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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA
UM DIPLOMATA NA REPÚBLICA: A MISSÃO DO CONDE DE PAÇO D’ARCOS NO BRASIL (1891-1893).
JOÃO JÚLIO GOMES DOS SANTOS JÚNIOR
Porto Alegre
2010
1
JOÃO JÚLIO GOMES DOS SANTOS JÚNIOR
UM DIPLOMATA NA REPÚBLICA: A MISSÃO DO CONDE DE PAÇO D’ARCOS NO BRASIL (1891-1893).
Dissertação apresentada como requisito parcial e final para a obtenção do título de Mestre junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Orientador: Prof. Dr. Flávio Madureira Heinz
Porto Alegre, março de 2010.
2
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
S237d Santos Júnior, João Júlio Gomes dos
Um diplomata na república: a missão do Conde de Paço D’arcos no Brasil (1891-1893). / João Júlio Gomes dos Santos Júnior. – Porto Alegre, 2010.
162 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de
de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS.
Orientação: Prof. Dr. Flávio Madureira Heinz. 1. Brasil – Relações Exteriores - História. 2. Brasil
– História Política. 3. Conde de Paço D’Arcos. 4. Relações Internacionais – Brasil – Portugal. 5. Diplomacia - Brasil – História. 6. Diplomacia - Portugal – História. 7. Revoltas Regionais. I. Heinz, Flávio Madureira. II. Título.
CDD 981.65056 981.0622
Ficha elaborada pela bibliotecária Cíntia Borges Greff CRB 10/1437
3
JOÃO JÚLIO GOMES DOS SANTOS JÚNIOR
UM DIPLOMATA NA REPÚBLICA: A MISSÃO DO CONDE DE PAÇO D’ARCOS NO BRASIL (1891-1893).
Dissertação apresentada como requisito parcial e final para a obtenção do título de Mestre junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Aprovada em_______ de ________________de __________
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. Flávio Madureira Heinz – PUCRS
____________________________________________
Prof. Dr. Helder Gordim da Silveira – PUCRS
____________________________________________
Prof. Dr. Renato Luis do Couto Neto e Lemos – UFRJ
____________________________________________
4
AGRADECIMENTOS
Primeiramente gostaria de agradecer à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, que me concedeu a oportunidade única de cursar o Mestrado em História das
Sociedades Ibéricas e Americanas. A estrutura de ensino e pesquisa que essa universidade
coloca a disposição dos seus alunos é, sem dúvida, um diferencial que coloca essa instituição
entre as melhores do país.
Da mesma forma, gostaria de agradecer ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq)
que me concedeu uma bolsa integral entre Março de 2008 e Março de 2010. Essa bolsa
possibilitou que eu me dedicasse exclusivamente à pesquisa e que viabilizasse o sonho de
cursar uma pós-graduação sem muitas preocupações financeiras.
Gostaria de agradecer nominalmente os membros da banca avaliadora dessa
dissertação: Prof. Dr. Flávio Madureira Heinz (orientador), Helder Gordim da Silveira
(PUCRS) e Renato Luís do Couto Neto e Lemos (UFRJ).
O agradecimento ao professor Flávio merece se destacar não só pelo profissional
qualificado, sério e dedicado que ele é, mas por ter aceitado a empreitada de assumir a minha
orientação depois que o meu antigo orientador, o Prof. Dr. Braz Augusto Aquino Brancato,
faleceu no mês de Julho de 2008.
Agradeço, igualmente, à todos professores com quem eu tive a oportunidade de ser
aluno durante o mestrado, e que de certa forma, colaboraram para realização deste trabalho:
Flávio Madureira Heinz, Helder Gordim da Silveira, Janete Silveira Abrão, Núncia
Constantino, Jurandir Malerba, Carla Brandalise (UFRGS). Da mesma forma, agradeço à
Carla e o Adílson, secretários da pós-graduação, sempre dispostos a ajudar nas inúmeras
dúvidas institucionais.
Não poderia deixar de agradecer aos colegas e amigos da PUCRS, da UFRGS que
fizeram com que os dois anos do mestrado fossem intercalados por inúmeras “discussões
banais” e “trivialidades frutíferas” – com o perdão do trocadilho. Entre os colegas da UFRGS,
destaco o Icaro Bittencourt, Fabrício Antônio Antunes Soares e Jaisson Oliveira, três grandes
amigos desde o tempo da graduação. Dos amigos e amigas da PUCRS, menciono as meninas
do “quarteto mágico”, que quando se reúnem, não deixam os outros falar: Sabrina Steinke,
Daniela Queiroz Campos, Paula Rafaela da Silva e Mariana Flores da Cunha Thompson
Flores. Também os colegas Hugo Hruby, Andrius Estevam Noronha e Alex Jacques da Costa.
5
Muitos amigos, colegas e professores ficaram de fora dessa lista, porém, não podia
deixar de mencionar outros dois amigos em particular, ambos residentes em Santa Maria. O
primeiro Cirilo Nunes da Silva, grande amigo desde a graduação. O segundo é Alexandre
Maccari Ferreira, companheiro de todas as horas e “professor de cinema” de todos nós. O
Alexandre ainda teve a gentileza de aceitar fazer a revisão gramatical dessa dissertação. Sou
muito grato a ele por isso.
Gostaria de agradecer a toda minha família que sempre me apoiou
incondicionalmente, e acreditou em mim, às vezes mais do que eu mesmo. Hoje eu me
orgulho em dizer que graças a esse apoio familiar eu sou o primeiro da nossa família a
concluir uma pós-graduação no nível de mestrado. O meu agradecimento vai para: Vó Vany,
a grande matriarca da família, Rita Nascimento, Guilherme Nascimento, Getúlio Nascimento,
Jadna Nascimento, Alzira Nascimento e todos os “Pires” (são muitos), Alessandro
Nascimento, que além de ser meu único irmão, recentemente, junto com a Carol Parissoto, me
presenteou com a minha afilhada Luiza. Também agradeço à minha irmã Juliana Nascimento
Santos, que eu sei que é uma pessoa que eu posso contar para o resto da minha vida.
Agradeço em especial aos meus pais, Raquel Petri do Nascimento e João Júlio Gomes
dos Santos, que são, sem dúvidas, as duas pessoas mais incríveis desse mundo! Todo carinho,
apoio irrestrito e incomensurável que vocês me dedicaram me ensinou o significado da
palavra amor. Não há palavras de agradecimento que caibam ou que expressem o que eu sinto
por vocês. Vocês são as pessoas mais preciosas, honestas, humildes e verdadeiras que eu já
conheci, e me orgulho muito em dizer que sou filho de vocês!
Por último, porém não menos importante, um agradecimento em especial à Carolina
Cauduro Dias de Paiva, por todo carinho, compreensão, cumplicidade. Você é uma pessoa
maravilhosa, amiga e verdadeira. Desde que te conheci os dias são mais coloridos.
A todos,
Muito Obrigado!
6
“Tudo isto que se passa seria por demais caricato se não fosse terrível! O Brazil é grande e novo, salvar-se-ha! Mas parecem todos apostados em o perder!” O Conde de Paço D’Arcos ao Ministro Costa Lobo, 14 de Março de 1892.
7
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo analisar a produção documental de Carlos Eugênio Corrêa
da Silva, o Conde de Paço D’Arcos, que foi o primeiro diplomata a representar Portugal na
República brasileira. Sua Missão Diplomática foi entre 2 de Junho de 1891 e 20 de Novembro
de 1893. No transcorrer desse período ele produziu um vasto acervo documental sobre a
situação política brasileira. Para compreender suas impressões políticas, realizamos um
trabalho de contextualização do indivíduo para mostrar que sua visão de mundo foi um
reflexo de sua formação político-profissional. Nesse sentido, os argumentos de defesas da
ordem social e da hierarquia militar são elementos recorrentes em toda sua Missão
Diplomática, com especial destaque para a Revolução Federalista e a Revolta da Armada. A
utilização de fontes diplomáticas no transcorrer da pesquisa em nada diminui a proposta dessa
pesquisa, que seja compreender a leitura política de um diplomata na República brasileira.
Palavras-chave: Conde de Paço D’Arcos, diplomacia, Brasil e Portugal, política, revoltas
regionais.
8
ABSTRACT
The present research has the objective of analyse the documental production of Carlos
Eugenio Correa da Silva, known as Conde de Paço D’Arcos, who became the first diplomat to
represent Portugal in the Brazilian Republic. His diplomatic mission occurred between 2nd
June 1891 and 20th November 1893. Throughout this period he produced an extensive
documentary collection regarding the Brazilian political situation. In order to comprehend his
political impressions, we developed a contextualization of the individual attempting to depict
that his point of view concerning the world as a whole was a reflexion of his past politic-
professional maturation. Therefore, the supporting reasoning of the social order and of the
military hierarchy are recurrent elements across his diplomatic mission, with special
noteworthiness to the 'Revolução Federalista' (Federalist Revolution) and the 'Revolta da
Armada' (Armed Revolt). The usage of diplomatic sources in the course of the research does
not diminish the proposed main subject whatsoever, which is to make sense of the political
perspective of a diplomat in the Brazilian Republic.
Key words: Conde de Paço D’Arcos, diplomacy, Brazil and Portugal, politics, local revolts.
9
LISTA DE FIGURAS E TABELAS
FIGURA 1 – O Conde de Paco D’Arcos em traje militar........................................................14
FIGURA 2 – O Conde de Paço D’Arcos em traje civil............................................................14
FIGURA 3 – Gravura ilustrativa da repressão ao movimento de 31 de Janeiro de 1891.........17
FIGURA 4 – Organograma das instituições militares da Marinha portuguesa........................29
FIGURA 5 – Organograma da formação das escolas navais de Brasil e Portugal...................30
FIGURA 6 – Organograma da sucessão dinástica de Portugal.................................................41
FIGURA 7 – Conde de Tomar, Duque de Palmela, Duque de Saldanha e Duque de
Terceira.....................................................................................................................................47
FIGURA 8 – Foto de uma caleche............................................................................................51
FIGURA 9 – Organograma da hierarquia diplomática de Portugal no Brasil no fim do século
XIX............................................................................................................................................64
TABELA 1 – Relação da história de Portugal com a trajetória do indivíduo Carlos Eugênio
Corrêa da Silva..........................................................................................................................36
10
SUMÁRIO
RESUMO.................................................................................................................................. 7
ABSTRACT.............................................................................................................................. 8
LISTA DE FIGURAS E TABELAS....................................................................................... 9
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................13
CAPÍTULO 1 - FORMADO PARA RESPEITAR, TREINADO PARA CONSERVAR:
A contextualização do Conde de Paço D’Arcos....................................................................26
1.1 A formação militar........................................................................................................27
1.2 As origens do conservadorismo político.......................................................................37
1.2.1 A Revolução de 9 de Setembro de 1836.......................................................................42
1.2.2 A Maria da Fonte e a Guerra Civil da Patuléia.............................................................46
1.2.3 A Regeneração..............................................................................................................49
1.2.4 As duas fases da política portuguesa após a Regeneração............................................52
Conclusões................................................................................................................................55
CAPÍTULO 2 - A ORDEM SOCIAL E HIERÁRQUICA À OUTRANCE: A análise das
apreciações do Conde de Paço D’Arcos sobre a política nacional brasileira....................57
2.1 O disciplinador social....................................................................................................59
2.1.1 Situação nos estados......................................................................................................60
2.1.2 Visões do Caos..............................................................................................................70
2.2 O disciplinador militar..................................................................................................76
2.1.2 Os antecedentes.............................................................................................................76
2.2.2 As (im)pressões em assuntos militares.........................................................................79
2.3 Análises do meio político..............................................................................................89
2.3.1 Jacobinismo...................................................................................................................90
2.3.2 Monarquismo................................................................................................................99
11
CAPÍTULO 3 - FOCOS DE INSTABILIDADE: A Revolução Federalista e a Revolta da
Armada..................................................................................................................................104
3.1 A Revolução Federalista.............................................................................................106
3.1.1 A política rio-grandense antes do Golpe de 3 de Novembro de 1891........................107
3.1.2 A interpretação original..............................................................................................114
3.2 A Revolta da Armada..................................................................................................124
3.2.1 As primeiras contestações...........................................................................................125
3.2.2 Para manter a ordem: ville ouverte..............................................................................130
3.2.3 Os “bailes” da discórdia diplomática..........................................................................138
CONCLUSÃO.......................................................................................................................148
REFERÊNCIAS....................................................................................................................154
Anexo 1...................................................................................................................................162
13
INTRODUÇÃO
Dom Carlos por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves d’aquem e a’lem mar em Africa Senhor da Guiné o da Conquista, Navegação e Commercio da Ethiopia, Arabia, Pérsia e da India etc. Queire muito saudar ao Generalíssimo Manoel Deodoro da Fonseca Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brazil, como aquelle que muito estimo e preso. Desejando ter junto de Vossa Pessoa quem interpretando fielmente os sentimentos que me animam, possa contribuir para manter e estreitar os laços de amizade que felizmente subsistem entre Portugal e o Brazil, e merecendo-me pelo seu reconhecido prestimo e comprovado zêlo no serviço do Estado, a mais plena confiança o Conde de Paço d’Arcos, Carlos Eugênio Garcia da Silva, capital de Mar e Guerra, do Meu Conselho e Ajudante de Campo honorario Commendador das Ordens de Nosso Senhor de Jesus Cristo e da de São Bento d’Aviz, Cavalleiro das Ordens de Nossa Senhora da Conceição de Villa Viçoza, da Torre e Espada do Valor, lealdade e merito e São Bento de d’Aviz, Condecorado com as medalhas militares de Gran Cruz da Ordem da Corôa de Sião Commendador de Carlos III de Hespenha e socio de varias sociedades scientificas, resolvi acredital-o, como por esta o acredito junto da Vossa Pessoa na qualidade de Meu Enviado Extraodinario e Ministro Plenipotenciario. As qualidades que distinguem este Ministro dão-Me a bem fundada esperança de que elle saberá desempenhar satisfatoriamente a Missão que lhe é conferida. Rogo-vos pois queiraes dar inteiro credito a tudo quanto o mesmo Conde Vos expuser da Minha parte, especialmente pelo que respeita aos sinceros votos que faço pela prosperidade da Nação brazileira e aos sentimentos de amizade que professo pela Vossa Pessoa.
Generalíssimo Manoel Deodoro da Fonseca, Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brazil. Nosso Senhor Haja a Vossa Pessoa em Sua Santa Guarda. Escripta no Palacio de Belem aos sete dias do mez de Maio de mil oitocentos e noventa e um.
El Rei 1.
Essa Carta Regia (ou Real Credencial) foi entregue ao Ministro das Relações
Exteriores do Brasil, Justo Leite Pereira Chermont, no dia 12 de Junho de 1891. Esse
documento acreditou o Capitão de Mar e Guerra, o Conde de Paço D’Arcos, como diplomata
para representar o governo de Portugal junto ao governo constitucional do Marechal Deodoro
da Fonseca. Essa nomeação representou o reatamento das relações diplomáticas oficiais entre
Brasil e Portugal após a Proclamação da República brasileira 2.
1 BRANCATO, Sandra Maria Lubisco (coor.). Arquivo diplomático do reconhecimento da República/II° Volume. Brasília: Ministério das Relações Exteriores; Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1993. p. 198. Ressaltamos nesse documento o erro de grafia no nome do Conde de Paço D’Arcos. Ao invés de Garcia, o sobrenome correto é Corrêa. Dessa forma, o nome completo desse diplomata é Carlos Eugênio Corrêa da Silva. O erro acima pode ser sintoma de desleixo de quem escreveu o documento em nome do Rei Carlos de Portugal, ou então, erro de quem transcreveu. Para nós a segunda hipótese é menos provável porque logo em seguida há o erro de escrita no cargo militar (ao invés de Capitão de Mar e Guerra, aparece escrito a palavra “capital”). 2 De acordo com Eduardo Cordeiro Cândido Gonçalves, “quando eclodiu a revolução republicana no Brasil, Gustavo Nogueira Soares exercia as funções de ministro Plenipotenciário de Portugal no Rio de Janeiro. Ausentando-se do Brasil dois dias após a revolução, Manuel Garcia da Rosa assume as funções de encarregado de Negócios interino, cargo que mantem até à nomeação do conde de Paço d’Arcos, em 4 de Dezembro de 1890, como novo ministro Plenipotenciário”. Ver: GONÇALVES, Eduardo Cândido Cordeiro. Ressonâncias em
14
FIGURAS 1 e 2 – O Conde de Paço D’Arcos em traje militar e civil, respectivamente 3.
Esse reconhecimento diplomático foi extremamente significativo. Diferentemente da
Independência do Brasil em 1822, que manteve a mesma casa dinástica de Portugal no
governo brasileiro, o 15 de Novembro representou um rompimento efetivo em relação à
Portugal 4. Contudo, esse reconhecimento não se deu imediatamente após a Proclamação.
Havia uma expectativa de restauração monárquica no Brasil, ainda mais porque D.
Pedro II, ao ser deposto, seguiu para o exílio em Portugal, sendo muito bem recebido pelo rei
D. Carlos e pelo povo. O ex-Imperador brasileiro era tio do monarca português, e permaneceu
em território luso até 28 de Dezembro de 1889 5. Dessa forma, era politicamente difícil para
Portugal o reconhecimento imediato após a vitória do movimento republicano. Essa decisão
seria adiada por alguns motivos.
Portugal da Implantação da República no Brasil (1889-1895). Porto: Reitoria da Universidade do Porto, 1995. p. 143. 3 FIGURA 1 – disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/File:1conde_PA.jpg ; FIGURA 2 – IN: SILVA, Henrique Corrêa da Silva (org.). Missão Diplomática do Conde de Paço D’Arcos no Brasil (1891-1893). Lisboa, 1974. p. LXV. 4 Sobre o processo de Independência brasileiro ver: COSTA, Emília Viotti da. “Introdução ao estudo da emancipação política”. IN: MOTA, Carlos Guilherme (org.). 10ed. Rio de Janeiro; São Paulo: DIFEL, 1978. p. 64-125. Para o estudo do reconhecimento diplomático de Portugal à Independência do Brasil, ver: CERVO, Amado; MAGALHÃES, José Calvet de. Depois das Caravelas: As relações entre Portugal e Brasil 1808-2000. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2000. (sobretudo o capítulo 2) 5 CERVO, MAGALHÃES, 2000. op. cit. p. 201.
15
O primeiro deles foi que no início do ano de 1890, em 11 de Janeiro, estourou em
Portugal a crise do chamado ultimatum inglês. Esse ultimatum se deu a partir das ambições
portuguesas de unir suas possessões coloniais africanas de Angola e Moçambique, anexando
parte de um território inglês. A ambição lusa entrou em choque com as aspirações inglesas,
personificadas nos interesses de Cecil Rhodes, de construir uma estrada de ferro que unisse os
territórios do Cabo (futura África do Sul) até o Cairo 6. A partir dessa situação de choque de
interesses internacionais, os republicanos portugueses utilizaram politicamente esse
acontecimento para iniciar uma forte campanha nacionalista que exorcizava a “passividade
monárquica” frente à clara “intervenção nos assuntos internos” de Portugal 7.
Dada essa situação interna, o governo de Portugal não reconheceu a República
brasileira sob pena de estar legitimando o movimento republicano português, optando por um
momento de cautela e utilizando o argumento de que nem a França republicana havia
reconhecido a República. O governo de Portugal, portanto, entendeu que não lhe caberia ser a
primeira Nação da Europa a reconhecer o novo governo 8.
Contudo, os argumentos portugueses para evitar o reconhecimento vão se esgotando
quando a França o fez em 20 de Junho de 1890 9. De acordo com Clodoaldo Bueno, a França
só não havia reconhecido a República para não legitimar as reivindicações republicanas em
Portugal e na Espanha. Porém, quando foi do seu interesse tentar solucionar a questão de
limites que envolviam a Guiana e o Brasil, não hesitou em fazê-lo 10. A partir de então, o
último argumento português para adiar o reconhecimento foi declarar que esperava a
realização das eleições para o Congresso Constituinte, como sendo essa a expressão de adesão
do povo brasileiro à nova instituição11.
Dessa forma, Portugal optou por uma saída legalista para a questão do reconhecimento
da República. Esse argumento possibilitou a prorrogação do reconhecimento, e
6 MAGALHÃES, José Calvet de. Breve História Diplomática de Portugal. 3 ed. Mem Martins, Portugal: Publicações Europa-América, LDA. 2000. p. 196-201. O governo de Portugal no momento do ultimatum era do Partido Progressista, presidido por José Luciano de Castro. Após aceitar a intimação inglesa, esse governo se demitiu no dia 14 de Janeiro de 1890. O Partido Regenerador assumiu em meio de uma grande crise política. A chefia do governo estava a cargo de Antônio de Serpa Pimentel, a pasta dos Negócios Estrangeiros com Hintze Ribeiro, e o Governo Civil de Lisboa foi deixado à cargo do Conde de Paço D’Arcos. 7 HOMEM, Amadeu Carvalho. “Jacobinos, Liberais e Democratas na edificação do Portugal contemporâneo”. IN: TENGARRINHA, José (org.). História de Portugal. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: UNESP; Portugal, PO: Instituto Camões, 2000. p.263-281. 8 BRANCATO, 1993. op. cit. p. 188-189. 9 OLIVEIRA, José Manuel Cardoso de. Actos Diplomáticos do Brasil. Tomo II. Edição Fac-similar. Brasília: Senado Federal, 1997. p. 171. 10 CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. 2 ed. São Paulo: Ática; Brasíla: Editora da UnB, 2001. p. 154. 11 BRANCATO, 1993. op. cit. p. 190-191.
16
consequentemente, o adiamento da legitimação política dos republicanos portugueses até o
dia 20 de Setembro de 1890, cinco dias após a primeira sessão do Congresso Constituinte 12.
Após o reconhecimento, era preciso decidir quem ocuparia esse “cargo de confiança”
de representante diplomático de Portugal no Brasil. O Comandante Henrique Corrêa da Silva,
filho do Conde de Paço D’arcos, contou que um grupo de “figuras elevadas da colônia
portuguesa do Brasil”, entre eles o Dr. Figueiredo de Magalhães (depois Conde de Figueiredo
Magalhães) e o Barão de Itanhaem de Andrade foram “(...) procurar meu pai perguntando-lhe
se anuía a que o seu nome fosse indicado ao Governo pelos representantes da colônia afim de
ir representar Portugal no Brasil” 13.
O Comandante Henrique afirmou que a nomeação foi feita pelo decreto de 14 de
Outubro de 1890. Entretanto, para Eduardo Cândido Cordeiro Gonçalves, a nomeação foi em
4 de Dezembro de 1890, e contou com contestações da facção republicana e da oposição
progressista, já que o Conde de Paço D’Arcos era político ligado aos Regeneradores.
Gonçalves salientou que o jornal A Província (Progressista), da cidade do Porto, noticiou que,
O reconhecimento da republica brazileira acaba de ser feito em testamento pelo governo demissionário, e sabem de quem este governo se lembrou para nos representar no Rio de Janeiro? De Paço D’Arcos, o mais extraordinário governador civil de Lisboa que tem havido, mas o que nós não sabemos ainda à hora de fechar nosso jornal, é se a lembrança foi por troça ou se foi a sério14.
Assim, Carlos Eugênio Corrêa da Silva, foi indicado para o cargo de Ministro
Plenipotenciário em meio a uma grande instabilidade política nos fins de 1890. O governo
progressista de José Luciano de Castro (1886-90) havia somado um acréscimo de 100% no
déficit comercial 15. A difícil situação financeira interna era explorada pelos republicanos
portugueses habilmente. Esse estado ainda foi agravado com a queda de remessas dos lucros
dos portugueses que viviam no Brasil, em função da instabilidade econômica do novo
governo brasileiro16.
12 OLIVEIRA, 1997. op. cit. p. 174. 13 SILVA, 1974. op. cit. p. XLVIII. 14 As disputas político-partidárias portuguesas no transcorrer do século XIX serão desenvolvidas ao longo do capítulo primeiro. Sobre as diferenças de datas na nomeação e o trecho citado do periódico A Província, ver: GONÇALVES, 1995. op. cit. p. 147. 15 SILVA, Armando B. Malheiro da. “Uma experiência presidencialista em Portugal (1917-1918)”. IN: BRANCATO, Sandra Maria Lubisco, et al. (orgs.) Portugal-Brasil no século XX: sociedade, cultura e ideologia. Bauru, SP: EDUSC, 2003. p. 49-86. 16 Eduardo Cândido Cordeiro Gonçalves demonstrou que a implantação da República não afetou as relações comerciais entre Portugal e Brasil de imediato. Foram a instabilidade política do novo regime e a concorrência internacional no ramo de vinhos, que abalaram as relações comerciais entre os dois países. Ver: GONÇALVES,1995. op. cit. p. 3-37. Ver também: PEREIRA, Mirian Halpern, A política portuguesa de emigração (1850-1930). Bauru, SP: EDUSC; Portugal: Instituto Camões, 2002. p. 55-78.
17
Enquanto o Conde de Paço D’Arcos não assumia seu posto diplomático no Brasil, ele
teve a oportunidade de acompanhar o crescimento do Partido Republicano Português. Em
janeiro de 1891 foi lançado o “Manifesto e Programa” republicano que fez com que o quadro
político português ganhasse contornos mais nítidos. Poucos dias após essa publicação, em 31
de Janeiro de 1891, aconteceu uma sedição militar-republicana na cidade do Porto, sendo
rapidamente abafada pelas autoridades monárquicas17.
FIGURA 3 - Gravura ilustrativa da repressão ao movimento de 31 de Janeiro de 189118
Cada vez mais a Missão Diplomática ganhava um contexto político delicado. Carlos
Eugênio Corrêa da Silva foi o escolhido para representar uma Monarquia que atravessava um
contexto interno conturbado, em um país que recentemente havia abolido essa mesma forma
de governo através de um golpe militar. Para o governo de Portugal seria interessante que não
houvesse incidentes nessa Missão que pudessem ser utilizada politicamente pelos
republicanos. Porque, então, nomear um diplomata sem experiência anterior? A nomeação se
17 Sobre a revolta portuguesa, ver: PEREIRA, Gaspar Martins. “Da Liga Patriótica do Norte ao 31 de Janeiro: um momento de viragem na história política portuguesa”. IN: Revista da Faculdade de Letras-História. Porto. Série III, Volume I, 2000. p. 113-125. Ver também: SOUSA, Fernando de. “O jornal de notícias e a revolta de 31 de janeiro de 1891”. IN: Revista da Faculdade de Letras-História. Porto. Série II, Volume VII, 1990. p.255-264. 18 Gravura publicada na Revista Universal Impressa em Paris, 1891, v. 8. Fonte: http://www.arqnet.pt/portal/imagemsemanal/janeiro0204.html.
18
deu, em nossa opinião, em função de dois motivos: a) a sua inquestionável dedicação política
ao Partido Regenerador; b) a intenção de nomear um militar de carreira que acatasse as ordens
enviadas de Lisboa.
Nesse contexto, o Ministro Plenipotenciário de Portugal chegou ao Brasil em 2 de
Junho de 1891. No transcorrer de sua Missão Diplomática, o Conde de Paço D’Arcos
produziu diversos relatórios, ofícios e telegramas informando ao governo de Portugal a
situação política brasileira. Após pouco mais de dois anos decorridos do início da sua Missão,
esse diplomata foi chamado à Lisboa (oficialmente ele entregou a Legação portuguesa para o
Secretário Manoel Garcia da Rosa em 20 de Novembro de 1893). Em seguida, embarcou para
Portugal e nunca mais retornou ao Brasil até falecer em 5 de Novembro de 1905.
No transcorrer de sua Missão, o Conde de Paço D’Arcos teve o cuidado de produzir
cópias da sua correspondência com o governo de Lisboa. Essa documentação permaneceu
guardada pela sua família que pretendia publicá-la. O Comandante Henrique Corrêa da Silva,
seu filho, escreveu um prefácio narrando a biografia de seu pai. Porém, ele faleceu antes de
ver a obra publicada, ficando a cargo dos netos de Carlos Eugênio Corrêa da Silva a
finalização e a publicação em 1974, juntamente com o prefácio biográfico 19.
Essa documentação já foi utilizada anteriormente em outros trabalhos 20, contudo, não
é do nosso conhecimento que algum pesquisador tenha se perguntado: O Conde de Paço
D’Arcos seria capaz de se libertar de toda sua visão de mundo, e exercer suas funções
diplomáticas de forma “neutra” quando desembarcou no Rio de Janeiro, carregando consigo a
Real Credencial?
Acreditamos que não.
Entretanto, a historiografia permaneceu relegando a esse diplomata apenas o epíteto de
“observador estrangeiro”. A documentação só serviu como complemento documental para
outras pesquisas – num sentido instrumental – e nunca foi desenvolvido nenhum estudo sobre
essa publicação ou sobre esse diplomata. Em nosso entendimento, isso é um sintoma
historiográfico interessante.
Na década de 30 houve um movimento de renovação na historiografia francesa que
ficou conhecido como a Escola dos Annales 21. Esse movimento pensava na necessidade de
redimensionar as abordagens históricas, passando a se preocupar com a história daqueles que
19 SILVA, 1974. op. cit. p. X. 20 Os trabalhos que utilizaram essa documentação são explicitados no item 3.2.3. desta dissertação. 21 Para um panorama sobre o a Escola dos Annales e suas três gerações, ver: BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.
19
foram desprestigiados pela história política tradicional. Esse novo modo de fazer a história,
parafraseando Peter Burke, foi a “Revolução Francesa” da historiografia.
Entre as críticas que a história política tradicional recebeu está sua preocupação em
narrar a história dos vencedores, dos heróis, dos fatos e das batalhas. Críticas que envolviam o
seu método de contar a história a partir do ponto de vista do Estado-nação, exaltar suas
origens e projetar seu futuro glorioso, ser factual e privilegiar as análises do particular 22.
Entre esses tipos de abordagens tradicionais se encontrava, igualmente, a história da
diplomacia.
Para essa nova corrente historiográfica era necessário estudar a história “vista de
baixo” em oposição àquela “vista de cima”. Entretanto, mesmo que houvesse alteração nos
objetos de pesquisa, não significaria, necessariamente, que o tipo de abordagem seria
modificado. Era preciso se distanciar do indivíduo e buscar explicações mais “científicas” da
realidade. Portanto, era necessária uma reformulação do método histórico. A história, dessa
forma, aproximou-se da sociologia, e de seu aparato metodológico, em busca do caráter de
ciência social.
Jaques Revel nos lembra que, vinte e cinco anos antes dos Annales, o durkheimiano
François Simiand já alertava que “os historiadores deveriam, dali em diante, se afastar do
único, do acidental (...) para investir na única coisa que poderia tornar-se objeto de um estudo
científico: o repetitivo e suas variações, as regularidades observáveis (...)” 23 para que fosse
possível se chegar a Leis.
Com a aproximação entre as duas disciplinas (história e sociologia), a ênfase das
pesquisas centrou-se nos estudos sobre a sociedade e a economia. A história quantitativa
ganhou espaço, e tudo aquilo que pudesse ser quantificado era bem visto – no sentido de
trazer um respaldo mais científico à história. Nesse contexto, fundamentou-se o predomínio
de estudos: do coletivo sobre o individual; da longa duração em detrimento do tempo curto,
essa temporalidade incapaz de dar uma explicação sobre as estruturas sociais; das diferentes
realidades de trabalho; dos meandros da produção; das relações de trocas; tudo em detrimento
daquilo produzido anteriormente, que ganhou a alcunha de “tradicional”.
Essa crítica fez com que as temáticas que procurassem historicizar as relações
políticas ou relações entre Estados fossem logo identificadas como sendo “tradicionais”,
“reacionárias” e “conservadoras”, justamente por privilegiar a história das classes dominantes.
22 RÉMOND, René. “Uma História Presente”. IN: RÈMOND, René. Por uma História Política. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p.13-36. 23 REVEL, Jacques. “Microanálise e construção do social”. IN: REVEL, Jacques. Jogos de Escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 15-38.
20
No entanto, dentro dos Annales houve quem defendesse o estudo da política como legítimo.
Para Jacques Julliard, a História Política nunca desapareceu, e “não se ganharia nada em
continuar a confundir as insuficiências de um método com os objetos a que se aplica” 24.
Portanto, a aproximação da história com outros campos do conhecimento (dentre eles a
sociologia, a ciência política, o direito público, a linguística, etc.) proporcionou alterações
metodológicas que alteraram a própria significação do que é o político. Nesse sentido, para
Pierre Rosanvallon, o político não seria apenas uma “instância” ou “domínio” entre outros da
realidade, mas sim “o lugar em que se articulam o social e sua representação” 25.
Também houve, dentro da tradição dos Annales, quem propusesse outras questões
metodológicas à história. Como bem salientou Jacques Revel, a produção historiográfica dos
Annales entrou em crise no final dos anos 1970 e início dos 1980 26. Ao mesmo tempo, na
Itália, um grupo de historiadores ofereceu uma alternativa à escassez documental daquele
país, onde havia dificuldades de realização de estudos quantitativos 27.
Entre esses historiadores italianos, destacaram-se principalmente três: Edoardo
Grendi, Giovanni Levi e Carlo Ginzburg. Foi a partir de suas discussões intelectuais e de
pesquisa, que a revista Quaderni Storici foi editada, publicando os trabalhos desses
pesquisadores. Mais tarde a revista seria dirigida por C. Ginzburg e G. Levi, e editada pela
Editora Einaudi, mudando de nome para Microstorie e durando de 1981 a 1993.
Esse grupo se reuniu em torno de “um conjunto de proposições e questionamentos
sobre os métodos e os procedimentos da história social, articulando discussões esparsas em
torno da relação da história com as outras ciências sociais (...)” 28. Enrique Espada Lima
acrescentou que essa reação italiana acompanhou uma crítica de fora da Itália, desde os anos
1960, sobre os limites da história quantitativa e serial, assim como a história estrutural 29.
A reunião desses historiadores em um mesmo empreendimento, não está
necessariamente relacionada com uma identificação teórica clara entre eles. Henrique Espada
Lima analisou a trajetória de pesquisa, assim como a produção de cada um desses três
historiadores, e percebeu uma dicotomia entre eles.
24 JULLIARD, Jacques. “A política”. IN: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (org.). História: Novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p. 180-198. (citação pg. 181) 25 ROSANVALLON, Pierre. “Por uma história conceitual do político”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.15, n. 30, 1995, p. 9-22. 26 REVEL, 1998. op. cit. p. 18. 27 REVEL, Jacques. “A história ao rés-do-chão”. IN: LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2000. p. 7-37. 28 LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana. Escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 16. 29 Idem, p. 384.
21
Por um lado, havia antes de tudo uma reflexão em torno da microanálise, que partia da história social, afirmando a centralidade do estudo das relações interpessoais na investigação histórica. Por outro lado, uma micro-história “cultural”, que partia de outra ordem de discussões e referências, perseguindo objetivos distintos. (...) Entre a construção do objeto de análise e a forma de sua contextualização havia também uma distinção quanto aos procedimentos analíticos postos em prática. Enquanto a perspectiva de Ginzburg colocava no centro de suas indagações a relação dos sujeitos com a cultura, partindo da interpretação de “indício” – entendido como via de acesso a um universo de fenômenos cujo significado permaneceria, de outra forma, encoberto -, a microanálise social voltava-se para a “reconstrução de redes de relações” e a “identificação de escolhas específicas (individuais ou coletivas)” 30.
Mesmo não havendo um consenso entre os próprios fundadores da revista, no sentido
de estabelecer uma plataforma teórica comum, existiam algumas questões praticadas
comumente entre os pesquisadores. Dentre elas, destaca-se a questão da variação da escala de
análise. Não se trataria, apenas, de reduzir a escala de análise da perspectiva macroscópica
para a microscópica, mas “é o princípio da variação que conta” 31. Cada enfoque escolhido
traria possibilidades de explicações diferentes. Nesse sentido, a questão do indivíduo retornou
à tona enquanto uma das possibilidades que a redução de escala proporcionaria. Jacques
Revel resumiu a questão do indivíduo para micro-história:
Pois a escolha do individual não é vista aqui como contraditória à do social: ela deve tornar possível uma abordagem diferente deste, ao acompanhar o fio de um destino particular – de um homem, de um grupo de homens – e, com ele, a multiplicidade dos espaços e dos tempos, a meada das relações nas quais ele se inscreve 32.
A partir do princípio que a abordagem biográfica foi reabilitada nos últimos anos,
seria necessário pensar em outra questão. Qual indivíduo? Essa pergunta coloca em xeque o
retorno da biografia dos grandes reis, políticos, heróis, ou diplomatas 33.
Sabina Loriga comenta que as discussões em torno do método biográfico estão
relacionadas com as experiências historiográficas sobre o “cotidiano” e “subjetividades
outras”, tais como a história oral, cultura popular e história das mulheres – objetos vinculados
30 Idem, p. 366-167. Esse panorama historiográfico já havia sido explicitado em: REVEL, 1998. op. cit., contudo, consideramos essa citação mais elucidativa. O texto base que define a perspectiva de Ginzburg, e que também foi considerado o panfleto teórico dos micro-historiadores culturais é: GINZBURG, Carlo. “SINAIS: Raízes de um paradigma indiciário”. IN: GINZBURG, C. A Micro-História e outros Ensaios. Lisboa: DIFEL, 1989. Jacques Revel, partidário da microanálise social, lembra que esse texto do Ginzburg não é elucidativo daquilo que foi produzido posteriormente, sendo portanto, apenas uma das vertentes possíveis de microanálise. Ver: REVEL, 1998. op. cit. p. 16. Um texto que elucida o ponto de vista da microanálise social é: LEVI, Giovanni. “Sobre a Micro-História”. IN: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p. 133-161. As obras citadas não visam dar conta dos meandros da produção microanalítica, apenas elucidar suas vertentes historiográficas. 31 REVEL, 1998. op. cit. p. 20. 32 Idem. p. 21. 33 Peter Burke chamou a atenção para diversos autores relacionados com os Annales que permaneceram publicando obras biográficas. “A biografia histórica é praticada por diferentes razões e assume formas diferentes. Pode ser um meio de entender a mentalidade de um grupo. Uma dessas formas é a vida de indivíduos mais ou menos comuns (...)”. Ver: BURKE, 1997. op. cit. p. 103-104.
22
com a terceira geração dos Annales. Assim, realizar a história dos indivíduos comuns foi uma
alternativa metodológica encontrada para escapar à maneira que a história tradicional fazia
uso da biografia.
Contudo, Loriga salienta que, “não é necessário que o indivíduo represente um caso
típico; ao contrário, vidas que se afastam da média levam talvez a refletir melhor sobre o
equilíbrio entre as especificidades do destino pessoal e o conjunto do sistema social” 34.
Parece-nos que Sabrina Loriga concorda com os argumentos de Philippe Levillain. De acordo
com ele, “tudo depende do nível significativo do personagem. E é certo que quanto menos ele
se situar entre os protagonistas da história, mais o ensinamento têm chance de ser rico. Trata-
se então de uma questão de fonte” 35.
Tanto a micro-história quanto a nova história política, que derivam da tradição dos
Annales, parecem, assim, excluir a possibilidade de estudar um diplomata. Ambas as escolas
tendem concordar em relação à necessidade de estudar o indivíduo comum. Porém, para a
segunda, o empreendimento da biografia pode servir para “homologação seja do
conhecimento adquirido, seja das idéias prontas sobre um homem, seja das relações entre um
sistema político e a coletividade” 36. Parece-nos que mesmo na nova história política há um
constrangimento em deixar-se guiar pelas impressões de um diplomata. A “Revolução
Francesa” da historiografia parece tão institucionalizada que até mesmo o movimento que
preconiza o retorno da temática política limita os seus objetos.
Para Maria de Fátima Bonifácio o problema reside na própria definição de política
para a nova história (Annales). Para ela, Réne Rémond considera “(...) a política, enquanto
fenômeno estudável, sob a forma padronizada e repetitiva das suas manifestações legais-
institucionais, quer dizer, como uma prática social formalizada desprovida de sujeito (...)”.
Em sua opinião, a política deveria ser entendida como ela é:
idéias, decisões, projectos e vontades concebidos por sujeitos concretos, individuais ou coletivos, consonantes ou concorrentes entre si, que se manifestem como acção; está acção desenrola-se em todos os domínios da existência social e tem por objecto directo ou indirecto a organização da vida em sociedade – da polis, portanto; no cerne de tudo quanto respeita à organização da vida em sociedade encontra-se a luta pelo poder, a resistência ao poder, o exercício do poder e a definição das relações entre comando e obediência 37.
34 LORIGA, Sabrina. “A biografia como problema”. IN: REVEL, Jacques. Jogos de Escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998. pg. 225-249. (citação p. 248-249) 35 LEVILLAIN, Philippe. “Os protagonistas: da biografia”. IN: RÈMOND, René. Por uma História Política. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.Idem. p. 141-184. (citação pg. 175) 36 Idem. p. 175. 37 BONIFÁCIO, Maria de Fátima. Apologia da História Política: Estudos sobre o século XIX português. Lisboa: Quetzal Editores, 1999. p. 71. (grifos originais)
23
Essa definição acompanha toda uma visão específica de entender a história, e a
história política em particular. Maria de Fátima Bonifácio entende que existem limites nos
Annales que impedem essa tendência historiográfica de compreender a política. Esse entrave
residiria na vontade da nova história em se tornar uma ciência social. Para alcançar esse
status, teria sido preciso “romper com o senso comum, deixando de submeter os seus
questionários à ditadura das fontes para passar, tal como a ciência, a ‘construir o seu
objeto’”38. Essa mudança teria deslocado a idéia de “compreensão” para a de “explicação”.
Sobre esse deslocamento, Rui Ramos elaborou um artigo significativo dedicado à
análise da obra de dois autores: Gertrud Himmelfarb e Leo Strauss 39.
Himmelfarb defendeu que a nova história se colocou fora da opinião herdada do
passado, enquanto que a “velha história” tenta entender essa opinião. Esse esforço de
compreender a história “como os contemporâneos a compreendiam, de modo a descobrir
como é que eles acreditavam no que faziam, porque é que essas crenças lhes pareceram
‘críveis’, isto é, uma interpretação fiel das experiências deles” que distinguiria a maneira de
fazer história política 40. A conclusão de Rui Ramos sobre a tese de Himmelfarb diz que a
história política “não o é tanto pelo seu conteúdo, como pela sua atitude: aceitar o real tal
como ele foi percebido. Rompe assim com o cientismo (e por isso não pode ser positivista)
para fundar a objetividade numa percepção política” 41.
Leo Strauss, por sua vez, sustentou que a filosofia clássica não estava interessada na
política (vida cívica). Contudo, aceitava a política como ponto de partida para filosofar. Ao
aceitar a política “tal como ela se praticava, ao perguntar pelo ‘bom regime’ (e não pela
‘virtude’, que era a verdadeira questão filosófica), a filosofia aceitava as categorias da vida
política tal como tinham sido postas pelo senso comum” 42. Rui Ramos concluiu, a partir
dessa leitura de Leo Strauss, que a história política faz parte do “mundo clássico”. Dessa
forma, “ela aceita uma relação directa com os seus materiais, assumindo os factos e as
opiniões, os problemas que os próprios materiais expressamente colocam. Isto é um sinal de
sabedoria. É nesse sentido que ela é política” 43.
A opinião de Rui Ramos é compartilhada por Maria de Fátima Bonifácio, que discutiu
sobre o perigo, já expresso por Karl Popper, de se cair em um historicismo. Sobre esse
historicismo ela comentou que:
38 Idem. p. 43. (grifos originais) 39 RAMOS, Rui. “A causa da História do Ponto de Vista Político”. IN: Penélope. n.°5, Lisboa, 1991. p. 27-47. 40 HIMMELFARB apud RAMOS, 1991. op. cit. p. 30. 41 RAMOS, 1991. op. cit. p. 39, 42 Idem. p. 40. 43 Idem. p. 41.
24
(...) Estou consciente de que afloro aqui o historicismo que Popper se propõe precisamente a demolir. Mas apenas afloro: porque bem sei que “não pode haver uma história ‘do passado tal como efectivamente ocorreu’; pode haver apenas interpretações históricas, e nenhuma delas definitiva”. Sei igualmente que “somos nós quem selecciona e ordena os factos da historia”. Mas recuso-me a admitir a radical impossibilidade de essa selecção e ordenação respeitarem, ainda que de forma imperfeita, as “interpretações gerais” dos contemporâneos que viveram a historia que agora se narra. E ao contrário do que afirma Popper, não vejo que esta tentativa implique a crença ingênua de que, “contemplando a historia, possamos descobrir o segredo, a essência do destino humano”. A “Miséria do historicismo” vergasta a ambição profética implicada na presunção cientifica que supõe possível formular leis do devir histórico e, por seguinte, ler o sentido do futuro. Mas o “historicismo” que aqui defendo é mais modesto e mais sensato: não reclama nenhuma prerrogativa científica nem, por conseguinte, nenhum privilégio de previsão. Limita-se a recusar a brutal opacidade do passado 44.
Nesse sentido, objetivando compreender as percepções políticas que Carlos Eugênio
Corrêa da Silva teve no transcorrer de sua Missão Diplomática no Brasil, caminhamos entre
esses pressupostos teóricos para justificar a escolha do nosso objeto de pesquisa. Essa
documentação possui uma pertinência para elucidar alguns aspectos de uma determinada
época que foram “deixados de lado”, já sendo tempo, portanto, de reabilitar a pesquisa
histórica que tenha um diplomata como objeto.
Então, cabe voltarmos àquela pergunta que originou a discussão teórico-metodológica:
O Conde de Paço D’Arcos seria capaz de se libertar de toda sua visão de mundo, e exercer
suas funções diplomáticas de forma “neutra” quando desembarcou no Rio de Janeiro
carregando consigo a Real Credencial?
Nossa resposta permanece a mesma. Acreditamos que não. Porém, os trabalhos que
utilizaram essa documentação parecem não ter levado essa questão em consideração.
Dessa forma, em um primeiro momento, o que chamou nossa atenção nessa
documentação foi a interpretação original 45 que o Conde de Paço D’Arcos fez da Revolução
Federalista. Aparentemente, essa explicação destoava das demais interpretações
historiográficas. A partir desse indício passamos a procurar no restante da documentação
subsídios para tentar compreender sua visão de mundo.
No transcorrer da análise documental, percebemos que os argumentos de defesas da
ordem social e da hierarquia militar se apresentavam frequentemente. Assim, passamos a
procurar na sua trajetória de vida elementos que elucidassem essa visão de mundo, como o
prefácio biográfico escrito pelo seu filho que nos ajudou a encontrar referências sobre o
passado desse diplomata. Entre essas informações, a mais detalhada diz respeito à sua vida
profissional dentro da Marinha portuguesa. Há muito pouco sobre a filiação política desse 44 BONIFÁCIO, 1999. op. cit. p. 96-97. 45 Esse aspecto será trabalhado no item 3.1.2.
25
indivíduo, assim como os cargos ou os mandatos que cumpriu na política. Da mesma forma,
os nomes das instituições que ele estudou mal são mencionados.
Nesse sentido, o nosso capítulo primeiro foi uma contextualização do indivíduo. Esse
objetivo iniciou com uma breve retomada das instituições educacionais responsáveis por sua
formação profissional. Em um segundo momento, foi a partir do exercício de inserir a
trajetória pessoal de Carlos Eugênio Corrêa da Silva no quadro mais amplo da afirmação do
liberalismo português do século XIX, que encontramos elementos que ajudaram a
compreender sua visão de mundo.
Após realizar a contextualização do indivíduo e analisar as instituições que ele
estudou, foi possível voltar à documentação produzida no transcorrer da sua Missão
Diplomática. O objetivo agora era compreender como a sua formação político-profissional,
que condicionou sua visão de mundo, influenciou a leitura política que o Conde de Paço
D’Arcos fez da política brasileira. O capítulo segundo, portanto, foi separado em três partes.
A primeira mostrando a sua defesa da ordem social nos estados da federação e na Capital
Federal. O segundo foi sua defesa da hierarquia militar. Por último, como ele percebeu dois
grupos políticos antagônicos, os “jacobinos” e os monarquistas.
O capítulo terceiro foi dedicado para analisar suas percepções da Revolução
Federalista e a Revolta da Armada. Em um primeiro momento analisamos a interpretação
original desse diplomata sobre a revolta no Rio Grande do Sul. Posteriormente, analisamos
suas impressões política e participação na insurreição naval no Rio de Janeiro.
Antes de começarmos a analisar a documentação do Conde de Paço D’Arcos,
pensamos que talvez seja ilustrativo ver como que essas impressões eram descritas em seus
relatórios. O próprio diplomata nos fornece a pista de sua leitura política.
Desculpar-me-há V. Ex.ª que estas confidenciais sobre a política interna deste paiz sejam divididas às vezes por partes e não componham um só oficio. São escritas, como V. Ex.ª verá pelas diversas datas, à medida que os acontecimentos se vão dando e com as apreciações da ocasião. Não é possível a maior parte das vezes reservar representar o sentir do momento e não concordar em absoluto com os telegramas de ocasião 46.
46 SILVA, 1974. op. cit. p. 149. [despacho de 15.04.1892 à ultima hora]
26
1 – FORMADO PARA RESPEITAR, TREINADO PARA CONSERVAR:
A contextualização do Conde de Paço D’Arcos.
O presente capítulo tem por objetivo identificar elementos que ajudem a explicar a
leitura da política brasileira que o Conde de Paço D`Arcos fez no transcorrer de sua Missão
no Brasil. Em nossa análise, existem dois elementos-chave que são essenciais para
compreensão da visão de mundo desse personagem. Ambos os elementos estão ligados à
trajetória político-profissional desse sujeito antes da sua atuação como diplomata no Brasil.
O primeiro deles diz respeito à formação militar e à carreira dentro da Armada
portuguesa. Nossa hipótese é que a partir dessa formação e escolarização dentro das
instituições que visavam à educação da elite portuguesa, Carlos Eugênio foi moldado e
treinado para ser um respeitador da hierarquia e da ordem, sobretudo a militar. Portanto, as
suas experiências adquiridas dentro da Armada, assim como os altos postos administrativos
que ele assumiu dentro do império colonial, são elementos importantes para analisarmos esse
indivíduo enquanto um funcionário da monarquia portuguesa1.
O segundo elemento explicativo é a sua participação enquanto político do Partido
Regenerador. A experiência de ter assumido mandatos parlamentares chegando a ser
Governador Civil de Lisboa, ajuda a entender as origens do conservadorismo político-social
em suas análises sobre a política brasileira no início da República. Dessa forma, a
compreensão do ambiente interno de Portugal permite dimensionar o que representava ser um
político ligado ao Partido Regenerador no final do século XIX, momento em que Carlos
Eugênio é nomeado diplomata no Brasil.
Para dar conta de nosso objetivo buscamos as origens sociais e ideológicas dessa
agremiação desde a Revolução Liberal do Porto, e procuramos reconstituir, em linhas gerais,
o ambiente político de Portugal em que se deu a formação político-profissional de Carlos
Eugênio. Nossa hipótese é que a Revolução Regeneradora de 1851, que proporcionou o início
de um novo período político em Portugal, causou uma enorme influência na escolha política
de Carlos Eugênio. 1 Aqui resolvemos considerar os cargos administrativos que Carlos Eugênio ocupou no império colonial português, assim como os cargos administrativos na Marinha, enquanto vinculados a sua formação militar. Isso porque os oficiais portugueses que circulavam pelo império ultramarino eram sempre recompensados por uma promoção. Essas promoções por vezes os levam a exercer funções alheias à origem militar. Pensamos ser esse o caso de Carlos Eugênio. Ver mais em: SOUZA, Adriana Barreto de. “A serviço de Sua Majestade: a tradição militar portuguesa na composição do generalato brasileiro (1837-50)”. IN: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vítor; KRAAY, Hendrik. Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro:Editora FGV, 2004. p. 159-178.
