por que ensinar a quem não aprende

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7/23/2019 Por Que Ensinar a Quem Não Aprende http://slidepdf.com/reader/full/por-que-ensinar-a-quem-nao-aprende 1/9 Dossiê POR  QUE ENSINAR  A  QUEM NÃO APRENDE? M aria  Cristina M. K upfer Renata Petri No  presente  artigo, afirma-se  que as  dife renças individuais,  que dão origem  à  educa ção especial,  não são naturais,  e si m  histori cam ente engendradas. E  a  instalação  da  esco la  no  mundo moder no  qu e  produz,  no mesmo golpe,  a  crian ça  especial. Assim ,  a escola encontra  grande dificuldade  em reabsorver,  a  partir  do movimento  inclusivo contemporâneo,  a  crian ça  especial. Discute-se, em seguida,  a  inclusão de crianças psicóticas  e autistas, partindo  da tese de que  essa inc l u são, para tais crianças, é terapêutica. Fi nalm en te, apresentam- se ressal vas  em  relação  à  idéia de  que a  incl usão deva ser realizada  a  qual quer custo. Inclusão  escolar;  psi cose infantil; autismo; educação especial WHY  SHOULD  WE TEACH CHILDREN  WHO CAN'T LEARN? In this paper,  we discuss that  the  indivi- dual differences,  which are on the basis  of special education,  are not  natural,  but historically  determined. T he  creation  of  school in moder n world produces,  at the  same time,  the  special child. Thus,  the  school faces great difficulties  in reabsorbing  that child. We also discus s  the inclusion  of  psychotic and  autistic children, and  we  believe that this inclusion  is  therapeutic for  them. Finally,  we discuss  the  idea that the inclusion should  be done in all  cases. Inclusion infantile psychosis autism special education A Á.  ) \ discussão em  torno  da inc l usã o está ad quir ind o as carac terísticas de um a epidem ia no Brasil.  Embora  já fosse um a rea l id ad e em países como a França e a Argentina, a inclusão passou a oc upar os educadores brasileiros principalmente depois que toda um a série de  leis  federais e esta duais  foi sendo baixada, principalmente na últim a década, para a regulam entação da educ ação especial e  da criação de classes especiais (Bissolo  Neto 1996).  Sã o  leis  que não vieram, porém, acompanha das,  pelo menos até recentemente, de providências que permitissem o seu adequado cumprimento. A partir daí, o barulho em  torno  da questão foi au m entand o significativamente, e para ele vêm contri buindo tanto  os professores como os teóricos da educação.  Os últim os vêm professando o ideário da inclusão  a qual quer custo, e os primeiros vêm aler tando  para o fato de que esse "q ua l qu er custo" pode  ser m uito alto, já que a lei não veio acompa-  Psicanalista. Professora livre docente  do  IPUSP diretora da Pré-Escola  Terapêutica Lugar  de  Vida.   Psicanalista. Mestre  em  Psicologia pelo Programa  de  Psicologia Escolar  e do  Desenvolvimento  do  IPUSP membro da equipe  do  Lugar  de  Vida.

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7/23/2019 Por Que Ensinar a Quem Não Aprende

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Dossiê

POR

  QUE

ENSINAR  A

  QUEM

NÃO APRENDE?

M  a r i a  C r i s t i n a M . K u p f e r

Renata Petri

No

  presente

  artigo,

afirma-se  que as  dife

renças indi vi duais,  que

dão origem  à  educa

ção especial,  não são

naturais,  e si m  histori

cam ente engendrad as.

E  a  instalação  da  esco

l a  no  m und o

  moder

no  que

  produz,

  no

mesmo

  golpe,  a  crian

ç a  especial. Assim ,  a

escola

  encontra

  g rande

dificuldade  em

reabsorver,  a  partir  d o

movimento

  inclusivo

contemporâneo,

  a  crian

ç a  especial. Discute-se,

em seguida,  a  inclusão

de crianças psicóticas

  e

autistas,

  partindo

  da

tese  de que  essa inc lu

são, para tais crianças,

é terapêutica. Fi nalm en

te, apresentam- se ressal

v a s  em  relação  à  idéia

de  que a  incl usão deva

ser realizada  a  qual

quer custo.

