da finalidade na esfera biológica faz com que as perguntas sobre o “para que...” se

acumulem numa escalada que ameaça terminar com o perguntar-se que sentido ou finalidade pode

7 Cf. ibidem. 8 Cf. ibidem. p. 136. 9 Gregory Bateson ironiza sobre essas pseudo-explicações, que, na realidade, não explicam coisa

alguma, e coloca como exemplo o que se pretende explicar com o termo “instinto”, comparando-o com a explicação dada pelo candidato a médico de por que o ópio faz dormir, na comédia de Molière Le malade imaginaire (Cf. Bateson, G. Mind and nature. Bantam Books, New York, 1980. p. 95. Existe tradução castelhana dessa obra publicada em Buenos Aires pela Ed. Amorrortu, com o título Espíritu y naturaleza).

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ter o universo inteiro. E daí à pergunta pelo Criador não há mais que um passo... E este é o

paradoxo: a teoria da evolução biológica, nascida como uma hipótese radicalmente oposta à da

criação, transforma-se, agora, em algo perigosamente próximo dela. De fato, aquilo que, no mundo

“ inanimado”, parece estar regido pelo puro acaso, como diz Monod, entra numa “evolução”, onde a

“necessidade” substitui-se ao acaso, colocando diante dos acontecimentos uma flecha indicadora de

uma direção necessária.10

O universo parece, então, aos olhos do cientista, uma mescla desses dois elementos, que também

compõem o título da obra de Monod: O acaso e a necessidade. O acaso tem a enorme vantagem

positivista de não exigir — e mais ainda, a de rejeitar — a pergunta por uma causalidade. O que

surge do acaso não tem outra razão mais suficiente do que o próprio acaso. Daí que, se fosse

possível reduzir ao acaso toda a “necessidade” que cresce com a evolução, esta seria despojada de

seu perigo metafísico. O próprio mundo necessário seria fruto do acaso. E não haveria mais o que

perguntar. Toda a aventura humana não passaria de uma estranha e improbabilíssima mudança de

uma molécula, que começou a se reproduzir e a introduzir a teleonomia e a necessidade de um

mundo, que continua jogando com o acaso às portas da não existência, à qual voltará, mais cedo ou

mais tarde.11 (Assim, o cientista desprende-se do animismo e desperta, depois de um sono milenar,

para um mundo que o guarda, surdo à sua música...)

Mas o leitor vai me permitir resumir e observar novamente o raciocínio de Monod. Ele afirma

algo assim como isto: dada a invariância (não se esqueça de que esta roubou seu primeiro lugar à

teleonomia), que se explica pelo mecanismo conservador da química genética, é preciso explicar

como a invariância varia, pois isso é o que mostra a evolução. É preciso, nas próprias palavras de

Monod, explicar “diferentes tipos de alterações acidentais discretas” .12 Senão, invariância e

evolução seriam termos contraditórios.

Pois bem, eis aqui a explicação:

Dizemos que essas alterações são acidentais, que acontecem ao acaso. E já que constituem a única fonte

possível de modificações do texto genético (invariante por si mesmo), único depositário, por sua vez, das

estruturas hereditárias do organismo, deduz-se, necessariamente, que somente o acaso está na origem de

toda novidade, de toda criação na biosfera.13

10 O que o próprio Monod chama de “ordem”, ou seja, o acaso feito prisioneiro... E, a partir daí,

qualquer forma de falar da origem e da essência dessa “necessidade” terá de ser “animista”. De fato, do ponto de vista da termodinâmica, estamos diante de um fenômeno de crescimento de neguentropia e, por sua vez, todo crescimento de neguentropia (mesmo que seja parcial) deve ser nomeado, fazendo alusão a algo assim como o “demônio de Maxwell” (Cf. J. Monod, op. cit., p. 71, e o título do cap. III: “Os demônios de Maxwell”, p. 55).

11 Assim, “o homem necessita, e muito, despertar de seu sono milenar para descobrir sua solidão total, sua radical marginalidade. Ele sabe agora, como um cigano, que está à margem do universo onde deve viver. Universo surdo à sua música, indiferente às esperanças, aos seus sofrimentos e aos seus crimes” (ibidem, p. 186).

12 Ibidem. p. 125. 13 Ibidem. pp. 125-126; os grifos são do autor.

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A partir daqui, Monod entoa um hino a essa que parece ser a mais originária e compreensiva

hipótese:

O puro acaso, o único acaso, liberdade absoluta mas cega, na própria raiz do prodigioso edifício da

evolução: essa noção central da biologia moderna já não é, atualmente, uma hipótese entre outras

possíveis ou, ao menos, concebíveis. É a única concebível... É também, de todas as ciências, a mais

destrutiva de todo antropocentrismo, a mais inaceitável intuitivamente para os seres intensamente

teleonômicos que somos nós (os homens).

