por cláudio pastro

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 por Cláudio Pastro egundo o Gênesis, Deus ao criar-nos, sopra um sopro de vida, sua própria vida, no ser inanimado e, assim, passamos a existir. Na longa história da Igreja, sobretudo nos primeiros séculos, os cristãos, os hebreus e os muçulmanos sempre procuravam concordar a sua voz com o sopro do Espírito. A música e o canto concordavam com a Palavra celebrada, seguindo o ritmo da respiração e da pulsação do coração. Até hoje, o grande canto gregoriano (o canto principal da Igreja do Ocidente) deve assim ser cantado e os cantores devem procurar cantar baixo, ouvindo a voz de seus vizinhos cantores. Tudo é harmonia.  Não é o canto e o cantor que devem prevalecer, mas sim, o som de Deus na Assembléia. A norma sempre foi: "que a voz concorde com a Palavra celebrada". Recentemente, participei de duas celebrações. Durante essas celebrações o volume tão alto do som dos instrument os e das vozes provocaram nos meus ouvidos uma certa dor. Esse fenômeno, não me parecendo ser sadio para tratar do louvor a Deus, me levou a refletir sobre o sentido da música e da voz humana. A MÚSICA A palavra vem do grego mousikê (arte das musas, na mitologia grega, que presidiam as belas artes). Para nós, a música se tornou a arte por excelência. Para o cristão, a música vem de Deus ou é apenas uma parafernália cacofôni ca, com influências atuais, mas que não revelam o som de Deus. Pode até mascarar o sentido da própria celebração. Escutemos o Concílio Vaticano II: "A tradição musical de toda a Igreja é um tesouro de inestimável valor, que se sobressai entre todas as outras expressões de arte, sobretudo porque o canto sagrado, intimamente unido à palavra, constitui parte necessária ou integrante da liturgia solene. Um monge no mosteiro de Keur Moussa, Senegal, toca a hora, acompanhando a salmodia do Ofício Divino, em que a voz humana (sopro) prevalece

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5/10/2018 por Cláudio Pastro - slidepdf.com

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por Cláudio Pastro

egundo o Gênesis, Deus ao criar-nos, sopra um sopro de vida, sua própria vida, no ser 

inanimado e, assim, passamos a existir. Na longa história da Igreja, sobretudo nos primeirosséculos, os cristãos, os hebreus e os muçulmanos sempre procuravam concordar a sua vozcom o sopro do Espírito. A música e o canto concordavam com a Palavra celebrada,seguindo o ritmo da respiração e da pulsação do coração. Até hoje, o grande cantogregoriano (o canto principal da Igreja do Ocidente) deve assim ser cantado e os cantoresdevem procurar cantar baixo, ouvindo a voz de seus vizinhos cantores. Tudo é harmonia.

 Não é o canto e o cantor que devem prevalecer, mas sim,o som de Deus na Assembléia. A norma sempre foi: "quea voz concorde com a Palavra celebrada".

Recentemente, participei de duas celebrações. Duranteessas celebrações o volume tão alto do som dosinstrumentos e das vozes provocaram nos meus ouvidosuma certa dor. Esse fenômeno, não me parecendo ser sadio para tratar do louvor a Deus, me levou a refletir sobre o sentido da música e da voz humana.

A MÚSICA

A palavra vem do grego mousikê (arte das musas, na

mitologia grega, que presidiam as belas artes). Para nós, amúsica se tornou a arte por excelência. Para o cristão, amúsica vem de Deus ou é apenas uma parafernáliacacofônica, com influências atuais, mas que não revelamo som de Deus. Pode até mascarar o sentido da própriacelebração. Escutemos o Concílio Vaticano II:

"A tradição musical de toda a Igreja é um tesouro de inestimável valor, que se sobressaientre todas as outras expressões de arte, sobretudo porque o canto sagrado, intimamenteunido à palavra, constitui parte necessária ou integrante da liturgia solene.

