porque comer é central

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6 A nalisar a população de uma cidade, de um país ao longo do tempo, é uma perspecti- va promissora para identificar como são saciadas as necessidades alimentares em diferentes locais e épocas. Mais do que o paladar, fo- ram a geografia, a economia e a religião a nos compe- lir dietas, induzir à formulação de receitas e a deter- minar as culturas e animais a serem domesticados. Durante a maior parte da história, esses e outros fa- tores fizeram a moldagem constante das preferências ao meio, não o contrário. Está à mesa boa parte do registro do passado. Em nossa vida nutricional alguns aspectos foram de tal sorte determinantes que, ao constatá-los, revisitamos milhares de anos. A conservação dos alimentos tem início no uso do fogo, e a vanguarda na liofilização. Passa pelo uso das especiarias e pela pasteurização. Do homem das cavernas ao astronauta, da Pré-Histó- ria à Modernidade. E se a mesa diz tanto sobre as contingências e pos- sibilidades do passado, o que dirá sobre o Brasil con- temporâneo? Ou mantida a ordem proposta anterior- mente: o que diz a respeito da mesa o sétimo Produto Interno Bruto do mundo, dono de uma moeda forte, Porque comer é central Economia saudável altera cardápio do brasileiro NEGÓCIO por Fábio Caldeira Ferraz

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Artigo econômico sobre o mercado brasileiro de alimentação fora do lar, produzido para a PLUG Editora, e publicado, em 2011, no anuário Gourmet Internacional.

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Page 1: Porque comer é central

6

Analisar a população de uma cidade, de um

país ao longo do tempo, é uma perspecti-

va promissora para identificar como são

saciadas as necessidades alimentares em

diferentes locais e épocas. Mais do que o paladar, fo-

ram a geografia, a economia e a religião a nos compe-

lir dietas, induzir à formulação de receitas e a deter-

minar as culturas e animais a serem domesticados.

Durante a maior parte da história, esses e outros fa-

tores fizeram a moldagem constante das preferências

ao meio, não o contrário.

Está à mesa boa parte do registro do passado. Em

nossa vida nutricional alguns aspectos foram de tal

sorte determinantes que, ao constatá-los, revisitamos

milhares de anos. A conservação dos alimentos tem

início no uso do fogo, e a vanguarda na liofilização.

Passa pelo uso das especiarias e pela pasteurização.

Do homem das cavernas ao astronauta, da Pré-Histó-

ria à Modernidade.

E se a mesa diz tanto sobre as contingências e pos-

sibilidades do passado, o que dirá sobre o Brasil con-

temporâneo? Ou mantida a ordem proposta anterior-

mente: o que diz a respeito da mesa o sétimo Produto

Interno Bruto do mundo, dono de uma moeda forte,

Porque comer é centralEconomia saudável altera cardápio do brasileiro

negócio

por Fábio Caldeira Ferraz

Page 2: Porque comer é central

7GOURMET

ABRIGADOS EM UM BAR DE UMA CIDADE TOMADA PELO

SILÊNCIO E PELO SONO, OS NOTÍVAGOS DE NIGHTHAWKS TÊM

NA BEBIDA DAS XÍCARAS NADA MAIS DO QUE O PRETEXTO

PARA UMA INTERAÇÃO DISTANTE. JÁ, AO LADO, EM AUTOMAT

É A XÍCARA QUEM FAZ AS VEZES DE ACOMPANHANTE EM UM

BAR VAZIO. NOVAMENTE, O CONSUMO DO ALIMENTO PARECE

EXISTIR ALI PARA ATENDER A OUTRA FINALIDADE, EM NADA

LIGADA À REFRESCÂNCIA PROPORCIONADA POR UM CHÁ FRIO

OU CONFORTO DE UMA XÍCARA DE CAFÉ QUENTE. AMBOS

OS QUADROS, O PRIMEIRO FEITO EM 1942 E O SEGUNDO EM

1927, SÃO DE AUTORIA DO PINTOR REALISTA AMERICANO

EDWARD HOOPER (1882-1967).

