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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUCSP Antonieta Heyden Megale “Eu sou, eu era, não sou mais”: Relatos de sujeitos fal(t)antes em suas vidas entre línguas MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM São Paulo 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUCSP

Antonieta Heyden Megale

“Eu sou, eu era, não sou mais”: Relatos de sujeitos fal(t)antes

em suas vidas entre línguas

MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM

São Paulo

2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUCSP

Antonieta Heyden Megale

“Eu sou, eu era, não sou mais”: Relatos de sujeitos fal(t)antes em

suas vidas entre línguas

São Paulo 2012

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo sob a orientação da Profa. Dra. Maria Antonieta Alba Celani.

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BANCA EXAMINADORA

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FICHA CATALOGRÁFICA

MEGALE, Antonieta Heyden. “Eu sou, eu era, não sou mais”: Relatos de sujeitos fal(t)antes em suas vidas entre línguas. São Paulo: 187 p., 2012. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Área de Concentração: Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, Bilinguismo, Identidade, Análise de Discurso de Linha Francesa, Representações Sociais. Orientadora: Professora Doutora Maria Antonieta Alba Celani.

Autorizo, para fins acadêmicos ou científicos, a reprodução total ou

parcial desta dissertação, por processos fotocopiadores ou eletrônicos,

desde que citada a fonte.

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Hoc est corpus meum

Este é o meu corpo. Minhas substâncias: fantasias, humor, poesia,

estórias, fragmentos de conhecimento, imagens, cenas e

memórias... Não desejo que você simplesmente entenda o que

escrevo. Entender é um ato racional. O que eu desejo é que o meu

texto seja comido antropofagicamente.1

1 ALVES, Rubem. Variações sobre o prazer. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011. p.40.

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APRECIAMENTO EM QUATRO ATOS

Acredito que amor não se deva agradecer, mas sim apreciar. Por todo amor recebido que se materializou em gestos, quero expressar tudo que apreciei.

DE ANTES DO COMEÇO

Cheguei ao fim. Já é madrugada. Sempre idealizei terminar assuntos

importantes vendo o sol nascer: ideia romântica que sugere o início de uma

nova fase. E aqui estou, esperando o momento mágico que um dia idealizei.

Janela aberta, vento no rosto, o barulho desta cidade que também não dorme.

É... Não há mágica, ou talvez, todo este percurso seja repleto de mágica, o que

faz com que agora eu não veja a magia esperada em ação. Porém, se por um

lado, falta a mágica idealizada, por outro, não me faltam lembranças. E

lembrei-me de minhas primeiras idas à PUC e do desejo enorme de fazer e

experimentar coisas novas que, talvez, só fossem possíveis acontecer desta

forma. Era final de 2009. Tudo era uma grande imensidão de desconhecido e

demorei a entender o funcionamento daquela nova história que começava. Meu

primeiro contato com a PUC foi por meio de um convite do professor Marcello

Marcelino, que além de ter muita importância nesta história, com sua

generosidade enorme, proporcionou-me novas e ricas possibilidades que em

muito ampliaram minha visão de mundo. Marcello me convidou a fazer parte do

Grupo de Estudos de Educação Bilíngue da PUC (GEEB) e foi nesse grupo

que esta história teve início. Foi lá também que conheci uma pessoa

fundamental em minha trajetória, a professora Fernanda Liberali, que, com sua

generosidade imensa, proporcionou-me inúmeras oportunidades ao longo

destes dois anos e, com isso, fez-me crer que eu era melhor do que acreditava,

e acreditando ser melhor do que era, algumas vezes o fui. Pouquíssimas

pessoas no mundo têm esse poder de nos tornar melhor. E foi assim que

cheguei à PUC, como chegam as pessoas de sorte: cercada de duas pessoas

marcantes e inesquecíveis neste processo. Dali em diante, seriam pessoas que

guardaria com carinho no coração.

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DO COMEÇO

Oficialmente esta história teve seu início no ano de 2010 com o esperado

encontro com minha orientadora – Antonieta Celani. Estranho encontrar

alguém que a gente já ouviu falar tanto... Parece até que a gente já conhece a

pessoa, embora essa pessoa não tenha a menor ideia de quem somos –

relação estranha essa... Relação que foi sendo construída, entre silêncios,

sorrisos e dúvidas. Dentre as qualidades que aprecio, uma das principais e rara

é a capacidade que poucas pessoas têm de acreditar uma nas outras e minha

orientadora-xará nunca hesitou em acreditar em mim (ou pelo menos nunca

deu indícios de qualquer descrença). Primeiro, quis mudar meu tema de

pesquisa. Depois, a escola na qual a pesquisa aconteceria não mais permitiu

que isso ocorresse e, assim, tive de mudar novamente. E então, encantada

com tudo que aprendia, quis transformar o pouco que tinha. Antonieta sorria,

procurava entender ou apenas acreditava... Essa lição eu levo comigo, essa

capacidade de acreditar na capacidade do outro. Nunca vou esquecer os

momentos compartilhados com alguém tão importante... Lembro-me dos

gestos de encorajamento e principalmente da generosidade com a qual fui

tratada nestes dois anos. Minha querida orientadora fez com que este percurso

fosse cheio de descobertas agradáveis. Minha gratidão vai muito além dos

limites desta pesquisa.

Ainda em 2010, conheci o restante do grupo: Rogério, Cynthia, Priscila,

Francisco, Eliane, Luciana, Luzia, Neiva, Paulo e Paula. Colegas de mestrado

e de pesquisa que começaram a fazer parte do meu cotidiano na PUC. Com

cada um deles cresci e aprendi. E sorri tanto com eles. Na PUC, ainda, conheci

duas amigas que serão permanentemente importantes para minha vida: Eva e

Camila. Amizades construídas no mestrado que levarei para sempre: as

viagens, a cumplicidade, as dúvidas... Minha gratidão pelo companheirismo

dessas amigas é imensa. Também fundamentais neste caminho, foram os

professores: Mara, Toni, Maximina, Fernanda e Ciampa – pessoas que

ampliaram minha visão de mundo. Ainda no processo de pesquisa, conheci

muitas pessoas que me abriram portas para conseguir aplicar os questionários

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necessários. Aprecio a generosidade de todos. Como também aprecio a

disponibilidade de todos os participantes desta pesquisa.

DO MEIO DE TUDO

O ano de 2011 foi um ano inesquecível, por tudo o que vivi. E duas pessoas

inicialmente: Marcello e Fernanda foram novamente fundamentais nesta

história. Marcello deu-me a oportunidade ímpar de ocupar um lugar que já foi

dele na coordenação de um colégio – confiança essa que não sei se, algum

dia, conseguirei retribuir. Foi, neste colégio, que várias questões identitárias

afloraram e muitas das reflexões deste trabalho são frutos desta vivência.

Nesse ano, também, motivada pela professora Fernanda, participei de

congressos nacionais e internacionais, escrevi artigos e aprendi que não basta

fazer mestrado, tem de viver o mestrado. Conheci também uma amiga que

levarei para sempre: Selma Moura, doutoranda da UNICAMP. Amiga de

congressos, confissões e devaneios. Além disso, não poderia aqui, de maneira

alguma, deixar de expressar textualmente o quanto apreciei a colaboração

efetiva em meu exame de qualificação e a disponibilidade em acompanhar meu

trabalho dos professores Orlando Vian Junior e Mara Sofia Zanotto.

DO INÍCIO DO FIM

É, neste momento que o sol começa a nascer, que me lembro

fundamentalmente de minha família e de meus amigos mais próximos. Todos

eles. O que seria de mim sem a presença e influência deles em minha vida… A

generosidade, o amor, a troca, a crença, tudo isso junto, dão-me as alegrias

maiores deste mundo. De muitas formas, eles estão vivos neste trabalho.

Aprecio tudo que meus pais me proporcionaram: ensinamentos, vivências e

oportunidades diversas. E meus irmãos, presenças constantes em toda a

minha vida, companheiros na diversão e nos desentendimentos. Alexandre,

meu amigo de toda uma vida, não há como agradecer seu incentivo, sua leitura

cuidadosa de meu trabalho, sua amizade sem fim. Rosana, que tão

prontamente se voluntariou à leitura desta dissertação. Meu marido, lindo, que

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me acompanha e, mesmo sem entender, aceita minhas ausências, meu

silêncio, minha busca...

Aqui começa o início deste fim.

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“Eu sou, eu era, não sou mais”: Relatos de sujeitos fal(t)antes em suas

vidas entre línguas

Antonieta Heyden Megale

RESUMO

No Brasil, são faladas mais de 200 línguas. Somando-se a isso, não se pode

ignorar os impactos da globalização que, como argumentam McGrew e Held

(1992), conectam comunidades em novas combinações de espaço-tempo,

tornando o mundo mais interconectado. Outro fator desencadeante do

interesse por línguas estrangeiras no Brasil foi a ascensão econômica da

classe C, o que representa mais de 90 milhões de brasileiros com acesso à

educação e ao mercado de trabalho. Com isso, a procura por escolas de

idiomas aumentou consideravelmente, assim como o número de brasileiros que

tem a possibilidade de estudar no exterior ou que opta por colégios

internacionais ou bilíngues. Frente a estes dados, o objetivo deste trabalho é o

de estudar o funcionamento da linguagem na constituição da subjetividade dos

sujeitos, apontando deslocamentos identitários nos discursos de falantes de

inglês e português. Para tanto, analiso recortes discursivos selecionados entre

as respostas a um questionário de indivíduos bilíngues – simultâneos e

sequenciais, a fim de mostrar a irrupção de discursos em torno da identidade.

Proponho uma interpretação discursiva destes recortes apoiada teoricamente

na Análise de Discurso de linha francesa, com contribuições teóricas da

psicanálise, de autores e de teóricos da identidade como Hall (2005), Norton

(1995), Bauman (2005) e Ciampa (1984; 1990; 2004). Dentro deste quadro

teórico, adoto a noção de sujeito como cindido, heterogêneo, atravessado pelo

inconsciente e constituído no e pelo olhar do outro (LACAN, 1966/1998).

Assim, a identidade é aqui entendida (i) como tendo sua existência no

imaginário do sujeito, que, de acordo com Coracini (2007), constrói-se nos e

pelos discursos imbricados que o constituem, o discurso da ciência, do

colonizado e da mídia e (ii) como um processo de metamorfose a partir de uma

identidade que é sempre pressuposta (CIAMPA, 1984). A análise dos dados

sugere que há diversas maneiras de se viver entre línguas, mas que é

impossível negar que saber mais de uma língua imprime, como afirma Coracini

(2007), marcas indeléveis à subjetividade que se (re)constrói a todo o

momento.

Palavras-chave: bilinguismo, sujeito bilíngue, identidade, análise de discurso.

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“I am, I was, I am not anymore”: Living in inter-languages spaces

Antonieta Heyden Megale

ABSTRACT

There are over 200 languages spoken in Brazil. Moreover, one cannot ignore

the impact of globalization. As McGrew and Held (1992) argue, it connects

communities in new combinations of time-space, making the world more

interconnected. Another triggering factor of the interest in foreign languages in

Brazil was the economic rise of low income classes, which represent more than

90 million Brazilians with access to education and the labor market. Thus, the

search for language schools has increased considerably, as well as the number

of Brazilians who have the possibility to study abroad or who opt for bilingual or

international schools. Faced with this data, the objective of this research is to

study the functioning of language in the constitution of the subjectivity of

individuals, pointing to identity shifts in the discourse of speakers of English and

Portuguese. The corpus was gathered from questionnaires answered by

simultaneous and sequential bilingual individuals. As to the analysis of the

corpus a transdiciplinary approach is adopted. It includes concepts from French

discourse analysis with theoretical contributions from psychoanalysis, as well as

authors who study identity such as Hall (2005), Norton (1995), Bauman (2005)

and Ciampa (1984, 1990, 2004). Thus, identity is here understood (i) as having

its existence in the imagination of the subject which according to Coracini

(2007) is built through and by overlapped discourses which constitute the

subject; the discourse of science, of the colonized and of the media and (ii ) as

a process of metamorphosis from an identity that is always assumed (Ciampa,

1984). The analysis of data suggests that there are different ways of living

between languages, but it is impossible to deny that speaking more than one

language prints, as Coracini (2007) states, indelible marks on the subjects’

identities which are (re) built all the time.

Keywords: bilingualism, bilingual subject, identity, discourse analysis.

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SUMÁRIO

NOTAS DE UM PERCURSO PESSOAL

PRIMEIRA PARTE – DO ENREDO TEÓRICO

O PERCURSO ESCOLHIDO

1.1 Análise de Discurso de Linha Francesa

1.1.1 Discurso

1.1.2 Ideologia

1.1.3 Sujeito discursivo

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

2.1 Representações sociais

2.2 Ancoragem

2.3 Objetivação

2.4 Núcleo central e sistema periférico

2.5 Representações sociais, ideologia e AD francesa: breve diálogo

IDENTIDADES

3.1 O conceito de identidade empregado

3.2 Estigma e preconceito

VIDA ENTRE LÍNGUAS

4.1 O que é esta língua dita materna?

4.2 O que é esta língua dita estrangeira?

4.3 Algumas considerações sobre a noção de bilinguismo e bilingualidade

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27

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41

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SEGUNDA PARTE – DO QUE SE DESCOBRIU NO CAMINHO

TRAJETÓRIA

1.1 A LA e os princípios filosóficos que norteiam esta pesquisa

1.2 A análise de discurso de linha francesa

1.3 A constituição do corpus e os instrumentos de coleta

1.4 Os participantes da pesquisa

1.5 Mo(vi)mento de análise

ENTRE DITOS E NÃO DITOS

2.1 Entre o desejo da completude e a falta do sujeito

2.2 Entre o mito, o possível e o desejo do outro

2.3 Entre as diversas concepções do eu

2.3.1 Da importância

2.3.2 De quem sou

2.3.3 Das transformações

E, POR FIM, UM RECOMEÇO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CRÉDITOS

APÊNDICE

90

93

95

100

101

104

110

114 120

128

145

145

152

161

165

174

183

185

45

47

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LISTA DE OBRAS DE ARTE

Com exceção da obra 1, Who am I? que é de autoria da fotógrafa Mushy Pea,

todas as demais obras são de autoria do artista holandês Maurits Cornelis

Escher.

LISTA DE QUADROS

Obra 1:

Obra 2:

Obra 3:

Obra 4:

Obra 5:

Obra 6:

Obra 7:

Obra 8:

Obra 9, 10 e 11:

Obra 12:

Who am I?

Hand with Reflecting Sphere

Stair Cases

Three Worlds

Bond of Union

Tower of Babel

Relativity

Balcony

Metamorphosis II

Rind

1

18

33

46

58

73

94

115

119

175

Quadro 1:

Quadro 2:

Quadro 3:

Quadro 4:

Quadro 5:

Quadro 6

Quadro 7

Quadro 8

Objetivos, perguntas de pesquisa e perguntas do questionário 103

Bilíngues simultâneos participantes da pesquisa 107

Bilíngues sequenciais participantes da pesquisa 109

Critérios para seleção dos partiipantes 116

Relação das perguntas de pesquisa e das representações localizadas 117

Relação das seções organizadas e das representações 118

Perguntas que suscitaram as representações sobre o que é ser bilíngue 145

Transformações em decorrência de ser bilíngue 161

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1:

Figura 2:

Figura 3:

Figura 4:

Figura 5:

Figura 6:

Figura 7:

Figura 8:

Figura 9:

Figura 10:

Figura 11:

Figura 12:

Figura 13:

Common Underlying Proficiency 85

Bilinguismo dinâmico 87

Uma visão transdisciplinar para análise dos dados 98

Procedimentos metodológicos adotados nesta pesquisa 111

Preocupação com o sotaque – bilíngues sequenciais e simultâneos 128

Aulas de redução de sotaque 137

Curso de redução de sotaque 138

Curso de redução de sotaque 139

Material para redução de sotaque 140

Língua de maior importância para bilíngues simultâneos 146

Língua de maior importância para bilíngues sequenciais 147

Universidade de São Paulo tornam inglês língua oficial 150

Inglês: saber o idioma é cada vez mais importante 151

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“It seems to me that in any other

language happiness is not so sweet, logic

is not so clear. I am not sure that I could

believe in my neighbors as I do if I

thought about them in un-English words.

I could almost say that my conviction

of immortality is bound up with the

English of its promise. And as I am

attached to my prejudices, I must love

the English Language!”.

Mary Antin, um judeu russo que emigrou para os

EUA em 1894.

"Spanish is my right eye, English my left; Yiddish my background and Hebrew

my conscience. Or better, each of the four represents a different set of spectacles

(nearsight, bifocal, night-reading, etc.) through which the universe is seen".

Ilan Stavans, escritor que escreve em inglês e espanhol.

"The Nazis robbed me of my

mother tongue, but the rest of

the separation, of the violent

severing of culture, was my own

choice. My writing, my intense

drive to become an 'American

Writer' had pushed me into

leaving the language of my

childhood behind, never counting

the cost".

Gerda Lerner, uma escritora

judia e austríaca.

“I had to work like a

coal-miner in his pit

quarrying all my English

sentences out of a black

night”.

Joseph Conrad, aprendeu inglês

aos 20 anos, depois de aprender

polonês e francês.

"I am an orphaned writer."

Declarou o escritor Louis Begley, ainda lamentando a

perda de uma língua materna, o polonês, quando sua

família se mudou para os EUA, aos 13 anos.

"No words in English have this power, to take me

back home to childhood”.

M.J. Fitzgerald, filha do tradutor Robert Fitzgerald, que

cresceu na Itália.

"For me, one language is complementary to the other, one always lacking a capacity that

the other has".

Ha-yun Jung, que escreve ficção em inglês, mas recentemente retornou para seu país de origem, Coreia do Sul,

e se sente incompleta tanto em inglês quanto em coreano.

Trechos extraídos do livro “The Genius of Language: Fifteen Writers Reflect on Their

Mother Tongues”, de Steven G. Kellman (2004).

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Notas de um percurso pessoal

Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que o

desejo dos outros fizeram de mim1.

1 CAMPOS, A. (Fernando Pessoa). Obra poética e em Prosa. Porto: Lello & Irmão Editores, 1986, p. 413.

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INTRODUÇÃO

Notas de um percurso pessoal

Segundo o antigo costume da Universidade Charles, de Praga, o hino nacional do país da pessoa que está recebendo o título de doutor honoris causa é tocado durante a cerimônia de outorga. Quando chegou minha vez de receber essa honraria, pediram-me que escolhesse entre os hinos da Grã-Bretanha e da Polônia [...] Bem, não me foi fácil encontrar a resposta (BAUMAN, 2005, p. 15).

Sou constituída por línguas e culturas: brasileira de família imigrante,

estudante estrangeira em um país distante, professora de língua inglesa em

uma escola judaica. (Con)vivi, esqueci, imaginei, cantei, brinquei, estudei e

trabalhei em línguas diversas que me constituem, que me fazem ser quem sou

e se revelam (ou não) no meu modo de viver, de ver, de pensar, de expressar o

mundo e de ocupar nele um espaço.

Acredito mesmo que escrever uma dissertação é buscar nas lembranças

algo que, mesmo inconscientemente, nos faz (re)fazer um percurso e deslizar

entre lembranças e esquecimentos. É buscar, “entre a palavra e a coisa”,

algumas camadas de sentidos e “muitas camadas de sonho”2. Ao fazer,

desfazer e refazer as “camadas” de minha história, muitas vozes se misturam,

histórias de meu avô acerca da guerra, lembranças de minhas aulas de

alemão, dativos, genitivos, acusativos de quem sou. Essas lembranças fazem

memória e me constituem. Ao relembrar a opção por uma carreira profissional,

um dizer de Pêcheux toma corpo, ganha presença e passa a fazer novos e

outros efeitos de sentido; pois, como o autor, me incluo no grupo dos “homens

loucos por suas línguas” (PÊCHEUX; GADET, 1981/2004, p.45). O desejo (que

move o sujeito) em descobrir: “que língua é essa?” me fez optar por este

caminho que resolvi seguir. Caminho este que me caminha.

Quando optei por meu tema de pesquisa, buscava entender questões

que, desde pequena, acompanham-me, questões que falam de quem eu sou,

2 BRITTO, P. Trovar claro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.15.

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de quem e como me sinto em ambientes que me causam estranheza e me

fazem pensar se pertenço a algum lugar, a alguma língua. Mas, como diz

Saramago: “como é que se pode não pertencer à língua que se aprendeu, à

língua com que se comunica e com que se escreve?”3.

Neste percurso me deparei com diversos depoimentos que, por vezes,

fizeram-me pensar que me revelam e que dizem de mim coisas que não

saberia dizer. Bauman (2005), parafraseado no início desta seção, ilustra com

precisão alguns dos dilemas inquietantes e das escolhas obsedantes que

tendem a fazer da identidade um tema de graves preocupações e agitadas

controvérsias. O autor narra sua decisão de, naquela situação, tocar o hino

europeu; decisão essa “excludente” e “includente”:

Referia-se a uma entidade que abraçava os dois pontos de referência alternativos da minha identidade, mas ao mesmo tempo anulava, por pouco relevantes ou mesmo irrelevantes, as diferenças entre ambos e assim, também, uma possível “cisão identitária”. Tirava da pauta uma identidade definida em termos de nacionalidade – o tipo de identidade que me foi negado e tornado inacessível. Alguns versos comoventes do hino europeu ajudaram: “alle Menschen werden Brüder” [...]. A imagem da “fraternidade” é o símbolo de se tentar alcançar o impossível: diferentes, mas os mesmos; separados, mas inseparáveis; independentes, mas unidos (BAUMAN, 2005, p.16).

O autor, em busca de identidade se vê, como muitos, diante da tarefa

intimidadora de alcançar o impossível – expressão genérica essa que implica

em “tarefas que não podem ser realizadas no tempo real, mas que serão

presumivelmente realizadas na plenitude do tempo – na infinitude” (BAUMAN,

2005, p.16).

Foi essa busca pelo impossível que me impulsionou a realizar este

trabalho. Inicialmente, coletei 98 questionários de sujeitos4 bilíngues

constituídos por línguas diversas: coreano, alemão, espanhol, sérvio, entre

outras. Reconheci muitas de minhas dúvidas, angústias e desencontros em

3 LOPES, Victor. Entrevista de José Saramago em Língua – Vidas em Português (documentário). Brasil/Portugal,

2004. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=b7cIiiHmFI8>. Acesso em: dez. 2011.

4 Este estudo tem como base teórico-metodológica a análise de discurso de linha francesa que faz uso da denominação sujeito. O sujeito difere do indivíduo por estar em uma relação de assujeitamento e de pertencimento a uma memória discursiva. Orlandi explica que: “o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido” (ORLANDI, 1999, p.17). A partir dessa perspectiva, emprego o termo sujeito em minhas perguntas de pesquisa e também no decorrer desta dissertação quando o assunto tratado for discutido a partir da análise de discurso de linha francesa.

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suas narrativas, porém, por uma questão metodológica e temporal, detive-me

neste trabalho a sujeitos bilíngues falantes de português e inglês. Além do

mais, a língua inglesa tem uma história de imposição por razões políticas e

materiais em muitos países do terceiro mundo, o que implica na constituição

identitária de seus falantes. A partir dessa perspectiva, apoio-me em

Canagarajah (1999) para afirmar que, ao optar por aprender ou fazer uso do

inglês, esses sujeitos fazem também uma opção ideológica e social, ainda que

de modo inconsciente.

Outro motivo que me levou, neste momento, a delimitar meus sujeitos de

pesquisa desse modo, é a crescente propagação da língua inglesa no Brasil.

Observa-se, como aponta Marcelino (2009), que o crescimento do bilinguismo,

no Brasil, evidencia um desenvolvimento na educação e uma demanda

mercadológica pressionada pelos pais de alunos de escolas regulares. O autor

aponta também para o fato de que se anteriormente os pais escolhiam as

escolas para seus filhos com base na proposta de ensino e a necessidade de

se aprender outra língua era suprida por meio de institutos de idiomas,

atualmente, essa escolha é muitas vezes definida pela importância dada à

língua inglesa nas escolas regulares. Frente a esse panorama, percebe-se, no

Brasil, a disseminação das escolas bilíngues, de programas de intensificação

de língua inglesa e de escolas de idiomas.

Nessa direção, meus objetivos neste trabalho são:

1) Estudar a imbricação da língua materna e da língua estrangeira na

constituição da subjetividade de sujeitos bilíngues sequenciais e simultâneos

falantes de inglês e português.

2) Apontar deslocamentos identitários nos discursos desses sujeitos.

3) Rastrear o olhar do outro na constituição identitária desses sujeitos.

Para tanto, esta pesquisa pretende responder às seguintes perguntas:

1) Como as identidades desses sujeitos foram se (trans)formando na

sua relação com as línguas?

2) Como é a relação desses sujeitos com as línguas que os constituem?

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3) Como esses sujeitos, ao se enunciarem, constroem imagens de si e

do Outro?

O percurso a que me proponho neste trabalho parte do pressuposto

principal de que a língua é construtora da identidade do sujeito e dos processos

discursivos, e não mero instrumento de mediação/comunicação com o mundo

externo. Atrelada a essa concepção de língua, quando abordo a questão da

identidade e da subjetividade, remeto-me a uma visão de sujeito

essencialmente histórico, ideológico e heterogêneo, interpelado pelo

inconsciente e constituído na e pela linguagem. Na esteira desses conceitos,

recorro, também, aos estudos sobre representações sociais e bilinguismo para

compreender os processos discursivos que forjam a identidade do sujeito e seu

sentimento de pertencimento ao grupo.

Sendo assim, proponho-me interpretar, à luz das teorias explicitadas

anteriormente, recortes discursivos que, por vezes, denunciam recalques,

inibições, invenções e imagens que constituem o imaginário desses sujeitos –

como eles se veem e acreditam serem vistos – construindo, como afirma

Coracini (2007), momentos de identificação que permitem a ilusão da

permanência de uma certa identidade.

Com este trabalho pretendo contribuir com os estudos sobre bilinguismo

e ensino de línguas a partir da discussão de um enfoque que considera as

línguas como parte constitutiva do sujeito e o sujeito como parte constitutiva da

história que o interpela. Nessa esfera, espero trazer contribuições para o

entendimento de como as condições de produção vivenciadas por bilíngues

falantes de inglês e português e as relações de poder que estão em jogo nesse

processo têm implicações diretas na constituição identitária desses sujeitos.

Essas premissas norteiam uma pesquisa inovadora, uma vez que vários

estudos já foram desenvolvidos sobre a relação língua e identidade, mas

nenhum deles parece abordar esse prisma. Em 2007, Marques realizou uma

dissertação de mestrado que analisou as representações construídas no

discurso de quatro professores brasileiros de inglês de escolas de idiomas com

o intuito de compreender mais ampla e profundamente alguns de seus

aspectos identitários. Embora partilhe de matrizes teóricas semelhantes, minha

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dissertação faz uso de teorias de identidade e de bilinguismo para investigar a

relação de bilíngues brasileiros falantes de português e inglês com suas

línguas, com o povo brasileiro e com o nativo de língua inglesa. Sendo assim,

vai além do proposto por Marques, uma vez que procura, por meio dessas

teorias, analisar os laços que prendem esses sujeitos aos discursos pelos

quais constroem biografias que tecem as diferentes partes de seus “eus”

divididos.

Sob a mesma lupa das representações, Andrade (2008) pretendeu

identificar e discutir as representações de língua e de ensino aprendizagem de

línguas, principalmente do inglês, que emergem do dizer dos professores em

formação. Tanto Marques (2007) quanto Andrade (2008) apoiam-se na análise

de discurso (AD) de linha francesa e nos conceitos de representações, porém,

diferentemente de minha pesquisa, têm como foco professores de línguas e

não fazem uso de teorias de identidade e de bilinguismo para a compreensão

dos processos discursivos que fundam os quadros de que se alimentam as

representações sociais.

Netto (2008), por sua vez, estudou a constituição identitária de

professores de língua portuguesa que não possuem exclusivamente essa

língua em sua inscrição no campo da linguagem. A pesquisadora analisou as

narrativas desses professores em contexto de imigração e concluiu que

histórias de vida caracterizadas por uma constituição linguística marcadamente

plural trazem incidências para a formação desses professores. A pesquisa de

Netto (2008), assim como esta dissertação, discute a relação língua e

identidade e utiliza a análise de discurso francesa como aporte teórico-

metodológico. Entretanto, como o contexto no qual a pesquisa de Netto (2008)

ocorreu é o de imigração alemã, as questões ideológicas e sociais que

envolvem o uso dessa língua são muito diferentes das que envolvem o uso da

língua inglesa por brasileiros.

Análoga a esses estudos, encontra-se a pesquisa realizada por Tavares

(2010), que investigou possíveis deslocamentos na constituição identitária do

professor de inglês da educação básica, durante um processo de formação

contínua. Como nos estudos mencionados anteriormente, Tavares (2010),

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diferente do estudo aqui apresentado, também analisa o discurso de

professores.

Vale frisar que, apesar das diferenças descritas entre esses trabalhos e

minha pesquisa, esta foi certamente influenciada pela leitura cuidadosa dos

trabalhos mencionados que corroboraram na minha opção pela análise de

discurso francesa como aporte teórico para realização da mesma.

Este estudo é, desse modo, inovador e deverá ser o motor essencial

para o desenvolvimento de novos saberes relacionados ao binômio língua e

constituição identitária na área da Linguística Aplicada.

Acredito ser de grande valia para a leitura deste trabalho discorrer, nesta

introdução, sobre o título escolhido para minha pesquisa: “Eu sou, eu era, não

sou mais”: Relatos de sujeitos fal(t)antes em suas vidas entre línguas. Para

isso, primeiramente, faz-se necessário explicitar a concepção de sujeito

empregada neste estudo.

A análise de discurso de linha francesa recorre a três autores para

definir sua concepção de sujeito. Foucault (1987) e Pêcheux (1997) concebem

o sujeito associado à ordem do social e do discursivo. Lacan (1972-1973/1982),

por sua vez, pensa o sujeito como efeito de linguagem e em relação ao

inconsciente. De acordo com Coracini (2007), essas concepções, apesar de

apresentarem pressupostos diferentes, têm o aspecto social presente, uma vez

que: “o sujeito é também alteridade, carrega em si o outro, o estranho, que o

transforma e é transformado por ele” (CORACINI, 2007, p.17). A partir desse

prisma, parte-se do pressuposto de que o sujeito não tem o controle sobre a

produção de sentidos: ele é interpelado pelo interdiscurso que é reatualizado

em seu discurso, ocorrendo um processo de ressignificação. Com isso, há a

produção de outros sentidos, de outras leituras e de outras interpretações, o

que marca a heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu discurso, uma

vez que o discurso é constitutivamente atravessado pelo discurso do outro e do

inconsciente. Esse processo de (re)significação permite pensar um sujeito além

da pura interpelação ideológica. Retomando essas condições, o sujeito é, de

acordo com Lacan (1966/1998), determinado pela linguagem e pela falta. Em

função disso, o sujeito é inacabado, produzindo-se, interminavelmente, em um

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eterno movimento de vir-a-ser, impulsionado pelo desejo, deslizando entre o

desejar e o gozar, posições que, imbricadamente, constituem-no. Assim, pode-

se falar de um sujeito que é falante e faltante, uma vez que, na teoria

psicanalítica, todo sujeito é faltante da permanência do gozo. Portanto, ser

fal(t)ante implica em permanentemente buscar – pelos meandros da linguagem

– a ilusória completude.

Uma vez esclarecido o que entendo por fal(t)ante, destaco, a seguir, o

que pretendo com a expressão “entre línguas”. Melman (1992) afirma que o

inconsciente não cria obstáculo para o contato das línguas. Sendo assim,

entendo que estar entre línguas significa que não existe uma fronteira

determinada entre uma língua e outra.

Recorro, também, ao início de cada seção, às ilustrações do artista

holandês Mauritus Cornelis Escher, que sinto materializarem, por meio de

imagens, o que minhas palavras escrevem. As imagens de Escher são

constituídas de paisagem-corpo, corpo-paisagem e outras subjetivações, e

abrigam jogos de ilusão que referem ao impensado e ao paradoxo. Por meio

desses jogos de realidades, Escher produz gravuras que causam

estranhamento e permitem deslocamentos a percursos inusitados, a partir de

suas relações de composição onde o ser, o tempo e o espaço coexistem e

produzem novos modos de subjetivação. Suas obras parecem demonstrar

conceitos pelos quais transito: deslocamentos, estranhamentos, subjetivações

e paradoxos.

Em sua série Metamorfoses, utilizada na seção “Entre ditos e não ditos”,

Escher faz com que várias estruturas se transformem inesperadamente.

Nessas imagens, há repetições que metamorfoseiam por meio de pequenas

mudanças em um contexto próximo, assim, produzindo o diferente. É como se

não existisse separação entre o fora e o dentro, o que proporciona uma visão

ininterrupta do dentro e do fora, do sujeito e do social. Essa ideia de

metamorfose corrobora a concepção de identidade adotada por Ciampa (1990),

que compreende a identidade como um processo de metamorfose permanente;

visão esta empregada neste estudo e desenvolvida na seção “Identidades”.

Para terminar esta introdução, cabe-me apresentar a organização deste

trabalho. Divido meu texto em duas grandes partes. A primeira parte, “Do

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enredo teórico”, está organizada em quatro seções e, nelas, desenvolvo o

arcabouço teórico que fundamenta minha pesquisa. O “Percurso Escolhido”

discorre sobre os principais conceitos que embasam a análise de discurso de

linha francesa: o discurso, o sujeito discursivo e a ideologia. A seção

“Identidades” apresenta as teorias de identidades empregadas na análise dos

dados neste estudo. Em “Vidas entre línguas”, enfatizo o aporte teórico sobre

língua materna, língua estrangeira e bilinguismo. A seção “Representações

Sociais” aborda esse conceito a partir dos estudos de Moscovici (1961; 2003) e

Jodelet (1990; 2001).

A segunda parte, “Do que se descobriu no caminho”, está organizada

em duas seções. Em “Trajetória”, apresento os aspectos metodológicos e

detalho os procedimentos para geração e análise dos dados. Na seção “Entre

ditos e não ditos”, discuto os resultados da análise, dividindo-os em três

subseções: “Entre o desejo da completude e a falta do sujeito”; “Entre o mito, o

possível e o desejo do outro” e “Entre as diversas concepções do eu”.

Na seção “E, por fim, um recomeço”, teço comentários em relação à

relevância e à necessidade de outros pesquisadores ampliarem o tema em

questão. As “Referências Bibliográficas” compõem a última parte deste

trabalho.

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PRIMEIRA PARTE

Do enredo teórico

Na parte primeira deste trabalho, apresento a matriz conceitual que

sustenta esta pesquisa. Esta parte está organizada em quatro seções, a seguir:

A primeira seção, O percurso escolhido, discorre sobre os

pressupostos teóricos da AD francesa, linha teórico-metodológica adotada

neste estudo. Inicio essa seção, contextualizando seu surgimento a partir dos

estudos de Orlandi (1998; 1999; 2005; 2006). A seguir, enfatizo seus conceitos-

chave: o discurso, a ideologia e o sujeito. O conceito de discurso é discutido a

partir de Foucault (1970/1996) e de Pêcheux (1969/1993; 1975/1993), assim,

abordo a noção de formação discursiva e heterogeneidade do discurso. A

discussão sobre o conceito de ideologia é realizada a partir de uma releitura

que Althusser (1985; 1996) faz de Marx, trazendo à tona o que denomina

Aparelhos Ideológicos do Estado. O sujeito da AD francesa e sua relação com

o discurso e com a ideologia é o último conceito abordado nessa primeira

seção. Essa relação dá origem ao fenômeno denominado assujeitamento

ideológico. Para sua compreensão, recorro a Pêcheux (1997), que desenvolve

a noção de interdiscurso, a Foucault (1979; 1987; 1998) que discorre sobre a

noção de poder disciplinar para fundamentar o conceito de descentramento do

sujeito; e, uma vez mais, remeto-me a Pêcheux (1975/1988) e Pêcheux e

Fuchs (1975/1997) para abordar a noção de duplo esquecimento.