De fato, dessa maneira, “o acidente singular... tirado do reino do puro acaso, entra no da

necessidade, (no das) certezas mais implacáveis” .14

Eis aqui a prova que percebo de minha afirmação anterior? Que um grande cientista pode ser um

mau filósofo amador. Vejamos, então, se não. A invariância, mesmo que despojada de toda

conotação subjetiva — ou, talvez, por causa disso — não é capaz de trazer novidade e,

conseqüentemente, nem orientação evolutiva. No entanto, segundo Monod, a teleonomia não

pareceria necessária. Estaríamos diante da estrutura química de uma molécula viva. Nada mais.

Porém, isso não basta. É preciso explicar a aparição da “novidade”. E, segundo ele, a explicação

estaria num fator diferente da pura invariância: o acaso. O que aconteceu, então? Monod parece não

perceber que o próprio conceito de novidade é o mais teleonômico que se possa pensar.

Talvez um exemplo possa ajudar. Para fabricá-lo, inspiro-me numa expressão de outro biólogo,

que — pura coincidência? — recebeu, no mesmo dia e no mesmo campo, o prêmio Nobel: François

Jacob. Ele afirma que, na evolução, a natureza atua como um “bricoleur” .15 Esse conceito, muito

importante, não tem tradução exata. Talvez a mais aproximada seria a formada pelas duas palavras

“ inventor artesanal” . Com isso se quer expressar que — diferentemente do inventor científico, que,

dominado pelo término, prevê cada um de seus passos como uma investigação planificada — o

inventor artesanal é alguém que reúne materiais heteróclitos, que não se sabe que relação e uso

podem ter, e que um dia, iluminado por uma intuição, toma um mecanismo daqui, uma peça dali,

outra tirada daquela outra máquina, e com isso “arma” um objeto novo dotado de inesperadas

performances...

Pois bem, inspirado nisso, o exemplo que me ocorre (em relação com a “novidade”) é o da

invenção da roda. Para simplificar, supondo que esse invento tenha sido feito por apenas um

“bricoleur” , o processo pode ter sido o seguinte. Entre mil experiências causais (apresentadas por

um fluxo de acontecimentos aparentemente deixados ao acaso), um dia nosso inventor percebe que

as superfícies convexas, apoiadas contra um solo mais ou menos horizontal, movem-se com mais

facilidade. Para ser mais exatos, balançam-se com menos esforço. Essa experiência fica armazenada

e talvez seja utilizada para a fabricação de certos objetos. Pode passar muito tempo e, entre mil

14 Ibidem. p. 133. 15 Cf., por exemplo,F. Jacob, “Evolution and tinkering”, na obra (de vários autores) Biological

foundations and human nature. A palavra inglesa tinkering é a que, precisamente, traduz o substantivo francês bricolage.

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experiências, aparecerá que os objetos têm forma mais ou menos esférica, não apenas balançam,

mas avançam no espaço, uma e outra vez, com uma facili dade inusitada. Ou seja, “ rodam”. Muito

tempo depois, e por causa de algum caso fortuito, nosso inventor experimentará que isso não se

deve à sua forma esférica, mas que se conserva quando se usa apenas uma “ faixa” do que seria uma

esfera. Esta possui a mesma facilidade para deslocar-se. Por outro lado, talvez descubra logo que a

translação de um objeto pesado, sobre uma esfera ou uma “ fatia” de esfera (colocada e mantida

verticalmente) fica mais fácil também. Com a condição, no entanto, de que não se avance muito,

pois o que ajuda ao movimento do objeto pesado que carrega sobre si vai ficando para trás em

relação a ele...

Mas, continuemos supondo. É muito possível que, durante um longo período de tempo, em que

foi percebendo e notando os fenômenos acima descritos, simultaneamente, faça outra série diferente

de experiências sobre como fazer os objetos girarem. Para abreviar, terá assim descoberto que as

coisas giram mais facilmente e durante mais tempo quando estão apoiadas sobre um ponto, ou

atravessadas por um orifício, situado de tal maneira que o peso seja mais ou menos igual de ambos

os lados. E, de repente, intuitivamente, o inventor relacionará ambas as experiências heterogênicas.

Pensará em duas fatias de esfera com um orifício no “centro” e unidas por um pau que atravessa

ambos os orifícios (e sem estar fixo neles). E eis aí a roda descoberta!

Casualidade? Sorte? Até certo ponto, sim. Mas essa “novidade”, esse “novo” objeto descoberto

depende de certas condições do conhecimento, que talvez o leitor não tenha percebido. Por

exemplo, todos sabemos que chamamos de verdadeiro acaso ao fato de sempre tornar a jogar com o

mesmo número de possibil idades. Se há, por exemplo, um jogo de sorte com cem bolinhas, para

continuar sendo jogo de sorte, depois de cada saída de uma bolinha, é necessário levar de volta a

bolinha para junto das outras. Caso contrário, o acaso se iria terminando e, com ele, essa

possibil idade de novidade, que, como bem diz Monod, o puro acaso oferece.