27
1.1 A formação militar
Carlos Eugênio Correia da Silva, o Conde de Paço D’Arcos, deve ser compreendido,
antes de qualquer outra análise, enquanto um profissional formado nos moldes da carreira
militar. Essa característica em sua formação é percebida na documentação na nítida predileção
pelo argumento da manutenção da ordem e da hierarquia, tanto profissional quanto social.
Esta característica de ser o Conde de Paço D`Arcos um defensor da ordem social e
hierárquica, não é apenas uma percepção nossa a partir da análise documental, mas também
uma percepção do próprio sujeito, que via nesses elementos traços de sua personalidade. Essa
“auto-imagem” é referendada na seguinte passagem:
O que é verdade indubitável (e para mim de muito valor, como homem ordeiro que sou, mas homem de ação) é que o governo sem mostrar tibieza nem frouxidão conseguiu assegurar a ordem pública, mostrando que tem forças e conta com o exército, malgré tout que se dizia e que se diz. (...) Para mim, apaixonado pela ordem e pela força de acção governativa como sempre tenho sido, estou em que o governo andou bem pacificando os distúrbios; (...) 2.
Portanto, ao analisarmos a documentação, devemos ter claro que os posicionamentos
do Conde de Paço D`Arcos são pautados por essa lógica “da ordem”. Nossa hipótese é que
esses atributos de defensor da ordem social e hierárquica são resultados de um longo
treinamento e socialização a qual Carlos Eugênio foi submetido durante sua escolarização e
atuação enquanto militar e administrador colonial3.
Faz-se necessário, dessa forma, analisar a estrutura institucional da Marinha
portuguesa e as escolas em que Carlos Eugênio estudou para que se possa avaliar a influência
que essas instituições tiveram em sua formação. Também se faz necessário que alguns
aspectos de sua origem familiar sejam destacados, justamente para refutar a possível relação
simplista entre classe social e posicionamento político4.
2 SILVA, 1974. p. 95-96. 3 Pensamos que as conclusões de José Murilo de Carvalho sobre o treinamento e a socialização da elite imperial brasileira em Portugal podem ser aplicadas ao caso de Carlos Eugênio, justamente por ser esse indivíduo formado em instituições portuguesas no mesmo período. Ver: CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial. Teatro das sombras: a política imperial. 4ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2008. Uma referência sobre os processos de socialização dos militares, porém em outro corte cronológico é: CASTRO, Celso. O Espírito Militar: Um estudo de Antropologia Social na Academia Militar das Agulhas Negras. Rio de Janeior: Jorge Zahar Ed., 1990. O brasilianista Alfred Stepan também ressalta que existem certas normas burocráticas e racionais, como a estrutura de educação e de promoção, que ajudam a socializar o quadro de oficiais e a criar um forte espírito de corporação. Ver: STEPAN, Alfred. Os Militares na Política. Rio de Janeiro: Artenova, 1975. (Sobretudo a Primeira Parte) 4 A relação simplista a que nos referimos seria considerar que o indivíduo pertencente a uma determinada classe social teria, obrigatoriamente, um comportamento político condizente com os interesses da sua classe social. Outra vez, Alfred Stepan é claro ao afirmar que “no tocante a indivíduos e ao efeito das origens sociais sobre seu
28
Destarte, convém destacar que em Portugal, a Marinha de guerra, ou a Armada, como
era mais popularmente chamada, começou a ter um destaque na vida social e política
portuguesa a partir do final do século XV, período em que se iniciavam os processos das
Grandes Navegações 5. Essas navegações estão inseridas no contexto europeu de aumento
populacional, na necessidade de buscar novas rotas comerciais, que barateassem as
especiarias orientais, e na acepção de acúmulo de metais precisos – o metalismo, que era uma
típica prática preconizada pelo mercantilismo, que via na acumulação de metais a verdadeira
forma de comparar as riquezas entre as nações 6.
Até então, as práticas de navegação, que envolviam conhecimentos específicos como a
astronomia e cartografia, por exemplo, não eram ensinadas publicamente, sendo esses
conhecimentos profissionais típicos de corporações de ofícios do fim da Idade Média e início
da Idade Moderna. Os segredos da profissão eram passados de geração para geração, sendo
que no caso da navegação, esses ensinamentos se davam dentro dos próprios navios com a
prática de navegação. Contudo, com a expansão portuguesa para as regiões dos Oceanos
Atlântico e do Índico, as necessidades de especialização da prática do marinheiro também
aumentaram, dando início às primeiras tentativas de reunir os conhecimentos sobre a
navegação e ensiná-los em cursos de especializações. A primeira tentativa, nesse sentido, foi à
criação do “Regimento do Cosmógrafo-Mor”, em 1592. O alcance dessa instituição dentro da
prática da navegação tem que ser relativizada, já que mais importava a prática da navegação
ao invés da sua teorização7.
Em 7 de Março de 1761 foi criado o Real Colégio dos Nobres, instituição essa, que
dava a primeira formação militar para a elite portuguesa, com “a finalidade explícita de dar
aos filhos da nobreza uma alternativa para o serviço do Estado que não fossem as carreiras
eclesiástica e judiciária”8. Mais tarde, em 1779, foi criada em Lisboa a Real Academia da
comportamento político, está claro, em vista de numerosos exemplos históricos, que muitos aristocratas lideraram movimentos populistas, e líderes da classe baixa ou caudilhos foram os chefes ou sustentáculos de governos tradicionais de classe alta. (...) Não pretendemos afirmar aqui que a origem de classe é irrelevante na determinação do comportamento político, mas antes sugerir que ela, por si só, quase nunca determina a atitude política das elites”. Ver: STEPAN, 1975. op. cit. p. 42. 5 Para uma História mais detalhada da Marinha de Portugal ver o site do governo português em: http://www.marinha.pt/Marinha/PT/Menu/DescobrirMarinha/Historia/historiamarinha/. Nesse site é possível encontrar detalhes sobre a História dessa instituição desde a Independência de Portugal até os dias de hoje. Para uma História mais detalhada dos combates navais portugueses conferir no mesmo site a seção: http://www.marinha.pt/Marinha/PT/Menu/DescobrirMarinha/Historia/combates_navais/. 6 FALCON, Francisco José Calazans. Mercantilismo e transição. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. 7 MATOS, Rita Cortez de. “O Cosmógrafo-Mor: O Ensino Nautico em Portugal nos séculos XVI e XVII”. IN: Revista Oceanos: Navios e Navegações. Portugal e o Mar. Lisboa. Número 38. Abril/Junho de 1999. p. 55-64. 8 CARVALHO, 2008. op. cit. p. 69. Aqui escolhemos deixar de fora uma análise mais sistemática do ensino universitário português, centrando-se na formação das elites militares. Para uma análise do ensino universitário
29
Marinha, que a partir de um ensino teórico visava à formação de oficiais da Marinha de
Guerra, da Marinha Mercante e dos Engenheiros do Exército. Já em 1782, foi criada a Real
Academia dos Guardas Marinhas, que recebia os melhores alunos da Real Academia da
Marinha, ou aqueles com ascendência nobre, e os preparava como oficiais da Marinha Real.
FIGURA 4 – Organograma das instituições militares da Marinha portuguesa
Sobre o tipo de formação que esses oficiais tinham, Adriana Barreto de Souza destaca
que:
Matemática era a base da formação desses oficiais. O estatuto das duas academias – A Real Academia de Marinha de Lisboa e a Academia de Guardas Marinhas – previa um curso de três anos. A estrutura era a mesma. Nesses três anos, estudava-se matemática superior, e, no último, técnica naval. Assim, quem pretendia servir no Exército cursava apenas os dois primeiros anos. Mas a Academia de Marinha de Lisboa oferecia ainda um ano complementar, com lições de fortificação e engenharia para os oficiais que pretendessem servir como engenheiros. Depois disso, eles seguiam para os regimentos 9.
A Academia Real dos Guardas Marinhas, em 1807, em função da invasão napoleônica
foi transferida conjuntamente com toda a Corte portuguesa para o Brasil, onde funcionou
entre 1808 e 1822. Em função da Independência brasileira, a Academia Real dos Guardas
Marinhas se dividiu em duas, a brasileira e a portuguesa. A vertente brasileira deu origem a
Escola Naval no Brasil. A co-irmã portuguesa retornou a Portugal e funcionou até 1845, ano
em que D. Maria II, em um decreto, mudou seu nome para Escola Naval de Portugal, ficando
português principalmente após a Reforma Pombalina de 1772, ver: GAUER, Ruth Maria Chittó. A Modernidade Portuguesa e a Reforma Pombalina de 1772. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. 9 SOUZA, 2004. op. cit. p. 168.
30
essa instituição como a responsável por formar os oficiais da Armada Real portuguesa10.
FIGURA 5 – Organograma da formação das escolas navais de Brasil e Portugal
O Real colégio dos Nobres funcionou até 4 de Janeiro de 1837. A instituição foi
extinta por decreto por ser incompatível com o regime liberal. As suas instalações deram
origem à Escola Politécnica, que era tutelada pelo Ministério da Guerra e pelo Ministério da
Marinha e Ultramar, e tinha por objetivo preparar os estudantes para as carreiras militares que
necessitavam de base científica. Ou seja, a Escola Politécnica passou a ser a responsável por
dar a primeira formação militar das elites, e a Escola Naval, por sua vez, formava o quadro de
oficiais da Marinha portuguesa.
Contudo, convém destacar que a formação militar costumava ser um privilégio da
aristocracia, sendo necessário provar a origem nobre para entrar nessas instituições. A
abertura do oficialato português para outros grupos sociais só ocorreu em 1792 para o
Exército, e 1832 para a Marinha11.
Dentro desse contexto institucional de formação dos quadros de oficiais da Marinha é
que se insere a formação de Carlos Eugênio Correia da Silva.
Carlos Eugênio nasceu em 17 de Dezembro de 1834, em Lisboa. O seu pai, João José
da Assumpção e Silva, era um funcionário público que começou trabalhando como
amanuense na Estação da Saúde Marítima, na região de Paço D`Arcos. João José prestou
alguns serviços à causa liberal, e como recompensa obteve acesso à carreira, chegando ao
posto de Pagador da Marinha - instituição que tinha em Lisboa uma única Tesouraria12. A
10 Sobre a formação da Escola Naval de Portugal ver o site: http://escolanaval.marinha.pt/. 11 CARRILHO, Maria. “Origens sociais do corpo de oficiais das Forças Armadas portuguesas ao longo do século XX”. IN: Análise Social. Vol. XVIII (72-73-74), 1982 - 3.º - 4.º - 5º. p. 1155-1164. 12 Seu pai foi um liberal ferrenho na época política mais radical de Costa Cabral, fase que ficou conhecida como arsenalista. Essa temática será desenvolvida adiante.
31
mãe de Carlos Eugênio, Jesuina Amália Corrêa de Almeida13, era de família de lavradores e
comerciantes de nome Almeida, da região de Paço D`Arcos e dos arredores.
As informações disponíveis sobre a sua origem familiar são poucas e esparsas. Porém,
o pouco que se sabe permite esboçar uma idéia do cenário em que Carlos Eugênio foi criado.
O pai enquanto funcionário público, provavelmente, seria a maior fonte de renda desta
família, uma vez que a família da mãe teria empobrecido antes mesmo do nascimento de
Carlos Eugênio14.
Mesmo tendo uma infância pouco abastada, a primeira educação de Carlos Eugênio
foi a Escola Politécnica, e sua iniciação na Marinha portuguesa foi a partir da Escola Naval de
Portugal. Ou seja, a trajetória educacional que Carlos Eugênio traçou foi, sem dúvidas, uma
trajetória de elite.
A primeira viagem em que Carlos Eugênio teve contato com a vida de marinheiro foi a
experiência de instrução pelas ilhas de Madeira e Açores, a bordo da corveta Porto 15. Aos 18
anos de idade, em 1853, Carlos Eugênio realizou sua primeira viagem pelo império colonial
português a bordo da corveta D. João I, que tinha a China como destino.
Com apenas 20 anos de idade Carlos Eugênio, que ainda era um Guarda-Marinha,
recebeu o comando da escuna Vênus. Aos 23 anos, já havia sido promovido à Oficial de
Guarnição, e ao embarcar no transporte à vela Martinho de Mello, assumiu as
responsabilidades: de pilotagem, de oficial astrônomo do navio, e de calculador responsável
pela navegação.
13 O nome da mãe de Carlos Eugênio, e outros dados biográficos desse indivíduo podem ser encontrados em: http://www.geneall.net/P/per_page.php?id=21129 (acessado em 22 de Maio de 2009). 14 Vale à pena conferir a passagem no prefácio do livro feito pelo filho de Carlos Eugênio que fala sobre a origem da família por parte da mãe de Carlos Eugênio: “Minha avó, mãe de meu pai, era uma senhora de família de lavradores e comerciantes de Paço D’Arcos e regiões vizinhas. Fora família opulenta. Excepção feita do palácio dos Arcos, que dera nome à vila e que desde todo o tempo vinha pertencendo à família Alcáçovas, a maioria das ‘terras de pão’ que se estendiam por aquelas encostas, os grande prédios da beira-mar da vila, que ainda lá estão erguidos, casais dos arredores, entre eles a Quinta da Terrugem, feita vínculo na família, tudo isso, que era muito, que era uma grande fortuna, fora de lavradores-comerciantes de nome Alemeidas, representados ao tempo do Marquês de Pombal por José de Alemida, a quem o estadista, desejoso de erguer uma nova aristocracia, quisera em vão fazer titular para que a sua casa opulenta pudesse ofuscar o palácio dos fidalgos, seus vizinhos de vila. Do casamento da filha de José de Almeida com outro lavrador, de nome Manuel Corrêa, senhor de olivedos por essa Estremadura e grade comerciante de azeite, que tinha sempre na baía de Paço D’Arcos navios à carga por sua conta, chegou ao apogeu a riqueza da casa. Desmoronou-se ainda na vida de Manuel Corrêa, sendo tradição familiar que, aquando da galopada de Junot para S. Julião, Manuel Corrêa, assistido da mãe e da mulher, enterrara o grosso dos seus cabedais em uma cova num armazém e que, tempos depois, indo em busca de suas riquezas, encontrara o buraco vazio. Foi porém ainda em casas de sua família, na vila de Paço D’Arcos, que meu pai viveu a sua infância. A pobreza, porém, acentuou-se, e alguns anos depois nada tinham”. Ver: SILVA, 1974. op cit. p. XXIII. 15 Idem. p. XXIV-XXX
32
Entre os 23 e 25 anos, Carlos Eugênio navegou nos vapores Infante D. Luis,
Bartholomeu Dias e Sagres. Em 1862, com 25 anos, foi o responsável pela escuna Napier, no
Tejo. Aos 27 anos foi promovido a Segundo-Tenente.
Em 27 de Fevereiro de 1864 Carlos Eugênio, que continuava no comando da escuna
Napier, aprisionou o navio espanhol Virgem Del Refugio, que realizava tráfico de escravos ao
norte de Benguela, em Angola. Foi a última apreensão da Marinha portuguesa de navios com
escravos.
A partir de Dezembro de 1865, em função da debilitação da sua saúde, Carlos Eugênio
permaneceu pouco mais de um ano longe dos mares, realizando a atividade de escritor e de
estudioso de táticas de batalha, balística e artilharia. Nesse período, colaborou com os Anaes
da Marinha e Ultramar uma compilação de artigos diversos, dentre os quais, alguns de sua
autoria.
Em 1867, retornou ao mar no comando do navio Pedro Nunes. Esse navio ficou
marcado pela disciplina, uma característica do comando de Carlos Eugênio, quando então
esse já havia sido promovido à Primeiro-Tenente. A descrição de seu filho sobre esse período
a frente do navio Pedro Nunes diz que do “refugo das guarnições dos outros navios”, Carlos
Eugênio fazia “marinheiros disciplinados e trabalhadores” 16. Concomitantemente às funções
de comandante do Pedro Nunes, também assumiu o comando da Estação Naval na costa de
Angola. Após quase 4 anos assumindo “comissões” dentro da Marinha, Carlos Eugênio
retornou para Lisboa, trazendo ao peito, “além da Torre e Espada, mais três ordens do seu
país, sendo uma delas uma comenda” 17.
Mais tarde, por volta de 1870, assumiu a canhoneira Zarco, um navio a vapor, sendo
então promovido à Capitão-Tenente. Simultaneamente ao comando desse navio, assumiu o
comando da Estação Naval no Índico. Após três anos retornou à Lisboa.
Por volta de 1873, Carlos Eugênio iniciou sua vida política assumindo uma cadeira na
Câmara dos Deputados. No mesmo período, Carlos Eugênio ainda assumiu o comando das
corvetas Sagres e Estefânia.
Em 6 de Setembro de 1876 casou com Emília Angélica de Castro Monteiro, com
quem teve três filhos18.
16 Idem. p. XXIX. Vale salientar que em função da escassez de fontes sobre o passado de Carlos Eugênio Corrêa da Silva, nos baseamos nas informações contidas no prefácio biográfico elaborado pelo seu filho, que por vezes assume um tom apologético do passado de seu pai. 17 Idem. p. XXX. 18 Jesuina Amélia Corrêa da Silva (nascida em 29.09.1877); Henrique Monteiro Corrêa da Silva (nascido em 08.12.1878); Isabel de Castro Corrêa da Silva (nascida em 07.11.1880). ver nota 13.
33
No fim de 1876, Carlos Eugênio foi nomeado administrador colonial, ocupando o
cargo de governador de Macau e Timor. Ele permaneceu nessa função durante três anos, e no
transcorrer desse período, foi feito Visconde de Paço D’Arcos. Além de governar Macau,
também fazia parte de suas atribuições administrativas ser o Ministro Plenipotenciário
português na China, Japão e Sião 19.
No transcorrer dessa administração colonial, Carlos Eugênio foi confrontado por
diversas dificuldades. Destacam-se três: havia uma desordem financeira na colônia; a
criminalidade era alta; e o contexto diplomático era difícil em função da proximidade da
China, que não havia reconhecido a soberania portuguesa naquela região.
Uma de suas ações foi a regulamentação do jogo em Macau (os jogos Fantan e a
loteria Vae-seng). A maneira encontrada por Carlos Eugênio de aumentar os lucros
financeiros e investir em outras áreas foi o estabelecimento de licitações para definir os
monopolistas do jogo na cidade 20.
As relações diplomáticas nessa região foram extremamente conturbadas nesse período,
não sendo resolvida, durante o seu governo, a questão do reconhecimento do território
português pela China. Porém, a criminalidade foi combatida na cidade. Para dar conta dessa
tarefa, Carlos Eugênio teve que tomar algumas atitudes, e para conseguir a “segurança na
colônia, despertou em si a energia do comandante da Marinha. Foi severo, foi inquebrantável,
mas limpou Macau de bandidos” 21.
Em fins de 1879, o Visconde de Paço D’Arcos adoeceu gravemente e foi retirado da
administração colonial de Macau. Após se recuperar, já em 1880, foi nomeado Governador-
Geral do Moçambique. Nessa colônia, o cenário administrativo era o mais preocupante de
todas. Havia uma guerrilha nativa que não reconhecia a soberania portuguesa; Carlos Eugênio
solicitou recursos materiais, humanos e financeiros para combatê-los, porém sua solicitação
não foi aceita por Portugal.
Somava-se a essas dificuldades a falta de estrutura administrativa que fazia com que as
contas devidas fossem desconhecidas ao certo. A solução foi estruturar uma alfândega e
realizar algumas obras de infra-estrutura, contraindo empréstimos. O tempo que Carlos
Eugênio esteve à frente do governo da colônia de Moçambique, foi insuficiente para dar conta
da desordem administrativa e de liquidar a guerrilha local.
19 SILVA, 1974. op. cit. p. XXXI-XXXII. 20 MARQUES, A. H. de Oliveira (dir.). História dos Portugueses no Extremo Oriente: Macau e Timor do Antigo Regime à República. Lisboa: Fundação Oriente, 2000. 4v. [3ºvolume]. p. 52. 21 SILVA, op. cit. p. XXXI. Ver nota 16.
34
Em Março de 1882, Carlos Eugênio foi nomeado para o posto mais alto da
administração colonial portuguesa daquela época, o Governo Geral da Índia portuguesa 22.
O cenário encontrado nessa colônia era de inúmeros problemas decorrentes das
dificuldades de execução do tratado luso-britânico que foi assinado em 26 de Dezembro de
1878, e ratificado em Agosto de 1879. A idéia primordial do tratado era criar uma união
aduaneira que buscava: o desaparecimento de fronteiras para o trânsito de indivíduos e do
comércio; igualdade de bandeira na navegação; e uma harmonia monetária e de medidas.
Um dos pontos decorrentes desse tratado colocava em perigo uma indústria local de
sal. A indústria portuguesa estava se chocando com interesses britânicos, e Carlos Eugênio
passou 14 meses negociando esse ponto do tratado. A negociação teve que ser deslocada para
Europa para se tentar achar uma solução em função da irredutibilidade de Carlos Eugênio.
Dentre as realizações durante o seu governo, destacam-se a supervisão dos trabalhos
de construção de uma importante estrada de ferro (Mormugão) e de um porto; a construção de
pontes que facilitavam as ligações entre algumas regiões; e a regulamentação de uma polícia e
de uma estrutura de saúde, em função da demanda dos mais de 22 mil funcionários que
trabalhavam nessas obras.
O seu Governo-Geral da Índia portuguesa perdurou até Março de 1885. Em Abril de
1885 foi de licença para Lisboa, em função de uma doença da esposa. No final de 1885,
exonerou-se do cargo de Governador Geral da Índia, pelo mesmo motivo, terminando com
isso, a sua carreira na administração colonial.
Ao ser exonerado do cargo de Governador Geral da Índia, o visconde de Paço
D`Arcos foi eleito Par do Reino pelo distrito de Lisboa. Em 20 de Fevereiro de 1886, o
governo Regenerador de Antônio Maria Fontes Pereira de Melo terminou, dando lugar ao
governo Progressista de José Luciano de Castro Pereira Corte Real, que duraria até o dia 14
de Janeiro de 1890.
Nos dois primeiros anos do governo Progressista, Carlos Eugênio, que era político
ligado aos Regeneradores, ficou sem cargos públicos. No início de 1888, o Superintendente
do Arsenal da Marinha morreu envenenado, e o capitão-de-mar-e-guerra Visconde de Paço
D`Arcos foi lembrado para ocupar esse cargo. Entre as funções desempenhadas, Carlos
Eugênio acompanhou a construção de alguns navios para a Armada portuguesa, fez parte da
Junta Consultiva da Marinha, do Conselho de Instrução Naval, e colaborou com mais duas
22 Idem. p. XXXVIII-XLV.
35
comissões, inclusive presidindo uma delas que visava uma nova organização do Arsenal. Foi
na mesma época que foi-lhe concedida a honra de Ajudante do rei D. Luís.
Com o fim do governo progressista de José Luciano em 14 de Janeiro de 1890, iniciou
o governo regenerador de Antônio de Serpa Pimentel. Em 16 de Janeiro de 1890, Carlos
Eugênio foi nomeado Governador Civil de Lisboa23. Ao mesmo tempo em que assumiu o
Governo Civil de Lisboa, foi eleito novamente Par do Reino.
O contexto em que o Visconde de Paço D’Arcos assumiu esse cargo era de extrema
instabilidade. O rei D. Luís havia morrido em Outubro de 1889, e o seu filho D. Carlos I
recém o havia substituído. A crise financeira que o governo progressista de José Luciano
deixou para os regeneradores era enorme. E a situação se agravava em função da crise política
do ultimatum inglês de 11 de Janeiro24.
Dessa forma, o fato de Carlos Eugênio ser lembrado para o cargo de Governador Civil
de Lisboa nesse contexto de crise, mostra que o seu nome era visto como capaz de manter a
ordem na capital. Sobre as atribuições do Governador Civil de Lisboa, vale à pena salientar
que:
O lugar tinha naquele tempo importância superior à de hoje, porque não havia o fraccionamento de atribuições que hoje se dá e todos os vários serviços de ordem e divisões de política, de qualquer natureza que fossem, tinham a chefia superior do Governador Civil. Dada porém a excitação pública, a efervescência política que haviam explodido com a agressão britânica, o lugar era, no momento, mais especialmente grave e difícil 25.
O seu período à frente do governo de Lisboa durou só até Setembro de 1890. Carlos
Eugênio foi exonerado do cargo em função da substituição do Ministério de Antônio de Serpa
Pimentel pelo Ministério de João Crisóstomo de Abreu e Sousa. Ao ser exonerado, foi feito
Conde de Paço D’Arcos.
Após ser procurado por “figuras elevadas da colônia portuguesa do Brasil”, entre elas
o “Dr. Figueiredo de Magalhães (depois Conde de Figueiredo Magalhães) e o Barão de
Itanhaem de Andrade”, Carlos Eugênio aceitou o cargo de diplomata 26. Em 4 de Dezembro
de 1890 foi nomeado Ministro Plenipotenciário de Portugal nos Estados Unidos do Brasil. No
23 Idem. p. XLV-XLI 24 Logo após a virada do ano de 1890, em 11 de Janeiro, estourou a crise do chamado ultimatum inglês. Esse ultimatum se deu a partir das ambições portuguesas de unir suas possessões coloniais africanas de Angola e Moçambique, anexando parte de um território inglês. Essa ambição entrou em choque com as aspirações inglesas, personificadas nos interesses de Cecil Rhodes, de construir uma estrada de ferro que unisse os territórios do Cabo (futura África do Sul) até o Cairo. Ver mais em: MAGALHÃES, 2000. op. cit. 25 SILVA, 1974. op. cit. p. XLVI-XLVII. 26 Idem, p. XLVIII. Ver nota 16.
36
entanto, só assumiu suas funções em 2 de Junho de 1891 e permaneceu no cargo até 20 de
Novembro de 1893.
Depois de ter encerrado suas funções como diplomata no Brasil, Carlos Eugênio
retornou para Portugal. Em 14 de Fevereiro de 1895 foi nomeado Contra-Almirante
reingressando na Marinha.
A sua primeira comissão dessa fase final da sua vida pública foi a de vogal do Supremo Conselho de Justiça Militar. Em 1896 foi nomeado também vogal permanente da Junta Consultiva do Ultramar. Promovido a Vice-Almirante em 19 de Novembro de 1896, foi nomeado vogal do Conselho do Almirantado, e mais tarde, quando da reorganização da Armada, que extinguiu esse Conselho, passou a Diretor-Geral da Marinha. Em 2 de Agosto de 1900 assumiu o cargo de Major-General da Armada, ponto culminante da carreira da Marinha militar 27.
Carlos Eugênio permaneceu nesse cargo até o limite da idade permitida para serviço
ativo. Em Dezembro de 1904, deixou o serviço público e em 5 de Novembro de 1905 faleceu.
TABELA 1 – Relação da história de Portugal com a trajetória de Carlos Eugênio Corrêa da Silva
27 Idem. p. LXII.
História de Portugal no XIX Trajetória de Carlos Eugênio Revolta Liberal do Porto 1820 Golpe de Vilafrancada 1823 Golpe da Abrilada 1824 Início da Guerra Civil 1828 Fim da Guerra Civil 1834 1834 Nascimento de Carlos Eugênio
Revolução de 9 de Setembro 1836 Revolta dos Marechais 1837 Período de Golpe de Costa Cabral 1842 Formação na Escola Politécnica
Revolta da Maria da Fonte 1846 e na Guerra Civil da Patuléia 1846-47 Escola Naval Revolução Regeneradora 1851
Ato Adicional à Carta de 1826 1852 1853 Viagem pela China 1854 Comando da Vênus 1857 Oficial de Guarnição
1862 Comando da Napier Fusão Regeneradores e Históricos 1865 1865 Afastamento por motivo saúde Ministério Partido Reformista 1868-69 1867 Comando do Pedro Nunes
1870-71 Capitão Tenente/Comando Zarco
Criação do Centro Republicano 1873 1873 Câmara dos Deputados Criação do Partido Progressista e do
Partido Republicano 1876 1876 Governador de Macau e Timor 1880 Governador do Moçambique 1882 Governador da Índia Portuguesa
1885 Retorno para Lisboa/Par do Reino Proclamação da República Brasil 1889 1888 Superintendente do Arsenal da Marinha
Crise do ultimatum inglês 1890 1890 Governador Civil de Lisboa/Par do Reino Revolta de 31 de Janeiro na Cidade do
Porto 1891 1891 Início da Missão Diplomática no Brasil 1893 Fim da Missão Diplomática no Brasil
37
1.2 As origens do conservadorismo político.
A formação política de Carlos Eugênio é um ponto essencial para analisar os seus
posicionamentos e reflexões acerca da política brasileira no transcorrer de sua Missão.
Portanto, as suas experiências político-administrativas, referidas no item anterior, devem ser
contextualizadas na situação da política interna de Portugal no transcorrer do século XIX.
Esse esforço será útil para que possamos melhor compreender as origens conservadoras do
liberalismo português, assim como dimensionar o que significava ser um político ligado ao
Partido Regenerador.
Para dimensionarmos o conservadorismo político português que estamos referindo,
faz-se necessário buscar as próprias origens do liberalismo em Portugal desde a Revolução
Liberal de 1820. Pensamos que dessa forma será possível esboçar tanto o contexto em que se
deu a formação político-profissional de Carlos Eugênio, quanto analisar o impacto que a
Revolução Regeneradora de 1851 causou naquela sociedade ao sedimentar a ordem político-
social. Da mesma forma será possível pensar sobre a opção política de Carlos Eugênio após
esse ser formado em instituições que prezavam a disciplina social e hierárquica.
Para dar conta dessa tarefa, concordamos com Rui Ramos ao definir o republicanismo
enquanto uma “visão de mundo” que seria “a grande alternativa à tradição cristã na Europa”28.
Nesse sentido, em Portugal, a Reforma Pombalina foi um grande passo rumo a essa cultura
política republicana.
A Reforma Pombalina, ocorrida em Portugal em 1772, é percebida como uma
estratégia política que visou eliminar a influência jesuíta no ensino português a partir de um
conhecimento científico baseado na filosofia moderna 29. Portanto, essa reforma estaria
intimamente relacionada com aquela noção de republicanismo que Rui Ramos defende.
Contudo, a influência que o processo da Revolução Francesa teve na Europa faz com que
também esse acontecimento seja considerado como relevante para contextualizarmos o
liberalismo português. Assim, não só as estruturas do ensino se modificaram, mas também a
sociedade portuguesa como um todo se modificou no mesmo contexto.
Isso se explica a partir da invasão do território português pelas tropas francesas com o
objetivo de impor o Bloqueio Continental à Inglaterra. Como consequência dessa invasão, a
“opção mais razoável” dentre as quais possuía a Coroa portuguesa, era a transferência da
28 RAMOS, Rui (coor.). A Segunda Fundação (1890-1926). IN: MATTOSO, José. História de Portugal. Edição revisada e actualizada. Lisboa: Editorial Estampa. 2001. [v.6.]. p. 65-66. 29 GAUER,1996. op cit.
38
Corte para o Brasil, que era a colônia mais importante do Império português 30. Em função
dessa transferência da Corte para o Brasil é que se dão as condições necessárias para a origem
do movimento constitucionalista português, que após algumas tentativas frustradas,
materializa-se na Revolução Liberal de 24 de Agosto de 1820, na cidade do Porto.
A Revolução Liberal do Porto não se limitou a essa cidade. Esse movimento liberal
teve reflexos também em outras cidades importantes de Portugal, tal como Lisboa, onde
eclodiu a Revolução Liberal em 15 de Setembro de 1820. Portanto, esse movimento não deve
ser visto enquanto circunscrito apenas a uma cidade isolada das demais, e sim enquanto um
movimento que teve alcance nacional, passando para historiografia portuguesa como
Revolução vintista.
Essa revolução foi uma articulação entre juristas e militares descontentes. Os
primeiros preconizavam reformas jurídicas-constitucionais com um teor liberal que limitasse
os poderes da realeza, os últimos queriam o retorno da Corte portuguesa do Brasil, uma vez
que a invasão napoleônica já havia sido resolvida desde 1814 e já não havia mais desculpas
para a continuidade da família real portuguesa em terras brasileiras. Soma-se a esses fatores o
aprofundamento da crise econômica após as guerras napoleônicas e o destaque que o
comandante militar inglês Beresford passou a possuir na organização política portuguesa,
causando um aumento do sentimento nacionalista português. A Revolução vintista, dessa
forma, colocou em lados contrários os portugueses do reino e os portugueses da Nova Corte,
os quais já haviam enraizado interesses em terras brasileiras, em um processo que estava em
curso desde 1808 de “interiorização da metrópole” 31.
Essa Revolução vintista foi uma manobra política liderada pelo jurista Manuel
Fernandes Tomás. O grande objetivo desse conluio era submeter o rei D. João VI a uma
Constituição liberal, limitando seus direitos divinos e hereditários, e consequentemente,
colocando o absolutismo português em xeque 32.
30 BRANCATO, Braz A. A. Don Pedro I de Brasil, possible rey de Espana (uma conspiración liberal). Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. p. 84. 31 DIAS, Maria Odila Silva. “A interiorização da metrópole”. IN: MOTA, Carlos Guilherme (org.). 1822: Dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1986. 32 HOMEM, 2000. op. cit. p. 264. Para melhor entendermos as diferenças entre o Antigo Regime (Absolutismo) e o Novo Regime (Liberalismo) vale a pena brevemente aqui defini-los. Na conceituação de Alberto Vivar Flores, o Antigo Regime possui uma visão teocêntrica do mundo; um regime político centralizado na figura do monarca; uma sociedade estamental rigorosamente estruturada em Nobreza, Clero e Terceiro Estado; uma economia que prioriza a agricultura ao invés da indústria, baseando a produção em relações de trabalho feudais. Na definição de Novo Regime, a visão antropocêntrica de mundo é predominante; um regime político representativo e democrático; uma sociedade composta por indivíduos-cidadãos livres e iguais em dignidade e direito; e uma economia baseada no modo de produção capitalista, apoiada na Revolução Industrial. Ver mais em: FLORES, Alberto Vivar. El Liberalismo en Iberoamerica. Um pensamiento “fuera”de lugar: El caso de la Constitucion Política del Imperio de Brasil. Porto Alegre: PUCRS, 1999. (tese de doutorado). p. 164-165.
39
Esse movimento liberal fez com que o rei D. João VI retornasse para Lisboa e jurasse
a Constituição que estava sendo elaborada pelas Cortes portuguesa, deixando Pedro de
Alcântara como Príncipe Regente no Brasil. Nesse contexto, em 7 de setembro de 1822, Pedro
de Alcântara declarou a Independência do Brasil, e assumiu o comando do império brasileiro
como D. Pedro I, e em 23 de setembro do mesmo ano, Portugal promulgou a sua constituição
liberal feita aos moldes da constituição espanhola de 1812 33.
Contudo, D. Miguel e D. Carlota Joaquina se recusaram a jurar a mesma constituição
por considerarem uma afronta aos direitos reais e divinos da Monarquia. Dessa forma, em
torno deles se formou um grupo de conspiração com o intuito de liquidar os ideais liberais e
restaurar o absolutismo em Portugal.
É nesse contexto de dois projetos políticos antagônicos que se inserem os dois golpes
de Estado que visavam à restauração absolutista em Portugal 34. O primeiro deles entrou para
historiografia portuguesa como Vila-francada, ocorrido em 27 de Maio de 1823. Nesse
pronunciamento 35, D. Miguel saiu com a tropa revoltosa para a Vila Franca de Xira, nos
arredores de Lisboa. Nesse primeiro movimento, o rei D. João VI aceitou os fatos
consumados e suspendeu a validade da Constituição de 1822, além de dissolver as Cortes36.
Entre as outras atitudes que tomou, o rei nomeou um chefe para o governo que era um
absolutista moderado, o Conde de Subserra, e ainda nomeou D. Miguel como Comandante-
em-chefe do Exército português 37.
Em 30 de Abril de 1824 aconteceu a Abrilada. O infante D. Miguel tentou um
segundo golpe, sitiando o Palácio da Bemposta onde vivia o Rei. O golpe visava tomar para si
o governo monárquico. Após uma intervenção dos diplomatas estrangeiros acreditados em
Lisboa, D. João VI foi solto do cerco ao Palácio Real, e embarcou no navio inglês Windsor
Castle. A bordo desse navio, o Rei conseguiu retomar o pleno controle do governo em 14 de
Maio do mesmo ano, e decretou o exílio de D. Miguel, o qual seguiu para Viena, de onde só
retornou em 1828.
33 BRANCATO, 1999. op. cit. p. 111. 34 Sobre essas duas revoltas, ver: BRANCATO. 1999. p. 127-138. 35 Aqui adotamos a classificação conceitual de Vasco Pulido Valente que define “pronunciamento” enquanto “uma intervenção de oficias de carreira e de unidades, ou fracções de unidades regulares, que pretende substituir um governo ou um regime sem violência. O pronunciamento não depende de forças estranhas ao exército de primeira linha e normalmente rejeita a sua colaboração. O seu objetivo consiste em conseguir a colaboração (ativa ou passiva) da totalidade ou da maioria do exército para depois impor a vontade dos militares ao poder político”. Ver: VALENTE, Vasco Pulido. Os militares e a política (1820-1856). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 9. 36 SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal. Mira-Sintra – Mem Martins: Publicações Europa-América, 1978. [coleção saber]. p. 263. 37 FERREIRA, João. “Pedristas X Miguelistas: A luta continua”. IN: História Viva. Ano 1. Nº 1. Nov 2003. p. 88-94.
40
Em 4 de Março de 1826, D. João VI adoeceu gravemente, e no dia 5, decretou a
regência da sua filha D. Isabel Maria, que era irmã de D. Pedro e D. Miguel. Essa regência
acabou desagradando os setores conservadores da sociedade, que esperavam que a regência
fosse concedida à rainha D. Carlota Joaquina, que via com bons olhos a restauração
absolutista. O rei viria a morrer em 10 de Março, e a regência de D. Isabel Maria foi marcada
por uma forte repercussão externa. Essa repercussão se deu em função do rei da Espanha,
Fernando VII, que era irmão da D. Carlota Joaquina, e que tentou convencer os demais países
europeus a não reconhecer como legítima a regência de D. Isabel Maria 38.
Os intuitos de Fernando VII iam muito além da simples proteção dos direitos reais de
sua irmã. Seu objetivo era não permitir que Portugal tivesse um governo constitucionalista, e
sim que se mantivesse uma orientação absolutista no país vizinho. Esse objetivo se explica a
partir da própria situação interna da Espanha, que era uma Coroa absolutista e que não
desejava que o exemplo do vizinho ibérico se transformasse em argumentos para a oposição
ao governo conservador na própria Espanha. Fernando VII, assim, defendia que o verdadeiro
sucessor de D. João VI deveria ser D. Miguel, e não D. Pedro, já que esse havia renunciado
aos direitos reais portugueses ao declarar a Independência do Brasil. No entanto, a defesa dos
partidários de D. Pedro utilizava o mesmo argumento, pois D. Miguel havia tentado dois
golpes de Estado contra o governo de seu pai, perdendo, portanto, os direitos monárquicos 39.
A situação de Portugal, na visão dos outros países europeus, dava como legítima a
sucessão da Coroa portuguesa para D. Pedro, desgostando assim, o governo espanhol. A
diplomacia da época mostra que até mesmo a guerra contra Portugal foi pensada pelo governo
absolutista de D. Fernando VII, hipótese que foi logo abandonada pelo receio de que a
Inglaterra fosse ao socorro de Portugal, e a Espanha não tinha condições econômico-militares
para enfrentar tal embate. Quando a Inglaterra reconheceu a regência como legítima,
influenciando a atitude da França, da Rússia e da Áustria, só restou à Espanha, isolada,
reconhecer a regência em Junho de 1826.
D. Isabel Maria, irmã dos dois príncipes, assumiu a regência de Portugal, e avisou D.
Pedro que pelo testamento do seu pai, ele acumularia os títulos de D. Pedro I, Imperador do
Brasil, e D. Pedro IV, Rei de Portugal. Em 29 de abril de 1826, D. Pedro IV outorgou a Carta
Constitucional em Portugal. As características dessa Carta eram basicamente as mesmas da
Constituição portuguesa de 1822, no entanto, divergiam sobre os níveis de dominância entre
38 MAGALHÃES, 2000. op. cit. 39 BRANCATO, Braz Augusto Aquino. “A Espanha e a questão sucessória portuguesa – 1826”. IN: História Debates e Tendências. Passo Fundo: Ed. UPF. v. 3, n. 1. Julho de 2002. p. 43-53.
41
os Poderes. A Carta de 1826, assim como a Constituição do Brasil, era marcada pelo poder
Moderador, o qual se sobrepunha aos poderes Legislativo, Judiciário e Executivo. Essa é à
base daquilo que Amadeu Carvalho Homem chama de “origem constitucional bicéfala do
liberalismo português”, em função das duas constituições do período de formação de um
Estado liberal em Portugal, ou seja, a Constituição de 1822 e a Carta outorgada de 1826 40.
FIGURA 6 – Organograma da sucessão dinástica de Portugal
Após outorgar a Constituição, D. Pedro abdicou do trono a favor de sua filha, D.
Maria da Glória e ainda planejou a união matrimonial dela com o seu tio, D. Miguel. O
acordo previsto era que se D. Miguel jurasse a constituição, esse poderia assumir a condição
de Regente quando completasse 25 anos 41. Nesse ínterim, permaneceria a Regência de D.
Isabel Maria, a irmã de D. Pedro e de D. Miguel. Essa foi a maneira encontrada por D. Pedro
para tentar conciliar os interesses dos liberais, desejosos por uma Constituição, e dos
absolutistas, entregando o poder para D. Miguel, que jurou a Constituição de 1826 no dia 4 de
outubro de 1827. Alguns dias depois, os esponsais com a sobrinha foram realizados por
procuração, e logo depois retornou para Portugal vindo do seu exílio em Viena, em 22 de
Fevereiro de 1828, após uma longa viagem pela Europa 42.
Contudo, ao principiar sua Regência, D. Miguel passou a nomear conhecidos
antiliberais para compor o Governo. Aos pouco foram crescendo as manifestações para que D.
Miguel fosse aclamado Rei. Nesse contexto, em junho de 1828, D. Miguel convocou as 40 HOMEM, 2000. op. cit. 41 Uma ótima referência sobre as uniões matrimoniais portuguesas ao longo da História se encontra em: MARTÍNEZ, Pedro Soares. História Diplomática de Portugal. Lisboa: Verbo, 1986. 42 MAGALHÃES, 2000. op. cit. p. 154-159.
D. João VI - Morreu em 10 de Março de 1826
D. Pedro -D. Pedro I, Imperador do Brasil -D. Pedro IV, Rei de Portugal
D. Miguel -Golpe de Vilafrancada - Golpe da Abrilada
D. Isabel Maria -Regente em 5 de Março de 1826
D. Carlota Joaquina Esposa de D. João VI
D. Fernando VII -Rei da Espanha e irmão de Carlota Joaquina
D. Maria da Glória - D. Maria II, Rainha de Portugal
D. Pedro II - Segundo Imperador do Brasil
42
Cortes (Clero, Nobreza e o Povo) para se legitimar como soberano absoluto e revogou a Carta
Constitucional outorgada por D. Pedro IV.
Ao mesmo tempo, os partidários do governo legítimo de D. Maria da Glória
organizaram a resistência aos miguelistas na ilha de Terceira, onde se constituiu uma
Regência que mais tarde viria a ser presidida por D. Pedro que, após sua abdicação ao trono
imperial brasileiro ostentava apenas o título de Duque de Bragança. A Guerra Civil entre
Pedristas e Miguelistas, só findaria em 27 de maio de 1834, com a assinatura da paz na
Convenção de Évora-Monte, e com D. Miguel partindo para o exílio, sedimentando a vitória
do constitucionalismo em Portugal.
As conclusões de Amadeu Carvalho Homem sugerem-nos a existência daquilo que o
autor chama de “conservadorismo liberal”. Esse conservadorismo se baseia na configuração
social específica da sociedade portuguesa do século XIX. Mesmo representando certo avanço
político em relação ao absolutismo, o liberalismo português cartista43 era conservador em sua
essência. As elites dominantes desconfiavam da iniciativa privada, preferiam comprar títulos
nobiliárquicos e compor a administração pública, transformando-se em “notáveis locais”, ao
invés de, à semelhança de outros Estados da Europa, permitir a ascensão da burguesia como
investidora industrial, e perder o controle do Estado. Dessa forma, configurou-se um
“conservadorismo liberal” que se diferenciou do absolutismo, mas que estava longe das
reformas liberalizantes 44.
No entanto, o cartismo ainda seria diversas vezes contestado em Portugal pela
esquerda radical, tanto que o período que vai do fim da Guerra Civil em 1834, até 1851, ficou
marcado por diversas convulsões políticas. Dentre essas convulsões destacam-se a Revolução
de 9 de Setembro de 1836, a revolta da Maria da Fonte e a Guerra Civil da Patuléia.
1.2.1 A Revolução de 9 de Setembro de 1836
Após dois anos de experiência constitucional cartista era clara a divisão existente
dentro do liberalismo português. De um lado a ala moderada que tinha o apoio do Paço, e
consequentemente, ocupava cargos políticos no governo. Do outro lado a ala radical, ou a
“oposição constitucional” como ela mesma se chamava, passou a perceber que a Carta
43 O cartismo é como ficou conhecida na historiografia portuguesa o movimento político-social de defesa da Carta Outorgada por D. Pedro em 1826. 44 HOMEM, 2000. op. cit.
43
Outorgada de 1826 não dava margem política para mudanças na distribuição de poder dentro
do Estado. Dessa forma, aos poucos ficou claro que não havia chances da “oposição chegar ao
poder no quadro do sistema político instituído pela Carta” 45.
No dia 9 de Setembro de 1836 o povo foi às ruas de Lisboa receber e saudar os
deputados que vinham do Norte do país e que seriam nomeados representantes na Assembléia
Constitucional. Entre a população constava um grande número de membros da Guarda
Nacional que compareceram fardados a essa festividade. Uma indisposição entre o
comandante da Guarda Nacional, recém nomeado para o cargo, e que tinha substituído um
comandante da ala radical, teria precipitado os acontecimentos.
Uma multidão postou-se à frente do comandante exigindo que ele desse “vivas à
rainha e a Constituição de 1822”. Como ele teria se recusado a saudar a antiga Constituição,
os batalhões da Guarda Nacional se organizaram sob o comando de Soares Caldeira na região
do Rossio e se prepararam para um enfrentamento. Os oficiais enviaram uma mensagem à
rainha solicitando que ela aceitasse a Constituição que havia sido proclamada (1822) e que
formasse um novo Ministério e um novo Conselho de Estado. A rainha anuiu. O Governo que
saiu dessa Revolução e assumiu o Ministério ficou conhecido como setembrista. Dessa forma,
“a palavra setembrismo serve, até meados do século XIX, para exprimir a ala mais avançada
do liberalismo” 46.
Sob o ponto de vista da constitucionalidade da revolta, ou seja, do direito do povo a
rebelar-se, e a decisão de proclamar a Constituição de 1822, Maria de Fátima Bonifácio nos
lembra que:
À luz da doutrina política da Carta, a insurreição é um acto intolerável. Mas é um direito implícito na Constituição de 1822, visto que esta designa a nação como origem exclusiva da soberania. Revoltando-se contra um poder opressor, o povo não faz senão exercer a sua mais sagrada prerrogativa. A reposição em vigor da lei fundamental de 1822 funda uma legitimidade nova que transforma os insurretos de ontem nos legais detentores do poder de hoje e apaga o pecado original que presidiu à sua investidura47.
Dentre os batalhões que participaram da Revolução de 9 de Setembro, destaca-se os
artífices do Arsenal da Marinha, ou os arsenalistas como também eram chamados. Os
arsenalistas eram funcionários públicos organizados em uma manufatura, talvez a maior de
todas as manufaturas de Lisboa contando com mais de dois mil funcionários. Por serem
funcionários públicos recebiam os pagamentos de salários do governo. Desde o fim da Guerra
45 BONIFÁCIO, Maria de Fátima. “A Revolução de 9 de Setembro de 1836: a lógica dos acontecimentos”. IN: Análise Social. Vol. XVIII (71). 1982 (II.º). pg. 331-370. citação p. 340. 46 SARAIVA, 1978. op. cit. p. 279. 47 BONIFÁCIO, Maria de Fátima. “Os arsenalistas da Marinha na Revolução de Setembro (1836)”. IN: Análise Social. Vol. XVII (65), 1981 (I.º). pg. 29-65. citação da p. 54-55.
44
Civil em 1834 e a subida ao poder dos moderados cartistas, o que se viu foi uma péssima
administração financeira do Arsenal. Os salários sempre atrasavam o que obrigava os
trabalhadores a recorrerem a empréstimos e, consequentemente, tendo que pagar usura; as
promoções dos aprendizes para oficiais demoravam mais do que o normal, chegando a
demorar anos, o que prejudicava financeiramente os trabalhadores. Todo esse cenário de
insatisfação fez com que surgisse dentro do Arsenal um grupo político favorável ao
radicalismo. Entre esses arsenalistas estava o pai de Carlos Eugênio, o funcionário público
João José da Assumpção e Silva.
A Revolução de Setembro não se estabeleceu como vitoriosa facilmente, tendo que
responder a algumas contestações, tanto no plano externo quanto no plano interno. Ainda em
1836 houve uma tentativa de contra-golpe com apoio da Inglaterra e da Bélgica, que
chegaram a desembarcar tropas em Portugal. A rainha chegou a demitir o Ministério
setembrista, porém a população pegou em armas e marchou sobre o Palácio de Belém, onde a
rainha estava, fazendo o contra-golpe falhar. De acordo com Vasco Pulido Valente, houve
uma a “intervenção passiva do exército”, que permaneceu quieto no restante do país48. Essa
tentativa de contra-golpe ficou conhecida como Belenzada.
As tentativas de retirar do governo os radicais setembristas continuaram. De Julho de
1837 até Setembro do mesmo ano, aconteceu a revolta de quartéis em várias cidades. Os
marechais Saldanha e Terceira assumiram o comando desse movimento, que ficou conhecido
como Revolta dos Marechais 49. De acordo com Hermano Saraiva, esse movimento tinha
“maquinações inglesas provocadas pela legislação tributária, que procurava diminuir a
importação pela agravação da pauta alfandegária” 50.
A contestação aos setembrista não ficou na Belenzada e na Revolta dos Marechais. Os
próprios civis que haviam feito a Revolução estavam desapontados com os rumos da revolta e
se organizaram novamente. O batalhão dos artífices do Arsenal, o mais ativo de todos os
batalhões da Guarda Nacional, foi comandado novamente por Soares Caldeira em 1838. Na
noite do dia 13 de Março, “as tropas do Governo cercaram os arsenalistas no Rossio e
metralharam-nos implacavelmente” 51.
Em 4 de Abril de 1838 foi jurada a nova Constituição portuguesa originada a partir do
governo setembrista. Essa Constituição era uma tentativa de compromisso entre a
Constituição de 1822 e a Carta de 1826.
48 VALENTE, 2005. op. cit. p. 117. 49 Para mais detalhes sobre a Revolta dos Marechais, ver: VALENTE, 2005. op. cit. p. 118-127. 50 SARAIVA, 1978. op. cit. citação da p. 279. 51 Idem. p. 280.
45
Voltava-se à divisão tripartida dos poderes, desaparecendo portanto o poder moderador do rei, mas mantém-se-lhe o veto absoluto e robustece-se a chefia do executivo. O Parlamento continuou, como na Carta, a ser formado por duas câmaras, mas a Câmara Alta passou a ser constituída por senadores eleitos e temporários, e não vitalícios e de escolha régia, como sucedia na Carta52.