A partir dos conceitos discutidos na primeira seção, parto do

pressuposto que, dentro das formações discursivas produzidas pelos sujeitos,

há marcas linguísticas que revelam as representações sociais que o sujeito

tem do mundo. Nessa seção, ressalto o papel dessas na constituição da

subjetividade dos sujeitos com base nos mecanismos de ancoragem e

objetivação propostos por Moscovici (1984; 2003), Jodelet (1990; 2001) e Abric

(2003). Estabeleço, também, uma relação entre ideologia, representações

sociais e a AD francesa a partir da pesquisa de Sousa Filho (2003). Esse autor

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pensa a ideologia como um conjunto de representações, com isso, assume-se

que, identificando as representações sociais que o sujeito tem do mundo, por

meio das marcas linguísticas que se repetem dentro das formações

discursivas, inicia-se o processo de reconhecimento da ideologia que interpela

o indivíduo em sujeito. Dessa forma, torna-se tangível analisar a inscrição do

Outro, ou o interdiscurso, no discurso do sujeito, e consequentemente se

reconhece valores e ideias circulantes em dada sociedade. Essas ideias têm

influência direta na identidade do sujeito, uma vez que aquilo que o sujeito

acredita é justamente o que o faz agir ou não agir, direcionando sua relação

com o mundo e o modo como o mesmo se percebe na sociedade.

Na terceira seção, Identidades, abordo os estudos sobre identidade a

partir da perspectiva da Pós-Modernidade, com base em Hall (2005), Bauman

(2005), Norton (1995) e Coracini (2003; 2007). Nessa perspectiva, retomo os

estudos de Ianni (1999) para discorrer a respeito das implicações da

globalização na conceptualização da identidade e na fragmentação do sujeito

na Pós-Modernidade. Nessa seção, recorro também a outras áreas de

conhecimento para melhor compreender minhas questões da pesquisa, uma

vez que a linguística aplicada converge em um processo transdisciplinar de

produção de conhecimento (MOITA LOPES, 2006). Busco esteio no psicólogo

social Ciampa (1984; 1990; 2004) que entende a identidade como um construto

social e, a partir disso, desenvolve os conceitos de pressuposição da

identidade (CIAMPA, 1990), mesmice (CIAMPA, 1984) e mesmidade (CIAMPA,

1990). Esses conceitos são essenciais para a análise de dados desta pesquisa,

uma vez que relacionam a identidade a uma predicação atribuída ao sujeito

pelo outro e a AD francesa, base teórico-metodológica desta pesquisa que tem,

como postulado fundamental, o fato de que não há discurso que não tenha ou

não apresente a inscrição de outros. Retomo também o conceito de estigma,

do sociólogo Goffman (1988), que reflete acerca do processo constitutivo da

identidade de sujeitos que se distinguem dos outros. Atrelado a esse conceito,

resgato a noção de preconceito linguístico, difundida no Brasil, por Bagno

(2002). Os conceitos de estigma e preconceito linguístico são empregados na

análise dos dados deste trabalho, uma vez que os sujeitos bilíngues que

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participaram da pesquisa parecem apresentar estigma relacionado ao sotaque

e à condição de ser brasileiro.

É importante ressaltar que os conceitos discutidos na seção um e dois

se entrelaçam com o conceito de identidade exposto na terceira seção.

A AD francesa reflete o percurso histórico, social e cultural do sujeito,

revelando quais discursos que perpassam a sua identidade diante da

materialização da sua linguagem. Portanto, parto da premissa de que a

identidade se forma ao longo do tempo por meio de processos inconscientes,

uma vez que o processo de identidade é constituído no decorrer da vida do

sujeito e orientado por vários interdiscursos que se revelam por meio da

produção discursiva.

Além disso, não se pode desprezar o fato de que a identidade também

se constitui a partir das representações que um grupo ou sociedade possui em

torno dele mesmo. Desse modo, entender como os bilíngues desta pesquisa,

falantes de português e de inglês, percebem-se e percebem as línguas que os

constituem é essencial para entender como captam essas referências e são

por elas afetados na construção de suas identidades.

Finalmente, na última seção, Vida entre línguas, enfatizo o elo língua,

sujeito e identidade com base nos estudos de Revuz (1998), que tem como

base uma concepção lacaniana de sujeito, constituído pela e na linguagem.

Essa parte tem como objetivo interrogar a nominação materna e estrangeira

atribuída à língua. Para tanto, apoio-me nas pesquisas de Coracini (2003,

2007), Revuz (1998) e Maher (1998) filiadas à linguística aplicada e nos

estudos psicanalíticos de Fages (1977), Prasse (1997) e Melman (1992), que

explicam o conceito de interdição a partir da concepção lacaniana da

constituição do Eu (Lacan, 1958/1998 e 1966/1998). Na terceira parte, discuto

a evolução dos conceitos de bilinguismo partindo de concepções

unidimensionais como as de Bloomfield (1935), Macnamara (1967), Barker e

Prys (1998), Li Wei (2000) e Mackey (2000). Discorro também sobre

concepções teóricas que contemplam, em sua definição de bilinguismo, tanto a

dimensão linguística como a não linguística, como Maher (2007), Hamers e

Blanc (2000), Heye (2003) e Dias e Salgado (2010), que trabalham com o

conceito de bilingualidade; e García (2009) e Cummins (1984), que advogam a

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favor de uma visão heteroglóssica de língua. Por fim, introduzo a perspectiva

derridiana (2001), que discute a construção de próteses a fim de explicar o

conflito/sofrimento experimentado por diversos sujeitos em sua condição

bilíngue.

Esses conceitos, discutidos na quarta seção, são essenciais para a

análise das representações que os sujeitos desta pesquisa têm sobre as

línguas que os constituem e sobre sua bilingualidade dentro do quadro teórico

da AD francesa.

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O Percurso escolhido

Gide disse que o diabo desta vida é que entre cem caminhos, temos de escolher apenas um e viver com a nostalgia dos outros noventa e nove[ ...]5

5 SABINO, Fernando. O Encontro Marcado. Rio de Janeiro: Record, 1981. p. 44.

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SEÇÃO 1

O percurso escolhido: análise de discurso de linha francesa

É ideia central, no projeto de diversos teóricos, a noção de que a

linguagem funda a compreensão de mundo do sujeito. Muitos estudiosos,

dentre eles, filósofos, linguistas e psicanalistas, debruçaram-se sobre

diferentes aspectos da linguagem. De acordo com os distintos pontos de vista

atinentes à linguagem, ela pode ser compreendida de várias formas. Neste

estudo, que se filia à análise de discurso (AD) de linha francesa, compreende-

se a linguagem a partir de uma perspectiva discursiva, o que significa buscar

entender e compreender o seu funcionamento como sendo um lugar de conflito

e de confronto ideológico.

Nesta seção, inicialmente, contextualizo o surgimento da AD francesa. A

seguir, discorro sobre seus conceitos-chave: o discurso, o sujeito discursivo e a

ideologia.

1.1 Análise de discurso de linha francesa

A AD francesa surgiu, de acordo com Maingueneau (1989), no final da

década de 60, e estava associada a uma tradicional prática escolar francesa: a

explicação de textos. O marco inaugural de seu nascimento foi a publicação de

Michel Pêcheux - “Análise Automática do Discurso” - e o lançamento da revista

“Langages”, organizada por Jean Dubois, no ano de 1969. Para a sua criação,

Pêcheux (1993) realizou rupturas com as pesquisas estruturalistas, que

figuravam como verdadeiro paradigma de formatação do mundo, das ideias e

das coisas para toda uma geração de intelectuais franceses. Os estruturalistas,

rompendo com a fenomenologia, o psicologismo e a hermenêutica viam a

língua apenas como um simples ato de fala ou um veículo para transmissão de

informações. Excluíram de suas análises o sujeito, que era, por eles, encarado

como um elemento suscetível de perturbar a análise do objeto científico. Essa

visão equivocada, estava relacionada ao domínio do objetivismo, como forma

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única de ciência, que defende “o possível acesso a verdades absolutas e

incondicionais sobre o mundo, e entende a linguagem como mero espelho da

realidade objetiva” (ZANOTTO et al., 2002, p.11).

O movimento de maio de 1968, na França, e as novas interrogações que

surgiram, no âmbito das ciências humanas, foram decisivas para subverter o

paradigma então reinante e trazer o sujeito para o centro do novo cenário,

permitindo-lhe “reaparecer pela janela, após ter sido expulso pela porta”

(DOSSE, 1993, p. 65). A AD francesa nasce, assim, na perspectiva política de

uma intervenção, de uma ação transformadora que visava a combater o

excessivo formalismo linguístico vigente, outrora, considerado como uma nova

facção burguesa.

Outro aspecto que merece atenção é de que, diferentemente do

estruturalismo, a AD francesa toma a linguagem como mediadora

indispensável entre o homem e o meio social e natural em que vive. A língua

não é aqui vista como um sistema abstrato, ou como mero método de

interação, como explica Orlandi (2005). A linguagem é entendida como ação,

transformação, como um trabalho simbólico em que “tomar a palavra é um ato

social com todas as suas implicações, conflitos, reconhecimentos, relações de

poder, constituição de identidade, etc.” (ORLANDI, 1998, p.17). Ao se propor

analisar o discurso, a AD francesa analisa-o ultrapassando os aspectos

formais, aprofunda-se em aspectos extradiscursivos a fim de chegar à

construção de sentidos, considerando o contexto social, histórico e ideológico

em que o discurso foi produzido. Nessa perspectiva, o discurso é o meio pelo

qual o processo de interação verbal se concretiza e, como Orlandi (2005)

assevera, “o discurso é a palavra em movimento, prática de linguagem: com o

estudo do discurso, observa-se o homem falando” (ORLANDI, 2005, p.15).

Por conseguinte, a AD francesa resgata o sujeito excluído pelo

estruturalismo e é, na busca desse sujeito, que se articula principalmente com

três áreas de conhecimento: a psicologia/psicanálise, as ciências

sociais/marxismo e a linguística, formando uma espécie de tríplice aliança. Por

meio da releitura de Marx, feita por Althusser, da releitura de Freud por Lacan,

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e da releitura do estruturalismo linguístico de Saussure, realizada por Pêcheux,

a AD francesa nasce na tentativa de suprimir a falta que cada uma dessas

áreas possui isoladamente e cria um objeto que está na fronteira de todas elas:

o discurso.

Da psicanálise, a AD francesa resgata o sujeito oriundo do inconsciente

freudo-lacaniano, sujeito este, desejante, descentrado, afetado pela ferida

narcísica que se pensa livre e dono de si. De acordo com Orlandi (1999), o

sujeito da linguagem é descentrado, uma vez que o real da língua e o real da

história lhe afetam, não tendo o controle sobre o modo como é afetado. Isso,

segundo a autora, redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo

inconsciente e pela ideologia.

A partir das ciências sociais, a AD francesa interessa-se pelo

materialismo histórico, com base na leitura que Althusser faz dos textos de

Marx. Dessa vertente, resgata-se o sujeito assujeitado, materialmente

constituído pela linguagem e interpelado pela ideologia. O materialismo

histórico defende que a evolução histórica sempre se deu pelos confrontos

entre diferentes classes sociais, decorrentes da exploração do homem pelo

homem. Sendo assim, esta teoria é também empregada como forma essencial

para explicar as relações entre sujeitos. Segundo Pêcheux (1993), o sujeito,

enquanto membro de uma sociedade estratificada por classes sociais, assume

diferentes papéis, porém participa apenas de situações autorizadas, uma vez

que, em cada situação, é exigido um estilo, um conhecimento sobre o contexto

histórico-social, enfim, um discurso. Além disso, o contexto sócio-histórico

contribui para a construção de sentido de um enunciado. Assim, a linguagem é

a materialização do discurso e carrega consigo as manifestações ideológicas

de ordem sócio-histórica enunciadas pelo sujeito do discurso.

No entanto é importante entender que o sujeito da AD francesa não é o

sujeito ideológico marxista-althusseriano, nem o sujeito do inconsciente freudo-

lacaniano; e não é, tampouco, uma junção entre esses dois sujeitos. O que

representa esse sujeito é o papel de intervenção da linguagem, da marca

discursiva, na perspectiva linguística e histórica que a análise de discurso lhe

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atribui. Pêcheux, que foi um atento leitor de Saussure, desloca o conceito

saussuriano de função para funcionamento das línguas, ultrapassando, assim,

os limites estritos do linguístico e permitindo a descrição da materialidade

específica da língua.

Frente a essas articulações propostas pela AD francesa, é fundamental

compreender que, embora apresente áreas de contato com a linguística, a

psicanálise e o marxismo, ela não se confunde com essas disciplinas. Orlandi

(2006) explica que a AD francesa pressupõe tais disciplinas à medida que se

constitui da relação de três regiões científicas: a teoria da ideologia, a teoria da

sintaxe e da enunciação, e a teoria do discurso como determinação histórica

dos processos de significação, tudo isso atravessado por uma teoria

psicanalítica do sujeito. Vale frisar ainda que é necessário entender que a AD

francesa não pretende ser nem uma disciplina autônoma, nem uma disciplina

auxiliar, o que pretende é trabalhar o objeto discursivo como sendo um objeto-

fronteira nos limites das divisões disciplinares, sendo constituída

simultaneamente de uma materialidade linguística e de uma materialidade

histórica. Sobre esse ponto, aliás, é preciso salientar que é inapropriado

conceituar a AD francesa como uma disciplina interdisciplinar, como alguns

teóricos insistem em fazer. A esse respeito, Orlandi (1996) atribui à AD

francesa a condição de disciplina de entremeio, uma vez que sua constituição

se dá às margens das chamadas ciências humanas, entre as quais, ela opera

um profundo deslocamento de terreno. Assim, é importante reiterar que os

conceitos que a AD francesa traz de outras áreas, como a psicanálise, o

marxismo, a linguística e o materialismo histórico, ao se integrarem ao corpo

teórico do discurso, deixam de ser aquelas noções com os sentidos estritos

originais e se ajustam à especificidade e à ordem própria da rede discursiva.

Diante do exposto, nas subseções seguintes, discorro a respeito de

conceitos-chave para análise de discurso francesa e, consequentemente, para

a análise dos dados deste trabalho segundo esta perspectiva: o discurso, o

sujeito discursivo e a ideologia.

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1.1.1 O discurso

O conceito de discurso da AD francesa fundamenta-se, principalmente,

em Foucault (1970/1996), que define o discurso como um conjunto de

enunciados regulados numa mesma formação discursiva. Para este autor, se

uma proposição, uma frase ou um conjunto de signos podem ser considerados

enunciados, não é porque houve, um dia, alguém para proferi-los ou para

depositar, em algum lugar, seu traço provisório; mas, sim, na medida em que

pode ser assinalada a posição do sujeito. Para Foucault, o discurso é um

campo de regularidade para diversas posições de subjetividade, é um conjunto

em que pode ser determinada a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em

relação a si mesmo.

Por sua vez, o conceito de formação discursiva, assim como explica

Pêcheux (1969/1993), compreende o lugar de construção dos sentidos,

determinando o que pode e deve ser dito num determinado contexto. É

importante ressaltar que a formação discursiva não só se circunscreve na zona

do dizível – do que pode e do que deve ser dito – definindo os enunciados

possíveis, a partir de um lugar determinado, mas também circunscreve o lugar

do não dizível – o que não pode e o que não deve ser dito. Prosseguindo com

suas reflexões, Pêcheux (1975/1988) argumenta que, no interior de uma

formação discursiva, coexistem discursos provenientes de outras formações

discursivas. Assim, o discurso não constitui um bloco homogêneo, idêntico a si

mesmo, pois reproduz a divisão e a contradição presentes na formação

discursiva da qual procede. A formação discursiva passa, então, a ser

caracterizada pela heterogeneidade, o que determina, consequentemente, a

natureza heterogênea do discurso.

Authier-Revuz (1982/2004) confere à noção de heterogeneidade

discursiva maior definição, tendo como base a problemática do discurso como

produto do interdiscurso, a teoria do sujeito constituída pela psicanálise e o

dialogismo e a política de Bakhtin. Segundo a autora, o princípio da

heterogeneidade parte da premissa de que a própria linguagem é heterogênea

em sua constituição; e, como a materialidade do discurso é de natureza

linguística, é lógico considerá-lo também heterogêneo. Authier-Revuz (1990)

distingue duas formas de heterogeneidade: a constitutiva e a mostrada.

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A heterogeneidade mostrada no discurso indica a presença do outro

no discurso do sujeito e divide-se em duas modalidades: a marcada, da ordem

da enunciação e visível na materialidade linguística; e a não marcada, da

ordem do discurso e não provida de visibilidade.

A heterogeneidade constitutiva ocorre quando o discurso é dominado

pelo interdiscurso, ou seja, uma articulação de formações discursivas que se

refere a formações ideológicas antagônicas e, com isso, esgota a possibilidade

de captar linguisticamente a presença do outro no um.

Levando isso consideração, a AD francesa não só desfaz a ideia de um

discurso homogêneo como também desestabiliza os conceitos de unidade do

sujeito e unidade do texto dos estudos tradicionais da linguagem. Como o

sujeito e o discurso são heterogêneos em sua constituição, a ilusão de unidade

tanto do sujeito quanto do texto não passa de efeitos ideológicos.

Por conta disso, os estudiosos da AD francesa postulam que não há

discurso destituído de ideologia, assim como não há discurso que não tenha ou

não apresente a inscrição de outros. Portanto, para tratar de formações

discursivas, é imprescindível estudar as interações entre essas, uma vez que a

identidade do discurso se constrói na relação com o outro, que pode ou não ser

marcado linguisticamente.

1.1.2 Ideologia

A AD francesa, como descrita na subseção anterior, situa-se num campo

de debate que envolve as condições de produção do objeto investigado – o

discurso e as relações existentes entre ele e a ideologia. Ideologia é

atualmente um termo difícil de ser definido, o filósofo Eagleton (1993) enumera,

em sua obra, vinte e seis definições de ideologia utilizadas hoje em dia.

Perante a tamanha complexidade, neste trabalho, atenho-me a estudiosos que

discorrem a respeito de ideologia dentro do quadro teórico da AD francesa.

A base teórica adotada pela AD francesa, a fim de relacionar ideologia e

discurso, advém do marxismo estrutural, uma vez que a teoria pecheutiana se

origina na matriz althusseriana, da qual Pêcheux retira os conceitos de

ideologia e assujeitamento, dessa maneira, reinterpretando-os e obrigando-os

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a abrir sua grade estrutural ao mesmo tempo em que repensa a noção de

discurso de Foucault. Segundo Orlandi (2005), a ideologia materializa-se no

discurso como conjunto de valores e crenças que constituem as práticas

sociais dos sujeitos. Para Pêcheux (1997), as ideologias constituem os sujeitos,

uma vez que circunscrevem um espaço social de práticas e condutas por meio

de relações sociais concretas.

Althusser complementa a teoria marxista à medida que defende que há

não apenas Aparelhos Repressivos de Estado6, mas também o que ele chama

de Aparelhos Ideológicos de Estado. De acordo com Althusser (1996), os

Aparelhos Ideológicos de Estado (doravante AIE) correspondem a certo

número de realidades que se apresenta ao observador imediato sob a forma de

instituições distintas e especializadas, como, por exemplo: o Religioso (o

sistema de diferentes igrejas), o Escolar (o sistema de escolas públicas e

privadas), o Sindical (o sistema de organização dos sindicatos), o Político (o

sistema eleitoral e partidário), o Cultural (Letras, Belas Artes, esportes, etc.), o

de Informação (a imprensa, o rádio e a televisão, etc.), o Jurídico e o Familiar,

entre outros.

Pêcheux (1996), por sua vez, retoma o conceito de AIE para fixar o lugar

da ideologia na construção de sua teoria do discurso. Para o autor, os AIE não

são a expressão da ideologia dominante (burguesa), mas o local e o meio para

a realização dessa dominação, ou seja, a ideologia dominante é propagada nos

discursos das igrejas e escolas, com o intuito de interpelar os indivíduos como

sujeitos, a fim de “mascarar” – no sentido marxista do termo – a “realidade” e

dar continuidade, segundo Althusser (1996), à reprodução das condições de

produção que sustentam a posição da classe dominante no sistema capitalista:

“está claro que é nas formas e sob as formas da sujeição ideológica que se

assegura a reprodução da qualificação da força de trabalho” (ALTHUSSER,

1996, p. 109).

Nessa perspectiva, a ideologia também opera no sujeito pelo

inconsciente. De acordo com Althusser (1985), em consonância com o primeiro

6 Os Aparelhos Repressivos do Estado são o governo, a administração, o exército, a polícia, os tribunais e as prisões que funcionam, basicamente, por meio da violência. Os Aparelhos Repressivos de Estado funcionam principalmente pela repressão, embora possam ter um aspecto ideológico que é secundário (ALTHUSSER, 1985).

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esquecimento postulado por Pechêux (1975/1988), o sujeito não é a origem de

seu discurso ou de suas práticas e, além disso, não domina o sentido de seu

dizer.

Dentro das relações existentes entre o discurso e ideologia, destaca-se

a importância do sujeito na formação do discurso. Na próxima seção, focalizar-

se-á o sujeito da AD francesa e sua relação com o discurso e com a ideologia,

o que é denominado assujeitamento ideológico.

1.1.3 O sujeito discursivo

Ao longo da história, o sujeito vem sofrendo drásticas transformações

referentes à sua conceituação teórica. Apresento, aqui, o sujeito da análise de

discurso francesa, concepção que emprego, neste trabalho, afastando-me,

portanto, de uma filosofia idealista da linguagem que concebe o sujeito como

fonte e origem de tudo o que diz e o sentido como algo já existente. O sujeito

do discurso é um sujeito essencialmente histórico, ideológico e heterogêneo,

interpelado pelo inconsciente constituído na e pela linguagem.

Esse sujeito é concebido como histórico e ideológico, uma vez que sua

fala é sempre produzida a partir de um determinado lugar e de um determinado

tempo. Sua fala é, na verdade, um recorte das representações de um tempo

histórico e de um espaço social. Trata-se de um sujeito descentrado, entre o eu

e o “outro”. Sujeito esse que não pode ser entendido como um ser uno que se

constitui na fonte do próprio discurso. É o que se denomina sujeito assujeitado,

pois é submetido a coerções sociais, visto que todo discurso é determinado

pelo interdiscurso. O conceito de interdiscurso, segundo Pêcheux (1997),

reside no fato de que algo fala sempre antes e independentemente, sob a

dominação do complexo de formações ideológicas. Essa concepção de sujeito

abarca a noção de alteridade, uma vez que se tem um sujeito que luta para ser

uno, mas que, na materialidade discursiva, é polifônico. Portanto, o discurso

produzido é heterogêneo, como explica Pêcheux (1975/1988), pois incorpora e

assume, pelo diálogo, diferentes vozes sociais, relacionando “o mesmo” com o

seu “outro”, de modo a reconhecer, no discurso, a coexistência de várias

linguagens em uma só linguagem. Esse “outro” não deve aqui ser

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compreendido como o destinatário, ou seja, aquele para quem o sujeito planeja

e ajusta a sua fala no plano intradiscursivo, mas deve ser compreendido como

os outros discursos historicamente já costurados e que emergem em sua fala.

Complementando essa ideia, os estudos de Foucault (1979) sobre a

noção de poder disciplinar foram fundamentais para o aprofundamento da

noção de descentramento do sujeito. O poder, ao invés de se apropriar e de

retirar, tem como função maior “adestrar”, ou, sem dúvida, adestrar para retirar

e se apropriar ainda mais e melhor. Foucault (1987) explica que, ao ser

exercido, esse poder torna-se invisível, mas, em compensação, impõe aos que

submete um princípio de visibilidade obrigatória. Como diz Foucault (1999, p.

35), “o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles [...] o poder transita

pelo indivíduo que ele constituiu”.

A partir desse ponto, aliás, é preciso salientar que o sujeito discursivo

não se encontra no campo consciente, mas, sim, clivado, submetido ao

inconsciente, ou seja, o sujeito do discurso encontra-se dividido entre o

consciente e o inconsciente. Não existe um sujeito que tenha consciência

daquilo que diz. Há, na verdade, um sujeito que é levado, inconscientemente, a

produzir um discurso de uma forma e não de outra.

Por conseguinte, o sujeito do discurso cria para si uma realidade

discursiva ilusória, sofrendo, de acordo com Pêcheux e Fuchs (1975/1997), de

um duplo esquecimento. O primeiro esquecimento, segundo Pêcheux

(1975/1988), é ideológico e do nível do inconsciente. O sujeito rejeita, apaga,

de modo inconsciente, tudo o que não está inserido em sua formação

discursiva e, com isso, tem a ilusão de que é senhor absoluto daquilo que

enuncia. O segundo esquecimento é da ordem da enunciação e de caráter

semiconsciente. Nesse, o sujeito privilegia algumas famílias parafrásicas e

apaga outras no momento em que seleciona determinados dizeres em

detrimento de outros. Além disso, o sujeito tem a ilusão de que aquilo que diz

tem apenas um significado, acreditando que todo interlocutor captará suas

intenções e sua mensagem da mesma forma.

Em contrapartida, Sirio Possenti, importante representante da Análise do

Discurso Francesa no Brasil, defende, diferentemente de Pêcheux, que há

espaço para a inscrição do indivíduo no discurso, onde ele pode deixar a sua

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marca - mesmo na condição de assujeitado. Para Possenti (2002), o sujeito

assume um papel ativo, apesar de estar submetido às questões ideológicas,

estruturais e psicológicas da sua formação discursiva. Segundo o autor, o

assujeitamento não se dá de forma plena e o sujeito tem certa competência na

escolha de seu material discursivo. Segundo Possenti (2002, p. 54-65), “a

presença do outro não é suficiente para apagar a do eu, é apenas suficiente

para mostrar que o eu não está só”.

Produzi, de acordo com o apresentado até então, minhas reflexões em

consonância com essa visão de sujeito discursivo, que é essencialmente

descentrado, clivado, heterogêneo e perpassado por vozes que provocam

identificações de toda sorte.

Nesta seção, discorri sobre os pressupostos teóricos da AD francesa.

Inicialmente, contextualizei seu surgimento a partir da obra de Oralandi (1998;

1999; 2005; 2006). A seguir, enfatizei seus conceitos-chave: o discurso, a

ideologia e o sujeito. O conceito de discurso foi discutido a partir de Foucault

(1970/1996) e, a partir de Pêcheux (1969/1993; 1975/1993), abordei os

conceitos de formação discursiva e heterogeneidade do discurso. O conceito

de ideologia foi descrito a partir de uma releitura que Althusser (1985; 1996) fez

de Marx, trazendo à tona o que denominou de Aparelhos Ideológicos do

Estado. O sujeito da AD francesa e sua relação com o discurso e com a

ideologia foi o último conceito abordado. Essa relação deu origem ao fenômeno

denominado assujeitamento ideológico. Para sua compreensão, recorri a

Pêcheux (1997), que desenvolveu a noção de interdiscurso, a Foucault (1979,

1987; 1998) que discorreu sobre a noção de poder disciplinar para fundamentar

o conceito de descentramento do sujeito e, uma vez mais, recorri a Pêcheux

(1975/1988) e Pêcheux e Fuchs (1975/1997) para abordar a noção de duplo

esquecimento.

Na próxima seção, exponho o conceito de representação social a partir

de Moscovici (1961; 2003) e Jodelet (1990; 2001).

Neste estudo, as representações sociais, presentes nas formações

discursivas, serão observadas a partir das regularidades discursivas na

materialidade linguística. Ao analisar as representações acerca da

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bilingualidade dos sujeitos de pesquisa, das línguas que falam, dos povos e

dos países envolvidos, busco a compreensão da linguagem, não centrada

apenas na língua, mas também na ligação entre o sujeito e o contexto sócio-

histórico-cultural. Com isso, procuro desvelar os sentidos manifestos e latentes

no discurso dos sujeitos bilíngues a fim de responder às perguntas que

norteiam esta pesquisa.

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Representações Sociais

O curso de um rio, seu discurso-rio, chega raramente a se reatar de vez; um rio precisa de muito fio de água para refazer o fio antigo que o fez.7

7 MELO NETO, João Cabral de. Rios sem discurso. In: MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra. Rio de

Janeiro: José Olympio, 1979. p.26.

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SEÇÃO 2

Representações Sociais

Como discutido na seção anterior, de acordo com os pressupostos da

AD francesa, o sujeito é interpelado pelo inconsciente e pela ideologia.

Portanto, não é dono de seu dizer, pois seu discurso é sempre marcado pela

presença do discurso do outro, entendido aqui como interdiscurso. O discurso,

assim como definido por Foucault (1970/1996), é um conjunto de enunciados

regulados numa mesma formação discursiva. Retomando esse conceito a partir

de Pêcheux (1969/1993), a formação discursiva compreende o lugar de

construção dos sentidos, determinando o que pode e deve ser dito num

determinado contexto.

Um aspecto que merece especial atenção, neste estudo, é que, nas

formações discursivas produzidas pelos sujeitos, há marcas linguísticas que

revelam as representações sociais que o sujeito tem do mundo.

Sendo assim, o discurso jamais é neutro, pois sempre se volta para um

conjunto de representações sociais que o sujeito tem sobre o tema tratado.

Segundo Moscovici (2003), as representações sociais convencionalizam

objetos, pessoas ou acontecimentos e os localizam em uma determinada

categoria, desse modo, colocando-os gradualmente como um modelo de

determinado tipo partilhado por um grupo de pessoas. Essas representações

funcionam sempre num espaço de tensão entre o consciente e o inconsciente

e, como afirma Moscovici (1984), terminam por construir o pensamento em um

verdadeiro ambiente onde se desenvolve a vida cotidiana.

Nesta seção, ressalto o papel das representações sociais na

constituição da subjetividade dos sujeitos a partir dos mecanismos de

ancoragem e objetivação propostos por Moscovici (1984; 2003), Jodelet (1990;

2001) e Abric (2003). Estabeleço, também, uma relação entre ideologia,

representações sociais e a AD francesa com base nos estudos de Sousa Filho

(2003).

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2.1 Representações sociais

O conceito de Representação Social surgiu do trabalho de Serge

Moscovici, intitulado La Psychanalyse, son image et son public (1961), que se

ocupava do estudo pioneiro sobre a difusão da psicanálise em diferentes

âmbitos, de sua apropriação e de transformação para outras funções sociais no

pensamento popular parisiense da referida época.

Para fazer frente a tal perspectiva, Moscovici buscou referência na obra

de Durkheim (1895/1982), que preconizava a explicação sociológica dos fatos

sociais, mais especificamente, em seu conceito de Representações Coletivas.

Entendendo a sociedade como uma realidade em si, Durkheim entende as

representações coletivas como categorias que são produzidas e que

coletivamente formam a bagagem cultural de uma sociedade. Entretanto

Moscovici (2003) adota o termo “social” e não “coletivo” a fim de enfatizar a

qualidade dinâmica das representações sociais, em contraposição ao caráter

mais fixo que elas tinham em Durkheim. Porém o autor explica que as duas

palavras são, muitas vezes, usadas como sinônimas e que prefere social, pois

essa palavra remete a “uma ideia de diferenciação, de redes de pessoas e

suas interações” (MOSCOVICI, 2003, p. 348).

Em relação às diferenças dos conceitos de representações apresentado

por Durkheim e Moscovici, Duveen (2003), na introdução do livro

Representações Sociais – investigações em psicologia social (MOSCOVICI,

2003), esclarece que enquanto Durkheim vê as representações coletivas como

formas estáveis de compreensão coletiva, Moscovici concentra-se na

exploração da variação e da diversidade das ideias coletivas nas sociedades

modernas, o que gera uma heterogeneidade de representações. Perante essas

diversidades, segundo Duveen (2003), surgem os pontos de tensão e é, ao

redor desses pontos de clivagem, que se caracterizam pela falta de sentido,

que novas representações emergem com o objetivo de reestabelecer um

sentido de estabilidade. Moscovici (2003) explica que as representações são

criadas por pessoas e grupos no decurso da comunicação e cooperação, mas

alerta para o fato de que, uma vez criadas, elas adquirem vida própria, circulam

e dão oportunidade para o surgimento de novas representações. É por isso

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que, segundo o autor, para se compreender uma representação é necessário

resgatar aquela, ou aquelas, das quais ela nasceu, sendo que quanto mais sua

origem é esquecida mais fossilizada a representação torna-se.

A partir dos estudos de Moscovici sobre as representações sociais,

muitos teóricos e pesquisadores vêm enriquecendo esse campo em diferentes

áreas de pesquisa das Ciências Humanas e Sociais. Denise Jodelet, principal

colaboradora de Moscovici, contribui significantemente para a sistematização e

o aprofundamento teórico das representações sociais. O conceito de

representações sociais, proposto por Jodelet (2001), é definido como uma

forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada e que contribui

para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. De acordo

com a autora, as representações sociais são saberes de senso comum ou

ainda saberes ingênuos e naturais cujos conteúdos manifestam a operação de

processos generativos e funcionais socialmente marcados. O estudo de tais

fenômenos, como enfatiza a autora, possibilita o desvelamento de diversos

elementos que, tantas vezes, foram estudados isoladamente: “[...] informativos,

cognitivos, ideológicos, normativos, crenças, valores, atitudes, opiniões,

imagens etc.” (JODELET, 2001, p.21).

Somando-se a isso, Moscovici (2003) explica que a função primeira das

representações sociais é tornar o não familiar em familiar. E isso significa que

as representações criadas são sempre o resultado do esforço constante de se

tornar comum e real, algo que é incomum ou não familiar. Segundo o autor,

supera-se o problema integrando-o em nosso mundo mental e físico, que é,

assim, enriquecido e transformado. Esse processo, prossegue o autor,

reestabelece um sentido de continuidade no grupo e no sujeito que se

encontrava ameaçado pela descontinuidade e falta de sentido. É por isso que,

ao estudar uma representação, de acordo com Moscovici (2003), deve-se

descobrir a característica não familiar que a motivou e o momento exato em

que ela emerge na esfera social.

Além disso, as representações sociais possuem outras duas funções.

Em primeiro lugar, elas convencionalizam objetos, pessoas ou acontecimentos

e os localizam em uma determinada categoria, colocando-os gradualmente

como um modelo de determinado tipo partilhado por um grupo de pessoas. Em

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relação a essa função das representações, o autor alerta que nenhuma mente

está livre dos efeitos dos condicionamentos anteriores que lhes são impostos

por suas representações, linguagem e cultura. Retomando essas condições,

pode-se inferir, primeiramente, que os pensamentos dos sujeitos se organizam

conforme um sistema que está condicionado pelas representações. Em

segundo lugar, de acordo com o autor, as representações são prescritivas, uma

vez que se impõem sobre os sujeitos devido à combinação de uma estrutura

que está presente antes de se começar a pensar e de uma tradição que

decreta o que deve ser pensado. Finalmente, vale ressaltar que as

representações são transmitidas de geração à geração e representam “uma

estratificação na memória coletiva e uma reprodução na linguagem que,

invariavelmente, reflete um conhecimento anterior e que quebra as amarras da

informação presente” (MOSCOVICI, 2003, p. 37).