Mas que acontece em nosso exemplo? Há um seletor de dados, que impede certos dados de

voltar a misturar-se ao acaso. A mente (seja um computador, seja um cérebro humano) tirou um

dado do acaso e tem-no “presente” . Capturou-o. Se esse dado voltasse aos caos inicial e o inventor

o esquecesse, depois de experimentado (como faz com grande parte do resto), jamais existiria o

“ invento” . Isto é, a novidade. Em outras palavras, “o puro acaso” (mesmo que seja relativo, como

diz Monod,16 referindo-se ao encontro “casual” de duas ou mais causalidades, por exemplo, a

gravidade e outros fatores que colocam a telha num equilíbrio inestável, e os motivos que me levam

a transitar por esse lugar, no momento em que o equilíbrio se rompe e a telha cai, não cria nenhuma

novidade). Ou, ainda, tudo o que produz é “novidade” que desaparece depois que acontece.

Somente é novidade no caso de ser capturada, quando deixa de ser acaso, porque algo que não é o

acaso tira-o do meramente fortuito e une-o a outros elementos para atuar como uma “causa” atual

ou potencial. Mas, a respeito do acaso, a “novidade” revela-se, então, como antropocêntrica.

16 Op. cit., p. 127.

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Terrivelmente antropocêntrica. O fato de que, hoje, esse número tenha saído numa roleta situada a

cem metros de minha casa não é “novidade” . Ou teria de chamar de novidade a cada um dos

números que saíram. Sim, chamo de novidade a algo cuja influência existe e permanece. E se tivera

que devolver ao acaso tudo o que ele entrega, mesmo se um dia ele pudesse dar-me uma rosa já

feita, que não tivesse eu “descoberto” uma roda; nem assim, ela seria uma novidade. Seria um

acontecimento fortuito a mais, que desapareceria exatamente como apareceu. Uma vez mais, o

“puro acaso” , o “apenas acaso” não é fonte de novidade alguma. Somente pode produzir uma

novidade se é utilizado por uma máquina ou mente humana. Se a natureza “bricola” , é preciso pagar

por isso, com pura lógica.

Por não pagar esse preço, com sua falta de lógica, Monod pode, com toda (aparente)

tranqüil idade, apresentar a teleonomia da evolução.

A invariância do “plano” químico fundamental da célula, evidentemente, só se pode explicar pela

extrema coerência do sistema teleonômico, que, na evolução, jogou, ao mesmo tempo, com o papel de

guia e de freio, e não reteve, nem ampliou, nem integrou (como verdadeiras novidades) mais do que uma

ínfima fração das probabilidades que, em números astronômicos, lhe oferecia a roleta da natureza.17

E pode fazê-lo, porque acreditou mostrar que todo esse aparente edifício teleonômico está

baseado no puro acaso e que desaparecerá com ele. O que nos parecia, em nossa mania

teleonômica, cheio de estranhas promessas, na realidade não era mais. “Nosso número saiu do jogo

de Montecarlo. Que há de estranho em que... sintamos a raridade de nossa condição?” .18 Com o

acaso no começo,

é muito necessário que o homem desperte de seu sono milenar para descobrir sua solidão total, sua

condição radical de forasteiro. Ele sabe agora, como um cigano, que está à margem do universo onde

deve viver. Universo surdo à sua música, indiferente às suas esperanças, aos seus sofrimentos e aos seus

crimes.19

Assim, o pecado lógico de uma contradição — a de supor uma necessidade surgindo do puro

acaso — paga o preço de uma negativa voluntária. Teme-se o encontro com Deus, ao dobrar

qualquer esquina, quando se admite uma teleonomia global para o universo. Nisso, talvez, os

cristãos que acreditam ter provas físicas da existência de um Deus pessoal (provas de um valor

semelhante às que a ciência obtém para apoiar algumas de suas hipóteses) têm não pequena culpa.

Aqui não se pretende tal coisa. Crer num Deus pessoal, que deixa no universo os rastros de seus

valores, é uma aposta. Aposta tal como a que, acima da lógica, chama a outra aposta contrária —

que estejamos diante de um universo surdo às nossas esperanças, sofrimentos e crimes — a

“desesperação” de um agnosticismo elevado a dogma.

17 Ibidem. pp. 136-137. 18 Ibidem. p. 160. 19 Ibidem. p. 186.

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O que pretendemos, de fato, e poderá ser visto nos capítulos seguintes, é que, ao admitir como

nossa aposta esse Deus, não podemos deixar de lado, hoje, não, certamente, as falsas conclusões de

uma pretensa ciência — o cientificismo -, mas as orientações e categorias que a mesma ciência,

quando é consciente de seus limites, assinala a nosso pensamento. Atualmente, por exemplo,

sabemos que, se Deus criou um mundo como o nosso, tanto o acaso como certas “mensagens”

básicas de todos os seres vivos — e mesmo dos inertes — têm de passar ao pensamento teológico.

Hoje, já não se pode mais fazer teologia com o que um pensador tão grande como Tomás de Aquino

sabia do universo criado, ou com a simples e grandiosa mitologia do javista.

A teologia e o pensamento científico de hoje

Penso que, hoje, na Igreja católica, nenhum teólogo se negaria — mesmo que tenha sido difícil, e

recente, chegar a esse consenso — a assinar a última frase do parágrafo anterior. Casos como o de

Galileu — talvez menos clamorosos, mas muito mais abundantes do que se pensa — mostraram

como a teologia saiu enriquecida e mais amadurecida daqueles que, num passado, foram tidos como

conflitos (insolúveis) com as descobertas científicas e com as grandes hipóteses delas surgidas.

