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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP RODRIGO PIRES VILELA DA SILVA O ESTILO HAGIOGRÁFICO NA FIGURA DO PADRE GABRIEL MALAGRIDA: O MODELO DE SANTIDADE NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII MESTRADO EM TEOLOGIA SÃO PAULO 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC – SP

RODRIGO PIRES VILELA DA SILVA

O ESTILO HAGIOGRÁFICO NA FIGURA DO PADRE GABRIEL

MALAGRIDA:

O MODELO DE SANTIDADE NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO

XVIII

MESTRADO EM TEOLOGIA

SÃO PAULO

2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC – SP

RODRIGO PIRES VILELA DA SILVA

O ESTILO HAGIOGRÁFICO NA FIGURA DO PADRE GABRIEL

MALAGRIDA:

O MODELO DE SANTIDADE NA SEGUNDA METADE DO

SÉCULO XVIII

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de Mestre

em Teologia, sob a orientação do Prof.

Dr. Ney de Souza.

SÃO PAULO

2014

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Banca Examinadora

__________________________________________

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“Aquele homem existiu mesmo! Bem concreto, daquele tamanho que andou com passos

de gigantes em todo lugar do nordeste, e podemos enfim dizer com base histórica: aqui

passou Malagrida no século XVIII!”

Ilário Govoni

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Aos meus familiares e amigos,

aos que acreditam que no itinerário da vida,

vale olhar ao redor e aprender de quem já caminhou por ela.

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AGRADECIMENTOS

A Deus pelo dom da vida e pelas possibilidades sempre novas que me concede;

À minha família, ao meu padrinho Luís Ferreira (in memoriam), meu primeiro

catequista: pelos ensinamentos que alicerçaram minha história de fé;

À Arquidiocese de São Paulo: pelo constante apoio e orações;

A todos com os paroquianos da Área Pastoral Santíssima Trindade, onde tive grandes

momentos de Alegria;

À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na pessoa de seu Grão-chanceler,

Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer: pelos encaminhamentos na construção de uma

instituição segundo os valores cristãos;

Aos meus queridos professores e aos companheiros de estudo no Programa de Mestrado

em Teologia da PUC-SP: pelo incentivo, exemplo e empenho dispensados;

Ao Professor Doutor Ney de Souza, meu orientador, cujas paciência e erudição não

viram obstáculos às minhas limitações.

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RESUMO

Esta dissertação desenvolve-se acerca da questão hagiográfica entendida como literatura

a partir da vida do padre Gabriel Malagrida do qual pretende-se extrair a compreensão

de santidade da época colonial. Problematiza-se o assunto, tendo como pano de fundo

da reflexão teológica, questionamentos como: Qual o contexto cultural em que as

narrativas da vida de Malagrida então inseridas? É possível estabelecer um modelo

hagiográfico de santidade a partir da investigação das biografias de Malagrida? Qual é a

relação que podemos estabelecer entre a narrativa de Matias Rodrigues, Vida do padre

Gabriel Malagrida e a obra hagiográfica mais relevante sobre a vida dos santos,

Legenda Áurea? O método utilizado é a investigação de fontes literárias, biográficas e

da literatura hagiográfica da vida de Malagrida e de outros textos que contribuíssem na

compreensão da temática. A pesquisa pretende com essa abordagem contribuir na

valorização de um personagem de importância histórica para o Brasil, o jesuíta

Malagrida. Verificou-se, primeiramente, que o modelo de santidade vigente tem suas

origens na concepção medieval de matriz portuguesa que impregna toda a Colônia

brasileira. Em seguida, comprovou-se a hipótese de que uma investigação das obras

biográficas de Malagrida vistas a partir da compreensão da literatura hagiográfica,

poderia-nos fornecer elementos suficientes para estabelecer um modelo de santidade

medieval colonial. E por fim, relacionamos essa concepção com a hagiografia contida

em Legenda Áurea de modo a delinear esse paradigma de santidade.

Palavras-chave: Gabriel Malagrida. Hagiografia. Literatura hagiográfica. Santidade.

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ABSTRACT

This dissertation develops on the issue seen as hagiographic literature from the life of

Father Gabriel Malagrida which aims to extract an understanding of holiness from the

colonial era . Problematizes the subject , with the backdrop of theological reflection ,

questions such as: What is the cultural context in which the narratives of the life of

Malagrida then inserted ? You can establish a hagiographic model of holiness from the

investigation of biographies of Malagrida ? What is the relationship that we establish

between narrative Matias Rodrigues , Life of Father Gabriel Malagrida and more

relevant information about the lives of saints hagiographic work , Legenda Aurea ? The

method used is the investigation of literary , biographical and hagiographic literature of

life Malagrida and other texts that contribute in understanding the thematic sources. The

research aims to contribute to this approach in the valuation of a character of historical

importance to Brazil , Jesuit Malagrida . It was found , first, that the current model of

holiness has its origins in the medieval conception of Portuguese mother permeates all

Brazilian colony . Then proved the hypothesis that an investigation of biographical

works Malagrida views from the understanding of hagiographic literature , could

provide us sufficient evidence to establish a model of colonial medieval holiness.

Finally , we relate this concept to the hagiography contained in Legenda Aurea in order

to delineate this paradigm of holiness .

Keywords: Gabriel Malagrida . Hagiography . Hagiographic literature. Holiness.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................09

CAPÍTULO I – UMA TENTATIVA DE APROXIMAÇÃO DA COLÔNIA.........12

1.1 O MUNDO NO QUAL O BRASIL COLONIAL ESTÁ INSERIDO................13

1.2 OS ASPECTOS DAS RELAÇÕES SÓCIO-POLÍTICAS NA COLÔNIA .......20

1.2.1 “Encomienda”, “Requerimiento” E “O Estatuto Do Índio”................................21

1.3 APROXIMAÇÃO DO UNVERSO RELIGIOSO COLONIAL.........................26

1.4 A VOCAÇÃO DA INQUISIÇÃO E SEU PAPEL NO PERÍODO

COLONIAL.....................................................................................................................33

1.5 A OPÇÃO POR UM MODELO DE FORMAÇÃO SACERDOTAL NO

SÉCULO XVI.................................................................................................................36

CAPÍTULO II – LEITURAS ACERCA DO PADRE GABRIEL MALAGRIDA..40

2.1 AS FIGURAS DE MALAGRIDA......................................................................41

2.1.1 Malagrida de Matias Rodriguez: o Missionário Taumaturgo..............................42

2.1.2 Malagrida de Camilo Castelo Branco: a irracionalidade do século das Luzes....46

2.1.3 O Malagrida de Ilário Govoni: Malagrida por ele mesmo e a partir dos seus.....53

CAPÍTULO III – A HISTÓRIA COMO INSTRUMENTO DA TEOLOGIA NA

LITERATURA HAGIOGRÁFICA.............................................................................66

3.1 HAGIOGRAFIA COMO GÊNERO LITERÁRIO.............................................67

3.1.1 Hagiografia e Teologia........................................................................................72

3.1.2 Legenda Áurea: modelo hagiográfico medieval..................................................76

3.1.3 O estilo Hagiográfico de Legenda Áurea presente na obra de Matias

Rodriguez.........................................................................................................................77

3.1.4 O Martírio em Vida do padre Gabriel Malagrida a partir do modelo

hagiográfico em Legenda Áurea......................................................................................85

CONCLUSÃO................................................................................................................89

BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................93

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INTRODUÇÃO

O nome de Malagrida é reconhecido como Apóstolo do Brasil, tanto entre os Jesuítas

quanto para os seus conterrâneos. É de chamar atenção a ausência de seu nome junto aos

manuais de História, junto aos nomes de outros jesuítas como Nóbrega, Anchieta e Vieira,

sobretudo por ter implantado aqui algumas devoções que vão marcar a identidade do povo

brasileiro, como a devoção ao Sagrado Coração de Jesus e a Nossa Senhora da Boa Morte1. A

campanha anti-jesuítica foi deveras forte, sobretudo na historiografia brasileira, que num

processo de criação de uma História Nacional, dentre as seleções de fatos e personagens, de

certa forma esquece a figura de Malagrida, que é elemento chave para a proposta espiritual

para o período que se segue.

Sendo assim, pretendemos fazer memória à figura de Malagrida e destacar a sua

importância no processo de formação do Brasil. Além disso, abrimos para a discussão o papel

da hagiografia na História da Igreja, principalmente no que diz respeito à reconstrução de uma

mentalidade, de uma cultura, de uma expressão de fé num período que mereceria mais

atenção para o mundo acadêmico, tanto da Teologia como nas demais áreas do conhecimento.

O século XVIII foi bem intenso no que diz respeito à relação Igreja-Estado. Tal

relacionamento nunca fora marcado pela lisura: desde Constantino até o sistema do Padroado.

No entanto, o surgimento do Iluminismo como um forte movimento intelectual vai abalar a

hegemonia do poder cultural que os jesuítas haviam construído desde sua fundação. Some-se

a isso a crescente impopularidade dos inacianos junto às demais ordens religiosas

contemporâneas2 e o fato de, por força da regra de Santo Inácio, os membros da ordem não

poderem ocupar sedes episcopais, gerando uma falta de proteção para eles mesmos. As

consequências da soma destes fatores são conhecidas: a expulsão da Companhia dos domínios

portugueses e a sua supressão logo em 1773.

A figura do Pe. Gabriel Malagrida se encontra neste conturbado contexto. Quis, no seu

entender, seguir a Jesus Cristo de perto, construindo uma vida santa. Em seus escritos tal

propósito transparece, como em várias de suas biografias. Tal estilo de evangelização a que se

propõe será adotada por outros religiosos nos séculos seguintes, como o Pe. Ibiapina, o beato

1 Cf. FENZL, Andrea; BARBIERI, Renato. Malagrida. [documentário-video]. Produção de Andrea Fenzl,

direção de Renato Barbieri. São Paulo, Videografia Criação, 2001. 1 DVD/NSTC, 73 min. color. som. 2 Cf. DOMINGUES, Beatriz Helena. Disputas entre “Cientistas Jesuítas” e “Cientistas Iluministas” no mundo

Ibero-Americano. Numen. Revista de estudos e pesquisas da Religião. pp 130-131.

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Antônio Conselheiro, Frei Damião, entre outros3. Uma santificação que parece estar associada

à missão itinerante. E assim, faz sentido questionar o que, no século XVIII do Brasil Colonial,

se entende por “santidade” ou qual era o modelo de santidade vigente.

Visto que contra Malagrida, que viveu para as missões, houve uma clara perseguição

de Marquês de Pombal, acarretando na sua execução pela Inquisição, a Companhia de Jesus

logo começa a produzir material de cunho apologético para fazer justiça ao mais novo mártir

inaciano. Tais escritos são produzidos dentro de um esquema já conhecido no mundo

medieval e bem presente no mundo de então: o estilo de Legenda Áurea, ou seja, nos moldes

da vida de um santo. Assim, a visão de santidade no século XVIII do Brasil Colonial pode ser

descoberta sob os contornos da vida de Malagrida.