Para explicar a transformação do não familiar em familiar, o autor

apresenta dois mecanismos: ancoragem e objetivação. Esses mecanismos

serão descritos nas partes a seguir.

2.2 A ancoragem

O primeiro mecanismo ancora ideias estranhas e perturbadoras e as

transformam em categorias ou imagens comuns. Ancorar é, nas palavras do

autor, “classificar e dar nome a alguma coisa” (MOSCOVICI, 2003, p. 61). Ao

classificar o que é inclassificável, ao se dar nome ao que era impossível

nomear, superam-se o estranhamento e a resistência ao desconhecido. É

importante, como alerta o autor, compreender as implicações dessa

classificação. Classificar significa confinar algo a um conjunto de

comportamentos e regras que estipulam o que é ou não permitido a todos os

indivíduos pertencentes a essa categoria ou classe. Em outras palavras,

“categorizar alguém ou alguma coisa significa escolher um dos paradigmas

estocados em nossa memória e estabelecer uma relação positiva ou negativa

com ele” (MOSCOVICI, 2003, p. 63). As classificações, segundo o autor, são

feitas comparando pessoas a um protótipo aceito como representante de uma

classe. Nesse sentido, Moscovici (2003) complementa que o ser humano não

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tenta conhecer ou compreender outro indivíduo; de outra feita, tenta

reconhecê-lo, o que segundo o autor, é o mesmo que descobrir a que tipo de

categoria ele pertence. Assim, ancorar implica veredito sobre esse sujeito;

veredito esse que, segundo o autor, é obtido por meio da generalização ou

particularização. A generalização é a seleção de uma característica aleatória

que passa a ser utilizada como categoria, e essa característica se torna

coextensiva a todos os membros dessa categoria.

A particularização, por sua vez, tem como objetivo descobrir que

característica torna o objeto/sujeito distinto. Classificar, esclarece o autor,

implica em nomear. Ao nomear algo, o sujeito é libertado de um anonimato

perturbador e incluído em um complexo de palavras específicas, dessa

maneira, localizando-o na matriz de identidade de sua cultura. Moscovici (2003)

explica que nomear alguma coisa ou pessoa é precipitá-la e são três as

consequências: a pessoa ou coisa nomeada pode ser descrita e adquire certas

características utilizadas nessa descrição; a pessoa ou coisa, por meio dessas

características, torna-se distinta de outras pessoas ou objetos; e, finalmente, a

pessoa ou coisa torna-se objeto de uma convenção entre os que adotam e

partilham a mesma convenção.

Retomando o conceito de ancoragem, Jodelet (1990) explica que a

intervenção do social, nesse caso, traduz-se na significação e na utilidade que

são conferidas à representação. Ao analisar a ancoragem como atribuição de

sentido, a autora afirma que a hierarquia de valores prevalente na sociedade e

em seus diferentes grupos contribui para criar em torno do objeto uma rede de

significações na qual ele é inserido e avaliado como fato social. Jodelet (1990)

prossegue esclarecendo que os elementos da representação não apenas

exprimem relações sociais, mas contribuem para constituí-las. Segundo a

autora, a estrutura imaginante torna-se um guia de leitura da realidade e,

consequentemente, há uma “generalização funcional” que se torna referência

para compreender a realidade. Esse sistema de interpretação, de acordo com a

autora, tem uma função de mediação entre o indivíduo e seu meio e entre os

membros de um mesmo grupo, concorrendo para afirmar a identidade grupal e

o sentimento de pertencimento do indivíduo. A ancoragem torna-se, assim, um

código comum que permite classificar pessoas e acontecimentos, comunicar-se

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usando a mesma linguagem e, portanto, influenciar. A autora enfatiza ainda

que a ancoragem fornece à objetivação seus elementos imaginados a título

de pré-constructos, para servir à elaboração de novas representações.

À luz de Moscovici, Jodelet (1990) esclarece que o processo de

ancoragem está relacionado dialeticamente à objetivação, uma vez que

articula as três funções básicas da representação: a função cognitiva de

integração da novidade, a função de interpretação da realidade e a função

de orientação das condutas e das relações sociais. Conforme a autora, os

processos de ancoragem e objetivação permitem compreender: como a

significação é conferida ao objeto representado; como é utilizada quanto ao

sistema de interpretação do mundo social e instrumentaliza a conduta; e,

finalmente, como se dá sua integração em um sistema de recepção e como

influencia e é influenciada pelos elementos que aí se encontram.

2.3 A objetivação

O segundo mecanismo, para explicar essa transformação do não familiar

em familiar, foi denominado, por Moscovici (2003), como objetivação e tem a

função de transformar algo abstrato em algo quase concreto, transferindo o que

está na mente em algo que existe no mundo físico. Em outras palavras, o autor

esclarece que a objetivação “está fundamentada na arte de transformar uma

representação na realidade da representação; transformar a palavra que

substitui a coisa, na coisa que substitui a palavra” (MOSCOVICI, 2003, p.71). O

autor explica que objetivar é descobrir a qualidade icônica de uma ideia, ou

seja, é reproduzir um conceito em uma imagem.

Fazendo coro com Moscovici, Jodelet (2001) define a objetivação como

uma operação imaginante e estruturante, que dá corpo aos esquemas

conceituais, reabsorvendo o excesso de significações, procedimento

necessário ao fluxo das comunicações. A autora distingue três fases nesse

processo: a construção seletiva, a esquematização estruturante e a

naturalização. A primeira fase corresponde ao processo pelo qual o sujeito se

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apropria das informações e dos saberes sobre um dado objeto. Nessa

apropriação, a autora esclarece que alguns elementos são retidos, enquanto

outros são ignorados ou rapidamente esquecidos. As informações que circulam

sobre o objeto sofrem, de acordo com a autora, uma triagem em função de dois

fatores. O primeiro são os condicionantes culturais, isto é, o acesso

diferenciado às informações em decorrência da inserção grupal do sujeito. O

segundo fator são os critérios normativos os quais explicam que o indivíduo só

retém o que está de acordo com o sistema de valores circundante. Na segunda

fase, a esquematização, a autora explica que uma estrutura imaginante

reproduz, de forma visível, a estrutura conceitual de modo a proporcionar uma

imagem coerente e facilmente exprimível dos elementos que constituem o

objeto da representação, permitindo ao sujeito apreendê-los individualmente e

em suas relações. A última etapa da objetivação, Jodelet (1900) explica que é

a naturalização. Segundo a autora, nessa fase, os conceitos retidos no nó

figurativo e as respectivas relações constituem-se como categorias naturais,

adquirindo materialidade, ou seja, os conceitos tornam-se equivalentes à

realidade e o abstrato torna-se concreto por meio da sua expressão em

imagens e metáforas.

2.4 Núcleo central e sistema periférico

Abric (2003) aponta para o fato de que a objetivação se cristaliza a partir

de um processo figurativo e social e passa a constituir o núcleo central de uma

determinada representação, seguidamente evocada, concretizada e

disseminada como se fosse o real daqueles que a expressam. Ao introduzir o

conceito de núcleo central à teoria das representações sociais, Abric apresenta

o que muitos autores reconhecem como o elemento essencial da

representação. O autor sustenta a hipótese de que toda representação social

está organizada em torno de um núcleo central e de um sistema periférico.

O núcleo central, segundo o autor, determina o significado de uma

representação e, ao mesmo tempo, contribui para sua organização interna,

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uma vez que está relacionado à memória coletiva dando significação,

consistência e permanência à representação sendo, portanto, estável e

resistente a mudanças.

O sistema periférico, ou ancoragem, constitui a parte operacional do

núcleo central e sua concretização mediante a apropriação individual e

personalizada por parte de diferentes pessoas oriundas de grupos sociais

diversos. Abric (2003) destaca cinco funções da ancoragem ou do sistema

periférico na dinâmica das representações sociais. São elas: a concretização

do núcleo central; a regulação das representações sociais, adaptando-as à

realidade do grupo; a prescrição de comportamentos; a proteção do núcleo

central e a elaboração de representações relacionadas à história e às

experiências pessoais do sujeito.

À luz dos conceitos discutidos até o momento, entende-se que o sistema

central estabelece a base das representações sociais, uma vez que está

associado às normas e aos valores partilhados pelo grupo. O sistema

periférico, por sua vez, é mais flexível e heterogêneo, pois incorpora a

contribuição dos indivíduos de acordo com suas experiências e vivências

pessoais. Logo, pode-se dizer que, na ancoragem, o indivíduo tem um papel

mais ativo no processo de construção da representação social. É nesse

componente que o sujeito pode apresentar abertura para conferir um novo

significado para algo. Dessa forma, os elementos periféricos, ou a ancoragem,

constituem uma oportunidade de transformação de representações sociais

alienadas.

Após discorrer sobre os conceitos estruturantes que constituem as

representações sociais, considero importante vincular a noção de ideologia,

essencial para a AD francesa, ao estudo das representações sociais.

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2.5 Representações sociais, ideologia e AD francesa: breve diálogo

necessário

Retomando o discutido na seção primeira deste trabalho, a AD francesa

situa-se num campo de debate que envolve as condições de produção do

discurso e as relações existentes entre ele e a ideologia. Pêcheux (1966)

retoma o conceito de AIE (ALTHUSSER, 1985) para afirmar que os AIE são o

local e o meio para que a ideologia seja propagada a fim de interpelar o

indivíduo em sujeito.

Relacionando o conceito de ideologia com os estudos de representações

sociais, Sousa Filho (2003) argumenta que a ideologia pode ser pensada em

termos de um conjunto de representações cuja função é assegurar as

condições simbólicas da reprodução das relações de produção dominantes nas

sociedades. Para o autor, as representações podem ser definidas como a

menor parte da ideologia, constituindo-se no veículo pelo qual a ideologia

circula na sociedade. Nas palavras do autor:

Como materialização da ideologia em sua menor parte, as representações se tornam visões e práticas duradouras de sujeitos que estão investidos de crenças que as adotam para conceber o mundo, a si próprios e os outros, embora desconheçam a história dessas mesmas crenças e práticas. Através das representações, a ideologia é capaz de significar para cada um o que se é e significar como se deve conduzir em consequência (SOUSA FILHO, 2003, p. 80).

Ao se pensar a ideologia como um conjunto de representações (SOUSA

FILHO, 2003), assume-se que identificando as representações sociais que o

sujeito tem do mundo, por meio das marcas linguísticas que se repetem dentro

das formações discursivas, inicia-se o processo de reconhecimento da

ideologia que interpela o indivíduo em sujeito. Dessa forma, torna-se tangível

analisar a inscrição do outro, ou o interdiscurso, no discurso do sujeito, e

consequentemente se reconhecem valores e ideias circulantes em dada

sociedade. Essas ideias têm influência direta na identidade do sujeito, uma vez

que aquilo que o sujeito acredita é aquilo que o faz agir ou não agir,

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direcionando sua relação com o mundo e o modo como se percebe na

sociedade.

Nesta seção, ressaltei o papel das representações sociais na

constituição da subjetividade dos sujeitos a partir dos mecanismos de

ancoragem e objetivação propostos por Moscovici (1984; 2003), Jodelet (1990;

2001). Retomo, também, os conceitos de núcleo central e sistema periférico

propostos por Abric (2003) e considerados por muitos teóricos como elementos

essenciais da representação. Ao término da seção, estabeleço uma relação

entre ideologia, representações sociais e a AD francesa por meio dos estudos

de Sousa Filho (2003).

Na seção seguinte, discorrerei sobre o conceito de identidade e o

relacionarei com os estudos de representações sociais, assim, objetivando

compreender como as identidades dos sujeitos desta pesquisa transformaram-

se na sua relação com as línguas que os constituem.

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Identidades

O senhor... mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. 8

8 ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967. p.24.

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SEÇÃO 3

Identidades

Nesta seção, discuto o conceito de identidade. Na seção primeira,

descrevi como a AD francesa reflete o percurso histórico, social e cultural do

sujeito, revelando quais discursos que perpassam a sua identidade diante da

materialização da sua linguagem. É importante ressaltar que parto da premissa

de que a identidade se forma ao longo do tempo e por meio de processos

inconscientes, uma vez que o processo de identidade é constituído ao decorrer

da vida do sujeito e orientado por vários interdiscursos que se revelam a partir

da produção discursiva.

Na segunda seção, discuti o conceito de representações sociais, uma

vez que, nas formações discursivas produzidas pelos sujeitos, há marcas

linguísticas que revelam as representações que o sujeito tem do mundo.

A bem da verdade, não se pode desprezar o fato de que a identidade,

conceito discutido nesta seção, também se constitui a partir das

representações que um grupo ou sociedade possui em torno dele mesmo. A

esse respeito, Woodward (2000, p.17) argumenta que:

A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar.

Desse modo, entender como os bilíngues desta pesquisa, falantes de

português e inglês, percebem-se e percebem as línguas que os constituem é

essencial para entender como captam essas referências e são por elas

afetados na construção de suas identidades.

Somando-se a isso, Shotter e Gergen (1989) afirmam que nossas

identidades são construídas através de nossas práticas discursivas com o

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outro. A esse respeito, Moita Lopes (1998) esclarece que os indivíduos têm

suas identidades construídas de acordo com o modo que se vinculam a um

discurso – o seu próprio e o discurso dos outros. Logo, pode-se dizer que não

há construção identitária desvinculada do discurso. Portanto, a identidade do

sujeito bilíngue constrói-se nas diferentes práticas discursivas em que ele se

engaja e pelas quais se relaciona com o outro. Nesse sentido, apoio-me em

Moita Lopes (2002) para afirmar que o indivíduo se constitui em um movimento

de vai e vem da percepção e da representação do outro sobre ele mesmo.

Para subsidiar esta discussão, resgato da literatura construtos teóricos

defendidos por autores pós-modernos, como Hall (2005), Bauman (2005),

Norton (1995) e Coracini (2003; 2007). Recorro também a outras áreas de

conhecimento para melhor compreender minhas questões de pesquisa. Busco

esteio no psicólogo social Ciampa (1984; 1990; 2004), que entende a

identidade como um construto social e, a partir disso, desenvolve os conceitos

de pressuposição da identidade (CIAMPA, 1990), mesmice (CIAMPA, 1984) e

mesmidade (CIAMPA, 1990). Retomo também o conceito de estigma do

sociólogo Goffman (1988), que reflete acerca do processo constitutivo da

identidade de sujeitos que se distinguem dos outros. Atrelado a esse conceito,

resgato a noção de preconceito linguístico, difundida no Brasil, por Bagno

(2002).

3.1 O conceito de identidade empregado

O conceito de identidade tem sido amplamente discutido e, ao mesmo

tempo, problematizado nos últimos anos, por estudiosos de diversas áreas e a

partir de diferentes linhas teóricas. Coracini (2003) enfatiza que vivemos em um

momento privilegiado de questionamentos de tudo que parece preestabelecido

e justificado, sendo, em meio a tantos questionamentos, que o sujeito procura

reconhecer-se e encontrar uma explicação de sua própria condição. A

compreensão do sujeito – da pessoa, do ser, do homem/mulher, etc. – sempre

foi uma temática instigante, pois, afinal, o ser humano (pre)ocupa-se com ele

mesmo na tentativa de responder à célebre pergunta: Quem somos nós?.

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Porém essa pergunta não pode ser dissociada de onde estamos, de onde

viemos, para onde vamos? Sobre esse ponto, aliás, é preciso salientar que

conhecer o humano não é expulsá-lo do universo, mas sim situá-lo.

Historicamente, é possível localizar que, toda vez que uma mudança

epistemológica ocorre, torna-se preciso também ver o homem na história e

(re)conceitualizar o sujeito para que ele se conscientize sobre o modo como o

conhecimento estrutura a mente humana. Hall (2005) contribui para esta

discussão ao conceitualizar a noção de sujeito em consonância com os

diferentes períodos históricos:

a) sujeito do iluminismo: o sujeito do iluminismo estava baseado numa

concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado,

unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo

"centro" consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o

sujeito nascia e se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o

mesmo - contínuo ou "idêntico" a ele - ao longo da existência do indivíduo.

b) sujeito sociológico: a noção de sujeito sociológico refletia a crescente

complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior

do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas era formado na relação

com outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o sujeito os

valores, sentidos e símbolos, a cultura, dos mundos que ele habitava.

c) sujeito pós-moderno: o sujeito pós-moderno torna-se fragmentado; composto

não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou

não resolvidas. À medida que os sistemas de significação e representação

cultural se multiplicam, o sujeito é confrontado por uma multiplicidade

desconcertante e cambiante de identidades possíveis e com cada uma das

quais se identifica ao menos temporariamente. A identidade do homem pós-

moderno é definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume

identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são

unificadas ao redor de um "eu" coerente. Dentro dele, há identidades

contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que essas

identificações são continuamente deslocadas.

Neste cenário, emerge também o processo de globalização, quebrando

antigos paradigmas e reforçando algumas características desse momento

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histórico. O fenômeno, que “tende a desenraizar as coisas, as gentes e as

ideias” (IANNI, 1999, p. 94), interfere diretamente na conceptualização da

identidade e na fragmentação do sujeito, além de atingir as diversas relações

sociais nos mais variados níveis e afetar o modo de ser e agir da sociedade, na

qual agora vigoram dualidades como global/local, coletivo/individual,

micro/macro e concreto/abstrato. Somando-se a isso, Bauman (2005)

acrescenta que a noção de identidade herdada da Modernidade naufraga em

um contexto fluido em que verdades, outrora inquestionáveis, são postas em

xeque e nascem novas formas de sociabilidade sob os auspícios da

globalização no mundo capitalista contemporâneo. Para o autor, na

contemporaneidade, a tônica recai no individualismo, na solidão e na exclusão

gritantes nos mais diversos contextos sociais. A partir desse mesmo prisma,

Coracini (2003) salienta que, ainda que os defensores deste fenômeno

neguem, a globalização pretende a centralização e a homogeneização de tudo

e todos, o que contribui para a caracterização de uma crise da identidade,

provocada, em grande parte, pela ideologia da globalização.

Neste estudo, o conceito de identidade é concebido a partir da

concepção de sujeito pós-moderno apresentada acima. De acordo com Hall

(2005), a identidade de um sujeito é formada e transformada continuamente em

relação às formas pelas quais este é representado ou interpelado nos sistemas

culturais que lhe rodeiam. Frente a esta postura teórica adotada, pode-se

considerar que a identidade do sujeito se constrói na/através da linguagem e,

por isso, não se pode falar em identidades fixas; as identidades estão sempre

em estado de fluxo.

Não é à toa que Bauman (2005) assevera que a constituição identitária

deve ser considerada um processo contínuo de redefinir-se e de inventar e

reinventar sua própria história, pois a identidade, como afirma Coracini (2007),

tem sua existência no imaginário do sujeito que se constrói nos e pelos

discursos imbricados que o constituem. Porém é importante salientar que,

apesar da identidade ser tratada como um processo ficcional, pois, como

salienta Bauman (2005), a inventamos, não se deve desmerecê-la, visto que,

por meio desse processo, o sujeito revela como se posiciona no decorrer de

sua história.

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Neste mesmo universo conceitual, Norton (1995) também defende a

concepção de uma identidade múltipla e suscetível a mudanças. Para esta

autora, o termo identidade refere-se ao modo pelo qual as pessoas

compreendem sua relação com o mundo, como tal relação é construída através

do tempo e do espaço e como essas mesmas pessoas entendem suas

possibilidades para o futuro. Para Norton (1995), a noção de identidade está

intimamente ligada aos desejos de reconhecimento, afiliação e segurança. A

autora completa que a língua constitui e é constituída pela identidade do

sujeito, que, por intermédio dela, negocia a noção do “eu” em meio a ambientes

diferentes e em pontos distintos no tempo. A autora afirma ainda que, ao falar,

os aprendizes não estão apenas trocando informações com o interlocutor: eles

estão constantemente organizando e reorganizando o senso de quem são e de

como se relacionam com o mundo. Durante esse processo, os aprendizes

estão envolvidos na construção e na negociação de suas identidades.

Em consonância à concepção defendida por Norton, um dos estudiosos

brasileiros mais significativos do conceito identidade, Ciampa (1990), defende

que a identidade é um constructo social resultante da relação dialética entre o

sujeito e a sociedade. Nessa relação, de acordo com o autor, o sujeito é

configurado não apenas como personagem, mas também como autor de sua

própria história. Essa configuração, salienta Ciampa (1984), ocorre uma vez

que não se pode isolar, de um lado, todo um conjunto de elementos biológicos,

psicológicos e sociais que podem caracterizar um indivíduo9; e de outro lado, a

representação desse sujeito como uma duplicação simbólica que expressaria

sua identidade. Dessa forma, há uma interpenetração desses dois aspectos, o

que impossibilita a separação da identidade pressuposta e a representação

desse indivíduo.

9 Como explicitado na nota de rodapé número 4, da página 20, este estudo tem como base teórico-metodológica a análise de discurso de linha francesa que faz uso da denominação sujeito. Na AD francesa, o sujeito difere do indivíduo por estar em uma relação de assujeitamento e de pertencimento a uma memória discursiva. A partir dessa perspectiva, emprego o termo sujeito em minhas perguntas de pesquisa e também no decorrer desta dissertação quando o assunto tratado for discutido a partir da análise de discurso de linha francesa. Nesta seção, no entanto, recorro a outras áreas de conhecimento para melhor compreensão de minhas questões de pesquisa, uma vez que a linguística aplicada converge em um processo transdisciplinar de produção de conhecimento (MOITA LOPES, 2006). Desse modo, busco esteio na psicología social (CIAMPA, 1984; 1990; 2004), na sociología (GOFFMAN, 1988) e na filosofía (HABERMAS, 1976) para me aprofundar na discussão do conceito identidade. Esses autores, em suas diferentes áreas de conhecimento, fazem uso da denominação indivíduo (e não sujeito, como na análise de discurso francesa), uma vez que não se remetem a questão do assujeitamento e da memória discursiva. Sendo assim, opto por manter a denominação indivíduo utilizada pelos autores. Porém mantenho o termo sujeito em minhas perguntas de pesquisa, pois utilizarei os conceitos desenvolvidos por esses autores, dentro da perspectiva que me proponho, a AD francesa.

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Sendo assim, faz-se fundamental entender que sempre há a

pressuposição de uma identidade (CIAMPA, 1990), isto é, sempre, existe

uma predicação atribuída ao indivíduo pelo outro, ou seja, há uma nomeação

de atributos individuais nas relações que se dão no âmago de uma estrutura

social. Trata-se, então, de uma identidade que é dada, atribuída, outorgada e

mediada pelo outro. Assim, de acordo com essa pressuposição, o sujeito, como

ser social, é um ser-posto (CIAMPA, 1990), uma vez que carrega em si o

conhecimento compartilhado socialmente e as expectativas dos outros no que

se refere ao modo como um determinado indivíduo deve agir e ser.

A partir da pressuposição da identidade, Ciampa (1990) compreende a

identidade como um processo de metamorfose permanente, uma vez que

pressuposta e posta, a identidade é reposta, o que Ciampa (1984) denomina

como mesmice. Em outras palavras, a mesmice é a reposição da identidade

pressuposta por meio de ritos sociais ou pela reposição de personagens

estereotipados. Isso equivale a dizer que mesmo quando a identidade é

percebida como estática – parecendo não sofrer modificação alguma – ela está

sendo transformada à medida que, por meio de ações, o indivíduo “repõe”

aquilo que a sociedade “põe” como certo, isto é, aquilo que as normas sociais e

a ideologia dominante estabelecem ser o mais adequado, criando, como afirma

Ciampa (1990), a identidade mito que apenas reproduz o social sem

questionamento e/ou responsabilidade por parte do indivíduo com relação à

sua identidade.

Opondo-se à mesmice, ou ao ser-feito-pelo-outro, como argumenta

Ciampa (1990), a mesmidade, ou o ser-para-si é a superação da identidade

pressuposta, ou seja, o indivíduo emancipa-se de valores estigmatizantes e

preconceituosos impostos pela sociedade e/ou apropriados por ele,

possibilitando um agir mais livre e criativo para realização de suas metas e

desejos. Assim, o indivíduo sai do movimento de reposição e busca o outro;

“outro” que também é ele, isto é, o “outro” que se quer ser pela superação da

identidade pressuposta.

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Ciampa (1984) alerta para o fato de que essa nova identidade necessita

de reconhecimento social. Esse novo conteúdo identitário do Ego precisa ser

reconhecido pelo Alter para que esse sentido pessoal se estabilize como

significado socialmente compartilhado, o que permite que se desenvolva uma

nova rede intersubjetiva.

Sob esse mesmo prisma, Ciampa (1990) afirma que a identidade é a

articulação entre a diferença e a igualdade: o outro designa o eu, da mesma

forma que a identidade do indivíduo é também “determinada pelo que não é

ele, pelo que o nega” (CIAMPA, 1990, p.137). Essa identificação e

diferenciação não podem ser apreendidas à margem dos sistemas de

significação social vigentes. O autor prossegue salientando que ter

características e comportamentos apontados pela sociedade como

indesejáveis pode suscitar sanções e reprimendas, o que remete à ideia de que

a construção da identidade não ocorre de forma harmoniosa ou equilibrada,

mas é fruto de um jogo de poderes, em que a dominância dos grupos

hegemônicos aponta o socialmente valorizado e influencia a constituição da

identidade.

3.2 Estigma e preconceito

À luz das discussões estabelecidas até o momento, busco esteio em

Goffman (1988), especificamente na obra Estigma: notas sobre a manipulação

da identidade deteriorada, para refletir acerca do processo constitutivo da

identidade a partir das considerações apontadas a respeito da manipulação da

identidade de indivíduos que se distinguem dos outros em determinado

contexto, por uma marca que lhe é peculiar - o estigma.

Nessa obra, o autor introduz o conceito de identidades sociais virtuais

e identidades sociais reais. As identidades sociais virtuais são constituídas

pelas afirmativas em relação àquilo que o indivíduo outro deveria ser. O

conceito de identidades sociais virtuais, apresentado por Goffman (1988), pode

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ser alinhado ao conceito de identidade pressuposta, proposto por Ciampa

(1984), uma vez que essas preconcepções são transformadas em expectativas

normativas e exigências apresentadas de modo rigoroso pela sociedade. Por

sua vez, a categoria e os atributos que o indivíduo, na verdade, prova possuir

são chamados de sua identidade social real.

A discrepância entre a identidade social virtual e a identidade social real

é responsável pela produção do estigma. Segundo Goffman (1988), em

contato com o estranho, o indivíduo tem evidências de que esse estranho tem

um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria

que pudesse ser incluído. Essas características que o diferenciam são

denominadas estigma.

Goffman (1988) distingue três tipos de estigma:

1. As abominações do corpo ou deformidades físicas.

2. As culpas de caráter individual, como, por exemplo, o distúrbio mental,

a prisão, o vício, o homossexualismo e tentativas de suicídio, entre outros.

3. Estigmas tribais de raça, nação e religião.

Este trabalho trata do terceiro tipo de estigma proposto pelo autor, uma

vez que, ao se compararem com falantes oriundos de países de língua inglesa,

falantes bilíngues brasileiros colocam-se em uma posição estigmatizada, seja

por sua condição de latino e de ideias preconcebidas acerca de ser brasileiro,

ou por um sentimento de inferioridade pela percepção de diferenças no

sotaque quando comparado a falantes oriundos de países de língua inglesa.

O termo estigma, ressalta o autor, oculta uma dupla perspectiva: o

indivíduo que assume que a sua característica distintiva já é conhecida ou é

imediatamente evidente – condição de desacreditado ou, então, que ela não é

nem conhecida pelos presentes nem imediatamente perceptível por eles –

condição de desacreditável. Goffman (1988) pontua que o sujeito

desacreditável manipula a informação sobre sua marca, decidindo exibi-la ou

ocultá-la dependendo de como, para quem, quando e onde. Há, dessa forma,

uma manipulação da informação oculta que desacredita o eu, ou seja, um

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encobrimento (GOFFMAN, 1988). De acordo com o autor, há na literatura

cinco ciclos naturais nesse processo:

1. Encobrimento inconsciente, que o indivíduo pode nunca perceber.

2. Encobrimento involuntário, que o indivíduo pode perceber com

surpresa no meio do processo.

3. Encobrimento “de brincadeira”, que é o encobrimento em momentos

não rotineiros da vida social, como férias e viagens.

4. Encobrimento em ocasiões rotineiras da vida diária, como no trabalho

e em situações de serviço.

5. Desaparecimento, que é o encobrimento completo em todas as áreas

da vida.

Goffman (1988) chama a atenção para o fato de que alguns poucos

indivíduos não conseguem viver de acordo com o que é efetivamente exigido e

esperado dele, mas que, ainda assim, permanecem alheios à sua inadequação

em relação ao que a sociedade espera deles e se protegem por crenças de

identidades próprias. No entanto Goffman (1988) ressalta que a grande maioria

de indivíduos estigmatizados tende a ter as mesmas crenças sobre identidade

que o grupo dominante possui.

O autor pontua ainda que indivíduos estigmatizados tendem a ter

experiências semelhantes de aprendizagem relativa à sua condição e a sofrer

mudanças semelhantes na concepção do eu, isto é, uma carreira moral

semelhante, que é não só causa como efeito do compromisso com uma

sequência semelhante de ajustamentos pessoais (GOFFMAN, 1988). Para

Goffman (1988), há duas fases nesse aprendizado. Uma das fases é a que a

pessoa estigmatizada aprende e incorpora o ponto de vista dos outros

indivíduos do grupo dominante, adquirindo, dessa forma, as crenças da

sociedade mais ampla em relação à identidade e uma ideia geral do que

significa possuir determinado estigma. Em outra fase, o indivíduo aprende que

possui um estigma particular e, dessa vez, detalhadamente, as consequências

de possuí-lo. Segundo o autor, a sincronização e interação dessas duas fases

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iniciais da carreira moral formam quatro modelos, descritos a seguir, que

estabelecem as bases para um desenvolvimento posterior e distinguem entre

as carreiras morais disponíveis para os estigmatizados:

1. O primeiro modelo envolve indivíduos que possuem um estigma

congênito e que são socializados dentro de sua situação de desvantagem,

mesmo aprendendo e incorporando os padrões frente aos quais fracassam.

2. O segundo modelo deriva da capacidade da família ou grupo no qual

o indivíduo está inserido de controlar as informações que o diminuiriam,

enquanto se dá acesso a outras concepções da sociedade mais ampla. Esse

indivíduo encapsulado passa, dessa forma, a considerar-se inteiramente

qualificado, o que não impede que, em algum momento de sua vida, ocorra a

aprendizagem do estigma.

3. O terceiro modelo engloba indivíduos que se tornaram estigmatizados

numa fase avançada da vida ou aprenderam muito tarde que sempre foram

desacreditáveis, o que envolve uma reorganização radical de seu passado.

4. O quarto modelo, no qual alguns participantes deste trabalho se

inserem, diz respeito a indivíduos que são inicialmente socializados numa

comunidade diferente, dentro ou fora das fronteiras geográficas da sociedade,

e que devem posteriormente aprender uma segunda maneira de ser validado

pelo grupo social à sua volta.

Em contato com o grupo dominante, o que autor define como situações

sociais mistas, os indivíduos estigmatizados tentam corrigir diretamente o que

consideram a base objetiva de seu defeito, ocorre aqui a vitimização, que é

quando a pessoa estigmatizada se rende a servidores que vendem meios para

corrigir a fala, para clarear a cor da pele ou para esticar o corpo, por exemplo.

Indo mais além, Goffman (1988) esclarece que, quando o indivíduo

adquire tardiamente o ego estigmatizado, como é o caso de muitos dos sujeitos

desta pesquisa, as dificuldades para estabelecer novas relações podem se

estender também a relações antigas, uma vez que as relações anteriores

podem não conseguir tratá-lo “nem com um tato formal nem com uma

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aceitação familiar total” (GOFFMAN, 1988, p. 45). O autor salienta que há

também exemplos de indivíduos que se desviam, quer em atos ou em atributos

que possuem, do grupo estigmatizado a que pertencem. Esses indivíduos,

como explica Goffman (1988), são denominados desafiliados ou desviantes

sociais, e voluntária e abertamente recusam-se a aceitar o lugar social que

lhes é destinado.

Na esfera do discutido por Goffman (1988), há ainda outra situação a ser

considerada: o preconceito linguístico. O preconceito linguístico é um conceito

marxista, criado pelo sociólogo Nildo Viana, calcado em escritos de Pierre

Bordieu, como demonstração de outra forma de opressão e luta de classes.

O principal defensor desse conceito, no Brasil, é o professor Marcos

Bagno. Bagno (2002) alerta para a existência do preconceito linguístico como

uma forma recorrente e atual de preconceito. Em seu livro, Preconceito

linguístico – o que é, como se faz, o autor atém-se a discutir a questão dos

vários preconceitos, praticados pelos próprios brasileiros, em relação à língua

portuguesa falada no Brasil. Segundo o autor, a noção de correto, imposta pelo

ensino tradicional, origina um preconceito contra as variedades não padrão de

português faladas no Brasil.

O autor ressalta, ao longo de seu livro, uma série de afirmações que já

fazem parte da imagem (negativa) que o brasileiro tem de si mesmo e da

língua falada por aqui, como a de que o português é uma língua difícil e a de

que brasileiros não sabem português. Essas afirmações parecem se estender

também no que tange ao sotaque brasileiro ao falar inglês. Possuir sotaque

brasileiro parece ser visto como uma desvantagem e, desse modo, existe uma

tentativa de encobri-lo, de escondê-lo.

Bagno (2002) salienta que os preconceitos impregnam-se de tal maneira

na mentalidade das pessoas que as atitudes preconceituosas se tornam parte

integrante do seu próprio modo de ser e de estar no mundo e alerta para o fato

de que “o tipo mais trágico de preconceito não é aquele que é exercido por

uma pessoa em relação a outra, mas o preconceito que uma pessoa exerce

contra si mesma” (BAGNO, 2002, p.75). O autor atribui à união de quatro

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elementos a formação do preconceito linguístico no Brasil: à gramática

tradicional, aos métodos tradicionais de ensino, aos livros didáticos e aos

comandos paragramaticais, os quais o autor define como sendo “todo esse

arsenal de livros, manuais de redação de empresas jornalísticas, programas de

rádio e de televisão, colunas de jornal e de revista, CD-ROMS, consultórios

gramaticais” (BAGNO, 2002, p.76).

Segundo o autor, tanto os livros didáticos quanto os recursos

paragramaticais, que poderiam ter utilidade para quem tem dúvidas na hora de

falar ou de escrever, acabam perdendo-se por trás da espessa neblina de

preconceito que envolve essas manifestações da (multi)mídia. Assim,

perpetuam as velhas noções de que brasileiro não sabe português e de que

português é muito difícil. Acrescento a isso, a questão do sotaque brasileiro ao

falar inglês. Inúmeros são os recursos que, sob a mesma neblina de

preconceito, prometem reduzi-lo ou mesmo apagá-lo. Com isso, mais uma

forma de preconceito contra o português falado no Brasil é disseminado, o que

acarreta em mais uma ideia negativa que o brasileiro tem de si mesmo e da

língua que fala. Ideias essas, conscientes ou não, têm implicações direta na

construção e na negociação das identidades de sujeitos bilíngues brasileiros.