No entanto, não negar o princípio não quer dizer que se tenham aproveitado os conflitos

passados com a ciência, ou os avanços dessa última para repensar e aprofundar o dogma cristão. No

momento em que escrevo isto, as mudanças (mesmo tendo sido “boas” ) nos dogmas sustentados,

invariavelmente, durante séculos (por falta das categorias de pensamentos correspondentes)

ameaçariam, parece, se não a ortodoxia, pelo menos uma unidade ou uniformidade na fé que,

segundo as tendências atuais, a Igreja deveria possuir para defender-se de tendências centrífugas ou

ataques externos. Assim, pois, as modificações sugeridas pelos teólogos, geralmente, não são bem-

vindas.

Neste item, talvez seja suficiente um exemplo. Tanto mais quanto está ligado, como se pode ver,

ao exemplo apresentado no item anterior, a propósito de uma (má) filosofia da ciência.

A exegese católica sabe que a doutrina agostiniana sobre o pecado original assimilado com o

pecado de Adão não pode, a rigor, basear-se na narração bíblica de Gênesis. Quando muito — coisa

discutível —, poderia basear-se em Paulo, que considera Adão como o “ inaugurador” de um pecado

que — Paulo não diz como — passa dele a todos os homens. Quanto à narrativa do pecado de Adão

no Gênesis, como todos sabem, é atribuída ao cronista real chamado javista. Pois bem, por razões

impostas ou por própria vocação, esse autor caracteriza-se por prestar uma destacada atenção às

narrativas chamadas “etiológicas”, ou seja, àquelas que versam sobre a origem de estruturas sociais,

lugares ou costumes em destaque, etc., existentes na época em que escreve.

A narração do pecado de Adão é também etiológica. Cabe, então, perguntar-se sobre o que é isso

cuja origem se narra aí. Um primeiro indício nos é dado pela continuidade entre a criação do

universo, a estadia fugaz do homem no Jardim do Éden, e as características da terra, na qual

“aterriza” — vale a redundância — quando é expulso do jardim. Um segundo indício é o louvor que

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a obra criadora de cada dia arranca, por assim dizer, do criador e que culmina ao fim do sexto dia:

“ [...] Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom” (Gn 1,31). É verdade que a primeira

narrativa da criação, em sete dias, pertence ao sacerdotal, que escreve em meados do século VI a.C.,

longe cinco séculos do javista. Mas, o compilador, seja quem tenha sido, não pôde passar por alto a

bondade do que saiu das mãos, ou melhor, da Palavra de Deus, e colocou, assim, bem próximas a

narração da origem de um universo “muito bom” e a descrição de uma terra desequil ibrada e

rebelde.

Em todo caso, para voltar ao javista, a bondade do criado aparece também, dessa vez de maneira

crescente, em sua narração. Ela é muito mais antropocêntrica, e a bondade da criação parece estar,

aí, sempre ligada ao bem-estar do homem. Assim, ele é colocado, desde o começo, num “ jardim”

com “ toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer” (Gn 2,9). E quando Yahweh

percebe que algo não está bem, nesse quadro idílico — a solidão do homem -, dedica-se a buscar

uma “ajuda adequada” para ele, criando a mulher, pela qual o homem deixará tudo para formar uma

unidade total com ela. E este é, poderíamos dizer, o terceiro indício. Ou mais do que um indício:

sinal eloqüente da origem que se procura encontrar ou esclarecer. De fato, em seguida a essa

descrição, vem a apresentação da serpente e de seu plano, cuja execução ocupa o terceiro capítulo.

Ao final dele, o quadro que a vida humana nos oferece é completamente diferente; é mais,

absolutamente oposto à prévia descrição da obra criadora: o homem será devolvido ao pó da terra

do qual foi formado (Deus retira-lhe, assim, seu espírito vital); o solo da terra será maldito,

produzirá espinhos e abrolhos; o homem deverá tirar dele o seu sustento, com fadiga e suor; a

mulher será dominada pelo homem; o parto de seus filhos se fará com dor; e, finalmente, a relação

entre o homem e a mulher estará sujeita a uma vergonha que a tornará difícil.

Se, pois, esta é uma narração etiológica, sua intenção não pode ser mais clara

(independentemente de sua polivalência simbólica):20 que pode ter acontecido entre uma criação

que, procedente de Deus, somente podia ser boa, e muito boa, e, por outro lado, a terra e a

existência nela, que o homem conhece como inevitável e penosa? Não existe, no javismo, um deus

do mal. Assim, ao não mediar essa narração, teríamos de concluir que Deus não criou bem, ou não

com boas intenções, as coisas do universo que estão relacionadas ao homem.

A narrativa do pecado de Adão no javista não explica, pois, por que cada homem seria pecador

por nascimento, por que não poderia ir ao céu sem antes levantar a hipoteca do pecado que teria

contraído em Adão, por que estaria de inimizade com Deus e necessitado de redenção; nem, muito

menos ainda, por que estaria inclinado ao mal, a partir de seu nascimento. Explica, sim, por que

uma criação, que o homem recebe das mãos de Deus, sem que haja intervenção de ninguém mais do

que ele e o próprio homem que a recebe, contenha tantas imperfeições e dor.