Inclusão  escolar;  psi

cose

  infantil;

autismo;

  educação

especial

WHY  SHOULD

 WE

TEACH

  CHILDREN

  WHO

CAN'T

  LEARN?

In this paper,

  we

discuss

  that

  the

  indivi-

dual  differences,   which

are

  on the

  basis

  of

special

  education,

  are

not

  natural,

  but

historically

  determined.

The  creation

  of

  school

in modern world

produces,

  at the

  same

time,  the

  special child.

Thus,  the

  school faces

great

  difficulties

  in

reabsorbing

  that child.

We also discuss

  the

inclusion  of

  psychotic

and  autistic children,

and

  we

 believe that this

inclusion  is  therapeutic

for

  them. Finally,

  we

discuss

  the

  idea that

the inclusion should

  be

done

  in all

  cases.

Inclusion infantile

psychosis

autism

special

  education

A

Á.  ) \ d i s c u ss ã o e m  torno  da inc l usã o está

ad quir ind o as carac teríst icas de um a epidem ia no

Brasi l .  Embora  já fosse um a rea l id ad e em paí ses

c o m o a Fr ança e a A rg entina, a inc l usã o passou a

oc upa r o s educa do res b r a s i l e i ro s p r i n c i pa l m en te

d epo is que to d a um a séri e de  leis  f ed era is e esta

dua i s

  foi sendo bai xada , pri nc ipa l m ente na úl tim a

dé cad a, para a reg ulam entaç ã o da educ aç ão especial

e

  da c r ia ç ã o de c l asses espec i a is (Bis so l o  Neto

1996).  Sã o  leis  que não vieram , poré m, aco mpanh a

das,

  pelo m eno s até rec entemente, de pro v id ê nci as

que perm it i ssem o seu ad equad o c um pri m ento . A

partir daí, o b ar ul h o em

  torno

  da quest ã o foi au

m entand o signific ativ amente, e para ele v ê m co ntri

b u i n d o

  tanto

  os professor es c o m o os teór ic os d a

educação .

  Os úl tim o s v êm pro fessando o id eário da

inc lusão

  a qual quer custo, e os pri m eir o s v ê m aler

tando

  pa ra o fato de que esse "q ua l qu er c us to "

pode

  ser m ui to al to , já que a lei nã o vei o ac o m pa-

  Psicanalista. Professora livre docente  do

  I P U S P

diretora

da

  P ré-Esco la

  Terapêutica Lugar

  de

 Vida.

•  •  Psicanalista. Mestre  em Psicologia pelo Programa de Psicologia

Esco lar

  e do

 Desenvolvimento

  do

  I P U S P membro

da equipe  do  Lugar  de Vida.

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http://slidepdf.com/reader/full/por-que-ensinar-a-quem-nao-aprende 2/9

nha da de med id as faci li tado ras para

a  sua im pl ant aç ã o . Esse alto custo

inclui,

  por exempl o , um enor me es

tra g o na saúd e m enta l de mui to s

pro fesso res, que não po d em e não

sab em abo rd ar a inc l usão , e termi

nam por apelar para o afastam ento ,

a  licença médica.

Dá a impr essã o de que os re

sultad os alc ançad os até aqui não têm

sido mui to alvissareiros. Muit o baru

l h o por nad a, ou seja, a i nc l usã o

não está avançando. Avança no caso-

a-caso, e só depois de muito s esfor

ço s do s pro fissionais de apo io à es

colarização

  de crianças especiais.

Será  preciso, então, parar e refle

tir um po uc o . A qui l o que parec e

ab so lutam ente justo e necessário nã o

está dand o to tal mente certo . Por que

não? O que está errad o?

Gostaríamos de examinar um as

pecto que talv ez esteja c ontr ib uind o

para o insucesso dessa empreitada, e

no âmbito mais restrito das crianças

psicóticas e autistas. Trata- se de um

aspecto para o qual o professor cos

tuma chamar a nossa atenção, ao per

guntar: por que ensinar uma c riança

que não  pode  aprender?