Um dos personagens que tiveram projeção política a partir da Revolução de Setembro
de 1836 foi o principal responsável pela curta duração da Constituição de 1838. Político de
orientação ideológica radical, Antônio Bernardo da Costa Cabral foi um dos comandantes dos
arsenalistas. Fez parte da Assembléia Constituinte de 1837-1838 e defendeu a Constituição
de 1822 na íntegra. Porém, em 1839 rompeu com os radicais da esquerda e foi aos poucos
defendendo a manutenção da ordem e o progresso social. Costa Cabral passou da esquerda
radical para a direita conservadora53.
Em 27 de Janeiro de 1842, o governista e então Ministro de Justiça, Costa Cabral
dirigiu um pronunciamento militar, a partir da cidade do Porto, contra o governo que ele
próprio fazia parte. O objetivo desse pronunciamento foi acabar com a Constituição de 1838 e
forçar a rainha a revigorar a Carta Constitucional de 1826.
O que sobretudo estava em jogo, com o golpe de Costa Cabral, era o reforço da disciplinação dos estratos sociais que alimentavam e eram alimentados pelo radicalismo matizado, de carácter populista e democrático, que mantinha como referência a organização do poder e o projecto de inspiração vintista54.
Em 10 de Fevereiro de 1842, a Rainha decretou a volta da Carta de 1826. No mesmo
Decreto havia a promessa de convocar as Cortes Constituintes para reformar o texto
constitucional, agradando assim as correntes setembristas. Porém, a reforma não aconteceu.
O governo de Costa Cabral, que meses depois de chegar ao poder foi feito Conde de
Tomar, ficou marcado pela substituição de indivíduos que ocupavam cargos administrativo-
militares, sempre priorizando aqueles que faziam parte da sua rede clientelística. O
cabralismo, como ficou conhecido o seu governo, procurou no plano administrativo a
centralização política que visava o reforço da autoridade estatal. Para tentar equilibrar as
finanças foram tomadas medidas como: o reforço da ação fiscal; a criação de Companhias e
de Caixas Econômicas que buscavam aplicações em fundos de poupanças. No plano
52 Idem. p. 280-281. 53 BONIFÁCIO, Maria de Fátima. “Costa Cabral no contexto do liberalismo doutrinário”. IN: Análise Social. Vol. XXVIII (123-124), 1993 (4.º - 5.º). p. 1043-1091. 54 MARQUES, Fernanco Pereira. Um Golpe de Estado: Contributo para o Estudo da Questão Militar no Portugal de Oitocentos. Lisboa: Fragmentos, 1989. citação p. 67.
46
econômico, a orientação do governo foi anti-protecionista, em uma defesa dos setores ligados
às exportações e importações55.
Aos poucos foi se organizando uma oposição ao governo de Costa Cabral. Todos os
descontentes com os rumos do cabralismo se aglutinaram em uma oposição. A única coisa
que unia os oposicionistas era o anti-cabralismo, já que havia setembristas, miguelistas e
cartistas críticos, todos juntos combatendo o governo do Conde de Tomar.
Os anos compreendidos entre 1842 e 1845 ficaram marcados pelas eleições
fraudulentas e o progressivo avanço da oposição. O governo cabralista buscava responder a
esses avanços oposicionistas reforçando suas tendências autoritárias e centralistas. As
medidas do governo começavam a se fazer sentir no interior do país.
Dentre essas medidas destaca-se a Lei de Saúde do governo, que proibia a realização
de enterramentos nos campos da Igreja e exigia o pagamento de um imposto (covato) para o
enterro em solo público e pelos custos do serviço religioso56. Outra medida era a necessidade
de registro das propriedades rurais para posterior lançamento do imposto predial. Essas
medidas fizeram precipitar uma revolta camponesa no norte do país.
1.2.2 A Maria da Fonte e a Guerra Civil da Patuléia
A revolta iniciada em Abril de 1846 ficou conhecida como Maria da Fonte. A revolta
teve esse nome porque as mulheres tiveram um papel de destaque e o local que aconteceram
os primeiros incidentes foi a freguesia de Fonte Arcada, conselho da Póvoa de Lanhoso. Os
camponeses invadiram prédios administrativos e queimaram os registros de propriedade e de
cadastro predial; arrombaram cadeias e até atacaram algumas tropas na cidade de Braga57.
O irmão de Costa Cabral, José Bernardo da Silva Cabral foi destacado para reprimir a
revolta. O Duque de Terceira, que acumulava no governo os cargos de Presidente do
Conselho, Ministro da Guerra e Chefe do Estado-Maior do Exército, teve o cuidado de não se
meter diretamente na repressão dessa revolta. José Bernardo, após alguns meses de combate à
guerrilha camponesa, passou a ter dificuldade de se fazer obedecer pela tropa. O Duque de
Terceira comunicou então à Rainha que a única forma de radicar a revolta era atender a
55 MARQUES, 1989. op. cit. p. 79-80. 56 VALENTE, 2005. op. cit. p. 127-132. 57 SARAIVA, 1978. op. cit. p. 281-283.
47
reivindicação de demissão do governo dos “Cabrais” 58. A Rainha, seguindo a orientação do
Presidente do Conselho, fez com que a 20 de Maio de 1846 os “Cabrais” caíssem do governo
de Portugal e se exilassem na Espanha 59.
FIGURA 7 – Conde de Tomar, Duque de Palmela, Duque de Saldanha e Duque de Terceira
A Rainha entregou o governo ao Duque de Palmela, o qual aboliu a Lei da Saúde e os
impostos criados pelo Conde de Tomar. Em 27 de Julho, Palmela convocou as Cortes
extraordinárias para enfim fazer a reforma constitucional, que havia sido prometida pelo
Decreto de 10 de Fevereiro de 1842.
Nesse momento, o Duque de Saldanha, que havia encabeçado a Revolta dos
Marechais, em 1837, juntamente com o Duque de Terceira, era esperado de volta a Portugal
como sendo um nome capaz de pacificar a situação política portuguesa. O Marechal havia
imigrado em função da vitória do setembrismo. Mesmo que junto com a Constituição de 1838
houvessem dado uma anistia geral, Saldanha permaneceu no exterior representando o governo
de Portugal em Cortes estrangeiras. Nesse período fora de Portugal, Saldanha passou a ver
nos partidos políticos os verdadeiros problemas que causavam a instabilidade governativa.
Permanecia disposto a trabalhar a bem da Pátria, disponível para regressar em salvador, determinado a cortar o mal pela raiz. Por outras palavras, tencionava elevar-se acima dos partidos e propunha-se discipliná-los a partir do alto pedestal da sua independência60.
Com a queda do cabralismo e a ascensão da oposição ao poder, que era composta por
setembristas, o Duque de Saldanha via com maus olhos esse novo governo por ser formado
pelo mesmo grupo político que liquidou a Revolta dos Marechais em 1837, a qual ele havia
tomado parte. O marechal retornou a Portugal em 23 de Julho de 1846. Desde então passou a
negociar com os cabralistas a possibilidade de chefiar esse partido cartista. Aceitou a chefia
58 VALENTE, 2005. op. cit. p. 132. 59 BONIFÁCIO, Maria de Fátima. História da Guerra Civil da Patuléia 1846-47. Lisboa: Estampa, 1993. citação p. 22. 60 Idem. p. 25.
48
do partido com a condição de manter longe os personalismos políticos – uma condição que
propunha excluir os “Cabrais” do poder, o que nunca veio a acontecer de fato.
Na noite do dia 5 para 6 de Outubro de 1846, a Rainha D. Maria II tirou Palmela do
comando do governo e nomeou o Duque de Saldanha para presidir o governo. A oposição
pegou em armas para combater o governo de Lisboa a partir da cidade do Porto, porque via
nesse governo de Saldanha o retorno do cabralismo. Essa guerra civil ficou conhecida como
Guerra Civil da Patuléia.
A oposição se organizou em uma Junta na cidade do Porto. Lá se formaram batalhões
cívicos para combater o governo de Saldanha. Ao mesmo tempo, o Marechal Saldanha
organizou a ofensiva do governo saindo com tropas em direção ao Norte do país.
O que se viu no transcorrer dos meses de guerra civil foi uma verdadeira falta de
vontade de combater o adversário, tanto por parte do governo de Saldanha, quanto por parte
da Junta do Porto. Aconteceram alguns enfretamentos militares, mas sempre com poucas
baixas de ambos os lados e uma constante comunicação entre os adversários, o que propiciava
os movimentos táticos de ambas as tropas pelo território português de forma a evitar um
enfretamento mais decisivo.
Para Saldanha não valia a pena esmagar a guerra civil originada no Porto porque se o
fizesse, acabaria com a oposição ao governo, dando total liberdade para a volta dos “Cabrais”,
o que findaria o seu sonho de eliminar os partidos políticos e unir a família liberal portuguesa.
Da mesma forma que existia divisão dentro da Direta governista, a Esquerda também possuía
as suas divisões internas. A ala mais radical era controlada pelos moderados, que não queriam
ganhar a guerra para não dar chances de esses radicais chegarem ao governo.
Ambas as partes evitavam a vitória e corriam contra o tempo para realizar um acordo
que favorecesse a todos. A política internacional foi acionada para tentar dar conta dessa
tarefa de organizar um tratado de paz digno, de forma que não houvesse vencidos nem
vencedores. Os governos da Inglaterra, França e Espanha se uniram em uma Aliança para
negociar a paz entre os portugueses. Após muitas dificuldades, ficou decidido que o acordo de
paz seria estabelecido observando-se principalmente quatro pontos essenciais:
O primeiro seria uma anistia plena e geral sem exceções para ninguém; o segundo a
revogação de todos os decretos anticonstitucionais publicados desde Outubro de 1846; o
terceiro ponto seria a realização de eleições indiretas e reunião de Cortes ordinárias; o quarto
item seria a nomeação de um governo ministerial composto por personalidades neutras, que
49
não estivessem nem na Direita cabralista nem na Esquerda juntista. Esse Protocolo foi
proposto em 21 de Maio de 1847, mas só assinado em 5 de Junho do mesmo ano 61.
Após a assinatura do Protocolo, o problema levantado era que a Junta do Porto só iria
se render para as tropas internacionais da Aliança, e não para as tropas do governo.
O espaço de tempo que mediou entre a aceitação dos quatro pontos do protocolo de Londres (5 de Junho) e a celebração da convenção de Gramido (29 de Junho) foi consumido na luta obstinada pela obtenção de condições de desarmamento que garantissem “a posse do que se tem obtido” 62.
Após muitas dificuldades de negociação, a Junta rendeu as armas às tropas
estrangeiras. A Rainha manteve o seu reinado e a Constituição de 1826 voltou a revigorar em
Portugal.
Porém, a situação política que se encontrava antes da guerra civil permaneceu
inalterada. O governo ministerial se manteve com o Marechal Saldanha à sua frente. Mesmo
sendo um dos itens do Protocolo a necessidade de formar um governo neutro, isso se
mostrava impossível na prática. Não existia um Centro político forte para fazer frente à
Direita e à Esquerda. Isso explica a decisão da rainha de sustentar o seu o governo a partir da
força oculta do cabralismo, que se mostrava forte na composição da administração pública, o
que veio a facilitar, inclusive, a sua vitória eleitoral em Dezembro de 1847. Em 2 de Janeiro
de 1848, o cabralismo retornava ao poder.
1.2.3. A Regeneração
A vitória do cabralismo nas eleições de Dezembro de 1847 só foi possível em função
da reaproximação dos irmãos Costa Cabral e José Bernardo. Desde o início de Guerra Civil da
Patuléia, os dois irmãos estavam fora de Portugal. José Bernardo regressou vários meses antes
para Portugal, e “acabara por se tornar o verdadeiro chefe do ultraconservadorismo e Costa
Cabral não se sentia inclinado a ajudá-lo a conquistar o poder” 63. Porém, a facção de José
Bernardo, apoiada no periódico O Estandarte, passou a reivindicar os louros da vitória nessas
eleições. Essa disputa familiar se acirrou de tal forma que logo em 14 de Abril de 1848 era
anunciado o rompimento definitivo entre os dois irmãos.
61 Idem. p. 88. 62 Idem, p. 116. 63 BONIFÁCIO, Maria de Fátima. “Segunda ascensão e queda de Costa Cabral (1847-1851). IN: Análise Social. Vol. XXXII (142), 1997 (3.°). pg. 537-556. citação p. 541.
50
Saldanha continuava na chefia do governo após as eleições. Porém, o país se
encontrava em uma situação em que era difícil governar. O Estado estava desorganizado, e a
oposição se utilizava de todas as oportunidades que surgiam para desestabilizar o governo.
Na Câmara dos Deputados, na imprensa, no exército e na Câmara do Porto, José Bernardo movia-lhe uma oposição tenaz, transformada em guerra aberta a partir de Julho de 1848. Disfarçada de “Partido Nacional”, a esquerda, ainda enleada nos compromissos da Patuléia e reanimada pela “Primavera dos Povos”, eximia-se a toda a espécie de colaboração. Dispunha de quase nenhuns votos no Parlamento, mas combatia ardorosamente nos jornais e corroia a disciplina no exército. Os radicais, através do Patriota e da Revolução de Setembro, por vezes, faziam coro em o Estandarte, provando assim, para escândalo dos espíritos moderados, que os extremos acabam, afinal, por se tocar 64.
A situação de Saldanha se agravou após uma reaproximação dos irmãos no início de
1849. Os periódicos que apoiavam Costa Cabral e José Bernardo trabalharam em conjunto
para conseguir a demissão de Saldanha do governo, o que aconteceu de fato em 19 de Junho
de 1849, quando D. Maria nomeou Costa Cabral novamente para chefiar o governo. Porém, a
reconciliação entre os irmãos duraria pouco. Em 27 de Agosto de 1849, José Bernardo
retornou para a oposição ao irmão.
No final de 1849, começaram a aparecer uma série de acusações contra o governo de
Costa Cabral. Entre essas acusações, estourou o escândalo da caleche (Ver figura 8). Um
negociante teria ganhado uma comenda de Costa Cabral em troca de uma caleche65. No início
do ano seguinte, estourou o escândalo da affidavit. “Desta vez era a própria honra da rainha,
como ‘mulher’, ‘esposa’ e ‘mãe’, que resultava salpicada pela contenda jurídica em que Costa
Cabral se envolvera com o jornal inglês Morning Post ”66.
A Câmara dos Pares estava disposta a discutir a questão, e Saldanha apoiou tal
parecer. Como punição a tal atitude, a rainha despediu Saldanha do cargo de mordomo-mor.
Esse reclamou da punição e ainda foi demitido dos cargos de Conselheiro do Estado, vogal do
Supremo Tribunal de Justiça Militar e de ajudante de campo d’el-rei D. Fernando, marido de
D. Maria II. Foi a partir desse momento, em Março de 1850, que ficou marcado o princípio da
decadência do segundo governo de Costa Cabral.
64 Idem. op. cit. p. 541-542. 65 SARAIVA, 1978. op. cit. p. 284. 66 BONIFÁCIO, 1997. op. cit. p. 548-549.
51
FIGURA 8 - Foto de uma caleche.
Todos os olhos estavam agora voltados para Saldanha, que era o único capaz de unir o
exército e derrubar o governo do Conde de Tomar. José Bernardo, que havia apoiado
timidamente o irmão no escândalo do affidavit, retomou o discurso de críticas a Costa Cabral,
e em Outubro de 1850 já dizia que a reconciliação era impossível.
A conjuntura internacional também não ajudava a rainha. Na Espanha vigorava um
governo chefiado por Narváez, que havia prometido proteção à rainha portuguesa. Porém, em
Janeiro de 1851, após o fim das revoluções na Europa, o general espanhol deixou de ser útil e
saiu do governo. Como diz Maria de Fátima Bonifácio, “passara o medo da anarquia
revolucionária, o pavor da subversão social, e passara também, por conseguinte, a hora de
Cabral” 67.
Em 7 de Abril de 1851, Saldanha foi para Sintra e Mafra acompanhado do filho e de
dois ajudantes de ordem realizar um pronunciamento. A sua vontade era unificar o exército e
acabar com a lealdade política existente dentro da corporação que separava o exército entre os
cartistas e os setembristas-radicais. Porém, quando o rei D. Fernando assumiu o comando-
em-chefe do Exército para reprimir os movimentos de Saldanha, certa hesitação tomou conta
das tropas fiéis à Saldanha.
Contudo, o que o próprio D. Fernando não esperava era, ao percorrer pelas províncias
e cidades do interior, encontrar uma população tão descontente. A infelicidade dos
funcionários administrativos era clara; A indisciplina nas instituições militares evidenciava as
dificuldades do momento. A própria tropa que D. Fernando comandava apresentava atos
contra a disciplina. D. Fernando reconheceu assim, a necessidade de retirar Costa Cabral do
governo, reconhecendo assim, sua derrota 68.
67 Idem, p. 545. 68 Idem. p. 551.
52
Da noite do dia 24 para o dia 25 de Abril de 1851 houve um pronunciamento no Porto
em favor de Saldanha. A rainha nomeou o duque de Saldanha chefe do Governo e dele
esperava a salvação do trono. A partir desse momento, tanto a Esquerda quando a Direita
passaram a apoiar Saldanha em busca de cargos e mercês. Porém, o marechal não queria o
apoio de nenhum partido político. O que ele buscava era justamente o apoio do exército, para
não precisar dos partidos.
Uma de suas primeiras medidas foi uma série de promoções dentro do exército, para
tentar unificar de fato a instituição. Contudo, em um primeiro momento, ele teve que compor
um ministério com algumas personalidades patuléias para conseguir manter a ordem. Depois
de um curto período de experiência dos progressistas patuléias no governo, Saldanha
despediu os políticos do “Partido Nacional” – como se auto-proclamava esse partido anti-
cabralista – e, em 7 de Julho de 1851, compôs um novo ministério com Rodrigo da Fonseca e
Fontes Pereira de Melo. Nas palavras de Maria de Fátima Bonifácio, “estava concluído o
golpe e podia começar a Regeneração” 69.
1.2.4. As duas fases da política portuguesa após a Regeneração
Com a Regeneração, houve uma diminuição dos conflitos abertos entre as facções
políticas, restringindo-se os conflitos no âmbito das eleições70. A Carta de 1826 continuou em
vigor, e pode ser realizada a tão esperada modificação em seu texto a partir do Ato Adicional
de 5 de Julho de 1852 71. As plataformas políticas de desenvolvimento e reformas foram
retomadas, sendo essa idéia de “regeneração da vida nacional” a aspiração central do
movimento liderado por Saldanha72.
O grupo político progressista que tinha apoiado Saldanha nos primeiro meses da
revolução, após a reforma ministerial de 7 de Julho de 1851, cindiu. Parte desses políticos
continuou a apoiar Saldanha e ficaram conhecidos como Partido Progressista Regenerador. A
dissidência progressista histórica, que tinha origem no setembrismo e na patuléia, se
organizaram e deram origem ao Partido Histórico.
69 Idem, p. 556. 70 BONIFÁCIO, Maria de Fátima. “A guerra de todos contra todos: ensaio sobre a instabilidade política antes da Regeneração”. IN: Análise Social. Vol. XXVII (115), 1992 (I. º). p. 91-134. 71 A principal inovação que o Ato Adicional instituiu foi a realização das eleições a partir do sufrágio direto. Ver: ALMEIDA, Pedro Tavares de. Eleições e Caciquismo no Portugal oitocentista (1868-1890). Lisboa: Difel, 1991. p. 33-34. 72 SARAIVA, 1978. op. cit. p. 284.
53
Portanto, em um primeiro momento, o papel de oposição ao Partido Progressista
Regenerador, foi desempenhado pelo Partido Histórico.
(...) os regeneradores valorizam as reformas econômicas, administrativas e sociais: a ‘regeneração’ da Fazenda, da administração, das obras públicas, da instrução. Os progressistas dissidentes, ou históricos, (...) divulgam princípios mais radicais: sufrágio universal e não censitário, cortes constituintes e seleção dos administradores dos conselhos por eleição popular. Adeptos de uma política descentralizadora, os históricos defendem uma estrutura política assente na organização municipalista. Os regeneradores entendem, pelo contrário, que a centralização política e administrativa é imprescindível para atingir a riqueza, a prosperidade, o desenvolvimento industrial e ainda como sustentáculo do próprio equilíbrio e coesão nacionais73.
Mesmo com certa diferenciação de programas políticos, concordamos com José
Miguel Sardica, quando esse diz que na primeira fase da Regeneração não há uma fronteira
clara entre os partidos. Há uma clara vinculação personalista nos partidos, e esses partidos se
organizam a partir da rede clientelística de cada indivíduo. Na visão de Sardica, os partidos
eram:
Estruturas organizativas bastante informais, construídas a partir de cima e prioritariamente vocacionadas para a luta eleitoral e para a formação de blocos de apoio ou de oposição aos governos no interior do parlamento. Nessa condição, tratava-se de agrupamentos que reforçavam o “isolamento” relativo do mundo da política face ao geral do país, por não apostarem numa implantação social e geográfica mais alargada e por não se afirmarem como verdadeiros instrumentos de modelação e representação da opinião pública. Este como que autofechamento estava de acordo com uma deliberada atitude característica dos políticos do tempo, que confiavam mais nos círculos chegados de parentesco, amizade e influência do que em organizações partidárias formais e “extensivas” para manterem as suas margens de poder 74.
O Partido Regenerador tinha o apoio do Paço justamente por ser ordeiro e defender a
Carta de 1826. Na sua oposição estavam três outros partidos políticos. Além do já citado
Partido Histórico, ainda existiam o Partido Cartista e o Partido Legitimista. Porém, em épocas
de eleições, as composições políticas evidenciavam a proximidade ideológica entre essas
agremiações.
Dentro do Partido Cartista ainda havia duas divisões. De um lado a ala cabralista que
continuava fiel ao Conde de Tomar. De outro lado, a ala que apoiava Antônio José de Ávila,
que ficou conhecida como avilista. A divisão entre esses dois campos de influência se deu nas
73 RIBEIRO, Maria Manuela Tavares. “A Regeneração e o seu significado”. IN: TORGAL, Luís Reis; ROQUE, João Lourenço (coordenadores.). O Liberalismo. IN: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa. 1998. [V.5]. citação p. 102. 74 SARDICA, José Miguel. “A vida partidária portuguesa nos primeiros anos da Regeneração”. IN: Análise Social. Vol. XXXII (143-144), 1997, (4.°-5.°). p. 747-777. citação p. 749.
54
eleições de Maio de 1858, em que os avilistas queriam colaborar com os Históricos, enquanto
os cabralistas preferiam uma união com os Regeneradores75.
O Partido Legitimista, por sua vez, era uma agremiação de menor vulto. Alternou o
comportamento entre a disputa partidária, através das eleições, e a abstenção de concorrer às
urnas. Nas já referenciadas eleições de Maio de 1858 estiveram unidos aos Regeneradores.
Porém, diferentemente dos demais partidos liberais em que a Maçonaria tinha grande
participação e influência, entre os Legitimistas era a Ordem de São Miguel da Ala que tinha
certa preponderância. Essa Ordem era uma sociedade secreta em que o próprio D. Miguel era
o grão-mestre, colocando dúvidas em relação à filiação liberal desse partido.
A proximidade entre os partidos era tamanha que, em setembro de 1865, ocorreu a
fusão entre os Regeneradores e os Históricos. Essa fusão causou diversos rompimentos de
membros mais radicais descontentes com a hegemonia política dos Regeneradores. A partir
desses rompimentos se formou o Partido Reformista, “último avatar do radicalismo
monárquico-liberal”, que veio a ocupar o poder somente entre 22 de julho de 1868 e 11 de
agosto de 1869 76.
Os grupos políticos contrários aos Regeneradores tiveram que se reunir para disputar o
mando político, o que reforçou a engrenagem de partilha de poder 77. No início de setembro
de 1876, aconteceu a fusão entre os remanescentes do Partido Reformista e do Partido
Histórico, formando o Partido Progressista. Inaugurava-se assim, o rotativismo entre
agremiações políticas já mais consolidadas do que na primeira fase da Regeneração78.
Aqueles que estavam alijados do jogo político do rotativismo entre Regeneradores e
Progressistas, os dissidentes e descontentes, reivindicavam a herança dos ideais do
radicalismo vintista como um atestado de patriotismo genuíno. O contexto internacional com
os acontecimentos da Revolução Espanhola de 1868, e da Comuna de Paris em 1871, ainda
colaboraram para que houvesse ressonância em alguns radicais liberais portugueses os ideais
de socialismo e republicanismo.
Foi a partir desses excluídos do jogo político que surgiu o Partido Republicano em
1876, que se apresentou como a alternativa política ao conservadorismo liberal, tanto dos
Regeneradores quanto dos Progressistas, já que na prática política esses partidos pouco se
75 Idem. p. 763. 76 HOMEM, Amadeu Carvalho. A Propaganda Republicana 1870-1910. Coimbra: EDILIBER, 1990. p. 5-10. 77 HOMEM, Amadeu Carvalho. “Liberalismo, democracia e socialismo na História Contemporânea de Portugal”. IN: BRANCATO, Sandra Maria Lubisco, et al (orgs.). Portugal-Brasil no século XX: Sociedade, Cultura e ideologia. Bauru, SP: Edusc, 2003. p. 15-28. 78 SARDICA, 1997. op. cit. p. 777.
55
diferenciavam entre si79. Dessa forma, em 1873 foi fundado o Centro Republicano e em 1876
foi criado o Partido Republicano Português 80. E o PRP passou a ser o herdeiro político da
tradição liberal vintista, e a única alternativa política ao liberalismo conservador monárquico
português.
A partir desse contexto, o cenário político português pouco se modificou. O
rotativismo entre Regeneradores e Progressistas pacificou de vez a política portuguesa. O
Partido Regenerador representava o partido liberal mais conservador, e a sua vitória
representava a vitória da ordem sobre a desordem.
Conclusões
Em um estudo sobre as “origens sociais do corpo de oficiais das Forças Armadas
portuguesas ao longo do século XX”, Maria Carrilho nos mostra que é importante levar em
consideração a origem social dos profissionais militares para melhor compreender o seu
comportamento político81. Em contrapartida, José Murilo de Carvalho nos mostra a relevância
que a socialização e o treinamento têm na formação de uma elite homogênea no Brasil do
século XIX82.
A descrição das origens sociais do Conde de Paço D`Arcos, assim como as
instituições nas quais estudou, tal qual foi feito na primeira parte deste capítulo, seriam
suficientes para deduzirmos o seu conservadorismo e a sua obstinada vontade de manter a
ordem social e militar. Se somarmos o argumento que Carlos Eugênio teria se socializado
com outros indivíduos com a mesma formação no transcorrer de suas experiências na
Marinha, o argumento do conservadorismo ganha corpo.
Porém, ao analisarmos mais atentamente sua trajetória pessoal e o contexto de sua
formação, percebemos que existem outros elementos explicativos para o seu conservadorismo
que vão além do treinamento e da socialização. Concordamos com a opinião de Fernando
Pereira Marques, que diz não ser na origem social que se encontrará as explicações das
opções políticas dos militares83. Esses outros elementos explicativos estão relacionados, na
nossa opinião, com o processo de afirmação do liberalismo em Portugal.
79 HOMEM, 2000. op. cit. 80 NETTO, José Paulo. Portugal: do fascismo à revolução. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986. p. 15. 81 CARRILHO, 1982. op. cit. 82 CARVALHO, 2008. op. cit. 83 “Ou seja, entre os militares as práticas políticas estão submetidas a condicionalismos diversos dos não militares, na medida em que encolceram a condução de homens, a submissão de hierarquias e um sistema estruturado de prêmios e punições”. MARQUES, 1989. op. cit. p. 28.
56
O período em que Carlos Eugênio teve sua formação educacional e suas primeiras
experiências profissionais, tanto na Escola Politécnica quanto na Escola Naval, foi um
período de agitação política. Desde a Revolução Liberal de 1820 o país sofria com os
distúrbios e disputas entre facções políticas pelo controle do governo, pelas disputas eleitorais
e pelos cargos administrativos do Estado84. A instabilidade política e social só foi contornada
após a Revolução Regeneradora de 1851, em que marcou a ascensão do Partido Regenerador
e o início de um período político menos convulsivo em Portugal.
Quando aconteceu a Revolução Regeneradora, Carlos Eugênio tinha apenas 17 anos
de idade. Os ganhos políticos do novo momento político português eram evidentes. Os
pronunciamentos que marcaram o período anterior tinham acabado e agora se podia pensar
em uma organização das facções políticas em partidos políticos mais sólidos. O Partido
Regenerador representava naquele momento a vitória da ordem. Ao receber uma formação
profissional-militar em que as defesas da hierarquia e ordem são dois elementos essenciais,
Carlos Eugênio viu nos Regeneradores a agremiação política condizente com as ideias e
valores que ele havia aprendido, sobretudo na Escola Naval. Mesmo que o seu pai tivesse sido
alinhado politicamente com radicalismo setembrista, Carlos Eugênio seguiu o caminho aberto
pela Regeneração, e entrou para esse partido liberal conservador.
Esse “conservadorismo liberal”, dessa forma, como bem definiu Amadeu Carvalho
Homem85, gerou aquilo que Rui Ramos chamou de uma “cultura do patriotismo cívico”, em
que os homens bem educados pertenceriam a uma comunidade que defenderia a atividade
política como sendo a forma mais alta de realização pessoal86. Esse patriotismo estava colado
à manutenção da ordem social e o fim dos pronunciamentos e levantamentos militares, típicos
da época anterior à Revolução Regeneradora de 185187.
Portanto, em nossa análise, existiriam dois tipos de patriotismo: em primeiro lugar,
aquele que defendia a ordem social e se importava com o destino das instituições liberais –
geralmente eram aqueles que estavam inseridos no jogo político; em segundo lugar, aquele
patriotismo que via nessa ordem conservadora as raízes das mazelas sociais, e identificavam a
monarquia como principal obstáculo aos interesses da população. Carlos Eugênio estava
inserido no primeiro grupo de patriotas, ou seja, um defensor da ordem social e hierárquica.
84 BONIFÁCIO, 1992. op. cit. 85 HOMEM, 2000. op. cit. 86 RAMOS, 2001. op. cit. p. 47. 87 VALENTE, 2005. op. cit.
57
2- A ORDEM SOCIAL E HIERÁRQUICA À OUTRANCE:
A análise das apreciações do Conde de Paço D’Arcos sobre
a política nacional brasileira.
No capítulo anterior buscamos desenvolver dois argumentos que consideramos
essenciais para compreensão da leitura que Carlos Eugênio Corrêa da Silva fez da política
brasileira no transcorrer de sua Missão Diplomática no Brasil, entre os anos de 1891 e 1893.
Os dois elementos estão ligados a sua trajetória político-profissional antes de assumir o cargo
de Ministro Plenipotenciário de Portugal no Brasil.
O primeiro deles foi a sua formação para carreira militar. O fato de ter estudado na
Escola Politécnica e na Escola Naval e, consequentemente, ter sido treinado para respeitar a
ordem social e hierárquica, e ter se socializado com outros indivíduos com a mesma
formação, fazem com que esse indivíduo tenha incorporado esses valores e os tenha
reproduzido no transcorrer sua vida.
O segundo argumento, e que se soma ao primeiro, diz respeito à sua opção política
pelo Partido Regenerador. Para tentar compreender essa opção contextualizamos a política
portuguesa desde a Revolução Liberal de 1820 para evidenciar a importância da Revolução
Regeneradora de 1851 para a sociedade portuguesa como um todo. Dessa forma, procuramos
mostrar que o estabelecimento da disciplina social foi um grande atrativo para que Carlos
Eugênio optasse pelos Regeneradores e que viesse a ser um político ligado a essa agremiação,
inclusive desempenhando mandatos parlamentares na Câmara dos Deputados, na Câmara dos
Pares e ocupando o cargo de Governador Civil de Lisboa.
Com esses dois argumentos trabalhados no capítulo anterior pensamos ser agora
possível evidenciar, a partir da documentação produzida pelo Conde de Paço D’Arcos em sua
Missão Diplomática, seu conservadorismo político na análise da política brasileira. As defesas
da ordem e da hierarquia são um reflexo de sua formação político-profissional. Dessa forma,
consideramos que a leitura dessa documentação produzida por Carlos Eugênio deve ser
orientada a partir desses pressupostos, evitando a simples reprodução das percepções que esse
diplomata teve no transcorrer de sua Missão.
Neste segundo capítulo, portanto, o objetivo será avaliar a documentação produzida
por Carlos Eugênio, centrando a análise no cenário político nacional. Ou seja, partindo destes
pressupostos de defensor da ordem social e hierárquica e de político conservador, vamos
58
procurar dialogar com algumas referências historiográficas do período republicano brasileiro
que julgamos essenciais para ilustrar suas análises políticas1.
Para evitar uma análise simplesmente cronológica da fonte, o exame documental será
orientado a partir de três eixos temáticos que visam dar conta de suas percepções em relação à
instabilidade política brasileira: o primeiro é sua preocupação constante com a ordem social
brasileira; o segundo é uma análise de sua inconformidade com a falta de respeito com a
hierarquia militar; por último, suas percepções em relação ao meio político brasileiro,
sobretudo em relação a determinados grupos.
O Conde de Paço D’Arcos chegou ao Brasil em 2 de Junho de 1891 2. Nesse momento
já havia terminado o Governo Provisório e o Marechal Deodoro da Fonseca já havia sido
eleito o primeiro Presidente da República do Brasil. Carlos Eugênio permaneceu no seu cargo
até o dia 20 de Novembro de 1893, acompanhando, portanto, diversos momentos críticos da
consolidação do regime republicano brasileiro. Entre esses momentos, destacamos o Golpe de
Estado de Deodoro, o Contra-Golpe de Floriano Peixoto e Custódio de Melo, as revoltas
deodoristas e a eclosão da Revolta da Armada e da Revolução Federalista.
1 Dada a brevidade desse trabalho não procuramos de forma alguma dar conta de toda a historiografia sobre o início da Primeira República brasileira. A escolha das obras analisadas se baseia em alguns critérios de seleção. O primeiro é a existência ou não de referências à documentação produzida pelo Conde de Paço D’Arcos. O segundo é a relevância da obra para melhor contextualizar a documentação analisada. Ainda procuramos ter como base e orientação as classificações sobre a historiografia da República feitas por Emília Viotti da Costa, assim como pelas adicionais informações feitas por Francisco Falcon. Também levamos em consideração algumas indicações feitas por Marieta de Moraes Ferreira e Ângela de Castro Gomes. Ver: COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 7ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. Sobretudo os capítulos: “Sobre as origens da República” e “A proclamação da República”. FALCON, Francisco. “historiografia republicana, historiografia da República. IN: HOMEM, Amadeu Carvalho; ISAÍA, Artur César; SILVA, Armando Malheiro da. (coords). Progresso e Religião: A República bo Brasil e em Portugal (1889-1910). Coimbra: Universidade de Coimbra; Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2007. p. 389-409. GOMES, Ângela de Castro; FERREIRA, Marieta de Moraes. “Primeira República: um balanço historiográfico”. IN: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 4, 1989. p. 244-280. 2 BRANCATO, 1993. op. cit. p. 197-198. [despacho de 12.06.1891]
59
2.1 - O disciplinador social
Após a Proclamação da República em 15 de Novembro de 1889, formou-se um
Governo Provisório chefiado por Deodoro da Fonseca. O jornalista francês Max Leclerc foi
enviado ao Brasil para acompanhar os primeiros momentos do novo regime político. A tarefa
desse repórter do Journal des Débats era, além de trazer notícias periódicas da nova situação
política do Brasil, esboçar um panorama das possibilidades de investimentos que se abriam
aos capitalistas franceses com o novo regime político brasileiro. O jornalista se preocupou em
retratar a situação política, social, econômica, cultural do Brasil no início da República3.
Leclerc desembarcou no Rio de Janeiro no dia 21 de Novembro de 1889 e em 24 de
Novembro sua primeira carta era enviada para França. Após uma breve descrição da sua
viagem a bordo de um navio com destino à Buenos Aires e Montevidéu, a situação política da
recém-instaurada República dominou suas observações. A metodologia adotada por esse
repórter foi a de inquirir, durante três dias, diferentes pessoas as quais anotava e comparava os
testemunhos.
As primeiras impressões que Leclerc teve foram de que “aqueles que fizeram a
Revolução não tinham tido a intenção de fazê-la”. Na verdade “o objetivo era a derrubada de
um ministério” e que “a monarquia caiu como um fruto maduro”. Além disso, a Revolução
teria tido a “cumplicidade dos fazendeiros das províncias” que teriam sido prejudicados com a
abolição4.
No dia 27 de Dezembro de 1889 o jornalista francês questionou o longo prazo que o
Governo Provisório fixou para si próprio para reunir a Assembléia Constituinte. De 15 de
Novembro de 1889 até o 15 de Setembro de 1890 – data em que se reuniu a Assembléia
Constituinte – teriam se passado onze meses, e a sua preocupação residia em “como esperar
que [o Governo Provisório] escape à lei comum e não cometa erros graves durante um
período tão longo, em que talvez ninguém erga a voz para adverti-lo?” 5. As descrições de
Max Leclerc, que permaneceu no Brasil até fins de Janeiro de 1890, ajudam a dimensionar o
ambiente político brasileiro antes da chegada de Carlos Eugênio ao Brasil.
O diplomata português chegou ao Rio de Janeiro em 2 de Junho de 1891, e desde o
início da sua Missão passou a observar as dificuldades de sedimentação do novo regime. Para
Carlos Eugênio a defesa da ordem social sempre foi um ponto importante. Mostramos que no
3 LECLERC, Max. Cartas do Brasil. Trad., prefácio e notas de Sérgio Milliet. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1942. 4 Idem. p. 17-21. 5 Idem. p. 30.
60
transcorrer de sua formação profissional, na Escola Politécnica e na Escola Naval de Lisboa, a
sociedade portuguesa experimentou um período de convulsão social. Essa instabilidade só foi
contornada após a Revolução Regeneradora de 1851 que trouxe para Portugal um período de
relativa ordem social, mesmo que no campo da disputa eleitoral ainda houvesse conflitos.
Os ganhos sociais que a ordem trouxe para a sociedade portuguesa foram, sem
dúvidas, um grande atrativo para que Carlos Eugênio optasse em seguir as orientações do
Partido Regenerador. Ao mesmo tempo em que esse partido representava o estabelecimento
da ordem, ele também representava a vitória da ala mais conservadora do liberalismo
português. A defesa da disciplina social sempre esteve presente nas preocupações de Carlos
Eugênio, tanto nos tempos em que foi militar e administrador colonial como quando assumiu
o cargo de Ministro Plenipotenciário de Portugal no Brasil.
A partir do momento em que chegou ao Brasil, Carlos Eugênio passou a observar as
questões relativas à estabilidade social. Mesmo sendo um monarquista convicto, a sua função
era representar a Monarquia portuguesa na República brasileira. Em seus telegramas e
relatórios enviados ao Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, o Conde de Paço
D’Arcos sempre buscou descrever os conflitos que estavam impedindo o estabelecimento da
ordem social e que, consequentemente, dificultavam a implantação do novo regime.
2.1.1. Situação dos estados
As descrições de Carlos Eugênio sobre a consolidação do novo regime, por vezes,
parecem trazer novos elementos para a historiografia da Primeira República. Esse é o caso dos
tumultos regionais que dificultavam o estabelecimento da República. O contexto em que se
dão essas agitações nos estados, de acordo com Edgard Carone, é de definição das lideranças
coronelísticas que disputavam a hegemonia política 6. Em cada estado a notícia da
Proclamação foi recebida distintamente, dependendo das relações específicas existentes entre
os grupos republicanos históricos, ex-monarquistas e os militares. Esse é o caso das
observações referentes à situação da “Província do Pará” 7.
Em 30 de Junho de 1891, o Conde de Paço D’Arcos escreveu ao Ministro dos
Negócios Estrangeiros de Portugal, o Conde de Valbom, descrevendo a situação do Pará. As
6 CARONE, Edgard. A República Velha: A Evolução Política (1889-1930). 4ed. São Paulo: DIFEL, 1983. 2v. p. 36 a 43. 7 Na documentação original consta como “Província do Pará”. Contudo, desde 24 de Fevereiro de 1891, com a promulgação da nova Constituição, se formou um Estado Federal brasileiro composto por Estados federados. Dessa forma, vamos tomar a liberdade de sempre manter as referências no original do documento, por considerar que assim se mantém a idiossincrasia do indivíduo, porém, sempre colocando as expressões entre aspas.
61
notícias que ele recebia daquela região diziam que “continua[va]m os animos a estar bastante
agitados tendo-se já dado na propria capital ocorrencias de certa gravidade”. Também dizia
que “não parece haver a menor duvida é de que se tem dado graves ferimentos e se tem feito
muitas prisões” 8. Esses tumultos regionais são, para Carlos Eugênio, um “periodo de
inevitável transição pela mudança de instituições, vê-se que ainda não acabou e tarde terá seu
termo” 9.
As previsões do Conde de Paço D’Arcos se confirmaram e os tumultos regionais se
disseminaram, sobretudo, quando o Presidente Marechal Deodoro da Fonseca, depois de uma
tentativa de Golpe de Estado em 3 de Novembro de 1891, foi substituído pelo Vice-
Presidente, o Marechal Floriano Peixoto, no dia 23 de Novembro. Após esse incidente,
houveram diversos tumultos regionais entre os governadores que apoiaram Deodoro no Golpe
de Estado, e aqueles que substituíram esses primeiros com o apoio “branco” de Floriano,
sendo a única exceção do Estado do Pará, que manteve o mesmo governador10.
O Estado do Rio de Janeiro não foi diferente dos demais Estados da federação. O
estudo de Renato Lemos sobre a implantação da ordem republicana no Estado do Rio de
Janeiro desenvolveu adequadamente essa questão11. O autor buscou delinear as vinculações
políticas entre os republicanos e monarquistas desde a Proclamação da República para dar
conta das diversas alianças políticas realizadas no início do regime republicano. Essas
alianças se compunham de acordo com os ventos da política nacional.
Antes do Golpe de Estado de Deodoro, governava o Estado do Rio de Janeiro o
médico Dr. Francisco Portela. Portela havia realizado diversas mudanças administrativas com
o claro intuito de fortalecer seu poder pessoal e alijar do poder a oposição em todos os
municípios, prática que ficou conhecida como portelismo. Porém, sua base de sustentação era
o governo federal, já que havia alcançado o cargo de governador por indicação de Quintino
Bocaiúva, além de ser apoiado por Deodoro. A oposição, por sua vez, tinha como base de
8 SILVA, 1974. op. cit. p. 81. [despacho de 30.06.1891] 9 Idem, p. 89. [despacho de 04.09.1891] 10 Edgard Carone comenta as disputas políticas ocorridas com as quedas dos governadores nos seguintes estados: São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Mato Grosso, Bahia, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Amazonas. Nos demais estados Edgard Carone diz que os governadores renunciaram voluntariamente. Esses estados seriam: Paraná, Espírito Santo, Goiás, Sergipe, Alagoas, Piauí, Maranhão. O estado do Pará é a única exceção em que o governador Lauro Sodré revelou sua discordância com a Ditadura e permaneceu no cargo após a derrubada de Deodoro. Ver CARONE, 1983. op. cit. p. 65-66 e 71 a 84. De acordo com John Schulz, o que explica a permanência de Sodré como Governador é que, Deodoro só poderia atacar o Pará pelo mar, porém, ele não possuía o apoio da Marinha nesse momento. Ver: SCHULZ, John. O exército na política: origens da intervenção militar (1850-1894). São Paulo: Edusp,1994. p. 170. 11 LEMOS, Renato Luís do Couto Neto e Lemos. “O Republicanismo fluminense”; “A disputa de Poder”; “A Oligarquia no Poder”. IN: FERREIRA, Marieta de Moraes (coor.). A República na Velha Provincia. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989. p. 27 a 93.
62
sustentação as elites político-econômicas do Estado que estavam sem representação formal na
burocracia estatal.
Em 3 de Novembro de 1891, o governador Dr. Portela apoiou o Golpe de Estado de
Deodoro. Porém, ao falhar o golpe, a sua situação se tornou insustentável, uma vez que ele
havia perdido a base de sustentação do governo federal e Floriano Peixoto dava sinais de que
não o ajudaria a se manter no poder, renunciando em 10 de Dezembro de 1891. Após a
derrubada de Portela, iniciou-se um período de conciliação entre as correntes políticas no
Estado do Rio de Janeiro. Mais tarde, assumiu o governo do Estado o Dr. José Tomás da
Porciúncula, que manteve relações de “sustentação mútua e apoio recíproco” com Floriano
Peixoto12.
Carlos Eugênio observou com muita atenção esses acontecimentos políticos do Estado
do Rio de Janeiro. Esse diplomata informou no despacho de 10 de Dezembro de 1891 enviado
ao Ministro Conde de Valbom que em “Nytheroy, [a] capital do Estado, sustenta[va] o
governador Dr. Portella, emquanto [em] outras cidades, revoltando-se, proclama[va]m
governador o Dr. Porciúncula, e sustenta[vam] com as armas o seu escolhido”. A disputa pelo
governo estadual chegou inclusive a causar distúrbios em Petrópolis, local em que funcionava
a sede dos Corpos Diplomáticos estrangeiros. De acordo com Carlos Eugênio, o Dr.
Porciúncula havia nascido em Petrópolis e possuía família residindo naquela localidade, e os
partidários do Dr. Portella se aproveitavam disso e perseguiam os partidários do adversário. O
cenário percebido pelo Conde de Paço D’Arcos era de “violência com os transeuntes, que são
levados à estação policial com maus tratos por simples suspeitas” e que à noite, se ouvia
“gritos repetidos de ‘alerta’ como numa cidade militar, e os tiros ressoam, logo após as
intimações e perguntas do ‘quem vem lá’ ou ‘passe de largo’ !” 13.
As violências praticadas por policiais alcançavam, inclusive, o Corpo Diplomático em
Petrópolis. Esse foi o caso do Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário do Chile,
Álvaro Bianchi Tupper, que “apezar das suas reclamações e de se fazer reconhecer por vários
indivíduos, foi levado ao calabouço aos empurrões e pancadas, bem como os que se atreveram
a querer defendê-lo!” 14. Esse episódio foi mais bem detalhado em um documento de 16 de
Dezembro de 1891. Ao Conde de Paço D’Arcos foi solicitado o envio de um relatório para o
12 LEMOS, 1989. op. cit. p. 78. 13 Idem. p. 114. [despacho de 10.12.1891] 14 Idem. p. 114. [despacho de 10.12.1891]
63
Ministro das Relações Exteriores do Brasil15, expondo aquilo que os seus secretários, o Conde
de Salir e Alfredo de Castro, sabiam sobre o caso do diplomata chileno.
De acordo com o referido no documento, encontravam-se os dois secretários em
companhia do Encarregado de Negócios da Itália na varanda do Hotel Orleans à noite, quando
foram surpreendidos por “uma viva discussão sobressaindo gritos de ‘deixe-me, deixe-me’ em
língua espanhola” 16. O Ministro chileno, que voltava para sua residência pelas nove horas da
noite, foi surpreendido por quatro policiais que o espancaram com o intuito, segundo o
próprio Ministro chileno, de lhe roubarem a carteira e o relógio. Ou seja, a força institucional
que deveria manter e prezar pela ordem, muitas vezes, era a responsável pelos distúrbios
sociais.
A situação em Petrópolis só se acalmou alguns dias depois. O governador Dr. Portella
foi deposto e em seu lugar assumiu o Dr. Porciúncula, que imediatamente entregou o cargo
para o contra-almirante Dr. Carlos Balthazar da Silveira, um delegado de Floriano17. Esse
novo governador apurou os fatos e após alguns meses acabou por castigar com a “demissão
do serviço da polícia os oficiais, e com prisão rigorosa e expulsão as praças inferiores do
corpo policial”. Para Paço D’Arcos, “este castigo tardio é mais um acto de política de partidos
do que uma satisfação diplomática, com a qual contudo tem de contentar-se à falta de melhor
a pobre vitima do estranho desaforo e falta de respeito pelas garantias diplomáticas”. A
conclusão que ele tira dessa questão é que “no Brazil continua a não haver segurança nem
socego, e que os homens e as cousas continuam a correr em perigoso desvairamento” 18.
A agitação social parecia se alastrar para todos os cantos do país. A estrutura consular
de Portugal registrava esses incidentes estaduais e comunicava-os ao Conde de Paço D’Arcos.
Esse por sua vez, elaborava relatórios para o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal.
Esse foi o caso do estado de Pernambuco.
15 Naquele momento o Ministro é Fernando Lobo Leite Pereira. Esse Ministro permaneceu no cargo entre 30.11.1891 até 13.02.1892. 16 Arquivo Histórico do Itamaraty (Est.288/Prat.02/Maço 11/ documento de 16.12.1891). 17 SILVA, 1974. op. cit. p. 120. [despacho de 22.12.1891] 18 Idem. p. 134-135. [despacho de 09.02.1891] (grifos nosso)
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FIGURA 9 - Organograma da hierarquia diplomática de Portugal no Brasil no fim do século XIX
Em 22 de Dezembro de 1891, já durante o governo de Floriano Peixoto, uma revolta
tomou conta de Pernambuco19. Carlos Eugênio avisou ao Ministério dos Negócios
Estrangeiros de Portugal que o “Cônsul [de] Pernambuco anuncia[va] luta sanguinária [entre
a] tropa [culminando com a] deposição [do] governador” 20. No dia seguinte em um longo
relatório, Carlos Eugênio dá mais informações sobre o que aconteceu. A luta entre a polícia,
que sustentava o antigo governador, e a tropa, que queria sua deposição, “foi tremenda porque
logo em resultado do primeiro combate se enterraram 69 mortos!”. A luta prosseguiu até que
as autoridades fugissem e fosse nomeado um delegado do governo federal 21.
Esse ambiente de instabilidade social prosseguiu no ano de 1892, e continuou a ser
preocupação central de Carlos Eugênio. Em 7 de Janeiro, em relatório enviado ao Ministro
dos Negócios Estrangeiros de Portugal, o Conde de Valbom, disse, sobre a situação no Brasil,
“que a anarquia continua”. O relatório prossegue dizendo que “nos diversos Estados não
cessa a deposição dos governadores, das intendências, das autoridades militares ou
administrativas e até mesmo dos vigarios ou parocos!” Aos olhos do diplomata inglês Mr.
Wyndham, colega do Conde de Paço D’Arcos, “tudo que se passa é tão ridículo que precisava
[ser] cantado com musica de Offenbach” 22.
19 Ver CARONE, 1983. op. cit. p. 81-82. 20 Idem. p. 119. [despacho de 22.12.1891] 21 Idem. p. 119. [despacho de 23.12.1891] 22 Idem. p. 125. [despacho de 07.01.1892] A composição mais famosa de Offenbach é “Can-Can”, que geralmente é associada a dançarinas de casas noturnas como Moulin Rouge. A idéia que é transmitida com essa
65
Carlos Eugênio concordava com a opinião do seu colega inglês. Ainda no mesmo
relatório ele descreveu um grave tumulto ocorrido no estado do Espírito Santo e outro em
Santa Catarina, com um nítido ar de sarcasmo frente à inconstância social que atingia níveis
surpreendentes:
O governador do Espírito Santo é deposto às 3h da noite por meia dúzia de encapotados, a que só faltaria a gravata branca para serem os conspiradores da ‘Angot’, e que do proprio palacio do governo começam a despejar ordens e a telegrafar para toda a parte, que está feita a revolução no Estado e eles constituídos em junta governativa! O governador de Santa Catarina, tendo por si o povo e os voluntários, apregoa que tem força e defenderá a sua eleição legal até à morte, chama os seus patricios alemães de Blumenau, mas apezar de tanta arrogancia cede à intimação dos oficiais do 25.º regimento, ou aos telegramas do Presidente da Republica, como se diz, e entrega o governo ao oficial que este nomeie! E assim por toda a parte, aparecendo (como já disse noutro oficio) a intervenção do exercito e um tertius gaudet da confiança do Itamaraty, que empolga o governo disputado pelos diversos galos que pretendem o poleiro.