Nesta seção, abordei os estudos sobre identidade a partir da perspectiva

da Pós-Modernidade com base em Hall (2005), Bauman (2005), Norton (1995)

e Coracini (2003; 2007). Nessa perspectiva, retomei os estudos de Ianni (1999)

para discorrer a respeito das implicações da globalização na conceptualização

da identidade e na fragmentação do sujeito na Pós-Modernidade. Recorri

também a outras áreas de conhecimento para melhor compreender minhas

questões de pesquisa. Busquei esteio no psicólogo social Ciampa (1984; 1990;

2004), que entende a identidade como um construto social e, a partir disso,

desenvolveu os conceitos de pressuposição da identidade (CIAMPA, 1990),

mesmice (CIAMPA, 1984) e mesmidade (CIAMPA, 1990). Dentro da filosofia,

recorri a Habermas (1976) que enfatiza o conceito de individuação relacionado

à noção de mesmice desenvolvida por Ciampa (1984). Finalmente, retomei o

conceito de estigma do sociólogo Goffman (1988), que reflete acerca do

processo constitutivo da identidade de sujeitos que se distinguem dos outros.

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Atrelado a esse conceito, resgatei a noção de preconceito linguístico, difundida

no Brasil, por Bagno (2002).

Revisando o percurso traçado até aqui, compreendo o desafio de

abordar a identidade não como uma descrição em termos objetivantes, mas,

sim, como compreensão do processo constante de formação e transformação

do indivíduo.

Na seção seguinte, enfatizo o aporte teórico sobre língua materna,

língua estrangeira e bilinguismo, que servirão de base para minhas análises.

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Vida entre línguas

Nós temos sempre necessidade de pertencer a alguma coisa; e parece que a liberdade plena seria a de não pertencer a coisa nenhuma. Mas, como é que se pode não pertencer à língua que se aprendeu, à língua com que se comunica e com que se escreve?10

10 LOPES, Victor. Entrevista de José Saramago em Língua – Vidas em Português (documentário). Brasil/Portugal, 2004. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=b7cIiiHmFI8 >. Acesso em: dez. 2011.

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SEÇÃO 4

Vida entre línguas

Revuz (1998), a partir dos estudos sobre a enunciação e de

contribuições da psicanálise a respeito da incidência da língua na constituição

identitária do sujeito falante, afirma que a língua é "o material fundador de

nosso psiquismo e de nossa vida relacional" (REVUZ, 1998, p.217). Sendo

assim, este trabalho parte do pressuposto de que o sujeito se constitui pela e

na linguagem. À luz dos estudos lacanianos, tomo como base que o sujeito não

tem uma identidade anterior e fora da língua, uma vez que o mundo humano é

o mundo da linguagem e não há nada aquém ou além da linguagem. Levando

em consideração tal posicionamento, ao se referir a sujeitos falantes de mais

de uma língua, qual é o papel da língua materna e da língua estrangeira em

sua constituição identitária? No que se constitui essa língua materna e essa

língua estrangeira?

Nas duas partes seguintes, proponho-me a refletir sobre o que é língua

materna e língua estrangeira e a imbricação dessas na constituição da

identidade de sujeitos fal(t)antes de mais de uma língua. Na última parte,

discorro sobre as noções de bilinguismo, sujeito bilíngue e bilingualidade.

Noções essas, importantes para a análise das representações que os sujeitos

desta pesquisa têm sobre as línguas que os constituem e sobre sua

bilingualidade dentro do quadro teórico da AD francesa.

4.1 O que é esta língua dita materna?

De um modo geral, o termo língua materna leva em consideração a terra

onde se nasce, o sangue que se herda e a língua na qual se é criado. Coracini

(2003) explica que língua materna significa etimologicamente língua da mãe.

Mas acrescenta que não se pode tomar a definição ao pé da letra, uma vez que

há sociedades em que a língua ensinada é a língua do pai ou que a criança é

educada por outra mulher, a qual possui outra língua. A autora prossegue

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afirmando que, na escola, assume-se como língua materna a língua na qual a

criança é alfabetizada, língua esta que nem sempre coincide com a primeira

língua na qual a criança aprendeu a falar. Coracini (2003) aponta ainda para o

fato de que língua materna indica também a primeira língua adquirida, todavia

esclarece que há casos de bilinguismo simultâneo, quando a criança adquire

duas línguas ao mesmo tempo, como é o caso de muitos participantes desta

pesquisa.

Porém Maher (1998) esclarece que, em termos de língua materna,

ultrapassam-se diferenças linguísticas e se coloca em jogo questões

relacionadas à identidade. Diante dessa complexidade na qual se deslocam

escopos estritamente linguísticos, recorro aos estudos psicanalíticos e aos

estudiosos do ser-estar entre línguas, como Melman (1992), Revuz (1998),

Maher (1998) e Coracini (2003/2007), que se distanciam de acepções

simplistas acerca de constituição da língua materna.

Revuz (1998) alerta para o fato de que a língua materna é a língua

primeira aprendida por um falante, língua essa que o assujeita e o torna um

sujeito da linguagem, uma vez que molda suas bases de estruturação psíquica

e solicita uma prática complexa: o relacionar-se consigo mesmo, com os outros

e com o mundo.

Melman (1992), por sua vez, relata que, durante muito tempo,

perguntou-se o que era uma língua materna, uma vez que frequentemente se

fala mais de uma língua e, por vezes, a língua estrangeira é utilizada com uma

maior facilidade. Ao prosseguir, o autor explica que se pode pensar que a

língua materna veicula a lembrança daquela que introduziu o sujeito à fala e

esclarece que a língua materna é aquela “na qual, para aquele que fala, a mãe

foi interditada” (MELMAN, 1992, p. 32). Ela é dita “materna”, porque, nela, falta

justamente o que pode ser considerado “materno”, ou seja, a lembrança

daquela que, primeiramente, introduziu o sujeito à fala, como assinala o

psicanalista:

A língua materna [...] é aquela na qual funcionou para o pequeno falante, para o sujeito que a articula, o interdito de sua mãe. E a chamamos “língua materna” porque é inteiramente organizada por este interdito que, de algum modo, imaginariza o impossível próprio a toda língua (MELMAN, 1992, p. 44).

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Esse conceito de interdição empregado por Melman advém de Lacan.

Em o Estádio do Espelho como Formador da Função do “Eu”, Lacan

(1966/1998) apresenta três etapas para a constituição do Eu, trabalhando o

fenômeno pelo qual uma criança reconhece sua imagem no espelho.

Inicialmente, a criança reage à sua imagem no espelho como uma realidade ou

uma imagem de um outro. Após esse período, a criança deixa de tratar essa

imagem como um objeto real e entende que o reflexo no espelho não passa de

uma imagem. E, em uma terceira etapa, a criança, finalmente, por volta dos 18

meses, reconhece esse outro como sua própria imagem. Trata-se do processo

de identificação, como conquista progressiva da identidade do sujeito. De

acordo com Fages (1977), essa identificação primária da criança com sua

imagem é o tronco de todas as outras identificações.

Na terceira etapa, que é a da identificação ao pai, ocorre a aquisição da

linguagem e, com isso, a entrada da criança na ordem simbólica. Para tanto, a

mãe precisa reconhecer o pai como representante da lei para que a criança

identifique o pai como aquele que detém o falo. O pai é aquele que repõe o falo

em seu devido lugar: como objeto desejado pela mãe e distinto da criança.

Assim, o pai castra a criança, distinguindo-a do falo e separando-a da mãe

(castração simbólica) e a criança encontra sua justa posição na família. Com

isso, a criança ultrapassa a relação dual com a mãe, adquire subjetividade e

entra no mundo da linguagem.

Melman (1992) esclarece que a língua materna é a própria condição de

estruturação psíquica, pois, a partir da inscrição do sujeito no universo da

linguagem, ele subjetiva-se e se torna Eu. Além disso, ao ser a língua na qual a

mãe é interditada, é também a língua do desejo, uma vez que o desejo é

produzido por essa interdição.

Esse desejo, segundo Fages (1977), segue-se a essa falta essencial

que, separada de sua mãe, a criança sofre. O desejo tende a preencher a falha

– a castração – que é a separação da mãe. Como a criança não consegue

satisfazer o desejo de ser o falo da mãe, o desejo de ser a mãe, a criança

deseja o Outro, mas precisamente deseja ser reconhecido pelo Outro.

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4.2 O que é esta língua dita estrangeira?

A língua estrangeira, assim como a língua materna, apresenta também

diversas acepções. É também chamada de segunda língua, como no caso de

imigrantes que aprendem a língua do país para o qual emigraram; ou, em

países europeus e no Canadá, tal denominação é concebida pela ordem de

colocação das línguas existentes no currículo escolar. Coracini (2003) alerta

para o fato de que há diferentes graus de estrangeirização e de estranhamento.

Para a autora, a língua estrangeira é a língua “estranha”, a língua do estranho,

do outro.

Se, como Melman (1992) conceitua, a língua materna é o lugar de

interdição, uma vez que carrega o peso da história do sujeito e, assim, do

imaginário resultante da ideologia que naturaliza o que foi construído; a língua

estrangeira, por sua vez, é o lugar onde quase tudo é permitido, onde os

desejos podem irromper mais livremente, uma vez que, como afirma Coracini

(2003), ainda, não foi moldada pelos interditos. Melman (1992) afirma ainda

que, quando se fala uma língua estrangeira - estrangeira comparada à língua

materna que teceu o inconsciente -, o retorno do recalcado na língua

estrangeira não é mais escutado como a expressão de um desejo, mas apenas

como a expressão de erros gramaticais, sintáticos ou lexicais. Coracini (2003)

apresenta como prova cabal desse fenômeno o fato de um falante estrangeiro

ser todo comedido em sua própria língua, mas que faz uso de palavras de

baixo-calão na língua estrangeira. A autora exemplifica que, muitas vezes, por

mais desenvoltura que se tenha em uma língua estrangeira, ela não é capaz de

dizer o que se gostaria ou como seria capaz na língua materna. A partir disso,

se pode dizer que a língua materna e a língua estrangeira têm funções

diferentes. Coracini (2003) afirma que a língua materna é a língua dos desejos

interditados que escapam por meio das metáforas, metonímias, deslizes,

lapsos ou chistes. A língua estrangeira, por sua vez, é, segundo a autora, a

língua que permite dar vazão a esses desejos interditados, criando a impressão

de liberdade, uma vez que se constitui nas zonas de não interdição.

Para Coracini (2007), a língua chamada estrangeira tem uma função

formadora, uma vez que atua na imagem do sujeito falante e dos outros e na

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constituição identitária do sujeito do inconsciente. Na mesma direção, Revuz

(1998) afirma que o encontro com a língua estrangeira faz vir à consciência

algo do elo que se mantém com a língua materna. Coracini (2007)

complementa que a língua estrangeira sempre traz consigo consequências

indeléveis para a constituição do sujeito: outras vozes, outras culturas, outro

modo de organizar o pensamento e outro modo de ver o mundo e o outro. São

essas vozes que irão se entrelaçar no inconsciente do sujeito e provocar

reconfigurações identitárias e rearranjos subjetivos. De acordo com a autora,

esses rearranjos produzem-se porque a língua estrangeira, o outro, penetra

como fragmentos que incomodam, desarranjam, confundem e deslocam as

bases repousantes da língua materna e da cultura local. Para a autora, uma

língua estrangeira constitui um conjunto de fragmentos estranhos que

perturbam, confundem e, com isso, colocam em questão o modo de ser e de se

posicionar do sujeito. Coracini (2003) ressalta também a importância de se

compreender que a língua estrangeira traz consigo, à revelia do aprendiz, uma

carga ideológica que o coloca em conflito permanente com a ideologia da

língua materna.

A estranheza à língua estrangeira, apontada por Coracini (2003), pode

provocar reações que vão desde o medo de aprender uma língua estrangeira

até uma atração irresistível por essa língua. Na mesma direção, Revuz (1998)

afirma que a língua estrangeira vai confrontar o sujeito com um recorte do real

em unidades de significação desprovidas de carga afetiva. Dessa forma, o

arbitrário do signo linguístico torna-se uma realidade tangível, vivida pelos

sujeitos na exultação ou no desânimo.

Complementando essa ideia, Melman (1992) aponta para o fato de que

há hipóteses que explicam a resistência inconsciente ao aprendizado de uma

língua estrangeira pelo medo da perda da identidade ou da perda de si que a

outra língua pode implicar. Revuz (1998) reforça essa hipótese ao salientar que

o medo pode bloquear aprendizagens, impondo uma barreira ao encontro do

outro.

De outra feita, Coracini (2007) esclarece que os casos em que aprender

uma língua estrangeira constitui uma forte atração para o sujeito podem ser

explicados como o desejo do outro, outro que o constitui e cujo acesso é

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interditado e que ilusoriamente tem o poder de o fazer uno e completo. Essa

forte atração pela língua do outro compreende muitos dos casos relatados e

analisados nesta pesquisa. Prasse (1997) complementa explicando que esse

desejo pelas línguas estrangeiras se alimenta de duas fontes: inveja dos bens

e da maneira como gozam os outros e a inquietação de não conseguir

encontrar seu próprio lugar na língua materna. É, segundo o autor, o desejo de

ser livre, de impor-se a uma ordem por um ato voluntário.

A partir da discussão realizada nesta seção, é importante ressaltar que,

neste trabalho, língua materna e língua estrangeira caminham juntas, num

duplo efeito de sentido, o que vem ao encontro com o defendido por Derrida

(2001), que salienta a ideia de que a língua é sempre estrangeira, à medida

que provoca estranhamentos, e é sempre materna, conforme, nela, o sujeito

inscreve-se. Considero pertinente também reforçar o já mencionado por

Coracini (2003), que argumenta que o importante não é se algum dia alguém

saberá a língua estrangeira como sabe a materna. A questão é, como afirma a

autora, compreender que a inscrição do sujeito numa língua estrangeira é

sempre portadora de novas vozes, confrontos e questionamentos que alteram

a constituição da subjetividade e modificam o sujeito ao trazer-lhe novas

identificações sem que ocorra o apagamento da discursividade da língua

materna que o constitui.

4.3 Algumas considerações sobre as noções de bilinguismo,

bilingualidade e sujeito bilíngue

Frente ao exposto sobre língua materna e língua estrangeira, pretendo,

nesta parte, discutir as noções de bilinguismo, bilingualidade e sujeito bilíngue.

A partir de estudos teóricos, como os de Grosjean (1982), constata-se que falar

duas línguas pode esconder conflitos identitários difíceis de serem explicados

ou equacionados.

Na literatura especializada, muito se tem escrito sobre a questão do

bilinguismo e do sujeito bilíngue. Apesar disso, não há, até hoje, uma

concepção clara do fenômeno, como se pode observar a seguir.

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A noção de bilinguismo tornou-se cada vez mais ampla e difícil de

conceituar a partir do século XX. A primeira vista, definir o bilinguismo não

parece ser uma tarefa difícil. De acordo com o dicionário Oxford (2000, p. 117),

bilíngue é definido como: “ser capaz de falar duas línguas igualmente bem

porque as utiliza desde muito jovem”. Na visão popular, ser bilíngue é o mesmo

que ser capaz de falar duas línguas perfeitamente; esta é também a definição

empregada por Bloomfield (1935), que define bilinguismo como o controle

nativo de duas línguas. Opondo-se a esta visão que inclui apenas bilíngues

perfeitos, Macnamara (1967) propõe que um indivíduo11 bilíngue é alguém que

possui competência mínima em uma das quatro habilidades linguísticas (falar,

ouvir, ler e escrever) em uma língua diferente de sua língua nativa.

Entre estes dois extremos, encontram-se outras definições, como, por

exemplo, a definição proposta por Barker e Prys Jones (1998), pela qual

levantam algumas questões para a classificação de indivíduos bilíngues:

- Devem-se considerar bilíngues somente indivíduos fluentes nas duas

línguas?

- São considerados bilíngues apenas indivíduos com competência

linguística equivalente nas duas línguas?

- Proficiência nas duas línguas deve ser o único critério para a definição

de bilinguismo, ou o modo como essas línguas são utilizadas também deve ser

levado em consideração?

De forma semelhante a Barker e Prys (1998), Li Wei (2000) argumenta

que o termo bilíngue basicamente pode definir indivíduos que possuem duas

línguas. Mas deve-se incluir, entre estes, indivíduos com diferentes graus de

proficiência nessas línguas e que, muitas vezes, fazem uso de três, quatro ou

mais línguas. Seguindo na mesma direção, Mackey (2000) pondera que, ao

definir bilinguismo, devem-se considerar quatro questões:

11 Como explicitado na nota de rodapé número 4 da página 20, embora este estudo tenha como base teórico-metodológica a análise de discurso de linha francesa, que faz uso da denominação sujeito. Recorro a outras áreas de conhecimento para melhor compreensão de minhas questões de pesquisa. Desse modo, busco esteio na psicología social (CIAMPA, 1984; 1990; 2004), na sociologia (GOFFMAN, 1988) e na filosofia (HABERMAS, 1976) Nesta seção, para me aprofundar na discussão do conceito bilinguismo, recorro a autores que, em suas diferentes áreas de conhecimento, fazem uso da denominação indivíduo (e não sujeito, como na análise de discurso francesa), uma vez que não se remetem a questão do assujeitamento e da memória discursiva. Sendo assim, opto por manter a denominação indivíduo utilizada pelos autores. Porém mantenho o termo sujeito em minhas perguntas de pesquisa, pois utilizarei os conceitos desenvolvidos por esses autores dentro da perspectiva que me proponho, a AD francesa.

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- A primeira é referente ao grau de proficiência, ou seja, o conhecimento

do indivíduo sobre as línguas em questão deve ser avaliado. Dessa forma, o

conhecimento de tais línguas não precisa ser equivalente em todos os níveis

linguísticos. O indivíduo pode, por exemplo, apresentar vasto vocabulário em

uma das línguas, mas, nela apresentar pronúncia deficiente.

– A segunda questão proposta por Mackey (2000) destaca a função e o

uso das línguas, isto é, as situações, nas quais o indivíduo faz uso das duas

línguas, também devem ser objeto de estudo ao conceituar o bilinguismo.

– A terceira questão levantada diz respeito à alternância de código.

Segundo o autor, deve ser estudado como e com qual frequência e condições

o indivíduo alterna de uma língua para outra.

- E, finalmente, deve também ser estudado para classificação correta do

bilinguismo, como uma língua influencia a outra e como uma interfere na outra.

Fenômeno este conhecido por interferência.

Diferentemente dos teóricos citados, Maher (2007) contempla em sua

definição de bilinguismo tanto a dimensão linguística como uma dimensão não

linguística:

O bilíngue – não o idealizado, mas o de verdade – não exibe comportamentos idênticos na língua X e na língua Y. A depender do tópico, da modalidade, do gênero discursivo em questão, a depender das necessidades impostas por sua história pessoal e pelas exigências de sua comunidade de fala, ele é capaz de se desempenhar melhor em uma língua do que na outra ´- e até mesmo de se desempenhar em apenas uma delas em certas práticas comunicativas (MAHER, 2007, p. 73).

Essa visão multidimensional apresentada por Maher (2007) pode ser

alinhada com a proposta de Hamers e Blanc (2000), que distinguem o

bilinguismo em duas modalidades: a bilingualidade e o bilinguismo12. Os

autores definem a bilingualidade como um estado psicológico de um indivíduo

que tem acesso a mais de um código linguístico como meio de comunicação.

Por outro lado, o bilinguismo, segundo os autores, refere-se ao estado de

uma comunidade linguística na qual duas línguas estão em contato e são

utilizadas para a interação. Heye (2003) acrescenta que a bilingualidade pode

12 No original bilinguality e bilingualism, respectivamente.

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ser entendida como os diferentes estágios de bilinguismo, pelos quais os

indivíduos, portadores da condição de bilíngue, passam em sua trajetória de

vida. De acordo com o autor, “esses estágios são vistos como processos

situacionalmente fluídos e definem, de forma dinâmica a bicompetência

linguística, comunicativa e cultural nas diferentes épocas e situações de vida”

(HEYE, 2003, p. 33-4).

Dias e Salgado (2010) complementam essa visão argumentando que

cada indivíduo possui um grau de bilingualidade, o qual é mutável e dinâmico

de acordo com as situações de bilinguismo que lhe são apresentadas, assim,

significando que a manifestação da bilingualidade está diretamente

relacionada às necessidades apresentadas pelos contextos. A partir dessas

considerações, os autores acertadamente propõem que a primeira questão que

deve ser considerada para a identificação de quem é ou não bilíngue é: Quem

decide que alguém é bilíngue? Essa pergunta remete ao fato de que alguns

indivíduos podem se considerar bilíngues, mas talvez, isso não corresponda à

verdade. Nesse caso, Dias e Salgado (2010) complementam salientando que a

verdade deve ser tomada como a condição que satisfaz os critérios e as

exigências da situação ou evento social em questão. Esses autores enfatizam

que, antes de se identificar o sujeito como bilíngue, é necessária a identificação

do contexto no qual esse bilinguismo se manifesta e a análise de quais fatores

relevantes, nesse contexto, devem ser levados em consideração para a

identificação do indivíduo bilíngue.

Corroborando a essa linha de pensamento, Hamers e Blanc (2000)

analisam seis dimensões ao definir o bilinguismo individual ou bilingualidade:

competência relativa; organização cognitiva; idade de aquisição; presença ou

não de indivíduos falantes da língua estrangeira no ambiente em questão;

status das duas línguas envolvidas e identidade cultural. Dentre as seis

dimensões propostas, enfocarei, neste estudo, quatro delas, descritas a seguir:

A dimensão relacionada à competência relativa prioriza a relação entre

as duas competências linguísticas. Obtêm-se, assim, as definições de

bilinguismo balanceado e bilinguismo dominante. Considera-se bilíngue

balanceado o indivíduo que possui competência linguística equivalente em

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ambas as línguas. Por bilíngue dominante, entende-se o indivíduo que possui

competência maior em uma das línguas em questão.

A segunda dimensão empregada neste estudo está de acordo com a

idade de aquisição da língua estrangeira. São identificados: o bilinguismo

infantil, adolescente ou adulto. O bilinguismo infantil subdivide-se: em

bilinguismo simultâneo e bilinguismo sequencial. No bilinguismo simultâneo, a

criança adquire as duas línguas ao mesmo tempo, sendo expostas as mesmas

desde o nascimento. Por sua vez, no bilinguismo sequencial, a criança adquire

a língua estrangeira ainda na infância, mas após ter adquirido as bases

linguísticas da língua materna, aproximadamente aos cinco anos, conforme

aponta Wei (2000). Quando a aquisição da língua estrangeira ocorre durante o

período da adolescência, conceitua-se esse fenômeno como bilinguismo

adolescente e por bilinguismo adulto, entende-se a aquisição da língua

estrangeira que ocorre durante a idade adulta.

A terceira dimensão, aqui utilizada, dá-se de acordo com o status

atribuído a estas línguas na comunidade em questão. A partir disso, o indivíduo

desenvolverá formas diferenciadas de bilinguismo. A primeira delas é o

bilinguismo aditivo, na qual as duas línguas são suficientemente valorizadas no

desenvolvimento cognitivo da criança e a aquisição da língua estrangeira

ocorre, consequentemente, sem perda ou prejuízo da língua materna. No

entanto, na segunda forma de aquisição, denominada bilinguismo subtrativo, a

língua materna é desvalorizada no ambiente infantil, gerando desvantagens

cognitivas no desenvolvimento da criança e, neste caso, durante a aquisição da

língua estrangeira, ocorre perda ou prejuízo da língua materna.

Finalmente, a quarta dimensão, que emprego neste estudo, trata de

como indivíduos bilíngues podem ser diferenciados em termos de identidade

cultural, obtendo-se bilíngues biculturais, monoculturais, aculturais e

desculturais. Como bilinguismo bicultural, entende-se o indivíduo bilíngue que

se identifica positivamente com os dois grupos culturais e é reconhecido por

cada um deles. No bilinguismo monocultural, o indivíduo bilíngue identifica-se e

é reconhecido culturalmente apenas por um dos grupos em questão. Deve ser

ressaltado que um indivíduo bilíngue pode ser fluente nas duas línguas, mas se

manter monocultural. Já acultural é considerado o indivíduo que renuncia sua

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identidade cultural relacionada à sua língua materna e adota valores culturais

associados ao grupo de falantes da língua estrangeira. Finalmente, o

bilinguismo descultural dá-se quando o indivíduo bilíngue desiste de sua

própria identidade cultural, mas falha ao tentar adotar aspectos culturais do

grupo falante da língua estrangeira.

De acordo com Hamers e Blanc (2000), deve-se ressaltar que

concepções unidimensionais apresentam alguns pontos desfavoráveis, pois

estas definem o indivíduo bilíngue apenas em termos de competência

linguística, ignorando outras importantes dimensões. Outro ponto em que tais

concepções são falhas é que estas não levam em consideração diferentes

níveis de análises, sejam elas: individuais, interpessoais ou sociais.

Finalmente, considera-se o ponto mais discutível dessas concepções o fato de

não serem embasadas por teorias de comportamento linguístico. Hamers e

Blanc (2000) consideram como princípios básicos de comportamento

linguístico: a constante interação de dinamismos sociais e individuais da língua,

os complexos processos entre as formas de comportamento linguístico e as

funções em que são utilizados, a interação recíproca entre língua e cultura -

autorreguladores que caracterizam todos os comportamentos de ordem

elevada - e consequentemente a língua e a valorização que é central para toda

esta dinâmica de interação.

García (2009), por sua vez, questiona o proposto por Hamers e Blanc

(2000), ao afirmar que os modelos de bilinguismo aditivo e subtrativo têm, em

seu início e em seu fim, sujeitos monolíngues, uma vez que nomeiam uma

língua claramente como a primeira e a língua adicional13 como a segunda,

criando duplos monolíngues e, dessa forma, não respondendo mais à grande

complexidade linguística do século 21. A autora argumenta que o bilinguismo

aditivo, por exemplo, enxerga as práticas linguísticas do sujeito a partir de uma

visão monoglóssica e cria, dessa maneira, espaços monolíngues protegidos,

uma vez que defende a separação completa das línguas. Ilustrando essa ideia,

Cummins (2000) argumenta que o monolinguismo, a partir dessa perspectiva,

pode ser comparado a um uniciclo e, com isso, o bilinguismo seria

13 García (2009) advoga a favor do conceito de língua adicional para se referir à língua estrangeira, uma vez que tanto a língua materna quanto a estrangeira são constitutivas do sujeito e a nomenclatura língua estrangeira ou segunda língua podem transmitir a ideia de exterioridade.

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erroneamente visto como dois uniciclos que podem ser, a qualquer momento,

pedalados de forma independente, como mostra a figura 1 a seguir:

García (2009) complementa que, no século 21, é necessário conceituar

bilinguismo de modo muito além do proposto por Hamers e Blanc (2000). É

necessário, segundo a autora, de rodas que girem, expandam-se e se

contraiam, que sustentem uma a outra e sejam capazes de moverem-se em

direções diversas. Na verdade, faz-se necessário, mais de duas rodas,

acrescenta García (2009). A autora propõe que os conceitos de bilinguismo

aditivo e subtrativo sejam reconsiderados a partir de uma visão

heteroglóssica, que não vê essas línguas como separadas completamente, e,

sim, considere que o sujeito se constitui na imbricação de ambas. Nesse

sentido, Cummins (1984) propõe o que denominou de Common Underlying

Proficiency, como mostra a Figura 1. A ideia é de que as línguas não estão

armazenadas separadamente, pelo contrário as informações de uma interagem

com a outra.

VISÃO MONOGL

ÓSSICA DE LÍNGUA

COMMON UNDERLYING

PROFICIENCY

Figura 1: Common Underlying Proficiency Fonte: Cummins (1984)

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A partir disso, García (2009) propõe os conceitos de bilinguismo

recursivo e dinâmico14. O recursivo, segundo a autora, refere-se a casos nos

quais o bilinguismo é desenvolvido após as práticas linguísticas de uma

comunidade terem sido suprimidas. Nesses casos, o desenvolvimento da

língua materna da comunidade não pode ser considerado uma simples adição

que tem início em um ponto monolíngue, uma vez que a língua ancestral

continua a ser utilizada em cerimônias tradicionais e por alguns membros da

comunidade em diferentes graus. De acordo com García (2009), o bilinguismo,

nesses casos, é recursivo porque alcança novamente algumas práticas

linguísticas ancestrais, enquanto elas são redirecionadas para novas funções

e, com isso, ganham ímpeto para serem projetadas no futuro.

O bilinguismo dinâmico, por sua vez, refere-se a práticas linguísticas

que são múltiplas e se ajustam ao terreno multilíngue e multimodal do ato

comunicativo. Esse modelo, segundo García (2009), está relacionado com o

modo como o Language Policy Division of the Council of Europe15 define o

conceito de plurilinguismo como a habilidade “de usar línguas para os

propósitos de comunicação e para participar de ações interculturais, nas quais

a pessoa, vista como agente social, tem proficiência, em variados graus, em

várias línguas e experimenta diversas culturas”(COUNCIL OF EUROPE, 2000,

p. 168). García (2009) complementa salientando que o bilinguismo dinâmico

se refere aos variados graus de habilidade e usos de múltiplas práticas

linguísticas necessárias para se cruzar fronteiras físicas e virtuais. A autora

criou uma representação gráfica para esse conceito exposta a seguir:

14 O conceito de bilinguismo recursivo será apenas citado, uma vez que, neste trabalho, trato de situações de bilinguismo dinâmico. 15 Divisão que tem sua base em Strasbourg, França, sendo responsável pela concepção e implementação de iniciativas para o desenvolvimento e análise de políticas de educação linguística destinadas a promoverem diversidade linguística e plurilinguismo. Os programas da divisão atendem às necessidades de todos os 48 Estados que ratificaram a Convenção Cultural Europea.

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Figura 2: Bilinguismo dinâmico

Fonte: García (2009)

García (2009) argumenta que a progressão dos modelos de bilinguismo

subtrativo e aditivo para os modelos recursivo e dinâmico é ideológico, uma

vez que reconhece o valor de discursos heteroglóssicos e de múltiplas vozes.

Segundo a autora, práticas e discursos heteroglóssicos não apenas afirmam a

inter-relação funcional de linguar bilingualmente16, mas também quebram o

ciclo de poder que sustenta práticas monolíngues como dominantes. Linguar

bilingualmente ou translinguar passa a ser considerado a norma, uma vez

que falantes começam a ser vistos como sujeitos que ocupam diferentes

pontos em um contínuo bilíngue, ao invés de partirem de uma totalidade

monolíngue.

Nota-se que apesar de as concepções de bilinguismo apontarem para

diversos elementos-chave, como grau de competência linguística, identidade

cultural e a sensação ou não de pertencimento, não conseguem explicar o

conflito/sofrimento experimentado por diversos sujeitos em sua condição

bilíngue. É, nesse ponto, que julgo valiosa a introdução da perspectiva

derridiana, tal como se apresenta no ensaio “O Monolinguismo do Outro”

(2001). Nessa obra, que não trata exclusivamente da questão do bilinguismo,

Derrida formulou alguns princípios gerais da relação entre ser humano, língua e

identidade.

16 No original, language billingually ou translanguaging, como utilizado por García (2008), que usa language como verbo to language.

BILINGUISMO DINÂMICO

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O autor não faz uma distinção categórica entre as línguas materna e

estrangeira, no sentido de que seria possível atribuir ao falante nativo uma

determinada identidade ou um determinado conhecimento linguístico que seria

vedado ao falante supostamente não nativo. Na ótica derridiana, há apenas

línguas, das quais o falante pode apropriar-se em maior ou menor grau, mas

que ele nunca é capaz de possuir por completo. Em consequência, também,

não há como sustentar os critérios que costumam ser usados para descrever a

condição bilíngue apresentada anteriormente. Nota-se que, nessa ótica, não se

distingue o bilinguismo de outras formas de domínio linguístico, dado que todos

os falantes são considerados indivíduos plurilíngues e que desejam alcançar

um idioma absoluto que se apresenta mais como promessa, como aspiração

última do ser humano, cujo acesso, no entanto lhe é interditado, uma vez que

sempre, em sua fala, há o vestígio do outro. Por isso, na perspectiva

derridiana, não se fala várias línguas apenas quando mesclamos línguas

nacionais, mas sempre, visto que é preciso se apropriar da fala do outro para

poder significar.

Essa sensação de falta faz, segundo Derrida (2001), com que as

pessoas construam próteses com o intuito de supri-la ou compensá-la. O autor

destaca dois tipos de próteses: (i) a procura de história e de filiação, isto é, a

recuperação ou invenção de uma narrativa da história familiar e (2) a exigência

compulsiva de uma pureza da língua, ou seja, a preocupação exacerbada com

a correção linguística.

Esta seção foi organizada em três partes. Inicialmente, enfatizei o elo

língua, sujeito e identidade, apoiando-me em Revuz (1998), que tem como

base uma concepção lacaniana de sujeito, constituído pela e na linguagem. A

seguir, tive como objetivo interrogar a nominação materna e estrangeira

atribuída à língua. Para tanto, apoiei-me nas pesquisas de Coracini (2003,

2007), Revuz (1998) e Maher (1998) filiadas à linguística aplicada; nos estudos

psicanalíticos de Fages (1977), Prasse (1997) e Melman (1992), que explicam

o conceito de interdição a partir da concepção lacaniana da constituição do Eu

(LACAN, 1966/1998), e no filósofo Derrida (2001). Na terceira parte, discuti a

evolução dos conceitos de bilinguismo, partindo de concepções

unidimensionais como as de Bloomfield (1935), Macnamara (1967), Barker e

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Prys (1998), Li Wei (2000) e Mackey (2000). Discorri também sobre

concepções teóricas que contemplam em sua definição de bilinguismo, tanto a

dimensão linguística como a não linguística, como Maher (2007), Hamers e

Blanc (2000), Heye (2003) e Dias e Salgado (2010), que trabalham com o

conceito de bilingualidade, e García (2009) e Cummins (1984; 2000), que

advogam a favor de uma visão heteroglóssica de língua. Por fim, introduzi a

perspectiva derridiana (2001), que discute a construção de próteses por

bilíngues.

Esta seção marca o término da fundamentação teórica e teve como

objetivo descrever os pilares sobre os quais este trabalho se apoia. Marca

também o início da descrição dos aspectos metodológicos, que devem

possibilitar uma melhor compreensão de como esta pesquisa foi desenvolvida.

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PARTE II – DO QUE SE DESCOBRIU NO CAMINHO

Esta segunda parte da pesquisa está organizada nas duas seções, a

seguir:

Na primeira, Trajetória, defino a visão de Linguística Aplicada (doravante

LA)

compreendida, neste trabalho, por meio da discussão dos princípios

filosóficos que a norteiam. Busco, nesse intuito, esteio em Moita Lopes (2006)

para inserir esta pesquisa numa perspectiva de LA contemporânea.

Em seguida, discorro sobre a escolha metodológica utilizada nesta

pesquisa, a AD francesa, para a manutenção da coerência com os princípios

teóricos e filosóficos que dão embasamento a este trabalho.

Por fim, descrevo o contexto de pesquisa e a seleção dos dados

utilizados, assim como os procedimentos de análise empregados.

Na segunda seção, Entre ditos e não ditos, retomo como se deu a coleta

de dados neste trabalho, assim como as perguntas de pesquisa que o

norteiam. A seguir, exponho a análise do corpus que foi organizada em três

partes:

Na primeira parte, Entre o desejo da completude e a falta do sujeito,

relato duas representações da língua portuguesa e da língua inglesa

localizadas nas falas dos sujeitos desta pesquisa: o português como língua

difícil e complexa; e o inglês como língua fácil e prática.