Antes, por ém, de ab o rd ar essa

questão, será necessário situar melhor

quem são as crianças especiais, que se

supõe devam ser incluídas.

A C R I A Ç Ã O   DAS

C R I A N Ç A S   E S P E C I A I S

Quando

  se fo rmula o prob lema

da inc lusão , supõe-se que as cr ianças

especiais

  existem porque existem di

ferenças  naturais  entre as c ri anç as.

Supõe-se ta m b é m que essas c ri anças

estão fora da escola po rque há u m

preconcei to soc ial a respeito da dife

rença. A solução é criar  l e i s  inclusivas

que obriguem o tecido social a reab-

sorver aquil o que ele hav ia expeli do

para fora de seus muros esco lares.

A crí tica que vem send o feita já

com certa insistência a essa formula

ção está na idéia de que tais diferen

ç a s  nã o são natur ai s. As d iferenç as

individuais,

  criação ideológica a ser

viço  do ideário lib eral, foram histo

ri ca mente engend rad as (Patto, 1990;

Crochik,

  1 9 9 6 ) .

Pod e-se afi rm ar, ind o por um

outro

  caminho para chegar a uma

formulação parecida com a anterior,

que a criança especial é um a criaç ão

produzida  no  e  pelo  di scurso soc ial

escolar  posto  em ci rc ulaç ão no iní

c i o  da mod ernid ad e. Ou seja, quan

do a escola se instala, instala-se, no

m esm o g o l pe, a c ri anç a especial .

Cria-se  um a catego ria que não tinh a

existência  ind ependente, mas passa a

existir

  junto com a escola.

Poder-se-ia objetar o seguinte: as

crianças  cegas,  surdas, co m d ificuld a

des de l oc om oçã o , e mesm o as autis

t a s ,  sempre existiram Qual foi, en

tão, a cr iaç ão pro d uzi da pela escola

moderna?

Em respo sta a essa o b jeç ã o ,

pode-se arg umentar, em primeir o lu

g a r ,  que um discurso  pode  produzir

um objeto que não se encontrav a ali

antes. Ou seja, a l ing uag em , em seu

poder de criação  ex-nihilo,  contorna

um Real e passa a dizê-lo, a partir

de um ato que exced e os l imites da

simples  ro tulaç ão de um a reali da de

que  j a z i a  à espera de um nome. Tra-

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ta-se,  ao c o ntrá ri o , do engend ra m ent o de al go pelo ato de sua

nom eação . U m a ro tulaç ão que cria o objeto nom ead o .

Pode-se, em seguida, observar que as deficiências, organizadas

em um ampl o espectro de diag nósti co s, foram recor tadas e  classifi

cadas  pelo saber médico  a  partir  deste l ug ar de c ri anç a não -

escolarizável  criado para  elas  c om o advento da escola m oderna.

Isto

  porque toda cr iança, a partir da Idade Moderna, passou a ser

definida desde seu lugar na escola, como já se afirmou am plam ente

a  partir dos estudos de Aries  ( 1 9 7 8 ) .

S e

  antes

  elas

  perambulavam pelas

  aldeias,

  eram deixadas para

que "o b om Deus", a cari dad e cristã ou mes mo a  mor te  cuidasse

delas,  passam,  sobretudo  a partir do início do século XIX, a existir

em catego rias, passam a ser ob jeto de estudos. São "rec olhid as" pe

los  mé dic os (Postei & Quétel, 1987 ) e passam a ocupar um lugar

definido, o daquelas que estão na bord a da escola, fazendo-a existir

e

  ga rantindo os  contornos  para as cr ianças no rm ai s esco lares.

O tr ab al ho de Binet, por exempl o ,  pode  ser v ist o c o m o a

criação

  de um instrum ento "c ientífico" ab so lutamente impresc indí

vel

  para organizar a escola e só permiti r a entrad a do s esco lari zá-

v e i s .  Lo nge de ser capaz de med ir a intel ig ência, um a qual id ad e

humana incom ensurável que não cabe na simples equação do QI, o

teste de Binet- Simon cr io u um a funçã o nova , c ham ad a por ele de

inteligência.

