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É ISSO QUE EU FAÇO Uma vida de Uma vida de amor e guerra amor e guerra Lynsey Addario

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Lombada 18mm

As memórias de uma fotógrafa cujas lentes retrataram praticamente todos

os grandes conflitos do século XXI,eternizando momentos que moldaram

por completo sua vida.

Lynsey Addario ainda tentava se estabelecerno fotojornalismo quando os atentados do 11de Setembro sacudiram o mundo. Por ser um dos poucos profi ssionais da época com alguma experiência no Afeganistão, ela foi chamada para voltar ao Oriente Médio e cobrir a inva-são americana. Foi quando fez uma escolha que se repetiria muitas vezes depois: abrir mão do conforto e da previsibilidade a fi m de correr o mundo confrontando com sua câmera as mais duras verdades.

As imagens captadas pelas lentes de Lynsey parecem buscar sempre um propósito maior. Nestas páginas, ela retrata os afegãos antes e depois do regime talibã, os cidadãos vitimadospela guerra e os insurgentes incompreendidos noIraque, as aldeias incendiadas e os incontáveis mortos em Darfur. Expõe a cultura de violência contra a mulher no Congo e narra em detalhes aocasião do próprio sequestro, orquestrado pelas forças pró-Kadafi durante a guerra civil na Líbia — uma história marcante que ganhou destaque na mídia internacional.

Apesar da presumível bravura, Lynsey não é de todo destemida. Do medo, ela tira o olhar de empatia essencial à profi ssão. Quando entrevista vítimas de estupro, quando foto-grafa um soldado alvejado em combate ou quando documenta a trágica vida das crianças famintas na Somália, é essa empatia que nostransporta para os lugares onde ela esteve, e então começamos a entender como o ímpeto de retratar a verdade triunfa sobre o terror.

Determinada a ser levada a sério em uma atividade dominada por homens, não foi semdilemas que Lynsey abriu seu caminho. Em vez de se obrigar a escolher entre a vida pessoal e a

profi ssional, ela aprendeu a procurar o equilíbrio: com o homem que veio a se tornar seu marido, vive um amor que não suplanta, mas sim com-plementa seu trabalho; e, com a maternidade, a profi ssional ganha em seu favor uma percepção ainda mais intensa da fragilidade da vida.

Testemunha de tantas insurreições, Lynsey sabe que não documenta apenas notícias, mas o próprio destino da humanidade. O que elafaz, com clareza, suavidade e beleza, é regis-trar a realidade muitas vezes em sua condiçãomais extrema. Mais do que um trabalho, issoé sua missão. Mais do que a história de umavida nas linhas de combate, É isso que eu façoé um testemunho tocante do custo humanoda guerra.

“Lentes em punho, Addario é uma artista da empatia, uma teste-munha não de sacrifícios e sofrimentos, mas de seres humanos,simplesmente.”

Boston Globe

“Como todo jornalista de guerra, Addario enfrenta a dissonância de habitar universos paralelos: um em que atrocidades indizíveis acon-tecem regularmente, outro em que crianças brincam com toda a segurança em parquinhos. Com a habilidade incomum de se conectar emocionalmente com seus fotografados, ela adentrou um mundo dedor e privações que a maioria das pessoas consideraria insuportável.”

The New York Times

“As imagens de Addario percorrem um espectro que vai da cruel-dade à delicadeza, do arrebatamento à ref lexão. A fotografia que capta a expressão de soldados americanos durante um ataque [no Afeganistão] é uma bruma de movimento e pânico; os retratos demulheres vítimas de estupro na República Democrática do Congosão de uma intimidade tocante.”

The Guardian

“A primeira cena é um soco gelado no estômago. As lentes de Addario capturam imagens de violência bárbara e sofrimento comovente, e seu talento, coragem e idealismo permeiam as páginas.”

Entertainment Weekly

“Memórias notáveis não só como um depoimento pessoal e profis-sional, mas também como tributo ao papel do fotojornalismo em documentar o sofrimento e a injustiça e a seu poder de inf luenciar a opinião pública e a política.”