Os modos de vida e de morte narrados pelos seus hagiógrafos reproduzem várias feitas

de santos contidos na obra de Jacopo de Varazze. Para o momento, é possível apontar tais

elementos na vida de Malagrida. Este esquema hagiográfico poderia ser um padrão. A base

disso é que todas as biografias do Pe. Malagrida obedecem ao mesmo esquema tetrapartido,

como a do Matias Rodrigues, do Paul Mury, a do Ilário Govoni – todos jesuítas – mostrando

um mundo no qual “há uma constante luta entre o bem e o mal, da qual nada e ninguém pode

ficar alheio”4. No entanto, ainda que seja sabido que com a chegada do Iluminismo tal

espiritualidade tenha não atendido mais a necessidade tanto do clero quanto do povo, é

importante notar que o que acontece na redação da história de Malagrida segue o esquema

apontado pelo Hilário Franco Jr. no modelo hagiográfico.

Tal modelo não poderia ser resumido por uma pergunta simplista como: “é verdade o

que o texto diz?” Ou “tudo isso foi inventado?”, pois o que interessa aqui é a mentalidade, o

simbolismo daquela geração; as representações de mundo. Em outras palavras, como que o

mundo é visto pelos jesuítas e, de certo modo, pela população evangelizada por eles naquele

período tão conturbado.

Para tal argumento, a utilização de textos da época é sentida, tanto em forma da língua

arcaica, quanto editados no vernáculo contemporâneo, sempre de acordo com a fonte

encontrada. A extensão de algumas citações de autores dos séculos XVIII e XIX não tem

outra razão que apresentar a noção presente nas entrelinhas, visto que não trabalham com

3 Cf. COMBLIN, José. Padre Ibiapina. São Paulo:Paulus, 2011. Neste livro o autor faz uma breve apresentação

sobre o modo como Ibiapina desenvolve seu ministério no sertão nordestino. Faz parte de uma série que visa

apresentar história da evangelização no Nordeste. Outro volume do mesmo autor se refere a Pe. Cícero. 4 Cf. VARAZZE, Jacoppo de. Legenda Áurea: Vidas de Santos. São Paulo: Companhia das Letras.. 2011. p 18.

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conceitos enciclopédicos, mas por meio de estilos e imagens literárias próprias de seu

contexto barroco, de modo que cortar um pedaço poderia custar à compreensão do conteúdo.

O sentido do trabalho é, através de elementos históricos, literários e teológicos em

torno de um personagem concreto, propor uma leitura sobre a figura de Gabriel Malagrida.

Assim, o caminho a ser percorrido fará três paradas, com passagem pela História, Literatura e

Teologia, na intenção de apresentar uma interdisciplinaridade entre elas, oferecendo subsídios

para a compreensão do relacionamento entre o Homem e a Revelação.

Sendo assim, a primeira parte do nosso estudo intenta justamente apresentar de forma

sistemática os elementos que marcam o período histórico em que o padre Malagrida viveu, de

modo a contextualizar o Brasil colonial e identificar suas principais influências, sobretudo as

referentes à Coroa. De fato, é a partir de uma perspectiva histórica da época que podemos

situar que é inerente à vida de Gabriel Malagrida e de seus contemporâneos biógrafos.

A segunda parte desse trabalho está dedicada a uma breve análise das mais relevantes

biografias de Malagrida. Nosso intuito é demonstrar com precisão que tais narrativas contém

como pano de fundo comum os elementos que estão presentes na compreensão do que é

santidade em meados do século XVIII.

Por fim, corroboramos a reflexão, uma aproximação à literatura hagiográfica. As

narrativas da vida de santidade de padre Malagrida estão nos moldes das narrativas da vida de

santos produzidas na Idade Média e ainda vigentes em sua época. Tal afirmação verificar-se

através da aproximação da tradicional obra medieval da vida de santos, Legenda Áurea e a

biografia da vida de Gabriel Malagrida que parece mais relevante, Vida do padre Gabriel

Malagrida, de Matias Rodriguez. De fato, a partir dessa aproximação é possível delinear o

modelo de santidade desse período.

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CAPÍTULO I – UMA TENTATIVA DE APROXIMAÇÃO DA COLÔNIA

“Os lusos mores coisas atentando

Novos mundos ao mundo irão mostrando ”5

“O objeto próprio, o constituinte essencial do cristianismo não é

uma ideia, ideologia, nem uma moral, mas uma Pessoa. Em última

instância, não é senão uma relação entre as pessoas criadas e

históricas, que participam existencialmente da mesma

interpessoalidade divina. Por isso, o cristianismo compromete toda a

pessoa, a um nível concreto, absoluto e radical”.6

Qualquer coisa que possamos dizer a respeito do passado, não é capaz de abarcar sua

totalidade, quando muito faz uma aproximação. A partir deste ponto de vista, numa primeira

delimitação de nossa abordagem histórica, é que apresentamos a compreensão de que o século

XVIII foi bem intenso no que diz respeito à relação Igreja-Estado. Tal relacionamento nunca

fora marcado pela lisura: desde Constantino, nos primórdios do cristianismo quando o tornou

religião oficial do estado, até o sistema do Padroado, em que os nomes para cargos

eclesiásticos eram indicados pelo governante de Portugal. No entanto, o surgimento do

Iluminismo7 como um forte movimento intelectual abala a hegemonia do poder cultural da

Igreja Católica, sobretudo da Companhia de Jesus, uma vez que os jesuítas haviam construído

desde sua fundação grande influência nesse campo.

No que diz respeito à história do Brasil, este século está dentro do período que

didaticamente é chamado de colonial. São trezentos anos em que pouco se muda no contexto

brasileiro. É praticamente a mesma paisagem desde quando o processo de colonização se

5 Cf. CAMÕES, Luis Vaz de. Os Lusíadas. II, 39-40. São Paulo: Saraiva, 2010. p.46.

6 DUSSEL, Enrique. Caminhos de libertação latino-americana. V. II. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 32.

7 “O Iluminismo é a saída do homem de um estado de menoridade que deve ser imputado a ele próprio.

Menoridade é a incapacidade de servir-se do próprio intelecto sem a guia de outro. Imputável a si próprio é esta

menoridade se a causa dela não depende de um defeito da inteligência, mas da falta de decisão e da coragem de

servir-se do próprio intelecto sem ser guiado por outro. Sapere aude! (Ter a coragem de saber) Tenha a coragem

de servir-te da própria inteligência! – é, portanto, o lema do Iluminismo” cf. FOUCAULT, Michel; KANT,

Immanuel. Che cos’è l’Illuminismo?. Milano-Udine: Mimesis, 2012. pp. 7-8.

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estabeleceu. Como se demonstrará a seguir, isto ocorreu porque a colônia e seus problemas

eram encarados da mesma forma que os problemas em Portugal. As políticas e as medidas

econômicas adotadas para esta porção do mundo são basicamente as mesmas, por princípio, o

de relação metrópole-colônia. Haverá movimentos de reivindicação de políticas econômicas

nos século XVIII que remontam ao século XVI.

1.1 O mundo no qual o Brasil colonial está inserido

Obviamente não podemos falar do século XVIII sem considerarmos os séculos

anteriores e os movimentos que ali foram desenvolvidos. Toda a questão que tem como palco

esse momento histórico é justamente em relação às potências marítimas (Portugal e Espanha)

e o seu expansionismo que para dar fôlego as suas metrópoles e sair da saturada luta contra os

árabes (mouros) que os cruzados, empenhados em conquistar o território onde estes residem e

a Terra Santa, não conseguiram realizar. De fato, o embate com o mundo mulçumano

provocou grande desgaste e uma necessidade de “navegar” em outros mares em busca de

riquezas e da expansão da fé católica. Da mesma forma, a posterior questão com os

protestantes gerou tantos confrontos que acabou por repaginar o mundo da fé e a visão do

mesmo.

A aritmética neste sentido era muito simples, quanto mais índios convertidos, mesmo

que à força, no Novo Mundo, mais “civilizados” e cristãos para a coroa-metrópole. Além

disso, havia também uma grande possibilidade de que uma vez “civilizados” e cristãos, eles se

tornassem aptos para o trabalho que era necessário na colônia, tendo em vista um melhor

aproveitamento das riquezas contidas no Brasil, além de evitar também um gasto muito alto

com a compra de escravos vindos da África.

O doze de outubro de 1492 sai de seu marasmo, se desprende do calendário e vai

retomar seu “lugar ao sol”, de esperanças e sonhos. A história que rompe com as camuflagens

oficiais e se desfaz das correntes ideológicas vira um admirável desdobrar de liberdades, com

efeitos épicos das grandes proezas, sem, no entanto, esquecer as atrocidades e vilezas. Dois

olhares se cruzam, tendo como ideais festivos ambições realizadas, almejando sempre mais,

novos desejos de grandezas. Cristóvão Colombo e a rainha Isabel se encontram, tendo

pensamentos semelhantes, confrontam aspirações, fazem previsões e projetos. Cristóvão

Colombo se dirige aos reis Fernando e Isabel (reis católicos) com uma linguagem solene e

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religiosa. Ele sentira desde o começo de seus Diários8 que o momento da expansão marítima

chegara quando se realizava e comemorava a Reconquista9.

Colombo concatenou bem todos os acontecimentos e viu com muita lucidez a

hora certa que abria espaço para o lançamento de sua tão almejada expedição. Era sempre

uma grande aventura inusitada. Todo esse entrelaçamento de pessoas, de fatos, foi o que veio

a tornar viável a descoberta da América e a determinar as condições de sua colonização.

Aumenta a vaidade de ter construído a uniformidade interior, que resultou da força da

ortodoxia e da valia dos “cristãos velhos”, dos espanhóis de boa casta. É o tempo de ir em

frente com o expansionismo político e econômico. A unidade forte leva a propagar a fé e o

império. Todavia, nos séculos subsequentes, o propagar assume o pleno significado de sua

ambição histórica. Esta mentalidade impõe aos outros a fé cristã, levando a um processo de

inchaço compreensível que concentra muita vaidade, instigando a ocupação de novos espaços,

supostamente vazios de seus donos. O poder econômico, político e militar dá aos povos

colonizadores, em relação aos seus dominados, força para dizer que todas essas terras estavam

reservadas desde sempre aos “novos senhores do universo”.

Nós, pensando com a devida meditação em todas e cada uma das coisas

indicadas, e levando em conta que, anteriormente, ao citado rei Alfonso foi

concedido por outras cartas nossas, entre outras coisas, faculdade plena e

livre para invadir, conquistar, combater, vencer e submeter a quaisquer

sarracenos e pagãos e outros inimigos de Cristo, em qualquer parte que

estivessem, e aos reinos, ducados, principados, domínios, possessões e bens

móveis e imóveis tidos e possuídos por eles; e reduzir á servidão perpétua as

pessoas dos mesmos, e destinar para si e seus sucessores os reinos, ducados,

condados, principados, domínios, possessões e bens deles. Seus sucessores e

o Infante, nas províncias, ilhas e lugares já adquiridos ou a serem adquiridos

por eles, possam fundar e construir igrejas, mosteiros e outros lugares

piedosos; e ao citado rei Afonso e seus sucessores, os que forem reis de

Portugal doravante, e ao citado Infante, o concedemos e o permitimos.10

8 Diários da descoberta da América: era o diário de suas viagens. Cf. JOSAPHAT, F. Carlos. Las Casas, todos os

direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000. p. 20. 9 Os mouros (infiéis) foram definitivamente vencidos e expulsos da Espanha: a última batalha fora em Granada,

em 1492. Cf. Ibidem. 10

SUESS, Paulo. A Conquista Espiritual da América Espanhola. Petrópolis: Vozes, 1992. pp. 227-229.