Porque comer é centralEconomia saudável altera cardápio do brasileiro

Page 3: Porque comer é central

8

negócio

economia estável, às margens do pleno emprego e

terceiro maior exportador agrícola — em verdade, se-

gundo, uma vez que os europeus são contabilizados

em conjunto? Especialmente que o cenário é de rápida

transição.

Mantida a tendência, em poucos anos nossos

hábitos serão compatíveis com os verificados em

países mais desenvolvidos, sobretudo nos Estados

Unidos. A exemplo dos

americanos, estamos co-

mendo mais fora de casa.

No ano passado, de cada

R$ 100 gastos com ali-

mentação — “investidos”,

dirá o gourmand —, R$ 31

referem-se à aquisição de

refeições preparadas fora do lar ou no mercado de

food service, como prefere a Associação Brasileira

das Indústrias de Alimentação (ABIA). Nas contas da

entidade, o faturamento praticamente dobrou nos

últimos anos. Na América de 2010, o food service che-

gou a 48% dos dispêndios feitos pela população — um

total de vendas de US$ 529 bilhões.

Para aquinhoar uma fração dos R$ 75 bilhões

vendidos no Brasil de 2010, 1,4 milhão de estabeleci-

mentos — entre hotéis, restaurantes, bares, lanchone-

tes, padarias, deliveries, cafés, sorveterias e pontos

diversos de refeições

rápidas — mantiveram

6 milhões de postos de

trabalho e investiram

em produtos e servi-

ços condizentes com as

necessidades do brasi-

leiro de hoje. Que é ma-

joritariamente urbano,

com renda crescente,

acossado pela falta de

tempo, com muitas di-

ficuldades logísticas e

de hábitos alimentares

amplos: apreciador do

junk food e da comida

saudável, do tradicional arroz com feijão e da culiná-

ria étnica, da simplicidade e da alta gastronomia.

Parte disso foi possível pela incorporação de equi-

pamentos e processos que reduziram o tempo de fei-

tura dos pratos. O Instituto Brasileiro de Geografia

e Estatística (IBGE) observou em estudo o que mui-

tos já perceberam — mesmo estabelecimentos mais

sofisticados minimizaram sensivelmente o tempo

de espera. Nos 1970, a de-

pender da escolha no res-

taurante, o cliente pode-

ria aguardar por até duas

horas a iguaria. Duas dé-

cadas depois, o “bon appé-

tit” do garçom era pronun-

ciado 15 minutos após a

escolha — desempenho relativamente próximo ao de

uma lanchonete ou restaurante por quilo.

A boa performance econômica do food service en-

contra causa e efeito também no barateamento relativo

dos ingredientes e na expansão das redes de atendi-

mento. Outro elemento externo com aparente influên-

cia sobre o tema é o aumento da participação das mu-

lheres na População Economicamente Ativa (PEA). A

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD),

de 1971, reconhece apenas 23% da PEA como do gênero

feminino. Em 2008, o percentual era de 43,6%.

Motivada por ques-

tões materiais e cultu-

rais, a ida das mulheres

ao mercado de trabalho

parece ter sepultado a

ordem anterior, calcada

na pontualidade da reu-

nião familiar à mesa,

no preparo da refeição

pelas mãos da principal

figura feminina da casa

e na qual a opção “comer

fora” era entendida como

luxo ao qual só eventual-

mente se podia recorrer.

Na ordem atual, o merca-

Duas décadas depois, o “bon appétit” do garçom era dito 15 minutos após a escolha

MERCADO DE ALIMENTAÇÃO NO BRASIL (EM R$ BILHõES)*

* Vendas da indústria de alimentação por canal. Fonte: ABIA.