Esse episódio em Santa Catarina contra o governador Müller causou a manifestação de
diversos cidadãos da colônia portuguesa. Esses contestavam a legalidade do Governador e
cobravam do Conde de Paço D’Arcos alguma atitude ou intervenção por parte desse
diplomata. Esse, por sua vez, nada fez ou respondeu para evitar se meter na política interna do
Brasil.
Entretanto, as notícias vindas de Santa Catarina eram acompanhadas de perto. A
política no estado era de instabilidade desde a Proclamação da República. Quando houve o
Golpe de Deodoro em 3 de Novembro, o governador do estado era Lauro Müller, um político
republicano apoiado pelos antigos conservadores, que apoiou o Golpe Deodoro. Quando
Floriano subiu ao poder, Lauro Müller foi deposto e a oposição federalista, composta por
antigos liberais, assumiu o governo estadual. A reação de Floriano foi nomear o Tenente
Manoel Joaquim Machado interventor para o governo do estado, contudo, o nomeado, foi
absorvido pela política dos federalistas e foi para oposição a Floriano. As arbitrariedades
cometidas por Machado fizeram com que esse fosse, por sua vez, substituído por Cristóvão
Nunes Pires23. Todas essas disputas e notícias de indivíduos que se alternavam no poder eram
acompanhadas pelo Conde de Paço D’Arcos.
Por um lado o tenente ou capitão Machado, o antigo sequaz de Floriano e a quem este retirára a sua confiança, querendo tirar-lhe o governo que ele não larga; por outro um
associação entre a política e a música é de um cenário de comédia teatral em que os personagens subiriam e cairiam do poder no ritmo musical. 23 CORRÊA, Carlos Humberto P. “O Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil em Santa Catarina 1893-1894”. IN: Estudos Ibero-Americanos. Vol. X. N.º 2. Dezembro de 1984. p. 55-67. Para uma análise mais detalhada dessas disputas ver: CORRÊA, Carlos Humberto. Militares e civis num governo sem rumo: o Governo Provisório revolucionário no sul do Brasil 1893-1894. Florianópolis: Ed. da UFSC, Ed. Lunardelli, 1990. (sobretudo capítulo 6 “a instalação do Governo revolucionário e as primeiras divergências”).
66
tal Elyseu Guilherme, vice-presidente ou vice-governador, ou quer que seja, que fora nomeado ou se apresentàra a si próprio para substituir o primeiro e ainda por outro lado um Dr. Hercílio Luz, que se diz aclamado agora por diversas municipalidades ou populações; podendo ainda acrescentar-se um quarto, um coronel comandante geral das tropas do governo Federal, que ora parece deliberar por ordens superiores do Presidente da República, ora obedecer a este ou àquele dos três governadores! É uma confusão que não posso entender, quando vejo as colunas dos jornais prenhes de telegramas em que os três ou quatro anunciam vitórias, combates, revoltas, deposições, aclamações, e tudo legal, como apregôam, e tudo por bem, segundo dizem. Quais são os que teem por si a legalidade e a razão, não sei, mas afigura-se-me tudo a mais completa anarquia 24.
O realismo político de suas observações sobre essa conjuntura social se expressa de
maneira límpida frente à confusão das deposições e alianças da política catarinense. Para
Carlos Eugênio, “afigura-se-me que não vou errado quando diga que a legalidade cifra-se no
interesse de aquêles que conseguem prevalecer-se do capricho do Presidente da República” 25.
O mês de Fevereiro de 1892 trouxe mais contestação à ordem social, o que causava
preocupação em Paço D’Arcos. No dia 9 desse mês, ele resumia o cenário nacional, dizendo
que “a mesma desordem pelos Estados, ainda pela maior parte em conflagração, e a mesma
falta de confiança na força do governo superior da federação e até na sua estabilidade” 26.
No dia 3 de Março, Carlos Eugênio achava que a situação parecia ainda pior. Havia
boatos sobre uma grande revolução que era adiada todos os dias. As notícias que chegavam
dos estados traziam mais preocupações em relação à conservação da ordem.
Esse foi o caso das agitações ocorridas no Ceará, que são significativas e valem à pena
serem mais detalhadas. O governador do estado no dia 3 de Novembro de 1891 era o General
Clarindo de Queiroz, que apoiou o golpe do Deodoro, e seu vice-governador era o Tenente-
Coronel Liberato Barroso, que foi contra o golpe. A reação de Deodoro ao ficar sabendo do
posicionamento de Barroso, foi de destituir o vice-governador. Isso fez com que os ânimos
oposicionistas se inflassem no apoio ao Tenente-Coronel Barroso. Quando se deu o contra-
golpe de Floriano Peixoto e Custódio de Melo, a política adotada por ambos foi tirar o poder
de reação do governador General Queiroz. O 11º Batalhão de Infantaria e a frota da marinha
estacionados em Fortaleza foram solicitados a deixar o Ceará.
Essa atitude deu margem para que os estudantes da Escola Militar do Ceará, que eram
florianistas e tinham rixas com a polícia do Estado, entrassem em conflito aberto com essa
força policial depois de assaltar os armamentos e canhões da escola. Essa luta aberta entre os
estudantes ajudados por alguns civis e a força policial estadual se deu no dia 16 de Fevereiro
24 SILVA, 1974. op. cit. p. 243. [despacho de 20.07.1893] (grifos nosso) 25 Idem. p. 249. [despacho de 12.08.1893] (grifo nosso) 26 Idem. p. 132. [despacho de 09.02.1892] (grifos nosso)
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de 1892, e teria durado 13 horas. Como resultado dessa luta, o Tenente-Coronel Barroso
assumiu o governo do Estado sob aclamação popular, sendo depois substituído por Nogueira
Acioli27. A maneira com que Paço D’Arcos comentou esses acontecimentos demonstra toda a
sua apreensão com a disciplina social.
A desordem e a conflagração continuam por toda a parte nos Estados, e emquanto no Rio Grande do Sul é definitivamente hasteada a bandeira da revolta de que se não sabem os fins, no Ceará a Escola Militar com parte da tropa e muitos populares dão combate sangrento ao governador, General José Claudino, que resistindo do seu palacio à frente de 200 policiais e outros tantos guerrilhas, vê, apoz uma luta em que houve muitos mortos e feridos, o palacio arrazado pela artilharia inimiga e é forçado a entregar o governo e fugir. (...) O caso do Ceará parece apoiado pelo actual governo superior da republica. Pelo menos o ministro da Marinha, almirante Custódio de Mello, o autor do golpe de 23 de novembro, em seus telegramas para o Comandante da flotilha do Amazonas, sob calor de manutenção da ordem, determinou que se não opozesse ao movimento da Escola Militar ou, o que é o mesmo, que não obedecesse ao governador, que soltasse os presos que aquêle mandàra para bordo dos navios e que não guerreasse o povo 28.
Logo após a queda do governador do Ceará, ocorreu a queda do governador do
Amazonas. No dia 4 de Março de 1892, o Conde de Paço D’Arcos enviou um relatório para o
Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Costa Lobo 29, informando que o governador
Tenente Coronel José Thaumaturgo de Azevedo havia “resignado o governo” e fugido 30.
Passados alguns dias desse comunicado, Carlos Eugênio produziu um novo documento
comentando a agitação que o Brasil atravessava.
A queda do Governador do Amazonas teria sido a última das quedas dos
“governadores eleitos” durante o governo Deodoro. Em todos os estados, “(...) o auxílio ou a
imposição do governo federal, que fez escolher novos governadores, quando mesmo os não
nomeou a pretexto de assegurar a ordem” 31. As deposições dos governadores nomeados por
Deodoro, seja de forma violenta ou não, foram seguidas pela substituição dos indivíduos que
compunham a administração em cada estado. Essas mudanças no funcionalismo público eram
acompanhadas de perto por Carlos Eugênio, que se surpreendia com o alcance que essas
alterações tinham na prática. Após a deposição do governador Thaumaturgo, “o último dos
últimos como dizem os jornais, e agora, assim como já não há governadores de tempo de
Deodoro, tambem não deve existir nem um só cabo de polícia dessa época”.
27 CARONE, 1983. op. cit. p. 83-84. Sobre o domínio dos Acioli no Ceará ver: JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. O Coronelismo: uma política de compromissos. 8ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. 28 Idem. p. 135-136. [despacho de 03.03.1892] (grifos nosso). A instabilidade no Ceará provocou inquietações no Rio de Janeiro com o pronunciamento de alguns militares proeminentes. Essas atitudes de quebra de hierarquia serão trabalhadas separadamente no item 2.2.2. 29 Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal entre: 17.01.1892 e 06.07.1892. 30 SILVA, 1974. op. cit. p. 138. [despacho de 04.03.1892] 31 Idem. p. 139. [despacho de 14. 03. 1892] (grifos nosso)
68
Ainda no documento do dia 14 de Março de 1892, Carlos Eugênio dizia que até
mesmo os párocos estavam sendo substituídos por sacristães tal era o alcance prático das
mudanças políticas em cada estado. Em sua opinião, tudo isso ridicularizava a política. E para
ilustrar bem a caricatura da situação social no Brasil, ele comunicava outro caso “ridículo”.
Esse foi o caso da deposição de um frade que administrava um convento carmelita da Bahia, e
que foi imposta por alguns estudantes que o fizeram fugir para um convento de outra ordem.
Depois disso os próprios estudantes passaram a administrar as rendas do convento. Para Paço
D’Arcos, tudo não passava de “notas cômicas destas revoluções continuadas, que não deixam
pedra sobre pedra! Notas cômicas que o humorismo dos jornais aproveita, fazendo esquecer o
horror de tanto sangue derramado para satisfação de feroz faccionismo” 32.
O documento prossegue com uma caracterização do panorama político-social. De
acordo com Carlos Eugênio, os tribunais estaduais eram dissolvidos, os juízes nomeados de
acordo com as circunstâncias, e a administração da justiça sustada. Da mesma forma, as
autoridades militares eram “substituídas por ordem do governo, quando não despedidas pelos
subalternos”. As autoridades policiais estavam na mesma “contradança”. Nos estados, “a
anarquia geral continua na mesma por toda a parte, sem que se saiba onde isto irá parar!”.
o Rio Grande armado e em luta, sem que saiba bem o que quere fazer; Minas dividido em dois Estados, cada qual com seu governador, suas intendência municipais e seus partidos; o Pará, Pernambuco e a Baía em permanentes arruaças; São Paulo em greves constantes, os telegramas dizendo de toda a parte que reinam a ordem e a legalidade, dando ao mesmo tempo noticias da anarquia, e finalmente os jornais apresentando miseráveis artigos políticos sem verdadeiro critério da tremenda situação, substituindo a analise pelos doestos, pelas verrinas ou pela chalaça, mas sempre cheios de correspondências e “a pedidos” em que cada um dos articulistas busca razão na força das injurias aos adversários! 33
No mês de Maio de 1892 aconteceu uma revolta no estado do Mato Grosso. Um
Coronel, chamado Barbosa, partidário da facção de Deodoro, iniciou uma revolta de cunho
separatista e independentista naquele estado. O seu plano era fundar a “República
Transatlântica”. O Conde de Paço D’Arcos explicou em seu relatório a importância relativa
que aquele estado ocupava na federação. Mesmo sendo um estado pouco povoado e
predominantemente agrário, possuía um peso militar significativo em função de ter sido palco
da Guerra contra o Paraguai 34. A tentativa de separação não deu em nada, e no mês seguinte,
32 Idem. p. 139-140. [despacho de 14.03.1892] (grifos nosso) 33 Idem. p. 140. [despacho de 14.03.1892] (grifos nosso) 34 Idem. p. 156-157. [despacho de 14.05.1892]
69
em Junho, Carlos Eugênio já comunicava a Portugal que “caiu pois por terra a nova e
embrionária republica transatlântica” 35.
No mês de Junho de 1892, houve uma aparente calmaria político-social no Brasil.
Contudo, no dia 22 do mesmo mês, as condições de estabilidade nos estados voltam a ser
abaladas. “Na Bahia as sessões do Congresso Estadual são interrompidas pela invasão do
povo das galerias que, descendo à sala, quere intervir nas deliberações e impor o seu veto aos
deputados, renovando as scenas da Convenção Francesa de 93” 36. Assim como a Bahia, o
estado do Mato Grosso voltou a se agitar com as manifestações populares e a violência nas
eleições.
O ano de 1893 iniciou um conturbado período para a política brasileira. Os estados
apresentavam manifestações e ocorrências graves, e, enquanto a revolução federalista se
desenrolava no Rio Grande do Sul, aconteciam incidentes no Pará e na Bahia. Porém é na
capital federal que o cenário político espalhava insegurança social. As reuniões políticas “que
se fazem publicamente nos clubes mais exaltados, proferindo-se grande número de dislates e,
fazendo-se as mais disparatadas propostas para a salvação da República” 37 assustavam pelo
radicalismo de suas propostas.
Uma destas, elaborada por um deputado vinculado a esses clubes, sugeria “que todos
os republicanos fossem jurar por escrito os seus princípios (os altares da pátria!)”. A proposta
ainda dizia que cada bairro seria encarregado de elaborar uma lista com os nomes dos
indivíduos que fossem suspeitos de “não aderentes à república de alma e coração! (os comitês
de vigilância de 93 e a lei dos suspeitos!)”. Essas listas, que Carlos Eugênio compara à
Revolução Francesa, serviriam para mandar prender todos aqueles que estivessem em
envolvidos em movimentos subversivos da ordem 38.
Para o Conde de Paço D’Arcos existia o receio que os movimentos estaduais,
sobretudo no Rio Grande do Sul, obtivessem êxito. Dessa forma, os republicanos exaltados da
capital federal estariam dispostos a espalhar o ódio aos demais. Portanto, Carlos Eugênio
defendia que a ordem social era necessária ao Brasil para que houvesse aquilo que Lincoln
Penna chamou de “Progresso da Ordem” 39. Porém, no mês de Maio de 1893, essa tão
almejada ordem social ainda estava distante.
35 Idem. p. 158. [despacho de 08.06.1892] 36 Idem. p. 161. [despacho de 22.06.1892] (grifo no original) 37 Idem. p. 192. [despacho de 01.03.1893] (grifo no original) 38 Idem. p. 193. [despacho de 01.03.1893] 39 PENNA, Lincoln de Abreu. O Progresso da Ordem: O florianismo e a construção da República. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.
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No dia 6 de Maio, em relatório enviado ao Ministro dos Negócios Estrangeiros de
Portugal, que na época era Hintze Ribeiro, dizia que “tudo continua no mais completo
descalabro (...)”. A segurança pública era perturbada com os “abusos de autoridade”, com
“actos de desgoverno” que geravam “verdadeiros pronunciamentos (grifo no original) da
força aramada (...)” 40. Toda essa “anarquia” acabava por influir nas questões econômicas do
país.
Entretanto, mesmo com todas essas dificuldades, o prognóstico político do Conde de
Paço D’Arcos sobre o Brasil era positivo. Para ele, o país era grande e estavam dadas as
condições para que alguém pacificasse a política e encaminhasse o governo para o progresso,
mesmo que isso levasse um determinado tempo.
O resultado infalível de tôda esta miserável marcha política é o desassocêgo dos espíritos, a falta de confiança nas instituições e no govêrno superior, o receio constante duma grande revolução, e portanto o descrédito da fazenda pública, a baixa dos fundos, ou a sua oscilação sempre em baixas cotações e a bancarrôta constantemente ameaçadora como a espada de Damocles. O Brasil há-de levantar-se desta medonha crise como país riquíssimo, quasi virgem e de imensos recursos, quando um govêrno ilustrado, firme e enérgico tomar o poder; assim o tenho dito sempre nestas minhas apreciações políticas, mas continuo a avançar – como tambem o tenho feito – que por enquanto, no estado actual, está à mercê de qualquer aventureiro audaz, de coragem e de talento, que tenha por si o apoio dum Rotchild a levantar-lhe o crédito, ou o auxílio de uma potência de 1.ª ordem a cobrir-lhe a audácia. Um tal homem – fôsse quem fôsse – não viria aqui empoleirar-se numa perche – como Maximiliano no México, segundo a frase dum nosso distinto político – viria como César – ver e vencer – levantado nos escudos de todos os partidos cançados da luta e aclamado por tôda a população, cordata e ordeira, fatigada de perigos de fortuna e de vida. Infelizmente há muito ainda para ver, e muito sangue para correr, antes que o Brasil socegue41.
2.1.2. Visões do caos
As violências e distúrbios se alastravam por toda a parte. Quando essas desordens
ocorriam próximo ou na capital federal, evidentemente, as descrições feitas por esse
diplomata são de uma qualidade maior. Essas desordens intrigavam esse diplomata, pois
“qualquer pequena ocorrência das ruas dá logar aos gritos de ‘fecha-fecha’ com que se
cerram as portas e fica em campo a arruaça” 42. Para Carlos Eugênio, a população se
exaltava facilmente e logo se colocava contra a ordem pública.
Uma simples querela de dois transeuntes, dá o motivo a crescida reunião de populares e a intervenção da polícia; trocam-se ditos, soltam-se gritos, começam os vivas a esta ou àquela ideia política, a este ou àquele caudilho, e a breve trecho os sabres policiais
40 SILVA, 1974. op. cit. p. 196-197. [despacho de 06.05.1893] 41 Idem. p. 197. [despacho de 06.05.1893] (grifos nosso) 42 Idem. p. 137-138. [despacho de 03.03.1892] (grifos nosso)
71
entram em scena cortando sem dó nem consciencia, os revolvers dos populares começam a disparar, a desordem primitivamente insignificante torna-se numa arruaça e as baionetas e as descargas de infantaria ou as cargas de cavalaria não se fazem esperar 43.
Esse é o caso de uma revolta ocorrida na cidade do Rio de Janeiro em 7 de Outubro de
1891. Em um telegrama enviado ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, Carlos Eugênio é
peremptório ao afirmar que “Grande desordem povo policia teatro lírico produzindo graves
tumultos cidade barricadas cargas cavalaria descargas serradas tiroteio governo conseguiu
socego” 44.
Esse tumulto se parecia com aquelas desordens que Raul Pompéia descrevia como
nascidas “da surpresa, do disparate, ninguém sabe como nem por quê; mas também, com o
mesmo estouvamento e inopinado, desaparecem e à francesa vão-se embora” 45. Contudo,
passados alguns dias do episódio, o diplomata português enviou um longo relatório trazendo
informações detalhadas desse conflito. A explicação que o próprio Carlos Eugênio deu para o
envio do telegrama do dia 8 é de que “esta noticia a V. Ex.ª [Ministro Conde de Valbom] foi
assegurar o governo sobre tão tristes ocorrencias, para que V. Ex.ª e seus dignos colegas se
não preocupassem com quaisquer noticias desfiguradas em telegramas” 46. De acordo com o
diplomata, isso seria importante para evitar a especulação nas bolsas de valores e afastar a
idéia de alguma revolução.
Esse tumulto no Teatro Lírico causou uma forte impressão no Conde de Paço
D’Arcos. No transcorrer desse relatório do dia 16 de Outubro, todo o seu conservadorismo
político e sua obstinada defesa da ordem ficaram explícitos. A descrição que ele fez desse
episódio é um cenário de completa convulsão pública.
Tudo não teria passado de um “tumulto de teatro, em que a polícia abusou da força”.
De acordo com o relato de Carlos Eugênio, alguns espectadores queriam “patear” 47, e um
sub-delegado mandou “massacrar os espectadores”. Isso fez com que diversas “vitimas
inofensivas”, como “as senhoras e crianças que estavam nos camarotes”, fossem “maltratados,
pizados e espadeirados”. Os “pateantes” em grande número, “se armavam e combatiam a
policia com tudo que alcançavam à mão, arremessando à arena do combate, na platéia e
salões, bancos, cadeiras, candieiros e tudo que se pudesse tornar um projectil de arremeço”.
43 Idem. p. 126. [despacho de 07.01.1892] (grifos nosso) 44 Idem. p. 93. [despacho de 08.10.1891] 45 POMPÉIA apud CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3ed. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 73. 46 SILVA, 1974. op. cit. p. 93 e 94. [despacho de 16.10.1891] 47 Significado de “patear”: Censurar ou reprovar, batendo com os pés no chão: patear um drama. Ver: http://www.lexico.pt/patear/
72
Esse conflito teria sido “medonho e sangrento”. A polícia, para disfarçar a sua atuação
repressiva, teria divulgado um número muito reduzido de feridos. Como consequência à
atuação da polícia, no dia seguinte houve um grande protesto da “mocidade irriquieta das
escolas” 48. Esse protesto ganhou a adesão de centenas de pessoas que “em breve tornadas
milhares pela reunião dos discolos, dos ociosos, dos vadios e de quantos nas grandes cidades
fazem as arruaças, procurar o governo e pedir justiça” 49.
Esse protesto arrebentou em uma verdadeira batalha campal descrita assim por Carlos
Eugênio:
Porem antes mesmo que o ministerio tivesse tempo de tomar providencias, fazer inqueritos e castigar os culpados, a multidão, passando de repente da atitude tranqüila de representantes à de agitadores da desordem, tornou-se agressiva, fazendo uma verdadeira caçada, como se fosse a feras bravas, a tudo e a todos que pertenciam à policia. Como represalias, esta fez proezas de crueldade no massacre, a multidão reagiu com armas, o tiroteio tornou-se geral de parte a parte no centro da cidade, as estações foram atacadas por massas populares em grito de guerra, das janelas atirava-se não só à bala, mas com tudo que se podia arremessar, e a luta, muito mais na noite de 7, tornou-se num verdadeiro combate de rua! 50.
A dimensão do conflito foi tão grande que a atitude do governo foi substituir a polícia
pela tropa de linha do exército. De acordo com Carlos Eugênio a reação da população foi, em
um primeiro momento, de aclamar as tropas, pensando que elas fossem se unir a eles, porém,
quando viram que o papel do exército era reprimir esse conflito, “continuou a resistência, ou
melhor, a agressão e o ataque, formando-se barricadas, dando-se combate, em que houve
cargas de cavalaria, descargas cerradas, emfim verdadeira batalha” 51.
O resultado desse conflito foi de muitos mortos, feridos e presos. A descrição do
Conde de Paço D’Arcos diz que ele próprio viu marcas pelo centro da cidade de “milhares de
balas, das descargas cerradas da tropa, descargas feitas com pontaria baixas, à altura da cinta,
e que certamente não passaram inofensivas pelas massas de povo aglomerado!”. Além disso,
“muitas pessoas sérias” teriam dito que viram por entre as frestas das portas e janelas os
maqueiros da polícia dando sumiço nos feridos, e que como consequência, muitas pessoas
estavam procurando os seus parentes que estavam desaparecidos sem ter notícias dos mesmos.
Aos olhos desse diplomata o governo fez muito bem em reprimir esse tumulto.
48 No próprio relatório o Conde de Paço D’Arcos abre parênteses para falar sobre essa “mocidade irriquieta das escolas”. Essa mocidade era vista por ele da seguinte forma: “nesse paiz como entre nós e em toda a parte, mas aqui ainda mais irriquieta por ter tomado um papel importante na revolução de 15 de Novembro, de tão inesperados resultados que até deu uma republica quando mal se atreviam a esperar a queda de um ministro”. A melhor referência sobre a atuação dos estudantes da Escola Militar na queda da Monarquia é: CASTRO, Celso. Os militares e a República: um estudo sobre a cultura e ação política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1995. 49 SILVA, 1974. op. cit. p. 94. [despacho de 16.10.1891] 50 Idem. p. 94-95. [despacho de 16.10.1891] (grifos nosso) 51 Idem. p. 95. [despacho de 16.10.1891] (grifos nosso)
73
O que é verdade indubitável (e para mim de muito valor, como homem ordeiro que sou, mas homem de acção) é que o governo sem mostrar tibiesa nem frouxidão conseguiu assegurar a ordem publica, mostrando que tem forças e conta com o exército, malgré tout que se dizia e que se diz. Não foi um revolta, foram arruaças, mas arruaças graves, embora nascidas de uma causa fútil para a marcha da política, mas que quem sabe onde teriam chegado, quando bem aproveitadas pela oposição, se o governo não se mostrasse destemido, assegurando a ordem à outrance! [...] Para mim, apaixonado pela ordem e pela força de acção governativa como sempre tenho sido, estou em que o governo andou bem pacificando os disturbios; e encarando as cousas pelo lado político, estou em crer que o governo, tomando os tumultos como pretexto, ou provocando-os e exagerando-os mesmo, para ter ocasião de mostrar a sua força, prepara a mão para maior golpe, que já tive ocasião de prever em meus ofícios a V. Ex.ª 52.
O tumulto descrito pelo Conde de Paço D’Arcos ocorrido no Teatro Lírico em
Outubro de 1891 é, portanto, extremamente significativo. Ele pode ser incluído como um
excelente exemplo para desmistificar algumas observações da época que diziam que não
havia um “povo” no Brasil, e que se existia, era “bestializado”. Concordamos com José
Murilo de Carvalho quando esse afirma que se na Proclamação não houve de fato a
participação e manifestações populares espontâneas, no início da República esse tipo de
agitação se tornou frequente. Foi a maneira encontrada pela população de participar da
política por canais não-oficiais, já que foi excluída da política através das exigências
eleitorais53.
Outro exemplo que se destaca, é o conflito ocorrido na estação das Estradas de Ferro
Central. Paço D’Arcos enfatizou no ofício do dia 7 de Janeiro de 1892, que a “restauração da
ordem” (o movimento de 23 de Novembro), que levou a situação de Floriano Peixoto ao
poder, foi antecedida por dois dias por uma greve de operários da Estrada Central. Para Carlos
Eugênio, “essa gente, na maioria italianos, muitos portugueses, e em todo o caso quase todos
estrangeiros, é desordeira e pronta para tudo, apta portanto para ser aproveitada pelos fautores
de movimentos populares” 54.
O relato prossegue dizendo que durante a ditadura de Deodoro, a Companhia Geral de
Estradas de Ferro ameaçou “trazer armados à Capital Federal dez mil operários” e que essa
era “uma força de ameaça latente, que qualquer governo pode recear e com a qual precisa
tomar cautela”. O governo de Floriano Peixoto teria se precavido para liquidar esse foco de
instabilidade, entretanto, os trabalhadores resistiram às investidas do governo durante dois
52 Idem, p. 95-96. [despacho de 16.10.1891] (grifos nosso). Desde 4 de Setembro de 1891, o diplomata português já havia avisado o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal sobre boatos de uma ditadura militar, o que de fato veio a ocorrer em 3 de Novembro quando Deodoro fechou o Congresso Nacional e declarou Estado de Sítio. 53 CARAVALHO, 2009. op. cit. p. 66 a 90. (capítulo 3) 54 SILVA, 1974. op. cit. p. 126. [despacho de 07.01.1892] (grifos nosso)
74
dias. A Estação Cantral teria sido “(...) teatro de verdadeira batalha. Os operários
entrincheiraram-se, as tropas atacaram aquela Malakoff, o combate foi sangrento, os destroços
e avarias consideráveis e o trânsito interrompido por dias” 55.
A manifestação que ocorreu no dia 10 de Abril de 1892, pretextando apoio ao
Marechal Deodoro da Fonseca, soma-se aos exemplos anteriores, porém, essa ganhou mais
destaque na historiografia sobre período.
A oposição pretendia iniciar um movimento revolucionário a partir desse evento de
jubilo à Deodoro. Porém, em função de doença, esse não compareceu no Largo da Lapa às 18
horas, local e horário da manifestação. Os ânimos se exaltaram e a tropa interveio iniciando-
se um tiroteio. No mesmo dia 10, o governo decretou Estado de Sítio por 72 horas para poder
prender alguns membros do Congresso Nacional que tinham direitos constitucionais 56.
Quase na madrugada do dia 10 para o dia 11 de Abril, o Conde de Paço D’Arcos foi
procurado pelo Ministro alemão creditado no Brasil, para informar-lhe que o governo
brasileiro havia lhe comunicado que suprimira uma revolta naquele dia. Nessa comunicação
por telegrama, o governo brasileiro dizia que “vários anarquistas” sob pretexto de
manifestação de apoio a Deodoro, pelo restabelecimento de sua saúde, “tramaram sedição e
pretenderam perturbar a ordem política. Governo tomou providencias enérgicas. Ordem
publica não foi alterada e está garantida”. Para ambos os diplomatas, a prática governamental
de informar o Corpo Diplomático das tentativas revolucionárias da oposição eram “talvez o
alarde do fraco blasonando de forte para a si próprio se animar” 57.
Após comentar largamente quais políticos e militares que foram presos durante o dia
10 de Abril, Carlos Eugênio comenta a práticas do governo Floriano de enviar para um
“exílio” os indivíduos que tomaram parte naquela manifestação. Nesse comentário, certo
desagrado com tais práticas fica sugerido:
Seja como fôr, os homens influentes, a maior parte cabecilhas da oposição, estão aniquilados por largo tempo, se não para sempre pagando com a vida, vitimados pelos incômodos e pelas febres, a guerra a Floriano, que, ou seja um ditador audaz do gênero Rosas, Lopes e Balmaceda, com coragem e raivas ferinas, como agora alguns crêem, ou seja, um manequim manobrado por outros mais hábeis e mais decididos, está usando de feridade e rigor, que se não provam força própria, indicam pelo menos fraqueza dos adversários. O melhor de tudo, é que os homens cordatos e ordeiros
55 Idem. p. 126-127. [despacho de 07.01.1892] 56 CARONE, 1983. op. cit. p. 93-95. Aqui é possível encontrar a lista completa dos nomes dos presos políticos que foram deportados, inclusive discriminando o local em que foram presos. Os locais dos deportados foram: São Joaquim, no Rio Branco, Estado do Amazonas; Tabatinga, no Amazonas; Fortaleza de Lage; Fortaleza de Villegaignon; e Fortaleza de São João. 57 SILVA, 1974. op. cit. p. 150. [despacho de 15.04.1892]
75
assistem impassíveis a todo este barulho, almejando só por paz e socego, quer governem gregos quer troyanos 58.
Essa manifestação do dia 10 de Abril de 1892, e a reação do governo de deportar os
revolucionários, acabaram gerando outra questão. No mês de Junho do mesmos ano estava se
discutindo se deveria ser concedida anistia aos deportados pela revolta de 10 de Abril e do
Manifesto dos 13 Generais 59. Para alguns a questão da anistia ofendia os deportados porque
esses não iam ser julgados. Para outros, a anistia era uma ofensa ao governo, que absolvia,
também, sem julgar. Para o Conde de Paço D’Arcos, os depoimentos das testemunhas nos
inquéritos que foram publicados, “torna-se bem evidente que havia uma larga e audaz
conspiração(...)” 60.
Contudo, a questão da anistia ainda não havia sido solucionada no mês de Agosto. De
acordo com Carlos Eugênio, mesmo que fosse decretada, provavelmente ela não seria
aproveitada por todos, “por que as ultimas noticias dão muitos dos deportados como
gravemente doentes, em resultado do mau clima e dos trabalhos por que teem passado para
alcançar os pontos do desterro” 61. Somente em Novembro de 1892 que os desterrados
retornaram 62.
58 Idem. p. 153. [despacho de 15.04.1892] Para uma comparação de Balmaceda com Floriano Peixoto ver: NABUCO, Joaquim. Balmaceda. São Paulo: Inst. Processo Editorial, 1949. 59 O Manifesto dos 13 Generais será trabalhada mais adiante no item 2.2.2. 60 SILVA, 1974. op. cit. p. 162. [despacho de 22.06. 1892] (grifos nosso) 61 Idem. p. 167. [despacho de 03.08.1892] 62 Idem. p. 172. [despacho de 02.11.1892]
76
2.2 - O disciplinador militar
Ao analisarmos as observações que o Conde de Paço D’Arcos fez da política
brasileira, chama atenção o destaque que esse diplomata conferiu em seus relatórios para o
exame da atuação dos militares. Os casos descritos nos relatórios mostram inúmeras
ocorrências de participação de militares na política – episódios de levante contra a ordem
social provocados por estudantes, soldados e oficiais, permeados pela insubordinação
hierárquica.
A sua avaliação sobre os militares brasileiros foi balizada pela questão da ordem e da
disciplina. Para esse diplomata, formado em instituições militares e que teve uma longa
carreira dentro da Marinha portuguesa, e que atuou no partido político que sedimentou a
ordem social em Portugal63, a disciplina social e hierárquica eram fundamentais.
O período que compreendeu a sua Missão Diplomática foi extremamente conturbado
do ponto de vista das relações entre civis e militares. Porém, essa instabilidade tem origens
mais antigas. A conjuntura histórica da segunda metade do século XIX até sedimentação da
República brasileira foi marcada pelo progressivo acirramento das relações entre civis e
militares até desencadear a participação de fato dos militares na política.
Dessa forma, vamos analisar brevemente as relações entre civis e militares para depois
avaliar de que forma o Conde de Paço D’Arcos percebeu alguns desses episódios no
transcorrer da sua Missão.
2.2.1 – Os antecedentes
O brasilianista John Schulz procurou explicar porque os militares, que estiveram à
margem das decisões políticas brasileiras durante praticamente todo segundo reinado,
conquistaram o poder nos cinco primeiros anos da República e depois saíram de cena só
retornando setenta anos depois 64. O autor procurou destacar algumas razões que explicariam
esse fenômeno político.
Entre essas razões, Schulz destacou a efetividade da lei de 6 de Setembro de 1850, que
regulou as promoções por tempo de serviço, mérito e educação. Essa alteração abriu a carreira
militar ao talento, proporcionando a profissionalização do Exército e que outros grupos
63 Ver primeiro capítulo item 1.2.3 “A regeneração”. 64 SCHULTZ, 1994. op. cit.
77
sociais compusessem o quadro de oficiais65. Porém, progressivamente isso causou o
distanciamento entre os oficiais subalternos e a alta oficialidade. Enquanto os primeiros
almejavam o “progresso”, os segundos só se preocupavam com a “ordem” 66.
Essas questões foram colocadas temporariamente de lado em função da Guerra da
Tríplice Aliança contra o Paraguai67. Porém, após o término do conflito, o Exército passou a
se sentir desprestigiado frente ao desprezo com que o Império tratou essa instituição. Houve
redução de efetivos da tropa e não houve reajustes salariais após o conflito, o que causou uma
perda de poder aquisitivo dos militares, já que os salários não acompanharam os níveis de
inflação.
Soma-se a esse desprestígio a receptividade que a teoria positivista, que chegava da
Europa, encontrou nos colégios militares, sobretudo, no Rio de Janeiro68. Essa teoria que
priorizava o conhecimento científico, fez com que se formasse uma geração de oficiais
críticos à situação política nacional69. Isso fez com que progressivamente o Exército tivesse
consciência de sua importância e o seu valor enquanto instituição, e que progressivamente
deixasse de se identificar com o Imperador para encontrar no povo um aliado contra a elite70.
Esse foi contexto que antecedeu o momento em que os militares começaram a
reivindicar o direito de se expressar politicamente através da imprensa71. Após garantirem
esse direito, o Exército teve uma grande participação na Abolição ao se recusar a caçar
escravos fugidos pois, “(...) constituía uma imoralidade e estava abaixo da dignidade do
65 Idem. p. 23-33. 66 Idem. p. 49. 67 Idem. p. 54-73. A melhor referência sobre a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai é: DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 68 Nessa instituição, Benjamin Constant teve um papel fundamental na divulgação das idéias positivistas. Sobre Benjamin Constant, ver: LEMOS, Renato Luís do Couto Neto e Lemos. Benjamin Constant: Vida e História. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. 69 Sobre o cientificismo do século XIX e a influência que positivismo teve na formação dos oficiais durante o império ver: CASTRO, 1995. op. cit. p. 52-84. 70 SCHULZ, 1994. op. cit. p. 89. 71 A reivindicação de expressão política por parte dos militares está inserida dentro da ideologia de intervenção que ficou conhecida como “soldado-cidadão”. A ideologia que se contrapôs à primeira foi a ideologia do “soldado profissional”, que defendia a não participação política dos militares. A terceira forma foi a ideologia da “intervenção moderadora”, que imputava aos militares uma função arbitral. Sobre essas ideologias ver: CARVALHO, José Murilo de. “As Forças Armadas na Primeira República: O Poder Desestabilizador”. IN: CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 13-61. (sobretudo as p. 38-43). Ver também: COELHO, Edmundo Campos. Em Busca de Identidade: O Exército e a Política na Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1976. (sobretudo os três primeiros capítulos). Sobre os episódios daquilo que ficou conhecido como “questão militar”, ver: SCHULZ, 1994. op. cit. p. 95-112. Ver também: CASTRO, 1995. op. cit. p. 85-103.
78
exército” 72. Com o fim da escravidão, só restava aos militares “desejar um governo honesto”,
imagem que o Império já não mais conseguia transmitir73.
Com a Proclamação da República em 15 de Novembro de 1889, os militares
assumiram o poder, porque, mesmo que houvesse participação civil no Governo Provisório, o
poder estava de fato nas mãos dos militares74. Contudo, alguns empecilhos se colocaram ao
governo castrense, o que dificultou o seu sucesso. John Schulz elencou três obstáculos: a
inexperiência em assuntos financeiros; a necessária partilha do poder com os fazendeiros
paulistas; e a falta de controle sobre todo o Exército75.
A política financeira do Governo Provisório ficou a cargo de Rui Barbosa. As medidas
adotadas por esse civil procuravam aumentar a quantidade de dinheiro circulante no mercado,
pois havia muitos anos que o Império não emitia novas cédulas. A solução encontrada por Rui
Barbosa foi criar bancos de emissão de dinheiro que seriam os responsáveis e teriam a
exclusividade na emissão de papel moeda. Porém, essas medidas geraram uma inflação
galopante e a política do “Encilhamento”, como ficou conhecida, causou uma enorme
especulação financeira que fez com que o valor da moeda brasileira, em relação à libra
esterlina, caísse à níveis alarmantes no mercado internacional76.
No que diz respeito à falta de controle do governo sobre o Exército nos primeiros anos
da República, o estudo de José Murilo de Carvalho é esclarecedor77. A partir de uma análise
organizacional das Forças Armadas, porém, centrando a análise no Exército e usando a
Marinha enquanto elemento de comparação, o autor esclarece de que forma as Forças
Armadas exerceram um papel desestabilizador no início da República.
A participação política dos militares entre o final do Império e o início da República
ficou marcada pela política reformista, tanto no aspecto social quanto político. Os principais
atores dessas políticas reformistas eram os jovens oficiais que “apoiavam movimentos
contestatórios, seja contra o sistema imperial, seja contra a política dos estados” 78. Dessa
forma, após a Proclamação, com a progressiva preponderância política do Exército, houve um
aumento das divisões internas dos militares. A Marinha se sentindo desprestigiada, e parcelas
72 O Paiz, 13-14 de Junho de 1887 apud SCHULZ, 1994. op. cit. p. 113. 73 SCHULZ, 1994. op. cit. p. 129. 74 Porém, não havia unidade de pensamento nas Forças Armadas em relação à República, nem entre os oficiais, nem entre os subalternos. Houve casos de revoltas de soldados contrários ao fim do Império. Ver: CASTRO, Celso. “Revoltas de soldados contra a República”. IN: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik (orgs.). Nova História Militar brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 301-313. 75 SCHULZ, 1994. op. cit. p. 141-142. 76 Idem. p. 145-163. Aqui é possível encontrar uma descrição para leigos sobre o descalabro financeiro do início da República. 77 CARVALHO, 2005. op. cit. p. 13-61. 78 Idem. p. 59.
79
do Exército disputando o poder, fizeram com que não houvesse uma unidade nem das
instituições, muito menos das Forças Armadas. Isso criou as condições para que as divisões
entre os militares fossem exploradas pelos civis.
Em relação à partilha de poder dos militares com os latifundiários paulistas no início
da República, o estudo de June Hahner é ilustrativo79. A autora mostra de que forma o estado
de São Paulo somou as condições necessárias para se impor enquanto força política, uma vez
que já possuía a força econômica baseada nas exportações de café. Entre os fatores elencados,
a criação de uma polícia estadual forte e bem equipada foi fundamental para rivalizar em
números com os efetivos do Exército e defender a sua autonomia estadual80. Essas condições
que possibilitaram que os “paulistas” explorassem as divisões internas no meio militar e
sedimentassem sua influência política, garantido, o retorno dos civis ao poder com a eleição
de Prudente de Morais.
Esse foi o cenário político-social conturbado que o Conde de Paço D’Arcos
presenciou no transcorrer de sua Missão Diplomática. Portanto, é importante ter claro que o
ambiente político descrito por esse diplomata é o resultado de um processo que teve suas
origens a partir da segunda metade do século XIX. A exacerbação dos ânimos entre civis e
militares no início da República chamou sua atenção e foi uma preocupação constante em
seus relatórios.
2.2.2 – As (im)pressões em assuntos militares
Entre Junho de 1891 e Novembro de 1893 – o período da Missão Diplomática do
Conde de Paço D’Arcos – ocorreram diversos tumultos e revoltas em que houve a
participação de militares. Entre essas agitações algumas se destacam em função do alcance
que tiveram para a política nacional brasileira, outras por terem sido cometidas por indivíduos
proeminentes. Mesmo havendo diferenças quanto à natureza dessas revoltas, se foram feitas
por oficiais ou subalternos, aos olhos do Conde de Paço D’Arcos, essas revoltas eram,
sobretudo, um atentado contra a ordem social e a hierarquia militar. Vejamos de que forma
esse diplomata acompanhou, portanto, esse quadro de instabilidade.
Em relatório de 21 de Agosto de 1891, Carlos Eugênio relatou que as promoções no
Exército e na Armada, que ocorreram durante o Governo Provisório, estariam sendo revistas
79 HARNER, June E. Relações entre civis e militares no Brasil (1889-1898). São Paulo: Pioneira, 1975. 80 Idem. p. 127.
80
por uma comissão de sindicância na Câmara. Paço D`Arcos diz que “os oficiais militares
respondem a isso formando uma Liga (grifo no original), e nas suas reuniões, ao que conta a
imprensa, passam-se e discutem-se cousas incríveis contra a disciplina”. Aquele que seria o
responsável por cuidar desses assuntos, o Ministro da Guerra General Frota, preocuparia-se
somente com “questões fúteis”, como “proibindo aos oficiais que usem os casacos
desabotoados ou que passeiem de chapéu de sol quando fardados” 81.
No mês seguinte, Carlos Eugênio expôs o “assombro geral” que o discurso do
deputado Zama causou na Câmara dos Deputados. Esse deputado, que havia sido um crítico
da monarquia, agora despontava como um dos defensores do antigo regime e fazia duras
críticas em seu discurso aos homens que fizeram o 15 de Novembro. O discurso que Zama
proferiu na Câmara, foi anexado por Paço D’Arcos em seu relatório para corroborar o
argumento dele, Paço D’Arcos, que apontava,
(...) a influencia perniciosa da Liga (grifo no original), ou Club militar, que aqui existe, é ainda mais provada com uma acta desse clube, que malevolamente apareceu publicada, e em que se vê que além de verdadeiros actos de indisciplina, ali se trocam vehementes acusações de peculato e concussão, sobre a venda de favores por um deputado militar, que faz parte do estado-maior presidencial e que é um dos fautores da revolução de 15 de novembro. Esse coronel deputado veio depois à imprensa tambem, não desmentir a acta publicada, mas dizer “que na mesma havia exageros, que suas intenções tinha sido honestas, patrióticas e só destinadas a favorecer a associação militar, e que, em todo o caso fôra um abuso a publicação” 82.
O mês de Novembro de 1891 foi decisivo para os rumos da política nacional
brasileira. O Golpe de Estado liderado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, no dia 3, fechou o
Congresso Nacional e declarou o estado de sítio. No dia 12 de Novembro, ainda sob vigência
da ditadura, Carlos Eugênio enviou um extenso relatório ao Ministro dos Negócios
Estrangeiros de Portugal, explicando o alcance dos acontecimentos recentes.
Os seus comentários diziam que “(...) o governo tomava todas as medidas de
segurança contra qualquer movimento oposicionista” e que uma dessas medidas foi o
estabelecimento de um “tribunal militar do estado de sitio para julgar sumariamente os
perturbadores, se os houvesse”. O documento ainda relatava um acontecimento curioso,
segundo esse diplomata, “um jornal, que quiz deixar de publicar-se como protesto à lei da
força (grifo no original), foi forçado a sair e intimado de que se consideraria como acto hostil
o seu desaparecimento!” 83.
No dia 23 de Novembro, o Conde de Paço D’Arcos enviou um telegrama às
14h30minutos para Lisboa. Esse telegrama informava que a Marinha de Guerra havia deposto
81 SILVA, 1974. op. cit. p. 88. [despacho de 21.08.1891] (grifos nosso) 82 Idem. p. 90. [despacho de 04.09.1891] (grifos nosso) 83 Idem. p. 102. [despacho de 12.11.1891]
81
o Presidente da República, e que o governo havia sido entregue ao Marechal Floriano Peixoto,
Vice-Presidente. Este, por sua vez, convocou o Congresso Nacional e que tudo parecia estar
tranquilo84. Dois dias depois, Carlo Eugênio enviou um longo relatório, detalhando o
episódio.
Nesse relatório do dia 25, ele informou que a ditadura de Deodoro estava planejando
prender os almirantes Wandenkolk e Custódio de Mello, o marechal José Semeão de Oliveira,
alguns senadores congressistas e outros suspeitos. As suspeitas dessas prisões teriam
precipitado os acontecimentos85.
A descrição desses eventos é interessante não apenas do ponto de vista factual, mas
sim em função das descrições dos grupos militares envolvidos. De acordo com o relatório do
Conde de Paço D’Arcos, “(...) um punhado de oficiais subalternos e entre estes só um oficial
superior (capitão-tenente)”, teriam sido os responsáveis por se apossar dos couraçados e
torpedeiros “sem resistência”. A ausência de resistência teria se dado em função de estarem
essas embarcações sob os cuidados de outros oficiais subalternos em horário de serviço, e que
os mesmos teriam colocado os navios em “(...) ordem de batalha, com artilharia e
metralhadoras prontas à resistencia ou ao ataque”. Dessa forma, eles não permitiram que os
oficiais superiores – os comandantes, o Intendente e o Comandante Geral da Armada –
subissem à bordo. Para Carlos Eugênio, esses oficiais superiores “(...) a más horas se
dirigiram a ocupar os seus postos, que nunca deveriam ter abandonado em ocasião de crise”.
O mais importante nesse documento do dia 25 de Novembro de 1891 é o juízo que
esse diplomata fez dos acontecimentos. As suas impressões dessa situação política reforçam o
nosso argumento de ser o Conde de Paço D’Arcos um defensor da ordem social e hierárquica,
sobretudo, em função de sua formação militar e política.
É triste dizê-lo, e a mim, militar e oficial de marinha como sou, confrange-se-me o coração quando tenho de contar destes actos de indisciplina (embora a negregada política haja de os desculpar), que só indicam falta de previsão, carência de força, pobreza de energia da parte de chefes militares que assim deixam as suas praças de guerra confiadas a subalternos que, menos leais e imbuídos das idéias modernas em que prevalece a falta de brio militar e a indisciplina sua conseqüência, as entregam sem defesa à revolução que as move no sentido dos seus interesses! É a política, desgraçadamente! Emquanto ela não fôr por completo banida do meio da força armada, nenhum governo contará com a estabilidade, nenhum paiz contará com a segurança publica86.
84 Idem. p. 105. [despacho de 23.12.1891] 85 Idem. p. 108. [despacho de 25.12.1891] 86 Idem. p. 108. [despacho de 25.11.1891] (grifos nosso) Porém, é interessante perceber a contradição do pensamento desse sujeito com as suas ações. Mesmo sendo um crítico da participação de militares na política, o próprio Carlos Eugênio foi Governador-Civil de Lisboa antes de vir para o Brasil. Ver capítulo 1, item 1.1.
82
Após dar mais detalhes sobre a renúncia de Deodoro frente à intimação da Marinha
com a participação do Exército, Carlos Eugênio concluiu suas impressões sobre o momento
político brasileiro dizendo que “parece pois inaugurada uma época de pronunciamentos;
porque assim como estes, mais fortes ou mais audazes, derrubaram aqueles, nada assegura o
paiz que outros ainda mais fortes e mais atrevidos não derrubem estes também” 87. Essas
previsões seriam confirmadas nos meses seguintes nas tentativas revolucionárias dos
partidários de Deodoro, naquilo que Edgard Carone chamou de “revoltas deodoristas” 88.
A primeira dessas revoltas foi no dia 13 de Dezembro de 1891. Um motim na
Marinha foi abafado pelo Contra-Almirante José Marques Guimarães, e, no dia seguinte, um
novo motim fez com que mais de sessenta marinheiros fossem presos e enviados à Fortaleza
de Santa Cruz. Nesses motins houve a participação do Sargento Silvino Honorário de
Macedo, que era um entusiasta de Deodoro da Fonseca. De acordo com o inquérito realizado
ficou claro que era esperada a revolta de outras unidades da Marinha e do Exército, porém não
houve adesão de outros batalhões, o que fez com que esses movimentos fossem facilmente
combatidos pelo governo.
No dia 23 de Dezembro de 1891, o Conde de Paço D’Arcos enviou para Portugal
algumas apreciações sobre esses motins. Essa revolta, ocorrida a bordo dos navios Javary e o
1º de Março era apresentada como “uma tentativa de restauração monárquica”, e somente
alguns jornais falavam em “muitas prisões de praças da marinha” 89. O que chamava a atenção
desse diplomata era que dois barcos, compostos por indivíduos de confiança do governo,
haviam se dirigido para Ilha Grande, e teriam recebido “uma comissão secreta” para executar
o “fusilamento dos presos pela tentativa de restauração monárquica”. Carlos Eugênio tinha
dúvidas sobre a veracidade desses fatos. Porém, aquilo que ele descrevia, era “assegurado por
muita gente de consideração (mesmo da actual situação) e acreditado por todos” 90. Essa
situação extremamente “tensa” fez com que esse diplomata considerasse que “não seria fora
de propósito que estivessem na baia do Rio de Janeiro alguns navios de guerra das potencias
européia” 91.
No dia 19 de Janeiro de 1892, o Sargento Silvino Honório de Macedo, que recém
havia sido absolvido no processo dos motins dos dias 13 e 14 de Dezembro, acompanhado de
outros deodoristas, revoltaram a Fortaleza de Santa Cruz. A Fortaleza da Lage apoiou a
87 Idem. p. 109. [despacho de 25.11.1891] 88 CARONE, 1983. op. cit. p. 85-93. 89 SILVA, 1974. op. cit. p. 120. [despacho de 23.12.1891] 90 Idem. p. 121. [despacho de 23.12.1891] 91 Idem. p. 122. [despacho de 23.12.1891]
83
revolta, fazendo com que parte da Baía de Guanabara ficasse dominada pelos revoltosos.
Porém, assim como os motins de Dezembro, faltou articulação mais precisa com as tropas de
terra, as quais não apoiaram o movimento liderado pelo Sargento Silvino. O governo agiu
rápido e neutralizou o movimento. Tropas cercaram as fortalezas por terra e navios pelo mar.
Logo, a Fortaleza da Lage se rendeu. Porém, a Fortaleza de Santa Cruz resistiu e foi tomada
por assalto pelas tropas governistas, e durante o ataque, o Sargento Silvino foi ferido 92.