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A visão de um mundo a ser conquistado não é exclusividade do povo ibérico. O

desejo de tal façanha já era contado desde Homero, Vergílio, e neste ínterim, por Camões em

Os Lusíadas. O expansionismo deste povo é reflexo da própria natureza humana, como que

num esquema de projeção, no qual o desejo de dominar está ligado à ideia de prosperidade

que, não se queira ser simplista, em todos os tempos, esteve ligada à vontade divina, ao

favorecimento dos deuses. O texto, como se percebe, mostra primeiramente o desejo de ir

além; doravante, segue-se um embasamento, se não teológico, pelo menos devocional:

Nós, confiantes na misericórdia do próprio Deus todo-poderoso, e na

autoridade dos seus santos apóstolos Pedro e Paulo, e nas palavras d’aquele

que é o caminho, a verdade e a vida, e nos disse, na pessoa do mesmo bem-

aventurado Pedro, de quem somos sucessor com igual autoridade, embora

não iguais méritos: ‘o que ligares na terra ficará ligado nos céus’; e

[confiante] na plenitude do poder que Nos foi dado pelos céus: concedemos

igualmente e damos a todos e mesmo fiéis que com suas próprias pessoas se

engajarem no exército dos mesmos Rei e Rainha para guerrear contra os

mesmos sarracenos para conquista do dito reino de Granada, e que

permanecerem [na tropa] pelo tempo que for estabelecido pelos tesoureiros

de coletas dessa santa Expedição, designados conforme as circunstâncias, a

remissão de todos os seus pecados e a indulgência como foi costume ser

dada pelos Nossos Predecessores aos que partiram para reforço [dos

combatentes] na Terra Santa, e como foi concedida em Ano Jubilar pelos

mesmos Predecessores e por nós mesmo.

Decidimos sejam para sempre preservadas ao regaço dos santos Anjos, no

céu, para permanecerem na felicidade eterna, as almas de todos aqueles a

quem couber partir para essa santa Expedição. De tal modo que, se vier a

acontecer que alguns deles partam desta vida se puserem a caminho para o

prosseguimento de tão santa obra, poderão eles adquirir integralmente essa

indulgência.11

A expansão portuguesa se dará nos moldes da espanhola, uma vez que ambas eram

potências marítimas na sua época; a honra de lançar-se ao mar e apresentar novos mundos ao

mundo conhecido é tema trabalhado por Camões, que explora, numa retomada de elementos

11

Ib., p. 234.

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clássicos do paganismo, somados a um pessimismo em relação à pequenez humana diante do

vasto mundo, em versos de enaltecimento ao povo português. Pelo tamanho da obra, é

perceptível que o orgulho dilatado deste povo era maior do que quaisquer princípios

humanitários em relação aos povos indígenas, ou de outras terras conquistados.

No mar tanta tormenta, tanto dano

Tantas vezes a morte apercebida

Na terra tanta guerra, tanto engano

Tanta necessidade aborrecida

Onde pode acolher-se um fraco humano?

Onde terá segura a curta vida ?

Que este céu sereno não se arme

Contra um bicho da terra tão pequeno12

(...)

Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso,

Que para as coisas que eu do peito amasse

Tu fosses brando, afável e amoroso

Posto que algum contrário lhe pesasse

Mas, pois que contra mim te vejo iroso

Sem que eu merecesse, nem te errasse

Faça-se como Baco determina

Aceitarei, enfim, que fui mofina

Este povo, que é meu, por quem derramo

As lágrimas que em vão caídas vejo

Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo

Sendo tu tanto contra o meu desejo

Por ele a ti rogando, choro e bramo

E contra a minha dita, enfim, pelejo

Ora pois, porque o amo, é maltratado,

Quero-lhe querer mal: será guardado.13

(...)

Os vossos mores coisas atentando

Novos mundos ao mundo irão mostrando14

12

Cf. CAMÕES, Luiz Vaz de. Os Lusíadas. I, 106. São Paulo: Saraiva. 2010. p.35 13

Cf. CAMÕES, Luis Vaz de. Os Lusíadas. II, 39-40. São Paulo: Saraiva. 2010. p. 46.

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17

A história é cantada numa epopeia marcada pelos sacrifícios que justificam a vida. O

mundo quinhentista é lugar do sagrado, um espaço de epifania. Por esse motivo, a expansão

não pode deixar de ser lida como um fenômeno teológico. Ora, como missão é campo da

Teologia. Foram estas nações que, com seu espírito desbravador, conseguiram levar a

“civilização” e a fé católica ao continente americano, promovendo assim, o choque de

culturas e visões de mundo totalmente diversas, que não se entenderam muito bem, sobretudo

no início.

Evidentemente que, como colônia portuguesa, e mesmo mostrando sinais de

crescimento econômico, “especialmente após 1570, o Brasil, oitenta anos depois de

descoberto, continuava a ser os fundos do Império”15

, não podia nem se gabar de ter

universidades ou imprensa, tendo pouquíssimos edifícios nobres e quase nada de riqueza

mineral que fosse visível. Já o pau-brasil permaneceu até o século XVIII um importante

produto para a atividade econômica, porém, não podia por si só, sustentar a colônia.16

A união

de Portugal com a Espanha em 1580 sob uma única coroa, que trouxera moedas peruanas ao

Brasil em meados de 1585, favoreceu a vida econômica. No entanto, com o seu rompimento

em 1640, ficou clara a dependência econômica do Brasil desta fonte de dinheiro. Assim, os

portugueses retornaram novamente a prática do escambo.17

Todavia, os germes do futuro já haviam sido lançados na forma da cana-de-açúcar

vinda de São Tomé no início do século XVI. Em meados do século XVII o Brasil, por ter

algumas características favoráveis, como o clima e o solo, fará do açúcar o seu alicerce

econômico.18

Os senhores de engenho se tornarão os homens ricos da colônia, pois o Brasil

não tinha uma população indígena grande assentada e pagadora de impostos, e as riquezas

minerais ainda estavam num futuro distante. Toda a produção de açúcar dependia dos

colonos, que mesmo assim viam os custos agrícolas e industriais cair diretamente sobre si. Os

senhores de engenho fizeram assim do Brasil uma colônia muito valiosa, e sem eles não

haveria muita coisa para sustentar a região.

Assim, em 1609-11 e, como veremos, também em 1626, a Coroa adotou

uma posição mais leniente do que deveria em relação às demandas dos

14

Cf. CAMÕES, Luis Vaz de. Os Lusíadas. II, 39-40. São Paulo: Saraiva. 2010. p. 46. 15

SCHWARTZ, Stuart B., Burocracia e sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

p. 94. 16

Cf. Ibidem. 17

Cf. Ib. p. 95. 18

Cf. Ib. pp. 94-99; 124.

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18

fazendeiros. Os acontecimentos desses anos de fato deixaram claro,

entretanto, que a Relação, que fora saudada pelos fazendeiros como uma

aliada contra os comerciantes, era um órgão do governo real e, portanto, uma

possível ameaça à elite canavieira.19

Posto isto, a figura dos jesuítas aparece no Brasil colônia como uma realidade vital,

cuja notoriedade e estilo orientou a vida do Novo Mundo. Eles foram os desbravadores de um

lugar tido por selvagem em suas terras. Por aproximadamente trezentos anos, a única estrutura

de civilização presente na colônia era a Igreja. E em muitos casos, a representação da Igreja se

dava pela presença jesuíta, pois onde chegavam se preocupavam logo em criar escolas,

igrejas, oficinas, etc. Assim, a presença inaciana se dá justamente pela ausência do Estado de

direito. Mesmo que possa soar como um Estado dentro de outro, na verdade o que parece é

que num terreno onde não há um Estado de direito e as distâncias são continentais, os

habitantes acabam por se organizar da forma que conseguirem, com as leis que conhecem.

O crescimento jesuíta vem acompanhado de dinheiro e poder, justamente por terem

consigo a mão-de-obra indígena e controle sobre suas terras e produções. Com isso, os

administradores da metrópole tinham o desejo de secularizar a atuação jesuíta, pois tendo

isenções alfandegárias e controle da mão de obra, eles tinham a balança do mercado a seu

favor.20

Para resolver esta organização indígena de domínio da Companhia de Jesus, é lançado

o Diretório do Índio em 1757, cuja orientação é secularizar o território, a mão de obra e

escoação dos índios, tirando dos religiosos esta receita e obrigando-os a viver de suas

côngruas, além de passar a eles o direito de civilizar estes povos bárbaros.

Ao desenvolver a tese do estado ‘arruinado21

’ Mendonça Furtado22

coloca em

movimento o espírito iluminista que fora assimilado por Marquês de Pombal. Pois fora desejo

deste a supressão dos jesuítas de todas as colônias portuguesas, uma vez que via neles um

entrave para o desenvolvimento e prosperidade de Portugal. Contudo, não é exagero lembrar

que o iluminismo pombalino não passou de um despotismo esclarecido. Tanto ele, quanto

19

Ib., p. 124. 20

Cf. RAYMUNDO, Letícia de Oliveira. http://www.almanack.usp.br/PDFS/3/03_informes_1.pdf. Último

acesso em 15/03/2013. 21

‘Tal ruína’ aparece sempre associada ao poder temporal dos eclesiásticos, os quais, ao contrário dos colonos,

possuiriam produtivas fazendas, grossos cabedais e se destacariam na extração das drogas do sertão em virtude

de dominarem a principal mão-de-obra do estado, o índio. E no mais eram isentos do pagamento de impostos,

fazendo com que esta prosperidade não revertesse em benefício aos cofres públicos’ cf. RAYMUNDO, Letícia

de Oliveira http://www.almanack.usp.br/PDFS/3/03_informes_1.pdf. 22

Sendo governador do Pará, acolherá as indicações da Metrópole portuguesa, neste caso contra o modo de

proceder dos jesuítas que detinham a principal mão de obra da colônia: o índio.

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Mendonça de Furtado, seu irmão, não negam a utilidade dos inacianos, visto que do Rio de

Janeiro à foz amazônica as missões jesuítas tinham bons resultados, pois conseguiam

converter gentios. O problema é que o campo de atuação deles era maior do que a sacristia:

Eram conselheiros das principais autoridades administrativas, construtores

das maiores bibliotecas da Colônia, exploradores dos sertões, linguistas,

médicos, arquitetos e artesãos dos mais diversos tipos, horticultores,

criadores de gado, superintendentes de fazenda e administradores de imóveis

urbanos. Por fim, foram os criadores do teatro brasileiro e os cronistas de

todos os acontecimentos registrados na época.23

As funções de um Estado de direito se resumem em garantir a base para o

desenvolvimento de seu povo, o que pode ser encontrado em filósofos iluministas chamados

de contratualistas, como Locke, Hume, Rousseau, Voltaire, entre outros. No entanto, por mais

de trezentos anos, este papel foi sendo feito nas colônias portuguesas pelas ordens religiosas

e, de modo muito particular, pelos jesuítas.