Publishers Weekly

l y n s e y a dd a r io nasceu nos Estados Unidos e atua há duas décadas como foto-jornalista. Com trabalhos publicados regu-larmente em veículos como o Th e New York Times, a National Geographic e a Time, co-briu confl itos no Afeganistão, no Iraque, no Líbano, em Darfur e no Congo, e recebeudiversos prêmios, incluindo o MacArthur Genius Grant e o Pulitzer de Reportagem Internacional.

É ISSO QUE EU FAÇO

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É isso que eu faço

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É isso que eu façoUma vida de amor e guerra

Lynsey AddArio

TrAdução

AndreA GoTTLieb de CAsTro neves

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Cip-brAsiL. CATALoGAção nA pubLiCAção sindiCATo nACionAL dos ediTores de Livros, rj

A176i

Addario, LynseyÉ isso que eu faço: Uma vida de amor e guerra / Lynsey Addario ; tradução

Andrea Gottlieb de Castro Neves. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Intrínseca, 2016.

352 p. : il. ; 24 cm. Tradução de: It’s what I do: a photographer’s life of love and war Inclui índice ISBN 978-85-8057-922-2

1. Addario, Lynsey, 1973 - Narrativas pessoais. 2. Comunicação - Aspectos sociais. 3. Jornalismo - Aspectos sociais. I. Título.

16-29853 Cdd: 070.4 Cdu: 07

Copyright © 2015 Lukas, Inc.

TíTuLo oriGinAL It’s What I Do: A Photographer’s Life of Love and War

prepArAção Rayssa Galvão

revisão Carolina Rodrigues Rayana Faria

diAGrAmAção e AdApTAção de CApA ô de casa

desiGn de CApA Darren Haggar

imAGem de CApA Michael Goldfarb

[2016]

Todos os direitos desta edição reservados à

ediTorA inTrínseCA LTdA. Rua Marquês de São Vicente, 99/3o andar 22451-041 – Gávea Rio de Janeiro – RJ Tel./Fax: (21) 3206-7400 www.intrinseca.com.br

CrédiTos dAs foTos: Todas as imagens, à exceção das creditadas abaixo, são de Lynsey Addario.

Páginas 24-27: © Bryan Denton; 32, 34, 35, 39: cortesia da autora; 146: foto por Chang W. Lee / The New York Times / Redux; 205: © Bruce Chapman; 266-268: © Landon Nordeman; 295: cortesia da Associated Press.

Este é um livro de não ficção. No entanto, os nomes e as características pessoais de alguns indivíduos envolvidos foram modificados. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é involuntária e resultado de mera coincidência.

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Para Paul e Lukas, meus dois amores.

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Sumário

Prelúdio A J D A B I YA H , L Í B I A , M A R Ç O D E 2 0 1 1 1 9

PA R T E U M DESCOBRINDO O MUNDO: C O N N E C T I C U T , N O VA Y O R K ,

A R G E N T I N A , C U B A , Í N D I A , A F E G A N I S TÃ O

CApíTuLo 1Nada de segundas chances em Nova York 33

CApíTuLo 2Quantos filhos você tem? 58

CApíTuLo 3Estamos em guerra 84

PA R T E D O I S DEPOIS DO 11 DE SETEMBRO: PA Q U I S TÃ O ,

A F E G A N I S TÃ O , I R A Q U E

CApíTuLo 4Vocês, americanos, não são mais bem-vindos aqui 93

CApíTuLo 5Não estou tão preocupada com as balas 115

CApíTuLo 6Por favor, diga à mulher que não vamos machucá-la 147

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PA R T E T R Ê S ALGUM EQUILÍBRIO: S U D Ã O , C O N G O , I S TA M B U L , A F E G A N I S TÃ O ,