20 Por exemplo, a relação com o culto à serpente e a promessa de “saber (fazer) o bem e o mal”

sugerem que esse pecado — tentativa simiesca de igualar-se a Deus — era o pecado sincretista de exercer a mágica própria das religiões cananéias dos arredores.

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Se Paulo — assim como Agostinho, a Reforma e a Contra-Reforma — tivesse tido, em sua

época, os instrumentos exegéticos que o cristão, intérprete da Bíblia, deve empregar hoje, segundo a

Divino afflante Spiritu (de Pio XII), não poderia ter escrito, como o fez, o capítulo quinto de

Romanos, onde atribui a Adão uma certa causalidade (mais do que exemplar) no fato de que o

pecado afete, de um modo decisivo, a relação de todos os homens com Deus, desde o princípio até o

fim da humanidade. Não significa que este último não seja verdade, mas apenas que não é, em boa

exegese, algo presente na narrativa do javista.

Reduzida à sua própria intenção, essa narração trata de solucionar apenas um problema: como

surgem, na existência do homem recém-criado, tantas coisas imperfeitas e dolorosas. O causador

delas é Deus, ou é o homem. Não pode ser Deus. Logo...

Se não tivéssemos outros dados além da mencionada narração do pecado adâmico, poderíamos

dizer que estamos, aí, diante de um conteúdo teológico fundamental: as imperfeições e sofrimentos

que a condição humana leva consigo não procedem de que Deus os tenha infligido ao homem,

desde o primeiro — Adão — até o último. Por outro lado, a imagem literária e o nível de

conhecimentos da época, que envolvem essa certeza central, manifestam-se na narrativa de um

pecado humano que teria sido transmitido a toda a raça dos homens.

Paulo, na Carta aos Romanos, teria acrescentado a isso que não somente imperfeições e

sofrimentos se aderiam à condição humana, mas também uma relação inextrincável com o pecado.

Que Adão seja aquele que, dessa maneira, nos constitui a todos “pecadores” seria uma afirmação

teológica própria dele (autor inspirado) e que, na busca de uma base bíblica, apóia-se, mesmo não

tendo o rigor da exegese atual, na narração do Gênesis. Vale, digamos, a fortiori, mesmo que não se

possa atribuir tal conseqüência à própria narrativa do javista.

No entanto, a adição que Paulo teria feito não está isenta de graves dificuldades. O pecado é um

ato humano e não pode transmitir-se como se contrai uma doença. Ninguém pode pecar pelo outro.

Nem constituir pecador a outro, com os atos que faz. É verdade que Paulo diz que “todos pecaram”,

mas a força de seu argumento está em que ninguém pode escapar dessa afirmação, porque todos

descendem do mesmo pai pecador: Adão. Daí que a teologia se viu obrigada a fazer uma distinção

quimérica: o pecado adâmico em nós não seria um pecado pessoal. Não obstante, como, para entrar

no céu, se exige que esse pecado seja perdoado, é necessário dizer que se trata de um pecado real.

Mas como pode um pecado que não é pessoalmente meu tornar-se um pecado realmente meu, a

ponto de impedir-me a união com Deus? A distinção apenas consegue ocultar pela metade a

contradição.

Por outro lado, não é possível negar que tanto a afirmação do javista como a de Paulo encontram

um eco em nossa experiência. Primeiramente, a título de problemas reais, dos quais não é possível

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fugir. E depois, a título de elementos antropológicos, com os quais é preciso contar, numa análise

plausível do que é a existência humana.21

O que eu pretendo aqui, sem ter o tempo, nem os elementos para desenvolvê-lo, é que as

categorias de explicações, que procedem da filosofia da ciência e, especialmente, das que se

propõem a explicar a evolução biológica, podem servir, ao mesmo tempo, para explicar melhor —

sem contradições — e para tirar conclusões mais valiosas dessas afirmações do javista e de Paulo.

Conservando o que poderíamos chamar de idéia fundamental, podem, como a própria Igreja pede,

prescindir de tipos de pensamento fixistas, que foram superados e que não permitem perceber toda a

plausibilidade do que os autores inspirados, na realidade, quiseram consignar por escrito (mesmo

que lhes faltasse o instrumento intelectual adequado na cultura que conheciam).22

Apenas para que o leitor compreenda a que me refiro com esse exemplo, tentarei resumir,

brevemente, o que um pensamento surgido dessa extensão filosófica das experiências científicas —

a teoria da evolução — pode explicar melhor no caso do javista e de Paulo. Em primeiro lugar,

explicará melhor como uma criação recém-saída das mãos de Deus, fresca e intacta, encaminhada

para ser material da criação humana, começa com o desencadeamento de forças primitivas da vida,

que, olhadas a partir do hoje humano, pareceriam imperfeições e sofrimentos, que deveriam ser

castigo de algo ou, então, resultado de uma maldade incompreensível do próprio Deus, que teria

podido evitá-las (não esqueçamos que o homem de hoje, mesmo ciente dos argumentos da teoria

evolutiva, mantém um pensamento fixista para seu uso diário...). A criação, em sua viagem até o

homem, não para pisá-lo, mas para ir tornando cada vez mais importantes, decisivos e propriamente

criativos, a liberdade e os projetos de amor dos homens, ao fazê-los cada vez mais interdependentes,

de alguma maneira aumenta a dose de dor com a qual os homens devem defrontar-se no mundo

criado. Forçosamente. Por acaso, amar não é tornar-se dependente de uma pessoa que, quanto mais

amada, mais pode causarnos uma dor maior? Se não existisse a dor, e se cada um de nós não a

pudéssemos evitar aos demais, por meio de projetos de injustiça, solidariedade e amor, cada um de