Em poucos países da América uma língua indígena teve tanta difusão que o

tupi antigo conheceu. Chegou a ser por séculos a língua da maioria dos

membros do sistema colonial brasileiro, de índios, negros africanos e

europeus, contribuindo para a unidade política do Brasil.(...) Em formas

evoluídas, foi falada durante a metade da nossa história, mais que a língua

portuguesa, até cerca de 1750, que só se impôs nacionalmente após a

segunda metade do século XVIII.24

A influência foi tamanha que, diga-se de passagem, a língua comum, o nheengatu, era

o tupi, não mais tal e qual falado pelos índios quinhentistas, mas transformado em língua

literária pelos “soldados de Cristo”. O quadro só foi alterado com a ascensão de Pombal ao

poder e a expulsão dos jesuítas de seus domínios.

Assim, a colonização do Novo Mundo dá significado ao desejo de expansão dos

ibéricos e, para tanto, fornece elementos para a visão teológica do universo e para a

construção de um mundo que tenha a Europa como centro. Neste aspecto, a sujeição de povos

23

SROUR, A. C. Introdução. In: MURY, P. História de Gabriel Malagrida. São Paulo: Loyola. 1992 p. XIV –

XV. 24

NAVARRO, E. A., Método moderno de Tupi Antigo. Petrópolis: Vozes. 1998. p. XI-XIII.

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20

e de suas culturas acaba sendo justificável, se não necessária. É neste contexto que a Igreja

está inserida.

1. 2 Os aspectos das relações sócio-políticas na colônia

O projeto político e econômico da metrópole é estabelecer em seus domínios um

modelo humano e proveitoso de boa colonização, de modo que tanto mais servos trabalhando

de boa vontade seriam menos difíceis de controlar e mais lucrativos para os donos de aquém e

além-mar. Todavia, devido aos abusos para com os índios se fez necessário, tanto na América

espanhola como no Brasil, fazer leis que dessem algumas garantias a estes, livrando-os de

todo tipo de maus tratos, conferindo-lhes alguns direitos. Isso, no entanto, não era fiscalizado,

até porque era devido, fazendo com que a situação permanecesse sem evolução.

Os escravos forneciam a mão de obra das fazendas de cana-de-açúcar, e

adquiri-los representava grande despesa. De início, os índios cativos

forneciam braços para as plantações, e na verdade continuaram a ser usados

durante todo o século XVII, mas os escravos negros importados da África

ganhavam cada vez mais importância como mão de obra nos engenhos. Em

1600, uma escrava negra era vendida na Bahia por cerca de 30 mil-réis e um

escravo negro, por 40 mil-réis. Portanto, um engenho com 150 escravos

comprometia cerca de seis contos de réis com sua força de trabalho. A união

com a Espanha acabou provocando uma escassez de escravos negros na

Bahia e os preços subiram. Contratadores portugueses importavam cargas de

africanos para a América Espanhola, onde alcançavam ótimos preços. Com

isso, o número de escravos disponíveis no Brasil caiu e, consequentemente,

os preços aumentaram. A falta de negros no Brasil levou à volta do índio

como trabalhador cativo e estimulou novos ataques às populações indígenas,

especialmente na área de São Paulo. Os infelizes índios que caíam nas mãos

dos paulistas eram vendidos a fazendeiros do Recôncavo e de Pernambuco.25

A base da economia e da política aqui no continente, evidentemente, não é a mesma da

metrópole: a mão-de-obra escrava. A administração de assuntos referentes a esses e a outros

temas será feita na metrópole, numa tentativa como que de controle à distância. Como se verá,

25

SCHWARTZ, Stuart B., Burocracia e sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

p. 107.

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21

as medidas serão tomadas por quem nunca aqui esteve, com as armas próprias exigidas pela

lonjura: a força e a burocracia. No meio de tudo isso, a Igreja.

1. 2. 1 “Encomienda”26

, “Requerimiento”27

e o Estatuto do Índio28

Tendo formado um “grupo de trabalho”, denominado “junta de Burgos”,

ordenando, entre outros, por seus conselheiros Palácios Rúbios, Juan Rodríguez de Fonseca29

e alguns teólogos, o rei da Espanha procurou encaminhar a situação dos índios, encaminhando

também a situação da escassez de mão-de-obra na América espanhola.30

A “junta de Burgos” vai elaborar sete Proposições que servirão como princípios

para a conclusão das Leis de Burgos. Tanto nas Proposições como depois nas Leis permanece

a contradição entre a liberdade dos índios proclamada e o trabalho forçado exigido. Já em seu

preâmbulo as ordenanças de Burgos dizem que os índios são “por natureza inclinados à

ociosidade e maus vícios (...), sem nenhuma virtude ou doutrina”.

“A primeira Lei indigenista vai forçar o deslocamento dos índios para os

povoados dos espanhóis” e vai também ratificar a Encomienda. O superior dos dominicanos,

Pedro de Córdoba, viu nas Leis de Burgos “a perdição dos índios” e teve um susto em saber

que tais Leis haviam sido feitas por tantas e tais pessoas de tanta autoridade, solenidade e com

tamanho consenso, fazendo parecer que ninguém podia realizar coisa alguma em contrário, a

não ser que fosse tido como presunçoso e atrevido ou insano.

No entanto, por intervenção de Pedro de Córdoba, fora redigido em Valladolid

quatro “moderações”, com medidas protecionistas que, em 28 de julho de 1513, foram

anexadas às Leis de Burgos.

Ordenanças para o tratamento legal dos índios inclinados à ociosidade e aos

maus vícios: as Leis de Burgos (Burgos, 27. 12. 1512/23. 1. 1513).

26

Trabalho forçado em regime de semi-escravidão cf. Ibidem. pp. 112-124. 27

É uma declaração de guerra ritualizada com o intuito de explicar a “razão da conquista” aos índios da América

Central (1524), de Yucatán (1527), da Guatemala (1530), do Peru (1532), da Venezuela (1534), do Panamá

(1535), de Nova Granada (1537) e do Rio da Prata (1540), praticamente até a promulgação das Leis Novas, de

1542/43. Existem várias versões e adaptações do Requerimiento. 28

Datado de 1757. 29

Bispo de Palencia e depois, encomendeiro de 800 índios nas Antilhas. 30

No momento dos descobrimentos, durante todo o século XVI, a Espanha passa por uma crise econômica, e a

população tem alguma esperança que das Índias Ocidentais lhe venha algum alívio. Ocupados com os seus

problemas, não se inquietam com a sorte dos índios de além-mar. A maior parte, se não todos do clero, era

solidária com os seus fiéis, e viviam preocupados com o pão de cada dia para si, para os seus, aqui e agora.

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22

Dom Fernando, (...). Eu e a sereníssima Rainha dona Isabel, minha cara e

muito amada mulher, a santa glória tenha, sempre tivemos muita vontade

que os caciques e índios da Ilha de San Juan chegassem ao conhecimento de

nossa fé católica, e para mandamos fazer e foram feitas algumas ordenanças

tanto por nós como por nossa ordem pelo comendador Bobadilla e pelo

comendador maior de Alcântara, Governadores que foram à ilha de San

Juan, e depois dom Diego Colombo, nosso Almirante, Vice-rei e Governador

da ilha espanhola a das outras ilhas que foram descobertas pelo Almirante

seu pai e por sua indústria, e nossos oficiais que residem na dita ilha, e

segundo se viu por longa experiência, diz que tudo não basta para que os

ditos caciques e índios tenham o conhecimento de nossa fé, que seria

necessária, para sua salvação porque são naturalmente inclinados para à

ociosidade e maus vícios de que nosso Senhor é desservido e não há

nenhuma maneira de virtude nem doutrina, e o principal empecilho que têm

para não se emendarem de seus vícios e de não lhes de ser útil nem impressa

neles a doutrina, nem aceitam, é terem seus povoados e moradia tão longe

como têm e afastados dos lugares onde vivem os espanhóis que daqui foram

e vão povoar a dita ilha, (...)

Como se vê, o argumento utilizado aqui para justificar a domesticação do povo

selvagem é a lógica militar do divide et impera, separando os indígenas de suas famílias e, sob

o pretexto de incutir neles a fé católica. E como é perigosa uma mente ociosa, a proposta é

preencher este tempo com trabalhos, ainda que contra a vontade deles (dos índios). E como o

melhor modo de evangelização, segundo El-Rey, é o da proximidade aos povos já cristãos,

seria oportuno que estes índios se ocupassem com os afazeres propostos pelos espanhóis,

numa relação não de servidão como na Europa, mas de senhor-escravo. Assim é que se segue

o teor do texto,

(...) porque, posto que durante o tempo que vêm para servir os doutrinem e

lhes ensinem as coisas da nossa fé, depois de terem servido aos seus

povoados, devido ao fato de estarem afastados e á má inclinação que têm,

esquecem logo tudo o que lhes ensinaram e voltam á sua costumeira

ociosidade e vícios e, quando outra vez tornam a servir, são tão novos na

doutrina como da primeira vez porque, embora o espanhol que vai com eles

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a seus povoados conforme está ordenado lhes recorde e repreenda, como não

têm temor dele, não é útil e respondem que os deixem folgar pois para isso

vão as suas casas, e todo seu fim e desejo é ter liberdade de fazerem o que

têm vontade, sem respeitar a nenhuma virtude, e vendo que isso é tão

contrário a nossa fé e quanto somos obrigados, por todos os modos e

maneiras do mundo possíveis, a que se busque algum remédio, tendo nós

alguns membros do nosso conselho e pessoas de boa vida, letras e

consciência, e obtida informação do outros que tinham muita notícia e

experiência das coisas da dita ilha e da vida e maneira dos ditos índios,

pareceu por muitas considerações que o mais proveitoso que no momento se

poderia prover seria mandar mudar a moradia dos caciques e índios para

perto dos vilarejos e povoados dos espanhóis, tanto porque com o contato

contínuo que com eles terão como pelo fato de ir ás igrejas nos dias de festa,

ouvir missa e os ofícios divinos e ver como os espanhóis o fazem e a

disposição e cuidado que têm consigo, terão de lhes ensinar e exercitar nas

coisas de nossa santa fé católica, está claro que mais depressa aprenderão e

depois de aprendidas não as esquecerão como agora, e se algum índio

adoecer, será brevemente socorrido e curado e se dará vida com ajuda de

nosso Senhor a muitos que por não saber deles e por não curá-los morrem, e

todos se livrarão do trabalho das idas e vindas que, por serem suas casas

longes dos povoados dos espanhóis, serão muito aliviados e não morrerão os

que morrem nos caminhos tanto por enfermidade como por falta de

mantimentos, e os tais não podem receber os sacramentos que como cristãos

são obrigados e lhes será dado se adoecerem nos ditos povoados, e as

crianças que nascerem serão logo batizadas e todos servirão com menos

trabalho e para maior proveito dos espanhóis por estarem mais

continuamente em suas casas, e os visitadores encarregados de visitá-los o

farão melhor e mais frequentemente e os proverão de tudo o que lhes falta e

não permitirão que tomem suas mulheres e filhos como fazem estando em

seus ditos povoados afastados e cessarão outros muitos males e danos que

aos ditos índios são feitos por estarem afastados que, porque lá são notórios,

aqui não são ditos, e lhes será muito útil tanto para a salvação de suas almas

como para o proveito e utilidade de suas pessoas e conservação de suas

vidas, por causa destas coisas e por outras muitas que poderiam ser ditas a

esse respeito, foi decidido que para o bem e remédio de todo o sobredito

sejam logo trazidos os ditos caciques para perto dos povoados dos ditos

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espanhóis que há na dita ilha e para que ali sejam tratados, instruídos e

olhados como se deve e sempre desejamos, mando que doravante se guarde e

cumpra o conteúdo que segue.31

A lei de Burgos aparece essencialmente negativa, devido ao fato de que a

colonização é uma conquista com os “direitos” das guerras de conquista, a começar pela

escravidão. A escravidão era vista com “bons olhos”, justamente porque se tinha em mente

que os índios eram incapazes de assumir suas responsabilidades e seu autodomínio.