  Essa função, cuja definição é operac io nal , ou seja, de

fine-se por a qui l o que é med ido no teste, não existia antes na ca

beça de nenh uma c riança ou adulto , não se co nfunde co m aquil o

que

  Kant

  ch amav a de inteli gê ncia (Croc hik ,  1 9 9 6 ) .  Ao reduzir a

inteligência

  à sua med id a, produziu-se ainda um a il usão , à qual se

curv ou a modernidad e, e que consiste em acredi tar que a inteligên

c i a   é, resume-se na med ida de um co efic iente.

Assim,  as crianças dé beis mentais, para as quais foram instala

das

  tantas classes especiai s, são um a c riaç ão do sr. Binet.

  Embora

instrumento invo luntário de um

  outro

  tipo de classificação que as

forças pol íti cas esperavam ter na mã o - a cl assific açã o em classes

sociais,  c o m o  mos t rou  M. Helena  Patto  (1984) - , a escal a Binet-

Sim on transformou-se na princ ipal ferramenta de trab alho da psico

logia  escolar que nascia com ela. Mas a cl assificação em idades men

tais

  é de fato um arranjo artific ial da capacid ade intelec tual das cri

anças  em  torno  de eixos de referência arb it rári os.

Pode-se dizer o mesm o em relação às autistas. O aut ismo tam

bém é uma invençã o moderna. Aind a que possa ser pensado como

a

  manifestação de uma falha na constituição do sujeito, que se

poderia enco ntrar tamb ém em al g uma criança peram b ula ndo por

nossa al dei a med iev al , o auti sm o é  sobre tudo  um sig nifi c ante

moderno  que dá  nome  a essa falha estrutural,  nome  esse. que o re-

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presenta, porém, em uma particular

posição no discurso social contem

porâneo sobre a infância. Desta nova

posi ção , inci de sob re o que o autis

m o é em estrutura e o rec ria, trans

fo rm and o a c ri ança autista de ho je

em um a ma nifesta ç ão d iferente das

outras fig urações que porv entura te

nha assumido em outras épocas.

A cr iaç ão da esco la  co ntorna

então um Real e passa a dizê- lo. E,

ao  contornar  o Real,  pode  passar a

dizer o que ela  não  é, ou quem  não

são suas crianças.

A esco la enc ontra seus

  ponto s

de referência identitários nesse con

torno,

  e o expeli do pela insta l aç ão

do

  contorno

  ajuda a defini-la.

Assim,

  a reabsorção

  do que ela

nã o  é  ameaça a sua consolidação co mo

instituição. Reabsorver o que ela mes

ma crio u co mo

  não-escolar

  é,

  i n i c i a l -

mente para ela, um contra-senso

Então,

  se a escola foi feita para

segregar,  que sentido tem trazer para

dentro  de seus muros essas crianças?

Esse poderia ser um subtexto da pro

fessora que pergunta pela razão de as

crianças  excl uídas vol tarem para a es

cola.  "Se não po d em aprender , por

que as colocam em minha

  c l a s s e ?

Vista

  do âng ul o em que o pro

b l em a ac ab a de ser apr esenta d o ,

pode-se d iz er que essas pro fesso ras

têm razão, sem natural mente concor

dar com

  e l a s . . .

Portanto,  a refo rm ulaç ão da es

cola  para incluir os excluídos precisa

ser um a rev o luçã o que a  ponha  do

avesso

  em sua razã o de exist ir , em

seu id eário pol ític o- id eol óg ico . E ne

cessário  m ui to m ai s d o que um a

ref o rm ul aç ã o de espaço físico , de

co nteúdo prog ramátic o ou de ritmos

de aprendi zag em, ou um a ma io r pre

paração do professor.

N ã o ba star á res pond er a essas

professoras dizendo-lhes que essas cri

anças  são, sim , capazes de aprend er -

e

  isso vale para todas as ditas especi

a i s

  -, todas têm potenciais que po

d em ser esti mulad o s. A superv iso ra

de ensino di rá, ao c o ntrá ri o , que

essas  c rianças não foram capazes de

cumprir as metas de ensino.