Na segunda, Entre o mito, o possível e o desejo do outro, procuro

mostrar a irrupção de discursos em torno da identidade e apontar a existência

de estigma relacionado ao fato de ser brasileiro e de um sentimento de

inferioridade por conta de aspectos na produção oral, o sotaque, que se

diferenciam dos de falantes oriundos de países de língua inglesa.

A terceira parte, Entre as diversas concepções do eu, subdivide-se em

três subseções:

- Da importância, que relata recortes discursivos que revelam a posição

dos sujeitos perante as línguas que os constituem a partir da pergunta: “Qual

língua você considera mais importante? Por quê?”.

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- De quem sou, que apresenta as impressões dos sujeitos participantes

perante a questão: “Você se considera bilíngue? Por quê?”.

- Das transformações, que descreve as mudanças percebidas pelos

bilíngues a partir de sua condição de viver entre línguas.

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Trajetória

É inútil procurar encurtar

caminho e querer começar,

já sabendo que a voz diz

pouco, já começando por ser

despessoal. Pois existe a

trajetória, e a trajetória não

é apenas um modo de ir. A

trajetória somos nós

mesmos. Em matéria de viver

nunca se pode chegar

antes17.

17 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974, p. 213.

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SEÇÃO 1

Trajetória

Nesta seção, defino a visão de Linguística Aplicada (LA) compreendida,

neste trabalho, por meio da discussão dos princípios filosóficos que a norteiam.

Em seguida, discorro sobre a escolha metodológica utilizada aqui para a

manutenção da coerência com os princípios teóricos e filosóficos que dão

embasamento a este trabalho. Por fim, descrevo o contexto de pesquisa e a

seleção dos dados utilizados, assim como os procedimentos de análise

empregados.

1.1 A LA e os princípios filosóficos que norteiam esta pesquisa

Nesta seção, pretendo discutir porque entendo que esta pesquisa

encontra-se inserida numa perspectiva de Linguística Aplicada

Contemporânea. Segundo Moita Lopes (2006), uma das preocupações dos

linguistas aplicados contemporâneos é com as novas teorizações calcadas em

novos modos de entender a vida social, o que inaugura não apenas um novo

paradigma social e político, mas também um novo paradigma epistemológico,

isto é, uma reinvenção das formas de produzir conhecimento.

Ao se perguntar se o que mudou foi o mundo social ou a forma de

produzir conhecimento sobre ele, Moita Lopes (2006) recorre a autores como

Bauman (2005), Giddens, Beck e Lash (1997) e Denzin (1997) para refletir

sobre esta questão. Argumenta que, em decorrência das mudanças de

natureza social, cultural, econômica e tecnológica nas sociedades, que

ocorreram no mundo, a forma de produção de conhecimento foi alterada. No

entanto, o questionamento das formas tradicionais de produção de

conhecimento ocidentalista e positivista incita um novo modo de produzir

conhecimento com implicações nas mudanças da sociedade. Boaventura

Santos (2001) salienta que a transformação nos modos de conhecer ocorre

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não apenas porque a sociedade está diferente, mas porque estas mudanças

exigem processos de produção de conhecimento que impliquem em mudanças

na vida social.

Indo mais além, Moita Lopes (2006) discorre sobre o impacto dos

avanços tecnológicos e da mídia em nossa sociedade. As novas tecnologias da

informação estão integrando o mundo em redes globais de comunicação e têm

provocado modificações no estilo de conduta, atitudes, costumes e tendências

das populações mundiais. Dessa forma, as pessoas estão cada vez mais

expostas a uma multiplicidade de projetos identitários. Nesse sentido, Hall

(2005) afirma que a “identidade torna-se uma celebração móvel: formada e

transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos

representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL,

2005, p. 12).

A fim de traçar um quadro das implicações dessas percepções da vida

social atual e dos modos de produzir conhecimento, nos dias de hoje, para uma

LA contemporânea, Moita Lopes (2006) sugere que a LA do século XXI seja

pautada em quatro pontos básicos:

1. a imprescindibilidade de uma LA híbrida ou mestiça;

2. a essencialidade da LA explodir os limites entre teoria e prática;

3. a necessidade de mudar o sujeito da LA;

4. a importância da LA ter como novos pilares a ética e o poder.

Farei, a seguir, algumas reflexões a respeito de cada um dos pontos

elencados com o propósito não só de esclarecê-los, mas também de localizá-

los em minha pesquisa.

Quanto à imprescindibilidade de uma LA híbrida ou mestiça, Moita Lopes

(2006) sugere que esta seja entendida não mais como uma disciplina, mas sim

como uma área de estudos em que pesquisadores, oriundos de diferentes

disciplinas, convirjam em um processo transdisciplinar de produção de

conhecimento. Outro ponto central é a necessidade de entender a LA como

uma área de indisciplina que se preocupa em compreender a questão da

pesquisa na perspectiva de várias áreas de conhecimento, com o objetivo de

integrá-las.

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Nesta vertente, minha pesquisa rejeita o enquadramento em uma

disciplina apenas ou a subordinação à linguística como disciplina mãe. Ao

contrário, as teorizações aqui presentes pretendem estar mais próximas do que

Moita Lopes (2006) propõe como uma linguística aplicada indisciplinar, isto é,

que transgride os limites disciplinares fechados. Como, nesta pesquisa,

entendo identidade como algo que não pode ser definido como fixo ou

preestabelecido, e sim como um processo em constante mudança, é

necessário, para entender a identidade do sujeito, conhecer sua ecologia,

revelada implícita ou explicitamente em seu discurso e em suas ações, o que

implica ir muito além de estudos linguísticos. Para se atingir uma compreensão

mais ampla da vida social vivida “pelas pessoas de carne e osso no dia-a-dia”

(MOITA LOPES, 2006, p.88), é preciso entender a complexidade das relações

envolvidas nas práticas sociais. É preciso revelar sua historicidade, os jogos de

poder, os interesses, os sentidos dos envolvidos na ação. Para isso, torna-se

imprescindível acessar conhecimentos desenvolvidos por outras disciplinas.

Diante desse desafio, optei pelo viés teórico que me possibilitasse dialogar e

compartilhar questões com várias disciplinas na abordagem do mundo e da

vida desses sujeitos sociais situados em um contexto sócio-histórico, político e

ideológico específico, como demonstra a figura a seguir:

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Vale ressaltar que a AD francesa, base teórico-metodológica deste

estudo, articula-se principalmente com três áreas de conhecimento: a

psicologia/psicanálise – releitura de Freud por Lacan; as ciências

sociais/marxismo – releitura de Marx por Althusser; e a linguística – releitura de

Saussure por Pêcheux, formando, dessa forma, uma espécie de tríplice

aliança. Porém é fundamental compreender que, embora apresente áreas de

contato com essas disciplinas, Orlandi (2006) explica que a AD francesa

pressupõe as mesmas à medida que se constitui da relação de três regiões

científicas: a teoria da ideologia, a teoria da sintaxe e da enunciação, e a teoria

do discurso como determinação histórica dos processos de significação, tudo

isso atravessado por uma teoria psicanalítica do sujeito. Vale frisar, ainda, que

ANÁLISE

DOS

DADOS

Estudos da

linguagem

Psicanálise

Psicologia

Social

Sociologia

Filosofia

AD

Francesa

UMA VISÃO TRANSDISCIPLINAR

PARA ANÁLISE DOS DADOS

Goffman (1988) Foucault (1969;1970;1979;1987; 1999) Hall (2005) Althusser (1985;1996)

Pêcheux (1966; 1969; 1975; 1993; 1997; 2002) Orlandi (1983; 1989; 1993; 1996; 1998; 1999; 2005; 2006)

Moscovici (1984;2003) Jodelet (1990;2001) Abric (2000) Ciampa (1984;1990;2004)

Norton (1995) Bagno (2002) Coracini (1999; 2003; 2007) Revuz (1998) García (2009) Cummins (1984; 2000)

Lacan (1966;1972-73) Melman (1992)

Derrida (2001)

Figura 3: Uma visão transdisciplinar para análise dos dados Fonte: Dados da pesquisa

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é necessário entender que a AD francesa não pretende ser nem uma disciplina

autônoma nem uma disciplina auxiliar, o que pretende é trabalhar o objeto

discursivo como sendo um objeto-fronteira nos limites das divisões

disciplinares, sendo constituída simultaneamente de uma materialidade

linguística e de uma materialidade histórica. Sobre esse ponto, aliás, é preciso

salientar que é inapropriado conceituar a AD francesa como uma disciplina

interdisciplinar, como alguns teóricos insistem em fazer. A esse respeito,

Orlandi (1996) atribui à AD francesa a condição de disciplina de entremeio,

uma vez que sua constituição se dá às margens das chamadas ciências

humanas, entre as quais, ela opera um profundo deslocamento de terreno.

Mais uma vez, é importante reiterar que os conceitos que a AD francesa traz de

outras áreas, como a psicanálise, o marxismo, a linguística e o materialismo

histórico, ao integrarem-se ao corpo teórico do discurso, deixam de ser aquelas

noções com os sentidos estritos originais e se ajustam à especificidade e à

ordem própria da rede discursiva.

Quanto à essencialidade da LA explodir os limites entre teoria e prática,

Moita Lopes (2006) refere que a LA precisa, além de produzir teorizações de

caráter híbrido, não fazer distinção entre teoria e prática, rejeitando, assim, a

herança deixada pela ciência moderna: a ruptura entre o conhecimento

científico e o conhecimento do senso comum (SANTOS, 2001), a ilusão da

neutralidade científica e a hierarquização do saber. Sendo assim, minha

pesquisa abre espaço para as vozes que foram histórica, social e culturalmente

silenciadas pelo modelo totalitário de racionalidade científica.

No que concerne à necessidade de reescrever o sujeito da LA, Moita Lopes

(2006) afirma que este deve ser visto não mais como uno, homogêneo,

racional, mas como um sujeito heterogêneo, múltiplo, contraditório e construído

dentro de diferentes discursos. Esta afirmação vai ao encontro de meu objetivo

de pesquisa, que é o de estudar o funcionamento da linguagem na constituição

da subjetividade dos sujeitos, desse modo, apontando deslocamentos

identitários nos discursos de falantes de mais de uma língua e que, dessa

forma, são atravessados por traços culturais muitas vezes em conflito. Além

disso, o sujeito da AD francesa é um sujeito essencialmente histórico,

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ideológico e heterogêneo, interpelado pelo inconsciente constituído na e pela

linguagem e, com isso, descentrado, clivado, fragmentado e desejante.

Com relação à importância da LA ter como novos pilares a ética e o poder,

Moita Lopes (2006) salienta a importância de pesquisas que têm a ética como

horizonte norteador. Dessa forma, as reflexões a respeito das noções de ética

contribuem para a realização de pesquisas responsáveis que não prejudiquem

os próprios pesquisados, como ocorre neste trabalho.

Somando-se a isso, faz-se necessário, ao término desta reflexão,

salientar que minha pesquisa tem como foco apontar deslocamentos

identitários nos discursos de falantes de mais de uma língua, o que vai

diretamente ao encontro da afirmação de Moita Lopes (2006) ao definir LA

contemporânea:

Não surpreende, portanto, que na LA, como em outras áreas, as questões identitárias estejam interessando a tantos pesquisadores exatamente quando se problematiza a importância de pensar outras sociabilidades para a vida social, o que é o principal projeto político da atualidade (MOITA LOPES, 2006 p.104).

1.2 A análise de discurso de linha francesa

Ao reivindicar um campo específico no domínio da linguística para si, a

AD francesa, segundo Pêcheux (1997), não apenas desestabiliza o sentido de

língua, como também rompe com a proposta metodológica de Saussure: a

definição do objeto e a metodologia de análise. Além disso, como descrito

anteriormente, ao vincular a linguística a duas outras áreas do saber, à

psicanálise e ao marxismo, a AD passa a ser vista como uma disciplina de

entremeio (ORLANDI, 1996), uma vez que não é absorvida nem pelo marxismo

nem pela psicanálise.

Nesse sentido, Possenti (2005) enumera as rupturas que a AD francesa

causou no domínio da linguística: do campo da interpretação, da língua, da

pragmática, do texto, das condições de produção, do sentido, da enunciação,

do acontecimento, do interdiscurso e do sujeito. Essas rupturas promovem uma

tensão na metodologia e na forma de observar e analisar a língua. Logo, pode-

se considerar que a metodologia da AD francesa está posta seja na forma de

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101

pressuposto, seja na forma de implícitos. Isso equivale a dizer que a AD

francesa é um campo de pesquisa que não possui uma metodologia pronta, ao

lançar mão dos elementos constitutivos de seu arcabouço teórico, o analista do

discurso estará, concomitantemente, alçando seus dispositivos metodológicos.

Nessa vertente, não há o enquadramento de dados em esquemas

prontos. A proposta metodológica é uma construção do analista que tem o

papel de problematizar e colocar questões no confronto com os dados.

Procura-se, como salienta Orlandi (2009), realizar uma “exausitividade vertical”

(ORLANDI, 1999, p. 62) como dispositivo analítico considerando os objetivos

da pesquisa que podem incluir os efeitos de memória, da história, as

ideologias, as heterogenedidades e os não ditos.

Em suma, pode-se afirmar que, na AD francesa, a metodologia de

análise não consiste em uma leitura horizontal do texto, do início ao fim, na

tentativa de compreendê-lo, uma vez que se parte do pressuposto de que todo

discurso é incompleto. De outra feita, realiza-se uma análise em profundidade,

como acontece na relação descrição-interpretação, pela qual se faz possível

verificarem-se as posições assumidas pelos sujeitos, as imagens e os lugares

construídos a partir de regularidades discursivas evidenciadas nas

materialidades. Enfim, o analista faz uso de procedimentos teóricos que

subsidiam sua análise de acordo com o enfoque da pesquisa. Isto é, ao

analisar o objeto, é necessário recorrer novamente à teoria e, nesse vai e vem

entre a descrição e a interpretação, dá-se o procedimento analítico da AD

francesa.

1.3 A constituição do corpus e os instrumentos de coleta

Metodologicamente, este trabalho foi realizado a partir do que Courtine

(1981), ao trabalhar com corpus de pesquisa na Análise de Discurso, define

como corpus experimental. Para o autor, corpus experimental é aquele

produzido a partir de enquetes empíricas, como formulários, questionários e

entrevistas. Nessa concepção de corpus experimental, há o corpus

previamente preparado, como acontece neste estudo, no qual faço uso do

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questionário (vide Apêndice A) a fim de coletar textos escritos dentro de um

roteiro específico.

Frente a essas definições, o corpus deste estudo é um corpus

experimental e previamente preparado, uma vez que, ao elaborar as perguntas

do questionário, tinha como objetivo responder minhas perguntas de pesquisa.

Segundo Nunan (1992), o questionário pode ser fechado ou aberto. No

questionário fechado, as possibilidades de resposta são determinadas pelo

pesquisador; ao passo que, no aberto, o participante tem a possibilidade de

escolher o que dizer e como dizer. Apesar do questionário fechado ser mais

fácil para a coleta e análise, optei pelo tipo aberto, pois para levantar as

representações desses participantes acerca de quem são e das línguas que os

constituem se fez necessário criar um espaço para que compartilhassem

narrativas de quem são ou esperavam ser.

A parte I do questionário teve como objetivo traçar o perfil dos

participantes que compõem este estudo. As perguntas 1, 2 e 3, da segunda

parte, tinham como objetivo verificar quais línguas eram utilizadas pelos

participantes18, se as utilizavam em alguma das esferas de suas vidas19, e

qual tipo de bilinguismo desenvolveram, simultâneo ou sequencial. As demais

perguntas foram formuladas a fim de levantar as representações dos sujeitos

sobre sua condição bilíngue, suas línguas e os povos com quem se

relacionam.

Vale ressaltar que, no decorrer da análise, constatei que não se fazia

necessário utilizar todas as perguntas do questionário para responder às

minhas perguntas de pesquisa. Com isso, as respostas obtidas para as

perguntas 4 e 11 do questionário não foram utilizadas na análise por não

estarem relacionadas às perguntas de pesquisa.

A seguir, retomo os objetivos deste estudo e as perguntas de pesquisa

referentes aos mesmos. Relaciono, também, as perguntas realizadas no

questionário utilizado.

18 Apenas, ao longo do estudo, optei por trabalhar apenas com falantes de inglês e português. Opção que justifico na introdução e a seguir, no item 1.4 desta seção. 19 Essa é uma condição necessária para ser participante desta pesquisa. Falantes de inglês e português, que não utilizavam as duas línguas em suas interações diárias em alguma esfera de suas vidas, não se tornaram participantes desta pesquisa.

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Quadro 1 - Objetivos, perguntas de pesquisa e perguntas do questionário

OBJETIVOS PERGUNTAS DE

PESQUISA

PERGUNTAS DO

QUESTIONÁRIO

1) Estudar a imbricação da língua

materna e da língua estrangeira

na constituição da subjetividade

de sujeitos que falam mais de

uma língua.

1) Como é a relação desses sujeitos

com as línguas que os constituem?

Qual de suas línguas é mais

importante para você? Por quê?

Qual de suas duas línguas você mais

aprecia? Por quê?

2) Apontar deslocamentos

identitários nos discursos desses

sujeitos.

2) Como as identidades desses

sujeitos foram se (trans)formando na

sua relação com as línguas?

Você se considera bilíngue? Por

quê?

O fato de se comunicar em mais de

uma língua lhe modificou como

indivíduo?

Você se preocupa com seu sotaque?

Por quê?

3) Rastrear o olhar do outro na

constituição identitária desses

sujeitos.

3) Como esses sujeitos ao se

enunciarem constroem imagens de si

e do Outro?

Como você se relaciona com os dois grupos sociais referentes às línguas que utiliza? Como você acha que é visto por estes grupos sociais? Você se preocupa com seu sotaque? Por quê?20

Fonte: Dados da Pesquisa

Um comentário pertinente é que, ao observar os questionários

preenchidos, notei que as respostas que obtive eram por demais completas,

com muitos comentários que foram essenciais à minha análise. Com isso, não

foi necessária a realização de algum tipo de entrevista como julguei, a

princípio, que seria preciso. Do conjunto dos dezoito questionários, senti a

necessidade de contatar quatro participantes para maiores esclarecimentos a

respeito de respostas a questões específicas. Esses contatos foram feitos por

20 As repostas a essa pergunta forneceram-me dados para responder a duas de minhas perguntas de pesquisa: Como as identidades desses sujeitos foram se (trans)formando na sua relação com as línguas? e Como estes sujeitos ao se enunciarem constroem imagens de si e do Outro?

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e-mail e, na análise, são diferenciadas as respostas obtidas por meio do

questionário pela sigla CP – contato posterior.

2.4 Os participantes da pesquisa

Primeiramente, a seleção dos participantes foi definida obedecendo a

quatro critérios:

(i) ser brasileiro;

(ii) ser falante de português e de inglês;

(iii) utilizar ambas as línguas em alguma esfera de suas vidas, por

exemplo, profissional, familiar, entre outras; e,

(iv) ser escolarizado, uma vez que responderiam ao questionário por

escrito.

Inicialmente, coletei 98 questionários de sujeitos bilíngues constituídos

por línguas diversas: coreano, alemão, espanhol, sérvio, entre outras. Porém,

por uma questão metodológica e temporal, detive-me, neste trabalho, a sujeitos

bilíngues falantes de português e de inglês. Ademais, a língua inglesa tem uma

história de imposição por razões políticas e materiais em muitos países do

terceiro mundo, o que implica na constituição identitária de seus falantes.

Nesse sentido, Vian Junior (2008) acrescenta que, inicialmente, pela primazia

econômica dos Estados Unidos e também com o desenvolvimento científico e

tecnológico liderado pelo país, o inglês passou a ser a língua da ciência e da

tecnologia e, também por questões políticas e econômicas, passou a ser a

língua utilizada para comunicação internacional.

A partir dessa perspectiva, apoio-me em Canagarajah (1999) para

afirmar que, ao optar por aprender ou fazer uso do inglês, esses sujeitos fazem

também uma opção ideológica e social, ainda que de modo inconsciente.

Outro motivo que me levou, neste momento, a delimitar meus sujeitos de

pesquisa desse modo é a crescente propagação da língua inglesa no Brasil.

Observa-se, como aponta Marcelino (2009), que o crescimento do bilinguismo

no Brasil evidencia um desenvolvimento na educação e uma demanda

mercadológica pressionada pelos pais de alunos de escolas regulares. O autor

aponta também para o fato de que se, anteriormente, os pais escolhiam as

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escolas para seus filhos com base na proposta de ensino e a necessidade de

se aprender outra língua era suprida por meio de institutos de idiomas,

atualmente, essa escolha é, muitas vezes, definida pela importância dada à

língua inglesa nas escolas regulares. Frente a esse panorama, percebe-se, no

Brasil, a disseminação das escolas bilíngues, de programas de intensificação

de língua inglesa e de escolas de idiomas.

A partir desse critério, selecionei, dentre os questionários obtidos, um

conjunto de nove questionários respondidos por bilíngues simultâneos21 e

nove questionários respondidos por bilíngues sequenciais22. Optei por

organizar os participantes desta pesquisa desse modo para que fosse possível

contrastar e comparar as respostas obtidas por esses dois tipos de sujeitos

bilíngues.

Os bilíngues simultâneos, aqui representados por B, que participaram

desta pesquisa foram:

B1: 24 anos, professora de inglês em um instituto de idiomas. O pai é

americano e a mãe é brasileira. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São

Paulo.

B2: 27 anos, professora em um colégio regular. O pai é americano e a

mãe é brasileira. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo.

B3: 31 anos, coordenadora de uma escola de idiomas. Os pais são

brasileiros. Mudou-se, ainda na primeira infância, para Irlanda, onde foi

escolarizada. Reside atualmente no Brasil, na cidade de Santo André.

B4: 57 anos, diretora de uma escola de idiomas. A família é americana.

Estudou e morou entre os EUA e o Brasil até completar a universidade. Reside

atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo.

B5: 33 anos, trabalha no setor administrativo, em uma rede de

supermercados. Os pais são americanos, mas nasceu e morou no Brasil, por

um longo período. Reside atualmente nos EUA, em Miami.

B6: 37 anos, professor universitário. Aprendeu a língua portuguesa em

casa, com a família, que é brasileira e teve o inglês como sua língua de

21 Entende-se, neste trabalho, por bilíngues simultâneos, indivíduos que adquiriram as duas línguas ao mesmo tempo, sendo expostos às mesmas desde o nascimento (HAMERS; BLANC, 2000). 22 Os bilíngues sequenciais, por sua vez, adquiriram a língua estrangeira após terem adquirido a base linguística da língua materna (HAMERS; BLANC, 2000).

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instrução a partir dos dois anos de idade, quando ingressou em uma escola

americana. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo.

B7: 34 anos, professora em uma escola bilíngue inglês/português.

Aprendeu o português em casa e o inglês em uma escola internacional, na qual

ingressou ainda na primeira infância. Reside atualmente no Brasil, na cidade de

São Paulo.

B8: 41 anos, dona de casa. Aprendeu o português em casa e o inglês

em uma escola internacional, quando ingressou ainda na primeira infância.

Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo.

B9: 43 anos, empresária. Aprendeu o português com a família brasileira

e o inglês ao morar nos EUA, quando criança. Reside atualmente no Brasil, na

cidade de São Paulo.

A seguir, exponho um quadro no qual essas informações foram

organizadas para melhor visualização.

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Quadro 2: Bilíngues simultâneos participantes da pesquisa

Participante Idade Profissão Origem do pai

Origem da mãe

Como aprendeu

inglês

Como aprendeu português

Residência

B1 24 Professora de inglês

Americano Brasileira Família do pai

Família da mãe e escola

São Paulo – Brasil

B2 27 Professora de área geral

Americano Brasileira Família do pai

Família da mãe e escola

São Paulo – Brasil

B3 31 Coordenadora de uma escola de

idiomas

Brasileiro Brasileira Foi escolarizada na Irlanda,

onde residia

Família do pai e da mãe

São Paulo – Brasil

B4 57 Diretora de escola

Americano Americana

Com a família dos

pais.

Viveu entre os EUA e o Brasil até

completar a universidade

São Paulo – Brasil

B5 33 Assistente administrativo

Americano Americana

Com a família dos pais e na

escola

Viveu no Brasil por um longo período

Miami, EUA

B6 37 Professor universitário

Brasileiro Brasileira Com a família dos

pais

Estudou em uma escola internacional

São Paulo – Brasil

B7 34 Professora em uma escola

bilíngüe

Brasileiro Brasileira Com a família dos

pais

Estudou em uma escola internacional

São Paulo – Brasil

B8 41 Dona de casa Brasileiro Brasileira Com a família dos

pais

Estudou em uma escola internacional

São Paulo – Brasil

B9 43 Empresária Brasileiro Brasileira Com a família dos

pais

Residiu nos EUA quando

criança

São Paulo – Brasil

Fonte: Dados da Pesquisa.

Os bilíngues sequenciais, que aqui serão representados por S, que

participaram desta pesquisa foram:

S1: 34 anos, tradutor inglês/português. Família brasileira. Aprendeu

inglês em programas para estrangeiros nos Estados Unidos, onde residiu por

cinco anos até a conclusão de seu mestrado. Reside atualmente no Brasil, na

cidade de Guarulhos.

S2: 28 anos, doutorando em estudos literários na The City University of

New York. Família brasileira. Aprendeu inglês em cursos de idiomas. Reside

atualmente nos EUA, na cidade de Nova Iorque.

S3: 32 anos, professora de inglês em uma escola de idiomas. Família

brasileira. Aprendeu inglês em escola de idiomas na infância e em interações

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sociais a partir da adolescência. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São

Paulo.

S4: 28 anos, tradutora. Família brasileira. Aprendeu inglês estudando no

Canadá. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo.

S5: 29 anos, dona de casa. Família brasileira. Aprendeu inglês em

cursos de idiomas e intercâmbio para Nova Zelândia. Reside atualmente no

Brasil, na cidade de São José dos Campos.

S6: 35 anos, biomédico. Família brasileira. Aprendeu inglês em cursos

de idiomas e viagens para o exterior. Reside atualmente no Brasil, na cidade

de São Paulo.

S7: 27 anos, professora em uma escola internacional. Família brasileira.

Aprendeu inglês em cursos de idiomas e viagens para o exterior. Reside

atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo.

S8: 38 anos, pedagoga. Família brasileira. Aprendeu inglês em cursos

de idiomas e intercâmbio para os EUA. Reside atualmente no Brasil, na cidade

de São Paulo.

S9: 29 anos, professora em uma escola internacional. Família brasileira.

Aprendeu inglês em cursos de idiomas e intercâmbio para os EUA. Reside

atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo.

A seguir, exponho um quadro no qual essas informações foram

organizadas para melhor visualização.

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Quadro 3: Bilíngues sequenciais participantes da pesquisa

Participante Idade Profissão Origem do pai

Origem da mãe

Como aprendeu

inglês

Como aprendeu português

Residência

S1 34 Tradutor Brasileiro Brasileira Programas para

estrangeiros nos EUA, onde residiu por 5

anos até concluir o mestrado

Com a família no

Brasil

Guarulhos – SP, Brasil

S2 28 Doutorando em Estudos

Literários na The City

University of New York

Brasileiro Brasileira Cursos de idiomas

Com a família no

Brasil

New York, EUA

S3 32 Professora de inglês

Brasileiro Brasileira Cursos de idiomas e com

amigos no exterior

Com a família no

Brasil

São Paulo, Brasil

S4 28 Tradutora Brasileiro Brasileira Estudou no Canadá

Com a família no

Brasil

São Paulo, Brasil

S5 29 Dona de casa Brasileiro Brasileira Cursos e idiomas e

intercâmbio para Nova Zelândia

Com a família no

Brasil

São José dos Campo, SP.

Brasil

S6 35 Biomédico Brasileiro Brasileira Cursos de idiomas e

viagens para o exterior

Com a família no

Brasil

São Paulo, Brasil

S7 27 Professora em uma escola

internacional

Brasileiro Brasileira Cursos de idiomas e

viagens para o exterior

Com a família no

Brasil

São Paulo, Brasil

S8 38 Pedagoga Brasileiro Brasileira Cursos de idiomas e

intercâmbio para o

exterior

Com a família no

Brasil

São Paulo, Brasil

S9 29 Professora em uma escola

internacional

Brasileiro Brasileira Cursos de idiomas e

intercâmbio para o

exterior

Com a família no

Brasil

São Paulo, Brasil

Fonte: Dados da Pesquisa

Na seção seguinte, serão descritos os procedimentos adotados para

categorizar e analisar os dados advindos da aplicação dos instrumentos.

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1.5 Mo(vi)mento de análise

Pêcheux (2002) afirma que toda descrição abre sobre a interpretação, ou

seja, por meio de descrições regulares de montagens discursivas, pode-se

detectar os momentos de interpretações enquanto atos que surgem “como

tomadas de posição reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de

identificação assumidos e não negados” (PÊCHEUX, 2002, p.57). Logo, como

pesquisadora, não me encontro livre das formações inconscientes e dos

discursos conflituosos que me constituem como sujeito e, assim, ao deparar-

me com o dispositivo teórico desta pesquisa, produzo sentidos a partir do lugar

e das posições que ocupo no discurso.

Como explicitado anteriormente, a AD francesa não possui uma

metodologia, modelo ou esquema específico. Isso significa que cabe ao

analista adotar, como salienta Orlandi (1999), princípios e procedimentos a

partir das perguntas e dos objetivos em relação aos dados. A autora afirma que

a construção de dispositivos de análise é condição para se desenvolver um

conjunto de práticas sobre como trabalhar com os dados e, por fim, essas

práticas se constituem em procedimentos metodológicos.

Dessa forma, apresento, na figura que segue, as etapas que constituíram

os procedimentos metodológicos adotados nesta pesquisa. Vale ressaltar que

as etapas não estão numeradas e se relacionam entre si por meio de flechas

com pontas duplas, pois durante todo o processo de análise do corpus, recorri

a esses procedimentos por mais de uma vez e em momentos diversos.

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Inicialmente, a partir das perguntas de pesquisa, localizei os recortes de

enunciados que respondiam ou possuíam relações com meus objetivos.

Segundo Orlandi (1989), o recorte refere-se a uma unidade discursiva

entendida como fragmentos correlacionados de linguagem e situação. Para

essa autora, cada texto é um conjunto de recortes discursivos que se

Análise do

corpus

Definição de objetivo, objeto e

perguntas a fazer

Recorte dos enunciados e

suas paráfrases

Agrupamento dos enunciados

a partir das representações

encontradas

Localização das representações encontradas nos

enunciados

Análise das representações

quanto a sua posição

ideológica

Volta ao corpus para efetuar

outros recortes específicos e a teoria para o

confrontamento com os dados

Análise das representações

que revelam aspectos da

identidade dos sujeitos

Procedimentos metodológicos

adotados nesta pesquisa

Figura 4: Procedimentos metodológicos adotados nesta pesquisa

Fonte: Dados da pesquisa

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entrecruzam e se dispersam. Pode-se dizer que um recorte é um fragmento da

situação discursiva e a análise empreendida efetua-se por meio de seleção

dessas unidades extraídas do corpus, ou mesmo de recortes de recortes, de

acordo com os objetivos da pesquisa. A partir desses recortes, é possível

analisar cada enunciado como Foucault (1969/1995, p. 124) o concebe,

“elemento suscetível de ser isolado e capaz de entrar em jogo de relações com

outros elementos semelhantes a ele”. Analisar os enunciados exige uma

reflexão sobre as regras que estabelecem suas condições de existência, de

aparição, sua produção na história, quais são suas correlações com outros

enunciados, qual seu papel desempenhado em meio a outros neste jogo

enunciativo, seus limites e qual a memória retomada e efeitos de sentidos

produzidos neste contexto.

Após o recorte dos enunciados, localizei as representações existentes

acerca:

a) das línguas inglesa e portuguesa faladas pelos sujeitos desta

pesquisa;

b) do Brasil e dos países relacionados à história dos participantes;

c) do povo brasileiro e do povo relacionado ao país que os participantes

mantém relação;

d) de sua condição bilíngue.

Esse conjunto de representações foi delimitado, pois, a partir dessas,

seria possível responder às perguntas desta pesquisa e compreender o

fenômeno estudado. Como afirmam Freire e Lessa (2003, p.174), as

representações são:

[...] maneiras socialmente construídas de perceber, configurar, negociar, significar, compartilhar e/ou redimensionar fenômenos, mediadas pela linguagem e veiculadas por escolhas lexicais e/ou simbólicas expressivas que dão margem ao conhecimento de um repertório que identifica o indivíduo e sua relação sócio-histórica com o meio, com o outro e consigo mesmo.

Nessa vertente, o estudo das representações possibilitar-me-ia o acesso

de localizar, no discurso desses sujeitos, questões pertinentes à sua

constituição identitária, uma vez que a identidade se constitui a partir das

representações que um grupo ou sociedade possui em torno dele mesmo.

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A seguir, separei o conjunto de enunciados de acordo com as

representações encontradas e os analisei quanto à sua posição ideológica e no

tocante aos aspectos identitários que podiam suscitar.

Cabe mencionar que, no decorrer das análises, o retorno ao corpus foi

constante, assim como o reajustamento dos agrupamentos, considerando a

exclusão ou a inclusão de enunciados.

Com a trajetória da pesquisa delineada, tenho subsídios para o trabalho

com os dados. Dessa maneira, apresentarei, na próxima seção, a discussão

dos resultados a partir da análise do corpus.

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Entre ditos e não-ditos

Chega mais perto e contempla as

palavras. Cada uma tem mil faces

secretas sob a face neutra.

E te pergunta, sem interesse pela

resposta, pobre ou terrível, que lhe

deres: Trouxeste a chave?23

23 DRUMMOND, C. Procura da poesia. In: A Rosa do Povo. São Paulo: Editora Record, 1945/2000. p. 12.

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SEÇÃO 2

Entre ditos e não ditos Para iniciar esta seção retomo como se deu a coleta de dados neste

trabalho e discorro sobre a organização desta seção.

O trabalho de campo foi realizado nos meses de agosto e setembro de

2010. É importante salientar que a seleção dos participantes foi definida

obedecendo a quatro critérios:

(i) ser brasileiro;

(ii) ser falante de português e de inglês;

(iii) utilizar ambas as línguas em alguma esfera de suas vidas, por exemplo, profissional, familiar,

entre outras; (iv) ser escolarizado, uma vez que responderia o

questionário por escrito. Fonte: Dados da Pesquisa

Sendo assim, nove bilíngues simultâneos e nove bilíngues sequenciais

responderam a um questionário aberto que tinha como objetivo localizar as

representações que esses sujeitos têm acerca de sua condição bilíngue, de

suas línguas e dos povos com quem se relacionam. Nesta análise, os bilíngues

simultâneos serão representados pela letra B e os recortes de suas narrativas

estão registrados, para uma melhor visualização, na cor azul. Por sua vez, os

bilíngues sequenciais serão representados pela letra S e os recortes de suas

narrativas estão registrados na cor vermelha.

Além do questionário, contatei posteriormente quatro participantes para

esclarecimentos a respeito de algumas de suas respostas no questionário.

Esses contatos foram feitos por e-mail e, na análise, são diferenciados das

respostas obtidas por meio do questionário pela sigla CP – contato posterior.