Varejo Food Service

200

140

180

120

80

60

40

20

02005 2006 2007 2008 2009 2010

160

100

Page 4: Porque comer é central

9GOURMET

do de alimentação fora do

lar assume a vanguarda ao

perseguir a massificação

da oferta, o rápido acesso e

satisfação do desejo do in-

divíduo, a celebrização de

personagens do segmento,

como empresários e chefs,

e o enaltecimento acrítico

de marcas.

Mesmo com todos os es-

tímulos ao barateamento,

no Brasil, a coluna direita

do cardápio continua desa-

gradando a muitos. Safras

recordes no campo, deman-

da aquecida e ampliação

da oferta têm se mostrado

incapazes de estabilizar os

preços. Capitais como São

Paulo e Rio de Janeiro já

ostentam estabelecimen-

tos com valores acima dos

praticados em países cuja

renda per capita é bem su-

perior à brasileira — e isso

vale tanto para restauran-

tes de primeira linha quan-

to para lanchonetes.

Publicado todos os anos

pela revista semanal ingle-

sa The Economist, o Índice

Big Mac, ao lado, compara

entre os países o valor do

famoso sanduíche da rede americana McDonald’s, con-

siderando o postulado pela teoria da paridade do poder

de compra, que busca auferir quanto uma determinada

moeda pode comprar globalmente. Em valores absolu-

tos, o lanche por cá só não é mais caro que na Suécia,

Suíça e Dinamarca, respectivamente, US$ 7,64, US$

8,01 e US$ 8,31, contra US$ 6,16. O indicador de 2011

aponta ainda o real como a moeda mais valorizada en-

tre os países em relação ao dólar — 149%.

Longe de minimizar os

problemas cambiais ou os

preços no mercado mundial

de commodities, em alta re-

nitente desde 2008, comer

fora de casa por aqui impli-

ca obrigatoriamente lidar

com questões locais que en-

gordam a conta — e a lista

de inflacionantes é enorme,

a despeito de quem a faça.

Acadêmicos, empresários e

representantes de entidades

do segmento responsabili-

zam, no front externo, três

grandes grupos pelo cerne do

problema. Carga tributária,

legislação e infra-estrutura

têm pressionado a subida

dos preços, ainda não ao pon-

to de fazer recuar as taxas de

crescimento do food service,

mas de impedir uma expan-

são mais rápida, na opinião

da Associação Brasileira de

Bares e Restaurantes (Abra-

sel). Para a entidade, o ritmo

médio de ampliação de 18%

ao ano, verificado entre 2005

e 2010, poderia ser maior não

fosse o trio.

É dificílimo sustentar

a viabilidade financeira de

um food service em grandes

centros urbanos do País. O empreendedor precisa li-

dar com uma carga tributária que sorve anualmente

de 35% a 40% de toda a riqueza produzida pelo setor

privado, um Estado sempre disposto a legislar. Dos

locais nos quais as pessoas devem ou não fumar à

forma como é oferecido o couvert. Somado ao encare-

cimento dos imóveis, aos imprescindíveis gastos com

segurança, a uma logística que, para se viabilizar, se

vale dos fretes mais caros do mundo e às dificulda-

Dinamarca

Suíça

Suécia

BraSil

EStaDoS uniDoS

Hong Kong

US$ 8,31

US$ 8,01

US$ 7,64

US$ 6,16

US$ 4,07

US$ 1,94

Índice Big Mac

O ÍNDICE BIG MAC THE ECONOMIST, A PARTIR DE 2011, PASSOU

A ANALISAR TAMBÉM A RELAÇÃO DE VALOR ENTRE AS MOEDAS

DOS MAIS DE CEM PAÍSES PESQUISADOS, TENDO O DóLAR COMO

DIVISA DE REFERÊNCIA, E NÃO APENAS O PREÇO DO LANCHE EM

VALORES ABSOLUTOS NESTA MOEDA. O REAL É A MOEDA MAIS

SOBREVALORIZADA DO MUNDO ANTE O DóLAR — 149% —, ENQUANTO

O SANDUÍCHE BRASILEIRO, NOS CÁLCULOS DA REVISTA BRITÂNICA, É O

QUARTO MAIS CARO DO MUNDO, E O DE HONG KONG, O MAIS BARATO.