21 Não se trata de uma casualidade o fato de que um homem tão afastado do pensamento cristão,

como S. Freud, fale das origens infantis do desejo em termos de “pecado” ou, se se prefere, de “imoralidade”: o “perverso polimorfo”. É verdade que seu interesse vai sublinhar mais o adjetivo do que o substantivo (adjetivado), uma vez que lhe interessa mostrar as diferentes e disfarçadas formas que toma a libido na primeira etapa da infância. Mas, mesmo assim, o qualitativo de “perverso” faz alusão a que essa criança, considerada “inocente” (pelo sentido comum, não pela teologia), conhece apenas os limites impostos desde fora para seus desejos. É ainda um gesto egoísta total. Somente mais tarde a “realidade” ensina-lhe a fazer rodeios cada vez maiores em busca de satisfações mais seguras, e é nesses rodeios onde encontra e começa a respeitar e depois a amar de verdade outras pessoas, solidarizando-se com elas.

22 Indico ao leitor, curioso de saber como e quando é válida e mesmo necessária a reformulação e reforma das fórmulas dogmáticas, a instrução Mysterium Ecclesiae, da Congregação (Romana) para a Doutrina da Fé, onde se lê (entre outros motivos para essas necessárias reformulações): “Acontece... não poucas vezes, que uma verdade dogmática expressa-se primeiramente de modo incompleto, mas não falso; e, mais tarde, vista num contexto mais amplo da fé e dos acontecimentos humanos, expressa-se mais perfeita e plenamente”. A instrução, escrita sob o pontificado de Paulo VI, traz a assinatura do cardeal prefeito F. Seper. O grifo é meu, pois de todas as razões dadas ali, esta é a que leva em conta, positivamente, a contribuição do progresso científico ao “aperfeiçoamento” da verdade dogmática.

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nós caminharia independente e indiferente a todos os demais... Então, não é preciso imaginar um

desvio do plano divino em cada dor que a natureza nos inflige, nem dirigir perguntas angustiantes a

um mundo cruel.

Por outro lado, o que Paulo diz viria a resumir-se nisto: o homem, filho de Deus, herdeiro do

mundo, é um criador que deve criar, num mundo já feito. Não tem, como Deus, a capacidade de

criar instrumentos conforme a medida de seus projetos; de usar — não de criar — “a lei” que a

Palavra de Deus colocou nos meios que lhe proporcionaram o seu próprio ser, sua mente, sua

linguagem, sua genética e sua constituição biológica, a sociedade em que vive, a classe, a nação e

até a Igreja à qual pertence. Cada um desses supostos “ instrumentos” do homem têm, na realidade,

seu mecanismo e suas leis próprias e sempre é mais fácil submeter a liberdade a essas leis e

mecanismos do que impor nossas decisões sobre instrumentos tão poderosos e que parecem ignorar

nossa liberdade.23

Somente uma vigilância crítica constante sobre nossa tendência a renunciar, diante do esforço

que significa a criação, e a deixar-nos levar por qualquer dessas leis instrumentais, unida a um

entusiasmo, levado até à doação da vida pelos projetos de justiça, amor e solidariedade que

planejamos, podem ajudar-nos a criar amor sobre nossos pecados. De fato, na medida em que

olhamos para trás em nossas vidas, vemos a escravidão como mais “original” do que os nossos

projetos de amor (cf. Rm 5,6-9). Exatamente como, na evolução, o infra-humano ou o inumano

precedem cada conquista dessa lei que a atravessa por inteiro, segundo Teilhard: a lei do amor. O

Éden não é nossa pré-história; é a nossa meta-história. Não nos diz adeus a partir do passado, mas

nos chama “ansiosamente” a partir de um futuro último de nossa história (cf. Rm 8,19-22).

Não sei se este resumo condensado de um ponto dogmático, tocado pela vara mágica de um

pensamento que não podia existir no tempo do javista, nem no de Paulo, poderá dar ao leitor,

mesmo que não compreenda todo o processo de pensamento que leva até à hipótese proposta, uma

idéia de como uma melhor categoria de pensamento ajuda a compreensão de um dogma que, de

outro modo, se torna difícil em sua expressão e entendimento.

O que creio que já deve ficar, a priori, claro é que não é forçar um pensamento velho do dois ou

três mil anos ou aplicar-lhe novas e melhores categorias, tiradas — por exemplo — da filosofia da

ciência.24

23 Cf., a esse respeito, minha exegese da segunda parte do capítulo VII de Romanos sobre o

pecado na antropologia paulina, em El hombre de hoy ante Jesús de Nazaret, Ed. Cristiandad, Madri, 1982, t. II/1, pp. 475ss.

