porque comer é central
DESCRIPTION
Artigo econômico sobre o mercado brasileiro de alimentação fora do lar, produzido para a PLUG Editora, e publicado, em 2011, no anuário Gourmet Internacional.TRANSCRIPT
6
Analisar a população de uma cidade, de um
país ao longo do tempo, é uma perspecti-
va promissora para identificar como são
saciadas as necessidades alimentares em
diferentes locais e épocas. Mais do que o paladar, fo-
ram a geografia, a economia e a religião a nos compe-
lir dietas, induzir à formulação de receitas e a deter-
minar as culturas e animais a serem domesticados.
Durante a maior parte da história, esses e outros fa-
tores fizeram a moldagem constante das preferências
ao meio, não o contrário.
Está à mesa boa parte do registro do passado. Em
nossa vida nutricional alguns aspectos foram de tal
sorte determinantes que, ao constatá-los, revisitamos
milhares de anos. A conservação dos alimentos tem
início no uso do fogo, e a vanguarda na liofilização.
Passa pelo uso das especiarias e pela pasteurização.
Do homem das cavernas ao astronauta, da Pré-Histó-
ria à Modernidade.
E se a mesa diz tanto sobre as contingências e pos-
sibilidades do passado, o que dirá sobre o Brasil con-
temporâneo? Ou mantida a ordem proposta anterior-
mente: o que diz a respeito da mesa o sétimo Produto
Interno Bruto do mundo, dono de uma moeda forte,
Porque comer é centralEconomia saudável altera cardápio do brasileiro
negócio
por Fábio Caldeira Ferraz
7GOURMET
ABRIGADOS EM UM BAR DE UMA CIDADE TOMADA PELO
SILÊNCIO E PELO SONO, OS NOTÍVAGOS DE NIGHTHAWKS TÊM
NA BEBIDA DAS XÍCARAS NADA MAIS DO QUE O PRETEXTO
PARA UMA INTERAÇÃO DISTANTE. JÁ, AO LADO, EM AUTOMAT
É A XÍCARA QUEM FAZ AS VEZES DE ACOMPANHANTE EM UM
BAR VAZIO. NOVAMENTE, O CONSUMO DO ALIMENTO PARECE
EXISTIR ALI PARA ATENDER A OUTRA FINALIDADE, EM NADA
LIGADA À REFRESCÂNCIA PROPORCIONADA POR UM CHÁ FRIO
OU CONFORTO DE UMA XÍCARA DE CAFÉ QUENTE. AMBOS
OS QUADROS, O PRIMEIRO FEITO EM 1942 E O SEGUNDO EM
1927, SÃO DE AUTORIA DO PINTOR REALISTA AMERICANO
EDWARD HOOPER (1882-1967).
Porque comer é centralEconomia saudável altera cardápio do brasileiro
8
negócio
economia estável, às margens do pleno emprego e
terceiro maior exportador agrícola — em verdade, se-
gundo, uma vez que os europeus são contabilizados
em conjunto? Especialmente que o cenário é de rápida
transição.
Mantida a tendência, em poucos anos nossos
hábitos serão compatíveis com os verificados em
países mais desenvolvidos, sobretudo nos Estados
Unidos. A exemplo dos
americanos, estamos co-
mendo mais fora de casa.
No ano passado, de cada
R$ 100 gastos com ali-
mentação — “investidos”,
dirá o gourmand —, R$ 31
referem-se à aquisição de
refeições preparadas fora do lar ou no mercado de
food service, como prefere a Associação Brasileira
das Indústrias de Alimentação (ABIA). Nas contas da
entidade, o faturamento praticamente dobrou nos
últimos anos. Na América de 2010, o food service che-
gou a 48% dos dispêndios feitos pela população — um
total de vendas de US$ 529 bilhões.
Para aquinhoar uma fração dos R$ 75 bilhões
vendidos no Brasil de 2010, 1,4 milhão de estabeleci-
mentos — entre hotéis, restaurantes, bares, lanchone-
tes, padarias, deliveries, cafés, sorveterias e pontos
diversos de refeições
rápidas — mantiveram
6 milhões de postos de
trabalho e investiram
em produtos e servi-
ços condizentes com as
necessidades do brasi-
leiro de hoje. Que é ma-
joritariamente urbano,
com renda crescente,
acossado pela falta de
tempo, com muitas di-
ficuldades logísticas e
de hábitos alimentares
amplos: apreciador do
junk food e da comida
saudável, do tradicional arroz com feijão e da culiná-
ria étnica, da simplicidade e da alta gastronomia.