Um monge no mosteiro de Keur Moussa,Senegal, toca a hora, acompanhando asalmodia do Ofício Divino, em que a vozhumana (sopro) prevalece

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"Se prestarmos atenção ao silêncio, será fácil orar. A nossa vida de oração émuito prejudicada, quando nossos corações não estão em silêncio."Madre Tereza de Calcutá

O canto sacro foi enaltecido quer pela Sagrada Escritura (cf. Ef 5, 19; Col 3, 16),quer pelos santos Padres e pelos romanos pontífices, que recentemente, a começar  por são Pio X, salientaram, com insistência, a função ministerial da música sacra noculto divino. A Igreja aprova e admite no culto divino todas as formas de verdadeiraarte, dotadas das qualidades devidas (...) não perdendo de vista o fim da músicasacra, que é a glória de Deus e a santificação dos fiéis" (Constituição Sacrosanctum

Concilium sobre a Sagrada Liturgia - 112).

"Em certas regiões, sobretudo nas missões, há povos com tradição musical própria que temexcepcional importância na sua vida religiosa e social. (...)

 No culto divino podem ser utilizados muitos outros instrumentos (além do órgão), segundo o parecer e o consentimento da autoridade (...) contanto que esses instrumentos sejamadequados ao uso sacro, ou possam a ele se adaptar, condigam com a dignidade do templo efavoreçam realmente a edificação dos fiéis" (idem - 119.120).

A história recente da Igreja sublinha o acento dado à participação dos fiéis, o que deu a possibilidade a novas músicas. A música hoje, na Igreja, sofre forte influência de umsociologismo e modismo (ritmos e instrumentos) e nem sempre brota da meditação e dacontemplação. Perde a música (enquanto obra de arte) e, aos poucos, a Igreja perde seureferencial, sua identidade.

"O silêncio é a linguagem de quem ama; é melhor que a palavra humana renuncie e seexprima com afeto. Somente a alma, na sua linguagem silenciosa, consegue fazer o quesentimos." Santa Clara de Assis

Por exemplo, imaginem se os budistas começassem a cantar "sambinhas" ou "músicamelosa" feita por um clã pietista? Hoje, as composições utilizam a música conhecida por todos. Novos talentos se manifestam, mas, muitas vezes, sem uma reflexão suficiente. Hámuita generosidade e belas novidades, mas a noção de "festa" é, às vezes, exagerada, comcelebrações que mais se assemelham "a terapias em grupos!". O silêncio nas liturgias quasenão existe mais.

Há também o perigo de deixar a música nas mãos de poucos (elites ou não). A nossa músicareligiosa recebe pelo menos duas influências: a da música comercial e a da música 'rock' eseus derivados como a "techno" que nos grandes encontros de massa são vetores de paixões

 primárias, desenvolvendo um caráter cultual, mas com um papel de anti-culto cristão.

As missas shows, o bateção de palmas, o barulho pentecostalista nada têm a ver com odrama humano e menos ainda com a discreta alegria pascal de homens renovados peloBatismo. Tais atitudes são linguagens do momento, muitas vezes desesperadoras e não alinguagem de quem vive em presença do Sagrado e com o santo temor. Nesse sentido, aIgreja tem a experiência de 2000 anos. O papel da música é louvar o Senhor e permitir que a

Palavra da Escritura centralize e tranqüilize nossa vida.

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O CANTO

Do ponto de vista da expressão humana, o canto constitui algo a mais - é umavalorização da linguagem. Ele procura "dizer", desabrochando; quando a palavra

é pronunciada, o canto dá aos sentimentos humanos toda a sua verdadeiraexpressão. "Quem canta bem, reza duas vezes" disse Santo Agostinho. Cantar 

 juntos manifesta e estimula a unidade dos corações.

Se a liturgia manifesta a celebração da atividade humana voltada para Deus, a celebraçãoserá completa na medida em que o canto com a música que o sustenta é a expressão

 privilegiada da alma humana. 'Quem ama, canta' (cantare amantis est), disse ainda SantoAgostinho. O povo que participa da liturgia da Igreja deve se deixar levar, vibrar e exultar com todo o seu ser. O sabor dos salmos nos acostuma a manifestar a nossa alegria, os nossosdesejos, as nossas dores, a nossa salvação.

O canto diário dos Salmos pela manhã (laudes) e à tarde (vésperas), chamado de OfícioDivino, é o único canto e oração oficial da Igreja (cantado por todos os cristãos, religiosos eleigos). Nos mosteiros, ainda hoje e até no passado recente, essa forma de oração era feitasete vezes ao dia por toda a Igreja. A reza do Rosário e outras orações embora não oficiais,fazem parte da tradição da piedade cristã e ajudam muito o povo.