  A

  e s o -

la

  não foi

  feita para

  elas,

  g ri tam as

professoras para quem quiser ouvir.

N ão a d ia nta fazer um  puxadinho,

bem ao estilo de muit as ha b ita çõ es

da classe méd ia brasil eira, para fazer

cab er a c ri anç a especi al na esco l a

hoje - classes especiais, classes de re

cursos ou  outros  dispositivos que se

criam  em apêndice.

Fazer um

  puxadinho,

  a l i á s ,  não

é

  só priv il ég io do jeit inh o brasilei

ro. Na Esco la Experi menta l de Bon-

neuil*,  há um a prátic a que eqüival e

um  pouco  a essa tenta ti va de fazer

as  cr ianç as especi ais ca b erem  o nd e

não cabem. Lá, as crianças estão sub

meti d as à Ed ucatio n Nati onal e, d a

qual faz parte um sistem a de ensino

por co rrespo ndê nci a. As cr ianç as

aprendem co m os professores, mo ni

tores e estag iár io s d urant e o dia na

esco la ,  ma s m a nd a m suas prov as

preenchi das para a Ed ucat io n Nati o

nale,

  onde  são c or ri g id as por pro

fessores h ab il it ad o s. Sendo por cor

respo ndê nci a, abre-se um a br ech a:

quem os ensina ta mb é m os "ajud a"

um po uqu i nh o a fazer as pro v as.

U m "puxad inh o à francesa", ad mi s

sível

  se pensarmos que sem esses pe

quenos empurr ões jamai s terão seus

d ipl o mas, por tas de entrad a para o

m u n d o  do trabal ho .

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7/23/2019 Por Que Ensinar a Quem Não Aprende

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Agora pode-se dedicar atenção especial às crianças psicóticas e

autistas. T am b é m em relaç ão a

  e l a s

  a pergunta das professoras é:

"O que fazem aqui na esco la se não podem aprend er?"

Para essas cri anças, a resposta a essa pergunta é a mesma que

para as demais crianças. Mas há um a di ferença, que determi na uma

inclusão parado xalm ente mai s

  f á c i l ,

  e que não exige tantas revolu

ções na escola. Co m o ela está, já terá um a funçã o mui to im por tan

te na vida dessas crianças.

A I N C L U S Ã O   DE  C R I A N Ç A S P S I C Ó T I C A S  E

A U T I S T A S

  É

  T E R A P Ê U T I C A

2

Viver co m os outro s é o que consti tui e tece de  m o d o  estru

tural a teia e o tec id o de um sujeito. Se al go na h istó ri a de um a

criança

  a está im ped ind o d e enod ar c om o outro , de fazer laç o

social,

  então buscar o reo rd enamento sim bó l ic o desse sujeito, tra

tar dele é, entre outras coisas, levá-l o mai s um a vez à tram a soc ial .

Ao meio da rua, às esco las.

Na psic ose infantil , oc or re em estrutura o m esm o que em

relaç ão à psico se no adulto , c om a di ferença fundam ental de que,

c o m a ecl osã o da crise, cessa o d esenv o l v im ento . Para

  C a l l i g a r i s

( 1 9 8 9 ) ,  "nas manifestaç ões que c h am am o s de psico se na infânc ia ,

que são manifestaç ões cr ític as, estarí amo s co nfrontado s c om al go

que fracassa na constituiç ão mesm a da psicose" (p. 65). Mai s ad ian

t e ,

  af i r ma : "Mui to f reqüentem ente , a c o nst r uçã o de um a

estruturaçã o psicó tic a encontra um a injunção que a ob staculiza, às

vezes inst aura ndo um estado cr epuscular permanente. (...) A cr ian

ç a

  mais facilmente pod erá - com a ajuda de uma anal ista - superar a

crise

  vol tando ao trab alho de co nstrução de sua estruturação" (p. 66).

Tratar é

  portanto

  permit ir que a estruturaç ão seja reto mad a.