PA Q U I S TÃ O , F R A N Ç A , L Í B I A

CApíTuLo 7As mulheres são vítimas de seu local de nascimento 177

CApíTuLo 8Faça seu trabalho e volte quando terminar 198

CApíTuLo 9O lugar mais perigoso do mundo 210

CApíTuLo 10O motorista não resistiu 246

PA R T E Q U AT R O VIDA E MORTE: L Í B I A , N O VA Y O R K ,

Í N D I A , L O N D R E S

CApíTuLo 11Você vai morrer esta noite 277

CApíTuLo 12Um irmão que vai fazer muita falta 298

CApíTuLo 13Eu aconselharia você a não viajar 306

CApíTuLo 14Lukas 323

Epílogo D E V O LTA A O I R A Q U E 331

Agradecimentos 336

Índice 343

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Prelúdio

A J D A B I YA H , L Í B I A , M A R Ç O D E 2 0 1 1

Eu estava diante de um hospital de paredes sem tinta, sob a luz perfeita de um céu matinal em Ajdabiyah, uma cidadezinha no litoral norte da Líbia, a mais de oito-centos quilômetros de Trípoli. Eu e vários outros jornalistas observávamos um carro que fora atingido durante um ataque aéreo naquela manhã. A janela traseira explodira, e restos humanos estavam espalhados por todo o banco de trás. Havia parte de um cérebro no banco do passageiro, e a tampa interna do porta-malas estava cravejada com pedaços de crânio. Funcionários do hospital recolhiam os pedaços com cuidado e os colocavam em um saco. Peguei a câmera para fotogra-far uma cena que já tinha fotografado tantas vezes antes e em seguida abaixá-la, abrindo caminho para os outros fotógrafos. Mas não consegui fazer isso nesse dia.

Era março de 2011, início da Primavera Árabe. Depois de Tunísia e Egito irromperem em revoluções inesperadas, eufóricas e triunfantes contra ditado-res estabelecidos por muito tempo no poder — milhões de pessoas comuns gritando e dançando pelas ruas para celebrar a liberdade que tinham acabado de conquistar —, os líbios se revoltaram contra seu próprio ditador, Muammar al-Kadafi. Ele estava no governo havia mais de quarenta anos, financiando gru-pos terroristas no mundo inteiro enquanto torturava, matava e eliminava seus conterrâneos do mapa. Kadafi era louco.

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Eu não fizera a cobertura das revoluções na Tunísia e no Egito porque es-tava trabalhando no Afeganistão, e fiquei chateada por ter perdido momentos tão importantes da história. Não perderia a da Líbia. A revolução, no entanto, logo se transformou em guerra. Os soldados de infantaria de Kadafi, famosos pela brutalidade, invadiram cidades rebeldes, e a força aérea destruiu aviões transportados em caminhões. Nós, jornalistas, estávamos sem coletes à prova de balas. Não tínhamos imaginado que precisaríamos de capacetes.

Meu marido, Paul, telefonou. Tentávamos conversar uma vez por dia sem-pre que eu viajava, mas era raro o celular líbio ter sinal, e já fazia alguns dias que não nos falávamos.

— Oi, meu amor. Como você está?Ele ligava de Nova Délhi.— Estou cansada — respondi. Disse a ele que eu tinha conversado com

David Furst, meu editor no The New York Times, e perguntado se podia fina-lizar meu turno em mais ou menos uma semana. — Vou retornar para o hotel de Benghazi hoje à tarde e tentar ficar por lá até poder ir embora. Quero voltar para casa. — Tentei manter a voz estável. — Estou exausta. Tenho um mau pressentimento, acho que alguma coisa vai acontecer.

Não contei que, nas manhãs anteriores, havia relutado para sair da cama e demorado mais do que o normal para tomar o café instantâneo enquanto meus colegas e eu preparávamos as câmeras e colocávamos nosso material nos carros. Quando cobria guerras, em alguns dias eu tinha uma coragem sem limites, mas em outros, como aqueles na Líbia, eu me sentia aterrorizada desde o momen-to em que acordava. Dois dias antes, eu entregara um disco rígido cheio de imagens a outro fotógrafo, para que ele o levasse à minha agência caso eu não sobrevivesse. Se o pior acontecesse, pelo menos meu trabalho estaria a salvo.

— Você deveria voltar para Benghazi — sugeriu Paul. — Você sempre ouve seus instintos.