Já o Requerimiento era dirigido ao povo e seus caciques antes do confronto

militar, para estabelecer os “critérios” de sujeição ou guerra justa. A intimação era dada,

exigindo que se tais se sujeitassem à autoridade do Papa e do Rei da Espanha e abraçassem a

fé cristã. A leitura do Requerimiento lhes era feita em latim ou em espanhol, só depois disso o

imperativo, a intimação é dada aos índios. Tal Requerimento é oficializado em nome de

“Fernão V da Espanha domador de povos bárbaros”. É esse divino domador que denota e faz

saber que “Deus uno e eterno criou o céu e a terra, e escolheu Pedro, para que de todos os

homens do mundo fosse senhor e superior (...) lhe dando todo o mundo como seu reino,

domínio e jurisdição”. E mais: “um dos pontífices passados32

fez a doação destas Ilhas e da

Terra Firme do mar oceano aos ditos Rei e Rainha”.33

Se assim fizerdes, fareis bem, e aquilo a que sois tidos e obrigados, e Suas

Altezas, e eu em seu nome, vos receberão com todo amor e caridade, e vos

deixarão vossas mulheres, filhos e bens livres sem servidão, para que deles e

de vós façais livremente tudo o que quiserdes e considerardes bom e não vos

compelirão a vos tornardes cristãos, salvo se vós, informados da verdade,

vos quiserdes converter á nossa fé católica, como fizeram quase todos os

habitantes das outras ilhas e, além disto, Sua Alteza vos dará muitos

privilégios e isenções, e vos fará muitas mercês. Se não fizerdes isso, ou

maliciosamente vos demorardes, certifico-vos que com a ajuda de Deus eu

entrarei com poder contra vós e vos farei guerra por todas as partes e

maneiras que eu puder, e vos sujeitarei ao jugo e obediência da Igreja e de

Suas Altezas, e tomarei vossas pessoas e as de vossas mulheres e filhos eu os

farei escravos, e como tais os venderei e disporei deles como Sua Alteza

31

SUESS, Paulo. A Conquista Espiritual da América. Petrópolis: Vozes, 1992. pp. 657-658. 32

Alexandre VI. 33

Da Espanha.

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25

mandar, e tomarei vossos bens e vos farei todos os males e danos que puder,

como a vassalos que não obedecem nem querem receber a seu senhor e a ele

resistem e contradizem; e protesto que as mortes e danos que resultarem

disso sejam por culpa vossa e não de Sua Alteza, nem minha, nem destes

cavaleiros que comigo vieram, e de como digo e requeiro peço ao escrivão

presente que mo dê por testemunho e assinado, e aos presentes rogo que

disso sejam testemunhas. Assinado pelo bispo de Palencia, pelo bispo frei

Bernardo, pelos membros do conselho e pelos frades dominicanos.34

Já o Diretório dos índios obviamente é posterior, mas vem no contexto de garantir

a liberdade para os índios no Brasil. Liberdade essa que maldosamente é tida por Mendonça

Furtado num linguajar malicioso que, ao defender a liberdade dos índios, não o faz por lhes

querer bem, mas para quebrar a “cadeia” que se encontra nas mãos dos jesuítas e inviabiliza o

progresso da colônia. No século XVIII a coroa portuguesa procurou reverter essa situação,

convertendo essa dinâmica econômica em benefício do reino, bem como ampliá-la, inserindo-

a no sistema de tráfico africano, e consequentemente, no sistema mercantil do Atlântico Sul.35

A questão indígena transforma o Brasil em um turbilhão dos interesses da Coroa

portuguesa, dos jesuítas e dos colonos. A Relação36

é instaurada à Bahia e imediatamente “o

caldeirão transbordou”. Os colonos portugueses conheciam de modo superficial as bases

morais e teológicas da política indígena, e mesmo a Coroa tentando limitar a encomienda e

reformar o repartimiento nas Índias espanholas, os senhores de engenho brasileiros ainda

achavam que a encomienda, em sua forma pura, poderia ser estabelecida no Brasil. Tal

opinião significava ignorar a defesa cada vez mais resoluta da liberdade indígena pela Coroa,

como expressavam as leis de 1587, 1595 e 1605.37

Por estes motivos, fica difícil estudar o século XVIII sem levar em conta os processos

de colonização desde a chegada dos europeus em solo americano. A mentalidade pouco

mudou em trezentos anos, a ponto de senhores de engenho, desconexos da realidade

internacional de sua época desejarem medidas políticas e econômicas em situações que

poderíamos chamar de anacrônicas, pois só seriam válidas duzentos anos antes,

aproximadamente.

34

SUESS, Paulo. A Conquista Espiritual da América. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 674. 35

Cf. RAYMUNDO, Letícia de Oliveira. http://www.almanack.usp.br/PDFS/3/03_informes_1.pdf. Último

acesso em 15/03/2013. 36

Tribunal Superior da Bahia, instituição judiciária e administrativamente estabelecida no Brasil em 1609. 37

SCHWARTZ, Stuart B., Burocracia e sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

p. 120.

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26

Enfim, a Igreja aparece nesta parte da História pela “porta” da economia e da política,

quando organiza o primeiro corpo de leis escritas nesta parte do mundo, mas fazendo uma

leitura a partir da doutrina, ou seja, sua influência está agora inserida principalmente no

campo político, mas também no econômico em que a partir dos princípios da fé cristã

católica, as leis que dizem relação a essas áreas são elaboradas. Em 1707 são promulgadas as

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que tem por objetivo, a partir da legislação

canônica, regulamentar a vida colonial em todos os seus setores, mas a partir da realidade

eclesial. Sua capacidade de normatização abrange até a gana dos senhores de escravos, negros

ou índios, proibindo o trabalho escravo em dias de domingo e dias santos38

. Ora, se tal

mandamento foi feito, é porque havia abusos. Se chega a virar lei, é por haver senhores que

obrigassem escravos a violar o dia do Senhor. No entanto, por não haver uma forma de

executar civilmente tais determinações, na defesa dos direitos fundamentais dos índios e

negros, é uma lei difícil de por em prática. Em certa medida, por meio de abstração, é notória

a busca pela legitimação do trabalho escravo indígena.

Assim, é também neste contexto que se entende, num Estado a ser construído, a

mudança da Inquisição de um departamento eclesial para um braço armado do poder civil.

Além disso, a ausência de forças controladoras da ordem social na Colônia era um problema a

ser resolvido.

1. 3 aproximação do universo religioso colonial

A partir do século XVIII, uma santa ganhou um prestígio muito especial na

colônia luso-brasileira: Rita de Cássia, a santa das ‘causas impossíveis’. Seu

culto se espalhou rapidamente em várias vilas e cidades, onde surgiram

capelas e igrejas em seu nome; diversas localidades também foram

colocadas sob sua proteção.39

A mentalidade religiosa do século XVIII não se dá de forma homogenia no mundo

católico. Enquanto na metrópole o tom é dado pelo Iluminismo, nas colônias a questão é de

sobrevivência. A devoção aos santos na colônia é bastante difundida a ponto de surgir uma

38

Cf. VIDE, S. M. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Edusp. 2010. Título XIII §379. 39

AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Rio de Janeiro: Vozes,

2005. p. 264.

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27

‘teologia do favor’40

que consiste justamente no fato de acreditar que em razão dos santos

estar mais perto de Deus, eles podem assim, obter com mais facilidade os favores celestes ou

graças para os pobres mortais.41

Condenados a viver na terra devido ao pecado original, os

homens tinham perdido qualquer direito de serem beneficiados por Deus durante esta vida e

depois da morte.42

De acordo com Arilda Inês Miranda Ribeiro, fora a confusão étnica dada no período

colonial, por aproximadamente trezentos anos, a população feminina branca era composta de

“órfãs, ladras, prostitutas, assassinas, alcoólatras, entre outras. As que não fariam falta em

Portugal” 43

. Soma-se a isso o fato de homens e mulheres vindo com a intenção de voltar

depois de explorar a terra, sem a intenção de criar vínculos44

. A colônia pode ser encarada, a

partir daí, com um imenso purgatório.

Um testemunho sobre a situação da vida colonial, de modo particular no Nordeste, que

é objeto desta parte do estudo, vem da pena de d. Joaquim Ferreira de Carvalho, de 1799,

encontrado no rico trabalho de Pollyanna Gouveia de Mendonça45

: “Tenho passado pelo

desgosto de não achar neste bispado nem letras, nem religião, nem costumes, e não havendo

as primeiras, a falta da segunda e da terceira é consequência, sendo entre todos os mais

escandalosos os religiosos”.

O Concílio de Trento46

que tocara em questões delicadas que foram levantadas

pela Reforma Protestante e também pretendia tomar pulso de todo um conjunto de reformas

práticas, cuja falta, dolorosa e ressentida tinha gerado ou ao menos motivado o rompimento

da cristandade após a grande crise que se delongava pelos séculos XIV- XVI. Entre essas

questões nasceu a preocupação com vida do clero, que nem sempre se revelava como a mais

40

Cf. ib., p. 266. 41

Ibidem. 42

. AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Rio de Janeiro: Vozes,

2005. p. 267. 43

RIBEIRO, Arilda Inês Miranda. Mulheres e Educação no Brasil colônia. Campinas: Ed. UNICAMP. 1987. p.

17. 44

Ib. p. 33. 45

MENDONÇA, P. G. Parochos imperfeitos. 2 Tese de Doutorado em História UFF. Rio de Janeiro 2011. 341

p. 35 46

“A reforma moral e intelectual do clero constitui uma das preocupações que mobilizam os sacerdotes reunidos

no Concílio de Trento (1545-1563). Nesse campo, a resposta à doutrina do sacerdócio universal, defendida pelos

seguidores de Lutero, foi a revalorização da figura do padre e a reiteração do celibato clerical, instituído para

toda a Igreja pelo IV Concílio de Latrão (1215). Procurava-se, assim, promover a formação de um clero mais

austero em seus costumes, mais bem preparado intelectualmente, mais coeso enquanto corpo social

hierarquizado e mais obediente a Roma. Para realizar essa tarefa foram mobilizados os bispos, que tiveram poder

reforçado, e acionadas as justiças eclesiástica e inquisitorial, para punir as condutas consideradas desviantes.