Assim,

  se alguns psicóticos adultos tiveram a chance de

  produ

z i r ,

  em períodos fora de crise, al gumas suplê ncias de laço que lh es

perm it i ra m estudar, aprender um a profissão e ev entual mente ter

um a ci rc ulaç ão soci al, mui tas cr ianças não têm a mesm a sorte. A

interrupção do desenv o lv im ento as captura em um  momento  ante

ri or a qual quer apr end iz ag em , ai nd a que frágil ou suplente, do

universo social.

Po r essa raz ão , o tr ata mento da psico se infantil prec isa ter

como

  norte

  o estabelec im ento do laço soci al. Se, no entanto , esse

resgate pode ser pensado , estruturalm ente faland o, c o mo impossí

v e l ,

  devid o à própria posiç ão em que se enco ntra um psicótic o em

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7/23/2019 Por Que Ensinar a Quem Não Aprende

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relaç ão ao di scurso, encontram-se na

l it erat ura fo rm as de fazer face ou

mesmo de

  contornar

  essa im possi b i

l id ad e. Se não h á la ço ,

  pode

  haver,

po r  outro  lado, enlace,  entendido

justamente

  c o m o

  uma forma de cir

c ul aç ã o soc ia l poss ív e l (A lb e &

Maganán,  1 9 9 1 ) .

As possib il id ad es de enlac e ou

de c ir c ul aç ã o soc ial e escol ar são

bem mai s extensas do que se supu

nha anos atrás. A casuística ac umul a

da vem  apontando  que essa extensão

é significativa a  ponto  de estar au

mentando ,

  por exemplo, o

  número

de crianças que freqüentam com su

cesso as escolas inclusivas.

  Demonstra,

ainda, que essas cri anças apresentam

uma estabil izaç ão , uma mel ho ra e

um a alt eraçã o na posiç ão di ante d o

Outro

  social se essa inc lusão esco lar

é ac o m panh ad a de um  tratamento

adequado.

Em um seminár io a respeito do

laç o e da c ir cul ação soc ial de c rian

ças psi c ó ti c as e aut is ta s, A l b e e

Mag ar ián (1991) perguntam- se a res

peito do papel da escola na  produ

çã o do laç o social . Al i,  respondem

e l e s ,

  poderá

  prod uzir- se a função de

enlace,  termo  que se apro xi m a da

quilo que pod eríam os ta mb é m cha

mar de "efeitos da circulação social".

Um trabalho analítico  pode  restabe

lecer algo do laço social, e a escola,

ou a c irculaç ão social que ela acarre

ta, reforça esse

  pouco

  do laço pon-

do-o em ato.

M a i s  ad iante, ac resc entam esses

autores:

  "Função

  de enl ac e é a que

realiza o

  professor,

  que se diferen

c i a r i a ,

  assim, de um a mera funçã o

pedag óg ic a. Necessita-se de alg uém

que possa estabelecer, por exem plo ,

Page 7: Por Que Ensinar a Quem Não Aprende

7/23/2019 Por Que Ensinar a Quem Não Aprende

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o espaço de um

  banho

  como um lu

g a r

  sim ból ic o por excelência, necessi

ta-se de

  outro

  que ofereça o

  banho

não apenas na posição de mero guia,

m a s  c o m o al g ué m que se apresenta

como parte da o rd em social na qual

o

  b a n h o

  é ta m b é m um a funçã o "

( p .

  2 66 ). Se, no exempl o dado , tra

ta-se d o

  b a n h o

  c o m o espaç o de

transmissão da cultura, o mesmo se

pod e di zer em relação ao aprend iza

do d a l ei tura e da esc ri ta, ao qual

mui tas cr ianças psicó ticas pod em ace

der, e que se revela co mo um a ferra

menta de tra tam ento preciosa.

Na Pré-Escola Terapêutica Lugar

de Vid a^ , aposta-se nessa mesm a dire

ç ã o .