Duas semanas antes, quando cheguei a Benghazi, a cidade acabara de ser li-bertada e tinha uma atmosfera com a qual eu já estava familiarizada, como Kirkuk depois da queda de Saddam ou Kandahar depois da do Talibã: prédios haviam sido queimados; prisões, esvaziadas; e um governo paralelo fora instaurado. Ha-via uma aura de felicidade. Certo dia, visitei alguns homens que tinham se reunido

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Tropas da oposição atiram contra um helicóptero do governo que ataca a área com tiros de metralhadora. A oposição foi rechaçada e obrigada a voltar de Ben Jawad em direção a Ras Lanuf, um dia depois de ter tomado Ras Lanuf das tropas leais a Kadafi no leste da Líbia, 6 de março de 2011.

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À esquerda, no topo: rebeldes convocam voluntários para lutar em Benghazi, 1o de março de 2011. À esquerda ao lado: combatente rebelde consola o companheiro ferido em frente ao hospital em Ras Lanuf, 9 de março de 2011. No topo desta página: combatentes rebeldes e motoristas olham para o céu à espera de uma bomba e da chegada de aviões, 10 de março de 2011. Acima: combatentes rebeldes avançam na linha de frente em um dia de combate intenso em Ras Lanuf, 2011.

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na cidade para um exercício de treinamento militar. Parecia um esquete do Monty Python: havia líbios parados em rígidas posições de sentido, ou praticando a mar-cha dos soldados, ou admirando com verdadeiro espanto uma pilha de armas. Os rebeldes eram homens comuns — médicos, engenheiros, eletricistas — que tinham vestido qualquer roupa verde, jaqueta de couro ou tênis All Star que ti-vessem no guarda-roupa e pulado na traseira de caminhões cheios de lançadores de foguetes Katyusha e lançadores de granadas. Alguns arrastavam fuzis AK-47 enferrujados; outros empunhavam facas de caça. Alguns estavam desarmados. Quando partiram pela estrada costeira em direção a Trípoli, a capital, ainda do-minada por Kadafi, os jornalistas pularam nos sedãs antigos de quatro portas e os seguiram até o que viria a se tornar a linha de frente.

Viajamos ao lado deles, observando enquanto carregavam munição, e en-tão esperamos. Certa manhã, num dos primeiros dias naquele trecho deserto da estrada, um helicóptero de artilharia passou voando baixo, logo acima de nos-sas cabeças, e descarregou uma chuva de balas, cuspidas indiscriminadamente em todos nós. Os combatentes atiraram em direção aos helicópteros com seus AK-47. Um menino jogou uma pedra; outro, com os olhos cheios de terror, correu para se esconder atrás de um banco de areia. Eu me abaixei ao lado do capô de um carro velho e tirei uma foto do menino, percebendo que aquele seria um tipo diferente de guerra.

A linha de frente avançou por uma estrada árida, cercada de areia, que se estendia até o horizonte azul. Ao contrário das guerras no Iraque e no Afeganis-tão, não havia bunkers onde entrar, prédios onde se esconder ou Humvees atrás dos quais se agachar. Na Líbia, sempre que ouvíamos o zumbido de um avião militar seguíamos a mesma rotina: parávamos, olhávamos para cima e nos en-colhíamos à espera das saraivadas de tiros ou bombas, tentando adivinhar onde cairiam. Algumas pessoas se deitavam de costas; outras protegiam a cabeça; al-gumas rezavam; e outras corriam só por correr, mesmo que para lugar nenhum. Estávamos sempre expostos sob o imenso céu do Mediterrâneo.

Já fazia mais de dez anos que eu era fotógrafa de guerra, tendo coberto os conflitos no Afeganistão, no Iraque, no Sudão, na República Democrática do Congo e no Líbano. Eu nunca tinha visto nada tão assustador quanto na Líbia. O fotógrafo Robert Capa disse, certa vez: “Se suas fotos não são boas o bastan-

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te, é porque você não chegou perto o bastante.” Na Líbia, se não chegássemos perto o bastante, não haveria o que fotografar. E, ao nos aproximarmos, en-trávamos na linha de fogo. Naquela semana, vi alguns dos melhores fotojorna-listas do mercado — veteranos da Chechênia, do Afeganistão e da Bósnia — partirem quase imediatamente após as primeiras bombas. “Não vale a pena”, disseram. Houve diversos momentos em que também pensei: Isto é loucura. O que estou fazendo? Mas havia dias em que eu sentia aquela empolgação familiar e pensava: Estou vendo um levante acontecer. Estou vendo essas pessoas lutarem até a morte pela liberdade. Estou documentando o destino de uma sociedade que passou décadas oprimida. Sempre achamos que somos invencíveis — até nos ferirmos, levarmos um tiro ou sermos sequestrados. E já fazia anos que nada disso acontecia comigo.