Como afirmou Delameau, ‘a história da Reforma católica demonstra que o novo esforço realizado para

evangelizar as massas não foi frutífero até que o episcopado decidisse velar mais ativamente que antes pelo clero

paroquial’”. FEITER, Bruno, SOUZA, Evergton S., A Igreja no Brasil, Normas e práticas durante a vigência das

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora Unifesp, 2011. p. 147.

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católica. Assim, nasce com Trento o seminário para a formação do clero. Questão essa que

acompanha a Igreja praticamente, por assim dizer, desde sempre, pois os limites do clero

sempre foram motivo de grandes sofrimentos e cismas para a Igreja.

Apesar dos esforços de membros da Companhia de Jesus, o Concílio de

Trento não teve quase nos dois primeiros séculos de vida colonial luso-

brasileiro. Apenas na primeira metade do século XVIII surgiu um novo

impulso por promover a doutrina tridentina, especialmente através das

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, promulgadas em 1707

por D. Sebastião Monteiro da Vide; alguns anos depois também o moralista

baiano Nuno Marques Pereira tentou difundir esses princípios em sua obra

Compêndio Narrativo do Peregrino da América; mas os resultados não

foram muito expressivos.47

No fundo das questões do Concílio a questão crucial era a da centralização da

hierarquia católica, num mundo moderno que se expandia, processo esse que hoje

denominamos solenemente de globalização. Os bispos começaram a se ocupar de sua própria

reforma. Começaram abandonando o dever de “residência” na diocese. Pois em geral os

bispos nobres viviam em seus castelos, palácios ou vilas familiares, governando e extorquindo

as dioceses, tendo como mediador, administradores convenientes e submissos. Visavam ainda

à questão de que os pastores deveriam estar junto de seus rebanhos, assumindo diretamente a

responsabilidade da pregação, da catequese e da administração dos sacramentos. Esse era o

modelo mínimo de assiduidade que o Concílio Tridentino visou implantar.

Com essa impostação tridentina, a formação da sociedade brasileira continuou

tendo uma inspiração de viés medieval, isto é, recebendo uma tradição teológica que tem

como base a noção de Cristandade, com a qual passou a ser identificado também o reino

lusitano. Igreja e Estado são apresentados como duas realidades que devem permanecer

juntas. Portanto, neste momento a reflexão teológica passa a ser feita com “o chão lusitano”

sendo este uma expressão da face católica.48

Esse estilo de teologia sendo assimilada a um

reino católico, traz consigo a ideia do monarca ser alguém destinado por Deus e também uma

47

AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Rio de Janeiro: Vozes,

2005. p. 8. 48

Cf. Ibidem.

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concepção de eleição49

do povo português, isto é, povo eleito por Deus para levar a fé católica

até o fim do mundo.50

A concepção da Igreja como Cristandade constitui a base de toda a

construção teológica vigente no reino lusitano, e transplantada para a colônia

brasileira. Ao longo dos três primeiros séculos de colonização lusitana

perdurou no Brasil o modelo de Igreja – Cristandade. Tratava-se de uma

reviviscência da concepção de Igreja que perdurara na Idade Média, e cujas

origens remontavam ao século IV, quando Constantino assumira o governo

do Império Romano, e se constituiu como um defensor e promotor da

religião cristã.51

Tendo como ponto alto de sua expansão colonizadora a história lusitana fora

iniciada através do território africano. Tendo um projeto de conquista territorial que tinha

raízes profundas na tradição ibérica, quando os espanhóis iniciaram a reconquista do território

dominado pelos árabes. Tanto o projeto hispânico como o lusitano de expansão territorial

foram identificados com o conceito teológico de expansão da fé, principalmente através da

luta contra os mouros, tidos como inimigos de Cristo.52

Portugal assumirá a vertente teológica da Península Ibérica que afirma que a

propagação da fé deve ser feita para que os infiéis tenham acesso à salvação e nenhum venha

a se perder, mesmo que isto signifique que seja necessário ser realizado a força pelos reinos

católicos.53

Sob essa perspectiva, a vitória sobre os mouros era a vitória da cruz que se

sobrepunha à meia-lua islâmica, difundindo assim ao mesmo tempo a civilização cristã.54

Então, aqueles da Península Ibérica são tidos como defensores da fé cristã e lutadores

corajosos, merecendo deste modo todo o apoio da Santa Sé.

A monarquia portuguesa, por conseguinte, é exaltada pelo papa por sua

atuação nas novas terras conquistadas, no sentido de difundir a fé e

49

O conceito de escolha divina não era privilégio dos portugueses, mas uma concepção teológica que fazia parte

da Península Ibérica. cf. ib., p. 37. 50

Cf. ib., pp. 9-11. 51

Ib., pp. 15-34. 52

Ib., p. 36. 53

O famoso teólogo espanhol Juan Gines de Sepúlveda defende tal argumentação e a explicita. cf. AZZI,

Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Rio de Janeiro: Vozes, 2005. pp.

39-40. 54

Ib., p. 41.

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promover a salvação das almas, responsabilizando-se, inclusive, pela

celebração do culto católico. Trata-se, portanto, de uma verdadeira missão

religiosa, e como tal reconhecida oficialmente pelo supremo magistério

eclesiástico. Por essa razão, o representante de Cristo confere a D. Afonso e

ao Infante D. Henrique todo o direito de dominação sobre os sarracenos e

demais fiéis, bem como sobre as terras por eles habitadas.55

A conversão do gentil será tida sempre como algo necessário para a sua salvação,

de modo que aquilo que for feito será compreendido como que para o bem deles. No mesmo

patamar serão vistos os índios no Brasil, muito embora o Brasil não entenda a concepção de

infiel como mouro, pois isto foi trazido na mala dos portugueses para a colônia. A expressão

de fé indígena será vista pelos portugueses como algo de expressão diabólica.56

Substancialmente, o quadro religioso no Brasil neste sentido é ‘bem calmo’ congregando em

seu meio diversas realidades de fé que, mesmo perseguidas e condenadas, apontavam para um

futuro de tolerância aparente inimaginável.

Tendo também a presença dos cristãos novos57

que foram enviados para cá, tendo

em vista que a maioria daqueles que vinham para o Brasil não tinham fama muito boa, isto é,

não faziam muita falta em Portugal. Todavia, o horizonte de fé do Brasil era todo com tecido

português que recebera influência dos espanhóis levando adiante a expansão da fé como

símbolo de um povo, uma nação. Portugal assume então, um caráter escatológico de povo

eleito a espera da salvação.

A vida que teologicamente era tida como “dom de Deus” na colônia passou a ser

“um bem em vista do colonizador”, ou seja, tudo era acomodado com as mais “santas”

argumentações teológicas para favorecer a vida dos colonos. Para que tudo atingisse o seu

objetivo de tirar proveito de tudo o máximo possível, mesmo com prejuízo daqueles que eram

tidos como “imagem e semelhança de Deus”, na colônia a imagem construída de Deus fora

outra, consistia justamente em uma concepção em detrimento dos povos “gentios”. Para

legitimar as arbitrariedades se fazia uso do direito de guerra como se tudo ali estivesse à

disposição dos colonos. Assim sendo, do mesmo modo que se condenou a visão de fé dos

55

Ib., pp. 44-62. 56

Ib., pp. 63-93 57

“A perseguição e segregação dos judeus por parte das autoridades cristãs teve início em fins do século IV,

quando a crença em Jesus tornou-se oficial no Império Romano”. ib., p. 109; “Considerados como algozes do

Filho de Deus, os judeus passaram a ser vistos como a expressão da maldade humana. Por isso, no idioma luso-

brasileiro criou-se o verbo judiar para indicar a prática de maldade, e o substantivo judiação para definir esse

próprio ato”. Ib. p. 110.

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índios, posteriormente foram feitas as mesmas coisas aos escravos negros e suas religiões de

matriz africana.

Pelo que se vê, a paisagem pouco ou nada mudou ao longo do século. Se o campo

da profissão de fé não encontrava espelho na Europa, no campo da disciplina o procedimento

não era diferente. Segundo Mendonça, no período de um século, por 63 anos a sede do

bispado do Maranhão ficou vacante58

. O material humano é o mesmo, ao menos a grande

maioria, durante o período colonial inteiro. É diante de um ambiente amplamente hostil que se

dá a evangelização deste período. Diferentemente da metrópole, onde cada qual tem o seu

papel definido na sociedade, os elementos novos das etnias negras e indígenas, com ampla

variedade dentro de seus próprios grupos, são somados a este universo peculiar colonial, pois

trazem consigo não só sua diferença física, como também o seu imaginário e seus valores

culturais. Tudo isso se funde por aproximadamente 300 anos na colônia. Uma vida bruta.

Num lugar em que as pessoas estão para tirar o máximo de proveito da terra,

longe das autoridades metropolitanas e de vínculos morais familiares, qualquer elemento que

cheire prejuízo se torna uma séria ameaça. Então, as discussões tidas como iluministas não

tinham um terreno fértil na colônia, pois a sobrevivência numa terra sem lei exige mesmo

outro tipo de discurso, ou seja, a vida gritava mais alto.

A religiosidade popular assumirá um rosto muito particular aqui no Brasil: teremos

muito santo (devoção) e pouca oração, as novenas terão aqui grande propagação. A religião

não compreendida ganha ares de práticas supersticiosas. A prática dos jesuítas tinha uma

mística diversa, isso desde os primeiros colonos. Sobretudo as duas devoções que vão marcar

a sua pastoral: o Sagrado Coração de Jesus como símbolo da caridade, do amor a Deus e ao

próximo; e Nossa Senhora da Boa Morte, que oferece um pouco de transcendência às pessoas

que vivem apenas voltadas ao enriquecimento a qualquer custo, sem levar em conta modo

como a pessoa deve estar no dia do encontro com Deus na hora da morte. Tais elementos vão

contribuir para inculcar valores cristãos em sertanejos embrutecidos pela realidade da vida. O

dado do sagrado é algo que permeia a vida de cada pessoa, pois esta foi criada aberta ao

transcendente.59

58

MENDONÇA, P. G. Parochos imperfeitos. 2 Tese de Doutorado em História UFF. Rio de Janeiro 2011. p. 37. 59

A fé que um dado antropológico que condiciona a vida de cada pessoa, mesmo que esta diga que não tem fé,

ou mesmo que não acreditam em Deus. Deste modo, o crer hoje tem a necessidade de ser re-contextualizado, ou

seja, não somente se o crer é racional, mas se tem sentido. E para tanto, não partimos do zero, mas de uma

Tradição, e assim, um crer que cai do céu é impensável hoje. Já que a fé é um dado antropológico, como

distinguir então, a fé assim chamada natural da fé revelada? Por exemplo, o cristianismo agrega valores a esta fé

primeira, isto é, agrega um critério e uma forma. Pois, dizer fé somente, é dizer um desenvolvimento

antropológico, já colocar o adjetivo cristão, significa dar um critério de fé. Essa é uma diferença epistemológica

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É possível estabelecer, didaticamente, uma fronteira entre dois universos do Brasil

Colônia: o campo da civilização (algo que gira em torno de um terreno burocrático, herdado

da metrópole) e o campo indígena. Alguns missionários começarão a deixar os índios viverem

a sua vida ‘primitiva’ e irão se dedicar aos colonos. Porém, os índios continuam ali a espera

de alguém que lhes estenda a mão e não somente queira trazer ‘a verdade’ para eles. Verdade

esta que em séculos anteriores se mostrou dolorosa para eles e para os negros e por muitos

anos em diante ainda. Verdade que antes de qualquer coisa não era que os índios estivessem

pedindo algo, mas somente tentando fazê-los compreender que eles eram índios, nem mais

nem menos, ou seja, mereciam ao menos um pouco de respeito. As suas expressões não eram

negação do mundo do branco, nem suas crenças coisa do diabo. A visão de mundo era

diversa, pois seus valores também eram outros.