A partir das respostas obtidas por meio do questionário e dos

esclarecimentos realizados por e-mail, realizei o recorte dos enunciados que

Quadro 4: Critérios para seleção dos participantes

desta pesquisa

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respondiam ou possuíam relações com meus objetivos. A seguir, localizei as

representações existentes acerca:

a) das línguas inglesa e portuguesa que os sujeitos desta pesquisa

falam;

b) do Brasil e dos países relacionados à história dos participantes;

c) do povo brasileiro e do povo relacionado ao país com que os

participantes mantêm relação;

d) de sua condição bilíngue.

Depois de localizá-las, separei e agrupei os enunciados de acordo com

as representações encontradas e os analisei quanto à sua posição ideológica e

quanto aos aspectos identitários que podiam suscitar para que, desse modo, as

perguntas de pesquisa fossem respondidas. No quadro a seguir, relaciono as

perguntas desta pesquisa e as representações, que, após analisadas à luz da

AD francesa, permitiram-me responder às perguntas que norteiam este

trabalho:

Perguntas de pesquisa Representações Sociais

1) Como é a relação desses sujeitos

com as línguas que os constituem?

Representações da língua inglesa e

portuguesa que os sujeitos desta

pesquisa falam.

2) Como as identidades desses

sujeitos foram se (trans)formando na

sua relação com as línguas?

Representações de sua condição

bilíngue.

3) Como esses sujeitos ao se

enunciarem constroem imagens de si

e do Outro?

Representações (a) do Brasil e dos

países relacionados à história dos

participantes e (b) do povo brasileiro e

do povo relacionado ao país com que os

participantes mantêm relação.

Fonte: Dados da Pesquisa

Quadro 5: Relação das perguntas de pesquisa e das representações localizadas

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A análise foi organizada em três seções: (i) Entre o desejo da

completude e a falta do sujeito; (ii) Entre o mito, o possível e o desejo do outro

e (iii) Entre as diversas concepções do eu. Essas seções foram organizadas a

partir das representações localizadas no discurso dos participantes a fim de

responder às perguntas que norteiam esta pesquisa. Na sequência, apresento

um quadro no qual relaciono as seções e as representações enfatizadas:

Seções Representações Sociais

Entre o desejo da completude e a falta do sujeito

(a) Representações sobre a língua portuguesa e inglesa que os sujeitos desta pesquisa falam.

Entre o mito, o possível e o desejo do outro

(a) Representações sobre a língua inglesa que os sujeitos desta pesquisa falam. (b) Representações sobre o Brasil e sobre os países relacionados à história dos participantes. (c) Representações sobre o povo brasileiro e sobre o povo relacionado ao país que os participantes mantêm relação.

Entre as diversas concepções do eu

Representações sobre sua condição bilíngue e sobre a imbricação (ou não) das línguas que o constituem.

Fonte: Dados da Pesquisa

Vale ressaltar que, ao perseguir as possíveis respostas às perguntas

que norteiam esta pesquisa, é importante considerar o fato de que, na

perspectiva teórico-metodológica a que me proponho, toda interpretação é

múltipla e deslizante. Logo, como afirma Coracini (1999), não existem verdades

absolutas, ou seja, ninguém é detentor da verdade, mas sempre um porta-voz

de uma interpretação possível.

Dito isso, apresento, nas seções seguintes, a análise do corpus desta

pesquisa.

Quadro 6: Relação das seções organizadas e das representações

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Entre o desejo da completude e a falta do sujeito

Entre o mito, o possível e o desejo do outro

Entre as diversas concepções do eu

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2.1 Entre o desejo da completude e a falta do sujeito

Sou um monte confuso de forças cheias de infinito. Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço

24

Nas sequências discursivas analisadas, percebem-se diferentes

representações relacionadas à língua portuguesa e à língua inglesa pelos

falantes bilíngues desta pesquisa. Essas representações certamente

constituem o imaginário dos sujeitos envolvidos, e isso acarreta em implicações

na relação que travam com a língua materna e com a língua estrangeira e,

consequentemente, com eles próprios. Neste trabalho, parto do pressuposto de

que o falante é um sujeito da linguagem, constituído socio-historicamente cujas

representações, por ele construídas sobre as línguas que fala, apontam para

sua constituição subjetiva. Ressalto que a análise dos registros, apresentada a

seguir, está organizada conforme as posições enunciativas, que materializam

representações quanto às línguas portuguesa e inglesa.

É também essencial considerar que as línguas dos participantes são a

língua portuguesa do Brasil, língua relacionada a um determinado contexto

socio-histórico de um país pós-colonial e a língua inglesa é considerada

internacional principalmente devido às políticas expansionistas do império

britânico no século XIX e à ascensão econômica dos Estados Unidos como

superpotência. Nesse sentido, apoio-me em Canagarajah (1999) para afirmar

que, ao optar por aprender ou fazer uso do inglês, esses indivíduos fazem

também uma opção ideológica e social, ainda que de modo inconsciente.

Uma das representações mais recorrentes, neste corpus, no tocante à

língua portuguesa é a de que o português é uma língua difícil e complexa. Os

sujeitos, desta pesquisa, definem a dificuldade da língua pela quantidade de

regras das gramáticas normativas e pela diversidade lexical apresentada pelos

dicionários. É importante ressaltar que, nas sequências discursivas analisadas,

a representação da língua portuguesa como difícil foi contrastada à da língua

inglesa - como fácil e simples. Essa representação da língua inglesa funciona

como alicerce para a construção das representações do português. Vale

24 PESSOA, Fernando. Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. In: Poesia de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1993. p.132.

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ressaltar que as representações dessas duas línguas se entrecruzam e se

constituem a todo o momento.

As representações, aqui discutidas, foram discursivamente construídas

por meio da utilização de adjetivos, como, por exemplo, trabalhosa, complexa,

difícil, simples e fácil, como se percebe a seguir:

B6: O português é uma língua mais trabalhosa, que requer mais esforço para construção de alguns significados.

B8: Gosto mais do inglês porque acho bem mais fácil.

S5: Sinto um orgulho muito grande por ser falante de uma língua tão complexa quanto o português.

S8: Essa pergunta é difícil de responder. Acho a língua inglesa mais direta, simples, econômica que a língua portuguesa e aprecio isso. Vejo beleza nessa simplicidade. Gosto muito de ler textos em inglês pelo deleite que sinto.

A qualificação difícil que se atribui à língua portuguesa é materializada

quando os sujeitos, ao justificarem sua posição, dão ênfase às regras

gramaticais que para eles são impossíveis de serem colocadas em uso. A

percepção de que há muitas regras, as quais não são utilizadas pelos falantes,

faz com que esses sujeitos vejam sua língua portuguesa como incompleta, na

ilusão de que apenas as gramáticas e dicionários a teriam em sua completude.

Pode-se observar esse aspecto quando B5 e B3 enunciam acerca da

complexidade da língua portuguesa:

B5: Eu sou mais fluente em Inglês, mas prefiro e aprecio muito mais o Português. Por mais complicado que seja a gramática, ela é muito bonita.

B3: O inglês me é mais natural, por uma dificuldade psicológica com o

Português. Eu faço muitas pausas pra raciocinar em Português com a mesma velocidade. Acho que é medo de errar principalmente conjugações verbais do Português.

Nas sequências discursivas analisadas, o conhecimento gramatical

parece ser uma verdade construída sobre a língua. Isso culmina no

estabelecimento do que pode ou não ser dito e da forma como pode ser dito

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em determinados contextos, de acordo com uma língua que não pertence a

todos os falantes, mas apenas aos mais escolarizados e socialmente

reconhecidos, e, assim, autorizados a dizer algo sobre essas línguas.

Foucault (1979) contribui para essa discussão ao ressaltar que são

essas verdades que contribuem para o funcionamento das relações de poder

entre os falantes nos discursos sobre a língua. O conhecimento da gramática

normativa é posto em funcionamento por meio de uma rede de procedimentos

e mecanismos que atingem os aspectos mais sutis da realidade e da vida dos

sujeitos. Esse saber normativo da língua pode ser caracterizado como um

micropoder ou um subpoder, tornando-se, por isso, objeto de desejo daqueles

que fazem parte de sua formação discursiva, como se pode perceber nas

sequências analisadas.

Esse saber, que aparece como ciência, transformou-se naquilo que é

acolhido, hoje, como discurso válido e de prestígio. Com isso, esse saber

organizado em torno de normas possibilita o controle dos indivíduos ao longo

de sua existência. Ou seja, para ascender socialmente é necessário dominar

esse saber culto sobre a língua, sendo que a não utilização dessas normas e

regras gera um sentimento de não apropriação e não “domínio” da língua.

Outro aspecto que merece ser ressaltado nas sequências discursivas é

a utilização de construções linguísticas de comparação por meio dos advérbios

que acompanham os adjetivos exemplificados anteriormente como “muito”,

“mais” e “tão”. Esses advérbios constroem uma escala, na qual se tem, no topo

da dificuldade, a língua portuguesa e, na base, o inglês, língua fácil e simples,

de acordo com o discurso dos enunciadores.

B6: O português é uma língua mais trabalhosa, que requer mais esforço para construção de alguns significados.

B8: Gosto mais do inglês porque acho bem mais fácil. S8: Essa pergunta é difícil de responder. Acho a língua inglesa mais direta,

simples, econômica que a língua portuguesa e aprecio isso. Vejo beleza nessa simplicidade. Gosto muito de ler textos em inglês pelo deleite que sinto.

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S5: Sinto um orgulho muito grande por ser falante de uma língua tão complexa quanto o português.

Os advérbios muito, mais e tão têm a função de intensificar a esfera de

significados dos adjetivos complexa, simples, fácil e trabalhosa. Esses

advérbios funcionam como não coincidência entre as palavras e as coisas, uma

vez que contribuem para a intensificação de significados que, sozinhos,

parecem não serem suficientes.

A leitura desses enunciados evoca o princípio de que os sentidos não

são prontos. De outra feita, remetem a um já dito ao qual se filiam. A aparente

evidência dos sentidos expressos nos enunciados analisados não passa de um

efeito ideológico, uma vez que a ideologia faz parecer que o discurso é

homogêneo e transparente. Porém é o interdiscurso que define o dizível para

os sujeitos, ou seja, é um já dito que sustenta a possibilidade de todo dizer.

Nas sequências marcadas nesta seção, percebe-se o discurso ideologicamente

marcado pelas vozes que atravessam o discurso desses sujeitos e afirmam

que o português é uma língua difícil.

Nesse sentido, Bagno (2002) explica que a ideia de que o brasileiro não

sabe português e de que, apenas em Portugal, fala-se bem o português é

corriqueira e face “de uma mesma moeda enferrujada” (BAGNO, 2002, p. 20),

que reflete o complexo de inferioridade e o sentimento de que o Brasil é, até

hoje, uma colônia que depende de um país mais civilizado.

Pode-se, com isso, dizer que os sujeitos que se enunciam nesta

pesquisa estão exprimindo uma ideologia impregnada em nossa cultura há

muito tempo. Essas ideias equivocadas impregnaram o imaginário do brasileiro

e se constituíram em um dos preconceitos mais em voga ultimamente, que é o

preconceito linguístico.

É interessante notar que muitos dos participantes desta pesquisa

trabalham com educação25. Segundo Bagno (2002), quatro são os elementos

que favorecem a formação desse tipo de preconceito no Brasil: a gramática

tradicional, os métodos tradicionais de ensino, os livros didáticos e os

comandos paragramaticais. Esses elementos estão, sem dúvida, presentes em

25 Dentre os nove bilíngues simultâneos, seis trabalham no ambiente escolar: quatro como professores, um como coordenador e um como diretor. Dentre os nove bilíngues sequenciais, quatro trabalham com educação e um trabalha na área acadêmica, com pesquisa.

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nossa sociedade, mas encontram-se em abundância no ambiente da maioria

dos participantes desta pesquisa: a escola.

Diante disso, é necessário considerar que, ao expressarem suas ideias

sobre o português, esses sujeitos não estão apenas relatando suas opiniões.

Enquanto sujeitos, interpelados pelas condições socio-históricas, fazem uma

escolha por determinada perspectiva discursiva porque estão envolvidos em

um jogo de imagens do qual sua própria imagem também é parte integrante.

Bagno (2002) afirma que o grande problema do ensino de português no

Brasil é que esse ensino, até hoje, depois de mais de cento e setenta anos de

independência política, continua com os olhos voltados para a norma linguística

de Portugal. As regras gramaticais consideradas “certas” são aquelas usadas

por lá, que servem para a língua falada lá, que retratam bem o funcionamento

da língua que os portugueses falam (BAGNO, 2002).

Portanto essas vozes, que perpassam o dizer dos participantes desta

pesquisa, estão imbuídas da ilusão de que os portugueses falam e escrevem

tudo certo e que seguem rigorosamente as regras da gramática ensinadas na

escola.

Para os participantes desta pesquisa, essa língua “perfeita” que pertence

ao povo português, pertenceria, no Brasil, apenas a indivíduos especiais, como

se pode verificar no enunciado a seguir:

S8: Agora, na língua portuguesa, me chama a atenção autores, por exemplo,

que são mais inventivos e arriscam até modificar a língua, como Manoel de Barros e Guimarães Rosa.

Ao se referir a esses supostos falantes dessa língua “perfeita”, põe-se

uma comparação com os falantes comuns que, de acordo com os

enunciadores, não possuem essa língua ideal. Esses falantes ideais, conforme

o enunciador, podem até modificar a língua, uma vez que esta lhe pertence.

Além disso, neste caso, há um deslize do domínio da língua para a posição que

esse falante ocupa na sociedade, o que mostra que olhar para língua é

também olhar para o enunciador e tudo o que simbolicamente a ele está

relacionado, seu status, profissão e prestígio, dentre outros aspectos. Esse

olhar para quem enuncia é determinado pelas identificações do sujeito que são

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interpeladas pelo seu inconsciente, ancorando suas representações de língua

ideal. Essa língua ideal passa a fazer parte do imaginário do sujeito que

começa a desejá-la e, dessa forma, seu desempenho linguístico é visto como

insuficiente e inacabado, sempre vislumbrando uma falta que é constitutiva ao

sujeito.

A sensação de falta faz, segundo Derrida (2001), com que as pessoas

construam próteses com o intuito de supri-la ou compensá-la. Nesse caso, a

prótese manifesta-se a partir da exigência compulsiva de uma pureza da

língua, ou seja, uma preocupação exacerbada com a correção linguística. É

como se os participantes desta pesquisa buscassem possuir a língua, dominá-

la, torná-la deles, mas, ao mesmo tempo, reconhecem essa impossibilidade

pelo encontro com a alteridade.

Faz-se importante ressaltar que essa dificuldade atribuída ao português

nem sempre é encarada negativamente, como se observa nas sequências a

seguir:

S5: Sinto um orgulho muito grande por ser falante de uma língua tão complexa quanto o português.

B5: Eu sou mais fluente em Inglês, mas prefiro e aprecio muito mais o

Português. Por mais complicado que seja a gramática, ela é muito bonita.

Essa dificuldade atribuída ao português é considerada motivo de

orgulho, pois, para esses enunciadores, parece claro que a língua é difícil por

ser rica e bela. Dessa forma, mais uma representação sobre a língua

portuguesa é evidenciada: o português é uma língua rica. Essa riqueza é

relacionada, por esses sujeitos, à quantidade de palavras e à elasticidade das

construções sintáticas e morfológicas. Se, como discorri anteriormente, é o

interdiscurso que define o dizível para o sujeito, de onde vêm os sentidos que

levam a essa representação?

Para responder a essa pergunta, lanço a hipótese de que essa posição

enunciativa de língua rica interdiscursivamente dialoga com a ideia que

acompanha o Brasil desde seu descobrimento. De acordo com ela, o Brasil

seria um paraíso, cheio de riquezas e recursos inesgotáveis. Além disso, a

ideia de que o Brasil é um vasto país, gigante pela própria natureza, como

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postulado pelo hino nacional, é um enunciado atualizado sistematicamente na

sociedade.

Parece que a ideia de que o Brasil é um país contemplado por sua

riqueza e por seu território grandioso mantém-se no imaginário dos brasileiros.

Logo, pode-se presumir que esse imaginário relacionado ao país perpassa

também as representações da língua portuguesa que passa por ser também

um lugar de riqueza inesgotável.

É interessante ressaltar que é essa mesma riqueza, vista como motivo

de orgulho, como enuncia S5, que seria a responsável pela característica

negativa de uma língua difícil. Assim, verifica-se que os discursos que

sustentam as representações da língua se entrecruzam e muitas vozes se

confundem nos discursos dos participantes desta pesquisa.

Essas atribuições do português como uma língua difícil e rica estão

ancoradas na comparação com a língua inglesa, classificada como fácil e

simples, como nas sequências enunciadas por B8 e S8:

B8: Gosto mais do inglês porque acho bem mais fácil.

S8: Essa pergunta é difícil de responder. Acho a língua inglesa mais direta, simples, econômica que a língua portuguesa e aprecio isso. Vejo beleza nessa simplicidade. Gosto muito de ler textos em inglês pelo deleite que sinto.

A representação de fácil, já internalizada nas sociedades que estudam a

língua inglesa como língua estrangeira ou segunda língua, parece fazer parte

de uma ideologia hegemônica. Isso explicaria o fato de o inglês ser a língua

mais difundida no mundo: a língua dos negócios, a língua internacional ou a

língua franca, como é classificada. Outro ponto a se considerar é que esse

caráter de língua fácil foi estabelecido em contraposição ao latim, no passado,

língua obrigatória nas escolas e também classificado como difícil e complexo.

Pode-se assumir que os livros didáticos para o ensino de língua inglesa

também contribuem para essa representação de fácil, uma vez que, na grande

maioria dos casos, a língua apresentada é uma língua homogênea e as

variedades são completamente ignoradas, o que contribui para a criação da

ilusão de que o inglês é uma língua una e, por isso, mais simples e fácil.

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Nas sequências analisadas, os enunciadores constroem uma escala de

valores para as línguas: o português como língua difícil se contrapondo ao

inglês como língua fácil e o português como língua rica em contraposição ao

inglês como língua simples.

Com a análise dos registros, observa-se que as representações das

línguas portuguesa e inglesa são construídas no mesmo sentido por

enunciadores bilíngues sequenciais e simultâneos, assim como as construções

discursivas empregadas, como o uso de adjetivos e advérbios a fim de

intensificar as significações, também, foram equivalentes.

Percebe-se nas sequências analisadas a presença do interdiscurso que

mobiliza vozes distintas: a voz do colonizado, do colono e da sociedade

globalizada. Verifica-se, então, que a constituição do sentido e do sujeito

decorre de esquecimentos da ordem enunciativa e ideológica. Isso equivale a

dizer que o sujeito tem a ilusão de que é fonte primeira de seu dizer e de que o

que diz só pode ser dito dessa forma. Além disso, é, nesse jogo de

classificação das línguas, que os enunciadores assumem sua posição no

discurso e desenham sua identidade pelo viés da língua.

Para completar é importante salientar que, embora aqui a língua inglesa

tenha sido classificada como fácil e simples, também, é tomada por esse

mesmo sentimento de falta atribuído à língua portuguesa. Esse sentimento é

detectado ao analisar relatos desses sujeitos quanto às suas experiências e

impressões relacionadas ao seu sotaque, que expressam, em sua grande

maioria, o desejo de soar como o outro, o nativo. Esse aspecto será tratado na

próxima seção.

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2.2 Entre o mito, o possível e o desejo do outro

Enquanto falar me for possível, e em vida e na morte, jamais esta língua única, estás a ver, virá a

ser minha. Nunca na verdade o foi.26

Nesta seção, a partir das representações que os sujeitos desta pesquisa

têm sobre a língua inglesa, sobre o Brasil e sobre o brasileiro, procuro: (i)

mostrar a irrupção de discursos a respeito da identidade, (ii) apontar a

existência de estigma relacionado ao fato de ser brasileiro e de um sentimento

de inferioridade por conta de diferenças na produção oral, o sotaque, quando

se comparam a falantes oriundos de países de língua inglesa.

Frente à pergunta: Você se preocupa com seu sotaque? Por quê? Pode-

se destacar que, dentre os nove bilíngues simultâneos participantes desta

pesquisa, seis (66,6%)afirmam que se preocupam com seu sotaque. Enquanto

isso, esta questão desperta a preocupação de oito (88,9%), dos nove, bilíngues

sequenciais, como se observa no gráfico a seguir:

0

1

2

3

4

5

6

7

8

9

Bilíngues

Simultâneos

Bilíngues

Sequenciais

Preocupação com o

sotaque

Não preocupação com o

sotaque

Ao serem questionados quanto à importância atribuída, por eles, ao

sotaque, os participantes, de modo geral, conferem ao seu dizer uma

26 DERRIDA, J. O monolinguismo do Outro ou a prótese da origem. Tradução de Fernando Berardo. Porto: Campo das

Letras, 2001. p.14.

Figura 5: Preocupação com o sotaque – bilíngues sequenciais e simultâneos Fonte: Dados da pesquisa

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conformidade com um discurso que atribui ao falante nativo o domínio da

língua, como se pode observar nas sequências discursivas desta seção:

S5 Sim, porque gostaria de aproximar cada vez mais a minha fala à de um nativo.

S8 Sim, preocupo-me com minha pronúncia porque sou perfeccionista e quero

ser compreendida e quero falar “bonito”. S4 Sempre me preocupei, mas não sei bem a razão. Acho que é um pouco

como música, me incomoda falar com sotaque carregado, como se alguém estivesse cantando desafinado.

Pode-se inferir, desses relatos, que falar com sotaque, ou seja, ser

identificado como brasileiro, remete a um falar que é feio, comparado por S4 a

um cantar desafinado. Possivelmente, o que se tangencia, a partir desses

recortes, é a estranheza que provoca a língua do outro, pois essas

formulações trazem indícios de que esses bilíngues simultâneos e sequenciais

não se veem inscritos nessa outra ordem simbólica e, desse modo, por

oposição, seria apenas o nativo (monolíngue?) que desfrutaria do conforto de

sua língua materna.

Na tessitura desses dizeres, percebe-se que o falar como nativo remete

à ilusão de familiaridade e acolhimento experimentada na língua materna.

Essas considerações trazem à tona a problematização sobre o que é língua

materna e o que é língua estrangeira discutida na seção “Vida entre línguas”,

o que reforçaria a ideia de que os sentimentos vivenciados na experiência de

ser/estar entre línguas não são tão facilmente mensuráveis; antes, não

passam de ilusão, porque, a todo o momento, o sujeito vê-se frente ao

desconhecido na língua que pensa ser sua, ao inesperado que não se quer

enfrentar ou ao mal dito que não se deseja não ter dito. Sendo assim, a

sensação de estranha familiaridade e de familiar estranheza perpassa a

inscrição do sujeito, seja na língua materna ou na estrangeira, fazendo com

que o “domínio” dessas línguas seja sempre da ordem do semelhante, jamais

da totalidade.

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Vale ressaltar que esse desejo de se aproximar do lugar do falante

nativo também aponta para o processo de identificação com a língua do outro,

que passa a ser constitutivo da identidade do sujeito bilíngue e, com isso,

desloca sua identificação com a língua materna e com o lugar que ela ocupa.

Na mesma direção, vislumbra-se, no enunciado de B2, a pressuposição

da identidade (CIAMPA, 1990), isto é, há uma nomeação de atributos

individuais nas relações que se dão no âmago de uma estrutura social. Nesse

caso, esses atributos individuais referem-se a como o sujeito bilíngue deve ou

não falar.

B2 Às vezes, me preocupo com meu sotaque na língua inglesa por vários motivos: não convivo com anglofalantes nativos e, às vezes, sinto que perco um pouco das referências; quase não tenho praticado meu inglês e como meu pai é americano as pessoas sempre querem me ouvir falando e me sinto no “dever” de falar com um sotaque nativo, que acredito ter perdido um pouco.

No recorte supracitado, o conhecimento compartilhado socialmente e as

expectativas dos outros, no que se refere ao modo como um determinado

sujeito deve agir e ser, são tangenciados. Pode-se também acompanhar um

movimento de reposição dessa identidade pressuposta, uma vez que B2 se

sente no “dever” de falar como esperado, o que evidencia o processo de

mesmice, assim como denominado por Ciampa (1984). Ao trazer essas

asserções, B2 repõe a personagem estereotipada de como filhos de

americanos devem falar, ao se intitular no dever de atender às exigências do

que a sociedade espera dela. No dizer de B2, ressoam indícios de um

movimento inconsciente para “repor” aquilo que a sociedade “põe” como certo.

Além disso, o uso das aspas por B2, neste enunciado, marca a

eterogeneidade mostrada que incide na construção dos sentidos.

Primeiramente, há a tentativa de sinalizar que o “dever” a que B2 se refere

não é o mesmo “dever” em outros âmbitos de sua vida. Observa-se, além

disso, a não coincidência entre a palavra e a coisa, o que indica uma

negociação do sujeito com a alteridade discursiva, pois as aspas indicam que

a palavra “dever” não é a mais apropriada para designar o que o enunciador

pretendia. Finalmente, o uso das aspas remete à distância ou à crítica que o

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enunciador pretende manter quanto a esse “dever”, visto que seu uso delimita

espacial e discursivamente a palavra que a vincula a uma determinada

formação discursiva e indica uma não coincidência das palavras com elas

mesmas.

Na mesma direção, B7, S7 e S8 também imprimem, em seus relatos,

marcas que funcionam como um deslize do enunciador na sua tentativa de

apagar a contradição. Ao justificar sua preocupação ou falta dessa, o uso da

subordinada adversativa “mas” produz uma significação de contradição. Há,

nesses dizeres, uma forma de escamoteamento das lacunas que esses

sujeitos possuem em relação ao seu sotaque em língua inglesa.

B7 Não. Na verdade, por falar desde muito nova, não. Procuro sempre falar corretamente, mas não me preocupo.

S4 Sim. Sempre me preocupei, mas não sei bem a razão. Acho que é um

pouco como música, me incomoda falar com sotaque carregado, como se alguém estivesse cantando desafinado.

S8 Sim. Preocupo-me com minha pronúncia. Porque sou perfeccionista e quero

ser compreendida e quero falar “bonito”. Mas não acho que o objetivo de quem aprende ou ensina língua deva ser falar como nativos (isso seria se preocupar com o sotaque, eu acho). Até porque, o que é falar como nativos?

No fio de seus dizeres, esses sujeitos deslizam entre sua preocupação

ou falta dela à racionalização das mesmas, justificando-se, contradizendo-se e

se explicando. Nesse momento, pergunto-me se não seriam essas marcas na

linguagem a cisão do sujeito e sua constituição heterogênea? Hall (2001)

salienta que, dentro de cada sujeito, há identidades contraditórias, empurrando

em diferentes direções, de tal modo que suas identificações estão sendo

continuamente deslocadas. Esses sujeitos, ao narrarem-se, revelam seu

desejo de um dizer controlável. Mostra-se uma “luta” do enunciador com a

palavra e, ao mesmo tempo, um encontro com a incompletude nas línguas que

o constituem. A bem da verdade, como afirma Coracini (2007), o sujeito não

está preparado para lidar com a heterogeneidade que o constitui e, por isso,

contrapõe o seu dizer pelo uso de marcas linguísticas, como as adversativas.

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Ao se comparar a justificativa enunciada por S8 com a explicação

proferida por B2, pode-se constatar a multiplicidade de vozes que atravessam o

discurso de indivíduos bilíngues. Desse modo, há bilíngues interpelados pelo

discurso que versa sobre a competência ideal dos falantes nativos.

Semelhantemente, B2 apoia-se na decorrente representação de que o nativo

sabe a língua perfeitamente e serve de parâmetro para dizer o que está certo

ou errado, consequentemente, para que se avalie quem é, ou não é, um falante

competente da língua.

B2 Às vezes me preocupo com meu sotaque na língua inglesa por vários motivos: não convivo com anglofalantes nativos e às vezes sinto que perco um pouco das referências; quase não tenho praticado meu inglês e, como meu pai é americano, as pessoas sempre querem me ouvir falando e me sinto no “dever” de falar com um sotaque nativo, que acredito ter perdido um pouco.

Por sua vez, S8, primeiramente, afirma que se preocupa com sua

pronuncia porque quer ser compreendido e quer falar bonito. A seguir,

questiona o que seria falar como nativo:

S8 Mas não acho que o objetivo de quem aprende ou ensina língua deva ser

falar como nativos (isso seria se preocupar com o sotaque, eu acho). Até porque, o que é falar como nativos?

Verifica-se, na construção dessa representação de domínio da língua,

um dizer proveniente do discurso da Linguística Aplicada, que defende um

ensino de língua inglesa que enfatiza a capacidade de formar indivíduos que

possam interagir com esse mundo de diferentes modos e questiona a

supremacia do falante nativo. Porém notam-se resquícios da visão de falante

nativo ideal quando S8 justifica sua preocupação com o sotaque, sob a

alegação de se falar bonito.

A preocupação exacerbada com o sotaque, por alguns participantes

desta pesquisa, revela-se na tentativa, mesmo que inconsciente, de falar

inglês sem sotaque brasileiro. Tanto B4 quanto B6 ressaltam sua condição de

desacreditáveis (GOFFMAN, 1988), afirmando que sua brasilidade não é nem

conhecida pelos presentes nem imediatamente perceptível por eles:

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B4 Não tenho sotaque em nenhuma das línguas... pelo contrário nos USA ninguém consegue dizer de onde sou.

B6 Presto atenção e tento neutralizar ao máximo o regionalismo do meu sotaque. Não é tão difícil por ter muito conhecimento técnico na área.

B4 afirma não possuir sotaque em língua alguma e acrescenta que

ninguém consegue dizer de onde é. Por sua vez, B6 declara que não é difícil

para ele neutralizar seu sotaque, uma vez que possui conhecimento técnico na

área por ser professor de letras e linguística. B4 e B6 manipulam uma

informação oculta, neste caso, o sotaque, que desacredita o eu, ou seja, ocorre

aqui o que Goffman (1988) denomina de encobrimento. Observa-se em B4, um

encobrimento inconsciente, pois ele afirma que não possui sotaque algum –

como se fosse possível não possuir sotaque que o caracterize pertencente a

alguma comunidade linguística.

Por outro lado, B6 realiza um encobrimento em ocasiões rotineiras da

vida diária, como no trabalho e em situações de serviço. Ambos os sujeitos

evidenciam uma reposição da identidade pressuposta, denominada de

mesmice por Ciampa (1984), assim como foi também observado em B2.

Portanto há a criação de uma identidade “mito” (CIAMPA, 1990), que reproduz

o social sem questionamentos, nesse caso, referindo-se a como bilíngues

simultâneos deveriam falar.

Na sequência discursiva enunciada por B6, percebe-se que o

enunciador se vê como um sujeito que controla o seu dizer e,

consequentemente, é capaz de esquivar-se da alteridade. Esse sujeito parece

ter a sensação de que produz algo que ele pode controlar, o que advém de um

mecanismo ilusório que, de forma inconsciente, tenta abafar a heterogeneidade

constitutiva. É importante ressaltar que, historicamente, o sujeito cartesiano

tem pleno controle da língua, ou seja, é um indivíduo autônimo capaz de

controlar seu dizer, o que representa, para o enunciador, uma promessa de

completude.

Ao não atender às expectativas normativas da sociedade acerca do

sotaque que um falante competente deve ter, esses sujeitos suscitam sanções

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e reprimendas, como se pode observar em S7 e S2 ao relatarem o porquê seu

sotaque é motivo de preocupação:

S2 Quando falo com falantes nativos me preocupo porque vejo como eles tratam falantes que tem determinados sotaques (inclusive outros falantes nativos). Ou seja, não ser vítima de preconceito linguístico é, sem dúvida, uma preocupação minha.

S7 Me preocupo com meu sotaque porque já fui discriminada em meu ambiente de trabalho por não ter sotaque de estrangeiro ou por meu sotaque não ser o mais adequado.

Tanto S2 quanto S7 revelam o desejo de ser racional e centrado,

tentando ter controle sobre tudo que dizem e apagando, desse modo, as

variantes diatópicas que os constituem. Revela-se, nessas sequências

discursivas, a presença do interdiscurso que se vincula ao postulado de que a

língua é um fenômeno homogêneo e que pode, assim, ser adquirida em sua

totalidade. Mergulhados nessa problemática, S2 e S7 tentam se passar por um

sujeito uno, que lutam pelo controle e domínio de sua consciência e da língua

que os constitui.

Nota-se que S2 faz uso de parênteses, no seu discurso, para salientar

que inclusive falantes nativos que falam uma variedade não padrão da língua

também sofrem de preconceito. A nota (inclusive outros falantes nativos) rompe

o fio discursivo, assim, emergindo, de forma abrupta, em meio do texto com o

uso de parênteses, como um sinal de alerta à heterogeneidade que poderá

ameaçar a atividade. Nesse caso, haveria a possibilidade de utilização de uma

sentença simples, porém o uso de parênteses configura-se como algo

emergencial e secreto, que não merece ser compartilhado com todos e, ao

mesmo tempo, garante traçar o contorno de um discurso com relação a um

outro que é importante distinguir.

Além disso, S2 diz que uma de suas preocupações é não ser vítima de

preconceito linguístico. Por sua vez, S7 afirma já ter sido discriminada, em seu

ambiente de trabalho, por conta do sotaque, o que também remete à noção de

preconceito. Na esfera do discutido por Bagno (2002), pode-se inferir que o

sentimento de inferioridade que cerca os brasileiros em relação à língua

portuguesa também se estende ao falar inglês com sotaque. Uma vez que isso

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o identifica como brasileiro e, por conseguinte, encontra-se vulnerável, na visão

dos enunciadores, para ser vítima de preconceito linguístico.

Instada a explicar como foi discriminada em seu ambiente de trabalho,

S7 relata:

S7 - CP27 No meu caso, a própria coordenadora da educação infantil disse que houve reclamação de pais por meu inglês não ser melhor... E ela acabou completando que meu maior problema era o sotaque e que eu devia me policiar mais.

Vale ressaltar o papel das reticências no discurso de S7 quando afirma

que houve reclamações de pais por seu inglês não ser melhor. As reticências

parecem representar um espaço indeterminado, de transição e incertezas, o

que consiste em uma abertura para que sentidos paralelos aos vigentes

possam ser inscritos. Essa é uma marca linguística que tenta exprimir o não

dito, paralelamente ao dito, e tem a função de denunciar a heterogeneidade

presente na língua. Se o silêncio é, para o falante, uma forma de dizer, pode-

se considerar as reticências como uma marca de heterogeneidade ressaltada

do discurso, uma vez que, em seu lugar, é possível a substituição por várias

palavras portadoras de muitos sentidos. Nesse caso, o trecho “No meu caso,

a própria coordenadora da educação infantil disse que houve reclamação de

pais por meu inglês não ser melhor...” evoca a possibilidade de outras

questões relacionadas à produção de língua inglesa por S7, que faz a opção

por silenciá-las, ao mesmo tempo, que abre ao interlocutor a possibilidade de

decifrá-las.

O discurso de S3 acerca da importância dada ao sotaque corrobora o

exposto por S7:

S3 O sotaque identifica de onde o sujeito é, e com isso carrega estigmas. Por exemplo, de forma geral, considera-se que o carioca é malandro, o nordestino é de baixo nível socioeconômico-cultural, o português é estúpido, o britânico é educado, o alemão é ríspido, etc. Quando se ouve uma pessoa falando, os primeiros julgamentos são feitos dependendo da

27 Como explicitado no capítulo da metodologia, do conjunto dos dezoito questionários, senti a necessidade de contatar quatro participantes para maiores esclarecimentos a respeito de respostas a questões específicas. Esses contatos foram feitos por e-mail e na análise são diferenciados das respostas obtidas por meio do questionário pela sigla CP – contato posterior.