Os outros jornalistas estavam deixando a cena do hospital. Eu sabia que era hora de voltar para a linha de frente. Os sons da guerra ecoaram à distân-cia — estilhaços, artilharia antiaérea, sirenes de ambulância. Eu não queria que Paul ouvisse nada daquilo. “Querido, preciso desligar. Nós nos vemos em breve, meu amor. Amo você.”

Há muito tempo, aprendi que é cruel deixar entes queridos preocupados. Digo a eles apenas o que precisam saber: onde estou, para onde vou e quando volto para casa.

e u e s TAvA L á fazendo uma cobertura para o The New York Times com três outros jornalistas premiados: Tyler Hicks, fotógrafo e amigo que, curiosa-mente, crescera comigo em Connecticut; Anthony Shadid, considerado por alguns o melhor correspondente a atuar no Oriente Médio; e Stephen Farrell, um jornalista anglo-irlandês que passara anos trabalhando em zonas de guerra. Somando nosso tempo de trabalho, tínhamos cerca de cinquenta anos de expe-riência em lugares terríveis. Havíamos entrado no país ilegalmente pelo Egito, acompanhados de hordas de jornalistas.

Deixamos o hospital do subúrbio juntos e seguimos para o centro de Ajdabiyah a fim de acompanhar a linha de frente. Anthony e Steve estavam em um carro, Tyler e eu em outro, com nosso motorista, Mohammed. Tinha sido difícil encon-

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trar um bom motorista na Líbia. Mohammed, um universitário de voz mansa, rosto jovial e com os dentes da frente separados, continuava nos levando mesmo depois que a maioria dos motoristas tinha desistido de dirigir. Para ele, o traba-lho era uma contribuição para a revolução. Ter um motorista como Mohammed, ligado a uma rede de outros motoristas e rebeldes, nos ajudava a decidir para onde poderíamos ir e por quanto tempo poderíamos ficar. As orientações dele muitas vezes determinavam nosso destino. Sua contribuição foi inestimável.

Quando nos aproximamos de uma estrada deserta no centro da cidade, bombas de artilharia atingiram o asfalto perto de nós, espalhando estilhaços em todas as direções. O motorista de Anthony e Steve parou de repente e se pôs a descarregar o veículo, deixando os pertences dos dois na estrada. Estava se demitindo. Seu irmão tinha levado um tiro na linha de frente. Sem hesitar, Mohammed parou e colocou o equipamento deles no porta-malas, então An-thony e Steve entraram no nosso carro. Fiquei apreensiva. Em zonas de guerra, os jornalistas muitas vezes viajam em comboios de dois veículos, para o caso de um ter problemas. Ter dois carros também é uma garantia de que, se um for atingido ou atacado, menos gente vai sofrer as consequências.

Um carro com quatro jornalistas era o equivalente a uma cozinha com chefs demais: cada um queria fazer uma coisa diferente. Enquanto seguíamos adiante, Anthony, Tyler, Steve e eu debatíamos o nível do perigo que estáva-mos correndo. Isso é comum para jornalistas e fotógrafos em zonas de guerra: uma negociação interminável sobre quem precisa de quê, quem quer ficar e quem quer ir embora. Como saber se temos informações e fotografias suficien-tes para contar a história com precisão? Queremos presenciar mais combates, conseguir as últimas notícias, continuar fazendo a cobertura até o último se-gundo imponderável antes de sermos feridos, capturados, mortos. Somos in-saciáveis por natureza: sempre queremos mais. Naquele momento, o consenso no carro era continuar trabalhando.