A revolta da Fortaleza de Santa Cruz foi comentada pelo Conde de Paço D’Arcos no
relatório de 24 de Janeiro de 1892, enviado para o Ministro dos Negócios Estrangeiros de
Portugal, que naquele momento era Costa Lobo. De acordo com o documento, alguns
“marinheiros e soldados da guarnição da fortaleza, acompanhados pelos presos militares e
capitaniados por um sargento, revoltaram-se, prenderam os oficiais”. A exigência feita foi a
“deposição imediata de Floriano e entrega do governo à Deodoro, tudo sob pena de
bombardeamento da cidade”. Porém, o que chamou a atenção de Carlos Eugênio era a
maneira contraditória com que o governo tratava a revolta. De acordo com ele, “o Marechal
Floriano e seu governo estão premiando, abraçando e dando postos de distinção aos
vencedores e seus sequazes, como se tivesse havido verdadeira campanha”. Ao mesmo tempo,
a imprensa governista se esforçava no sentido de mostrar que “(...) aquilo tudo não passou de
uma revolta de presos que pretendiam quebrar as cadeias” 93.
O comentário final do Conde de Paço D’Arcos no documento do dia 24 de Janeiro nos
ajuda a perceber o verdadeiro alcance que essa revolta teve.
O que é certo porem, segundo o parecer da gente sensata e ao facto da política, é que havia uma conspiração planeada, que abortou não se sabe porquê, talvez mesmo por precipitação do próprio sargento em Santa-Cruz. E o que posso assegurar a V. Ex.ª é que dias antes me fôra dito muito em segredo, por um banqueiro nosso patrício e amigo do grupo Lucena, que em poucos dias, sob a proteção do ex-ditador, estaria à testa do poder o general Almeida Barreto, fazendo-se uma revolução já tramada e para a qual contavam com poderosos elementos. O meu colega alemão, o Conde Doenoff, também me assegurou que sabia de via fidedigna o que se tramàra, e que só falhara por precipitação; sendo pois fora de duvida, que, o que houve, não foi como se quere fazer acreditar, um simples levantamento de prisioneiros.
Essa revolta ainda repercutiu no mês de Fevereiro em função do inquérito instaurado
para apurar os fatos. De acordo com um artigo publicado no Jornal do Comércio, o Sargento
Silvino teria feito “(...) importantes e graves revelações, comprometendo altas personagens
(...)” 94. Somou-se a essa publicação do artigo, alguns boatos que diziam que a precipitação do
movimento teria acontecido em função da explosão de alguns foguetes em um determinado
92 CARONE, 1983. op. cit. p. 86. 93 SILVA, 1974. op. cit. p. 131. [despacho de 24.01.1892] 94 Idem. p. 133. [despacho de 09.02.1892]
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ponto da cidade, que casualmente, era o lugar de onde se esperava o mesmo sinal para iniciar
a revolta.
Carlos Eugênio via com muita reserva tanto o artigo quantos os boatos. Contudo,
chamava-lhe a atenção a coincidência que o Ministro da Guerra, o General José Simeão, havia
pedido demissão do seu cargo nos mesmos dias. O motivo alegado para sua saída era de que
ele não contava com o apoio do Exército ou de uma parcela dele. O relatório deixa a entender
que o referido pedido de demissão estivesse relacionado com as revelações do Sargento
Silvino.
Como consequência da saída do General José Simeão, o cargo de Ministro da Guerra
foi ocupado interinamente pelo Ministro da Marinha, o Almirante Custódio de Mello, que na
descrição de Carlos Eugênio era “o audacioso autor do golpe de mão de 23 de Novembro, que
o levantou ao poder com o actual governo, derrubando a ditadura Deodoro”. A soma das
responsabilidades sobre os dois ministérios, que representavam as Forças Armadas brasileiras,
fazia com que Custódio de Mello concentrasse bastante poder em suas mãos. Contudo, a
rivalidade existente entre a Marinha e o Exército seria o suficiente para deixar esse poder
instável. O Conde de Paço D’Arcos julgava que “isto parece-me verdadeiro e não julgo que
ele, embora dispondo agora de todos os meios militares de acção na terra e no mar, possa
considerar-se firme e seguro de si, bem como à situação em que prepondera” 95.
No início de Março de 1892, a instabilidade política no estado do Ceará provocou o
pronunciamento de dois oficiais do Exército que eram sobrinhos do Marechal Deodoro da
Fonseca. O tenente-coronel Hermes da Fonseca e o capitão Clodoaldo da Fonseca publicaram
um manifesto em apoio ao Governador do Ceará, que estava resistindo a ataques dos
estudantes da Escola Militar de Fortaleza. Esses ataques contaram com o apoio do Ministro da
Marinha, Custódio de Mello, que solicitou que a flotilha daquela região se mantivesse neutra
frente ao conflito entre o Governador e a Escola Militar. O manifesto dos dois oficiais
censurou o ministro e defendeu “a legalidade da resistencia do general governador, que,
diziam eles, era o eleito do povo e por conseqüência a única e verdadeira autoridade”. A
atitude de Custódio de Mello foi mandar prender os oficiais e submetê-los a um Conselho de
Guerra “para serem castigados com todo o rigor das leis militares, por ofensas ao seu
superior hierárquico, o Ministro da Marinha (grifos no original)” 96.
Contudo, dois dias depois, o Comandante da Divisão Militar da Capital Federal
resolveu soltar os dois oficiais e não cumprir as ordens do Ministro, e apresentou como
95 Idem. p. 134. [despacho de 09.02.1892] 96 Idem. p. 136. [despacho de 03.03.1892]
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justificativa a falta de “(...) base para procedimento militar, quando eles só tinham ‘agido’
como cidadãos”. O Conde de Paço D’Arcos assistia a tudo isso perplexo, e dizia em seu
relatório que “o ministro parece por emquanto ter-se conformado com esta nova e mais grave
insubordinação; comtudo os que o conhecem dizem que não há que fiar nessa aparente
concordância, e que se ele se retrae, é para melhor saltar” 97.
A partir do mês de Março de 1892 começou ser discutida a questão da eleição
presidencial. Carlos Eugênio informou que “sabem-se ou apregoam-se os nomes de nove, que
todos mais ou menos teem probabilidades, ou, o que é o mesmo, são candidatos poderosos
seguidos por grupos” 98. O documento prossegue dizendo que uma pessoa entendida da
política99 assegurava que o Marechal Floriano Peixoto não tinha ambições de ser candidato à
Presidência, e que só não havia decretado ainda a data da eleição porque havia divergências
no Conselho de Ministros.
Entre os ministros que compunham o Conselho, Carlos Eugênio destacou o Almirante
Custódio de Mello, “que é homem predominante e enérgico da situação presente, quere a
eleição para a qual é candidato, e nesse sentido prepara a maquina eleitoral, apoiando as
revoluções nos Estados e nomeando homens seus como governadores”. Também destacou o
ministro Serzedello, que mesmo não tendo ainda projeção política suficiente para se
candidatar, apoiava o Almirante Custódio de Mello, para vir a ser ministro dele, e um dia, se
candidatar à Presidência.
O Conde de Paço D’Arcos continuou o seu relatório sobre a questão eleitoral,
baseando-se nos subsídios de alguém “envolvido na política”, que dizia que os outros
ministros eram contrários à eleição. De acordo com esse informante, os outros ministros
“(...)sustentam que Floriano deve exercer a suprema magistratura até ao fim do quadriênio,
porque com ele são ministros e não teem esperanças de o ser com outros presidentes” 100.
Naquele momento, portanto, os dois principais candidatos à Presidência, “segundo o parecer
dos entendidos (..)”, eram o Marechal Deodoro e Silveira Martins. Contudo, o próprio Conde
de Paço D’Arcos parecia duvidar dessas previsões.
Comtudo isto não passa de suposições e estudos políticos, e de aqui até à ocasião necessariamente as coisas hão-de mudar muito e póde mesmo sobrevir qualquer caso inesperado, porque no estado de turbação geral em que ninguém se entende, o Brazil
97 Idem. p. 136. [despacho de 03.03.1892] (grifos nosso) 98 Os nove candidatos citados por Carlos Eugênio são: Silveira Martins, Paulino José Soares de Sousa, o Conselheiro Dantas, Quintino Bocayuva, Almirante Custódio de Mello, Almirante Wandenkolk, General José Simeão, Prudente de Morais e Deodoro da Fonseca. Idem. p. 141. [despacho de 14.03.1892] 99 Não foi possível descobrir o nome desse informante. 100 Idem. p. 142. [despacho de 14.03.1892]
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está sujeito como tenho dito ao golpe de mão de qualquer audacioso feliz que surja de repente no meio desta conflagração101.
No mês de Abril de 1892 ficou marcado pelo questionamento da constitucionalidade
do governo de Floriano Peixoto. Desde o golpe de 23 de Novembro de 1891, o governo do
Vice-Presidente não havia sido questionado. Contudo, a oposição passou a exigir a realização
de um novo sufrágio. Os argumentos oposicionistas se baseavam em uma interpretação
constitucional bem fundamentada. Entretanto, os argumentos governistas estavam
explicitados nas “Disposições Transitórias” da Constituição Federal de 24 de Fevereiro de
1891.
O que se diz é que pelo art. 47 da Constituição, as eleições serão feitas “por sufrágio direto da nação e maioria absoluta de votos”; e que pelo art. 42, “se no caso de vaga, por qualquer causa, da Presidência ou Vice-Presidência, não houver ainda decorrido dois anos do período presidencial, proceder-se-á nova eleição”. Porém, as Disposições Transitórias estipulam, no seu art. 1.º, a eleição indireta do Presidente e Vice-Presidente: “o Presidente e o Vice-Presidente, eleitos na forma deste artigo, ocuparão a Presidência e a Vice-Presidência da República durante o primeiro período presidencial”(par. 2) e “para essa eleição, não haverá incompatibilidades” (par.3) 102.
A campanha à favor da realização de novas eleições passou a aglutinar a oposição e
progressivamente esse movimento passou a ter “contornos revanchistas”, uma vez que foi
liderado por civis e militares que haviam sido depostos no contra-golpe de 23 de Novembro
de 1891103. No início de Abril de 1891, um Manifesto de 13 Generais surpreendeu o
governo104. Esse documento era assinado por “(...) oficiais Generais do Exército e da
Armada” descontentes com a política de substituição de governadores, que foi procedida de
forma direta ou indireta por Floriano Peixoto. Esse Manifesto defendia que “(...) só com a
eleição do Presidente da República, feita o quanto antes (...) poderá restabelecer a confiança, o
sossego e a tranqüilidade na família brasileira (...)” 105.
No despacho do dia 8 de Abril o Conde de Paço D’Arcos informou o governo
português sobre o Manifesto que “treze generais de terra e mar dirigiram ao Vice-Presidente
101 Idem. p. 143. [despacho de 14.03.1892] 102 CARONE, 1983. op. cit. p. 88-89. 103 Idem. p. 91. 104 Edgard Carone lembra que o Manifesto é datado de 31 de Março, mas só foi tornado público no dia 6 de Abril, porque era esperado o desfecho de uma sublevação que não ocorreu. 105 O Manifesto dos 13 Generais, como ficou conhecido, foi assinado por: Vice-Almirante Wandenkolk; Generais de Divisão José C. de Queiroz, Antônio Maria Coelho e Cândido José da Costa; os Contra-Almirantes José Marques Guimarães, Dionísio Manhães Barreto e Manuel Ricardo da Cunha Couton; os Generais de Brigada João José de Bruce, José Cerqueira de Aguiar Lima, João Luís de Andrade Vasconcelos, João Severiano da Fonseca e João Nepomuceno de Medeiros Mallet; e o Marechal José de Almeira Barreto. Ver: CARONE, 1983. op. cit. p. 91-92. O autor José Murilo de Carvalho insiste em seu artigo sobre as Forças Armadas que eram 12 Generais. Contudo, não explica o porquê. Ver: CARVALHO, 2005. op. cit. p. 15 e 43.
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da República exigindo (grifo no original) que se faça breve a eleição de novo presidente” 106.
Depois de comentar brevemente alguns dos nomes que assinaram o Manifesto, a sua opinião
era de que esse documento fundamentava mais as suas impressões de que ocorreriam grandes
acontecimentos em breve.
No dia seguinte, em um telegrama, Carlos Eugênio comunicou a decisão do governo
brasileiro de retirar dos cargos que ocupavam e reformar todos os generais que assinaram o
Manifesto107. E ainda no mesmo dia 9, elaborou um relatório pormenorizado sobre os fatos
recentes. Nesse relatório, ele informou que recebeu um telegrama do Ministério das Relações
Exteriores do Brasil, que nessa época estava sob os cuidados de Serzedello Correia,
participando o diplomata português do recente Manifesto dos 13 Generais. Ficava claro,
portanto, “que o governo não quere ocultar o facto, antes, de contrario, pretende fazê-lo
conhecer, por alarde da sua força” 108.
O documento prossegue fazendo apreciações sobre o atrevimento tanto dos generais
que assinaram o Manifesto quanto do governo que reformou os mesmos. Para o Conde de
Paço D’Arcos, esses generais deveriam contar com algum apoio que na última hora não foi
posto em prática. Portanto, nem o governo havia eliminado a questão, nem a oposição estava
de fato derrotada. A aparente força do governo residia, segundo esse diplomata, no “valor e na
acção do almirante Custódio de Mello, Ministro da Marinha, auxiliado pelo Ministro do
Exterior”. Porém, para Carlos Eugênio, isso era difícil de entender.
Mas o que é notável nestas variantes da política, aqui maiores e mais acentuadas do que em qualquer outro paiz, é que Custódio de Mello ainda a pouco queria que se fizesse a eleição, segundo se dizia para apresentar a própria candidatura, e agora combate com um acto de força os que vinham a defender as suas idéias de então. E da mesma forma é notável que Wandenkolk, um dos autores da restauração (grifos no original) de 23 de novembro, preso nessa noite pelo general Almeida Barreto, homem de Deodoro, tenha conseguido arrastá-lo e a outros deodoristas à sua campanha contra Floriano, que ajudou a levantar nos escudos, e a quem hoje combate por ambição pessoal, mas mais ainda pela rivalidade com Custódio de Mello. (...) É geral a anciedade e esperam-se graves acontecimentos 109.
Esse clima de instabilidade e incerteza do dia 9 de Abril acabou por desencadear o
protesto do dia 10 de Abril no largo da Lapa 110. Como resultado desse protesto, diversos
militares, políticos e jornalistas foram deportados para Estados longínquos da federação.
Já no ano de 1893, outro episódio tomou a atenção de Carlos Eugênio. Uma proposta
do General Deputado Frederico Sólon causou grande repercussão na imprensa nacional. A
106 SILVA, 1974. op. cit. p. 144. [despacho de 08.04.1892] 107 Idem. p. 145. [despacho de 09.04.1892] 108 Idem. p. 146. [despacho de 09. 04.1892] 109 Idem. p. 147. [despacho de 09.04.1892] 110 Esse protesto já foi trabalhado no item 2.2.
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proposta consistia em fazer com que todos os militares, tanto do Exército quando da Marinha,
que aceitassem cargos políticos ou administrativos, quer sendo eleitos ou nomeados, deveriam
abdicar de suas patentes militares nunca mais as reavendo – exceto os nomeados ou eleitos
para comissões científicas, técnicas ou diplomáticas111. A impressão de Carlos Eugênio dizia
que o “o espírito público está cansado deste abuso de militarismo que tem continuado; e se o
Brasil não tem a energia da França para escolher um chefe do poder, entre os civis, tem como
ela o receio da espada que se pode tornar absoluta”.
Para o Conde de Paço D’Arcos os próprios generais e coronéis estariam cansados de
“(...) servir sob as ordens de alferes, tenentes ou capitães escolhidos para governadores dos
estados (...)”, pois “(...) pesa-lhes essa quebra de hierarquia, que os força à obediência aos
palradores, que esquecem o ‘direita volver’ e o ‘braço armas’ pelas frases sacramentais e os
narises de cêra da oratória das câmaras”.
Entretanto, Carlos Eugênio via com muita dificuldade a aprovação dessa proposta,
uma vez que o próprio Marechal Floriano se apoiava nos militares e tinha a maioria no
Congresso nacional. No dia 30 de Junho de 1893, a sua previsão de rejeição da proposta
Sólon era reiterada nos mesmo argumentos112.
No mês seguinte, outra ocorrência marcou a insubordinação militar e foi descrita pelo
Conde de Paço D’Arcos. O relato informava que o deputado Valadares, um civil, teria
questionado a verba pedida para as escolas militares. Isso teria causado uma “estudantada” à
semelhança das que ocorriam em Paris, porém, aqui “faltavam as barricadas e o proletariado
socialista (que aqui não há) a defendê-las e a farçada foi ridícula, embora constituísse uma
verdadeira insubordinação militar e social”.
Esses estudantes113 teriam sido “conduzidos, capitaneados e influídos por um tenente,
um alferes e um cadete também estudantes da escola superior de guerra” para um protesto na
Câmara dos Deputados. O protesto consistia em “dar vaias ao deputado e assentar-lhe nas
solas um par de ferraduras” 114. Para Carlos Eugênio, “tudo ridículo; e mais ridículo ainda,
mais triste, porque os estudantes de São Paulo, querendo também entrar na comédia, tomaram
por pretexto uma questão de teatro e travaram luta com a polícia (...) 115. No dia 29 de Julho
de 1893, o Conde de Paço D’Arcos relatou que “em São Paulo os estudantes e a policia
111 SILVA, 1974. op. cit. p. 218. [despacho de 17.06.1893] (grifos nosso) 112 Idem. p. 222. [despacho de 30.06.1893] 113 Sobre a participação dos estudantes das escolas militares como percussores do movimento republicano de 15 de Novembro ver: CASTRO, 1995. op. cit. 114 SILVA, 1974. op. cit. p. 228. [despacho de 12.07.1893] 115 Idem. p. 229. [despacho de 12.07.1893]
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continuam a guerrrear-se (...)”, o que ajudar a dimensionar o alcance de tais eventos. A
conclusão dele sobre esses episódio é lacônica ao afirmar que “é o costume” 116.
2.3 - análises do meio político
Carlos Eugênio Corrêa da Silva, o Conde de Paço D’Arcos, analisou em diversos
momentos o meio político brasileiro. As caracterizações que ele fez dos grupos que atuavam
nesse cenário são interpretações pautadas pelo conservadorismo na defesa da ordem social e
hierárquica. Essa maneira particular de perceber as questões políticas do Brasil teve suas
origens, como já foi trabalhado no primeiro capítulo, em sua formação educacional e
profissional, assim como no ambiente político em que Carlos Eugênio experimentou em
Portugal na segunda metade do século XIX.
Para compreender as formas pelas quais esse diplomata definiu esses grupos políticos,
assim como as interpretações que ele fez do processo político brasileiro, vamos procurar
caracterizá-los a partir de algumas referências bibliográficas da historiografia do período
republicano, e relacioná-las com a documentação do Conde de Paço D’arcos. Esse exercício
nos ajudará não só a compreender o período em questão, como também, a evidenciar os usos
que foram feitos dessa documentação.
O primeiro grupo político que será analisado através da documentação do Conde de
Paço D’Arco será aquele que entrou para a historiografia como jacobinos. Posteriormente
trabalharemos como esse diplomata percebeu os monarquistas que atuavam na jovem
república. Pensamos que a análise desses dois grupos políticos feita por Carlos Eugênio nos
possibilita visualizar a sua preocupação com a disciplina social, sobretudo a partir da atuação
desses dois grupos políticos antagônicos.
116 Idem. p. 243. [despacho de 29.07.1893]
90
2.3.1 Jacobinismo 117
O primeiro trabalho que analisou sistematicamente o jacobinismo foi o de Suely
Robles Reis de Queiroz118. Ao realizar uma retrospectiva de como a historiografia havia
trabalhado esse grupo social, Suely aludiu a obras que o remontam à Proclamação da
República. Contudo, essas interpretações, assim como as de Edgard Carone, que fala em
“jacobinismo deodorista”, para ela, são equivocadas. A autora é categórica ao afirmar que o
movimento jacobino iniciou em 1893, com a Revolta da Armada, em 6 de Setembro. O
equívoco seria decorrente da não separação entre a ação, e o pensamento jacobino. De acordo
com Queiroz, “O movimento tem limites cronológicos precisos enquanto alguns elementos do
discurso são anteriores a ele ou lhe sobrevivem, mas não bastam para caracterizá-lo” 119. Entre
as características desse discurso que são anteriores ao movimento desses radicais das “classes
médias urbanas” 120, ela cita a lusofobia, o republicanismo e o antimonarquismo como
exemplos.
Realmente, ao analisarmos a documentação produzida pelo Conde de Paço D’Arcos
que foi transcrita e publicada, e que foi consultada pela autora, é possível encontrar várias
referências à lusofobia anteriores à Revolta da Armada 121. Porém, também é possível
encontrar documentos originais, não consultados pela autora, que remontam a lusofobia para
o início da Missão do Conde de Paço D’Arcos, ainda durante o governo Deodoro.
117 De acordo com Bongiovanni, “(...) para os historiadores, o Jacobinismo se resume essencialmente à década de 1789-1799. Os jacobinos são os ardorosos representantes do terceiro Estado que, relacionados com a Assembléia Nacional, se reuniram primeiramente sob o nome de club breton e, depois, de Societé des amis de la Constitution: a partir de outubro-novembro de 1789, congregavam-se no convento dos dominicanos (ou jacobins) da rue Saint-Honoré, sendo apelidados pelos adversários de ‘jacobinos’. O Jacobinismo tem de comum com o marxismo o fato curioso de haver recebido o seu nome dos adversário”. Ver: BONGIOVANNI, Bruno. “Jacobinismo”. IN: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (orgs.). Dicionário de Política. 11ª edição. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998. p. 653-655. Para Lincoln de Abreu Penna, o Jacobinismo brasileiro só teria de semelhança com o europeu o fato de ter recebido essa denominação dos seus adversários. De acordo com Penna, três argumentos desautorizariam o emprego desse termo para qualificar os nossos radicais. Os três pontos seriam: (a) a composição sócio-econômica do jacobinismo clássico, (b) o grau de radicalidade das propostas deste jacobinismo, e (c) a maneira pela qual concebiam o poder político. Dessa forma, como veremos ainda nesse item, Penna propôs a utilização do termo florianimos de rua para melhor definir esse grupo político. Ver: PENNA, 1997. op. cit. (Sobretudo p. 107-125) 118 QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Os Radicais da República. São Paulo: Brasiliense, 1986. Há também um artigo clássico de June Harner, porém centrando a análise na relação entre os jacobinos e os portugueses. Ver: HAHNER, June E. Jacobinos versus Galegos: Urban Radical versus Portuguese Immigrants in Rio de Janeiro in the 1890s. Jornal of Interamerican Sudies and World Affairs. Vol. 18. Nº. 2. May 1976. 119 QUEIROZ, 1986. op. cit. p. 263. 120 A autora defende a heterogeneidade desse grupo social e prefere utilizar o termo “classes médias urbanas” para definir a composição social desse movimento. Ver: Idem. p. 207-208. 121 Para lusofobia ainda no primeiro reinado: Cf. RIBEIRO, Gládis Sabyna. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos no primeiro reinado. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
91
A maneira como esse diplomata constrói o argumento da lusofobia, deixa transparecer
o seu conservadorismo e será útil para diferenciação dos documentos que falam sobre os
jacobinos. Em nossa opinião, existe uma clara distinção nas percepções do Conde de Paço
D’Arcos entre o que é lusofobia e o que é o jacobinismo, mesmo sendo a lusofobia um dos
aspectos do discurso jacobino. Essa diferenciação será explicitada por acreditarmos que é
possível encontrar indícios do jacobinismo na documentação do Conde de Paço D’Arcos,
antes da Revolta da Armada, mesmo que seja de uma forma “embrionária” como sugere
Lincoln de Abreu Penna 122.
A lusofobia pode ser constatada no relatório enviado pelo Conde de Paço D’Arcos ao
Ministro das Relações Exteriores do Brasil, que naquele momento era Justo Leite Pereira
Chermont, comunicando sobre os “abusos de autoridades, violências, e verdadeiros actos de
barbaridades praticados por autoridades brasileiras, contra súditos portugueses” 123. Carlos
Eugênio, que recém havia chegado ao Rio de Janeiro, relatou um incidente ocorrido em
“Terra Santa, cidade de Petrópolis”, onde funcionava a sede do Corpo Diplomático.
Após um desentendimento entre alguns trabalhadores brasileiros “desordeiros”, e
alguns italianos, “sem a participação de portugueses”, um policial caiu ferido e desmaiado, e
os seus companheiros o abandonaram no local do conflito. Só então que, por “meios
sucessórios e com boas maneiras”, alguns portugueses intervieram para “socegar o tumulto e
conter os luctadores”. Foi então que o capataz da obra, o português Bento Fernandes, de 49
anos, que habitava uma barraca no local, foi, com a ajuda de sua esposa, recolher o ferido e
dar-lhe os primeiros socorros para “o chamar a vida e estancar o sangue do ferimento”.
O conflito aparentemente havia acabado, e de acordo com Carlos Eugênio, “restando
só à polícia, que fugira, levantar mais tarde auto e inquérito contra os que se mostraram
auctores, ou cúmplices n’aquele acontecimento criminoso”. Porém, a força policial retornou
ao local do tumulto com reforços comandados pelo alferes comandante e o subdelegado em
exercício, possivelmente para resgatar o companheiro ferido. Não achando os “desordeiros”
que haviam fugido para o mato, os soldados, “parece que por ordem desses chefes”, abriram
fogo contra as barracas “num desespero louco”, mesmo não tendo quem combater, uma vez
que não havia resistência. Sendo a barraca de Bento Fernandes “varada de ballas” esse
apareceu na porta e “advertiu à polícia”:
Que tinha ali um ferido policial a quem estava soccorrendo! Que tinha também ali seus innocentes filhos, inoffensivas crianças que corriam perigo de serem feridas! E
122 PENNA, 1997. op. cit. p. 166. 123 Esse relatório não foi transcrito no livro que contém a documentação Carlos Eugênio. Ele pode ser encontrado em: (Arquivo Histórico do Itamaraty – RJ – Estante 288/ Prateleira 02/ Maço 11 – 16.07.1891)
92
que demais tinha em sua casa arrecadado grande porção de pólvora e dynamite das obras da estrada, o que collocava toda a gente em gravíssimo risco d’uma explosão terrível se o fogo alcançasse o paiol! Malfadada foi ao pobre homem a sua benéfica e bem intencionada intervenção!
A reação de um dos soldados da polícia, “malvado, sanguinário”, foi disparar “à
queima roupa” a sua espingarda no ventre de Bento Fernandes, disparo que atravessou o seu
corpo “dando-lhe morte instantânea”. Esse ato de barbárie foi seguido de “scenas de
verdadeiro canibalismo! De revoltante brutalidade! De indigna violência!”. Os soldados
depuseram as armas e sacaram os sabres distribuindo “espadeiradas” nas mulheres e crianças.
Uma das mulheres, em adiantada gravidez, ficou extremamente ferida correndo perigo de
morte. Todos os homens que foram encontrados no local foram presos, entre eles, um
português. O documento termina, dizendo confiar na bondade do governo brasileiro para
apurar os fatos acima descritos.
Essa descrição do caso de Bento Fernandes é um exemplo de uma “prática recorrente”
no Rio de Janeiro no final do século XIX, e que foram relatadas pelo Conde de Paço D’Arcos
diversas vezes no transcorrer da sua documentação enviada ao Ministério das Relações
Exteriores do Brasil124. Essa prática é a lusofobia, que consistia na sistemática violência
contra os portugueses, que naquela época, eram vistos como relacionados com o antigo
regime monárquico, ou por considerá-los exploradores dos aluguéis. No caso de Bento
Fernandes, foi a polícia quem praticou as violências. Porém, a violência contra os portugueses
não era primazia da instituição policial, sendo muitas vezes praticada por determinados
grupos sociais, como os jacobinos.
Os argumentos utilizados pelo mesmo diplomata quando ele procura relatar a ação do
jacobinismo se diferem daqueles que retratam a lusofobia.
Esse é o caso do relatório enviado ao Ministro das Relações Exteriores do Brasil em
18 de Dezembro de 1891, que nesse momento é Fernando Lobo Leite Pereira. Esse relatório
está transcrito no livro que foi publicado com documentos do Conde de Paço D’Arcos125. O
conteúdo desse documento é sobre “uma ameaçadora e inconveniente carta” que o diplomata
recebeu pelo correio, aparentemente dirigida por “grupo qualquer de anarquistas e
perturbadores da ordem”, carta essa que foi enviada em anexo a esse relatório para o Ministro
brasileiro. Essa carta não foi transcrita no livro, mas tivemos acesso a ela126.
124 Ver: Arquivo Histórico do Itamaraty – RJ – Estante 288/ Prateleira 02/ Maço 11 e 12 – diversos documentos). 125 SILVA, 1974. op. cit. p. 118. [despacho de 18.12.1891] 126 (Arquivo Histórico do Itamaraty – RJ – Estante 288/ Prateleira 02/ Maço 11 – 18.12.1891)
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Ela inicia dizendo que no “mais difícil” momento de organização republicana, a
“colônia portuguesa”, que “enriqueceu e prosperou” no Brasil, veio se somar a um pequeno
grupo de deportados que propalaram que o governo português e demais monarquias européias
eram “a favor do movimento restauracionista”. Logo “os portugueses!” que vieram “pobres”
de Portugal e foram acolhidos “indistinctamente”. O documento prossegue, dizendo que os
“portugueses que ainda há tão pouco tempo, na questão inglesa receberam do Brasil as provas
mais solenes de amizade e quase solidariedade, consentindo que se formasse um batalhão
patriótico a fim de seguir para a guerra, felizmente evitada, contra a Inglaterra” 127, que era
igualmente uma nação amiga.
Em função dessas atitudes dos portugueses, “um grupo de patriotas deliberou
responder essa provocação, organizando represálias que chegarão até a dynamite, o punhal e o
incêndio às pessoas e bens dos súditos portugueses suspeitos de conspiradores”. Para tal
empreendimento, esse “grupo de patriotas” contaria, de acordo com a carta, com o apoio de
“todos homens de cor” e de “grande parte da colônia italiana que justamente odeiam essa
nação de exploradores sem entranhas”. E termina dizendo que “Recomeça a Guerra dos
Mascates! Guerra à Nação portuguesa! Fora essa raça de judeus do occidente!”. A carta é
assinada pelo “O Grupo Vermelho” e “A Sociedade Irredentista”.
O Conde de Paço D’Arcos, no relatório a que essa carta foi anexada, afirma não ter
sido a primeira vez que recebera esse tipo de intimidação. Contudo, a carta havia sido a
repetição de algumas ameaças que foram publicamente proferidas em um meeting na Capital
Federal, que fora assistido pela polícia sem que essa fizesse nada a respeito. O propósito desse
relatório é claro ao reivindicar a manutenção da ordem social, sobretudo com relação à
integridade dos súditos portugueses:
O abaixo assinado pede, pois ao Ex.mo Ministro das Relações Exteriores parra que o Governo Federal, amigo da ordem como mostra ser, tome da devida consideração estas ameaças persistentes contra os súbditos de uma nação amiga e contra funcionários que respeitam como devem as instituições que o Brazil adotou e em nada se envolvem nas questões de política interna, com as quais nada tem128.
Para o Conde de Paço D’Arcos, como já foi dito anteriormente, o governo Floriano fez
a defesa do Congresso Nacional frente ao Golpe de Estado em 3 de Novembro de 1891, era,
portanto, um governo “amigo da ordem como mostra ser”. A descrição do meeting jacobino
que mostrara o seu radicalismo contra os portugueses e o movimento restauracionista, foi só o
primeiro relatado por Carlos Eugênio. 127 Sobre a questão entre Portugal e a Inglaterra na questão do ultimatum inglês, ver: MAGALHÃES, 2000. op. cit. 128 SILVA, 1974. op. cit. p. 118. [despacho de 18.12.1891] (grifos nosso)
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Sobre os meetings, vale à pena conferir o que diz Suely Robles de Queiroz. Para ela, o
Parlamento e a Imprensa foram dois meios importantes de divulgação das idéias do
movimento jacobino. Porém, os meetings não eram prática exclusiva dos jacobinos, uma vez
que quaisquer grupos políticos se utilizavam desse recurso para divulgar suas idéias. O que
diferenciava esses comícios era “o tom incendiário dos discursos o traço distintivo dos
“meetings” jacobinos”. De acordo com Suely, nas passeatas “os participantes se viam
incitados a ações radicais, das quais resultavam agressões físicas, destruição de próprios
particulares, empastelamento de jornais” 129.
Esse relatório do dia 18 de Dezembro de 1891 é, portanto, significativo. Ele foi
redigido no início do governo Floriano e contém todas as características que Suely Robles de
Queiroz julga comum ao discurso jacobino – lusofobia, antimonarquismo, republicanismo. Ao
analisar o relatório e a carta ameaçadora anexada parece ficar clara, em nossa opinião, a
existência do jacobinismo antes da Revolta da Armada.
Outro exemplo de documentação que ajuda a perceber a caracterização feita por
Carlos Eugênio acerca dos jacobinos foi o telegrama enviado alguns dias depois, em 22 de
Dezembro de 1891, para Lisboa, informando que no “Rio de Janeiro [foi] criado [o] batalhão
Jacobino exaltado contra [os] monárquicos. Club Tiradentes publica nos jornais lista de
suspeitos. Desassocego geral” 130. Esse telegrama é o primeiro documento disponível na
documentação transcrita que Carlos Eugênio que faz referência direta aos jacobinos.
Nesse momento é necessário fazer um questionamento que ajudará a perceber o
conservadorismo do Conde de Paço D’Arcos, nesse telegrama e em outras passagens que
serão trabalhadas mais adiante: qual é a diferença entre os “Batalhões Patrióticos” e os
“Clubes Jacobinos”?
Acreditamos que o estudo de Suely Robles de Queiroz nos fornece algumas pistas para
essa pergunta, embora não os diferencie sistematicamente. Vejamos de que forma ela os
caracterizou: a autora lembra que os clubes eram usados para “arregimentação” em uma
prática que remonta ao período de propaganda republicana, e que “muitos transformaram-se
em focos jacobinos e estimularam a criação de outros nos anos subseqüentes, como se pode
ver nos despachos do Conde de Paço D’Arcos” 131. Para Suely Robles de Queiroz, a
composição social dessas associações jacobinas era:
129 QUEIROZ, 1986. op. cit. p. 81. (grifos nosso) 130 SILVA, 1974. op. cit. p. 119. [despacho de 22.12.1891] (grifos nosso) 131 QUEIROZ, 1986. op. cit. p. 82.
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(...) exclusivamente de brasileiros natos e geralmente presididas por militares de baixa ou mediana patente. Possuíam estatutos e a direção compreendia o presidente , o vice-presidente, primeiro e segundo secretários, um tesoureiro. (...) Suas atividades incluíam reuniões de caráter político onde se decidia a participação de atos bélicos, a organização de comícios e homenagens e representações ao governo. Juntamente com os jornais jacobinos, tais associações mantinham vivo o culto a Floriano, promovendo romarias ao seu túmulo em datas cívicas. Delas sairiam, em grande parte, os integrantes dos “batalhões patrióticos”, espécie de milícia formada para defender a República em caso de perigo e que constituíram outro foco de jacobinismo. A criação desses batalhões data dos primeiros dias da República, da época do Governo Provisório, quando se temia uma reação anti-republicana132.
Dessa forma, para Queiroz existe uma diferença entre os “Clubes Jacobinos” e os
“Batalhões Patrióticos”. Ainda segundo a autora, a composição social desses “Batalhões
Patrióticos” era de “(...) homens de negócios, funcionário, guarda-livros, enfim, elementos
dos mesmo heterogêneos extratos sociais civis que, juntamente com militares, compunham os
clubes jacobinos” 133.
O que ficou claro com essas citações? Que os batalhões eram grupos armados para
agir em defesa da república, e eram compostos por jacobinos selecionados nos clubes.
Também pode-ser concluir que tanto os “Clubes Jacobinos” quanto os “Batalhões Patrióticos”
eram compostos por civis e militares. Parece-nos haver certa confusão até mesmo para a
autora, na definição dos limites existentes entre os Clubes e os Batalhões, se é que existiam
esses limites.
Dessa forma, não é de se estranhar, que na documentação do Conde de Paço D’Arcos
nós encontremos essa confusão conceitual. Ainda mais vindo de um diplomata estrangeiro
que, mesmo tendo a facilidade da mesma língua, possui toda uma formação política e
educacional que condicionou a sua percepção em relação à política nacional brasileira. Assim,
a dificuldade de identificar as diferenças entre essas associações ajuda-nos a compreender que
ambas as agremiações eram vistas por Carlos Eugênio como as responsáveis pela desordem
social.
O exemplo por nós selecionado na documentação é elucidativo da mistura que Carlos
Eugênio fez dessas associações de radicais. Aqui, o Batalhão Tiradentes é chamado de “Clube
dos Jacobinos”, e depois o mesmo clube forma um batalhão. Mas o que salta aos olhos, além
da confusão conceitual, é a descrição da composição social dessas agremiações, que
demonstra o seu apego pela ordem social:
O Club Tira-Dentes, um verdadeiro club dos Jacobinos da 1ª. república francesa, celebra meetings (grifo no original) nas praças em que se vitoriam os exaltados e se
132 Idem. p. 83. 133 Idem. p. 84.
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proferem e aclamam as preposições mais audazes e inconvenientes com respeito à França e a Portugal por causa das honras prestadas ao falecido Sr. D. Pedro de Bragança! O mesmo Club, em sessão de que a acta veiu publicada nos jornais, decreta uma lista de suspeitos e vota-os à morte! E para em tudo se procurar a imitação de 93, o Club forma um batalhão de voluntários da peor espécie que, quais novos marselheses, se preparam com o seu Barbaroux para alguma repetição de um 10 de Agosto! O receio é geral; não só entre os que são apontados e votados à morte, mas entre todos os homens de ordem e de bom senso. O presidente desse Club, aclamado logo comandante de tal batalhão de voluntários da morte, é um Dr. Sampaio Ferraz, deputado federal que foi chefe de polícia com a primeira ditadura (Bocayuva). Quando chefe da política, mandou para Fernando de Noronha toda a gente de que lhe conveiu desfazer-se sobre pretexto de capoeiragem; mas deixou na cidade os homens de sua confiança, capangas, capoeiras, vadios, de quem compõe agora o seu batalhão de sicários, que por força de consoantes se chamam voluntários, como as formigas se chamavam brancas. Os tumultos das praças e os ataques à mão armada a cidadãos inermes, só por suspeitos de monarquismo, são obra desses sicários arvorados em defensores da republica e de outros exaltados congregados num chamado batalhão acadêmico; e o mais notável é que o governo Floriano dá as armas (e dos melhores sistemas) a estes bandos que pregam o extermínio! Há o exército e a Guarda Nacional que deve ser o povo armado, e ajunta-se-lhe agora os voluntários (grifo no original), isto é os condottieri (grifo no original), os que nada teem a perder e tudo a ganhar, a escuma social, a que se dá armamento! 134
Vejamos agora como outro autor caracterizou o movimento jacobino. De acordo com
Lincoln de Abreu Penna, para alcançar a ordem social e garantir ao menos o cumprimento do
seu mandato presidencial, Floriano Peixoto teve que conviver com uma ambigüidade 135. De
um lado, “na grande política”, ele tinha o apoio da bancada que defendia um federalismo,
sobretudo os representantes da oligarquia paulista. Por outro lado, “na pequena política”, ele
tinha a adesão espontânea de um grupo heterogêneo de radicais que o apoiava irrestritamente
para consolidar a República e expurgar os seus inimigos.
Esse antagonismo de projetos políticos (federalista x presidencialista) que conviveram
no mesmo período, é aquilo que Lincoln Penna chama de florianismo. Esse seria a expressão
de um meio político, que por sua vez, se dividiria, respectivamente, em florianismo de
governo e florianismo de rua.
Essas arruaças descritas pelo Conde de Paço D’Arcos podem ser interpretadas a partir
daquilo que Lincoln de Abreu Penna chamou de florianismo de rua. Seriam as manifestações
espontâneas de grupos políticos que estavam à margem do jogo político convencional. Seriam
a “mais pura adesão a uma liderança política convencional ignorando as instituições e
mantendo com o Marechal uma relação de absoluta fidelidade”. Essa adesão se daria pela
compreensão de que a partir da manutenção do poder e do exercício presidencial, garantir-se-
134 SILVA, 1974. op. cit. p. 121-122. [despacho de 23.12.1891] 135 PENNA, 1997. op. cit.
97
ia ao presidente as condições necessárias de proporcionar o bem público e a integração dos
cidadãos à sociedade.
O florianismo de governo, por sua vez, seria a maneira pela qual os apoiadores do
Marechal Floriano encontraram para tirar proveitos políticos. Os principais proveitos viriam
da composição dos quadros da administração pública, controlando a máquina estatal136. A
categoria florianismo de governo seria, portanto, a mesma coisa que estadania para José
Murilo de Carvalho137.
Uma das conclusões de Lincoln de Abreu Penna, diz que é na Revolta da Armada que
aconteceu a fusão entre os florianismo de governo e de rua. Outra conclusão é que os
Batalhões Patrióticos são a expressão da relação entre o florianismo de rua e o florianismo de
governo138. Sobre esses batalhões, o autor acredita que é possível encontrá-los de “forma
embrionária” antes da Revolta da Armada. “Esses primeiros embriões da organização
associavam República a Floriano e esse ao patriotismo, elementos básicos da coesão desses
núcleos, a partir dos quais eram identificados seus oponentes” 139.
Parece-nos mais prudente considerar, portanto, a partir da documentação produzida
pelo Conde de Paço D’Arcos, que existiu um jacobinismo de forma “embrionária” antes da
Revolta da Armada. Esse jacobinismo, aos olhos do Conde de Paço D’Arcos, causava
desordens e, por vezes, alguns grupos ousavam enfrentá-los em confrontos em praça pública.
Vale a pena ver dois exemplos.
O primeiro foi o caso de uma manifestação em função da utilização de imagens de
Cristo nas salas do tribunal de justiça na capital federal. Com a República houve a separação
entre Estado e Igreja, e para esse grupo de radicais, era inconcebível que houvesse símbolos
religiosos em ambientes institucionais. Isso causou uma polêmica chamada “Cristo no jury”, e
teve “consequências tristíssimas”, de acordo com Paço D’Arcos.
Uns fanáticos da igreja evangelista foram ao tribunal e quebraram as sagradas imagens. A este desacato, que se diz encomendado pela seita, e não nascido simplesmente do propósito escandaloso ou fanático de alguns, responderam os católicos romanos com subscrições para a restauração das imagens e para a fundação de uma capela votiva e ainda mais com uma procissão de desagravo, percorrendo as ruas publicas. O jacobinismo exaltado e intransigente recebeu com vaias e apupos a manifestação católica-romana, e esta que era acompanhada, decerto propositalmente, por caceteiros e capoeiras armados, mostrando-se mais fanática e mais intransigente do que os contrários, respondeu com força, levantando-se medonha desordem, correndo o sangue e tornando-se tudo um infernal tumulto. Desacato contra desacato,
136 PENNA, 1997. op. cit. p. 164. 137 “A reação, pragmática, antes que ideológica, a esta situação por parte dos que se viam excluídos do sistema foi o que chamamos de estadania, ou seja, a participação, não através da organização dos interesses, mas a partir da máquina governamental, ou em contato direto com ela”. Ver: CARVALHO, 2009.op. cit. pg. 65 138 PENNA, 1997. op. cit. p. 165. 139 Idem. p. 166.
98
com desprestigio das crenças e grande gaudio dos que querem deitar por terra todos os bons sentimentos140.
O segundo caso, também ocorrido antes do início da Revolta da Armada, foi a idéia
posta em prática pelo “clube e batalhão Tiradentes” 141, que gerou uma resposta dos
monarquistas. Vejamos como o Conde de Paço D’Arcos relatou esse episódio, em que mais
uma vez deixa transparecer a sua condenação daqueles que atentam contra a ordem social.
o façanhudo corpo de marselheses (de Sampaio Ferraz) que tanto faz falar de si pelas ideas jacobinas as mais avançadas, composto de capoeiras, de facínoras, de vadios e infelizmente também de portugueses renegados, batalhão que todos receiam porque se diz pronto a fundar um novo terror (grifo no original) e ao qual o governo deu outrora armamento do mais aperfeiçoado, esse club e batalhão pediram e obtiveram imediatamente licença da Intendência, ou Município (...) 142
Esse batalhão ergueu um coreto com andaimes em torno da estátua de D. Pedro I na
Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, para os festejos ao “mártir da República” 143. A idéia era
tapar a estátua de D. Pedro I para impedir que ela fosse vista nesse dia de jubilo a Tiradentes.
Disseminou-se a idéia de que a estátua seria derrubada “sem querer” quando fossem retirados
os andaimes, ou então, intencionalmente, tapada com um tapume, fazendo parecer uma
mágica em que simbolicamente a monarquia era derrubada pela república.
Os boatos chegaram até “alguns monárquicos exaltados” que se juntaram para destruir
o tal coreto e salvar a estátua que eles conheciam desde a infância. “(...) foi o coreto apeado
num pronto, a madeira lançada aos quatro cantos da praça, e a estátua descoberta ao som de
vivas à ordem e morras à anarquia”. As conclusões que o Conde de Paço D’Arcos tirou desse
episódio diz que foi a primeira vez que houve um “verdadeiro levantamento popular”. O que
era sintomático “senão de afeições ou aspirações monárquicas, pelo menos de que cesse a
anarquia dos exaltados, e se entre na ordem, que haja paz e socêgo, menos pregações
republicanas e mais trabalho efetivo que traga crédito e a segurança pública” 144.
Esse último exemplo deixa clara a aspiração de outro grupo social que foi igualmente
percebido por esse diplomata.
140 SILVA, 1974. op. cit. p. 144. [despacho de 08.04.1892] (grifos nosso) 141 Para ver a composição dos comandantes e administradores dos batalhões patrióticos na cidade do Rio de Janeiro ver: PENNA, 1997. op. cit. p. 159-161. 142 SILVA, 1974. op. cit. p. 200-201. [despacho de 06.05.1893] (grifos nosso) 143 Sobre a construção de Tiradentes como “mártir da República”, ver: CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2002. p. 55-73. (capítulo 3). 144 SILVA, 1974. op. cit. p. 201. [despacho de 06.05.1893] (grifos nosso)
99
2.3.2. Monarquismo
Os monarquistas fizeram parte do cenário político da época e, em nossa apreciação,
eram levados em consideração por Carlos Eugênio por dois motivos. O primeiro motivo é por
ser o próprio Conde de Paço D’Arcos o representante oficial da mesma dinastia que vigorava
no Brasil antes do 15 de Novembro de 1889. Ele acompanhou de perto as possibilidades de
restauração monárquica e a força política que esse grupo possuía, assim como o alcance que
as idéias monárquicas tinham na população. O segundo motivo é em função da imagem de
que havia uma experiência passada de ordem social que o império brasileiro desfrutou, e que,
consequentemente, a república proporcionou a desordem social. As avaliações do Conde de
Paço D’Arcos são críticas dos rumos políticos do Brasil sob o regime republicano, por esse
estar causando a instabilidade político-social.
Outra questão que deve ser levada em conta para avaliarmos a documentação
produzida por esse diplomata, é a importância que era conferida aos monarquistas pelo
próprio governo brasileiro, sobretudo na possibilidade de restauração. Essa imputação de
valor à esse grupo político, de acordo com Maria de Lourdes Mônaco Janotti, era uma
estratégia para obter apoio político e institucional para combater os inimigos da República e
sedimentar o regime145.
Segundo Janotti, essa atribuição de importância aos monarquistas, muitas vezes
baseados em infundados boatos, causavam tanto ataques à fraqueza do governo quanto
alimentava a ilusão de força dos próprios monárquicos146. Porém, o movimento monarquista
possuía diversos problemas que prejudicavam enormemente a sua iniciativa política. Entre
esses problemas, Janotti destacou: a falta de uma sólida liderança autorizada pela família
imperial; as divergências sobre quem seria o herdeiro do trono, se D. Pedro ou D. Augusto, a
desarmonia sobre as táticas de atuação da imprensa monarquista, e a inexistência de uma
sólida coordenação geral147.
Dessa forma, as análises do Conde de Paço D’Arcos sobre esse grupo político devem
sempre ser compreendidas nessa relação dialética entre as suas expectativas em relação à
restauração – enquanto um funcionário de uma monarquia, um político conservador, defensor
da ordem social e hierárquica – e a construção política dos monarquistas feita pelo governo
145 JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os Subversivos da República. São Paulo: Brasiliense, 1986. 146 Idem. op. cit. p. 90. 147 Idem. p. 43-54.
100
para justificar a necessidade de reprimir toda a oposição. Vejamos, portanto, de que forma
Carlos Eugênio percebeu o movimento monarquista a partir dessas duas condições.
Em relatório enviado ao Conde de Valbom em 4 de Setembro de 1891, Carlos Eugênio
descreveu o clima de disputas entre projetos políticos distintos148. Essa descrição do meio
político brasileiro prosseguiu, no mesmo documento, fazendo alusão a questão do veto
presidencial do Marechal Deodoro ao decreto do Congresso Federal que limitava os poderes
dos governadores dos estados. A interpretação de veto presidencial, aos olhos desse
diplomata, causava a descrença da “proficuidade” do sistema republicano e proporcionava
previsões até mesmo da restauração, mesmo que com ressalvas.
A Constituição permite ao Presidente negar a sua sanção às leis votadas pelo Congresso; e como o Presidente fez uso desse direito conclui-se que acabou o poder dos representantes da nação, que está extinto o parlamentarismo, que o Congresso com tal constituição só serve para chancela da ditadura! E ajunta-se que, quando havia um imperador constitucional que reinava mas não governava, quando os ministros eram responsáveis, nunca se deu o caso do veto (grifo no original), nem era preciso, porque os ministros caíam do poder com qualquer votação contraria às suas idéias governativas. Fala-se pois muito numa reforma geral das instituições ou numa ditadura da força; mas quando esses casos se dêem, se não sobrevier uma restauração – quase impossível de supor, ou pelo menos bem difícil, por falta da pessoa competente e estimada na família imperial – poderá dar-se a desanexação ou a fuga à federação dos Estados ricos, que se farão independentes, deixando a cargo da federação sómente os pobres, que não podem ter a independência viável e que mal poderão sustentar o laço federal. (...) É pois de presumir que estejamos em vésperas de grandes acontecimentos 149.
A situação de incerteza sobre os rumos da República brasileira após o veto
presidencial foi novamente indicada pelo Conde de Paço D’Arcos em relatório de 1º de
Outubro de 1891150. No dia 4 de Novembro, em despacho enviado ao Conde de Valbom,
Carlos Eugênio comunicou que “esta previsão que eu fizera, (...) vejo-a agora confirmada
pelos artigos de alguns jornais, que só hoje conhecem para onde caminhavam” 151. As
previsões feitas por esse diplomata de graves acontecimentos se concretizaram com a
dissolução do Congresso por Deodoro, e foi justificada pela sistemática oposição que essa
instituição fazia às propostas do seu governo, além de uma suposta conspiração monárquica.
Na opinião desse diplomata, essa justificativa não passaria de um pretexto, pois “a fraqueza
do partido monárquico não lhe deixaria tentar qualquer movimento” 152.