A ocupação do território brasileiro por parte dos lusos não foi feita de forma

pacífica. Muitas tribos indígenas não se conformaram ao se verem privadas

das regiões que então ocupavam, e passaram a reagir com violência: ataques

a engenhos e fazendas, roubo de animais e objetos, morte de colonos.60

Muitos missionários aprovavam esse modo violento de proceder da ocupação

portuguesa, e muitas vezes eram eles a incentivar por meio dos governadores e capitães as

“guerras santas” contra os índios. Já a sobrevivência indígena depois da guerra tinha como

condição a adesão da catequese e sua posterior conversão à fé católica. A situação era

conversão e submissão ou a morte, de modo que muitos preferiam a morte para não viver

naquele pandemônio que se tornara a colônia depois da chegada dos espanhóis e portugueses

na América. É importante salientar que não foram todos os missionários que tanto na América

espanhola como na portuguesa eram a favor d’aquilo que se fazia com os índios, alguns

inclusive lutaram contra todo esse modo miserável de ação.61

fundamental. Posto isto, se compreende que toda pessoa em todo temo e lugar, é uma pergunta aberta, porém,

não definitivamente, pois sua resposta se encontra no divino. Para um estudo sobre esta perspectiva, Cf. RUBIO,

A. G. Elementos de Antropologia Teologica. Petropolis: Vozes. 2009. p.104. 60

AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Rio de Janeiro: Vozes,

2005. pp. 128-129. 61

Desde fins de 1515, sua vida se torna um vaivém entre os dois Mundos, o Velho e o Novo. Os objetivos e

motivos desses deslocamentos e do total empenho de Las Casas na plena força de seus trinta anos se poderiam

condensar neste projeto imenso e fecundo: discernir as modalidades e os caminhos de uma colonização

verdadeiramente humana, para o bem dos espanhóis e sobretudo dos índios, unindo-os numa rede de

solidariedade fraterna. cf. JOSAPHAT, Frei Carlos. Las Casas: Todos os Direitos para todos.São Paulo: Edições

Loyola, 2000. p. 70.

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Então, a condição religiosa do continente é marcada pela confusão do papel da

Igreja na missão. Mesmo vindo para anunciar a fé católica, sinônimo de evangelização no

período, a Igreja, em suas diversas instituições religiosas e diocesanas, acabou sendo um

instrumento de domesticação dos índios, civilizador dos colonos e concorrente econômico da

Coroa, tomando medidas as mais das vezes contrárias ao próprio Evangelho, como denunciam

Antônio Vieira, Bartolomé de Las Casas, Gabriel Malagrida, entre outros.

1.4 A vocação da Inquisição e seu papel no período colonial

Na Europa do século XIII, não havia a hegemonia cultural por todo o continente.

Devido às grandes distâncias, à falta de formação do clero, falta de matérias de leitura, enfim,

por diversos motivos, a cristandade não possuía uma interpretação igual das fontes da fé

cristã. As interpretações divergentes começaram a ganhar uma proporção que comprometia a

unidade religiosa. Exemplo disso são os albigenses, uma seita de cunho puritano e dualista

que não aceitava o matrimônio e a riqueza deste mundo, oriunda do sul da França, em clara

resposta às condições abusivas que o cristianismo de então se encontrava.

A heresia, já pelo fim do século XII, começou a propagar-se com rapidez tão

assustadora, que punha em risco não só a fé cristã, mas também a ordem

social. (...) Reuniu-se, em 1184, o sínodo de Verona, onde Lúcio III e

Frederico I baniram os hereges e seus fautores e ordenaram aos bispos que

fizessem vistorias pelos lugares suspeitos. As decisões de Verona foram

confirmadas por diversos outros sínodos e, sobretudo, pelo 4º concílio de

Latrão. 62

Foi neste século que surgem ordens mendicantes, por inspiração de São Francisco e de

São Domingos; a reforma dos mosteiros, como a de Cluny, veio pouco antes, mas como

resposta à decadência da vida regular. Também houve outras iniciativas não muito ortodoxas,

como os albigenses e as beguinas de reformar o cristianismo. Como evitar tais desvios destas

iniciativas, muitas das vezes promovidas sem má intenção e motivadas por uma interpretação

errônea da tradição, já que o acesso à Sagrada Escritura era restrito?

62

Cf. ROMAG, D. Compêndio de História da Igreja. V 2. Petrópolis: Vozes, 1950. p 210-211.

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A Igreja e o Estado possuem uma interação. As iniciativas eclesiásticas, desde Carlos

Magno, deveriam ser financiadas pela Coroa. E com esta não poderia ser diferente. As regiões

dos albigenses não eram caracterizadas pela paz, pois a ideia de Estados nacionais não

significa uma existência de ordem pública em aldeias e vilarejos, muitas vezes marcados pela

miséria e pelas pestes. A justiça era feita pelas próprias mãos, com base em julgamentos

públicos, sem direito de defesa. Assim, tal presença de inquisidores deveria ter o aparato do

Estado para poder ter acesso a esses lugares.

Frederico II, por ocasião da sua coroação imperial (1220), ofereceu à Igreja

o apoio secular e estabeleceu, em diversos decretos, a pena de morte contra

os hereges. O mesmo fez Luís IX da França (1229). Depois da guerra dos

albigenses, foi organizado, finalmente, no sínodo de Tolosa (1229), um

tribunal próprio para atalhar a perversidade herética e, por bula de 1231,

instituiu o papa Gregório IX a Inquisitio haereticae pravitatis.63

Henrique Mendes Lucarelli, em seu estudo sobre as visitações do Santo Ofício no

período colonial, apresenta uma intuição acertada que parece coerente para interpretar até

mesmo este momento da história. Para ele, “a vida pública aqui é apresentada como sinônimo

de política, dessa maneira, é nas suas narrativas que encontro a proximidade capaz de unir a

história e a narração biográfica”64

Assim, a política é não só um escambo entre forças

institucionais, mas uma encarnação das escolhas dos sujeitos concretos. Isto para dizer que a

mancomunação entre interesses Igreja e Impérios vai além de acordos baseados na intenção

de salvaguardar o Evangelho e seus valores, de modo que as mais das vezes, salvaguardar o

Evangelho significou ir por cima dele mesmo.

Se for ver bem, algum tipo de inquisição episcopal, no sentido de buscar aqueles que

erram e trazê-los à ortodoxia, existia desde o período da Igreja pós-apostólica. Os castigos

temporais, inclusive a pena de morte, passaram a existir com o Código Justiniano, com

hereges adeptos do maniqueísmo, do donatismo e do priscilianismo.65

Contudo, ao longo da Idade Média, tal imagem vai ganhando um corpo e uma

característica simbólica não projetada no começo, a ponto de que, para ganhar vida, precise se

63

Cf. ROMAG, D. Compêndio de História da Igreja. V 2. Petrópolis: Vozes, 1950. p. 210-211. 64

LUCARELLI, H.M. Notas iniciais sobre a carreira dos Inquisidores que visitaram a America Portuguesa. In

www.encontro2012.sp.anpuh.org/anais/17/1342391644_ARQUIVO_Anpuhtexto-HenriqueMendes

Lucarelli.pdf. Último acesso em 23 de abril de 2013. 65

ROMAG, D. Compêndio de História da Igreja. V 2. Petrópolis: Ed. Vozes, 1950. p 211.

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revestir de sistemas e estruturas, além de atribuir significados a seus gestos e ritos, aponto de

crescer, ganhar vida própria, alcançar a maioridade e se emancipar do seu passado e servindo

como braço armado do Estado de direito por volta do século XV, de tal modo que algumas

coroas queiram instituir em seus territórios uma Inquisição própria, mais ligada ao poder do

Rei do que ao do Papa. Este foi o caso das Inquisições ibéricas: tanto Portugal quanto a

Espanha vão criar a Inquisição como uma espécie de sérico de inteligência do Estado, não só

em suas terras como também em seus domínios.

A diferença é que, ao contrário de sua vizinha Espanha, Portugal não cria em suas

colônias um tribunal de Inquisição. Aqui no Brasil, por exemplo, não havia um tribunal. O

que houveram, foram quatro visitas do Santo Ofício. A primeira (1591-1595, na Bahia e em

Pernambuco) e a segunda (1618, na Bahia), no momento em que Portugal e Espanha estavam

sob a égide de um monarca espanhol. As outras, como controle das partes mais ao sul da

colônia e última na segunda metade do século XVIII, no Grão Pará.66

O trato do Santo Ofício era constituído de todo um ritual, de um processo. Aqui no

Brasil, geralmente o processo durava cerca de trinta dias. A chegada tinha um algo de teatral.

Chegava a comitiva com o estandarte à frente, portando em si o letã da Inquisição:

“Misericórdia e Justiça”. As pessoas teriam um tempo para virem se confessar

voluntariamente, antes que alguém viesse fazer alguma denúncia à mesa do inquisidor. O

tema da bandeira inquisitorial poderia ser entendido assim: misericórdia a quem viesse se

confessar voluntariamente e justiça para quem escondesse algum delito contra a fé, à moral e

os bons costumes. Ao que parece, o foco da vigilância de consciências era a busca por

cristãos-novos, e o confisco de seus bens, até pela relação que tinham com o dinheiro e a

usura.67

Isso deixou um rastro de delação por onde a visitação passava. 68

A Inquisição começou na história da Igreja como um movimento de origem acadêmica

com a finalidade de conter erros e abusos dos albigenses, tanto no nível moral quanto no

doutrinário. Tal movimento vai ganhando corpo ao longo da Idade Média. Como o contexto é

66

Cf. AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Rio de Janeiro:

Vozes, 2005, p. 117. 67

KNOWLES D.; OBOLENSK, D. Nova História da Igreja. Petrópolis: Vozes, 1974. p 405-413. Neste

capítulo, não é exagero transcrever estas informações dos autores: “A raça judaica é um caso único na história da

Europa, por sua teimosa sobrevivência e difusão em todas as épocas e por sua coesão e caráter fortemente

marcado. Em determinadas regiões e épocas, como na França merovíngia, os judeus tomaram parte na

exploração dos recursos naturais dos campos; mas seus talentos naturais em atividades financeiras, o sistema

feudal da Europa e, mais tarde, as restrições legais e canônicas, se juntaram para levá-los a concentrarem-se nas

cidades, favorecendo a aplicação de seus talentos em atividades financeiras e, mais tarde mercantis. Sempre que

gozaram de paz foram, e são ainda hoje, capitalistas e agiotas; bastava este fato para provocar desconfiança e

inveja numa sociedade que não tinha noções da função e do uso do dinheiro como capital.” p. 409-410. 68

Cf. ib. p. 118.