Ajdabiyah era uma cidade norte-africana próspera, perto do nível do mar, formada por construções cor de pêssego, marrom-claras e amarelas com varan-das de alvenaria e letreiros de cores fortes escritos em árabe. Os poucos civis nas ruas estavam fugindo. Corriam cheios de convicção, carregando seus pertences apoiados na cabeça. Um fluxo interminável de carros passava em alta velocidade

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por nós na direção oposta. Famílias espremidas ocupavam cada centímetro de picapes e sedãs de quatro portas; pilhas desorganizadas de roupas e cobertores transbordavam das janelas traseiras. Algumas famílias estavam agachadas em-baixo de lonas. Era a primeira vez que eu via mulheres e crianças na cidade de Ajdabiyah. Em uma sociedade conservadora como a da Líbia, as mulheres fica-vam reclusas. Eu só as via na rua naquele momento porque estavam partindo, indo para o leste, enquanto o conflito avançava na cidade vindo do oeste.

Eu temia que também fosse nossa hora de partir. O êxodo contínuo de civis indicava que os habitantes locais previam que Ajdabiyah cairia nas mãos das tropas de Kadafi. Será que já haviam chegado? Sabíamos o que aconteceria co-nosco se os homens de Kadafi descobrissem quatro jornalistas do Ocidente em território rebelde. Ele declarara, em discursos públicos, que todos os jornalistas no leste da Líbia eram espiões e terroristas e que, se encontrados, seriam mortos ou presos.

Voltamos ao hospital para trocar informações com outros jornalistas e con-tabilizar as baixas da batalha que se aproximava. Anthony, Steve e Tyler entra-ram para pegar os números de telefone de um médico líbio a fim de entrarem em contato à noite, de Benghazi, e descobrir o número final de baixas do dia. Os repórteres precisavam de fontes dentro da cidade para o caso de o poder mudar de mãos e não termos como voltar. Fiquei do outro lado da estrada, de frente para o hospital, para fotografar os líbios em fuga.

Na calçada onde eu estava, um fotógrafo francês que eu conhecia do Iraque e do Afeganistão discutia com vários outros conterrâneos qual seria o próximo passo. Eles falavam baixo, as vozes graves marcadas pelo sarcasmo habitual que os jornalistas usam para acalmar os nervos. De modo geral, os jornalistas franceses têm a fama de serem loucos e destemidos. Há uma piada que diz que, se os franceses saírem da zona de combate primeiro, você está em apuros. Laurent Van der Stockt, um fotógrafo de guerra com uma coragem notória que cobrira grande parte das maiores guerras das duas últimas décadas — e que já levara dois tiros, além de ter sido atingido por estilhaços de morteiro na frente de batalha —, observava a longa fila de carros que deixava a cidade.

Ele se virou para mim. “Estamos indo embora”, anunciou. “Está na hora de voltar para Benghazi.” Isso significava que haviam decidido abandonar a ação e

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ir para uma cidade a mais de 160 quilômetros (duas horas) de distância. Estavam encerrando o dia. Laurent decidira que o risco não compensava as fotos que po-deria tirar. Os franceses achavam que a situação estava perigosa demais.

Observei horrorizada eles entrarem nos carros, mas não disse nada. Eu não queria ser a fotógrafa covarde ou a garota aterrorizada atrapalhando o trabalho dos homens. Tyler, Anthony e Steve haviam passado, cada um, mais de uma década trabalhando em zonas de guerra: sabiam o que estavam fazendo. Talvez meus instintos estivessem confusos naquele dia. À medida que avançávamos de carro pelo interior de Ajdabiyah, eu olhava pela janela e tentava encontrar um lugar reconfortante em minha mente. As mesquitas da cidade avisavam aos fiéis que era hora de rezar.

Os carros continuavam passando na direção oposta. Éramos os únicos indo para aquele lado.

— Pessoal, é hora de ir — comentou Steve, e vi que tinha um aliado no medo.

— Também acho — concordei.Fiquei grata por Steve ter sido a voz da razão, mas não recebemos resposta

de Tyler nem de Anthony.

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As memórias de uma fotógrafa cujas lentes retrataram praticamente todos

os grandes conflitos do século XXI, eternizando momentos que moldaram

por completo sua vida.