24 Digo “filosofia da ciência” com o conhecimento de que a evolução, atualmente, é mais do que uma hipótese. Os dados proporcionais por muitas ciências não deixam lugar a dúvidas acerca de quais espécies de animais foram evoluindo, desde a vida unicelular mais primitiva e simples. Sobre isso não há dúvidas. O que ainda não está, ao que parece, suficientemente esclarecido (apesar do otimismo assinalado por Monod na obra já citada) são os mecanismos que, irreversivelmente, levam a natureza a uma especialização crescente das espécies e a conjuntos orgânicos e ecológicos que, em interdependência, combinam elementos cada vez mais complexos e ricos. Assim, hipóteses “metafóricas”, tais como a de uma natureza

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Revelação de Deus e desenvolvimento do ho mem

Neste ponto, há algo que constitui um paradoxo, ao qual chegamos no item anterior. Pareceria

que a teologia católica, pelo menos aquela que admitiu as recentes orientações da exegese bíblica,

estivesse disposta a incorporar à teologia pensamentos que, para comodidade do leitor, poderiam

colocar-se na categoria da “ filosofia da ciência” , mais do que categorias filosóficas propriamente

ditas. Certamente, no passado não foi assim e assim o prova o caso de Galileu e, o mais recente, da

relutância em admitir uma criação de Deus em termos evolutivos, compreendendo também o

homem.

Não obstante, penso que é fácil explicar esse paradoxo, ao qual me referia e é inegável,

atualmente. Creio ser fácil explicá-lo, pelo menos em seus aspectos mais superficiais e óbvios. As

incursões feitas pelos cientistas no plano da filosofia, a propósito da ciência que praticam,

comumente, não ultrapassam um plano que a teologia julga relativamente “exterior” a seus

interesses e perigos. Desde que, já de entrada, se concorde no princípio da diferença de gêneros

literários na Bíblia, hoje não se teme, como outrora, que um dado procedente da ciência se choque

frontalmente com a revelação. Já foram superadas as barreiras entre ciência e fé que por longo

tempo estiveram na moda.

Por outro lado, ainda é muito freqüente que a atenção dada à evolução e a seus mecanismos não

seja traduzida numa antropologia diferente, em âmbito do homem cotidiano. Qualquer um pode

fazer uma piada a respeito de que o homem descende do macaco; mas o sentido comum (ou a sua

falta) continua dominado, na maneira fixista com que se fala do homem e se manipula sua história.

Não existe, por exemplo, uma preocupação determinante pela “ecologia da mente” , como começa a

abrir caminho a preocupação pela ecologia do universo químico-biológico, constantemente violada

por essa doença (fixista) do homem moderno: sua “propositivitis” .

Uma semelhante exterioridade (real ou pressuposta) permite que se usem, “até os umbrais da

teologia” ,25 as ciências que diretamente dizem respeito ao humano, como são as que versam sobre a

linguagem e as estruturas da narração ou do discurso.

Pois bem, o que acabo de dizer sobre a filosofia da ciência e seu possível impacto no plano

teológico não pode valer da mesma forma que a filosofia tout court. De fato, esta versa, pelo menos

“bricoleuse”, ou uma “mente” universal, lutam, sem estarem muito de acordo, com hipóteses contrárias — como aquela de Monod — de um mundo surdo às esperanças ou aos sofrimentos humanos. Há autores que parecem combinar (de forma não demasiado lógica) esses dois tipos de hipóteses (cf. G. Bateson, Mind..., cit., p. 47 e nota, por um lado; e pp. 163ss., por outro). Em outras palavras, no tocante a essas hipóteses subordinadas para explicar a evolução, parece que ainda estamos no plano da filosofia da ciência e não no da “mera” ciência, no sentido ordinário da palavra.

25 A expressão é usada por G. Gutiérrez para indicar como a teologia da libertação usa métodos das ciências sociais, mas apenas para preparar melhor o “material” — podemos dizê-lo assim, com uma velha terminologia escolástica — sobre o qual se fará teologia.

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no princípio, sobre o mesmo objeto (metafísico) que a teologia. E assim como pode ser sua

“ancilla” (= escrava), também pode ser sua rival.

Certamente, é verdade que seria provavelmente bastante difícil assistir, nos dias de hoje —

refiro-me ao mundo católico —, a uma polêmica tão forte e, muitas vezes, tão amarga, como a que,

no princípio do século, dividiu Barth e Bultmann no campo protestante. E, precisamente, o seu

conteúdo foi a licitude do uso, pela teologia, da categoria de “autenticidade”, tirada (bem ou mal) da

fenomenologia de Heidegger e aplicada à interpretação teológica da Bíblia. Ou de formulações

dogmáticas, de uma ou outra maneira, dela derivadas.

Perguntará o leitor por que sustento que uma tal polêmica seria, hoje, difícil, no campo católico.