  A Ed ucaç ão Terapêutica (Kupfer,

1 9 9 7 ) ,

  termo cunh ad o para fazer face

a

  um tipo de int erv enção no trato

de crianças com problemas de desen

vo lv im ento, é um conjunto de práti

c a s

  interd isc ipli nares de tratam ento,

com especial ênfase nas práti cas edu

cacionais ,

  que v isa à re to m ad a do

d esenvol vi mento glo bal da cri ança

ou à re to m ad a da estruturaç ão psí

quica

  int err ompid a ou à sustentação

do m ínim o de sujeito que um a crian

ç a

  possa ter construíd o .

U m dos eixos da Ed ucação Tera

pêutica é justamente a inclusão escolar:

"Aposta-se, c o m a inc l usão , no

poder subjetivante dos diferentes

  d i s -

cursos que são postos em circulação,

no interio r do c am po social , c om o

in tui to de asseg urar , sustentar ou

modelar lugares sociais para as crian

ç a s ,

  l evando em conta que, neste sen

tid o , o d isc urso (ou d isc urso s) em

torno  d o escol ar é parti cul arm ente

podero so. U m a desi gnaç ão de lug ar

social é especia l mente im por tante

para as c ri anças que enfrentam difi

culdades

  no estabelecim ento do laço

social ,

  c o m o é o caso da s c ri ança s

psicó ticas ou com transtornos graves.

Mesm o decadente, fal ida na sua capa

ci dade de sustentar uma trad iç ão de

ensino, a esco la pode ser um a insti

tuiç ão pod erosa quand o lh e pedem

que assine um a cert id ão de pertinên

c i a :

  quem está na esco la pode rece

ber o c ar im b o d e ' c ri anç a' . Ir à es

cola

  - c omo observa Jerusal insky - é

mel h o r que ir ao m ani c ô m i o " (Ku

pfer,  2 0 0 0 ) .

Lo go que se to rna possív el um a

entrada na escola regular, as crian

ç a s

  do Lugar de V id a passam a ser

ac o m panh ad as pelo g rupo P onte,

for mad o por profi ssio nais - psicó

logos

  esc ol ares e psic anal ist as - en

carr egados de ac o mpanh ar o percur

so da cr iança na esco la^ . Esses pro

fissionais rea l iz am so b retud o um

trab al ho de apo io ao professor, que

precisa

  sustentar justamente sua fun

çã o de pro d uzir enlace, em acrésci

m o à sua funçã o pedag óg ic a.

Assim, a defesa da inclusão esco

l a r

  não extrai seu fundam ento apenas

do respeito à c ondi ç ão de c id ad ania

a

  que qual quer c ri anç a tem d ireito .

A inc l usã o pro d uz aind a efei tos

ter apê uti c o s para a c ri anç a cuja

subjetivação

  encontra obstáculos que

um v el h o pát i o de esco l a ai nd a

pode ajudar a transpor.

A S   I L H A S   DE

I N T E L I G Ê N C I A

Deve-se ai nd a dizer à professo ra

que per g unta pela c apa c i d ad e de

Page 8: Por Que Ensinar a Quem Não Aprende

7/23/2019 Por Que Ensinar a Quem Não Aprende

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aprender dessas crianças algo sobre suas condições intelectuais. Evi

dentemente, essas cr ianças aprend em.  A l i á s ,  todas as crianças apren

dem m uito m ai s do que sonha a nossa vã pedagogia. A preocupa

ção co m os pro b lemas de aprend iz ag em de leitura e da escrita na

escola  mo d erna é tão grande, que mui to s educad ores ac ab am por

red uzi r a im ensa c apac id ad e de aprend er de um a cr iança ao seu

repertó rio de hab il id ad es para ler e escrever.

Po rém, as crianças psicó tic as e autistas possuem il has de inte

ligência  preservadas, que podem desaparecer caso não as ajudemos a

lhes

  dar sentido. Podem - por falta de sentido, de direção , porque

não são util iz ad as para enlaç á-l as no  Outro  - desaparecer, ou se

transfo rm ar em estereoti pias. Assim , a freqüência à escol a acab a

sendo um instrumento crucial , se não de crescimento, ao menos de

co nservaç ão das capacidad es co gnitiv as já adquirid as.