A interpretação dos Salmos, ao mesmo tempo pneumatológica e cristológica, se aplicatambém ao domínio da música: é o Espírito Santo que ensinou o canto dos Salmos a Davi e

 por ele ao povo de Israel e depois à Igreja. A linguagem musical na Igreja é um dom doEspírito Santo, é uma verdadeira "glossologia", língua nova, vinda do Espírito Santo. É bom

notar que a música tem um grande lugar na religião bíblica. Pode-se dizer que no encontrodo homem com Deus, a palavra não basta.

O CANTO TRANSFIGURA A PALAVRA OU A DESTRÓI

A música e o canto, em si, quando beleza universal é já "falar em línguas", pois todos sãotocados, criando-se assim a comunhão das mentes, dos corações e do ser "divino e humano"que bem o somos. A palavra 'cantar,' nos Salmos, indica um canto sustentado por uminstrumento (com cordas).

A Bíblia dos Setenta traduz a palavra zamir por  psallein, que significa tocar (e de modo

especial um instrumento com cordas). Esta palavra encontra-se no início de cada salmo. NaBíblia, o canto aparece pela primeira vez no fim da passagem do Mar Vermelho: "EntãoMoisés cantou com os filhos de Israel este cântico ao Senhor. Disseram: Quero cantar aoSenhor, ele se sobre-exaltou!..." (Ex 15, 1).

 No livro de Apocalipse, o canto de Moisés se torna o canto do Cordeiro: "Vi...de pé, sobre omar de cristal, os vencedores da besta... eles empunhavam as harpas de Deus e cantavam ocântico de Moisés, o servo de Deus, e o cântico do Cordeiro..." (Ap 15, 2-3). Assim diantedos monstros, o Cordeiro imolado vence! Na história da Igreja, o canto gregoriano tem um

 papel especial (Cf. Sacrosanctum Concilium - 116). Este canto adquiriu a sua estrutura aoredor do séc.VIII. O canto gregoriano é a conjunção das tradições romana e franca. CarlosMagno ajudou na sua difusão.

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O canto polifônico apareceu no fim da Idade Média e até hoje teve muito sucesso. A IgrejaOriental o conhece e o pratica, sendo usado tão somente pela voz (o sopro), sem o uso deinstrumentos. Os cantos litúrgicos são úteis na medida em que eles nos fazem rezar, tomandocomo referência a beleza divina!

Por isso, três meios podem ser sugeridos para discernir como o culto cristão pode ser ligadocom o Logos, a Sabedoria, a Palavra de Deus:

1.º) Quando ele faz referência às intervenções de Deus na Bíblia e prolongadas na história eatestadas pela liturgia. A Páscoa de Cristo será para sempre o centro inabalável: morte,ressurreição e ascensão. Cantamos essa vitória e a nossa redenção.

2.º) Saber rezar, cantar e tocar música diante de Deus é um dom do Espírito Santo: "... o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis" (Rm 8, 26). Mas é precisotambém talento e profissionalismo.

3.º) O Verbo de Deus - Jesus Cristo - é o sentido da Criação, da nossa história pessoal ecomunitária. A dimensão cósmica da liturgia cristã é real. Ela se expressa de modo especial

 pelo canto do Trisagião que nos une aos Querubins e Serafins: "Santo, santo, santo, o Senhor de todo o poder, sua gloria enche a terra inteira!" (Is 6, 3) O Santo, santo, santo... e a única

 prece que na Missa deveria sempre ser cantada. Unimo-nos aos céus.

O homem teria vantagem se inspirasse na música interior do cosmos. A música humana será bela na medida em que ela participa intimamente das leis musicais do cosmos. Hoje, amúsica está contaminada pelo subjetivismo, a inflação do eu. A nossa referência à beleza

trinitária deve ser a única fonte. A alegria da fé a nutre! A verdadeira arte nasce da sede deDeus e da oração, do UNO, em si.

Louvai o Senhor Deus...Louvai-o com o toque da trombeta,louvai-o com a harpa e com a cítara!Louvai-o com a dança e o tambor,louvai-o com as cordas e as flautas!Louvai-o com os címbalos sonoros,louvai-o com os címbalos de jubilo!Louve a Deus tudo o que vive e que respira,

tudo cante os louvores do Senhor! (Sl 150)

"Aos músicos e cantores seja dada uma verdadeira formação litúrgica".(Sacrosanctum Concilium - 115)