Não pretendo que se tenha resolvido, de maneira mais convincente, o problema de então. Mas, sim,

que existem duas poderosas razões para que não seja questionado, em princípio, como decisivo.

A primeira é que a teologia católica esteve acostumada, durante muitos séculos, a usar a filosofia

como serva: ancilla theologiae. Primeiro, os Padres da Igreja utili zaram o platonismo ou o

neoplatonismo de sua época. Depois, a partir da Idade Média, as grandes sínteses teológicas,

especialmente sob a influência de santo Tomás, incorporaram, com maior ou menor riqueza, a

filosofia de Aristóteles à explicação do dogma cristão. E essa incorporação esteve depois, durante

séculos, firmada na certeza de que a filosofia que assim servia de escrava à teologia era,

precisamente, uma filosofia “perene”. É claro que esse costume de usar a filosofia como “serva” em

teologia não significa estar preparado para aceitar que qualquer filosofia, prudentemente expurgada

de erros, possa oferecer semelhante serviço. Quem lê, sem piscar, como santo Tomás usa

Aristóteles, se escandalizará de que Maréchal use Kant, ou de que a teologia da libertação use Marx

(um homem muito mais próximo do cristianismo do que Aristóteles).

A segunda e principal razão para que não se aceite a radical rejeição de Barth, dirigida ao uso de

uma categoria heideggeriana de pensamento, vai mais ao fundo da questão. Barth pretendia que

quem faz passar a compreensão da escritura pelo crivo de uma determinada categoria filosófica se

faz surdo à Palavra de Deus e escuta somente o que essa categoria humana deixa passar. Essa

negativa de Barth foi comumente rejeitada por razões epistemológicas. A primeira, de caráter

negativo, é que é ilusório pretender que se possa ir escutar a Palavra de Deus sem limitações

humanas. Por acaso, alguém, que conhece as sutilezas da sintaxe de um idioma, estaria, assim,

opondo uma limitação humana à palavra divina? E aproximando-nos um pouco mais do cerne da

questão: por acaso, quem tem uma linha de conduta — com as experiências determinadas que elas

lhe oferecem — estaria, com isso, reduzindo a Palavra de Deus aos limites desse determinado

caminho empírico? Numa palavra: seria melhor ir escutar essa Palavra sem aplicar-lhe

conhecimento humano algum, seja a gramática, ou os gêneros literários, ou experiências vitais de

valores e crises? Pelo contrário, não será melhor aprofundar e enriquecer a problemática que

levamos à audição da Palavra divina?

Page 19: Porque teologia e filosofia

Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 19

Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture

A epistemologia e a sociologia do conhecimento nos deram provas fidedignas de que não existe

uma escuta total, pura, neutra. Todo conhecer começa com um mundo de valores e experiências de

sentido determinados. Toda interpretação é circular (ou espiral). Não se trata de que não tenha força

alguma aquilo que nos é dito e que sempre estejamos ouvindo tudo e só aquilo que queremos ouvir.

Mas, sim, é certo: há más interpretações, porque nossa preparação para ouvir ainda não chegou, por

exemplo, ao nível problemático da resposta que se veicula na palavra de nosso interlocutor.

Finalmente, sobretudo depois do Vaticano II , a teologia da revelação tem insistido em que a

“ revelação” de Deus é um ato no qual, de maneira especial, atuam em comum tanto Deus como o

homem. A concepção de uma revelação que passaria como a luz através do cristal não honra a

Deus, nem respeita o homem.26 Isso não quer dizer que o “ revelado” esteja desarmado diante de

qualquer aproximação interpretativa. Não o está e a prova, a triste prova, permanece diante de

nossos olhos. O evangelho do Reino de Deus foi l ido, durante cinco séculos, diante da miséria e

opressão da maioria dos habitantes da América Latina, sem ter suscitado o compromisso cristão de

mudar essa situação injusta e inumana. Mas bastou que houvesse uma conversão na atitude de

leitura — a opção pelos pobres — para que o texto mostrasse como já não era mais possível uma

leitura, deixando de lado as passagens mais claras, significativas e profundas dessa mesma

revelação evangélica.

Nada pode, então, poupar-nos de passar por uma prévia opção hermenêutica diante da Palavra de

Deus. Mas, uma vez que ela esteja feita, já não será este ou aquele sistema filosófico que vai guiar

nossa compreensão, mas será a própria revelação que terá de julgar quais as categorias de

pensamento e de linguagem podem expressar melhor aquilo que pode surgir dessa colaboração

Deus-homem num processo de revelação. É esse dia de hoje que nos constitui, como dizia Rahner,

irrepetíveis e únicos diante de Deus: estar diante de problemas que somente nós poderemos

enfrentar e resolver.

Por isso mesmo as categorias de pensamento que vou propor para a teologia, nos capítulos

seguintes, não procederão da ingênua crença de que tais filosofias durarão mais do que outras ou

serão “perenes”, mas da experiência de que são capazes, hoje, de dar mais força, raízes e riqueza à

mensagem que Deus quis comunicar a nossas existências.

26 Cf. G. Moran, Theology of revelation; A. Torres Queiruga, La revelación de Dios en la realización

del hombre; ou a minha, O dogma que liberta.