F inal mente, uma ressalv a. A inc lusão de cr ianças psicó tic as e

autistas não d eve ser feita "a qual quer custo", mas com mui to cui

dado. Já relatei em  outros  lugares a trágica história que se passou

na Noruega. "As tentativ as de pôr essas crianças na rede esco lar re

gular

  nunca fo ram de fácil execuçã o. To mem-se, por exempl o , as

experiências  européi as reportad as em um Col ó quio Internac io nal

realizado  na Noruega sobre esse tema. Al i se descrev em as tentati

vas

  feitas no sentido de manter em classes reg ulares do ensino pú

blico algumas crianças autistas e psicóticas:  elas  term inaram , depois

de se verificar que as escolas acabavam criando classes especiais, em

que havia apenas um a criança - exatamente a psicó tica ou a autista,

com quem o co nvív io se to rnara insupor táv el" (Kupfer,  2 0 0 0 ) .

Vale

  lem b ra r tam b é m que nem sempre a entrad a na esco la

pro d uz efeitos terapê utic os.  Dependendo  da posiç ão a part ir da

qual os pais  porão  seu fil ho na esco la, essa entrad a pod erá funci

onar como aquilo que  C a l l i g a r i s  (1989) chama de "injunção  fálica".

Para um a cr ianç a psicó tic a, a exigê ncia de c um pr im ent o de

ideais

  em relaçã o aos quais ela esteja muito distante  pode  funcionar

como d isparador de um a crise. Ao matri cul á-l a na esco la, a expec

tativa

  pode

  ser, por exemplo , que ela aprenda , e bem, e se  torne

um méd ic o famo so c omo o pai. Essa expectati va  pode  funcionar,

então, co mo um a injunção , uma or dem , uma exigê ncia de funcio

namento  dentro  do s referenciai s di tos fáli co s, o rd enad o res do

mundo  da neurose. E  pode  então aco ntecer que a cri ança não en

co ntre, d ig am os, em seu repertóri o psíquico , os recursos para res

ponder  a essa exigência. Precisará,  portanto,  criá-los, prod uzind o

algo

  semel hante ao delí ri o na psico se adulta .  C a l l i g a r i s  observa

que al gumas cr ianças psicót ic as pio ram ao entrar na esco la , o que

o faz supo r que a escola

  sempre

  terá esse efeito sobre as c ri anç as.

Sabemos no

  entanto

  que para muit as c ri anças a esco la o rg aniza ,

Page 9: Por Que Ensinar a Quem Não Aprende

7/23/2019 Por Que Ensinar a Quem Não Aprende

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produz apaziguamento, repõe as con

dições para o prosseguimento do tra

tamento. Assim, a observação de

  C a l l i -

garis  ajuda a lembrar que toda inclu

são de crianças psicóticas e autistas

precisa ser cuidadosa e acompanhada,

pod endo não ser recom endad a em al

guns

  m o mento s mais prob lem ático s

da v id a de um a cr iança. •

1

  9 9 0 ) .  A

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São

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P a t t o ,  M. H.

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  Psico logia

  e

  ideologia.

São Paul o, SP: T. A. Que ir oz .

NOTAS

A Escola Exper ime nt al de Bonne uil -s ur-

M a r n e

  íoi cria da em 1 9 6 9 po r Mau d

Man no ni , na França,

  para

  a br iga r as

  cri

anças débeis , psicóticas e auti stas, excl uídas

da rede regular de ensi no. Sob re

  essa esco

l a ,  ver o  n-  4 de  Est i los  da  Clínica.

7

Esta  seção  ta mb ém fo i pub l i ca da na

r e v i s t a   Escritos da Criança,

  e d i t a d a   p e l o

C e n t r o

  L y d i a C o r i a t , de P o r t o A l eg r e

(no prelo).

o

A Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida

é uma insti tui ção

  para

  tra tamento de

  cri

anças psicót icas e aut ist as que per te nce ao

Ins ti tut o de Psicolog ia da Unive rs ida de de

São Paulo.

Ver ar ti go sob re o gr up o Po nt e neste

mesmo  número .