148 Sobre a disputa entre projetos políticos no início do período republicano, nomeadamente entre positivismo, liberalismo e jacobinismo, e a utilização da simbologia monárquica na república brasileira, ver: CARVALHO, 2000. op. cit. 149 SILVA, 1974. op. cit. p. 91. [despacho de 04.09.1891] (grifos nosso) 150 Idem. p. 92-93. [despacho de 01.10.1891] 151 Idem. p. 98. [despacho de 04.11.1891] 152 Idem. p. 101. [despacho de 12.11. 1891] (grifos nosso)
101
As apreciações do Conde de Paço D’Arcos sobre os monarquistas e a possibilidade de
restauração monárquica prosseguiram durante todo ano de 1892. Em 7 de Janeiro, de acordo
com esse diplomata, estavam os “partidaristas da monarquia, muito animados com o
manifesto da Princesa Isabel, declarando que está pronta a volta ao Brazil e não desiste dos
seus direitos(...)”. Os partidários do antigo regime diziam que se a monarquia não fosse
restaurada “(...) na pessoa da princesa (que é em geral mal vista e mesmo odiada por muitos,
quer pelo nome de seu marido, quer pela libertação completa dos negros) proclamando-se
algum dos Príncipes, sob a regência de Silveira Martins e outros” 153.
Essas apreciações sobre a possibilidade de restauração eram vistas por Carlos Eugênio
associadas à questão da disciplina social. A imagem de um Império sem conflitos internos era
contrastada com a instabilidade do início da República.
Ainda no mês de Janeiro, no dia 24, o Conde de Paço D’Arcos retomou as suas
apreciações sobre os monarquistas e a restauração e desenvolveu melhor o argumento da
necessidade da ordem. Ao comentar a possibilidade de que alguma revolução derrubasse o
atual governo Floriano, Paço D’Arcos é categórico ao afirmar que esta não era uma suposição
gratuita. De acordo com ele, não havia segurança em nenhum lugar do território porque as
arruaças revolucionárias continuavam a espalhar insegurança. O panorama político era,
portanto, favorável para um “golpe de mão audacioso” de algum “aventureiro com talento”,
ou então poderia ser,
(...) qualquer príncipe, que traga consigo o ramo de oliveira da paz e do esquecimentos dos factos passados, com a restauração do credito nacional, apoiado para isso com a proteção de uma grande potencia que lhe facultasse meios de acção com a intervenção de qualquer força armada e a abertura ou garantias do credito à divida externa. E não seria isto, como fez outrora o poder napoleônico, colocar sobre uma percha um novo Maximiliano porque no Brazil há muitos e muitos monárquicos e há, sobretudo, a grande maioria que ambiciona somente o socego e a ordem, quer governe este quer aquêle, e que, sem ter mesmo convicções políticas, conserva a tradição da monarquia como norma de paz e de tranqüilidade 154.
Se havia esperança no restabelecimento da ordem a partir do retorno da monarquia,
igualmente, nutria-se a esperança que fosse Silveira Martins o homem capaz de realizar tal
empreendimento. Em relatório enviado ao Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal,
Costa Lobo, o Conde de Paços D’Arcos comentou que essas esperanças estavam associadas
aos sucessos da marcha política no estado do Rio Grande do Sul155.
153 Idem. p. 124. [despacho de 07.01.1892] 154 Idem. p. 130. [despacho de 24.01.1892] (grifos nosso) 155 Idem. p. 135. [despacho de 03.03.1892] O caso do Rio Grande do Sul será trabalhado no próximo capítulo.
102
As observações que esse diplomata fez sobre as possibilidades de restauração
monárquica estavam em consonância, portanto, com a necessidade de consolidar a ordem
social. Nos seus relatórios, é possível encontrar trechos em que a organização do Estado
brasileiro é avaliada. Para o Conde de Paço D’Arcos, a forma governativa que a República
adotou logo após a Proclamação, era a responsável pela desordem social. Portanto, ou se
substituía a forma governativa da federação pela forma unitária, ou se dava a restauração
monárquica, o que lhe parecia menos provável, ou ainda, o desmembramento do Estado em
várias repúblicas.
Vejamos de que forma Carlos Eugênio constrói o argumento da necessidade da ordem
a partir da substituição da forma de governo. A longa citação que segue comenta a situação de
“anarquia geral” do país e depois faz um exame da Proclamação da República, dos rumos
políticos do Brasil, e afirma a necessidade de ordem social.
Tudo isto que se passa seria demais caricato se não fosse terrível! O Brazil é grande e novo, salvar-se-há! Mas parecem todos apostados em o perder! Bem sei que três anos são nada na historia dos povos para consolidar uma mudança tão radical como aqui se fez; mas em todo o caso, tudo isso mostra que nem o espírito dos homens nem as cousas estava educados e preparados para passarem sem transição da centralização de uma monarquia par as diversas autonomias de uma republica federativa. Se os fautores do 15 de Novembro de 1889, dado o golpe inesperado, nascido da ocasião, pela proclamação da republica, tivessem aproveitado a força que então lhes deu o assombro e o pasmo geral, para formarem a republica unitária, ditatorial e forte, estou que as cousas teriam corrido de outra fórma, e que de toda a parte seria recebida se não com agrado e confiança, pelo menos com indiferença e socego, a substituição de um monarca filósofo e sem acção (que não fosse pela intriga de gabinete), pela presidência enérgica de um soldado, embora pouco instruído e nada político, mas audacioso. Porem os próprios fautores da revolta militar, depois chamada revolução ( e que o foi pelos resultados) de 15 de Novembro, não esperavam tão feliz e tão grande golpe! Ficaram espantados com a facilidade da sua obra, tomaram-se de medo, e começaram de congraçar-se com todos para desvanecer atritos e rivalidades provinciais, pregando a autonomia a cada qual, sem se lembrarem que davam pasto às ambições insofridas, em que todos queriam tudo! Ou medo, ou desejo de embrulhar a situação para pescar nas águas turvas (como dizem muitos) o caso é que Benjamim Constant, Ruy Barbosa e Bocayuva, os homens de então (porque o Marechal Deodoro simples manequim arvorando um pendão, se tem responsabilidade política, não teve nunca a iniciativa) erram grandemente criando o que existe e que não póde sustentar-se. Isto ha-de mudar forçosamente; e, ou seja a restauração (que me parece difícil), ou a republica unitária, ou a separação e desmembramento dos Estados, isto tem de ser outra coisa, para que por uma vez se assegure a paz e prosperidade de uma grande nação, nova, rica, robusta que está gastando a vida numa desordem sem fim, numa batalha de ambições desbragadas de homens e facções! 156
Portanto, a avaliação que o Conde de Paço D’Arcos faz do monarquismo é balizada
por aquelas duas considerações que elencamos anteriormente. O primeiro é o fato de ser um
representante oficial de uma monarquia da mesma casa dinástica da que havia sido
156 Idem. p. 140-141. [despacho de 14.03.1892] (grifos nosso)
103
destronada, o que fez, portanto, com que ele mencione a possibilidade de restauração do
império. Contudo, em sua análise política, essa opção se mostrava difícil de ser efetivada. O
segundo elemento que chama atenção nas apreciações desse diplomata, é que a experiência
unitária do império teria proporcionado a ordem social, e que toda essa obra havia sido jogada
fora com a mudança de regime. A república nos moldes do federalismo, tal qual foi
implantada, seria a causadora da instabilidade. Isso era o que importava para esse indivíduo
que possuía toda uma experiência político-profissional de prezar e defender a ordem e a
hierarquia à outrance.
104
3- FOCOS DE INSTABILIDADE:
A Revolução Federalista e a Revolta da Armada
No primeiro capítulo desenvolvemos os dois argumentos que nortearam a nossa
análise sobre as percepções que o Conde de Paço D’Arcos teve sobre a situação política do
início da República brasileira. O primeiro argumento foi que sua formação em instituições
como a Escola Politécnica e a Escola Naval, fez com que esse indivíduo fosse preparado para
ser um oficial da Armada portuguesa e que defendesse a hierarquia militar enquanto um valor
essencial.
O segundo foi a sua opção política pelo Partido Regenerador de Portugal. O alcance
político que a Revolução Regeneradora de 1851 teve para a sociedade portuguesa ao
estabelecer a disciplina social foi o grande atrativo para que Carlos Eugênio viesse a ser um
político dessa agremiação, assim como um defensor da ordem.
A partir desses dois argumentos, foi possível trabalhar no segundo capítulo a maneira
como o Conde de Paço D’Arcos percebeu a situação política brasileira entre os anos de 1891
e 1893. Em um primeiro momento, procuramos demonstrar a que Carlos Eugênio se
preocupou com o estabelecimento da ordem social, sobretudo nos estados da federação em
que reinava a desordem em função das deposições dos governadores e de golpes civil-
militares. Essa desordem nos estados fizera com esse diplomata produzisse relatórios que
descreveram o “caos” em que a República estava mergulhada, além de refletir e fazer
previsões sobre a política brasileira.
Em um segundo momento, priorizamos a preocupação de Carlos Eugênio com a
disciplina militar. As relações dos militares com a elite política vinham, desde a Guerra da
Tríplice Aliança contra o Paraguai, em crescente atrito. Dessa forma, quando esse diplomata
assumiu as suas funções, se admirou com a grande participação dos militares na política e
com as constantes quebras de hierarquia militar.
Por último, buscamos mostrar de que forma o Conde de Paço D’Arcos percebeu o
meio político brasileiro, especialmente na caracterização de dois grupos antagônicos. Os
“jacobinos” eram percebidos como os responsáveis pelos excessos revolucionários, e os
monarquistas eram acompanhados em função da remota possibilidade de restauração.
Enquanto os primeiros propagavam a desordem, os últimos eram nostálgicos da ordem social
desfrutada durante o segundo reinado.
105
Assim, é possível se passar agora às apreciações do Conde de Paço D’Arcos sobre as
duas revoluções que dificultaram a sedimentação da República brasileira. Esses dois focos de
instabilidade foram acompanhados com extrema atenção, como é possível perceber nos
relatórios de Carlos Eugênio que foram enviados para Portugal, informando a situação política
da República frente às revoltas.
Primeiramente, vamos analisar a forma original que esse diplomata percebeu a política
no estado do Rio Grande do Sul. Mesmo distante desse estado meridional, uma vez que os
diplomatas residiam em Petrópolis, o Conde de Paço D’Arcos acompanhou com atenção a
crescente animosidade entre as facções políticas que resultaram na eclosão da Revolução
Federalista.
Em seguida, vamos avaliar tanto a sua percepção quanto a sua participação na Revolta
da Armada de 6 de Setembro de 1893. A proximidade do palco do conflito, assim como a
possibilidade de circular entre os grupos políticos dirigentes, fez das percepções desse
diplomata um importante testemunho daquele conflito.
106
3.1 A Revolução Federalista
O primeiro documento disponível em que o Conde de Paço D’Arcos faz referência a
situação política no Rio Grande do Sul é imediatamente posterior ao Golpe de 3 de Novembro
de 1891 perpetrado pelo Marechal Deodoro da Fonseca1. A partir desse momento, esse
longínquo estado da federação passou a ser uma constante preocupação política para esse
diplomata. Dessa maneira, é inevitável questionar-se sobre esse fato. Será que a política no
Rio Grande do Sul nunca foi objeto de atenção anteriormente? Será que mesmo que Carlos
Eugênio não tenha produzido nenhum documento relatando alguma coisa a respeito, ele não
acompanhava a situação política do estado?
Parece-nos mais provável acreditar que o Conde de Paço D’Arcos tenha acompanhado
a política estadual antes do Golpe de Deodoro, uma vez que, esse diplomata havia chegado ao
Brasil em 2 de Junho de 1891. Ou seja, já havia se passado seis meses desde o momento de
sua chegada no Rio de Janeiro. Logo, é muito difícil acreditar que um diplomata tão bem
informado pela rede consular estadual 2, e com acesso aos altos funcionários administrativos
do governo, nunca tivesse atentado para política rio-grandense.
A partir da premissa que Carlos Eugênio tinha alguma noção da situação política no
Rio Grande do Sul, chama-nos atenção a forma original pela qual ele interpretou os
acontecimentos políticos desse estado. Não se trata, portanto, de desinformação a respeito de
tal situação. Para nós, a sua interpretação política foi pautada pela defesa da ordem social e da
hierarquia militar. O nosso ponto de vista se sustenta a partir do momento em que não há
nenhuma alteração interpretativa nos demais documentos produzidos sobre essa temática. Ou
seja, o entendimento que o Conde de Paço D’Arcos teve sobre a situação política do Rio
Grande do Sul não se alterou nos dois anos seguintes em que ele ainda permaneceu como
representante diplomático de Portugal no Brasil.
Antes de avaliarmos como Carlos Eugênio compreendeu a política rio-grandense e o
início da Revolução Federalista, torna-se necessário contextualizar brevemente esse momento
político estadual. Em um primeiro momento, vamos trazer alguns elementos explicativos da
política estadual, para depois avaliar as percepções do Conde de Paço D’Arcos sobre a
situação política que desencadeou a Revolução Federalista.
1 SILVA, 1974. op. cit. p. 99 [despacho de 11.11.1891] 2 A rede consular no Estado do Rio Grande do Sul estava estruturada a partir de um Consulado na cidade de Rio Grande, enquanto que os Vice-Consulados estavam localizados em cidades como: Porto Alegre, Jaguarão, Pelotas, Santa Vitória do Palmar e Bagé. Ver: Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul – seção de consulados, maço CN 21, caixa 11.
107
3.1.1 A política rio-grandense antes do Golpe de 3 de Novembro de 1891
No Rio Grande do Sul durante o Império, o Partido Liberal alternou com o Partido
Conservador o governo da Província. Porém, a partir de 1872, o Partido Liberal estabeleceu-
se hegemônico no estado. O seu líder era Manuel Luis Osório e depois da sua morte em 1879,
assumiu a liderança do partido Gaspar Silveira Martins3. A disciplina interna e a propaganda a
partir do periódico A Reforma, eram características que proporcionavam força política a essa
organização. Mesmo que no âmbito nacional houvesse alternância entre os Liberais e
Conservadores, o domínio dos Liberais na Assembléia Provincial, e nas Câmaras Municipais,
dava o controle político do Rio Grande do Sul aos Liberais, sobretudo a partir de 1878,
quando o Partido Liberal assumiu o Gabinete Ministerial 4.
Esse partido político representava os interesses dos proprietários de terra, gado e
charqueadas no oeste e sul do estado. Esses grupos eram contrários ao centralismo
monárquico e o unitarismo, posições que eram identificados com a predominância daqueles
que detinham o poder durante o Império, os cafeicultores do Vale da Paraíba do Sul. Dessa
forma, os Liberais defendiam o federalismo e a descentralização5. Porém, a partir do
momento em que os Liberais assumiram a chefia do Gabinete Ministerial em 1878, Gaspar
Silveira Martins passou a buscar aliança política com os novos segmentos sociais que estavam
surgindo no cenário político rio-grandense, notadamente os colonos alemães e os
comerciantes litorâneos.
Para tentar conseguir o apoio desses grupos Silveira Martins passou a atuar
politicamente junto ao governo central na defesa de três questões econômicas que
favoreceriam a Província: transportes, impostos e créditos. Na área dos transportes, algumas
estradas de ferro foram construídas; Em relação aos impostos, foi conseguida uma
flexibilidade nas taxas de importação e exportação; Sobre a obtenção de crédito, foram
obtidos empréstimos para os charqueadores e estancieiros. O objetivo era “favorecer a
produção e a exportação gaúchas, notadamente a dos produtos pecuários, e preservar os
interesses do comércio litorâneo face à presença do contrabando” 6.
3 Para biografia de Silveira Martins, ver: ORICO, Osvaldo. Silveira Martins e sua época. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1935. 4 LOVE, Joseph. O regionalismo gaúcho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975. p. 42-43. Para uma análise da elite política da Província do Rio Grande do Sul e suas relações, sobretudo familiares, com as elites provinciais (âmbito local) e com a Corte, ver: VARGAS, Jonas Moreira. Entre e Paróquia e a Corte: uma análise da elite política do Rio Grande do Sul (1868-1889). Dissertação de Mestrado. IFCH/UFRGS, 2007. 5 PESAVENTO, Sandra Jatahy. A Revolução Federalista. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 44. 6 Idem. p. 47.
108
As medidas foram favoráveis aos produtores de charque das cidades de Bagé, Pelotas
e Rio Grande, que escoavam a produção com mais facilidade. Igualmente os comerciantes de
Porto Alegre e Rio Grande se beneficiaram da redução de impostos. O único grupo que não
saiu ganhando com as medidas foram os contrabandistas da fronteira oeste, mas também não
chegaram a ser prejudicados, uma vez que o contrabando não chegou a ser interrompido7.
O objetivo de Silveira Martins, de acordo com Sandra Jatahy Pesavento, era de
ampliar ainda mais a sua massa eleitoral de manobra. Para atingir o seu objetivo, passou a
atuar em consonância com o governo central. Isso explicaria porque o Partido Liberal passou
de crítico da ordem para um defensor das instituições do Império, e porque os Liberais se
tornaram hegemônicos na Província.
No entanto, ainda que o Partido Liberal tenha se tornado um partido comprometido
com o governo imperial, os problemas estruturais da Província permaneceram sem resolução.
“Permanecia a dificuldade da pecuária gaúcha em renovar o seu processo produtivo, à
semelhança do platino, para o que se faziam necessários avultados capitais e amplo crédito” 8.
Da mesma forma, a rede ferroviária continuou insuficiente, a arrecadação de impostos
diminuiu em função da flexibilidade concedida, e o contrabando permaneceu uma realidade
na área de fronteira.
Nesse contexto, a idéia de República reapareceu no Rio Grande do Sul como
alternativa política aos partidos monárquicos9. O grupo que defendeu a solução republicana
era composto por profissionais liberais recém formados nas academias de Direito de São
Paulo e Recife, e eram fortemente influenciados pela doutrina positivista 10. Na sua maioria
eram membros de famílias do Norte da Província, uma região ocupada mais tardiamente e
menos rica que a região da Campanha. De acordo com Celi Regina Pinto, mesmo que alguns
7 Idem. p. 48. 8 Idem. p. 49-50. 9 Pode-se considerar o republicanismo no Rio Grande do Sul como anterior ao Manifesto Republicano de 1870 no Rio de Janeiro. De acordo com Helga Piccolo, as idéias de República já estavam presentes na Revolução Farroupilha (1835-1845). Porém, o republicanismo só ganhou expressão a partir da implantação dos clubes republicanos no final de década de 1870 e início de 1880. Ver: PICCOLO, Helga I. L. Vida política no século XIX. 2 ed. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1992. De acordo com Maria Medianeira Padoin, esse pensamento republicano farroupilha estava associado com os ideais de uma parcela majoritária dos revoltosos que defendiam a constituição de um Estado autônomo frente ao Império, mas que aceitaria a união com o mesmo através de uma Confederação de Estados, desde que essa Confederação fosse republicana. Esse posicionamento divergia de outra parcela dos revoltosos que defendiam uma composição administrativa da Província com o Império, mantendo a Monarquia em um modelo federalista, em contraposição ao centralismo administrativo defendido pelo Estado Imperial. Ver: PADOIN, Maria Medianeira. Federalismo Gaúcho: Fronteira platina, Direito e Revolução. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001. 10 LOVE, 1975. op. cit. p. 29-31.
109
desses jovens fossem estancieiros na região Norte, não eram membros da oligarquia política
rio-grandense11.
Os clubes republicanos já haviam se espalhado pela Província desde o Manifesto
Republicano de 1870, mas foi somente em 23 de Fevereiro de 1882, que aconteceu a Primeira
Convenção Republicana em Porto Alegre. Nessa Convenção foi fundado o Partido
Republicano Rio-grandense e foi estipulado que a propaganda seria o método adotado para o
convencimento da superioridade da República em relação ao Império, se afastando, portanto,
da via revolucionária. Nessa Convenção definiu-se o lema do partido, “ordem e progresso” 12.
O Segundo Congresso Republicano, em 21 de Março de 1883, ficou marcado pela
criação da A Federação, a folha oficial do PRR. Em um primeiro momento o redator foi
Venâncio Aires, mas em função de problemas de saúde, coube a Júlio de Castilhos a
responsabilidade de redigir o jornal13. Progressivamente, o periódico e o partido ficaram
subordinados à chefia de Júlio de Castilhos14.
No Terceiro Congresso Republicano em 10 de Maio de 1884, as bandeiras defendidas
pelo PRR passaram a ser a República Federativa como forma de governo, a defesa da
abolição, e outras que foram explicitadas nas “bases para o programa dos candidatos
republicanos”, que foi redigida, igualmente, por Júlio de Castilho 15. Nos anos seguintes até a
Proclamação da República em 1889, o PRR disputou as eleições imperiais, porém não fez
votos suficientes para eleger nenhum candidato. Contudo, a disciplina e a coesão partidária
reuniam novos adeptos, sobretudo entre diversos militares que compartilhavam a ideologia
positivista16.
A verdadeira mudança no posicionamento do PRR se deu na reunião convocada por
Júlio de Castilhos na Fazenda Reserva, de sua propriedade, em 21 de Março de 1889. Nessa
reunião, os participantes juraram fazer tudo o que estivesse ao seu alcance, até mesmo se
utilizar da via revolucionária, para evitar um Terceiro Reinado. Também, ficou resolvido que
Júlio de Castilhos seria o chefe, ao menos provisório, do PRR. Entre os presentes na reunião
11 PINTO, Celi Regina. Positivismo: um projeto político alternativo (RS:1889-1930). Porto Alegre: L&PM, 1986. p. 10. 12 OSÓRIO, Joaquim Luis. Partidos Políticos no Rio Grande do Sul: Período Republicano. Pelotas: Officinas Graphicas da Livraria do Globo, 1930. p. 17-18. 13 Idem. p. 18-19. 14 Para biografia de Júlio de Castilhos, ver: FRANCO, Sérgio da Costa. Júlio de Castilhos e sua época. Porto Alegre: Editora Globo, 1967. 15 OSÓRIO, 1930. op. cit. p. 19-22. 16 Cabe também lembrar o apoio que o PRR e A Federação deram para os militares envolvidos na “Questão Militar”. Ver: LOVE, 1975. op. cit. p. 33-35; SCHULZ, 1994. op. cit. p. 95-112.; CASTRO, 1995. op. cit. p. 85-103.
110
estavam Assis Brasil, Pinheiro Machado, Ernersto Alves, Fernando Abbott, Ramiro Barcellos
e Demétrio Ribeiro17.
Em Julho de 1889, Gaspar da Silveira Martins foi nomeado Presidente da Província do
Rio Grande do Sul. Entretanto, no início de Novembro de 1889, ele entregou o cargo ao Vice-
Governador, Justo de Azambuja Rangel, e embarcou para o Rio de Janeiro chamado pelo
Imperador para organizar um novo Ministério, por mais que dissesse que só iria reassumir a
sua cadeira de Senador 18. No transcorrer da sua viagem à Capital ocorreu o Golpe de 15 de
Novembro.
De acordo com Joseph Love, se houve a sugestão do Imperador de chamar Silveira
Martins para organizar um novo Ministério, “dada a inimizade entre Deodoro e Silveira
Martins, a sugestão, se adotada, teria provavelmente fortalecido a resolução de Deodoro em
derrubar o Império e o governo em exercício” 19. A consequência foi que Silveira Martins foi
interceptado quando ainda estava em Santa Catarina, e seguiu preso para a Capital Federal,
onde permaneceu até ser exilado na Europa de onde só retornaria em 1892.
O governo do Rio Grande do Sul após o 15 de Novembro ficou a cargo do marechal
José Antônio Corrêa da Câmara, o Visconde de Pelotas. Herói da Guerra da Tríplice Aliança
contra o Paraguai, esse militar ligado ao Partido Liberal foi indicado ao Marechal Deodoro
pelo próprio Júlio de Castilhos, que assumiu como Secretário do estado. Deodoro e Castilhos
eram amigos, e ao indicar o Visconde de Pelotas para o governo, Júlio de Castilhos buscou
explorar a incompatibilidade existente entre Pelotas e Silveira Martins20.
Ou seja, sabendo do alcance político do Partido Liberal no estado, a nomeação visou
atrair para área de influência do PRR uma significativa parcela dos Liberais. Ao assumir o
cargo de Secretário, Júlio de Castilhos conquistou o poder de nomear e demitir os
funcionários públicos em nível estadual e municipal. Consequentemente, Castilhos usufruiu
desse direito e destituiu inúmeros funcionários liberais, substituiu comandantes da Guarda
Nacional, e nomeou pessoas de sua confiança para cargos-chave da administração21.
Progressivamente, iniciou-se uma fase de radicalização política liderada por Júlio de
Castilhos. A sua formação extremamente inspirada pelo positivismo, teoria que defendia uma
ditadura republicana, não dava margens para que houvesse espaço político para os antigos
17 LOVE, 1975. op. cit. p. 40; OSÓRIO, 1930. op. cit. p. 24. 18 MORÍTZ, Gustavo. Acontecimentos politicos do Rio Gande do Sul (1889-1891). Porto Alegre: Tipografia Thurmann, 1939. p. 10. 19 LOVE, 1975. op. cit. p. 42. 20 CARONE, 1983. op. cit. p. 38. 21 LOVE, 1975. op. cit. p. 43.
111
membros do Partido Liberal. No jornal A Federação, Castilhos escrevia que “Neste instante
supremo, só há lugar para um partido – partido da consolidação da República” 22.
Apenas três meses depois do início do governo estadual do Visconde de Pelotas as
incompatibilidades entre o governador, que tentava uma conciliação de interesses entre os
republicanos e ex-monarquistas, e Júlio de Castilhos, que defendia a radicalização e
perseguição política dos vencidos, gerou o pedido de demissão do primeiro.
Após essa renúncia, Deodoro ofereceu a Júlio de Castilhos o cargo de Governador do
Rio Grande do Sul. Porém, esse recusou e agradeceu o convite, e indicou que fosse nomeado
ao governo do estado o General Júlio Falcão Frota. Porém, esse general também permaneceu
pouco tempo em seu posto. Depois de se indispor com Júlio de Castilhos em função de uma
indicação a um posto federal, o General Frota pediu demissão23.
O General Frota foi substituído pelo General Cândido Costa. Contudo, enquanto esse
militar não chegava ao Rio de Janeiro, assumiu interinamente o governo o Dr. Francisco da
Silva Tavares. Tavares era um ex-Conservador que recentemente havia se declarado
republicano. Logo que assumiu o governo, enfrentou um forte protesto organizado pelo PRR
com a participação decisiva dos estudantes da Escola Militar de Porto Alegre24. Em função
desse protesto, no dia 13 de Maio, aniversário da Abolição, Tavares foi forçado a renunciar
por não ter meios de suprimir o protesto. O General Carlos Bittencourt assumiu interinamente
até que o General Cândido José da Costa assumisse o governo em 24 de Maio de 1890.
No dia 8 de Junho de 1890, em Porto Alegre, foi criada a União Nacional. Essa
coligação, composta por membros dos dois antigos partidos monárquicos e republicanos
dissidentes, defendia a República parlamentar. A presidência dessa coligação ficou a cargo do
Visconde de Pelotas e, a princípio, mantinha uma “expectativa simpática” em relação ao
governo do General Cândido Costa 25. Porém, em 21 de Junho, quando esse nomeou 1º e 2º
Vice-Governador, respectivamente, Júlio de Castilhos e Antão de Faria, a União Nacional
22 Idem. p. 44. 23 O Ministro da Fazenda, Rui Barbosa, havia decido criar o Banco Emissor do Sul no Rio Grande do Sul. Essa instituição financeira tinha ligações com o Visconde de Cruz Alta, e o Comendador Frederico Duval, ambos personagens com ligações com a Monarquia decaída. Esse fato, somado a choque de interesses com os acionistas do Banco da Província do Rio Grande do Sul, fez com que o PRR, a partir do jornal A Federação, iniciasse uma campanha contrária a criação desse Banco. Ao mesmo tempo, os antigos grupos políticos do Império faziam campanha a favor do Banco a partir das páginas do jornal Mercantil. Ao ser efetivada a criação do Banco Emissor do Sul, em 1º de Maio de 1890, o general Frota e seus auxiliares pediram demissão. Ver: FRANCO, Sério da Costa. A Guerra Civil de 1893. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1993. p.10-11. 24 O manifesto de Silva Tavares por ocasião da sua renúncia foi publicado na data de 16 de Maio de 1890, e pode ser encontrado na integra em: MORÍTZ, 1939. op. cit. p. 113-127. 25 OSÓRIO, 1930. op. cit. p. 62-67.
112
rompeu com o governo, uma vez que o PRR passou a compor a administração 26. Assim, com
a participação de Júlio de Castilhos no governo, as perseguições aos ex-monarquistas
voltaram a ocorrer no estado.
A partir de 10 Julho de 1890 o jornal A Federação passou a defender a candidatura do
Marechal Deodoro para Presidente constitucional, já que Deodoro ainda era o chefe do
Governo Provisório da República. Essa resolução foi tomada sem consultar as “bases” do
PRR, em uma decisão pessoal de Júlio de Castilhos após encontros com o próprio Marechal.
Isso fez com que três antigos membros do PRR passassem para a oposição: Barros Cassal,
Demétrio Ribeiro e Antão de Faria. Esse último, como ocupava o posto de 2º Vice-
Governador, ao abandonar o partido, foi substituído por Fernando Abbott 27.
Em 15 de Setembro de 1890 houve as eleições para a Assembléia Constituinte. No Rio
Grande do Sul, a União Nacional absteve-se do pleito, sedimentando a vitória do PRR que
controlou as mesas de votação. A bancada gaúcha na Constituinte era chefiada por Júlio de
Castilhos, e fez de tudo para que Deodoro da Fonseca fosse eleito28.
Depois da Promulgação da Constituição Federal de 24 de Fevereiro de 1891, Júlio de
Castilhos retornou ao Rio Grande do Sul no final de Março para preparar a Assembléia
Constituinte Estadual. No dia 16 de Março, o General Cândido Costa demitiu-se do governo
do estado, deixando o cargo de Governador a disposição de Júlio de Castilhos, que era o 1º
Vice-Governador. Dessa forma, o caminho ficou aberto para que Castilhos coordenasse as
eleições estaduais. Entretanto, ele renunciou ao cargo, deixando o governo nas mãos do 2º
Vice-Governador, o correligionário Fernando Abbott 29.
Nesse contexto, em 23 de Abril, deu-se a fusão da União Nacional com os
republicanos dissidentes, formando um novo partido político, o Partido Republicano Federal.
A principal bandeira dessa nova agremiação, criada para disputar as eleições estaduais, era a
defesa da República presidencial federativa 30. No entanto, nas eleições do dia 5 de Maio de
1891, mesmo recebendo uma votação expressiva em todo o estado e tendo inclusive vencido
em alguns municípios, o recém criado PRF não elegeu nenhum membro para a Assembléia
Estadual. De acordo com Love, “esse monopólio do PRR sobre as 32 cadeiras do Legislativo
26 MORÍTZ, 1939. op. cit. p. 192. 27 LOVE, 1975. op. cit. p. 46 28 Idem. p. 47. 29 Idem. p. 48. 30 OSÓRIO, 1930. op. cit. p. 75.
113
constituía ao mesmo tempo um desvio radical em relação à representação bipartidária da
Assembléia Provincial do Império e uma demonstração prévia do estilo castilhista” 31.
A Assembléia Constituinte Estadual era responsável por avaliar o projeto de
Constituição que deveria ser elaborado por uma Comissão composta por Júlio de Castilhos,
Ramiro Barcellos e Assis Brasil. Contudo, Barcellos estava no Rio de Janeiro, e Assis Brasil,
que só foi consultado sobre o projeto escrito unicamente por Júlio de Castilhos na véspera da
entrega à Constituinte, divergia teoricamente da inspiração teórica da carta 32. O positivismo
era tão acentuado no projeto que Miguel Lemos, o chefe do Apostolado Positivista,
considerava essa Constituição como uma das mais avançadas no Ocidente 33. A Constituição
foi aprovada em 14 de Julho de 1891 e no dia seguinte, Júlio de Castilho assumiu como o
primeiro Governador constitucional do Rio Grande do Sul após uma votação unânime na
Câmara estadual.
De Julho a Novembro de 1891, a política no Rio Grande do Sul foi controlada por
Júlio de Castilhos. No dia 3 de Novembro, quando o Marechal Deodoro fechou o Congresso,
o Governador apoiou o Golpe de Estado nacional 34. Contudo, os políticos opositores ao PRR
em conjunto com oficiais militares estaduais, não aceitaram o posicionamento adotado por
Castilhos. No dia 11 de Novembro, um movimento liderado por Assis Brasil, Barros Cassal e
o General Manoel Luis da Rocha Osório, acompanhados de uma multidão, forçaram a
renúncia de Júlio de Castilhos 35.
Essa disputa dentre o PRR e os partidos da oposição, nos primeiros anos da República,
foi interpretada por Hélgio Trindade como um enfrentamento de dois projetos de governo.
Para o autor, tantos os “conservadores autoritários” quanto os “conservadores liberais”
estavam “assentados na estrutura de dominação tradicional, mas que possuem como elemento
permanente e característico o conflito entre dois modelos de organização do sistema político:
a república liberal versus a república autoritária” 36.
Loiva Felix propõe uma explicação um pouco diferente. Para ela, além da questão
política houve uma importante perda econômica que motivou a disputa. Os Liberais tinham
31 LOVE, 1975. op. cit. p. 48. 32 TRINDADE, Hélgio. “Aspectos políticos do sistema partidário republicano riograndense (1882-1937)”. IN: ANTONACC, Maria Antonieta; et all. (orgs.) RS: Economia e Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979. pgs. 119-191 p. 137-139. 33 DIDONET, Zilah C. O Positivismo e a Constituição Riograndense de 14 de Julho de 1891. Santa Maria: Imprensa Universitária, 1977. p. 67. 34 Em telegrama à Deodoro, Júlio de Castilho comunicou, no dia 4 de Novembro, que “ordem pública será plenamente mantida aqui”. Ver: MORÍTZ, 1939. op. cit. p. 234. 35 LOVE, 1975. op. cit. p. 52.; MORÍTZ, 1939. op. cit. p. 261. 36 TRINDADE, 1979. op. cit. p. 119-191. citação p. 122.
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um “pacto” com o Império. Esse pacto consistia em assegurar as fronteiras do extremo sul do
Brasil em troca de vistas grossas ao contrabando, que o governo central só tolerava porque
não tinha os meios de extinguí-lo. Ou seja, os proprietários da fronteira oeste, região de
domínio do Partido Liberal, foram os mais afetados quando os republicanos do PRR
assumiram o governo e impuseram o fim das isenções alfandegárias, além de aumentar a
fiscalização ao contrabando 37.
Esse era o ambiente político no Rio Grande do Sul quando o Conde de Paço D’Arcos
enviou o primeiro telegrama que temos notícia citando a situação no estado. O telegrama
enviado para Portugal dizia que o “Rio Grande do Sul [estava] revoltado contra [a]
ditadura”38. Vejamos agora de que forma isso possibilitou uma interpretação original acerca
da Revolução Federalista.
3.1.2. A interpretação original
Quando o Conde de Paço D’Arcos enviou o telegrama para Portugal informando que o
Rio Grande do Sul estava revoltado contra a ditadura, ele deixou claro que a revolta sulina
estava associada à política nacional. Dessa forma, quando aconteceu o contra-golpe, em 23 de
Novembro, liderado por Custódio de Mello com a participação Floriano Peixoto, para esse
diplomata, a ordem havia sido restabelecida. Em telegrama no dia 23, Carlos Eugênio
comunicou ao governo de Portugal que o Marechal Floriano Peixoto havia convocado o
Congresso Nacional e que tudo estava tranquilo 39.
Nesse momento, no Rio Grande do Sul, havia assumido o governo desde o dia 12 de
Novembro uma junta governativa. O triunvirato era composto por Assis Brasil, Barros Cassal
e o General Manoel Luis da Rocha Osório 40. De acordo com Joseph Love, o sucesso da
revolta no Rio Grande do Sul inspirou os conspiradores de outras áreas do país, até o
momento em que Custódio de Mello levantou a Armada contra o governo Deodoro 41. Porém,
essa junta governativa teve um curto período de duração, e no dia 17 de Novembro, o General
Barreto Leite assumiu como Governador, sendo Barros Cassal o Vice-Governador.
37 FÉLIX, Loiva Otero. Coronelismo, borgismo e cooptação política. 2ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1996. p. 68. 38 SILVA, 1974. op. cit. p. 99. [despacho de 11.11.1891] 39 Idem. p. 105. [despacho de 23.11.1891] 40 MORÍTZ, 1939. op. cit. p. 292. 41 LOVE, 1975. op. cit. p. 52.
115
No dia 25 de Novembro, Carlos Eugênio enviou um longo relatório para Portugal
dando mais informações sobre o contra-golpe do dia 23. Nesse documento ele expôs que “a
revolução do Rio Grande a favor do Congresso diz-se acalmada com a queda da ditadura”42.
Essa é origem do que nós chamamos de interpretação original. Para esse diplomata, a revolta
no Rio Grande do Sul se fez em função da defesa do Congresso, ou seja, a defesa da
legitimidade das instituições e da ordem. Dessa forma, a ditadura de Deodoro representava a
desordem, assim como o governo estadual riograndense que a apoiou.
No dia 5 de Janeiro de 1892, Gaspar Silveira Martins chegou ao Rio de Janeiro após
seu exílio na Europa 43. No dia 7 de Janeiro, o Conde de Paço D’Arcos comentou que os
partidários da monarquia estavam esperançosos com o retorno de Silveira Martins, e “que se
ele levantar o pendão monárquico no Rio Grande do Sul, a Baía e alguns outros estados
pronunciar-se-ão logo a favor e a monarquia será restabelecida (...)” 44.
Com o retorno do líder dos Liberais, a situação política no Rio Grande do Sul ficou
mais instável. No dia 9 de Fevereiro o Conde de Paço D’Arcos enviou um documento para
Portugal dizendo que “nos ultimos três dias os telegramas chegados do Rio Grande do Sul dão
noticia de ter rebentado naquêle estado uma revolução, que expulsara a tiros, a bordo de um
pequeno vaso de guerra, o governador nomeado pelo Marechal Presidente” 45. O documento
prossegue dizendo que há poucas notícias a respeito dessa revolução, e que o Cônsul de
Portugal no Rio Grande do Sul, Vicente Nunes Tavares, permaneceu sem enviar explicações
mais detalhadas sobre o episódio 46.
A revolução mencionada acima se refere à tentativa frustrada dos republicanos
castilhistas de recuperar o controle do estado. De acordo com Sérgio da Costa Franco, ao
suspeitar que houvesse uma conspiração que tramava uma revolta naquela manhã de 4 de
Fevereiro “o Governo do Gen. Barreto Leite adotou uma série de medias preventivas,
começando por refugiar-se a bordo da canhoneira ‘Marajó’, atracada no porto, na certeza de
contar com o apoio das unidades do Exército” 47. Dentre as medidas adotas pelo governo para
reprimir a revolta destacam-se duas. A primeira foi o aquartelamento da Guarda Cívica dentro
da Escola Militar, que era fiel ao governo estadual. A segunda foi a mobilização da polícia,
chefiada por Barros Cassal, para retomar o prédio da Repartição de Terras Públicas, que foi
42 SILVA, 1974. op. cit. p. 109. [despacho de 25.11.1891] 43 OSÓRIO, 1930. op. cit. p. 90. 44 SILVA, 1974. op. cit. p. 124. [despacho de 07.01.1892] 45 Idem. p. 132. [despacho de 09.02.1892] 46 O nome completo do Cônsul de Portugal foi encontrado no AHRGS, seção de consulados, maço CN 21, caixa 11. documento expedio em 28 de Novembro de 1891. 47 FRANCO, 1967. op. cit. p. 128.
116
ocupado pelos castilhistas, e também impedir a tentativa de tomada do Telégrafo Nacional na
madrugada do dia 5 de Fevereiro.
De acordo com Joseph Love, os únicos resultados desse “(...) levante abortivo a 4 de
Fevereiro foram diversas mortes em todo o Estado, muitas das quais de membros do PRR” 48.
Essas mortes estão associadas às perseguições políticas ocorridas durante o período que ficou
conhecido como governicho 49. A oposição havia sido vítima, desde a Proclamação da
República, das arbitrariedades cometidas pelos castilhistas. Dessa forma, ao alcançar o
governo do estado em 12 de Novembro de 1891, passou a perseguir os castilhistas de forma
revanchista, acirrando os ânimos políticos desses grupos.
No dia 21 de Fevereiro de 1892 Gaspar Silveira Martins retornou à Porto Alegre.
Desde o retorno do líder dos Liberais ao estado, o governo de coalizão do PRF se dissipou. Os
antigos membros do partido republicano histórico que compunham o PRF (dissidentes) se
negavam a se submeter ao mando de Silveira Martins 50. A figura do Conselheiro era
associada à antiga ordem imperial a despeito de suas declarações afirmando o contrário.
Nesse sentido, no dia 3 de Março, o Conde de Paço D’Arcos enviou outro relatório para
Portugal comentando que Silveira Martins havia feito declarações dizendo lutar pelo
parlamentarismo, porém, os monarquistas ainda nutriam esperança de que na realidade a
mudança seria de instituições, e não de reforma constitucional 51.
A situação política no estado se tornaria ainda mais complexa com a criação de um
novo partido. No dia 31 de Março, na cidade de Bagé, ocorreu um encontro presidido pelo
General João Nunes da Silva Tavares, o “Joca Tavares”, irmão do Dr. Francisco da Silva
Tavares, que havia assumido o governo do estado interinamente em Maio de 1890 52. Nesse
encontro foi fundado o Partido Federalista, e o Conselheiro Gaspar Silveira Martins foi
aclamado chefe político dessa nova agremiação. A principal bandeira do novo partido era a
defesa do parlamentarismo 53.
48 LOVE, 1975. op. cit. p. 54. 49 Após ser destituído do cargo de Governador do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos se dedicou inteiramente ao jornal A Federação. Nesse período, ele tachou o governo estadual e sua imobilidade administrativa pejorativamente de governicho. Esse termo acabou sendo usado pela historiografia do período para se referenciar ao momento político estadual compreendido entre a queda de Júlio de Castilhos, em 12 de Novembro de 1891, e o seu retorno ao poder em 17 de Julho de 1892. 50 Idem. p. 53. 51 SILVA, 1974. op. cit. p. 135. [despacho de 03.03.1892] 52 Para ver a participação desses dois irmãos na Revolução Federalista, ver: AXT, Günter; CABEDA, Coralio Bragança Pardo; SEELIG, Ricardo Vaz (orgs.). Diários da Revolução de 1893. Porto Alegre: Procuradoria Geral de Justiça, Projeto Memória, 2004. [Tomo I – Francisco da Silva Tavares; Tomo II – General Joca Tavares.] 53 OSÓRIO, 1930. op. cit. p. 89.
117
Joseph Love destacou que, se por um lado o PF perdia muito adeptos em função da
proeminência do seu chefe, por outro, ganhava mais “coesão e unidade de propósito” no
combate aos castilhistas 54. De acordo com Hélgio Trindade, o “conservadorismo-liberal”
tentou se organizar em um primeiro momento a partir da União Nacional, depois com o
Partido Republicano Federal, porém, “somente encontrará condições de viabilidade, para a
formação de um partido próprio, após o retorno de seu líder, com a formação do Partido
Federalista” 55.
A partir de do mês de Abril de 1892, o governo do Presidente Floriano Peixoto se
encontrava em um momento delicado em relação à política riograndense. Da mesma forma
que ocorriam disputas pelo poder no Rio Grande do Sul, outros estados da federação
apresentavam situações semelhantes. Para o governo central pacificar e sedimentar a
República, era necessário extinguir os focos de instabilidade nos estados. Nesse sentido,
estabelecer a ordem no Rio Grande do Sul era primordial.
Os dois grupos políticos que se apresentavam fortes e capazes para assumir o controle
do estado eram o PRR e o PF. De um lado estava Júlio de Castilhos, um republicano histórico
que havia apoiado a ditadura de Deodoro. De outro Gaspar Silveira Martins, líder político do
antigo Partido Liberal que se opunha ao presidencialismo da Constituição vigente e ainda era
identificado como monarquista. A única solução para pacificar o estado, aos olhos do General
Bernardo Vasques, Comandante da Região Militar local, era permitir que o PRR reassumisse
o poder. Um “agente” teria sido enviado por Floriano para averiguar essa leitura política do
General Vasques. Ao retornar de sua “missão”, esse “agente” teria confirmado que o retorno
do PRR ao poder poderia pacificar o estado. Ou seja, o governo de Floriano não só estava
ciente do futuro golpe de Júlio de Castilhos como concordou com ele 56.
O apoio do governo central foi decisivo para que o golpe de 17 de Junho de 1892 fosse
vitorioso. As tropas controladas pelo General Vasques permaneceram passivas à investida
castilhista que contava com o apoio da Brigada Militar. Naquele momento, o Governador em
exercício era, novamente, o Visconde de Pelotas. Quando esse percebeu que não tinha apoio
das forças armadas para resistir, transferiu o governo por telegrama para o Comandante da
guarnição de Bagé, o General Joca Tavares. Ao assumir o poder, Júlio de Castilhos se auto-
54 LOVE, 1975. op. cit. p. 54. 55 TRINDADE, 1979. op. cit. p. 140-141. 56 De acordo com Joseph Love, “Floriano sabia dos pontos essenciais do golpe proposto e, ao menos tacitamente, concordou com eles, no início de junho”. IN: LOVE, 1975. op .cit. p. 56-57.
118
proclamou o “governo legal de restauração”. Esse episódio deu margem para que houvesse
dois governos que se proclamavam detentores da legalidade no estado 57.
O Conde de Paço D’Arcos continuou fundamentado em sua interpretação original
sobre esses acontecimentos. Para o diplomata, a política riograndense era o contra-exemplo
daquilo que ele prezava. Isso ficou explícito em seu relatório do dia 22 de Junho de 1892, que
dizia que “o ex-governador deodorista Castilhos, ajudado pelas massas populares, expulsa do
governo o general Visconde de Pelotas, eleito pelos parciais da situação Floriano (...)”. Ou
seja, para Carlos Eugênio, o retorno de Júlio de Castilhos representava a desordem, uma vez
que ele havia apoiado o golpe de Deodoro que fechou o Congresso. Do ponto de vista da
defesa da hierarquia militar, o relatório diz que a revolução continuava apesar de os jornais
favoráveis a Floriano defenderem “(...) que tudo aquilo nada importa porque as tropas se
conservaram fieis! Mas a ser assim, como é que o general Pelotas, que passa por bravo
militar, resignou o poder sem combate?” 58
No dia 20 de Julho de 1892, em relatório enviado ao Ministro dos Negócios
Estrangeiros de Portugal, Ferreira do Amaral 59, Carlos Eugênio escreveu que houve uma
“ensanguentada revolução” no Estado do Rio Grande do Sul. Os detalhes dessa revolta eram
confusos até mesmo para ele que estava no Brasil, portanto, prevendo a dificuldade de seu
Ministro em compreender o desenrolar dos acontecimentos, esse diplomata produziu um
longo documento explicando a revolução. A sua explicação é nitidamente pautada pela sua
interpretação original. Vejamos de que forma ele resumiu esse episódio.
Depois da revolta de 23 de novembro, que ergueu ao poder a situação Floriano, - restauração da legalidade- como se apregoava aos quatro ventos, governavam o Rio-Grande indivíduos desta situação, tendo sido derrubado naquele Estado o governo de Julio de Castilhos, que era o partidário de Deodoro e apoiara a ditadura do marechal primeiro presidente da Republica. Foi Rio Grande dos últimos Estados que se ligaram à restauração da legalidade, (grifo no original). e celebrou-se tal acontecimento como uma vitória que pacificava o Brazil, como se disse. Ultimamente governava o Estado, em nome ou por conselho do governo federal, o general Visconde de Pelotas, quando de súbito um grupo insignificante de populares, estudantes e alguns policiais, proclamaram em Porto Alegre a restauração de Julio de Castilhos, hastearam a bandeira da revolta, que em breve se estende por todo o Estado, e o Visconde de Pelotas, apezar dos seus louros de valente militar, deixa o cargo sem resistência, entrega-o, por telegramas, ao general Silva Tavares, que estava em Bagé, e no entretanto Julio de Castilhos, proclamado novamente governador sem oposição, nomeia vice-governador Vitorino Monteiro, a quem confia as rédeas do governo.
57 Idem. p. 57. 58 SILVA, 1974. op. cit. p. 161. [despacho de 22.06.1892] (grifos nosso) 59 Ferreira do Amaral ocupou pela primeira vez o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal entre 06.07.1892 até 28.07.1892. Na segunda oportunidade foi entre 09.11.1892 e 18.11.1892. A terceira foi entre 23.12.1892 e 22.02.1893.
119
Parte da grossa esquadrilha dos navios federais, liga-se aos revoltosos, e outra parte conserva-se fiel a Silva Tavares, que era até então o representante do governo federal; o mesmo fez o exercito. No entretanto, sem que nada o fizesse supor (pelo menos a quem está fora de todas estas intrigas políticas), o marechal Floriano reconhece e apóia os revoltosos de Castilhos e Vitorino Monteiro, que passam a chamar-se restauradores da legalidade (grifos no original), e os que até ali estava com o governo federal transformaram-se por esse fato em revoltados, a quem se atira como cães danados! Dão-se combates, crescem a desordem, e por fim, vencido, Silva Tavares foge para o estrangeiro e proclama-se a legalidade com o apoio do governo federal 60.
Essa interpretação original do Conde de Paço D’Arcos em relação à política no estado
do Rio Grande do Sul permaneceu inalterada durante o período de sua Missão Diplomática.
Dessa forma, por mais que tenham existido dificuldades de compreender a política
riograndense, esse diplomata teve tempo para reelaborar suas impressões. Porém, o
condicionamento de sua formação militar e política conservadora fizeram com que a sua visão
permanecesse a mesma.
No dia 3 de Agosto de 1892, por exemplo, em relatório enviado ao Ministro dos
Negócios Estrangeiros Ayres de Gouveia61, Carlos Eugênio prosseguiu com os seus
comentários acerca da política rio-grandense. Nesse momento, ele já havia identificado a
ajuda que o General Vasques havia dado a Júlio de Castilhos, pois essa revolução só tinha
sido vitoriosa em função do “apoio que lhe deu o general Bernardo Vasques, comandante das
forças militares federais, o qual fingindo completa isenção nas lutas internas do Estado,
auxiliava Castilhos, moral e materialmente (...)” 62. Essa ajuda concedida aos republicanos
castilhistas explicaria “(...) como o Marechal Pelotas resignou tão facilmente o Governo do
Estado, e como de um dia para o outro o velho General Silva Tavares se viu mudado de
governador substituto em comandante de revoltosos (...)” 63.
No mesmo documento havia críticas a um julgamento militar decorrente da volta de
Júlio de Castilhos para o governo do estado. Esse foi o caso do comandante do navio Marajó,
que permaneceu fiel ao governo estadual deposto pelos castilhistas e, obedecendo às ordens
de Barros Cassal, bombardeou a cidade de Porto Alegre 64. A perplexidade de Carlos Eugênio
residia em que o comandante da Marajó já se encontrava preso no Rio de Janeiro “(...) como
revoltoso, acusado de traição e desobediência à legalidade (grifo no original)” 65.
60 Idem. p. 161-162. [despacho de 22.06.1892] (grifos nosso) 61 O Ministro Ayres de Gouveia (Bispo de Bethsaida) esteve à frente do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal entre: 27.05.1892 até 06.07.1892. Depois entre 23.07.1892 até 09.11.1892. E novamente entre 18.11.1892 até 23.12.1892. 62 Idem. p. 166. [despacho de 03.08.1892] 63 Idem. p. 166-167. [despacho de 03.08.1892] 64 LOVE, 1975. op. cit. p. 57; 65 SILVA, 1974. op. cit. p. 167. [despacho de 03.08.1892]
120
Todo esse ambiente de instabilidade gerado, sobretudo, a partir das ocorrências no Rio
Grande do Sul, gerava previsões políticas para o futuro do Brasil. O Conde de Paço D’Arcos
transmitia suas impressões políticas e solicitava “reservas” para o Ministro de Portugal, ainda
em 3 de Agosto de 1892.