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forma como ela fala, e muitas vezes o sotaque fala mais alto que a gramática ou o vocabulário empregado.

Nesse recorte, S3 afirma que a gramática ou o vocabulário ficam em

segundo plano quando comparados com o sotaque que assume papel

primordial para se avaliar um falante de língua inglesa.

Percebe-se também, no discurso de S3, uma manifestação na qual se

distinguem outras vozes constitutivas. Nota-se que S3 não fala de si, mas faz

alusão ao sujeito, o que permite a percepção de que ele está inserido em outra

formação discursiva. Não se tem aqui a voz isolada de S3; do interdiscurso que

interpela seu dizer emergem múltiplas representações de nacionalidades e

regiões do Brasil.

S3 confere a indivíduos oriundos de diferentes países e regiões do Brasil

um veredito: “o carioca é malandro, o nordestino é de baixo nível

socioeconômico-cultural, o português é estúpido, o britânico é educado, o

alemão é ríspido”, que exprime as representações sociais acerca desses

indivíduos. Essas representações são obtidas por meio de um processo de

generalização, que é a seleção de uma característica aleatória que se torna

coextensiva a todos os membros da categoria.

Em consonância com o dizer de S3, observa-se, na trama de outros

dizeres analisados nesta seção, uma tentativa, por parte dos enunciadores, de

neutralização de seu sotaque. Para esses sujeitos, é motivo de orgulho quando

não são identificados como brasileiros, o que conferiria, ao bilíngue, o status de

falante competente de acordo com suas representações. A esse respeito,

Goffman (1988) salienta que sujeitos que não atendem às expectativas da

sociedade tendem a tentar corrigir diretamente o que consideram a base

objetiva de seu defeito, ocorrendo a vitimização.

Neste trabalho, como o sotaque brasileiro é visto como um problema ou

defeito a ser corrigido, observa-se a proliferação de cursos de pronúncia que

prometem um apagamento de qualquer sotaque ou marcas na fala que

caracterizam esse indivíduo como brasileiro. Essa discussão aparece no

recorte que se segue:

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B6 Presto atenção e tento neutralizar ao máximo o regionalismo do meu sotaque. Não é tão difícil por ter muito conhecimento técnico na área.

Neste, B6 afirma que possui conhecimento técnico e, com isso, pode

neutralizar o regionalismo de seu sotaque. É importante ressaltar que B6 é

professor universitário na área de lingüística, com especialização em fonética.

Em consonância ao enunciado por B6, diversos cursos surgiram no Brasil com

o intuito de neutralização e redução do sotaque. Para ilustrar com maior

clareza esta questão, apresento, na continuidade, alguns anúncios de cursos

com essa finalidade, encontrados na internet.

Esse curso tem como objetivo “aproximar a enunciação do aluno ao

discurso padrão americano”. Percebe-se, aqui, a exaltação do mito da

natividade e a, ainda presente, idealização e glorificação da figura do falante

nativo de língua inglesa, que o coloca como superior em relação ao falante não

nativo. Mas é importante ressaltar que não é qualquer falante nativo que está

em questão, e sim o falante nativo proveniente principalmente dos EUA e da

Inglaterra que fala uma variedade de inglês considerada de prestígio (RP ou

Figura 6: Aulas de redução de sotaque Fonte: http://www.cclscorp.com/pt/special-programs/accent-reduction-course/

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GA28). É como se esses países tivessem um poder consideravelmente grande

sobre o uso da língua inglesa e, sobretudo, sobre os seus outros usuários, e

esse poder leva muitos, como os participantes desta pesquisa, a crerem que a

língua pertence a americanos e ingleses, e é apenas disponibilizada a falantes

de outros países, como os brasileiros. Essa visão também é compartilhada no

curso exposto a seguir, que faz uma “revisão profunda dos sons, ênfase e

entoação do inglês americano”:

Esse curso parte da ideia central apresentada como subtítulo “Seja

claramente entendido!”, o que traz implícita a noção de que o sotaque brasileiro

prejudicaria o entendimento e a comunicação de falantes brasileiros com

falantes oriundos de outras localidades. Verifica-se, entre o participantes deste

trabalho, o efeito desse pré-construído em seus dizeres, como se pode

acompanhar nas formulações de S1 e S8:

28 RP – Received Pronunciation, também chamada the Queen’s English (inglês da Rainha), é o sotaque considerado padrão na Inglaterra. GA – General American – é o sotaque considerado padrão, ou não regional, nos Estados Unidos.

Figura 7: Curso de redução de sotaque Fonte: www.talk.edu.intel/portuguese/programs/english-pronunciation.php

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S1 Me preocupo (mas não muito) com o sotaque porque temo comprometer a qualidade da comunicação.

S8 Preocupo-me com minha pronúncia, porque sou perfeccionista e quero ser

compreendida.

Nota-se ainda como S8 confunde as noções de sotaque e pronúncia. Ao

responder a pergunta sobre sotaque, utiliza a palavra pronúncia e vincula sua

preocupação ao fato de querer ser compreendida. É como se, ao possuir

sotaque, este não possibilitasse a pronúncia correta de certas palavras e,

consequentemente, impossibilitasse a comunicação.

Nessa mesma direção, o próximo curso, destinado a professores e

futuros professores de inglês, além de minimizar o sotaque brasileiro, também,

tem como objetivo o trabalho com técnicas para ensinar pronúncia:

Consolida-se, assim, o ciclo vicioso do processo de vitimização, uma vez

que há a formação de profissionais que são capacitados para minimizar o

sotaque brasileiro.

Além disso, Bagno (2002) atribui aos comandos paragramaticais papel

fundamental à formação do preconceito linguístico no Brasil. Esses materiais

que, segundo o autor, teriam a utilidade para solucionar dúvidas em relação à

língua, acabam tendo a função principal de perpetuação de preconceitos.

Embora o autor se refira à língua portuguesa, estendo essa ideia também aos

Figura 8: Curso de redução de sotaque

Fonte: http://www.summitschool.com.br/sft.htm

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materiais de ensino de língua inglesa, como ilustrado no Kit de Redução de

Sotaque Zenaric, criado com a finalidade de reduzir o sotaque brasileiro:

Depreende-se, dos exemplos ilustrados nas figuras 7, 8, 9 e 10(conferir

se a numração está correta após juntar todo o material), uma amostra de como

o discurso referente ao falante nativo circula na sociedade, interpela o sujeito

bilíngue e atravessa seu discurso.

Outro aspecto importante capturado na análise das respostas obtidas às

perguntas: Como você se relaciona com os dois grupos sociais referentes às

línguas que utiliza? e Como você acha que é visto por estes grupos sociais? - é

a irrupção de questões relacionadas ao estereótipo de brasileiro e o

preconceito relacionado a essa condição, como enunciado por S2:

Figura 9: Material para redução de sotaque Fonte: http://accentreduction.brainyus.com/

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S2 Ter que constituir minha própria identidade fora do meu país de origem dá mais trabalho do que imaginei, porque as pessoas já têm uma série de ideias preconcebidas sobre como um brasileiro é ou deve ser. Fica mais difícil se constituir como indivíduo, independentemente da minha fluência em inglês.

S1 Tudo depende de quanta informação as pessoas têm – ‘sobre mim’. Por

exemplo, nos Estados Unidos, algumas pessoas podem te julgar pela aparência. No entanto, a partir do momento que a fala entra em ação, o fato de eu dominar a fala bem como boa parte do sotaque considerado padrão, as pessoas notam que se trata de uma pessoa educada (educação formal), e por isso, muito se é reavaliado. Ou seja, se você é latino nos Estados Unidos, mas tem formação acadêmica e a usa no dia-dia, boa parte da cobrança racial é esquecida.

Observam-se, nessas sequências, a presença de identidades sociais

virtuais (GOFFMAN, 1988) que são constituídas pelas afirmativas em relação

àquilo que o sujeito deveria ser. No caso deste trabalho, de como um

brasileiro ou um latino deveria ser. Goffman (1988) afirma que é a

discrepância entre a identidade social virtual e a identidade social real que é

responsável pela produção do estigma. Tanto S2 quanto S1 residem ou

residiram nos EUA e têm consciência de que possuem atributos que os

diferenciam dos americanos, mas também não se identificam com o rótulo de

latino ou de brasileiro. Esses dois casos inserem-se no quarto modelo

apresentado por Goffman (1988) de carreira moral, uma vez que ambos foram

socializados numa comunidade diferente, no caso, dentro da comunidade

brasileira no Brasil e, posteriormente, tiveram de aprender uma segunda

maneira de serem validados pelo grupo social à sua volta, os americanos nos

EUA.

Outro ponto a destacar no recorte supracitado é o uso do deôntico ter

(que constituir), o qual sugere um juízo social que não parece ser a escolha

primeira do sujeito que tenta impor resistência a essa injunção social. Ao

mesmo tempo, há, neste sujeito, na tentativa de constituir sua própria

identidade, uma busca em ser completo na língua do outro. Cabe aduzir que

S2 vê a si e ao seu grupo social como uno e diferente do outro e, dessa forma,

seu sentimento de identidade emana necessariamente do outro. Dentro do

universo conceitual da psicanálise, Lacan (1966/1998), em o estádio do

espelho, argumenta que é pelo e no olhar do outro que me vejo como um.

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Outro que, como afirma Coracini (2007), pelo discurso, diz o que e quem sou,

como e por que sou e, à medida que assumo esse dizer inconscientemente,

submetendo-me a ele e dele me aproprio. Portanto, S2 encontra dificuldades

em sua vida fora de seu país de origem. Sua nova vida assume perigo para

sua “identidade já conquistada como brasileiro”, dando a impressão de que não

se sente preparado para fazer mudanças em sua constituição subjetiva. S2

complementa sua resposta, dizendo:

S2: Sou do tipo que conhece a língua bem demais pra ser considerado outsider do ponto de vista linguístico, mas é considerado outsider do ponto de vista cultural.

O enunciado de S2 faz emergir indícios de uma polarização entre “nós” e

“eles”, o que dá indícios da ideia de uma identidade fixa, imóvel que privilegia

um em detrimento do outro. Pode-se também neste recorte, analisar a

competência cultural de S2, uma vez que a língua está intimamente ligada ao

exercício social, sendo, através da língua, que o sujeito se comunica, troca

ideias e impressões, dessa maneira, compartilhando o que é e o que sente.

Esse processo do exercício social faz com que a cultura não seja algo

estanque, mas em processo, uma vez que é influenciada e (re)formada

diariamente por múltiplos falantes que, a todo o momento, podem ser

considerados diferentes. Apesar de sua fluência na língua inglesa, S2 ainda

sente que é visto como um “outsider”. Nesse caso, a língua inglesa, que

também o constitui como sujeito, o destitui de seu lugar na sociedade, o

impedindo de ocupar um lugar confortável dentro desse grupo, o que perturba

seu sentimento de pertença.

Convidado a relatar quais seriam as ideias preconcebidas sobre como

um brasileiro deve ser, S2 explica:

S2 - CP: Existem basicamente duas ideias sobre brasileiros em Nova York e arredores: 1) os migrantes: são pouco instruídos, vem fazer trabalho braçal e competir no mercado de trabalho com latinos e (eventualmente) brancos pobres. Os pertencentes a esse grupo não falam inglês muito bem (embora falem melhor que os latinos) e são submissos, o que é considerado uma coisa boa. 2) os turistas: são ricos, arrogantes, bem instruídos e vêm aqui pra fazer compras. São realmente apenas turistas, nunca ficam por aqui pra morar.

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Ao ser questionado a respeito de como se sente em relação a essas

ideias preconcebidas de como deveria ser ou se portar, S2 complementa:

S2-CP: Eis que eu sou um problema pras pessoas que operam com essas definições. Sou branco demais pra ser chamado de latino, não falo inglês com o sotaque que seria esperado, estou de fato morando aqui, mas não faço nenhuma espécie de trabalho braçal, sou estudante de doutorado (nível de instrução que poucos estadunidenses têm), sou financeiramente independente e, como se tudo isso não bastasse, vegetariano (ou seja, não conte comigo pra ir naquela "Brazilian barbecue place" da qual você ouviu falar).

Ao falar sobre como se sente, S2 traz traços diferenciados dos demais

sujeitos desta pesquisa de não conformidade com a identidade pressuposta.

Em nenhum momento, S2 revela “repor” aquilo que a sociedade “põe” como

certo. Não se nota uma tentativa de adequação às expectativas da sociedade

na qual ele agora está inserido. S2 demonstra um agir mais livre e criativo para

realização de suas metas e desejos, saindo do movimento de reposição e

buscando o outro “outro” – mesmidade (CIAMPA, 1990). Dessa forma, S2

distancia-se perante as expectativas dos outros ao desempenhar papéis.

Sujeitos como S2, explica Goffman (1988), são denominados “desafiliados” ou

“desviantes sociais”, categoria na qual é enquadrado, uma vez que voluntária e

abertamente se recusa a aceitar o lugar social que lhe é destinado.

Pode-se relacionar esse movimento de S2 ao sistema periférico, que é a

apropriação individual e personalizada da representação por parte de sujeitos

oriundos de grupos sociais diversos. S2 tem um papel ativo no processo de

construção da representação social do que é ser brasileiro e, com isso, vê-se

em posição de rejeitá-la e criticá-la, não se sujeitando a ela.

Esse movimento vai ao encontro do proposto por Possenti (2002), que

afirma que também há espaço para a inscrição do indivíduo no discurso, onde

ele pode deixar a sua marca, mesmo na condição de assujeitado. Infere-se,

aqui que o assujeitamento não se deu, para S2, de forma plena e, com isso, S2

parece ter certa competência na escolha de seu material discursivo. Logo, S2

inscreve-se no discurso de uma forma diferenciada dos demais participantes

desta pesquisa.

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Fica evidente, pelo discurso dos demais sujeitos, que este movimento

de distanciamento apresentado por S2 não é partilhado pelos outros sujeitos

participantes desta pesquisa. Enquanto S2 caminha para um processo

emancipatório, observa-se que os demais sujeitos estão engajados em um

processo de reposição de suas identidades pressupostas.

Para complementar esta seção, acredito ser importante retomar que a

noção de identidade está intimamente ligada aos desejos de reconhecimento,

afiliação e segurança e que é por meio da língua que o sujeito negocia a noção

do “eu”. Ao falar, os sujeitos estão envolvidos na construção e na negociação

de suas identidades. Esse falar, de acordo com os sujeitos participantes desta

pesquisa, está intimamente relacionado à dicotomia sotaque x não sotaque.

Porém fica evidente, conforme me aprofundo na análise dos questionários, que

a questão do sotaque se insere numa discussão maior, na qual se envolve

poder, ideologia e representações sociais. A seguir, apresento, em um quadro,

os aspectos relacionados à constituição identitária dos bilíngues encontrados

na análise realizada nesta parte da seção:

Nesta seção, trabalhei com as representações atinentes à língua

inglesa, sobre o Brasil e o brasileiro a fim de mostrar: (i) a irrupção de discursos

em torno da identidade, (ii) apontar a existência de estigma relacionado ao fato

de ser brasileiro e de um sentimento de inferioridade por conta de diferenças

na produção oral, o sotaque, quando se comparam a falantes oriundos de

países de língua inglesa.

Na seção seguinte, localizo as representações dos participantes sobre o

que é ser bilíngue, a partir de três perguntas: (i) Qual língua você considera

mais importante? Por quê?(ii) Você se considera bilíngue? Por quê? e (iii) O

fato de se comunicar em mais de uma língua lhe modificou como indivíduo?

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3. Entre as diversas concepções do eu

Passa uma borboleta por diante de mim E pela primeira vez no Universo eu reparo Que as borboletas não têm cor nem movimento, Assim como as flores não têm perfume nem cor. A cor é que tem cor nas asas da borboleta, No movimento da borboleta o movimento é que se move, O perfume é que tem perfume no perfume da flor. A borboleta é apenas borboleta E a flor é apenas flor.

29

Nesta seção, localizo, nas formações discursivas, as representações dos

participantes sobre o que é ser bilíngue, a partir de três perguntas:

(i) Qual língua você considera mais importante? Por quê?

(ii) Você se considera bilíngue? Por quê?

(iii) O fato de se comunicar em mais de uma língua te modificou como indivíduo?

Fonte: Dados da Pesquisa

Esta seção está organizada em três partes. Na primeira, Da importância,

trabalho com recortes discursivos que revelam a posição dos sujeitos perante

as línguas que os constituem. Na segunda parte, De quem sou, apresento as

representações dos sujeitos sobre o que é ser bilíngue. Na continuidade, na

última parte, Das transformações, analiso os enunciados nos quais os

participantes relatam mudanças percebidas por eles a partir de suas vidas

entre línguas.

3.1 Da importância

Nesta parte, tenho como objetivo analisar os relatos dos participantes

frente à pergunta: “Qual língua você considera mais importante? Por quê?”. A

29 CAIEIRO, A. (Fernando Pessoa). O Guardador de Rebanhos. In: POEMAS de Alberto Caeiro. Lisboa: Ática. 1964/1993. p.64.

Quadro 7: Perguntas que suscitaram as representações sobre o que é ser bilíngue

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partir das respostas obtidas, foi possível a localização de representações sobre

a imbricação (ou não) da língua portuguesa e da língua inglesa. Considerando

que a língua é um construto fundamental da constituição identitária do sujeito,

conhecer essas representações sobre as línguas possibilita conhecer os

modos de subjetivação daqueles que as falam e são por elas constituídos.

Retomando a pergunta que norteia esta parte, dentre os nove bilíngues

simultâneos participantes desta pesquisa, sete (77,8%) afirmam ter o inglês

como sua língua de maior importância, um (11,1%) afirma que o português é,

para ele, a língua mais importante e um sujeito (11,1%) declara-se em dúvida,

como se pode visualizar no gráfico que segue:

Um único sujeito, B5, diz-se indeciso frente à pergunta e argumenta que as

duas línguas são, para ele, importantes por diferentes motivos:

B5 Depende – o português pela sua beleza, mas por outro lado o inglês pela sua praticidade no mundo.

Nesse recorte, a adversativa “mas” remete a uma contradição, a uma

disputa, a uma tensão no discurso. Para B5, a língua mais importante é o

português por sua beleza. Porém esse sentido escapa-lhe e instaura uma

contradição quando contrasta a língua portuguesa com a língua inglesa no que

tange à sua circulação no mundo. Para isso, B2 recorre ao discurso do inglês

como língua internacional para justificar essa tensão. Essa representação

pertinente à língua inglesa como língua internacional será recorrente tanto

entre os bilíngues sequenciais quanto entre os simultâneos.

Figura 10: Língua de maior importância para bilíngues simultâneos Fonte: Dados da Pesquisa

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Dentre os bilíngues sequenciais, três (33,3%), dos nove, participantes

desta pesquisa consideram o português como sua língua de maior importância.

Dois desses sujeitos (22,2%) acreditam que o inglês é mais importante e quatro

destes (44,4%) afirmam que as duas línguas são de igual importância em suas

vidas, como ilustrado no gráfico seguinte:

Grande parte dos recortes selecionados revela a notória ilusão da

possibilidade de neutralidade das línguas que, para os sujeitos desta pesquisa,

desempenham papéis diferentes. Logo, percebe-se, em seus enunciados, a

ideia de que suas línguas possuem espaços protegidos que as separam,

garantindo, dessa forma, sua pureza. É como se, para eles, suas línguas não

se misturassem e não trouxessem mudanças subjetivas decorrentes do contato

entre elas. Os enunciados de B4, S1 e S5 defendem essa visão de línguas

unas, puras e separadas:

B4 As duas. Inglês porque é meu meio de sobrevivência, minha profissão, mas é o Português que preciso para me comunicar diariamente com as pessoas do meu trabalho.

S1 O inglês é muito importante, pois sou um profissional que uso o inglês como

a ferramenta principal de trabalho. O português se relaciona com minha formação pessoal e com minha vida de várias formas.

Figura 11: Língua de maior importância para bilíngues sequenciais Fonte: Dados da Pesquisa

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S5 Apesar de o inglês ser essencial para meu trabalho em escola bilíngue, o português é a língua falado no meu país, a língua que mais utilizo para me comunicar com as pessoas ao meu redor.

B4, S1 e S5, ao enunciarem-se, parecem revelar a ideia de que cada

uma dessas línguas é pura e inteira e, dessa forma, não estão em constante

transformação graças ao contato com outras línguas. Como se, para B4, “a

comunicação diária com as pessoas de seu trabalho” não se altera devido à

sua vida-entre-línguas. Nesse sentido, pergunto-me: Será mesmo possível não

se “contaminar” pela língua do outro? Sobre essa questão, Coracini (2007)

salienta que todo ato de enunciação, todo uso de língua transforma não apenas

o sujeito como também sua própria língua e cultura, pois “ele a altera,

movimentando-a, deixa na língua e em si mesmo uma espécie de cicatriz, de

marca, de ferida” (CORACINI, 2007, p. 50).

Outro aspecto importante, percebido apenas entre os bilíngues

sequenciais desta pesquisa, é a atribuição do português à característica de

materno, colocando o inglês em uma posição de estrangeiridade, como se

observa no fio do discurso de S1, S2, S3 e S8:

S1 O inglês é muito importante, pois sou um profissional que uso o inglês como a ferramenta principal de trabalho. O português se relaciona com minha formação pessoal e com minha vida de várias formas. O português é minha identidade.

S2 Português, por questões familiares. Foi a língua na qual constitui minha

identidade na infância e adolescência. Inglês, por questões profissionais. S3 Ambas, dependendo da situação. A língua portuguesa é usada em casa,

nas relações familiares, e não poderia ser substituída. A língua inglesa é meu instrumento de trabalho e o idioma no qual converso com a maioria dos amigos mais íntimos, e nesses caos também não pode ser substituída.

S8 A língua portuguesa é minha língua materna. A maior parte das minhas

relações/interações acontece nessa língua. Está ligada à minha cultura. É a língua que ensino ao meu filho. É, por tudo isso, a mais importante para mim.

Depreende-se desses relatos o mito da língua materna como sendo, de

acordo com Melman (1992), a língua do saber, do gozo, do desejo, do conforto

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e do bem-estar e a língua estrangeira como língua de comunicação com o

outro, em um mundo globalizado. Além disso, verifica-se, nos enunciados de

S1 e S2, a vinculação da língua portuguesa com suas constituições identitárias:

S1 O português é minha identidade. S2 Português, por questões familiares. Foi a língua na qual constitui minha

identidade na infância e adolescência.

Tanto S1 quanto S2 mobilizam, em seus dizeres, uma concepção do ser

humano como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das

capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo "centro" consiste num

núcleo interior, que emergia, pela primeira vez, quando o sujeito nascia e com

ele se desenvolvia, permanecendo essencialmente o mesmo - contínuo ou

"idêntico" a ele - ao longo da existência do indivíduo. O conceito de identidade

defendido, nos recortes de S1 e S2, é de que a identidade é fixa, imutável e

que se constitui e se define em um determinado momento histórico da vida

desses sujeitos, como explica Hall ao discorrer sobre o sujeito do iluminismo.

Outro aspecto marcante que os participantes desta pesquisa trazem em

seu funcionamento discursivo e que regem seu dizer é o papel da língua

inglesa como agenciamento social, como enunciam B6, B7, S4 e S9:

B6 Hoje acho que o inglês, por motivos profissionais. Meu desenvolvimento e posição estão muito relacionados à língua inglesa.

B7 O Inglês é mais importante, pois a minha profissão se desenvolve nessa

língua.

S4 O inglês sempre foi meu diferencial na vida acadêmica e profissional, por isso acredito que ele seja o mais importante na minha vida.

S9 Por ser de naturalidade brasileira, não há dúvidas de que o português seja a língua mais importante para mim, até porque é a minha ferramenta de comunicação dentro do país. Através da língua portuguesa, tenho acesso a vários estratos sociais e consigo ativar diversas normas da língua a fim de me comunicar melhor com meu interlocutor. Já a língua inglesa é mais importante no que diz respeito à carreira profissional, pois além de ser minha ferramenta de comunicação dentro do meu campo profissional, ela

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também me traz prestígio, sendo responsável até por alterações de salário, caso possua mais conhecimento do que seus parceiros profissionais.

A língua inglesa é, por esses sujeitos, encarada como sendo importante

por questões profissionais. No relato de S9, por exemplo, pode-se perceber o

vínculo entre alterações salariais e maior prestígio por conta de sua

desenvoltura na língua inglesa, o que vai ao encontro do discurso do inglês

como necessário à ascensão social.

Nessa direção, faz-se importante ressaltar que as representações da

língua inglesa, na mídia impressa, parecem revelar um discurso que estabelece

uma relação inextricável entre a língua inglesa e o mercado de trabalho. Essas

representações, na mídia, são atravessadas pela promessa de ascensão

econômica e social, para a qual a língua inglesa é definida como seu

passaporte essencial, como se pode observar nos artigos expostos a seguir:

Nessa matéria, vinculada pelo Jornal Folha de São Paulo, atribui-se ao

inglês tamanha importância que, com o intuito de preparar os alunos para o

mercado de trabalho, há universidades que ministram suas aulas em inglês. Na

mesma direção, a Catho, importante site de classificados de currículos e

Figura 12: Universidade de São Paulo tornam inglês língua oficial Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/saber/909675-universidades-de-sao-paulo-tornam-ingles-lingua-oficial.shtml

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empregos da América do Sul, também defende a ideia de que o inglês é vital

para o mercado de trabalho:

Nesse artigo, afirma-se que o domínio do inglês se tornou primordial

para evoluir na profissão e para alcançar maiores patamares profissionais.

O discurso da mídia enfatiza o inglês, dentre as línguas estrangeiras,

como língua essencial no mundo atual. Nesse cenário, a língua portuguesa

adquire um valor muito menor. Vale ressaltar que esse modo de significação

das línguas parece determinar como o sujeito se relaciona com as línguas e é

consequência, principalmente, do discurso da mídia. Nesse discurso, as

línguas são vistas como mercadorias e suas características primordiais são seu

valor em relação a outras mercadorias, ou seja, a outras línguas.

É importante enfatizar que o discurso da mídia, assim como outros

discursos que circulam na sociedade, interpela o sujeito e, consequentemente,

influencia sua constituição identitária. Ao atribuir à língua inglesa o papel de

agenciamento social, o sujeito, inconscientemente, identifica-se com o discurso

Figura 13: Inglês : saber o idioma é cada vez mais importante Fonte: http://www.catho.com.br/carreira-sucesso/noticias/ingles-saber-o-idioma-e-cada-vez-mais-importante

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hegemônico de superioridade que determina que uma língua seja mais

importante do que as demais por seu valor mercadológico.

Além disso, faz-se importante lembrar que esse discurso postula que a

disseminação da língua inglesa é sempre positiva em qualquer situação e

região. Nessa perspectiva, há um apagamento do fato de que o inglês atende a

interesses específicos de certas classes e, assim, opera como um meio

importante de propagação de desigualdades sociais, políticas e econômicas.

Somando-se a isso, é possível vislumbrar, nas posições enunciativas

analisadas, a importância atribuída à representação do inglês como língua

internacional. Essa representação está associada à outra representação, que é

a da língua, como instrumento de comunicação. Isso leva o enunciador a

atribuir à língua uma função utilitária, e dela depreende-se o desejo do

enunciador de possuir uma língua que é reconhecida pelo outro, o estrangeiro.

Os dizeres de B5 e B8 ilustram bem essa ideia:

B8 O inglês porque acho uma língua mais “universal”. B5 Depende – o português pela sua beleza, mas por outro lado o inglês pela

sua praticidade no mundo.

Nota-se, no dizer de B8, que as aspas na palavra universal assinalam as

palavras do outro em seu discurso. Detecta-se, nesse sentido, o processo de

heterogeneidade mostrada, que deve ser compreendido como formas

linguísticas de representação de diferentes modos de negociação do sujeito

falante com a heterogeneidade constitutiva do seu discurso. Nesse sentido,

pode-se referir que, para os sujeitos desta pesquisa, o apelo da ideologia da

globalização é notório e está interdiscursivamente na formação discursiva dos

discursos sobre as línguas.

3.2 De quem sou

Na segunda parte desta seção, discuto as representações sobre sujeito

bilíngue e bilinguismo obtidas dentre as respostas à pergunta: Você se

considera bilíngue? Por quê?

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Vale ressaltar que as representações sociais sobre bilinguismo

desempenham um papel primordial na constituição identitária de indivíduos que

se deparam com situações de contato de línguas, como é o caso dos sujeitos

desta pesquisa. Não se pode esquecer que as representações sociais, por se

tratarem de saberes produzidos na sociedade, são capazes de produzir

marcas, positivas ou negativas, no indivíduo ou no grupo em que ele se insere

e, com isso, afetam a forma como o indivíduo se percebe e percebe o grupo

que faz parte.

Nesta pesquisa, dois, dentre os dezoito, participantes, um bilíngue

simultâneo e um sequencial, não aceitam serem chamados de bilíngues,

apesar de utilizarem o português e o inglês em suas interações diárias. Pode-

se inferir que os enunciados proferidos por S3 e B9 mobilizam uma

preocupação em dominar as línguas e, desse modo, utilizá-las com

naturalidade:

S3 Não. Porque, apesar de me comunicar razoavelmente na língua inglesa, ainda não sou capaz de usá-la com a mesma naturalidade da língua portuguesa.

B9 Não sei, pois creio que não domino nenhuma delas bem e tenho dificuldade com todas.

Observa-se que S3 confere ao seu dizer um sentimento de segurança

em relação à sua língua materna, o português, e aduz não experimentar a

mesma sensação de conforto em inglês. O enunciador emite, nesse relato,

uma ilusão de que tudo o que disser na língua materna é controlável e da

ordem do consciente e, assim, pode se expressar com naturalidade. S3 parece

esquecer que a língua materna também é um lugar de equívoco e de mal-

entendidos percebidos quando se fala, por exemplo, “não foi isso que eu quis

dizer” ou outros enunciados dessa ordem.

Na tessitura do dizer de S3, pode-se desvelar também um dizer sobre

línguas distintas: a língua materna que o sujeito acredita ser completa e

transparente e a língua estrangeira que é a língua do desconforto e do

estranho. Depreende-se do dizer de S3 que, para ele, as línguas que o

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constituem são línguas que funcionam separadamente e, sendo assim, são

puras e homogêneas. Porém, de acordo com o discutido na seção “Vida entre

línguas”, apreende-se que não há língua com tais características. Segundo

Coracini (2007), a língua estrangeira não é um sistema vazio de sentido, pois

traz consigo uma carga ideológica que coloca o aprendiz em conflito

permanente com a ideologia da língua materna.

Por sua vez, B9 afirma não dominar nenhuma língua. O termo dominar,

por si só, já é problemático. Primeiramente, porque uma língua não é passível

de dominação, uma vez que os sentidos lhe escapam. Seria como se, ao

dominar uma língua, o indivíduo pudesse subjugar aquilo que o subjuga na

condição de sujeito. Pode-se dizer, portanto, que dominar uma língua só pode

ocorrer de maneira ilusória. Percebe-se, também, que tanto o português como

o inglês são para esse sujeito como promessa, ou seja, línguas sempre

desejadas, porém não alcançadas. B9 deseja a língua em sua totalidade e

afirma ter dificuldade com inglês e com português por não dominá-las. Esse

desejo de domínio parece conduzir a uma possibilidade ilusória de uma

identidade fixa e una, na qual não haja tensão ou conflito.

Em contrapartida, dezesseis, dos dezoito, participantes reconhecem

legítima a denominação de bilíngue quando se referem a si próprios. Ao

discorrerem sobre o porquê se consideram bilíngues, foi possível localizar suas

representações sobre o que é ser bilíngue e o que é bilinguismo. A

representação mais recorrente, dentre as obtidas nesta pesquisa, é a de que o

sujeito bilíngue é aquele que se comunica bem ou com naturalidade em ambas

as línguas:

B7 Sim, sou bilíngue, pois consigo me comunicar tanto oralmente quanto na

escrita em ambas as línguas

S1 Sim, porque gerencio ambas as línguas em todas as situações.

S2 Sim, tenho um bom grau de fluência e precisão em mais de uma língua.

S7 Sim, porque consigo me comunicar e me expressar em duas línguas.

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Essas justificativas dão indícios de que esses sujeitos veem a língua,

mais uma vez, como um processo consciente e controlável, não subjugado a

deslizes, chistes ou lapsos. Além disso, a visão predominante de bilinguismo

aqui é focada na proficiência das línguas. Essas posições sobre quem é

bilíngue estruturam-se dentro de uma perspectiva que considera apenas

aspectos linguísticos para a definição de sujeito bilíngue e bilinguismo, como

proposto por Macnamara (1967) e Barker e Prys Jones (1998), entre outros.

Outros sujeitos preferiram distinguir as habilidades da língua, produção

oral e compreensão auditiva para autodenominarem-se bilíngues:

B2 Sim, porque considero que posso me comunicar (verbalmente)

suficientemente bem nessas línguas.

B8 Sim, porque entendo perfeitamente as duas línguas.

Nota-se que essas representações de língua, associadas às habilidades,

levam a crer que a língua é tomada em seu papel instrumental de

comunicação, reforçando a noção de exterioridade da língua, isto é, a língua,

para esses sujeitos, é um lugar externo a eles e à sua identidade, ou seja, um

lugar das necessidades sociais, como se comunicar, ou entender.

Ademais, pode-se perceber, tanto em B2 quanto em B8, a interpelação

pelo discurso tradicional que considera bilíngue apenas aquele que possui

competência linguística equivalente em ambas as línguas. Acredito que essa

concepção, a de bilinguismo balanceado, como proposto por Bloomfield (1935),

que define bilinguismo como o controle nativo de duas línguas, ainda, vigora

entre a sociedade atual e é amplamente utilizada para a definição de bilíngues.

Na mesma direção, B6 afirma que se aceitou como bilíngue após um

americano afirmar que suas habilidades linguísticas eram superiores se

comparadas com bilíngues de pai e mãe. É importante relembrar que B6 é

oriundo de uma família brasileira e é bilíngue simultâneo, pois estudou em uma

escola internacional desde a primeira infância.

B6 Sim, ao fazer amizade com um americano que trabalhava comigo, e por ele me tratar como igual e me comparar com outros bilíngues de pai e mãe (apontando que minhas habilidades linguísticas eram até superiores) eu me aceitei bilíngue.

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Para B6 aceitar-se como bilíngue foi necessário o veredito de um falante

nativo da língua que não é falada no país que mora. Nota-se, aqui, o papel do

outro, falante nativo, no sentimento de pertença que o sujeito atribui ao grupo

de bilíngues.

Outra representação bastante recorrente foi a de que o sujeito bilíngue é

aquele que adquiriu as duas línguas na primeira infância, sendo expostas a

elas desde o nascimento:

S4 Sim, pelo fato de tanto inglês e português estarem presentes na minha vida desde muito cedo, acredito que posso me considerar bilíngue nesse sentido.

Essa representação parece excluir outros tipos de bilíngües, como o

bilinguismo adolescente e o bilinguismo adulto, conforme proposto por Hamers

e Blanc (2000). No senso comum, os bilíngues simultâneos são os chamados

“bilíngues reais” ou “bilíngues de verdade”, como se os demais tipos de

bilinguismo não fossem legítimos.

Outro aspecto interessante observado foi a atribuição de pensar por

meio de uma das línguas ao fato de ser bilíngue:

B3 Sim, porque misturo as línguas ao falar, e na maioria das vezes, penso em inglês e fui alfabetizada bilíngue.