O TOPO DO ranking É OCUPADO PELA DINAMARCA.

Page 5: Porque comer é central

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almoço e jantar

refrigerantes, cervejas e outros

Sanduíches e salgados

agregadas e outras

café da manhã

DISTRIBUIÇÃO DOS GASTOS COM food service

Fonte: IBGE/POF 2003 e ABIA.

2%7%

26%

23%

42%

des de manter um ponto

comercial em endereços

com escassez de vagas

para carros. De cem es-

tabelecimentos abertos,

na capital paulista, ape-

nas três completam dez

anos. Trinta e cinco fe-

cham em 12 meses, uma

tragédia para um dos

ramos que, atualmente,

mais atrai novos empre-

endedores.

Outra lista de ingre-

dientes ajuda, no front

interno, a salgar os pre-

ços. “Falta de planeja-

mento, falta de profissionalismo e, principalmente,

muitos empresários acham que abrir um restaurante

é ter alguém que cozinhe bem, o que tem se comprova-

do bastante errado”, afirma Marcelo Traldi, professor

de Gastronomia do Centro Universitá-

rio Senac e autor do livro Tecnologias

Gerenciais de Restaurantes. Ele de-

fende a melhora do quadro a partir da

experiência da maioria dos bons chefs,

que tem se associado a pessoas com vi-

são de gestão, dividindo assim as tare-

fas de acordo com a especialização de

cada um.

Não obstante o inadiável ganho de

eficiência, os agentes do mercado de

food service sabem que ainda há muito

espaço para expansão. A experiência

americana ensina que o crescimento

da renda da população tende a ser re-

vertido em maior consumo no segmen-

to — exatamente o que ocorre por aqui.

A própria crise pela qual passam Euro-

pa e Estados Unidos tem sido bastante

didática. A readequação dos hábitos

alimentares não está acompanhando o

agravamento do cenário econômico. Ou

seja, menos empregos e menor renda não têm feito as

pessoas voltarem, necessariamente, a comer em casa.

Nos últimos três anos, houve um recuo de apenas 2%

nos gastos dos americanos com a alimentação fora do

lar, o que sugere uma certa consolidação

dos hábitos atuais.

Talvez estejamos diante de uma irre-

versível mudança — a exemplo da incor-

poração ao cotidiano de computadores

domésticos e celulares. Como no passa-

do, fatores externos hegemônicos mol-

daram as “necessidades” alimentares —

a novidade agora está no alcance global

do modelo, que se mostra a expressão

maior de uma conquista. Enriquecemos

de subjetividade algo objetivo e primá-

rio como o ato de comer. Hoje ele se

mantém central não somente por que

desejamos ingerir um conjunto de nu-

trientes que satisfaçam as demandas

do organismo, mas, sobretudo, porque

perseguimos o prazer dos sabores, as

experiências dos locais onde fazemos

refeições e as relações com quem divi-

dimos a mesa. Comíamos, no passado,

movidos pela fome; agora, por desejo.

TRINTA E DOIS QUADROS COM UMA

PINTURA DE LATA DE SOPA CAMPBELL’S

FORAM SUFICIENTES PARA SUSCITAR, EM

1962, O DEBATE SOBRE ENALTECIMENTO

ACRÍTICO DAS MARCAS PELA

PUBLICIDADE E PELAS ARTES. A FAMOSA

OBRA DO ARTISTA ANDY WARHOL (1928-

1987) FOI APOIADA FORMALMENTE

PELA FABRICANTE DO ENLATADO,

CONTRIBUINDO PARA CONSOLIDAR

A POP ART NOS ESTADOS UNIDOS DA

CONTRACULTURA.

negócio