Parte disso foi possível pela incorporação de equi-
pamentos e processos que reduziram o tempo de fei-
tura dos pratos. O Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) observou em estudo o que mui-
tos já perceberam — mesmo estabelecimentos mais
sofisticados minimizaram sensivelmente o tempo
de espera. Nos 1970, a de-
pender da escolha no res-
taurante, o cliente pode-
ria aguardar por até duas
horas a iguaria. Duas dé-
cadas depois, o “bon appé-
tit” do garçom era pronun-
ciado 15 minutos após a
escolha — desempenho relativamente próximo ao de
uma lanchonete ou restaurante por quilo.
A boa performance econômica do food service en-
contra causa e efeito também no barateamento relativo
dos ingredientes e na expansão das redes de atendi-
mento. Outro elemento externo com aparente influên-
cia sobre o tema é o aumento da participação das mu-
lheres na População Economicamente Ativa (PEA). A
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD),
de 1971, reconhece apenas 23% da PEA como do gênero
feminino. Em 2008, o percentual era de 43,6%.
Motivada por ques-
tões materiais e cultu-
rais, a ida das mulheres
ao mercado de trabalho
parece ter sepultado a
ordem anterior, calcada
na pontualidade da reu-
nião familiar à mesa,
no preparo da refeição
pelas mãos da principal
figura feminina da casa
e na qual a opção “comer
fora” era entendida como
luxo ao qual só eventual-
mente se podia recorrer.
Na ordem atual, o merca-
Duas décadas depois, o “bon appétit” do garçom era dito 15 minutos após a escolha
MERCADO DE ALIMENTAÇÃO NO BRASIL (EM R$ BILHõES)*
* Vendas da indústria de alimentação por canal. Fonte: ABIA.
Varejo Food Service
200
140
180
120
80
60
40
20
02005 2006 2007 2008 2009 2010
160
100
9GOURMET
do de alimentação fora do
lar assume a vanguarda ao
perseguir a massificação
da oferta, o rápido acesso e
satisfação do desejo do in-
divíduo, a celebrização de
personagens do segmento,
como empresários e chefs,
e o enaltecimento acrítico
de marcas.
Mesmo com todos os es-
tímulos ao barateamento,
no Brasil, a coluna direita
do cardápio continua desa-
gradando a muitos. Safras
recordes no campo, deman-
da aquecida e ampliação
da oferta têm se mostrado
incapazes de estabilizar os
preços. Capitais como São
Paulo e Rio de Janeiro já
ostentam estabelecimen-
tos com valores acima dos
praticados em países cuja
renda per capita é bem su-
perior à brasileira — e isso
vale tanto para restauran-
tes de primeira linha quan-
to para lanchonetes.
Publicado todos os anos
pela revista semanal ingle-
sa The Economist, o Índice
Big Mac, ao lado, compara
entre os países o valor do
famoso sanduíche da rede americana McDonald’s, con-
siderando o postulado pela teoria da paridade do poder
de compra, que busca auferir quanto uma determinada
moeda pode comprar globalmente. Em valores absolu-
tos, o lanche por cá só não é mais caro que na Suécia,
Suíça e Dinamarca, respectivamente, US$ 7,64, US$
8,01 e US$ 8,31, contra US$ 6,16. O indicador de 2011
aponta ainda o real como a moeda mais valorizada en-
tre os países em relação ao dólar — 149%.
Longe de minimizar os
problemas cambiais ou os
preços no mercado mundial
de commodities, em alta re-
nitente desde 2008, comer
fora de casa por aqui impli-
ca obrigatoriamente lidar
com questões locais que en-
gordam a conta — e a lista
de inflacionantes é enorme,
a despeito de quem a faça.
Acadêmicos, empresários e
representantes de entidades
do segmento responsabili-
zam, no front externo, três
grandes grupos pelo cerne do
problema. Carga tributária,
legislação e infra-estrutura
têm pressionado a subida
dos preços, ainda não ao pon-
to de fazer recuar as taxas de
crescimento do food service,
mas de impedir uma expan-
são mais rápida, na opinião
da Associação Brasileira de
Bares e Restaurantes (Abra-
sel). Para a entidade, o ritmo
médio de ampliação de 18%
ao ano, verificado entre 2005
e 2010, poderia ser maior não
fosse o trio.