B5 Sim, porque penso nas duas línguas e, às vezes, confundo as duas.

B3 afirma pensar em inglês, enquanto B5 relata pensar nas duas

línguas. Nesses recortes, desvela-se a construção de um dizer que remete a

uma reprodução de falas, recolhida, pelo sujeito-enunciador, do senso comum,

do interdiscurso, e oriunda do discurso pedagógico amplamente pregado no

Brasil, que prioriza a oralidade em detrimento de outras habilidades e que dita

aos alunos que devem pensar em inglês para serem fluentes. (rever se as

alterações mudaram o sentido/estava confuso)

Outro ponto interessante nos relatos de B3 e B5 é o fato de que ambos

enunciadores atrelam o pensar em determinada língua à ideia de misturar ou

mesmo confundir as línguas. Nesses casos, nota-se que B3 e B5 tomam como

suas as palavras de uma voz anônima, a qual se produz no interdiscurso,

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dessa maneira, apropriando-se da memória que se manifesta em seus

discursos. Existe, ainda, no senso comum, certo receio ao bilinguismo, uma

vez que é associado à confusão ou mistura de línguas, o que resultaria em

baixo desenvolvimento cognitivo. Historicamente, o bilinguismo foi visto, por

educadores, como prejudicial para o desenvolvimento cognitivo da criança.

Pesquisas iniciais sobre o tema apontavam o bilinguismo como causa de baixo

quociente intelectual, confusão linguística e até mudança de personalidade.

Consequentemente, surgiu o mito de que o bilinguismo seria prejudicial ao

desenvolvimento cognitivo da criança. Todavia outras pesquisas revelam que

uma série de críticas metodológicas pode ser feita a esses estudos iniciais: os

participantes bilíngues da pesquisa estavam em situação desigual, se

comparados aos monolíngues, em termos socioeconômicos ou de proficiência

na língua do teste aplicado. Além disso, muitas vezes, esses testes foram

ministrados na língua de menor domínio dos participantes. Em estudos mais

recentes, os quais fazem uso de modelos experimentais mais elaborados,

essas variáveis foram mais bem-controladas e, com isso, os resultados

apontaram uma direção bastante diferente.

Vale ressaltar que, dentre as dezesseis respostas, à pergunta: Você se

considera bilíngue? Por quê?, apenas, duas remetem a questões não

linguísticas para se justificarem como bilíngues:

S8 Sim, porque além de me comunicar na língua inglesa, ao adquirir outra

língua, ainda que sem me dar conta no inícios, passei a incluir diferentes maneiras de “ler” o mundo, ou atribuir sentidos.

S9 Sim, por ter vivido em ambas as comunidades e ter presenciados diversas

situações linguísticas em ambas as línguas, acredito fazer parte dessa comunidade bilíngue.

S8 direciona seu olhar a como a língua inglesa lhe proporcionou

diferentes formas de atribuir sentido ao mundo. Uma das razões que motiva

muitas pessoas a engajarem-se na aprendizagem de uma língua estrangeira é

o desejo de ampliar os horizontes culturais. Sendo assim, S8 relata as

vantagens associadas ao saber uma língua estrangeira, uma vez que a língua

inglesa é encarada, no Brasil, como uma língua superior, mesmo por seu

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percurso histórico. S9, por sua vez, relata que o fato de ter vivido em ambas

comunidades linguísticas o caracteriza como bilíngue. Para S9, ser bilíngue

não está relacionado apenas às línguas envolvidas, mas também ao fato de ter

vivido em comunidades nas quais essas línguas eram utilizadas.

Nesse momento, faz-se importante relacionar esses recortes

discursivos, que justificam a classificação desses sujeitos como bilíngues, ao

conceito de classificação de Moscovici (2003), discutido na seção

Representações Sociais deste trabalho. As classificações, segundo o autor,

são feitas comparando pessoas a um protótipo aceito como representante de

uma classe. Observa-se, a partir dos recortes selecionados, que o protótipo

mais aceito para a denominação bilíngue é a de alguém que utiliza as duas

línguas com a mesma naturalidade. Classificar, esclarece o autor, implica em

nomear. Ao nomear estes sujeitos como bilíngues, eles são incluídos em um

complexo de termos específicos que o localizam no mundo.

Embora quase todos os participantes aceitem ser chamados de

bilíngues, é importante notar que nem todos aceitam sem ressalvas, como se

observa nos enunciados, a seguir:

S4. Embora o português seja o idioma predominante na minha vida familiar,

pelo fato de tanto inglês e português estarem presentes na minha vida desde muito cedo, acredito que posso me considerar bilíngue nesse sentido. Mas, evidentemente, para certos assuntos, consigo me expressar melhor em minha língua-materna.

S5 Sim (dependendo da visão do que é ser bilíngue). Apesar de não possuir as

mesmas competências nas duas línguas, eu me considero bilíngue. S6 Sim, me considero, pois posso me comunicar em português, inglês e

espanhol, claro que cometo erros de pronúncia e erros gramaticais, mas o importante, a meu ver, é transmitir a informação de forma objetiva para que ambas as partes façam cientes do conteúdo do mesmo.

S9 Por ter vivido em ambas as comunidades e ter presenciados diversas

situações linguísticas em ambas as línguas, acredito fazer parte dessa comunidade bilíngue, apesar de sempre haver alguns espaços em branco a serem completados na segunda língua. Em resumo, ser bilíngue não é uma tarefa fácil, pois exige a fluência e eficiência de viver em duas línguas, em dois mundos, não digo perfeitamente, mas próximo do ideal.

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Em todos esses recortes, os sujeitos fazem uso de uma adversativa que

marca uma tensão e, com isso, uma nova direção argumentativa na

textualidade da narrativa, o que faz emergir contradições do interior das

formações discursivas: a língua deixa marcas, traços e instaura a falta e o

desejo do sujeito de dominá-la por completo, como se isso lhe fosse possível.

Todos esses falantes, ao comentarem sobre seu bilinguismo, justificam-se por

não ter um controle nativo ou balanceado nas duas línguas, como sugerem as

visões tradicionais de bilinguismo. Na verdade, pode-se constatar que todos os

recortes descritos remetem à visão que cada indivíduo possui de sua

bilingualidade, que pode ser mutável e dinâmica de acordo com as situações

de bilinguismo que lhe são apresentadas.

S9 compara ser bilíngue a uma tarefa, que complementa não é fácil,

uma vez que exige, nas palavras do participante, viver próximo do ideal em

dois mundos. Observa-se, aqui, novamente a ideia de ideal, perfeito e de

domínio completo. Este mesmo falante também faz referência a espaços em

branco em sua vida, como se a vida em uma língua funcionasse de modo

autônomo da vida em outra língua. Este dizer está em conformidade com o

discurso de B4 que descreve que:

B4 Tenho déficits culturais e educacionais de ambos os lados, mas isto não me incomoda mais... sei onde achar ajuda quando preciso.

Para B4, a vida em uma língua o privou de outra vida em outra língua e,

com isso, há uma sentimento de que falta alguma coisa, algum espaço a ser

preenchido. B4 afirma ainda que consegue contornar essa falta e buscar ajuda

quando precisa. Esses recortes argumentam a favor de uma visão tradicional

de bilingüismo, que defende a ideia da existência de espaços monolíngues

protegidos e, desse modo, estar em um desses espaços faz com que o sujeito

se ausente do outro espaço reservado à outra língua e, com isso, há sempre a

sensação de que se perdeu algo enquanto se ocupava um dos espaços.

A meu ver, há pelo menos um motivo para esta dificuldade de se ver

como bilíngue. Conquanto se observe no Brasil uma crescente valorização da

língua inglesa e uma significativa penetração do inglês por meio de músicas e

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da tecnologia, indivíduos que aprendem inglês não se enxergam como

bilíngues. Vigora, ainda, no Brasil, o ideal monolíngue e, dessa forma, ser

bilíngue exige definições e justificativas, como se nota entre as narrativas de

dois participantes:

S1 A questão do bilingualismo puro e ou total, em minha opinião, deve ser visto partindo do ponto de vista que um se sentirá bilíngue devido ao nível ideal, e ou desejável, do uso e razão do uso de qualquer idioma. Ou seja, se um acredita que dar instruções básicas em outro idioma é suficiente, e as mesmas funções satisfazem as necessidades de comunicação desejada, o mesmo poderá se considerar bilíngue. Em outras palavras, o sucesso é relativo, pois quem o determina é o próprio falante/aprendiz.

S9 A palavra “bilíngue” é um pouco traiçoeira. Ser bilíngue, para alguns

autores, não significa somente dizer uma porção de vocábulos ou frases em duas línguas, significa conhecer profundamente a cultura da língua em questão e ativar o vocabulário, a frase e a entonação correta para aquela determinada situação.

Nos dizeres de S1 e S9 percebem-se claramente as várias vozes

constitutivas de seus discursos. S1, inicialmente, tenta marcar sua voz com

“em minha opinião”, porém há um deslize de sentido e em seguida faz uso de

“um” para fazer alusão a uma categoria, ao sujeito bilíngue. Há ainda o

discurso científico que está implícito em seu dizer, quando traz à tona as

necessidades de comunicação.

S9, por sua vez, ao trazer as vozes de outros autores, dá credibilidade

ao seu discurso. Esse movimento dialógico auxilia na construção de seu ponto

de vista. S9 traz essas vozes e se une a elas, utilizando-as como um

argumento de autoridade.

A análise do corpus desta pesquisa mostra que o discurso científico, ora

explícito ora implícito, foi um recurso importante para a definição de bilíngue

por parte dos participantes deste estudo. Os conceitos de bilinguismo,

sustentados pelos sujeitos, moveram-se dentre as concepções clássicas de

bilinguismo, que enfocam o domínio balanceado das habilidades da língua.

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3.3 Das transformações

Nesta seção, analiso, entre as respostas dos participantes, as

transformações decorrentes de tornarem-se bilíngues. O quadro, a seguir,

apresenta as características que aparecem nos comentários dos sujeitos como

decorrências de sua condição entre línguas:

Características Número de vezes

1) contato com outras culturas 7

2) visão mais flexível e aberta 3

3) fortalecimento com pessoa/segurança 5

4) maior facilidade em aprender outras

línguas

1

5) vantagens profissionais 3

Fonte: Dados da Pesquisa

O contato com outras culturas é a resposta mais recorrente entre as

justificativas de transformações devido à condição de ser bilíngue. Dessa

forma, verifica-se o desejo pelo outro, o desejo da língua estrangeira, do

estranho, do outro que o constitui.

O recorte, a seguir, ilustra, como explica Coracini (2007), casos em que

aprender uma língua estrangeira constitui uma forte atração para o sujeito, que

pode ser explicada como o desejo do outro. Outro que o constitui e cujo acesso

é interditado e que ilusoriamente tem o poder de o fazer uno e completo:

B6 Eu me constitui muito através da minha identidade de aluno e de falante de inglês desde muito cedo. Eu tinha orgulho de falar a língua, eu me sentia especial, diferente. Até por fazer parte de uma família que não falava inglês. Foi uma forma de eu me fortalecer como pessoa durante uma adolescência conturbada e permanência incerta em casas de familiares. Era uma coisa que era minha, era certa e ninguém podia me tirar. Acredito que isso me fortaleceu e me modificou como indivíduo.

Este relato corrobora o já mencionado por Prasse (1997), que

exemplifica que o desejo pelas línguas estrangeiras se alimenta de duas

Quadro 8: Transformações em decorrência de ser bilíngue

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fontes: inveja dos bens e da maneira como gozam os outros e a inquietação de

não conseguir encontrar seu próprio lugar na língua materna. Neste caso,

parece que B6, por não encontrar lugar em sua língua materna: durante uma

adolescência conturbada e permanência incerta em casas de familiares, tem a

língua estrangeira como um refúgio para se afirmar no mundo e, como não

consegue encontrar seu próprio lugar, tem a ilusão de encontrá-lo em sua

língua estrangeira, quando diz: Eu tinha orgulho de falar a língua, eu me sentia

especial, diferente, foi uma forma de eu me fortalecer como pessoa. Verifica-

se que S4 também afirma ter encontrado este lugar privilegiado por meio da

língua estrangeira:

S4 Muitos dos produtos culturais que influenciaram a minha adolescência foram consumidos em inglês (filmes, músicas, revistas, internet e e-mails com pessoas que tinham inglês como primeira língua e como língua estrangeira) e isso, sem dúvida, abriu as portas para novos conhecimentos de mundo e, de uma certa forma, garantia um espaço privilegiado, um espaço que só eu tinha acesso porque só eu falava “o meu idioma”. Era a minha porta para outros mundos, coisa que, considerando a época em que a internet ainda era discada e os acessos muito mais restritos do que os adolescentes tem hoje em dia, me garantia um espaço privilegiado e “secreto”.

A língua estrangeira é, para S4, a língua que permite dar vazão a

desejos interditados, criando a impressão de liberdade, uma vez que se

constitui nas zonas de não interdição, como afirma Coracini (2007).

Outro aspecto recorrente, localizado entre os recortes selecionados

nesta pesquisa, é a noção criticada, por García (2008), de que indivíduos

bilíngues, muitas vezes, são vistos como duplos monolíngues:

S9 A partir do momento que você se considera um bilíngue, você passa a ter

“duas” identidades e isso modifica a pessoa como um todo.

Este recorte, mais uma vez, reafirma a visão monoglóssica com que se

olha para o fenômeno do bilinguismo. Esta visão penetra nos discursos e faz

com que esses sujeitos criem imagens de quem são, o que reflete diretamente

em suas constituições identitárias. Moscovici (2003) ilustra esta ideia ao

salientar que, ao classificar-se algo ou alguém, confina-se este objeto a um

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conjunto de comportamentos e regras que estipulam o que é ou não permitido

a todos os indivíduos pertencentes a essa categoria ou classe. Dessa forma,

percebe-se, ao longo desta análise, que o sujeito bilíngue ficou confinado, a

partir desta classificação, a um conjunto de regras e comportamentos ao qual

deve seguir e que culmina na ilusória ideia da existência de dois sujeitos

monolíngues em seu ser bilíngue.

Dois dos sujeitos participantes relatam conflitos ou sofrimentos

experimentados devido à sua condição bilíngue.

B3 Até hoje existe uma confusão mental com as línguas, mas por viver no Brasil acredito que, no começo, era difícil, mais adulta, eu já me sentia brasileira completamente, mas sempre existe um “algo” de diferença que sinto emocionalmente, difícil de explicar, confesso.

B4 Dos 19 aos 21 vivi uma crise bárbara: não sabia minha identidade, se era

americana ou brasileira. Tinha cara de americana (biótipo), falava inglês como nativa, mas não me sentia americana de jeito algum...o jeito de me relacionar com os outros era muito brasileiro, o jeito de comer também embora tivesse acostumada a “jello salad, waffles, pancakes”, não me identificava em nada com os americanos- achava-os ingênuos, politicamente alienados. Todos meus amigos, neste período, ou eram brasileiros ou estrangeiros, e a grande maioria pós-graduandos. Fiz minha graduação de 4 anos em 3 para voltar voando para o Brasil, mas ainda em crise. Na volta fiz terapia para me ajudar. Lembro que sentia falta de achar alguém com quem fazê-lo em inglês... na época só conseguia expressar meus sentimentos mais íntimos em inglês... Agora em retrospectiva, acho que na verdade não era a questão de me expressar em inglês, mas de achar alguém que pudesse entender este conflito bicultural, e me ajudar a me aceitar como sendo de duas culturas.

No discurso de B3, verifica-se uma tentativa de manter suas línguas em

campos e áreas separadas e autônomas. B3 ressente-se com o que denomina

de mistura das línguas, deseja possuir línguas puras, independentes e

transparentes. Ademais, relata sentir “algo” de diferença, o uso das aspas

remete a uma não coincidência no dizer, como que esse “algo” não

representasse, ou coincidisse com esta palavra.

B4, por sua vez, busca uma identidade fixa, una e imutável. Sofre por

não saber sua identidade e, a partir disso, pergunto-me: Será possível sabê-la,

uma vez que é dinâmica, fluída e múltipla? Esta sensação de falta fez com que

este sujeito construísse uma prótese no intuito de superar esse conflito. B4 tem

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na terapia um dos tipos de prótese derridiana. A terapia parece, neste caso,

uma tentativa de recuperar ou inventar uma narrativa da história familiar e de

alguma forma, entender seu conflito.

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E, por fim, um recomeço

Sempre chega a hora em que descobrimos

que sabíamos muito mais do que antes

julgávamos.

José Saramago30

30 SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.143.

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E, POR FIM, UM RECOMEÇO

A finalização de uma pesquisa é sempre uma retomada, um momento

de amarrar os fios que teceram o texto. Ao reunir as imagens de Escher em um

só desenho, faço uma tentativa de alinhavo final ao revisitar as perguntas de

pesquisa, que penso terem sido tangenciadas à medida que foi criado um

espaço de escuta para que os sujeitos bilíngues, neste trabalho,

compartilhassem narrativas de quem são ou esperavam ser.

Inicialmente, ao decidir que teria nove sujeitos bilíngues simultâneos e

nove sequenciais entre os participantes desta pesquisa, acreditava que

encontraria diferenças, entre os dois grupos, no que concerne às relações

destes com as línguas que os constituem e consigo mesmos. O exercício desta

pesquisa mostrou-me o contrário: as dúvidas, os conflitos e as questões

identitárias mobilizadas foram bastante semelhantes, o que me faz concluir que

a experiência de ser/estar entre línguas não é tão facilmente mensurável;

antes, não passa de ilusão, porque, a todo o momento, o sujeito se vê frente ao

desconhecido na língua que pensa ser sua, ao inesperado que não se quer

enfrentar ou ao mal dito que se deseja não ter dito.

Minha primeira pergunta referia-se a como as identidades dos sujeitos

foram se (trans)formando em sua relação com as línguas. A partir dos

dados obtidos, verificou-se, entre os sujeitos desta pesquisa, todos brasileiros,

o desejo de se aproximar do lugar do falante nativo oriundo de países de língua

inglesa. Este desejo aponta para o processo de identificação com a língua do

outro, que passa a ser constitutiva da identidade do sujeito bilíngue e, com

isso, desloca sua identificação com a língua materna e com o lugar que ela

ocupa.

Outro aspecto recorrente entre as narrativas obtidas foram as

expectativas compartilhadas socialmente no que se refere ao modo como um

sujeito bilíngue deve falar, ser ou agir. A partir dessas expectativas, observa-

se, por parte dos bilíngues, um movimento de reposição de identidades

pressupostas. Assim, esses sujeitos trabalham inconscientemente num

movimento para “repor” aquilo que a sociedade “põe” como certo, tanto no que

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se refere ao modo de falar e ao sotaque, quanto à forma como um brasileiro

deveria se comportar.

Observou-se também, entre os participantes, o encobrimento, isto é, a

manipulação da informação que gera o estigma – neste caso, o sotaque. Esses

sujeitos tentam corrigir diretamente o que consideram a base objetiva de seu

defeito, ocorrendo a vitimização. No caso específico deste trabalho, como o

sotaque brasileiro é visto como um problema ou defeito a ser corrigido,

observa-se o esforço para o apagamento de qualquer sotaque ou marcas na

fala que caracterizam esse sujeito como brasileiro.

Alguns sujeitos relataram terem sofrido sanções e reprimendas por não

atenderem às expectativas normativas da sociedade acerca do sotaque que

um falante competente deve ter. Isso prova que ainda hoje se verifica, em

escolas e institutos de idiomas, o interesse na preservação do status quo, pois

se considera que a necessidade do aluno está na aquisição fonológica de uma

variedade de prestígio do falante nativo, o que contribui para disseminação

desse processo de vitimização de falantes brasileiros de língua inglesa.

É interessante perceber que há, entre os sujeitos desta pesquisa, um

único que parece fazer um movimento diferente dos demais que se engajaram

numa constante reposição da identidade pressuposta. Esse sujeito parece

superar essa pressuposição e, desse modo, não se observou, em seu discurso,

uma “reposição” daquilo que a sociedade “põe” como certo. De outra feita, S2

demonstrou, em seu discurso, um agir mais livre e criativo para realização de

suas metas e desejos, saindo do movimento de reposição e buscando o outro

“outro”, movimento esse denominado por Ciampa (1990) de mesmidade. Dessa

forma, observou-se que S2 se distancia perante as expectativas dos outros ao

desempenhar papéis, o que o torna, como explica Goffman (1988), um sujeito

desafiliado ou desviante social, uma vez que voluntária e abertamente se

recusa a aceitar o lugar social que lhe é destinado.

Outro aspecto importante para responder a esta pergunta de pesquisa é

o de que todos os sujeitos acreditam ter sofrido transformações em decorrência

de sua condição como bilíngue. O contato com outras culturas é a resposta

mais recorrente entre as justificativas dessas transformações. Dessa forma,

verifica-se o desejo, pelo outro, o desejo da língua estrangeira, do estranho e

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do outro que o constitui. Esse desejo pelas línguas estrangeiras alimentou-se,

entre os sujeitos desta pesquisa, principalmente de uma tentativa de encontrar

um lugar que parecia ser impossível ser encontrado em sua língua materna ou

em uma de suas línguas. A língua estrangeira, ou no caso de bilíngues

simultâneos, uma de suas línguas, serviu como um refúgio para se afirmar no

mundo e a possibilidade de encontrar um lugar que lhe foi negado em sua

língua materna.

A segunda pergunta de pesquisa abordava a relação desses sujeitos

com as línguas que os constituem. Dentre os dados obtidos, é notória a

ilusão da possibilidade de neutralidade das línguas que, para os sujeitos,

desempenham papéis diferentes sem trazerem mudanças subjetivas e sem se

misturarem. Os sujeitos, ao enunciarem-se, revelam a ilusão de que cada uma

de suas línguas é pura e inteira e, dessa forma, não estaria em constante

transformação graças ao contato com a outra língua.

Verifica-se, também, uma contradição quando os sujeitos de pesquisa

contrastam a língua portuguesa com a língua inglesa no que tange à sua

circulação no mundo. Muitos recorrem ao discurso do inglês como língua

internacional e franca do mundo, língua de agenciamento social, sendo

importante por questões profissionais. Este discurso tende a silenciar aspectos

negativos deste fenômeno como o fato de o inglês ser a língua do colonialismo

ou do interesse das classes dominantes e desse modo conseguir operar como

um meio importante mediante o qual as desigualdades políticas, sociais e

econômicas são mantidas. Esses mesmos sujeitos, por sua vez, atribuem ao

português a característica de materno, colocando o inglês em uma posição de

estrangeiridade, o que reforça o mito da língua materna como sendo a língua

do saber, do gozo, do desejo, do conforto e do bem-estar e a língua estrangeira

como língua de comunicação com o outro em um mundo globalizado.

Somando-se a isso, uma representação recorrente sobre a língua

portuguesa é ser considerada uma língua difícil, contrastando com imagem da

língua inglesa como uma língua fácil e prática. Ao classificar uma língua como

difícil ou fácil, o enunciador vê a língua como sendo externa a si mesmo, e isso

equivale a vê-la como um instrumento de comunicação.

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A dificuldade da língua portuguesa é definida pela quantidade de regras

das gramáticas normativas. Esse conhecimento de gramáticas e dicionários

são verdades construídas sobre a língua, e isso culmina no estabelecimento do

que pode ou não ser dito e da forma como pode ser dito em determinados

contextos, de acordo com uma língua portuguesa que não pertence a todos os

falantes, mas apenas aos mais escolarizados e socialmente reconhecidos, e,

dessa forma, autorizados a dizer algo sobre as línguas.

A qualificação difícil que se atribui à língua portuguesa é materializada

quando o sujeito, ao justificar sua posição, dá ênfase às regras gramaticais

que, para ele, são impossíveis de serem colocadas em uso. A percepção de

que há muitas regras e não são utilizadas pelos falantes faz com que veja sua

língua portuguesa como incompleta, na ilusão de que apenas as gramáticas e

dicionários a teriam em sua completude. Esses enunciados revelam a falta

constitutiva do enunciador, assim como seu desejo por uma língua “perfeita”.

Essa língua “perfeita” pertenceria, de acordo com os sujeitos desta

pesquisa, a indivíduos especiais como escritores e intelectuais. Ao se referir a

esses supostos falantes dessa língua “perfeita”, faz-se uma comparação com

os falantes comuns, que conforme os enunciadores, não a possuem. Dessa

forma, observa-se um deslize do domínio da língua para a posição que esse

falante ocupa na sociedade, o que mostra que olhar para língua é também

olhar para o enunciador e tudo o que simbolicamente a ele está relacionado,

seu status, profissão e prestígio, dentre outros aspectos. Esse olhar para quem

enuncia é determinado pelas identificações do sujeito que são interpeladas

pelo inconsciente do enunciador, ancorando suas representações de língua

ideal. Essa língua ideal passa a fazer parte do imaginário do sujeito que

começa a desejá-la, e dessa forma, seu desempenho linguístico é visto como

insuficiente e inacabado, sempre, vislumbrando uma falta que é constitutiva ao

sujeito.

Esta sensação de falta fez com que esses sujeitos construíssem

próteses com o intuito de supri-la ou compensá-la (prótese derridiana). Neste

caso, a prótese manifestou-se a partir da exigência compulsiva de uma pureza

da língua, ou seja, uma preocupação exacerbada com a correção linguística.

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A terceira pergunta objetivava entender como esses sujeitos ao se

enunciarem constroem imagens de si e do Outro.

Observa-se, entre as narrativas selecionadas, a presença de identidades

sociais virtuais que são constituídas pelas afirmativas em relação àquilo que o

indivíduo outro deveria ser, ou seja, de como um brasileiro ou um latino deveria

ser. Essa discrepância entre a identidade social virtual e a identidade social

real foi responsável pela produção do estigma identificado entre os

participantes. Os sujeitos participantes desta pesquisa têm consciência de que

possuem atributos que os diferenciam dos americanos, mas também não se

identificam com o rótulo de latino ou de brasileiro. Verifica-se, entre os sujeitos,

uma tentativa de constituir sua própria identidade, uma busca em tentar ser

completo na língua do outro e um sentimento de identidade que emana

necessariamente do outro.

Outro ponto importante é a dificuldade dos sujeitos desta pesquisa de se

verem como bilíngues. Embora observe-se, no Brasil, uma crescente

valorização da língua inglesa e uma significativa penetração do inglês por meio

de músicas e da tecnologia, indivíduos que aprendem inglês não se enxergam

como bilíngues. Vigora, ainda, no Brasil, o ideal monolíngue, dessa forma, ser

bilíngue exige definições e justificativas como se nota entre as narrativas dos

participantes, que tentam buscar, na teoria, explicações para a aceitação de

sua condição. É como se o sujeito não fosse autorizado a falar sobre sua

condição de bilíngue, o que faz com que procure, em enunciadores que

considere autorizado, uma justificativa para seu sentir ou pensar. Novamente,

verifica-se um deslocamento para a posição que o falante ocupa na sociedade,

o que divide os sujeitos em autorizados ou não autorizados a discorrer sobre o

tema.

Ademais, observou-se a dificuldade em se classificar bilíngue, que

decorre também da representação social que se tem a respeito do bilinguismo.

Essa classificação é feita ao se comparar pessoas a um protótipo aceito como

representante de uma classe, no caso, a de indivíduos que falam duas línguas.

Percebeu-se, nesta pesquisa, que o protótipo mais aceito para a denominação

bilíngue é a de alguém que utiliza as duas línguas com a mesma naturalidade.

Somando-se a isso, a língua estrangeira não é um sistema vazio de sentido,

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pois traz consigo uma carga ideológica que coloca o aprendiz em conflito

permanente com a ideologia da língua materna. Outros sujeitos, ao narrarem

aspectos relacionados à sua bilingualidade, apresentam, dentro de suas

formações discursivas, marcas de tensão que demonstram que a língua deixa

marcas, traços e instaura a falta e o desejo do sujeito de “dominá-la” por

completo, como se isso lhe fosse possível.

As respostas obtidas por meio das minhas perguntas de pesquisa

suscitaram-me um movimento que me faz pensar em como a escola ou

institutos de idiomas poderiam trabalhar o ensino de língua estrangeira

focalizando a concepção de identidade do sujeito e das diversidades, tendo em

vista a importância da relação língua e identidade a partir da dimensão da

alteridade discursiva.

Primeiramente, acredito ser importante o entendimento de que o

encontro da língua materna com a língua estrangeira pode gerar um confronto,

pois à medida que mecanismos psíquicos na aprendizagem da língua

estrangeira são acionados, mecanismos inconscientes remetem a

particularidades específicas que o sujeito mantém com a língua materna. Como

afirma Coracini (1998), a aprendizagem de uma língua estrangeira ocorre na

rede emaranhada de confrontos tecidos a partir da língua materna, urdindo o

inconsciente e alterando sua configuração pela problematização do outro e da

diferença.

Além disso, considero importante o entendimento de que aprender uma

língua estrangeira implica sempre em um questionamento e uma perturbação

do conhecimento adquirido sobre o mundo, dos valores e ideologias inscritos

no sujeito. Se, como Revuz (1995) postula, a língua é o material fundador do

psiquismo humano, aprender uma segunda língua é um processo delicado,

pois significa além da relação com o saber, a relação com nós mesmos.

Dessa forma, se, como defendido ao longo deste trabalho, ao aprender a

falar se aprende, sobretudo, um conjunto de crenças e desejos das pessoas

que cercam esse sujeito, aprender a falar é, em meio ao desejo do outro,

formular hipóteses partindo de seu próprio desejo. Assim, pode-se assumir que

alguns aprendizes monitoram seu aprendizado aceitando esse novo modo de

vislumbrar o mundo; enquanto outros, inconscientemente, podem bloquear sua

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aprendizagem, rejeitando-a, uma vez que aceitar a nova língua significa um

deslocamento das ideologias que já estavam internalizadas no indivíduo.

Perante a tais premissas, acredito que a pergunta que se segue a este

estudo é: Quais são os desdobramentos para se pensar o ensino-

aprendizagem de língua estrangeira a partir das considerações tecidas aqui?

Creio que, primeiramente, haja a necessidade de se redefinir a questão

do ensino de línguas. De forma geral, observa-se um grande descompasso

entre “para que”, “por que” e “como” ensinar a língua inglesa no Brasil. Para

tanto, um aspecto fundamental que merece ser repensado é a formação de

professores de língua inglesa. Esses profissionais, na maioria das vezes, com

uma visão de mundo monocultural e monolíngue, apenas, corroboram a

reprodução do pensamento vigente. No Brasil, os professores de língua não

são instrumentalizados para pensar meios de tornar a língua inglesa um

instrumento de singularização dos sujeitos-alunos dentro do sistema

dominante. Dessa forma, as aulas de inglês, que seriam um cenário propício

para embates culturais e políticos, dessa maneira, possibilitando a tematização

de um mundo multicultural construído em outra língua, transformam-se, na

melhor das hipóteses, em um mero local para memorização de estruturas

linguísticas. Tais práticas só se fariam possíveis por meio de uma formação

que possibilite ao professor compreender os sentidos da presença da língua

inglesa no cenário brasileiro atual, conhecendo os modos de subjetivação

daqueles em contato com essa língua e, consequentemente, avançando na

reflexão sobre o binômio língua e identidade.

Nesse sentido, ainda há um longo caminho a percorrer. Ao final desta

pesquisa, pergunto-me: Como concluir este trabalho? São tantas ainda as

perguntas que me perturbam. Talvez, possam ser respondidas em uma

próxima pesquisa. Quem sabe? Aprendi mesmo que a pesquisa nunca chega

realmente ao fim; tendo-se de forçar, em meio à violência da palavra, um ponto

final.

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Referências Bibliográficas

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183

CRÉDITOS

Obra 1: Who am I

http://mushy-pea.deviantart.com/art/Confused-32533539

Obra 2: Hand with Reflecting Sphere

http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/escher/esfera.html

Obra 3: Stair cases

http://www.zbrushcentral.com/showthread.php?38838-Escher-Stair-cases

Obra 4: Three Worlds

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://upload.wikimedia.org/wikipedia/

en/8/85/Three_Worlds.jpg&imgrefurl=http://en.wikipedia.org/wiki/Three_Worlds

&h=425&w=290&sz=44&tbnid=5ZPd5f3Waneu1M:&tbnh=90&tbnw=61&prev=/s

earch%3Fq%3Dthree%2Bworlds%2Bescher%26tbm%3Disch%26tbo%3Du&zo

om=1&q=three+worlds+escher&docid=qWpomKgJ6IqAcM&hl=pt-

BR&sa=X&ei=ilxbT-DbJpO2tweqjvmEDA&ved=0CC8Q9QEwAQ&dur=1637

Obra 5: Bond of Union

http://www.mcescher.net/photo.php?idx=6

Obra 6: Tower of Babel

http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/escher/babel.html

Obra 7: Relativity

http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/escher/relatividade.html

Obra 8: Balcony

http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/escher/varanda.html

Obra 9, 10 e 11: Metamorphosis II

http://www.mcescher.com/Gallery/switz-bmp/LW320A.jpg

http://www.mcescher.com/Gallery/switz-bmp/LW320B.jpg

http://www.mcescher.com/Gallery/switz-bmp/LW320E.jpg

Obra 12: Rind

http://www.mcescher.com/Gallery/recogn-bmp/LW401.jpg

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Olhar para trás após uma longa caminhada pode fazer perder

a noção da distância que percorremos, mas se nos detivermos

em nossa imagem, quando a iniciamos e ao término,

certamente nos lembraremos o quanto nos custou chegar até

ponto final, e hoje temos a impressão de que tudo começou

ontem. Não somos os mesmos, mas sabemos mais uns dos

outros. E é por esse motivo que dizer adeus se torna

complicado! Digamos então que nada se perderá. Pelo menos

dentro da gente..."

Guimarães Rosa

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Apêndice A

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

SETOR DE PÓS-GRADUAÇÃO

Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem

Parte I - Ficha de dados pessoais do participante

Nome: _________________________________________ Sexo: ( ) feminino ( ) masculino

Idade: ___ Nacionalidade___________________________ rofissão:____________________

País de origem do pai: ____________________ País de origem da mãe: ___________________

País de origem dos avós maternos: _________________________________________________

País de origem dos avós paternos: _________________________________________________

Profissão do pai: ________________________ Profissão da mãe:______________________

Parte II - Questionário

1. Quais línguas você utiliza em suas interações diárias?________________________________

2. Como você aprendeu suas duas línguas?

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

3. Em quais situações você utiliza cada uma destas línguas?

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

4. Em que língua você se sente mais confortável nas seguintes situações:

a) conversar com um amigo? _______________ e) ler? _______________________________

b) orar? _______________________________ f) escrever? __________________________

c) contar? ______________________________ g) reclamar? __________________________

d) xingar? ______________________________ h) explicar seu ponto de vista? ____________

5. Qual de suas duas línguas você mais aprecia? Por quê?

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

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6. Qual de suas línguas é mais importante para você? Por quê?

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

7. Você se considera bilíngue? ( ) sim ( ) não. Por quê?

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

8. O fato de se comunicar em mais de uma língua te modificou como indivíduo? ( ) sim ( )

não. Por quê?

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

9. Como você se relaciona com os dois grupos sociais referentes às línguas que utiliza?

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

10. Como você acha que é visto por estes grupos sociais?

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

11. Você se preocupa com seu sotaque? ( ) sim ( ) não. Por quê?

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

12. Você acha que crianças devem aprender outras línguas, além da primeira língua da família?

( ) sim ( ) não. Por quê?

____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________