Tudo isto se apresenta pois como um meio adoptado para destruir o partido de Silveira Martins, e aniquilar a influência que este tinha até agora na sua terra natal. Veremos mais tarde o que este faz no Congresso, e se o Marechal Floriano ganhou com esta nova campanha de que o dizem autor; quando já – ainda que muito escondidamente – se fala em tramas ocultos do Ministro Custódio de Mello, o qual auxiliado pelo outro ministro Serzedello Correia, conspira para se fazer ditador derrubando Floriano, valendo-se desde por emquanto para o obrigar a desbravar-lhe o caminho livrando-o de adversários influentes. Compreende V. Ex.ª que relato estes boatos com todas as reservas, ainda que deles me tenham falado alguns dos meus colegas, entre outros o Ministro de Inglaterra.
Mesmo tendo passado alguns meses do retorno de Júlio de Castilhos ao governo do
estado, em 17 de Junho de 1892, a interpretação original desse diplomata permaneceu
inalterada. Em 6 de Setembro, ele alertou o governo português para um plano de conspiração
que havia sido descoberta no estado. Após prisões de partidários de Silveira Martins, foram
apreendidas cartas que explicitavam que o General Silva Tavares, em conjuntos com seus
partidários estimados em 15 mil homens armados, planejavam a invasão do estado a partir do
Uruguai. O documento prossegue com uma breve explicação político-conceitual dos partidos
envolvidos.
Visto que falei em federalistas ou gasparistas, denominações com que indiferentemente são tratados os partidários de Silveira Martins pela imprensa do actual governo do Rio Grande (partido de Júlio de Castilhos) devo lembrar ainda mais uma vez que a gente hoje proscrita do Rio Grande é a que estava com o governo Floriano depois de 23 de novembro, e que aqueles que os depozeram e obrigaram a fugir (partidários de Castilhos), que parece terem sido apoiados por Floriano, são os homens da ditadura Deodoro. Portanto a denominação com que estes tratam os contrários, que agora perseguidos pensam mais, ao que se afigura, em independência e separação do que em federação, é um verdadeiro eufemismo 66.
Ainda no mês de Novembro de 1892, as notícias das violências que eram perpetradas
no Rio Grande do Sul fizeram com que o Conde de Paço D’Arcos arriscasse, inclusive,
interpretações sociológicas da composição histórica do estado. Ao falar dos assassinatos
cometidos de algumas personalidades importantes, Carlos Eugênio emitia suas impressões,
dizendo que “(...) os gasparistas ou federalistas não deixam a primazia da barbaridade aos
castilhistas, nem estes àqueles. Tão bárbaros uns como outros”. Essa violência teria origem
nos “(...) descendentes dos portugueses massacradores do Oriente, e ainda misturados com os
hespanhois desoladores da America. É o caracter de fera energia peninsular, dobrada com os
66 Idem. p. 178. [despacho de 06.11.1892]
121
ódios partidários da ocasião”. Em sua opinião, “mouros e ibéricos não se batiam com mais
raiva e maior violência” 67.
As notícias dessas atrocidades prosseguiram no ano seguinte ampliando a sensação de
desordem social. No relatório de 1 de Janeiro de 1893, Carlos Eugênio comentou que “os
combates de guerrilhas, os ataques às casas particulares, os assassinatos e os fusilamentos sem
julgamento, são todos os dias relatados nos jornais (...)”. E da mesma maneira que as
violências eram cotidianas, a invasão dos federalistas a partir do Uruguai era igualmente
alertada diariamente, porém, “a invasão prometida ainda se não efectuou, apesar de todos os
dias anunciada; parece que os chefes federalistas esperam acção conjunta em outros
Estados”68.
Para o Conde de Paço D’Arcos, militar de formação e monarquista conservador, a
instabilidade estava relacionada com a forma de governo. A experiência de paz social que o
segundo reinado trouxera para a sociedade brasileira havia sido abandonada com a
instauração da República. Dessa forma, “(...) o cunho especial desta guerra interna dos rio-
grandenses é a imitação dos costumes das republicas hespanholas, na barbaridade” 69.
Em relatório de 1 de Março de 1893, a tão anunciada invasão dos federalistas foi
comunicada para Portugal70. Porém, o que chama atenção, é que a invasão se deu em 2 de
Fevereiro 71, e só um mês depois que o Conde de Paço D’Arcos comunicou esse
acontecimento72. A explicação para esse “atraso” pode ser encontrada na própria
documentação do Conde de Paço D’Arcos em 8 de Abril de 1893. Nesse relatório, são
fornecidas algumas pistas sobre como circulavam as informações durante a Revolução
Federalista.
(...) os poucos telegramas, que aqui aparecem vindos de Buenos-Aires ou Montevidéu, e em que tôda a gente acredita apesar dos desmentidos, que quasi quotidianamente são dados pela folha oficial. Segundo o ‘Diário Oficial’ a campanha
67 Idem. p. 179-180. [despacho de 20.11.1892] 68 Idem. p. 182. [despacho de 01.01.1893] 69 Idem. p. 186. [despacho de 11.02.1893] 70 Idem. p. 189. [despacho de 01.03.1893] Sobre as relações entre os federalistas emigrados e políticos oposicionistas uruguaios, assim como a diplomacia marginal entre Uruguai e o governo do Rio Grande do Sul, ver: RECKZIEGEL, Ana Luiza Gobbi Setti. A diplomacia marginal: vinculações políticas entre o Rio Grande do Sul e Uruguai (1893-1904). Passo Fundo: UPF, 1999. 71 LOVE, 1975. op. cit. p. 66. A invasão dos federalistas a partir do Uruguai, em 2 de Fevereiro de 1893, costuma ser o evento utilizado pela historiografia para sinalizar o início da Revolução Federalista. Contudo, Sérgio da Costa Franco, prefere utilizar como baliza a retomada do poder por Júlio de Castilhos em 17 de Junho de 1892. (Ver: FRANCO, 1993. op. cit.) Em nosso ponto de vista, a partir da documentação produzida pelo Conde de Paço D’Arcos, a periodização proposta por Sérgio da Costa Franco faz sentido por ser o retorno de Júlio de Castilhos um marco para radicalização política e perseguições pessoais. 72 A única ressalva a ser feita, é que a invasão pode ter sido comunicada anteriormente por telegrama ou relatório, porém, não há, entre os documentos transcritos, nenhuma evidência nesse sentido.
122
estaria já finda e o Estado em paz, o que é evidentemente falso, e pelo exagero faz descrer de tudo que no mesmo Diário aparece sobre a luta no Rio Grande73.
No mês seguinte, em 6 de Maio, Carlos Eugênio prosseguiu tanto com a sua
interpretação original do conflito, quanto em suas críticas às poucas e não confiáveis notícias
recebidas sobre a marcha política no estado. Sobre as verdadeiras razões que moveriam a
revolta no Rio Grande do Sul, destacou que, “(...) a guerra é entre dois homens e seus
sequazes (...) Por enquanto não é senão questão de homens facciosos! Tira-te tu para eu
subir!”. Em relação às notícias que chegavam à Capital, esse diplomata denunciou que “(...)
telegramas e cartas são abafados pelo governo federal (...)” 74.
A dificuldade em receber informações confiáveis sobre o desenrolar da Guerra Civil
entre castilhistas e gasparistas, fez com que esse diplomata tivesse dificuldades em levantar
hipóteses sobre o futuro dessa contenda. De acordo com ele,
A minha convicção, como já disse, é que desta conflagração do Rio Grande, pode sair tudo, em resultado final conforme as circunstâncias de ocasião o promovam! Ou a separação daquele Estado e dos Estados convisinhos, da Federação Brasileira, formando outra república! Ou a federação com as repúblicas independentes do Prata! Ou nova constituição dando o parlamentarismo à república do Brasil, em vez do presidencialismo que hoje há! Ou ainda – o que é muito mais duvidoso – a restauração monárquica, que é forçoso dizê-lo é avessa aos princípios e costumes americanos! Contudo os monárquicos são ainda numerosos no Brasil, tudo se pode supor; e eles continuam muito animados esperando pescar nas águas turvas deste descalabro governativo e político75.
A única certeza no mês de Junho era que as tropas federais, que estavam sendo
enviadas para o estado, eram compostas quase que exclusivamente por indivíduos
provenientes dos estados do norte do país e, em razão do “rigoroso inverno”, elas estavam
sendo “vitimadas pela intempérie do clima” 76. Para Carlos Eugênio, “a campanha do Rio
Grande do Sul parece sustada pela ação do inverno” 77.
Contudo, o mês de Julho reservou inúmeras novidades não só para o conflito
riograndense, mas para a política nacional. O Almirante Wandenkolk, um dos signatários do
Manifesto dos 13 Generais de Abril de 1892, desde Abril de 1893 havia se declarado contra o
governo de Floriano Peixoto e se declarado a favor dos federalistas. Em Julho, ajudado por
uma tripulação audaciosa a partir de Buenos Aires, ele se apossou de um navio mercante da
Companhia Frigorífica e ameaçou a cidade de Rio Grande, interrompendo o porto dessa
localidade. A ação havia sido combinada em conjunto com o General Gumercindo Saraiva, o 73 SILVA, 1974. op. cit. p. 195. [despacho de 08.04.1893] 74 Idem. p. 197-198. [despacho de 06.05.1893] 75 Idem. p. 204. [despacho de 06.05.1893] (grifos no original) 76 Idem. p. 214. [despacho de “junho” de 1893] 77 Idem. p. 216. [despacho de 17.06.1893]
123
qual demorou em chegar por terra. Logo em seguida, o Almirante saiu navegando com rumo
desconhecido, sendo esperado no Rio de Janeiro para revoltar a Armada. Entretanto, foi
aprisionado no porto de Canasvieiras, uma praia no norte da ilha de Desterro, em Santa
Catarina – que no futuro teria o seu nome mudada para Florianópolis, ou Cidade de Floriano –
e seguiu escoltado até o Rio de Janeiro, onde permaneceu preso78.
Ao chegar ao Rio de Janeiro, o Almirante e sua tripulação ficaram presos na Fortaleza
de Santa Cruz. Esse fato foi interpretado pela oficialidade da Marinha como uma afronta a
essa instituição, porque a fortaleza era jurisdição do Exército, e Wanderkolk era senador, só
podendo, portanto, ser preso com aprovação do Senado. A situação se agravaria ainda mais,
pois, mesmo que o Almirante tivesse recebido um habeas-corpus do Supremo Tribunal,
Floriano Peixoto se negou a soltá-lo, cumprindo a ordem só para os civis, mantendo preso os
militares.
Carlos Eugênio acompanhou tudo com extrema atenção, e no fim de Julho ele noticiou
à Portugal que,
a campanha no Rio Grande não acabou com a prisão de Wandenkolk. A barra do Rio Grande está livre, o porto desbloqueado; mas os generais federalistas, que não puderam chegar ao cerco da cidade a tempo de concorrer com o Almirante, internaram-se no Estado e continuam a guerra. Os telegramas de ontem anunciavam uma grande batalha em Jaguarão, onde o mais audaz e mais activo dos chefes gasparistas, os general e guerrilheiro Gumercindo Saraiva, desbaratàra as forças do governo alcançado sobre elas grande victoria. Ao mesmo tempo o velho e respeitado general Silva Tavares, o primeiro militar da revolução, avança com o grosso do exercito novamente sobre Pelotas onde se concentram as forças do governo79.
O fim da Revolução Federalista estava longe e tudo indicava que a situação política
nacional poderia piorar.
78 CARONE, 1983. op. cit. p. 112-116. 79 SILVA, 1974. op. cit. p. 242. [despacho de 29.07.1893]
124
3.2 A Revolta da Armada
A documentação produzida pelo Conde de Paço D’Arcos é uma excelente fonte sobre
a Revolta da Armada de 6 de Setembro de 1893, ocorrida na cidade do Rio de Janeiro. Esse
diplomata acompanhou de perto a primeira fase da insurgência naval contra o governo de
Floriano Peixoto, e na condição de Ministro Plenipotenciário de Portugal, ele teve a
oportunidade de circular entre os grupos dirigentes do Estado brasileiro80. Esses dois fatores
conjugados (observador/diplomata) tornaram sua documentação valiosa para estudos
posteriores.
Contudo, é preciso ser cauteloso na utilização desse acervo. Antes de tomarmos suas
previsões, julgamentos e relatos como expressão de “sinceridade e franqueza” 81, é prudente
realizarmos a crítica da fonte e não deixarmos que a grande quantidade de informações e
pequenos episódios, assumam preponderância sobre o exame documental. A partir desse
exercício de pensar o objeto, elencamos a sua formação militar e orientação política
conservadora, como dois elementos essenciais para compreendermos suas defesas da ordem
social e da hierarquia militar.
A defesa da ordem é encontrada em sua constante preocupação com a possibilidade de
bombardeamento da Capital Federal pela frota insurrecionada. Da mesma forma, a exigência
do cumprimento das formalidades diplomáticas e militares está associada a sua intransigente
defesa da hierarquia. Portanto, nossa análise será dividida em três momentos distintos.
No primeiro momento, vamos contextualizar o movimento revolucionário da Marinha.
Em seguida, analisaremos a intervenção estrangeira na revolta. Por último, vamos discutir
porque o governo brasileiro solicitou ao governo de Portugal a remoção desse diplomata.
80 De acordo com Edgard Carone, a primeira fase da Revolta da Armada ficou marcada pela a liderança do Almirante Custódio de Melo, e vai de 06.09.1893 até 09.12.1893. Nessa data o Almirante Saldanha da Gama aderiu ao movimento dando inicio a segunda fase da revolta, que terminou em 13.05.1894 quando os revoltosos pediram asilo diplomático nas embarcações portuguesas. A terceira fase compreende o período entre o asilo diplomático e a morte do Almirante Saldanha em 24.06.1895. Ver: CARONE, 1983. op. cit. p. 122. O nosso trabalho compreende apenas a primeira fase da revolta porque o Conde de Paço D’Arcos permaneceu como diplomata no Brasil até o dia 20 de Novembro de 1893. 81 “Suas previsões são razoavelmente acertadas e os julgamentos, embora nem sempre imparciais, dão invariavelmente a impressão de sinceridade e franqueza”. Ver: COSTA, Sérgio Corrêa da. Brasil, segredo de Estado: Incursão descontraída pela história do país. 2ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. (sobretudo os capítulos 10 e 12). Citação p. 217.
125
3.2.1 As primeiras contestações
Em 23 de Dezembro de 1891 o Conde de Paço D’Arcos enviou um relatório para o
Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, o Conde de Valbom, detalhando a situação
política brasileira após um mês do movimento liderado por Custódio de Melo e Floriano
Peixoto, que depôs Deodoro da Fonseca. Nesse documento é explicitado que “a situação é
demasiadamente tensa e não seria fora de propósito que estivessem na baia do Rio de Janeiro
alguns navios de guerra das potencias européias” 82.
A inquietação desse diplomata residia na questão da ordem social, sobretudo para os
interesses financeiros de Portugal e dos seus súditos que residiam no Brasil 83. Portanto, a
instabilidade política gerou uma tensão diplomática, sendo inclusive cogitada naquela época a
presença militar para salvaguardar os interesses estrangeiros. Os navios de guerra portugueses
não vieram nesse primeiro momento. Contudo, a situação política brasileira continuou
gerando desconfianças em Carlos Eugênio, que anteviu algumas dificuldades que o governo
iria enfrentar para sedimentar a República.
O principal obstáculo à ordem era a Revolução Federalista que espalhava o caos pelo
Rio Grande do Sul. Em 13 Abril de 1893 aconteceu a defecção de Wandenkolk, que partiu
para sul do Brasil para apoiar aquela revolução. Nesse dia, foi publicado no Jornal do
Comércio um “recado” do Almirante para Floriano Peixoto, que dizia, de acordo com Hélio
Leôncio Martins, “General, nos encontraremos um dia!” 84. O Conde de Paço D’Arcos enviou
um relatório em Maio para Portugal com alguma diferença literal no conteúdo dessa carta
explicitado por Martins. No documento que o diplomata comentou essa carta do Almirante,
diz que “em breve nos veremos frente a frente Marechal!” 85.
Porém, é significativo o comentário que Carlos Eugênio faz sobre essa defecção de
Wandenkolk. “Diz-se que o Almirante vai unir-se a Gaspar Martins e revolucionar a marinha
que compõe as esquadrilhas do Sul”. Ou seja, já era nitidamente percebida e divulgada a idéia
de que o Almirante estaria planejando uma revolta naval, que aconteceu de fato em Julho na
tentativa de conquistar o porto da cidade de Rio Grande.
82 SILVA, 1974. op. cit. p. 122. [despacho de 23.12.1891] 83 A instabilidade política fazia com que a moeda brasileira desvalorizasse em relação à libra inglesa, o que atingia diretamente o valor das remessas de dinheiro enviadas para Portugal pelos portugueses que aqui residiam. Essas remessas eram uma fonte importante para o equilíbrio da balança comercial portuguesa. Portanto, a desvalorização cambial brasileira proporcionou o aumento da crise financeira portuguesa. Sobre esses aspectos ver: GONÇALVES, 1995. op. cit. 84 MARTINS, Hélio Leôncio. A Revolta da Armada. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1997. p. 104. 85 SILVA, 1974. op. cit. p. 200. [despacho de 06.05.1893]
126
Ainda no mesmo documento de 6 de Maio de 1893 outra importante crise política,
igualmente com consequências diretas para a Revolta da Armada, é mencionada por Carlos
Eugênio. Trata-se da incompatibilização dos projetos de Custódio de Melo e Floriano Peixoto
para pacificar o Rio Grande do Sul. Enquanto o primeiro defendia a intervenção federal, o
segundo dizia ser inconstitucional o envio de tropas do governo para o estado. No dia 27 de
Abril ocorreu a demissão do Ministro Custódio de Melo da pasta da Marinha, e do ministro
Serzedelo Correia da pasta das Finanças 86.
O Conde de Paço D’Arcos comunicou os pedidos de demissão e teceu alguns
comentários sobre as “cartas - manifesto” de Custódio de Melo e Serzedelo Correia. Para esse
diplomata, “esta mania democrática” da publicação de cartas, explicando as razões de
determinados atos públicos, como as demissões, “obriga-os como é natural a contradições
flagrantes conforme as circunstâncias da ocasião em que são escritas” 87. Dessa forma, essas
duas cartas,
(...) hão-de ficar célebres na história pelas acusações graves que fazem ao Vice-Presidente, dão evidentemente armas aos defensores dêste para atacar os demissionários perguntando-lhes “como é que eles acompanharam sempre o Marechal nos actos de que hoje o acusam, e não largaram há mais tempo as pastas, que só agora abandonaram porque lhes convém mudar de política, embora pela traição, quando vêem Floriano em posição difícil”!
Entre os atos de apoio à Floriano durante seu exercício ministerial, Carlos Eugênio
destacou, sobretudo, o apoio para algumas das deposições dos governadores pró-Deodoro,
quando esse deu o Golpe de Estado de 3 de Novembro de 1891. O diplomata regozijava-se
dizendo que “agora é que a imprensa faz esta acusação e reconhece o alvo que visa Custódio
de Melo; mas há muito tempo eu já o tinha visto, e que apontei para essa Secretaria de
Estado”, se referindo à ambição presidencial do Almirante88.
Dez dias mais tarde ocorreu a eleição do Contra-Almirante Eduardo Wandenkolk para
presidente do Clube Naval por maioria de 276 votos. De acordo com Edgard Carone, esse ato
foi uma nítida afronta contra a pessoa e a política de Floriano Peixoto 89. Para o Conde de
Paço D’Arcos, eleger Wandenkolk para presidente do Clube Naval “(...) é bem
significativamente uma desfeita ao Marechal, a quem o Almirante despediu ao partir para o
Sul a flecha do partha com a sua ameaça do ‘encontrar-nos-emos Marechal!’ ”. Dessa forma,
86 CARONE, 1983. op. cit. p. 113-114. 87 SILVA, 1974. op. cit. p. 202. [despacho de 06.05.1893] 88 Idem. p. 203. [despacho de 06.05.1893] 89 CARONE, 1983. op. cit. p. 114.
127
para esse diplomata progressivamente ia se configurando uma oposição ao Marechal Floriano
que “(...) apesar de ter por si indubitavelmente o exército, não está muito seguro” 90.
Em Junho de 1893, a Revolução Federalista continuava consumindo as forças
militares e financeiras da República. Nesse contexto, o Almirante Wandenkolk ainda não
havia obtido sucesso em sublevar a esquadra a partir do Rio Grande do Sul. Os comentários
de Carlos Eugênio sobre o conflito riograndense deixaram explicito que havia uma divisão
entre as classes militares do Brasil. Para esse diplomata, o governo parecia não querer
empregar a Marinha nesse conflito porque não podia confiar nessa instituição.
A eleição de Wandenkolk para presidente do Clube Naval e o apoio dessa instituição
às doações para feridos da Revolução Federalista tornavam “(...) a marinha suspeita ao
Marechal, que de certo se receia que o façam largar o poder, aqueles mesmos que lho deram
em 23 de Novembro de 1891” 91. Essas suspeitas de Carlos Eugênio são acertadas, pois, de
acordo com Hélio Leôncio Martins, desde Junho de 1893 já havia contatos da oficialidade da
Marinha para que Custódio de Melo liderasse uma revolta contra o governo Floriano, porém,
esse resistia em aceitar o convite 92.
Em 9 de Julho, Wandenkolk, a bordo navio frigorífico Júpiter, tentou bloquear o porto
da cidade de Rio Grande 93. O diplomata inglês, Mr. Hugo Wyndham, comunicou ao Conde
de Paço D’Arcos o envio de um navio de guerra inglês para proteger os súditos ingleses e os
estrangeiros que não tivessem navios naquela localidade. O diplomata português agradeceu a
gentileza do colega e comunicou à Lisboa que “graves acontecimentos [no] Rio Grande do
Sul; navios armados pelos federalistas bloquear porto combater baterias” 94. O telegrama
prosseguiu comentando a atitude inglesa de proteger os demais estrangeiros, e expondo que
no Rio de Janeiro era esperada uma revolução e a queda do Presidente da República “a
qualquer momento” 95.
O Conde de Paço D’Arcos não escondeu as dificuldades em detalhar o episódio. O
telégrafo havia sido interrompido e havia notícias dizendo que o Almirante Eduardo
Wandenkolk planejava uma invasão da cidade de Rio Grande com os seus homens. Outras
informações diziam que o governo havia tomado providências para sufocar essa insurgência
naval. A experiência militar fazia com que Carlos Eugênio duvidasse de tudo e de todos.
90 SILVA, 1974. op. cit. p. 209. [despacho de 20.05.1893] (grifos no original) 91 Idem. p. 215. [despacho de “junho” de 1893] 92 MARTINS, 1997. op. cit. p. 153. 93 Idem. p. 106-107. 94 SILVA, 1974. op. cit. p. 230. [despacho de 13.07.1893] 95 Idem. p. 231. [despacho de 13.07.1893]
128
Ora isto tudo é absurdo, muito mais pelas contradições! Como é que Wandenkolk, batendo-se com as fortificações e com a esquadrilha tentaria uma desembarque da sua pouca gente, quer fossem trezentos, quer cem? Como é que com a esquadrilha de bôas canhoneiras, ainda auxiliadas pelo cruzador “República”, não aprisionaram Wandenkolk num simples navio mercante? E sobretudo, reflexão natural a todos que pensam como é que, com tão boas notícias o telegrafo não abre comunicações ao publico e à imprensa e pelo contrário o governo do Marechal está com a sua tropa em prevenção, artilhando e guarnecendo à pressa as fortificações e defendendo com a artilharia e tropas a praia de Copacabana, ao lado do Rio de Janeiro, mas que por ser de fácil acesso, fora das vistas das fortalezas e separada da cidade por montanhas que a abrigam dos tiros de quaisquer baluartes, é a que mais se presta a um desembarque audacioso para atacar a cidade pela rectaguarda? 96
Para surpresa desse diplomata, em 17 de Julho ele noticiou para Lisboa o
aprisionamento do Almirante Wandenkolk no porto de Canasvieiras, na cidade do Desterro 97.
No dia 19, o Conde de Paço D’Arcos recebeu a notícia de que a corveta portuguesa
Mindelo, comandada pelo Conselheiro Castilhos, estava a caminho do Brasil98. O envio dessa
corveta demonstra que para o governo de Portugal a situação política do Brasil era crítica. O
clima de desordem e insegurança que o diplomata português descreveu em seus relatórios, fez
com que o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Hintze Ribeiro, tomasse essa
atitude.
O relatório do dia 29 de Julho foi enviado, detalhando os recentes acontecimentos
envolvendo Wandenkolk. O comentário dizia que “era geral a opinião de estar eminente uma
grande revolução, que, ou brotaria espontaneamente na Capital Federal, ou esperaria o
momento em que à barra aparecesse o temido almirante com seus navios mercantes (...)” 99.
Existiam boatos de que ao invés de aprisionar o Júpiter, o cruzador República poderia ter se
unido a ele. Porém, alguns deputados da oposição atribuíam a captura do Almirante à traição
de alguém de dentro do Clube Naval. Alguma pessoa teria enviado um telegrama ou ofício,
dizendo para Wandenkolk não temer o República, pois esse seria o primeiro navio a unir-se a
ele na revolta 100.
O clima de conspiração no Rio de Janeiro ganhava contornos mais nítidos quando o
Almirante foi preso na Fortaleza de Santa Cruz. A alta oficialidade da Marinha não concordou
com o fato de um almirante estar preso em uma fortaleza cuja jurisdição era do Exército.
Nesse contexto chegou ao Rio de Janeiro, em 11 de Agosto, a corveta portuguesa Mindelo101.
Carlos Eugênio comunicou para o seu governo no início de Agosto, que “por mais que os
96 Idem. p. 234-235. [despacho de 16.07.1893] 97 Idem. p. 236. [despacho de 17.07.1893] 98 Idem. p. 238. [despacho de 29.07.1893] 99 Idem. p. 240. [despacho de 29.07.1893] 100 Idem. p. 241. [despacho de 29.07.1893] 101 Idem. p. 245. [despacho de 11.08.1893]
129
meus colegas (que se julgam mais bem informados) continuem a afirmar-me que alguma
coisa grave se trama na sombra, o facto é que nada aparece (...)” 102.
De acordo com o autor anônimo das Notas de um revoltoso, na noite do dia 12 de
Agosto foi convocada uma reunião no Clube Naval à noite. Essa reunião foi amplamente
divulgada para que, justamente em função da sua publicidade, não despertasse desconfiança
no governo. Contudo, essa reunião foi dissolvida e aqueles oficiais que já haviam sido
avisados antecipadamente, se encontraram no segundo andar do Clube para formar um
Comitê Revolucionário 103.
A ideia era fazer a revolta naquela noite. Entretanto, em função de incompatibilidades
entre o Presidente do Comitê recém criado, o Capitão de Mar e Guerra Frederico Guilherme
de Lorena, e o vice-presidente do Clube Naval (o Presidente era Wandenkolk que estava
preso), o Capitão de Fragata Alexandrino de Alencar, o movimento foi adiado. Após algumas
discussões, ficou acertado que seria convidado o Almirante Custódio de Melo para liderar o
movimento, embora ainda houvesse dúvidas sobre a confiabilidade do escolhido. Preferia-se
abertamente que a insurgência fosse comandada pelo Almirante Saldanha da Gama, porém
esse recusou o convite 104.
Em 27 de Agosto de 1893, as vésperas, portanto, do início da Revolta da Armada no
Rio de Janeiro, a situação política brasileira era delicada. A conspiração dentro da Marinha
era explícita, e o Conde de Paço D’Arcos acompanhava atentamente essas notícias. Para esse
diplomata, o Vice-Presidente dava sinais de que não largaria o poder facilmente, pois,
Aperta muito as mãos para que largue facilmente as rédeas, e não ser que lhe cortem os dedos, o que por enquanto não é possível, porque, incontestavelmente, tem ganho muita autoridade com a sua reserva e atrevimento. Se não tem prestígio, tem força; se o não estimam, temem-o; e essa circunstância é de muito valor na governação dos povos! 105
De fato, a conspiração se concretizou em 6 de Setembro de 1893. Esse movimento
colocou em perigo o futuro do governo e exigiu dos representantes diplomáticos uma intensa
participação. O maior objetivo a ser alcançado pela diplomacia era evitar o bombardeamento
da cidade pela esquadra sublevada. Portanto, intensas negociações foram feitas tanto com os
revoltosos quando com o governo.
102 Idem. p. 247. [despacho de 12.08.1893] 103 [s.n.]. Notas de um revoltoso: diários de bordo. Rio de Janeiro: Typ. Moraes, 1895. p. 5-7 e 12. Para Hélio Leôncio Martins, esse livro contém algumas imprecisões de datas. Entre esses equívocos, Martins aponta que essa reunião do Clube Naval ocorreu em 18 de Julho de 1893, e não no dia 12 de Agosto. Ver: MARTINS, 1997. op. cit. p. 154 e 359. Porém, decidimos manter a data mencionada na publicação anônima porque as referências em que Martins se baseou para correção, não são citadas. 104 O plano de revolta de Custódio de Melo é explicitado em: MARTINS, 1997. op. cit. p. 157-158. 105 SILVA, 1974. op. cit. p. 253. [despacho de 27.08.1893]
130
3.2.2 Para manter a ordem: Ville ouverte
A Revolta da Armada iniciou em 6 de Setembro de 1893. Desde o início os
representantes estrangeiros acompanharam o desenrolar dos acontecimentos mais como
expectadores do que como atores. Contudo, com o desenrolar do conflito, a frota estrangeira
presente no Rio de Janeiro passou a ter um papel preponderante na revolta. Como os
comandantes estrangeiros eram subordinados aos diplomatas, igualmente, exigiu-se muito
desses no transcorrer da contenda, transformando expectadores em atores.
Essa foi a realidade que o Conde de Paço D’Arcos enfrentou na qualidade de Ministro
Plenipotenciário de Portugal. Evidentemente, a mudança não foi uma ruptura, uma vez que,
mesmo participando da revolta, ele continuou a emitir impressões sobre a situação política.
Sua atuação foi uma reação inerente a sua condição de diplomata frente às circunstâncias da
insurreição. Portanto, nosso objetivo não é julgar a atuação do Conde de Paço D’Arcos, e sim
mostrar que em função das situações em que foi confrontado, ele foi obrigado a tomar
determinados posicionamentos106. Em nosso ponto de vista, essas escolhas foram pautadas
pelas defesas da ordem e da hierarquia.
Quando a insurreição teve início da Baía da Guanabara, esse diplomata logo informou
o governo de Portugal sobre o ocorrido. O telegrama enviado para Lisboa informou que as
legações estrangeiras receberam do governo brasileiro uma notificação de que “parte da
esquadra” havia se sublevado. O aviso assegurava que o governo brasileiro possuía forças
para manter a ordem na cidade. Entretanto, não podia se responsabilizar caso houvesse um
bombardeamento. Essa foi a estratégia de Floriano para tentar convencer representantes dos
países que tinham navios no Rio de Janeiro em intervir na revolta.
Contudo, as informações recebidas do governo brasileiro se contrastavam com as
notícias que o Comandante inglês havia enviado para o diplomata de sua nação107. De acordo
com esse Comandante inglês, toda a Marinha havia se revoltado, inclusive algumas fortalezas.
Dado o desencontro de informações, Carlos Eugênio solicitou que o Comandante da Mindelo
106 Eduardo Cândido Cordeiro Gonçalves considera que “na verdade, ao longo da leitura da documentação atinente à correspondência trocada entre a Legação de Portugal no Rio de Janeiro e o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Lisboa, relatando o evoluir da política brasileira e da posição das forças navais estrangeiras face ao conflito da Armada, perpassa uma certa simpatia pelos revoltosos, embora perante o governo legal se pretendesse transmitir uma imagem de eqüidistância face às partes em conflito”. IN: GONÇALVES, 1995. op. cit. p. 170. (grifos nosso). Amado Cervo vai mais longe e considera que a intervenção européia como um todo, “embora se declarasse neutra, mal disfarçava sua simpatia pelos revoltosos, tanto é que logo provocou a hostilidade de Floriano e da opinião nacionalista da imprensa”. IN: CERVO; MAGALHÃES, 2000. op. cit. p. 215-216. 107 SILVA, 1974. op. cit. p. 255 [despacho de 06.09.1893]
131
permanecesse agindo de acordo com o Comandante inglês, e que o Cônsul Geral de Portugal,
atuasse em consonância com os Cônsules Gerais da Inglaterra e Alemanha108.
No dia 8 de Setembro, o Conde de Paço D’Arcosu enviou para Lisboa um relatório
mais detalhado sobre as recentes ocorrências na Capital Federal. Esse documento mostra que
a intenção inicial da diplomacia era permanecer neutra frente ao conflito interno. O primeiro
destaque desse relatório foi que “(...) os colegas da Inglaterra e Alemanha, sempre bem
servidos pelas suas informações ocultas, tinham razão em assegurar que alguma coisa grave
se tramava na sombra!” 109. O documento prosseguiu lembrando dois momentos políticos
emblemáticos, que para o diplomata demonstravam “a força autoritária com que se
considerava o Marechal (...)”110.
O primeiro foi a rejeição do habeas-corpus, ao Almirante Wandenkolk, pelo Supremo
Tribunal Federal por dez votos a três. De acordo com Carlos Eugênio, até mesmo a imprensa
governista clamava pela benevolência de Floriano em relação ao réu. Dessa forma, o Vice-
Presidente planejava conceder a liberdade que o tribunal mais importante do país recusara111.
O segundo foi o veto presidencial a um decreto do Congresso que visava proibir que o Vice-
Presidente em exercício concorresse à Presidência112.
Esses dois eventos políticos deixavam transparecer, de acordo com a leitura política do
Conde de Paço D’Arcos, que Floriano Peixoto não estava disposto a entregar o governo. A
estratégia seria demonstrar a sua indispensabilidade ao poder, uma vez que não era alcançada
a paz nos estados. Tudo fazia crer a esse diplomata que a ditadura estava próxima. Contudo,
“a oposição levantou pois a cabeça começando a analizar os factos com acrimônia; mas ainda
assim, nada fazia prever – aos que não fossem iniciados nos misterios da conspiração – que
tão breve se desse qualquer acontecimento grave” 113.
Ainda de acordo com o relatório do dia 8 de Setembro, o que chamou a atenção desse
diplomata, é que no dia 4 de Setembro, apenas dois dias antes de iniciar a revolta naval, ele
viu o Ministro das Relações Exteriores do Brasil e o Diretor Geral “completamente
despreocupados de cuidados”. Parecia que eles não estavam sabendo de nada do que se
108 Idem. p. 256 [despacho de 07.09.1893] 109 Idem. p. 257. [despacho de 08.09.1893] (grifos originais) 110 Idem. p. 258. [despacho de 08.09.1893] 111 Com o início da revolta, o Almirante Wandenkolk permaneceu preso. 112 De acordo com Hélio Leôncio Martins, “Chamou-se ‘Lei da Inelegibilidade’ a que regularia o processo de eleição do presidente e do vice-presidente. Em seu art. 5º, dizia: ‘É inelegível para o cargo de presidente e vice-presidente da República o vice-presidente que suceda o presidente, verificada a falta deste’. O veto aposto por Floriano foi considerado, pelos revoltoso da Marinha, como em causa própria”. VER: MARTINS, 1997. op. cit. p. 363. [nota 15] 113 SILVA, 1974. op. cit. p. 258. [despacho de 08.09.1893]
132
tramava. Ainda no mesmo dia 4, Carlos Eugênio encontrou Custódio de Melo em passeio
público e conversou com o Almirante sobre a situação política do Brasil. Esse teria dito:
como este homem (o Marechal), tem conseguido tudo com a sua velhacaria a que dão o nome de política! Até reduz o tribunal mais superior! Note bem! Ao papel de capacho a que limpa as botas! Já não cae senão à força de bala! E o paiz não se levanta!... Isto está perdido114.
O que poderia ser interpretado como desânimo, segundo o Conde de Paço D’Arcos,
era “a preocupação de espírito e a bem natural comoção de quem pouco mais de trinta horas
depois ia lançar-se em nova e arriscada aventura, tentar um novo e audacioso golpe de
mão”115. O relatório prosseguiu descrevendo com pormenores a visita de um enviado do
governo brasileiro a todos os representantes estrangeiros na noite do dia 6 para o dia 7 de
Setembro.
O emissário era o Primeiro Tenente da Marinha Henrique Sadok de Sá, ajudante de
ordens do Marechal Floriano. Ele entregou um convite idêntico aos representantes de
Inglaterra, Portugal, Itália, Alemanha, França e Estados Unidos. O documento expunha que o
governo brasileiro tinha forças e recursos para reprimir a revolta, mas não para impedir o
bombardeamento da Capital Federal. Portanto, era feito um convite aos representantes
estrangeiros para apoiar o governo e impedir uma desgraça. Uma reunião para o dia seguinte
era convocada com a participação de todos os diplomatas para resolvessem o que
entendessem. O Conde de Paço D’Arcos teria respondido ao Primeiro Tenente nos seguintes
termos:
Respondi “que a conferencia pedida, ou à qual era convidado pelo Snr. Marechal, considerava-a eu como um acto muito grave e de muita responsabilidade, para que ousasse aceder sem ter tido tambem primeiramente uma conferencia com os coelgas em que por unanimidade nos decidíssemos a aceitá-la. Que na falta dessa unanimidade, ou quando houvesse divergências, eu pela minha parte me julgaria obrigado a consultar o meu governo, facto esse, que a ter logar e acarretado forçadas demoras, bem pouco se coadunava com a urgência exigida. Que tendo o Marechal por si as fortalezas fieis e bem artilhadas, não precisava mais nada para evitar, ou fazer cessa de prompto, qualquer bombardeamento de poucos navios – que não constituíam uma potente esquadra e que não tinha onde ir buscar os recursos que o Marechal possuía! E que, finalmente, o appoio dado pelos ministros nunca poderia ser outra coisa mais do que a opposição feita pela força dos seus navios de guerra, o que se tornaria n’uma verdadeira intervenção nos negócios internos do Brazil, nas suas questões partidárias, acção que nenhum ministro praticaria sem ordem expressa do governo, por ser contraria a todas as leis do direito internacional” 116.
No dia seguinte, todos os diplomatas se reuniram e compararam as cartas que haviam
recebido e decidiram recusar o convite do Marechal Floriano. Dessa forma, cada um emitiu
114 Idem. p. 258-259. [despacho de 08.09.1893] 115 Idem. p. 259. [despacho de 08.09.1893] 116 Idem. p. 262. [despacho de 08.09.1893] (grifos originais)
133
um telegrama com as suas palavras, para não parecer que pretendiam uma imposição
coletiva117.
Esse relatório do dia 8 de Setembro demonstra, portanto, qual era o posicionamento
dos representantes estrangeiros no início da Revolta da Armada. A princípio, o objetivo era
não se intrometer diretamente no conflito, embora o governo brasileiro estivesse solicitando a
intervenção abertamente.
Carlos Eugênio enviou mais notícias sobre o desenrolar do levante da Marinha em 10
de Setembro. As informações diziam que o comércio estava paralisado, pois a esquadra
bloqueara a chegada de navios mercantes. Havia o receio de haver falta de gêneros de
primeira necessidade, o que poderia desencadear uma revolta popular. A população do Rio de
Janeiro convivia com o medo de um bombardeamento, o que poderia forçar o Marechal a
renunciar o governo, ou abandonar a cidade aos revoltosos e constituir um governo no
interior. Também era cogitada a possibilidade dos navios deixarem a Capital Federal e se
dirigirem ao Sul do Brasil para se unir à Revolução Federalista. A descrição desse relatório
mostrou o despreparo da cidade para enfrentar a situação 118.
No dia 12 de Setembro o Almirante Custódio de Melo anunciou que no dia seguinte,
às 9h da manhã, iniciariam os bombardeamentos às fortalezas que permaneceram fiéis ao
governo. Nesse relatório, o Conde de Paço D’Arcos explicitou sua preocupação com a ordem
social. O ataque às fortalezas se efetivou tal qual fora anunciado, porém algumas granadas
arrebentaram dentro da cidade causando pânico à população.
Não se pintam as cenas de terror que por ali se deram! As lojas fechavam, as casas eram abandonadas pelas famílias! E pelas ruas e praças viam-se mulheres, crianças e homens enlouquecidos pelo terror, procuravam em desapoderada fuga alcançar os subúrbios da cidade, onde ao menos não ouvissem o troar da artilharia e o assobiar dos projéteis119.
Esse bombardeamento foi explorado pelos jornais governistas como um ataque direto
à cidade. A idéia era associar o nome do Almirante Custódio com o terror do bombardeio.
Contudo, aos olhos de Carlos Eugênio, um experiente militar, todos os tiros que chegaram a
atingir a cidade, assim como as granadas que explodiram, ou eram tiros perdidos, ou uma
resposta aos ataques governista. O documento descrevia que o governo havia colocado peças
de artilharia em pontos estratégicos, e que essas faziam ataques provocativos às embarcações
insurgentes.
117 Idem. p. 263. [despacho de 08.09.1893] 118 Idem. p. 264-267. [despacho de 10.09.1893] 119 Idem. p. 270. [despacho de 16.09.1893]
134
Entre os dias 14 e 15 de Setembro aconteceram reuniões dos comandantes
estrangeiros. Desses encontros foi elaborada uma proposta enviada para o Almirante Custódio
de Melo, solicitando o aviso com algumas horas de antecedência, os horários das operações
de guerra contra as fortalezas, para segurança dos navios e população estrangeiros. A resposta
do Almirante foi negativa, pois considerava que não havia condições de estabelecer os
horários dos combates, porque era impossível permanecer sem responder às provocações das
artilharias que haviam sido colocadas no alto dos morros da cidade. O Conselho de
Comandantes estrangeiros solicitou a intervenção diplomática para que as baterias de defesa
do governo parassem de hostilizar os navios revoltosos, sob pena de não poder considerar o
Rio de Janeiro ville ouverte (Cidade Aberta), segundo o Direito Internacional.
Os representantes diplomáticos de Portugal, Inglaterra, França e Itália foram até o
Palácio do Itamaraty solicitar oficiosamente que o governo garantisse a suspensão das
hostilidades à esquadra rebelde. O Conde de Paço D’Arcos relatou à Lisboa que o Ministro
inglês tomou a palavra, como decano, e disse ao Ministro das Relações Exteriores, o Dr. João
Filipe Pereira, o que pensavam os representantes estrangeiros. Os argumentos da diplomacia
residiam em considerar os ataques das artilharias governistas como “(...) absolutamente inútil
e ineficaz (...) e que “(...) só resultavam terror, prejuízo e perigos!”. Dessa forma, os
diplomatas pediam oficiosamente, “(...), que se pezassem estas circunstâncias e que por bem
da humanidade, para obviar a tantos males solicitávamos que fossem retirados aqueles inúteis
canhões (...)”. Se o governo aceitasse esse pedido, os diplomatas garantiriam, através da frota
estrangeira, o impedimento de qualquer bombardeio à Capital Federal pelos revoltosos120.
Para Sérgio Corrêa da Costa, essa “imposição era excessiva e injustificável. Se o
objetivo era dar ao Rio o caráter de cidade aberta, não o alcançavam com a simples retirada
das peças”. Segundo o autor, “o que expõe uma cidade ao bombardeio não é a existência de
fortificações mas a intenção de defesa e de resistência” 121. De acordo com essa leitura do
Direito Internacional, o Rio de Janeiro jamais poderia ser considerado Cidade Aberta, uma
vez que o governo jamais abdicou de se defender e resistir.
O Conde de Paço D’Arcos e os demais diplomatas estrangeiros foram, na manhã do
dia 16 de Setembro, ao Ministério das Relações Exteriores receber do Ministro a resposta de
Floriano Peixoto. João Felipe Pereira informou aos diplomatas que o Marechal julgava
120 Idem. p. 274-275. [despacho de 16.09.1893] (grifos nosso) 121 COSTA, Sério Corrêa da. A diplomacia do Marechal: intervenção estrangeira na Revolta da Armada. Rio de Janeiro: Zelio Valverde, 1945. p. 53. (grifos no original)
135
impossível retirar a artilharia de cima dos morros, mas que prometia que não se faria fogo
contra os navios revoltosos, ao menos que fossem praticados “atos hostis” contra à cidade.
A promessa do governo foi transmitida aos comandantes estrangeiros, que por sua vez,
enviaram nota ao Almirante Custódio de Melo, dizendo confiar que não haveria “atos hostis”
contra a cidade. Logo em seguida, os diplomatas retornaram ao Ministério por dois motivos.
O primeiro motivo foi informar ao governo que os comandantes haviam enviado essa nota ao
chefe revoltoso. O segundo foi ouvir a resposta do governo, ao pedido feito naquela manhã,
de que as fortalezas cessassem o fogo durante algumas horas do dia, para facilitar a entrada e
saída de navios estrangeiros da baía. O governo recusou essa solicitação, mas indicou que
seria feito alguma sinalização às embarcações para essas operarem em segurança122.
O documento do dia 16 de Setembro é, portanto, indicativo dos objetivos que os países
estrangeiros tinham no conflito. A questão central, que permeia todo relatório, é a
preocupação em relação à possibilidade de bombardeamento da cidade pela frota
insurrecionada. Os danos que seriam causados por esse ato “desumano” iriam provocar a
desordem e o caos. Nesse sentido, o Conde de Paço D’Arcos externou sua preocupação em
relação a essa possibilidade na sua documentação. Para ele, era imperioso que a ordem fosse
mantida à outrance, e que o bombardeio fosse evitado. O seu posicionamento nos primeiros
dias do conflito, em que ele teve que tomar decisões em nome do seu país, foi balizado pelo
pressuposto da ordem. Em nosso ponto de vista, essa orientação foi um reflexo de sua
formação político-profissional.
O seu posicionamento frente à revolta só foi referendado pelas ordens recebidas do
Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal em 23 de Setembro, que dizia que,
O Governo de Sua Majestade não reputa o Governo brasileiro responsável pelos prejuízos que nas atuais lutas civis circunstâncias de força maior possam trazer aos nossos nacionais residentes no seu território, mas considera empenhada a responsabilidade daquele Governo desde o momento que se não empreguem todos os possíveis esforços para garantir a segurança da vida e bens dos súditos portugueses123.
No telegrama de 1º de Outubro, o Conde de Paço descreveu para o seu Ministro as
recentes ocorrências na Capital Federal. O documento informava que há dois dias o Almirante
Custódio estava atacando a ilha Caju para tomar conta do depósito de carvão da Estrada de
Ferro Central. Isso teria causado uma “grande mortandade” e que havia “pânico geral [na]
122 SILVA, 1974. op. cit. p. 276. [despacho de 16.09.1893] 123 Idem. p. LV. [despacho de 23.09.1893]
136
cidade; todos receosos [da] possibilidade [de] saque pela canalha com armamento
aperfeiçoado que deu [o] Marechal [a] pretexto [de] batalhões patriotas” 124.
Esses acontecimentos fizeram com que os diplomatas e os comandantes estrangeiros
se reunissem no dia 2 de Outubro. Desse encontro saiu a deliberação que, através de uma nota
coletiva dos comandantes, seria feita uma intimação ao Almirante Custódio de Melo no
sentido de impedir que ele praticasse qualquer ato hostil contra a cidade, sob pena de a
esquadra estrangeira utilizar a força para se opor. Da mesma forma, o governo brasileiro foi
notificado sobre a necessidade de retirar as artilharias de cima dos morros, sob pena de ser
retirada a intimação feita a Custódio de Melo, o que significaria permitir o bombardeio à
Capital Federal.
Joaquim Nabuco enfatizou que esse momento marcou uma alteração no
posicionamento dos países estrangeiros com navios na baia de Guanabara. Até então, a
política havia sido de neutralidade e não intervenção nos negócios internos do Brasil. Todos
os contatos que haviam sido feitos com ambas as partes, até então, eram de caráter oficioso.
Contudo, a partir dessa conferência, de 2 de Outubro, ficou marcada a intervenção estrangeira
na Revolta da Armada. Após trocas de notas e correspondências entre os representantes
estrangeiros, os revoltosos e o governo, foi estabelecido aquilo que ficou conhecido como
Acordo de 5 de Outubro.
Durante três mezes assistir-se-há na bahia do Rio de Janeiro a um verdadeiro duello de artilharia regulado, tiro por tiro, pelas testemunhas reunidas a bordo de um dos navios de guerra estrangeiros. São ellas que dirão, quasi diariamente, a cada um dos combatentes o que lhes é licito e o que lhes é defeso, o que cabe e o que não cabe no accôrdo que fizeram; são ellas que marcarão a raia do tiro; que observarão d’onde partem as provocações; que decidirão, em uma palavra, as questões occurrentes, tudo como os padrinhos em uma pendência de honra 125.
De acordo com Joaquim Nabuco, o Acordo de 5 de Outubro alterou o equilíbrio de
forças durante a revolta. Para ele, com essa intervenção o Governo economizou um exército,
supriu a falta de uma esquadra, e ganhou tempo para organizar a defesa da cidade. Já os
revoltosos eram paralisados com essa intervenção, sendo essa inação, em sua opinião, a causa
primária do fracasso da revolta126.
Contudo, mesmo firmado o Acordo de 5 de Outubro, que regularia as relações bélicas
entre governo e revoltosos, o Conde de Paço D’Arcos continuou a externar em seus relatórios
sua preocupação com a ordem. No dia 6 de Outubro, ele informou à Lisboa que “quasi todos
124 Idem. p. 279. [despacho de 01.10.1893] 125 NABUCO, Joaquim. A Intervenção Estrangeira durante a Revolta de 1893. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger, 1896. pg. 13-27. citação p. 27. 126 Idem. p. 99, 112-113.
137
os dias há combates entre a esquadra revoltada e as fortalezas e as ballas ou granadas perdidas
vêem cahir na cidade e fazem estragos e causam mortes”. Nada parecia ter mudado, uma vez
que “o pânico é geral!”. Da mesma forma que se temia um bombardeio, “não é menor o temor
d’um saque por parte da canalha armada que a pretexto de batalhões de voluntários e guarda
nacional faz a guarnição da cidade”. De acordo com esse diplomata, “todos receiam portanto
que n’um acto de desespero, ao ver-se perdido se a revolução for vencedora, o governo do
Marechal possa dar de rédeas a essa canalha que praticará horrores” 127.
No final de Outubro, no relatório do dia 24, o Conde de Paço D’Arcos fez algumas
reflexões sobre a Revolta da Armada que demonstram todo o seu conservadorismo e defesa
da ordem social. Para ele, mais do que uma revolução, essa revolta era “uma lucta de classe
entre a marinha que está com o Almirante, e a força de terra que está com o Marechal”. O
documento prossegue com uma caracterização dos grupos sociais que defendem o governo e o
Almirante revoltoso. Nessa parte do documento, é interessante ver a forma distinta com que
esse diplomata descreveu quem apoiava os revoltosos e quem defendia o governo, já que “o
povo da cidade não se mette na luta”.
Ao lado dos revoltosos estariam “homens e mulheres de todas as posições, mas
principalmente das classes mais elevadas”, uns se expressando abertamente a favor do
Almirante, outros pela necessidade de “uma mudança radical”. Enquanto que do lado do
governo, estão “os radicais avançados dos grupos dos três ministros – Fernando Lobo,
Felisberto Freire e Felipe Pereira – é a canalha das ruas que forma os batalhões – Tiradentes,
23 de Novembro e Leaes Acadêmicos (com mais barbeiros e vadios do que estudantes)”. A
descrição desse grupo de apoio à Floriano Peixoto prossegue com “a guarda nacional, em que
com os capoeiras alistados e bem pagos, servem (obrigados à força de maus tratos) alguns
homens de bem!” 128.