Lynsey Addario ainda tentava se estabelecer no fotojornalismo quando os atentados do 11 de Setembro sacudiram o mundo. Por ser um dos poucos profi ssionais da época com alguma experiência no Afeganistão, ela foi chamada para voltar ao Oriente Médio e cobrir a inva-são americana. Foi quando fez uma escolha que se repetiria muitas vezes depois: abrir mão do conforto e da previsibilidade a fi m de correr o mundo confrontando com sua câmera as mais duras verdades.

As imagens captadas pelas lentes de Lynsey parecem buscar sempre um propósito maior. Nestas páginas, ela retrata os afegãos antes e depois do regime talibã, os cidadãos vitimados pela guerra e os insurgentes incompreendidos no Iraque, as aldeias incendiadas e os incontáveis mortos em Darfur. Expõe a cultura de violência contra a mulher no Congo e narra em detalhes a ocasião do próprio sequestro, orquestrado pelas forças pró-Kadafi durante a guerra civil na Líbia — uma história marcante que ganhou destaque na mídia internacional.

Apesar da presumível bravura, Lynsey não é de todo destemida. Do medo, ela tira o olhar de empatia essencial à profi ssão. Quando entrevista vítimas de estupro, quando foto-grafa um soldado alvejado em combate ou quando documenta a trágica vida das crianças famintas na Somália, é essa empatia que nos transporta para os lugares onde ela esteve, e então começamos a entender como o ímpeto de retratar a verdade triunfa sobre o terror.

Determinada a ser levada a sério em uma atividade dominada por homens, não foi sem dilemas que Lynsey abriu seu caminho. Em vez de se obrigar a escolher entre a vida pessoal e a

profi ssional, ela aprendeu a procurar o equilíbrio: com o homem que veio a se tornar seu marido, vive um amor que não suplanta, mas sim com-plementa seu trabalho; e, com a maternidade, a profi ssional ganha em seu favor uma percepção ainda mais intensa da fragilidade da vida.

Testemunha de tantas insurreições, Lynsey sabe que não documenta apenas notícias, mas o próprio destino da humanidade. O que elafaz, com clareza, suavidade e beleza, é regis-trar a realidade muitas vezes em sua condiçãomais extrema. Mais do que um trabalho, issoé sua missão. Mais do que a história de umavida nas linhas de combate, É isso que eu façoé um testemunho tocante do custo humanoda guerra.

“Lentes em punho, Addario é uma artista da empatia, uma teste-munha não de sacrifícios e sofrimentos, mas de seres humanos, simplesmente.”

Boston Globe

“Como todo jornalista de guerra, Addario enfrenta a dissonância de habitar universos paralelos: um em que atrocidades indizíveis acon-tecem regularmente, outro em que crianças brincam com toda a segurança em parquinhos. Com a habilidade incomum de se conectar emocionalmente com seus fotografados, ela adentrou um mundo de dor e privações que a maioria das pessoas consideraria insuportável.”

The New York Times

“As imagens de Addario percorrem um espectro que vai da cruel-dade à delicadeza, do arrebatamento à ref lexão. A fotografia que capta a expressão de soldados americanos durante um ataque [no Afeganistão] é uma bruma de movimento e pânico; os retratos de mulheres vítimas de estupro na República Democrática do Congo são de uma intimidade tocante.”

The Guardian

“A primeira cena é um soco gelado no estômago. As lentes de Addario capturam imagens de violência bárbara e sofrimento comovente, e seu talento, coragem e idealismo permeiam as páginas.”

Entertainment Weekly

“Memórias notáveis não só como um depoimento pessoal e profis-sional, mas também como tributo ao papel do fotojornalismo em documentar o sofrimento e a injustiça e a seu poder de inf luenciar a opinião pública e a política.”

Publishers Weekly

l y n s e y a dd a r io nasceu nos Estados Unidos e atua há duas décadas como foto-jornalista. Com trabalhos publicados regu-larmente em veículos como o Th e New York Times, a National Geographic e a Time, co-briu confl itos no Afeganistão, no Iraque, no Líbano, em Darfur e no Congo, e recebeu diversos prêmios, incluindo o MacArthur Genius Grant e o Pulitzer de Reportagem Internacional.

É ISSO QUE EU FAÇO

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É isso

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Uma vida deUma vida deamor e guerraamor e guerra

Lynsey Addario

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