É dificílimo sustentar
a viabilidade financeira de
um food service em grandes
centros urbanos do País. O empreendedor precisa li-
dar com uma carga tributária que sorve anualmente
de 35% a 40% de toda a riqueza produzida pelo setor
privado, um Estado sempre disposto a legislar. Dos
locais nos quais as pessoas devem ou não fumar à
forma como é oferecido o couvert. Somado ao encare-
cimento dos imóveis, aos imprescindíveis gastos com
segurança, a uma logística que, para se viabilizar, se
vale dos fretes mais caros do mundo e às dificulda-
Dinamarca
Suíça
Suécia
BraSil
EStaDoS uniDoS
Hong Kong
US$ 8,31
US$ 8,01
US$ 7,64
US$ 6,16
US$ 4,07
US$ 1,94
Índice Big Mac
O ÍNDICE BIG MAC THE ECONOMIST, A PARTIR DE 2011, PASSOU
A ANALISAR TAMBÉM A RELAÇÃO DE VALOR ENTRE AS MOEDAS
DOS MAIS DE CEM PAÍSES PESQUISADOS, TENDO O DóLAR COMO
DIVISA DE REFERÊNCIA, E NÃO APENAS O PREÇO DO LANCHE EM
VALORES ABSOLUTOS NESTA MOEDA. O REAL É A MOEDA MAIS
SOBREVALORIZADA DO MUNDO ANTE O DóLAR — 149% —, ENQUANTO
O SANDUÍCHE BRASILEIRO, NOS CÁLCULOS DA REVISTA BRITÂNICA, É O
QUARTO MAIS CARO DO MUNDO, E O DE HONG KONG, O MAIS BARATO.
O TOPO DO ranking É OCUPADO PELA DINAMARCA.
10
almoço e jantar
refrigerantes, cervejas e outros
Sanduíches e salgados
agregadas e outras
café da manhã
DISTRIBUIÇÃO DOS GASTOS COM food service
Fonte: IBGE/POF 2003 e ABIA.
2%7%
26%
23%
42%
des de manter um ponto
comercial em endereços
com escassez de vagas
para carros. De cem es-
tabelecimentos abertos,
na capital paulista, ape-
nas três completam dez
anos. Trinta e cinco fe-
cham em 12 meses, uma
tragédia para um dos
ramos que, atualmente,
mais atrai novos empre-
endedores.
Outra lista de ingre-
dientes ajuda, no front
interno, a salgar os pre-
ços. “Falta de planeja-
mento, falta de profissionalismo e, principalmente,
muitos empresários acham que abrir um restaurante
é ter alguém que cozinhe bem, o que tem se comprova-
do bastante errado”, afirma Marcelo Traldi, professor
de Gastronomia do Centro Universitá-
rio Senac e autor do livro Tecnologias
Gerenciais de Restaurantes. Ele de-
fende a melhora do quadro a partir da
experiência da maioria dos bons chefs,
que tem se associado a pessoas com vi-
são de gestão, dividindo assim as tare-
fas de acordo com a especialização de
cada um.
Não obstante o inadiável ganho de
eficiência, os agentes do mercado de
food service sabem que ainda há muito
espaço para expansão. A experiência
americana ensina que o crescimento
da renda da população tende a ser re-
vertido em maior consumo no segmen-
to — exatamente o que ocorre por aqui.
A própria crise pela qual passam Euro-
pa e Estados Unidos tem sido bastante
didática. A readequação dos hábitos
alimentares não está acompanhando o
agravamento do cenário econômico. Ou
seja, menos empregos e menor renda não têm feito as
pessoas voltarem, necessariamente, a comer em casa.
Nos últimos três anos, houve um recuo de apenas 2%
nos gastos dos americanos com a alimentação fora do
lar, o que sugere uma certa consolidação
dos hábitos atuais.
Talvez estejamos diante de uma irre-
versível mudança — a exemplo da incor-
poração ao cotidiano de computadores
domésticos e celulares. Como no passa-
do, fatores externos hegemônicos mol-
daram as “necessidades” alimentares —
a novidade agora está no alcance global
do modelo, que se mostra a expressão
maior de uma conquista. Enriquecemos
de subjetividade algo objetivo e primá-
rio como o ato de comer. Hoje ele se
mantém central não somente por que
desejamos ingerir um conjunto de nu-
trientes que satisfaçam as demandas
do organismo, mas, sobretudo, porque
perseguimos o prazer dos sabores, as
experiências dos locais onde fazemos
refeições e as relações com quem divi-
dimos a mesa. Comíamos, no passado,
movidos pela fome; agora, por desejo.
TRINTA E DOIS QUADROS COM UMA
PINTURA DE LATA DE SOPA CAMPBELL’S
FORAM SUFICIENTES PARA SUSCITAR, EM
1962, O DEBATE SOBRE ENALTECIMENTO
ACRÍTICO DAS MARCAS PELA
PUBLICIDADE E PELAS ARTES. A FAMOSA
OBRA DO ARTISTA ANDY WARHOL (1928-
1987) FOI APOIADA FORMALMENTE
PELA FABRICANTE DO ENLATADO,
CONTRIBUINDO PARA CONSOLIDAR
A POP ART NOS ESTADOS UNIDOS DA
CONTRACULTURA.
negócio