Fica explícito nesse documento que, para o Conde de Paço D’Arcos, o grupo que
defende o governo, paradoxalmente, é aquele que difunde a desordem social. Dessa forma,
não é de se estranhar que alguns autores tenham interpretado que esse diplomata tivesse certa
simpatia pelos revoltosos. Parece-nos que o argumento da simpatia não é o suficiente para
caracterizar a leitura política desse diplomata. As tratativas diplomáticas para impedir o
bombardeamento e o constante receio de saques pela “canalha armada” demonstram sua
preocupação em defender a ordem social. Para nós, portanto, identificar a sua preocupação em
127 SILVA, 1974. op. cit. p 281. [despacho de 06.10.1893] 128 Idem. p. 296-297. [despacho de 24.10.1893]
138
defender a ordem é a maneira mais adequada de dimensionar os seus posicionamentos frente à
revolta.
3.2.3 Os “bailes” da discórdia diplomática
Outro erro grave foram os bailes. Demos este nome, não só aos tiroteios nocturnos com as forças do littoral, como às expedições à Armação, para retirar munições. Muita valentia, muito pouco amor à vida, mas pouco ou nenhum resultado para o bom êxito da revolução 129.
O Conde de Paço D’Arcos recebeu um telegrama na noite do dia 17 de Novembro, do
Ministro dos Negócios Estrangeiros, Hintze Ribeiro, nos seguintes termos: “Por motivo que
explicar aqui convem que V. venha Lisboa sem demora. Faça communicação Governo
brasileiro ficar 1.º Secretário Encarregado de Negócios. (a) Hintze Ribeiro” 130. No dia
seguinte, ele comunicou o governo brasileiro que havia sido chamado em Lisboa e que ficaria
Encarregado de Negócios, o Primeiro Secretário da Legação, Manoel Garcia da Rosa. Dessa
forma, ele permaneceu como representante diplomático até o dia 20 de Novembro de 1893.
Nessa data ele entregou oficialmente a Legação ao Secretário131.
Os motivos que levaram ao governo português chamar o seu diplomata de volta à
Lisboa nunca foram explicitados para o Conde de Paço D’Arcos. Ele passou o resto de sua
vida sem saber por que havia sido destituído do seu posto de diplomata. O seu filho, o
Comandante Henrique Corrêa da Silva, ficou responsável de publicar a documentação
concernente ao período em que o seu pai esteve à frente da Legação portuguesa no Rio de
Janeiro. Contudo, nem o pai nem o filho ficaram sabendo a razão que motivou a remoção do
diplomata.
Os netos do Conde de Paço D’Arcos ficaram responsáveis por terminar a compilação
para publicar o livro. Entretanto, permanecia sem explicações o motivo da remoção desse
diplomata. Após uma intensa pesquisa nos arquivos diplomáticos de Portugal, sem nunca
encontrar nada, eles solicitaram ao representante diplomático brasileiro em Lisboa, que fosse
buscado nos arquivos brasileiros alguma informação para desvendar o motivo da remoção.
Foi a partir dessa investigação que foi encontrado o documento, datado de 18 de Novembro
129 [s.n.], 1895. op. cit. p. 37. 130 SILVA, 1974. op. cit. p. 337. [despacho de 18.11.1893] 131 Idem. p. 339. [despacho de 20.11.1893]
139
de 1893, endereçado ao Ministro das Relações exteriores do Brasil, Alexandre Cassiano do
Nascimento, e assinado pelo representante brasileiro em Portugal, Vianna de Lima132.
Nesse documento ficou explícito que o governo brasileiro solicitou ao governo de
Portugal a remoção desse diplomata, porque ele estava se envolvendo abertamente na política
brasileira. A reação de Hintze Ribeiro, que além de Ministro dos Negócios Estrangeiros era o
Presidente do Conselho Ministerial de Portugal, foi acatar o pedido 133.
Desde a publicação desse livro que contém a documentação analisada nesta
dissertação, em 1974, essa versão foi repetida tanto pela historiografia brasileira quanto pela
portuguesa134. Para nós, a remoção desse diplomata reside mais nos elementos explicativos da
sua visão de mundo, do que na sua participação política efetiva. O Conde de Paço D’Arcos foi
um militar da Marinha portuguesa e defendeu a necessidade de respeito à hierarquia militar.
A sua atuação durante a conflagração da revolta foi a causa primordial que
desencadeou a solicitação brasileira. Para ele, a diplomacia deveria ser respeitada da mesma
forma que a hierarquia militar. Portanto, no transcorrer do conflito ele permaneceu irredutível
em suas exigências de reparações diplomáticas aos episódios de desacato à bandeira
portuguesa, ou em casos de desrespeito às formalidades diplomáticas.
Evidentemente, o governo brasileiro não poderia requerer a remoção de um diplomata
sem um bom motivo. Dessa forma, o argumento utilizado foi de que o representante
português estava se envolvendo diretamente na política brasileira135. Contudo, o que a
documentação existente no Arquivo Histórico do Itamaraty deixa transparecer, é que o Conde
132 Ver Anexo 1. 133 SILVA, 1974. op. cit. p. VII-XV. 134 Os livros de Maria de Lourdes Mônaco Janotti, Suely Robles Reis de Queiroz, e de Lincoln de Abreu Penna utilizaram a documentação do Conde de Paço D’Arcos para referendar a argumentação das suas respectivas teses. Contudo, nenhum deles analisou a fonte, apenas citaram esparsos documentos presentes na publicação de 1974. Na mesma situação se encontra o artigo de Adelar Heinsfeld. Ver: JANOTTI, 1986. op. cit.; QUEIROZ, 1986. op. cit.; PENNA, 1997. op. cit.; HEINSFELD, Adelar. A ruptura diplomática Brasil-Portugal: um aspecto do americanismo do início da República brasileira. IN: XXIV Simpósio Nacional de História. Anais complementares... São Leopoldo/RS, jul. 2007. O único trabalho que analisou a documentação foi a dissertação do autor português Eduardo Cândido Cordeiro Gonçalves. O autor citou as dificuldades diplomáticas que geraram o pedido de afastamento do Conde de Paço D’Arcos, contudo, de forma limitada, ele apenas reproduziu a visão da publicação de 1974. Ver: GONÇALVES, 1995. op. cit. Outros dois autores brasileiros também trabalharam com essa documentação recentemente. O primeiro foi Amado Cervo, que embora tenha acessado documentos de Portugal, igualmente, se limitou a reproduzir a mesma explicação existente na publicação de 1974. Ver: CERVO; MAGALHÃES, 2000. op. cit. O segundo autor brasileiro foi Sérgio Corrêa da Costa, que se contentou em reproduzir diversos trechos documentais sem fazer nenhuma reflexão sobre os mesmos. Embora o autor tenha citado a formação militar e política conservadora do Conde de Paço D’Arcos, em nenhum momento elaborou alguma explicação que articulasse que a visão política desse diplomata pudesse ser condicionada por esses elementos. Ver: COSTA, 2001. op. cit. 135 Acrescenta-se o fato que no mês de Agosto de 1893 jornais de Portugal publicaram trechos de documentos do Conde de Paço D’Arcos em que esse comunicava à Lisboa suas impressões políticas sobre a República. Os jornais do Brasil reproduziram-nos causando péssima impressão e deixando o diplomata em uma situação constrangedora. Sobre esse episódio ele comentou que “lamento o facto, que produziu aqui o peor e o mais desagradavel efeito”. Ver: SILVA, 1974. op. cit. p. 249-252. [despacho de 12.08.1893]
140
de Paço D’Arcos não compreendeu a gravidade da situação em que o governo brasileiro se
encontrava. Consequentemente, por ficar reivindicando pedidos de satisfações diplomáticas
por escrito, progressivamente ele passou a ser tornar inconveniente para o governo brasileiro
que tinha que responder às suas solicitações – embora o Conde de Paço D’Arcos estivesse no
pleno exercício de seus direitos e funções.
Esses pedidos de satisfações diplomáticas iniciaram, mais precisamente, no dia 30 de
Agosto de 1893. Ou seja, nas vésperas da Revolta da Armada já é possível identificar as
diretrizes que esse representante conferiu para diplomacia portuguesa.
O Conde de Paço D’Arcos, no dia 30 de Agosto, enviou um documento para o
Comandante Augusto de Castilho, da corveta Mindelo. Nesse documento, ele relatou que o
diplomata inglês havia lhe comunicado que as autoridades da Marinha brasileira não estavam
cumprindo “todas as formalidades do cerimonial marítimo” com o Comandante naval da
Inglaterra. A situação havia chegado “ao ponto de não lhe serem pagas pessoalmente algumas
visitas feitas com caráter oficial pelo referido comandante Lang; e que, embora esse
comandante se não queixasse oficialmente, havia estranhado as faltas do devido cerimonial”.
Dessa forma, o diplomata português solicitou ao Comandante Castilho que lhe informasse
caso enfrentasse situações semelhantes.
No primeiro mês da Revolta da Armada, as negociações diplomáticas entre
representantes estrangeiros, revoltosos e governo, assim como os relatórios enviados para
Lisboa, ganharam as atenções desse diplomata. Somente em 10 de Outubro que ocorreu um
incidente entre marinheiros brasileiros e portugueses, no Cais dos Mineiros no Arsenal da
Marinha, que exigiu uma satisfação diplomática136. O Conde de Paço D’Arcos enviou uma
nota ao Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Carlos de Carvalho, solicitando
providencias para que não se repetissem as “desagradáveis occorrencias”. Para ele, os
soldados e marinheiros eram “quasi sempre homens sem educação e sem conhecimento de
conveniências políticas, podem a continuar as cousas como hontem se deram lançar-se em
qualquer serio conflito, que venha criar graves embaraços”. Assim, Carlos Eugênio esperava
136 O patrão do bote português, Felipe Dias do Amaral, relatou que no dia 10 de Outubro, às 17h, depois de ter começado o bombardeamento, o referido bote foi insultado com palavras e gestos obscenos por alguns soldados e outras praças graduadas que estavam no recinto do Arsenal da Marinha fronteiro ao cais. Os insultos, de acordo com o relato, não foram provocados ou respondidos pela marinhagem portuguesa. O patrão do bote, Felipe Dias do Amaral, desembarcou e foi reclamar para o capitão do exército, que efetivamente, repreendeu os soldados. Contudo, depois que o capitão se retirou, os insultos reiniciaram. Ver: Arquivo Histórico do Itamaraty – RJ – Estante 288/ Prateleira 02/ Maço 12 – 10.10.1893
141
que o governo brasileiro expedisse ordens para que a tropa fixada no Cais dos Mineiros não
provocasse os marinheiros que ali se apresentassem137.
O Ministério das Relações Exteriores respondeu no dia 14 de Outubro ao Ministro
Plenipotenciário de Portugal que o caso seria enviado para o Ministério da Guerra, “para que
se tome na devida consideração” 138. No dia 21 de Outubro, o Ministro Carlos de Carvalho
comunicou o desfecho do caso. O documento revela que “das indagações a que o Ministério
da Guerra mandou proceder resulta ser um sargento o responsável pelos atos que deram causa
a referida queixa”. Esse sargento declarou que não tinha “intenção de offender os brios
daquelles marinheiros nem o paiz da sua nacionalidade”. Porém, esse sargento foi
“repreendido severamente pelo Capitão do destacamento, o foi também mais tarde pelo Major
fiscal”. O Ministro concluiu o documento declarando estar certo de que não se reproduziriam
fatos semelhantes daquele momento em diante 139.
Após a solução desse episódio e a promessa do governo no sentido de não se repetir os
desagradáveis acontecimentos, esse diplomata se dedicou inteiramente à questão da
intervenção estrangeira na Revolta da Armada. Porém, no dia 2 de Novembro, aconteceu uma
significativa ocorrência que exigiu que o Conde de Paço D’Arcos enviasse uma nota enérgica
ao governo brasileiro. Esse documento (nota 1) declarava que com “muito sentimento” ele
participava ao governo brasileiro “que um grave attentado foi commetido por forças do
governo legal contra o respeito devido à bandeira portuguesa”. O documento prossegue
narrando que,
(...) sobre uma embarcação do serviço da Corveta Mindello, com bandeira e flâmula arvoradas, com um official a bordo e ainda com claridade bastante para que tudo bem podesse ser visto, forças armadas dos postos do littoral atiraram duas descargas sobre a referida embarcação. Este facto, embora praticado por subalternos, é de tal maneira attentatorio à dignidade de Portugal, que o abaixo assignado não pode deixar de pedir para elle reparação própria à desafronta da nação que representa e confiadamente espera na lealdade do Governo Brazileiro que ella lhe seja dada 140.
Essa nota foi recebida pelo Ministro das Relações Exteriores, Cassiano do
Nascimento, que respondeu ao diplomata português no dia 4 (resposta 1). Nessa resposta, foi
informado que o Ministério da Guerra seria acionado para prestar os “necessários
esclarecimentos” 141. Contudo, no dia 7 de Novembro o Conde de Paço D’Arcos ainda não
137 SILVA, 1974. op. cit. p. 283. [despacho de 11.10.1893] 138Arquivo Histórico do Itamaraty – RJ – Estante 288/ Prateleira 04/ Maço 08 – 14.10.1893 139 Arquivo Histórico do Itamaraty – RJ – Estante 288/ Prateleira 04/ Maço 08 – 21.10.1893 140 SILVA, 1974. op. cit. p. 316. [despacho de 02.11.1893] (grifos nosso). Original em: Arquivo Histórico do Itamaraty – RJ – Estante 288/ Prateleira 02/ Maço 12 – 02.11.1893 141 Arquivo Histórico do Itamaraty – RJ – Estante 288/ Prateleira 04/ Maço 08 – 04.11.1893
142
havia recebido nenhuma satisfação diplomática sobre o episódio. Dessa forma, ele enviou
nova circular (nota 2) ao governo brasileiro lembrando que na ocasião da entrega da primeira
reclamação (nota 1), o próprio Ministro Cassiano do Nascimento lhe assegurou verbalmente
que “a mais completa reparação seria dada com brevidade; porque o Governo Brazileiro não
permittia que os seus subalternos, ainda mesmo por ignorancia, praticassem actos de desacato
para com uma nação amiga”. Para esse diplomata,
Não parece ao abaixo assignado, que em assunto de tal gravidade seja justificável esta demora na reparação própria e menos ainda que em vista da sua nota acompanhada e comprovada com a representação do Commandante e participação do respectivo official, sejam ainda necessárias outras informações, que só podem servir para dilatar o acto da reparação que é devida à Nação que representa, ou diminuir o alcance político da mesma reparação. O abaixo assignado confia na lealdade do Governo Brazileiro, que se apressará a resolver este assumpto na forma devida (...) 142.
A situação se agravou porque no dia 8 de Novembro o Conde de Paço D’Arcos enviou
nova nota de protesto sobre um incidente ocorrido no dia 6 de Novembro de 1893 (nota 3).
Esse documento apontou para outros dois acontecimentos. O primeiro é que o Comandante
Castilho recebeu a notícia que “uma lancha arvorando illegalmente a bandeira portugueza,
passara da Gamboa para a bahia de Bota-Fogo conduzindo – ao que lhe afirmavam –
munições de guerra para as fortalezas do governo”. A reação desse Comandante foi enviar
uma lancha à vapor, e um escaler, armados em guerra, para prender a dita lancha, no “uso
incontestável do pleno direto de fiscalização à sua bandeira nacional”. Contudo, a lancha não
foi aprisionada. Dessa forma, ao retornar para perto da corveta Mindelo, ocorreu o segundo
fato: “No regresso para bordo, às 5 horas da tarde, foram as embarcações da Corveta atacadas
por seguido fogo de fusilaria que lhe foi feito da praia, ou caes da Glória, pelas forças
militares do governo da República”.
O documento seguiu fazendo uma enérgica cobrança ao governo brasileiro, nos
seguintes termos:
Abstraindo mesmo do caso – que aliás não está provado – de uma lancha do serviço do Governo arvorar indevidamente a bandeira portugueza, resta o facto inaudito e inqualificavel de um posto militar do Governo legal ter feito fogo sobre embarcações de guerra portuguezas, com perfeito conhecimento da offensa que se praticava à luz do dia sobre a bandeira de uma Nação amiga e allianda, completamente neutral na lucta intestina do Brazil, lucta que não justifica nem desculpa este attentado ao direito internacional. O abaixo assignado, forte com o seu direito de representante de Portugal protesta em nome do seu Governo contra o facto citado do qual pede reparação condigna e breve com lhe é devida.
142 SILVA, 1974. op. cit. p. 317. [despacho de 07.11.1893] (grifos nosso). Original em: Arquivo Histórico do Itamaraty – RJ – Estante 288/ Prateleira 02/ Maço 12 – 07.11.1893
143
Aproveitando esta occasião faz lembrar que ainda espera resposta e reparação de um igual caso (...) 143.
O Conde de Paço D’Arcos enviou outras duas notas de caráter urgente no mesmo dia 8
de Novembro. A primeira foi para o Comandante Castilho, informando que havia enviado
para o governo brasileiro a reclamação sobre os recentes acontecimentos envolvendo a
embarcação portuguesa (nota 3). Também declarou para esse comandante que só não levou
pessoalmente o protesto ao Itamaraty porque estava incomodado de saúde, mas garantiu que
“não abandono porem a questão, que ainda espero será resolvida de forma que não nos seja
desagradável” 144. O segundo telegrama foi para o governo de Portugal, comentando que as
forças armadas do governo brasileiro haviam atirado duas vezes descargas de fuzilaria contra
os escaleres da Corveta Mindelo. E que “já está feita reclamação muito energica” 145.
A situação, que já estava delicada em função das notas de protesto (1, 2 e 3) expedidas
pelo Ministro Plenipotenciário de Portugal, deteriorou-se quando esse diplomata enviou um
relatório para o Itamaraty, no dia 9 de Novembro, descrevendo uma nova ocorrência (nota 4).
De acordo com o Conde de Paço D’Arcos, no dia 7 de Novembro, houve uma discussão entre
o Comandante Augusto de Castilho e o Vice-Almirante Coelho Netto.
A contenda girava em torno do lugar correto para as embarcações estrangeiras
atracarem no Arsenal da Marinha. O primeiro defendia que uma ponte de madeira fazia parte
do Arsenal, podendo, portanto, atracar nesse ponto. O segundo dizia que foi determinado que
os barcos estrangeiros só atracassem num cais de pedra – que ficava fora da esplanada do
Arsenal. Dessa forma, estabeleceu-se uma discussão entre ambos. O Conde de Paço D’Arcos
relatou que o Vice-Almirante disse de uma maneira severa que “se o Comandante
desobedecesse ficava subjeito às consequências!”. O documento prossegue da seguinte forma:
A tão injustificável agressão que lher era feita por pessoa de tão elevado grau social, por militar da mais elevada patente! Que assim faltava num momento de nervoso despeito às mais elementares attenções para com um official superior, um Commandante estrangeiro! Este só replicou com toda a calma e cordura e ainda com o respeito militar e social convenientes à alta hierarquia do Exmo. Snr. Coelho Netto “que estava preparado para todas as consquencias, mas que lhe declarava que se ia queixar da gratuita affronta que lhe era feita”. Eis o caso relatado na sua maior singeleza. Snr. Ministro, expondo este desagradável conflicto, não pode o abaixo assignado deixar de chamar para o mesmo a mais seria attenção de V. Ex.ª. Sem razão alguma, imprudentemente e fora de todas as formulas normaes da mais simples delicadeza official e militar, um oficial da marinha portugueza commandante das forças navaes da sua nação no Rio de Janeiro, foi, dentro de um estabelecimento do Estado bruscamente tratado por um general da Armada brazileira da mais elevada patente e
143 SILVA, 1974, op. cit. p. 318-319. [despacho de 08.11.1893] (grifos nosso). Original em: Arquivo Histórico do Itamaraty – RJ – Estante 288/ Prateleira 02/ Maço 12 – 08.11.1893 144 Idem. p. 318. [despacho urgente de 08.11.1893] 145 Idem. p. 319. [despacho de 08.11.1893]
144
em acto de serviço. Não se trata duma offensa particular de que se tome desforço pessoal segundo as praxes sociais, trata-se duma affronta feita sem causa que a justifique a um official estrangeiro com vexame a menos preço da Nação que representa. Chamando para o caso a atenção do Governo, o abaixo assignado espera que condignamente seja reparada a affronta gratuitamente feita a um official da sua Nação 146.
Evidentemente, essa avalanche de notas de protestos não teve uma boa repercussão no
Ministério das Relações Exteriores do Brasil. A nossa análise se confirma quando verificamos
que no dia em que foi elaborada a resposta (resposta 2) à primeira ocorrência (notas 1 e 2), foi
enviado um telegrama confidencial ao diplomata brasileiro em Lisboa, Vianna de Lima, com
instruções para solicitar ao governo de Portugal a remoção de Carlos Eugênio Corrêa da Silva
do Brasil, pois esse estaria se envolvendo abertamente na política147.
A resposta aconteceu no dia 10 de Novembro de 1893 (resposta 2). Por considerarmos
esse documento essencial para compreender os motivos que causaram a remoção do Conde de
Paço D’Arcos de suas funções no Brasil, resolvemos transcrever a maior parte no corpo do
texto.
Não posso occultar ao Snr. Ministro a estranheza que causou-me a celeridade que reclama na solução deste assumpto, nas circunstâncias atuais. Ao Ministério a meu cargo cumpria, como o fez, pedir esclarecimento às autoridades competentes. Se para o senhor Ministro a representação do Comandante da corveta Mindello e a parte de um dos seus oficiais sobre o ocorrido são provas suficientes, não eram dispensáveis para o governo do Brasil as informações das suas autoridades que lhe merecem plena confiança. Dahi a demora, que considero justificável.
Passo agora a expor ao senhor ministro o que consta das partes oficiais. O Comandante que estava a serviço no litoral da Gamboa no dia 1 do corrente, fez fogo sobre a lancha que se trata, por julga-la pertencer aos revoltosos, não só pela distancia em que a mesma se achava, já porque, sendo bastante escuro, não pode divulgar todas as cores da bandeira portuguesa, parecendo-lhe pela cor branca, ser o distintivo da esquadra revoltosa. Além disso a lancha muito se assemelha a de um nome “Gloria” em poder da mesma esquadra, e é pintada com esta das cores branca e preta. Acresce que a referida lancha da corveta Midello não atendeu à intimação que lhe foi feita, pelo que o Comandante já mencionado, receiando uma agressão, mandou fazer fogo duas vezes para o ar, como meio mais seguro de afasta-la da terra. * Mas não houve ofensa à bandeira portuguesa, e, para prova-lo, cabe-me ponderar ao senhor Ministro que o dito Comandante só teve conhecimento que a lancha era portuguesa, depois da comunicação deste Ministério. Tenho a honra(...) Cassiano do Nascimento. * Peço permissão para retificar a parte da nota do senhor Conde que se refere a reparação por mim prometida. Em conferência assegurei que o governo do Brasil a faria completa no caso de [julgar] convencido que se dera um desacato 148.
A relação entre o Conde de Paço D’Arcos e o Ministério das Relações Exteriores do
Brasil estava, portanto, tensa. O diplomata, sempre fiel aos preceitos de defesa da ordem e
hierarquia, reclamou com veemência por notas de protesto (notas 1, 2, 3 e 4). Ele estava no 146 Idem. p. 322. [despacho de 09.11.1893] (grifos nosso) 147 Ver Anexo 1. 148 Arquivo Histórico do Itamaraty – RJ – Estante 288/ Prateleira 04/ Maço 08 – 10.11. 1893 (grifos nosso)
145
seu direito incontestável de exigir reparações diplomáticas aos episódios que desonraram a
Marinha portuguesa. Porém, ele não soube dimensionar corretamente a gravidade do
momento enfrentado pelo governo brasileiro. O perigo eminente de um bombardeio ou
invasão pelos revoltosos consumiam as energias governamentais no sentido de evitar essas
contingências. Dessa forma, as suas notas de protesto não foram bem recebidas no transcorrer
de uma situação delicada. Contudo, o diplomata português permaneceu irredutível em suas
exigências de reparações.
Depois de receber essa nota do governo brasileiro (resposta 2), o Conde de Paço
D’Arcos persistiu em seu intento. No dia 11 ele comunicou ao Comandante Augusto de
Castilho a resolução que o governo havia conferido ao primeiro caso (nota 1 e 2). O seu
comentário é de que “não occulto a V. Ex.ª que esta resposta não me satisfaz. Sem negar o
facto em absoluto, desculpa-se com a escuridão e com terem sido as descargas da fusilaria
feitas para o ar!”. A sua idéia era esperar as respostas do governo sobre os outros dois
conflitos (notas 3 e 4) para depois se pronunciar novamente. O representante português estava
tão resoluto em enfrentar essa crise diplomática que confessava à Castilhos que “veremos se,
como é de se esperar, o nosso Governo entende dar-me algumas instrucções; mas quer as
tenha, quer não, eu não abandono esta questão, que considero de dignidade nacional” 149.
As instruções do governo de Portugal vieram por telegrama às 16h de 16 de
Novembro de 1893. Dizia que “convem na anormal situação desse paiz defender interesses
nossos súbditos evitando quanto possível incidentes difficeis liquidar-se. (a) Hintze
Ribeiro”150.
Para Amado Cervo, essa ordem expedida pelo governo português deixava dúvidas
sobre a atitude a ser tomada frente às dificuldades 151. A opinião de Eduardo Cândido
Cordeiro Gonçalves é de que esse telegrama era um “aviso” aos protestos enérgicos que o
Conde de Paço D’Arcos vinha fazendo ao governo brasileiro 152. No ponto de vista de Sérgio
Corrêa da Costa, o telegrama de Hintze Hibeiro pegou o diplomata “desprevenido” 153.
Em nosso ponto de vista, as instruções do governo português são claras. O Brasil
atravessava um momento político atípico. Dessa forma, não era o momento de criar incidentes
diplomáticos que fossem difíceis de solucionar154. O principal objetivo naquele momento era
149 SILVA, 1974. op. cit. p. 323. [despacho de 11.11.1893] 150 Idem. p. 328. [despacho de 17.11.1893] 151 CERVO; MAGALHÃES, 2000. op. cit. p. 218. 152 GONÇALVES, 1995. op. cit. p. 148. 153 COSTA, 2001. op. cit. p. 240. 154 O filho do Conde de Paço D’Arcos, o Comandante Henrique Corrêa da Silva, autor do prefácio do livro que contém a documentação analisada nessa dissertação, salientou um episódio ocorrido no dia 8 de Setembro, que
146
garantir os interesses dos súditos portugueses que residiam naquela Capital Federal. Contudo,
para um individuo defensor da ordem social e da hierarquia militar, as reparações
diplomáticas eram primordiais e não poderiam ser relevadas ou esquecidas.
Convém lembrar outro ponto importante. Esse telegrama foi expedido no transcorrer
do dia 16 de Novembro, e chegou às mãos do Conde de Paço D’Arcos por volta das 16h
(telegrama 1). De acordo com o documento de Vianna Lima, o Ministro dos Negócios
Estrangeiros de Portugal passou em sua casa por volta das 18h do dia 16 de Novembro,
somente então, Hintze Ribeiro ficou ciente que o seu diplomata no Rio de Janeiro estava “se
envolvendo na política nacional”. Ainda segundo o mesmo documento, só no dia 17 que
Hintze Ribeiro enviou ordens (telegrama 2) para o retorno de Carlos Eugênio Corrêa da Silva
para Portugal 155.
Assim, é necessário contextualizar o telegrama em que Hintze Ribeiro instruiu o seu
diplomata sobre qual procedimento adotar perante as queixas diplomáticas (telegrama 1). Ou
seja, quando foi expedido esse telegrama, o Ministro não imaginou que duas horas mais tarde
seria solicitada a remoção daquele diplomata do Rio de Janeiro. Portanto, pode-se inferir que
as instruções eram no sentido de pacificar as relações entre diplomata e governo.
Essa contextualização reforça nosso argumento de que o Conde de Paço D’Arcos não
soube dimensionar corretamente a situação política brasileira. O Ministro dos Negócios
Estrangeiros, um experiente político, considerou que naquele momento o ideal era não criar
incidentes difíceis de solucionar. Dessa forma, parece-nos que as defesas da ordem e da
hierarquia militar, que sempre pautaram a leitura política desse diplomata, acabaram por
atrapalhar o seu discernimento político.
O documento que foi enviado para Portugal no dia 17 de Novembro – o Conde de
Paço D’Arcos recebeu o telegrama (telegrama 2) no dia 17 à noite – demonstra que até o
último momento, ele permaneceu irredutível. Esse diplomata discordava da opinião do seu
foi assim informando para Lisboa pelo seu pai: “Hontem força armada de terra fez fogo sobre escaler guerra italiano transportar seu cônsul, matar um marinheiro. Vice-Presidente da Republica deu satisfação faz enterro pomposo”. (SILVA, 1974. op. cit. p. 264. [despacho de 08.09.1893]) Para o Comandante Henrique, “o governo brasileiro tendo adotado com a grande nação italiana procedimento diametralmente oposto àquele que, de colaboração com o Ministério dos Estrangeiros de Lisboa, adoptou com a pequena mas não menos nobre pátria portuguesa, não ganhou louro algum para o seu brasão” (SILVA, 1974. op. cit. p. LVII). Contudo, note-se que todos os casos de pedidos de reparação diplomática enviados pelo Conde de Paço D’Arcos foram baseados em: insultos, ofensas, dignidade, desafronta, (des) respeito, (in) delicadeza, etc. Todos esses argumentos são válidos para se exigir reparação diplomática. Entretanto, desde o dia 11 de Setembro passou a vigorar Estado de Sítio, que suspendeu todas as garantias constitucionais, salientando a gravidade da situação política interna. Isso explica a pronta reparação diplomática no caso italiano, ocorrido no dia 8 de Setembro, e a lentidão nos casos envolvendo Portugal. 155 Ver Anexo 1.
147
superior que pensava que a situação política brasileira era anormal (telegrama 1). Para Carlos
Eugênio,
Os casos que agora se deram não podem ser considerados simplesmente como acontecimentos fortuitos deste estado anormal de cousas. São antes revelações manifestas da má vontade de certas classes da população brasileira contra os portugueses, quer por força do espírito de nativismo (como aqui se diz) quer por inveja a homens que prosperam pelo seu incessante labor tão contrário à índole e gênio deste povo, quer mesmo por ódio aos antigos dominadores; e tudo isso exacerbado nestas ultimas épocas pela propaganda de rivalidades e de raiva levantada pela imprensa demagogica – em que infelizmente predomina o elemente renegado, para nós o mais perigoso e prejudicial – vociferando contra tudo e todos do Portugal monarchico 156.
156 SILVA, 1974. op. cit. p. 328-329. [despacho de 17.11.1893] (grifos no original)
148
CONCLUSÃO
A documentação produzida pelo Conde de Paço D’Arcos em sua Missão Diplomática
no Brasil é uma excelente fonte para o estudo do período de consolidação do regime
republicano. Esse diplomata chegou ao Rio de Janeiro no dia 2 de Junho de 1891, e exerceu
suas funções como Ministro Plenipotenciário de Portugal até o dia 20 de Novembro de 1893.
A sua Missão não era fácil de ser cumprida. Esse diplomata estava representando a
mesma casa dinástica do Imperador que havia sido banido do Brasil quando fora proclamada
a República. Esse posto deve ser encarado como “cargo de confiança” para o governo de
Portugal. É natural (ou deveria ser) que o historiador desse período questionasse sobre quem
havia sido o enviado português. Entretanto, essa pergunta nunca foi respondida de forma
satisfatória nem pela historiografia brasileira, nem pela portuguesa.
Sérgio Corrêa da Costa foi o único que tentou responder essa pergunta, mesmo que de
uma forma “descontraída”, como sugere o título de seu livro 1. De acordo com ele, a Missão
do Conde de Paço D’arcos foi uma “missão relâmpago de um aristocrata”. Os únicos
elementos utilizados por Costa para caracterizar esse indivíduo foram: a origem “liberal” da
sua família; a sua profissão militar; os governos ultramarinos em Timor e Macau,
Moçambique e Índia; e o governo civil de Lisboa. Contudo, essas informações foram somente
citadas 2. Em nenhum momento foi respondido de que forma essas características poderiam
influenciar na visão de mundo desse diplomata, sobretudo, na percepção política da República
brasileira.
Dessa forma, no transcorrer desta dissertação, defendemos que a leitura política do
Conde de Paço D’Arcos deve ser problematizada. Muitas de suas observações sobre política,
sociedade, conflitos ou grupos políticos, devem ser analisadas a partir de um cuidado
metodológico fundamental à pesquisa histórica. Trata-se de levar em consideração a
historicidade do indivíduo 3.
1 Eduardo Cândido Cordeiro Gonçalves e Amado Cervo trabalharam com a documentação do Conde de Paço D’Arcos, porém, nenhum buscou explicar a leitura política desse indivíduo. Ver: GONÇALVES, 1995. op. cit; CERVO;MAGALHÃES, 2000. op. cit. 2 COSTA, 2001. op. cit. p. 205. 3 Nós já explicitamos essa preocupação sobre a historicidade da documentação do Conde de Paço D’Arcos em: SANTOS JR., João Júlio Gomes dos. “A historicidade da produção documental do diplomata português o Conde de Paço D’Arcos entre os anos de 1891-1893”. In: Anais do IX Encontro Estadual de História da ANPUH/RS. Porto Alegre: ANPUH/RS, 2008. Disponível em: http://www.eeh2008.anpuh-rs.org.br/resources/content/anais/1212346482_ARQUIVO_Artigoeventoanpuhrsjulho08-versaofinal..pdf
149
Portanto, antes de realizar uma leitura nessa documentação e se utilizar
instrumentalmente dela, a tarefa do historiador é buscar contextualizar esse indivíduo para
compreender sua visão de mundo. Esse exercício metodológico ajuda a perceber que muitas
vezes o que o sujeito relatou ou percebeu, é condicionado por tudo àquilo que lhe foi ensinado
ou vivido.
A respeito desse exercício metodológico em relação ao indivíduo, Marc Bloch já
alertava que “(...) o seu testemunho, como tantos outros, informa não sobre o que ele viu na
realidade, mas sobre o que, em sua época, era estimado natural ver” 4. Entretanto, nos parece que a
tradição dos Annales, tão preocupada em se afastar de uma história tradicional, praticamente excluiu a
possibilidade de se fazer um estudo sobre um diplomata, mesmo num viés biográfico. Nesse sentido,
pensamos que o estudo dessa documentação diplomática, de certa forma, ajuda a reabilitar o seu status
de fonte para história.
A partir dessa premissa, no primeiro capítulo, contextualizamos Carlos Eugênio
Corrêa da Silva no processo histórico de afirmação do liberalismo em Portugal. Relacionar a
trajetória do indivíduo com a conjuntura histórica portuguesa nos auxiliou a identificar
elementos explicativos de sua leitura política. Em nossa opinião existem dois elementos
essenciais para compreensão da visão de mundo desse personagem, e ambos estão
relacionados com suas experiências passadas vinculados à trajetória político-profissional.
O primeiro deles é sua formação militar e sua carreira dentro da Marinha portuguesa.
O fato de ter estudado em instituições de elite como a Escola Politécnica e a Escola Naval, fez
com que esse sujeito fosse treinado para respeitar a ordem social, sobretudo a militar.
Portanto, em suas viagens marítimas, nas quais foi responsável por diversas embarcações, o
respeito pela hierarquia militar se tornou primordial. Da mesma forma, a defesa da ordem se
tornou essencial em suas experiências administrativas no império colonial português.
Evidentemente, a sua formação se deu em um determinado espaço e tempo. Isso faz
com que o contexto em que se deu sua formação seja relevante para entendermos o segundo
elemento explicativo de sua visão de mundo, a opção política pelo Partido Regenerador de
Portugal. Dessa forma, no capítulo primeiro, além de contextualizar a formação profissional
desse sujeito, analisamos as disputas políticas de Portugal desde a Revolução Liberal de 1820
para dimensionar o significado dessa opção pelos Regeneradores.
Em um primeiro momento explicitamos o embate entre pedristas e miguelistas, que
podem ser vistos como o confronto entre os projetos políticos dos liberais e dos absolutistas,
respectivamente. Em seguida, com a vitória dos primeiros, buscamos historiar as querelas
4 BLOCH, Marc. Apologia da História: ou o oficio de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 107.
150
existentes dentro desse grupo, mais especificamente entre os moderados cartistas e os radicais
setembristas. Após um longo período marcado por convulsões e até mesmo guerra civil, essas
diferenças entre os grupos “liberais” terminaram em 1851, com a ascensão do Marechal
Saldanha ao poder, naquilo que ficou conhecido na historiografia portuguesa como Revolução
Regeneradora de 1851.
Essa Regeneração reduziu os conflitos entre facções políticas, os restringindo aos
períodos eleitorais. Dessa forma, iniciou uma fase de estabilidade política que sedimentou a
ordem social em Portugal. Nesse contexto, Carlos Eugênio concluiu sua formação
profissional. Portanto, a afirmação da disciplina social foi um atrativo para que esse indivíduo
optasse pelo Partido Regenerador. Esse partido representava os valores da ordem e da
disciplina social, exatamente os mesmos que esse indivíduo aprendeu a respeitar em sua
formação profissional.
No transcorrer da política partidária portuguesa na segunda metade do século XIX,
progressivamente, o Partido Regenerador passou a ser o partido mais conservador de
Portugal. A oposição “moderada” atuava pelo Partido Progressista, e a “radical”, aos poucos,
compunham as fileiras do Partido Republicano Português. Dessa forma, na década de 1890,
ser um político vinculado aos Regeneradores representava ser membro da agremiação mais
conservadora do liberalismo português. Carlos Eugênio Corrêa da Silva, que nesse momento
já havia sido feito Visconde de Paço D’Arcos, assumiu mandatos parlamentares pelos
Regeneradores na Câmara dos Deputados, na Câmara dos Pares, e chegou a ser Governador
Geral de Lisboa.
Assim, quando o Conde de Paço D’Arcos veio representar Portugal no Brasil como
Ministro Plenipotenciário, ele trouxe consigo uma visão de mundo particular. Em nossa
opinião, para compreendermos o conservadorismo de suas análises políticas é essencial
termos claro que os argumentos que preponderaram em sua análise foram: a defesa da ordem
social e da hierarquia militar.
A nossa leitura é referenda no transcorrer dos capítulos seguintes em que realizamos
uma análise da documentação produzida por esse diplomata no transcorrer de sua Missão no
Brasil, e dialogamos com a historiografia do período. No capítulo segundo, portanto,
destacamos de que forma esse diplomata percebeu as reviravoltas políticas nos estados,
sobretudo após o Golpe de Estado de Deodoro da Fonseca. O panorama descrito em seus
relatórios ressaltam a desordem social em que o Brasil atravessava, sobretudo após 3 de
Novembro e o Contra-Golpe de 23 de Novembro de 1891. O cenário de “caos” fazia com que
o Conde de Paço D’Arcos declarasse que “Tudo isto que se passa seria por demais caricato se
151
não fosse terrível! O Brazil é grande e novo, salvar-se-ha! Mas parecem todos apostados em o
perder!” 5.
Em um segundo momento, destacamos a sua defesa da ordem no meio militar. O fato
do próprio Conde de Paço D’Arcos ter sido militar de carreira, fez com que em diversos
momentos ele relatasse episódios de quebra da hierarquia, manifestações políticas,
conspirações e insurreições. Todas essas manifestações eram acompanhadas de perto por ele,
que declarava abertamente seu desagrado com a participação militar na política.
É sabido que a República, nascida inesperadamente duma sedição de quartéis, que um governo de força, ou menos filosofia (grifo original) por parte do império, teria facilmente esmagado no momento, foi devida à traição de generais, à ambição de oficiais subalternos, à propaganda feita entre os cadetes das escolas pelos seus lentes de idéias avançadas, como Benjamim Constant, e enfim à influência dos militares metidos na política 6.
No final do capítulo segundo, destacamos a avaliação que Carlos Eugênio Corrêa da
Silva fez de dois grupos políticos daquele período. Os “jacobinos” foram vistos como um
grupo de radicais, exaltados, que identificavam nos emigrantes portugueses todos os males da
República. Esses “anarquistas”, como o Conde de Paço D’Arcos os definia, eram vistos como
os artífices da desordem social. Do outro lado estavam os monarquistas. Esse grupo político
era acompanhado com atenção justamente por defender a restauração monárquica da mesma
casa dinástica da qual ele era o representante. A monarquia era associada à ordem social
interna desfrutada, sobretudo, no segundo reinado. Dessa forma, por mais que o diplomata
reconhecesse os limites de ação desse grupo, os boatos de restauração eram relatados à
Lisboa.
Nesse clima de instabilidade política em âmbito nacional que se inserem as duas
grandes insurreições que dificultaram a sedimentação da República. O capítulo terceiro foi
dedicado às apreciações do Conde de Paço D’Arcos sobre esses dois levantes. Em um
primeiro momento procuramos mapear as disputas políticas partidárias no Rio Grande do Sul
desde o início da República. Essa contextualização se fez necessária para enfatizar a
originalidade da interpretação política desse diplomata sobre a Revolução Federalista.
Para o Ministro Plenipotenciário de Portugal, o Golpe de Estado de Deodoro, que
fechou o Congresso, foi um atentado contra a ordem. No Rio Grande do Sul, Júlio de
Castilhos apoiou o Marechal usando o pretexto de manutenção da ordem. Contudo, quando o
Golpe de Estado falhou e Floriano Peixoto assumiu a Presidência da República, para esse
diplomata, a ordem se restabeleceu no Brasil e no Rio Grande do Sul, uma vez que Júlio de 5 SILVA, 1974. op. cit. p. 140 [despacho de 14.03.1892] 6 Idem. p. 217. [despacho de 17.06.1893] (grifos nosso)
152
Castilhos foi deposto do cargo de Governador. Entretanto, em 17 de Junho de 1892, o líder do
PRR retornou ao governo estadual a partir de um golpe que contou com o apoio de Floriano.
A leitura política do Conde de Paço D’Arcos sobre esse retorno de Júlio de Castilhos
foi aquilo que chamamos de interpretação original. Para esse diplomata, o grupo político
deposto por Júlio de Castilhos representava a ordem porque foi o grupo que defendeu o
Congresso Nacional contra o a ditadura de Deodoro. Seguindo esse raciocínio, Júlio de
Castilhos e o PRR, que reassumiram o governo do estado, representavam a vitória da
desordem, uma vez que eram os mesmo que apoiaram a ditadura de Deodoro. O nosso ponto
de vista, de ser essa interpretação “original”, sustenta-se uma vez que o diplomata português
não alterou seu ponto de vista até o último momento em que esteve no Brasil.
Na segunda parte, analisamos as percepções políticas e a participação do Conde de
Paço D’Arcos na Revolta da Armada. Esse diplomata acompanhou toda “gestação” da
insurreição naval no Rio de Janeiro, e constantemente alertou Lisboa sobre a possibilidade de
estourar um grande movimento de contestação ao governo de Floriano Peixoto, à semelhança
daquele ocorrido contra Deodoro da Fonseca. Da mesma forma que ele representava Portugal
no Brasil, outros diplomatas representavam os seus respectivos governos7.
No transcorrer da revolta as atuações dos diplomatas e dos comandantes estrangeiros
foram sempre conjunta 8. Foi a partir dessa ação coletiva estrangeira que se estabeleceu o
Acordo de 5 de Outubro de 1893, que definiu a cidade do Rio de Janeiro como “Cidade
Aberta” impedindo os rebeldes de bombardearem a Capital Federal. Essa intervenção
estrangeira na Revolta da Armada foi justificada pela necessidade humanitária de se impedir
um ataque que poderia trazer conseqüências devastadoras. Esse Acordo estabeleceu regras,
tanto para os revoltosos quanto para o governo, para evitar a desordem social que poderia se
institucionalizar no caso de uma ofensiva dos rebeldes. Nesse sentido, a diplomacia se
mobilizou para exigir de ambas as partes do conflito o compromisso de não hostilizar o
adversário “além do permitido”.
Nesse cenário de anormalidade política ocorreram alguns episódios entre militares
brasileiros e portugueses. As tropas governistas que guarneciam o litoral da cidade sitiada
pela frota naval insurrecionada, em algumas ocasiões, entraram em choque com marinheiros,
7 De acordo com Sérgio Corrêa da Costa, “nominalmente, o total de missões diplomáticas, em 1893, era 19, sendo oito da América (EUA, Argentina, Bolívia, Chile, México, Paraguai, Peru e Uruguai) e 11 da Europa (Império Alemão, Áustria-Hungria, Bélgica, França, Grã-Bretanha, Espanha, Itália, Portugal, Rússia, Santa Sé e Suécia-Noruega). Entretanto, na prática, o número era menor. A da Suécia-Noruega tinha caráter de missão especial. Em 1892, por exemplo, não havia nenhum representante da Bolívia, do Paraguai, nem da Rússia. Em 1894, nenhum da Suécia, do México ou do Paraguai”. Ver: COSTA, 2001. op. cit. p. 264. 8 Com exceção do representante da Alemanha, que recebeu ordens para seguir uma diplomacia paralela.
153
oficiais e embarcações portuguesas. Esses acontecimentos variaram em grau de importância
de acordo com os personagens neles envolvidos. Porém, sempre foram de alcance limitado
nessa primeira fase da Revolta da Armada 9.
Entretanto, para o Conde de Paço D’Arcos esses acontecimentos eram inaceitáveis. Na
ótica de um defensor da ordem social e da disciplina militar, era inconcebível aceitar que os
militares portugueses fossem insultados, desrespeitados ou acuados pelas tropas brasileiras.
Nesse sentido, esse diplomata enviou notas de protesto para o governo brasileiro exigindo
reparações diplomáticas para essas ocorrências. Contudo, o momento político em que o
governo brasileiro atravessava, fez com que esses sucessivos ofícios diplomáticos fossem mal
recebidos no Itamaraty. Dessa forma, o governo brasileiro solicitou ao governo de Portugal
que fosse dado outro destino para o Conde de Paço D’Arcos.
Em nosso ponto de vista, analisando as notas de protestos elaboradas por esse
diplomata e as respostas oficiais do governo brasileiro, houve um erro de cálculo político por
parte de Carlos Eugênio Corrêa da Silva. Parece-nos que a sua intransigente defesa da ordem
e da disciplina militar, presentes em toda sua Missão Diplomática, nesse caso, fizeram com
que esse diplomata não considerasse corretamente o estado de anormalidade política do
Brasil. Dessa forma, ele exigiu o que lhe parecia correto e digno para o seu país, no claro
exercício de suas funções. Contudo, tornou-se um inconveniente político para o governo
brasileiro, que enfrentava uma situação de risco para a República e precisava dar resposta aos
ofícios que recebia desse representante diplomático.
A documentação produzida pelo Conde de Paço D’Arcos no transcorrer de sua Missão
Diplomática no Brasil é, portanto, essencial para o estudo do período de consolidação do
regime republicano. Contudo, a leitura política que esse representante de Portugal fez da
política brasileira deve ser contextualizada para compreendermos sua visão de mundo e não
reproduzir suas impressões inconseqüentemente. Metaforicamente se aproxima muito da
Esfinge inquiridora de Édipo. “Decifra-me, ou te devoro!”.
9 Em 13 de Março de 1894 as embarcações portuguesas concederam asilo diplomático a mais de 500 revoltosos da Armada brasileira. Em 13 de Maio, parte desses revoltosos fugiram de dentro das embarcações portuguesas e entraram em território brasileiro, através do Uruguai, aumentando as fileiras federalistas que lutavam contra o governo de Júlio de Castilho, que contava com o apoio do governo federal. A partir desse episódio, o Brasil rompeu as relações diplomáticas com Portugal até o ano seguinte. Sobre esse episódio ver: NABUCO, 1896. op. cit; COSTA, 1945. op. cit; CARONE, 1983. op. cit; GONÇALVES, 1995. op. cit; CERVO;MAGALHÃES, 2000. op. cit; COSTA, 2001. op. cit. Adelar Heinsfeld interpretou esse rompimento diplomático com Portugal como afirmação da política americanista recém adotada pelo governo republicano do Brasil. Ver: HEINSFELD, 2007. op. cit. Sobre a política de americanização do Brasil, ver: SILVEIRA, Helder Gordim da. Joaquim Nabuco e Oliveira Lima: Faces de um Paradigma Ideológico da Americanização nas Relações Internacionais do Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
154
REFERÊNCIAS
Fontes Manuscritas
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ANEXO 11
Legação dos Estados Unidos do Brasil. Lisboa 18 de Novembro de 1893.
Confidencial S. Ex.ª o Snr. Dr. Alexandre Cassiano do Nascimento Ministro de Estado das Relações Exteriores.
Senhor Ministro,
Tenho a honra de participar a V. Ex.ª que no dia 15 de corrente recebi do Snr. Gabriel de Piza um officio confidencial communicando-me o telegrama cifrado que V. Ex.ª lhe dirigira em data de 10 de Novembro, nos seguintes termos: <Diga por escripto Vianna Lima que verbalmente communique Ministro Estrangeiros que Paço d’Arcos envolve-se abertamete política Brasil tornando-se incompatível Presidente. Pede se lhe dê outro destino.> Logo que recebi essa communicação procurei o Snr. Cons.° Hintze Ribeiro, Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, mas não o encontrei na Secretaria, pos celebrando-se n’esse dia o anniversario natalício do Infante D. Manuel S. Ex.ª havia ido ao Cortejo no Paço e depois d’essa cerimônia presidido a um Conselho de Ministros. Dirigi portanto ao Snr. Hintze Ribeiro uma carta particular, perguntando a que horas eu poderia velo no dia seguinte para fazer-lhe uma comunicação de grande urgência. S. Ex.ª teve a amabilidade de responder-me que me procuraria em minha casa às 6 horas da tarde. Assim fez e tendo-lhe eu referido que o Conde de Paço d’Arcos se envolvia abertamente na política brasileira, de modo a trornar-se incompatível com o Ex.° Snr. Vice-Presidente da República, o Snr. Hintza Ribeiro mostrou-se muito surprehendido e magoado. Declarou-me S. Ex.ª que em todos os telegramas, officios e relatórios que recebera do Conde de Paço d’Arcos nunca notara o menos sentimento de hostilidade ou antipathia ao Governo legal, limitando-se a relatar os factos occoridos sem jamais manifestar sympathias pelos rebeldes. S. Ex.ª declarou-me outrosim que desde o principio da insurreição da esquadra dera as mais precisas e terminantes ordens ao Ministro no Rio de Janeiro e ao Comandante da <Mindello> de abster-se rigorosamente de toda e qualquer manifestação de caracter político, e de cingir-se à proteção dos súbditos e das propriedades portuguezas, procedendo sempre de accordo com os commandantes dos navios inglezes, francezes e italianos. Essas instruções, segundo me asseverou o Snr. Ministro, forão varias vezes reiteradas, entre outras por ocasião do boato relativo à partida do príncipe D. Augusto. Finalmente S. Ex.ª disse-me que o pedido que eu lhe fazia, em nome do meu Governo, relativamente a dar-se outro destino ao Conde de Paço d’Arcos, seria antendido, com quanto muito lhe magoasse tomar essa resolução. Declarei a S. Ex.ª que eu estava convencido que a exigência do Exmo. Snr. Vice-Presidente da Republica era fundada em motivos ponderosos. O Snr. Hintze Ribeiro ao despedir-se de mim prometteo dar-me prontamente uma resposta definitiva sobre a resolução d’esse assumpto. De facto honten recebi uma carta de S. Ex.ª pedindo-me que fosse à Secretaria, e ahi me communicou que hontem mesmo havia expedido um telegramma ao Conde de Paço d’Arcos chamando-o a Lisboa. Nessa conformidade tive a honra de dirigir a V. Ex.ª o seguinte telegrama cifrado: <Governo chamou Paço d’Arcos Lisboa>
Saúde e fraternidade. C.A Vianna de Lima.
1 IN: SILVA, 1974. op. cit. p. XIII-XIV.