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o da união entre Estado e Igreja, tais iniciativas acontecem com o patrocínio do Estado. O que

começa como movimento acadêmico vai, aos poucos, se tornando um braço do Estado de

controle social e político. O desvirtuamento chega a tal ponto, que nos reinos ibéricos, por

exemplo, a Inquisição ganha autonomia em relação à Igreja, ficando sob comando das Coroas,

sendo elas conhecidas, principalmente a partir do século XV, por sua violência em métodos

de arrancar das pessoas o que a Coroa gostaria de ouvir.

Já no século XVIII, pelo tempo de Pombal, a Inquisição já tinha toda uma estrutura de

braço armado da Coroa. De modo que Paulo de Carvalho, irmão de Pombal, assume a

presidência deste órgão estatal, com a intenção, como se verá, de facilitar o uso simbólico

desta instituição para atacar a Companhia de Jesus na pessoa de Malagrida.

Assim, a Inquisição servirá como instrumento do Estado para controlar a ordem. A sua

secularização, sobretudo nas coroas ibéricas, vai se voltar para julgar iniciativas nascidas até

mesmo no seio eclesiástico, como no caso dos jesuítas e, mais particularmente, de Malagrida.

Por ter um maquinário próprio de força e de burocracia, prestará valioso auxílio na beira do

mundo, visto que, num regime absolutista, não há divisão de poderes, estando todas as forças

sujeitas à vontade do rei, ou de que ele delegar.

1. 5 A opção por um modelo de formação sacerdotal no século XVI

O padre missionário do período colonial era formado num contexto de Igreja, que

acontece num processo histórico. Vultos como Vieira, Malagrida, Anchieta oferecem uma

impressão da qualidade da formação presbiteral no período pós tridentino. O perfil desejado

do candidato às ordens sacras, sobretudo da Companhia de Jesus, estava dentro deste

processo, já que a formação dos ministros eclesiásticos sempre foi uma preocupação para a

Igreja. Desde os primórdios há testemunhos a esse respeito, dos quais se tem imagens do

Antigo Testamento, como a formação de Samuel, e do Novo testamento, como a convivência

dos Doze com Jesus, Timóteo junto a Paulo, como na Igreja do primeiro milênio.

O problema da formação presbiteral está intimamente relacionado a aspectos da

formação cristã propriamente dita. Depois da era apostólica, esta discussão vai aparecendo na

medida em que os cristãos vão entrando em contato com um mundo não só hostil, mas ao

mesmo tempo interessante. Não é à toa que a palavra kósmos pode ser traduzida não só como

mundo, universo, como também enfeite, adorno. S. Justino abre caminho rumo à Filosofia.

Taciano combate este caminho em seu escrito “Discurso contra os Gregos”. Mais à frente,

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dois teólogos também se debruçam sobre o assunto: Basílio e Crisóstomo. Neles está presente

o debate do papel da formação grega, chamada de Paideia, no contexto formativo do jovem

cristão.

Este modelo formativo é constituído por dois blocos de conhecimento: o trivium

(gramática, lógica e retórica) e o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música),

que formam o estudante nas artes liberais, isto é, naquilo que é próprio do homem livre. As

obras são: Carta aos Jovens de como tirar proveito da Literatura Pagã, de Basílio, e Sobre a

Vanglória, de Crisóstomo. Pelos enunciados, já se percebe a posição que cada um deles tem

sobre o assunto. Dos dois, a proposta de abertura é a que ganha mais aceitação na Igreja, que

assumiu, como herdeira do mundo clássico em meio ao universo bárbaro, a formação liberal,

sobretudo para os que queriam entrar nas fileiras sacerdotais.69

Diferentemente de Crisóstomo, que vê no estudo dos clássicos apenas alimento para a

vaidade, além do uso das palavras para expressar obscenidades, o papel destes na formação

cristã, na defesa de Basílio, é que eles podem auxiliar o jovem a ter critério. Em sua

linguagem, usa a imagem da abelha que, mesmo pousando sobre todas as flores, sabe

distinguir o veneno do mel.70

Tendo isto em mente, com a ruína do Império em 476, a Igreja assume a herança da

Roma pagã como a espoliatio egyptorum71

, que aconteceu com as bênçãos do próprio Criador.

Nesta licença, a formação vai caminhar, ao longo da Idade Média, em dois certames: a

formação escolástica, junto às catedrais, que visam a formação de filósofos, teólogos,

canonistas e até mesmo clérigos, e uma formação monástica, que visava a educação do jovem

à vida comunitária. A seleção de textos para compor as bibliotecas destas diferentes

instituições tinha por critério seus objetivos, mas tanto uma como a outra se reportava à

tradição pagã, às Escrituras e aos Padres.

Numa Europa de ambiente predominantemente rural, a formação dos padres nestes

moldes, obviamente, não alcançou uma extensão universal. A confecção de livros era cara e

rara, além de não parecer uma prioridade em tempos de reestruturação da civilização

69

LECLERCQ, J. O amor às Letras e o desejo de Deus. São Paulo: Paulus. 2012 70

BASÍLIO MAGNO, Oratio ad adolescentes . Paris: Les Belles Lettres. 1935. p. 46. A citação segue-se em

grego “ k

” Tradução: é inteiramente da imagem da abelha que devemos tomar partido destas obras.

Elas não vão da mesma forma a todas as flores; além disso, àquelas sobre as quais voam, não tentam transportar

tudo: pegam apenas o que é útil ao seu trabalho e, quanto ao resto, adeus! 71

Cf. Ex 3, 21 ss.

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ocidental frente às investidas bárbaras e suas antigas práticas pagãs. Fora de um contexto de

paz, pensar em formação intelectual e teológica não entra nas listas de prioridades.

Neste contexto, a formação sacerdotal, segundo testemunho de Bento XIV, sempre

existiu, não com o mesmo rosto, mas com a mesma finalidade. A respeito deste tema, cita o

Segundo Concílio de Vaison, de 529, que diz:

É autorizado, a todos os presbíteros que estão instituídos nas paróquias,

segundo o salutar costume que sabemos ter sido instaurado em toda a Itália,

acolher em suas casas os jovens leitores não casados, alimentando-os como

bons pais espirituais, a fim de instruí-los no canto dos salmos, nas leituras

divinas e na lei do Senhor, para que desse modo preparem para si próprios

dignos sucessores72

.

Às vésperas da Idade Média, no Império carolíngio, esta instituição doméstica de

ensino cresce e ganha força, com a determinação do Concílio de Tours, em 813, insiste que

ninguém seja ordenado sem que tenha passado por essas casas de disciplina eclesiástica:

“maneat in Episcopio, discendi gratia officium suum, tandiu donec possint et mores et actus

ejus animadverti73

”. Várias outras decisões conciliares ou sinodais apontam para a formação

sacerdotal, quando consultados. Isso mostra que a instituição do Seminário como casa de

formação não começa com Trento, muito menos com São Carlos Borromeu. A este coube a

universalização desta medida, visto que a proposta de Lutero ganhou adeptos não só entre

príncipes, como também dentre o povo mais simples e do clero. O cisma ocidental deu a força

que nem as práticas pagãs, nem o confronto com os mouros conseguiram dar ao aspecto da

formação dos futuros padres.

Formado este modelo de Seminário, com o propósito de combater o movimento

protestante, logo a Igreja o coloca nas mãos de religiosos, sobretudo os inacianos. O plano de

estudos jesuíta era formado pelos Exercícios Espirituais, as Constituições da Ordem, o Ratio

Studiorum, o Trivium e o Quadrivium, Humanidades, Filosofia e Teologia. Com variações,

este programa de estudo visava formar o inaciano para carregar consigo o maior volume de

72

‹Bento. XIV, Synd. Dioec. vol. I, lib. V. cap. XI apud El Seminarista. Vergara: El Santisimo Rosario, 1905

p.09 "sucessoresPlacuit, ut omnes Presbyteri qui sunt in Parachiis constituti, secundum consuetudinem, quam per

totam Italiam satis salubriter teneri cognovimus, juniores Lectores, quantoscumque sine uxore habuerint, secum

in domo, ubi ipsi habitare videntur, recipiant; et eos quomodo boni patres spiritaliter nutrientes, Psalmos parare,

Divinis lectionibus insistere, et in Lege Domini erudire contendant, ut et sibi dignos successores provideant, et a

Domino proemia aeterna recipiant.” 73

Cf. Bento. XIV, Synd. Dioec. vol. I, lib. V. cap. XI. apud El Seminarista. Vergara: El Santisimo Rosario,

1905 p.09

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informação possível, já que, devido aos problemas de deslocamento nas missões, livros eram,

de modo geral, inviáveis.

A admissão do jovem, de acordo com Cum adolescentium aetas, deveria se dar em

torno dos onze anos. A partir daí, começava o processo de formação que só terminaria por

volta dos vinte e cinco anos. A base humanística é bem sólida, como pode se ver nos sermões

de Antonio Vieira, em seus escritos e, de forma indireta, em sua defesa perante o tribunal do

Santo Ofício. Cita de memória trechos da Sagrada Escritura, autores clássicos, Padres da

Igreja, autores medievais, enfim, mas sempre em fundamentação de sua postura. Este poder

de articulação das ideias é fruto de sua capacidade com os elementos fornecidos pela sua

formação. A formação sacerdotal, neste período específico, contempla todos estes elementos

da cultura recebida da antiguidade em função da construção do homem.

Portanto, a formação cristã, neste caso específico, para o sacerdócio ministerial, está

ligada ao seu tempo e ao seu espaço. Neste período, a opção de formar padres está ligada a

um modelo de perfeição cristã vindo da Idade Média, que esteja disposto a imitar a Cristo em

todos os sentidos, buscando as coisas do alto e, no caso inaciano, fazer tudo ad maiorem

gloriam Dei. Padre Malagrida é formado neste contexto, numa época que se vê herdeira de

toda uma cultura ocidental milenar. Formar padres era formar homens que pudessem levar em

si tal tradição, sobretudo humanística. Textos clássicos de autores pagãos, de Padres da Igreja,

elementos das artes liberais e científicas, tudo isto deveria estar dentro da alma de um

missionário que, dependendo do lugar de apostolado, não teria nada disso em mãos. Neste

sentido, a formação jesuítica e até mesmo a iniciativa dos grandes Seminários se servirão bem

deste modelo a partir do século XVI.

Entretanto, na contextualização do século XVIII, sobretudo no que se refere à relação

Igreja-Estado, quando pretendemos situar a vida do padre Malagrida, a formação por ele

recebida lhe proporciona um posicionamento no mundo. A efervescência cultural do

Iluminismo e a hegemonia do governo pombalino marcam o conturbado pano de fundo onde

se encontra o padre Gabriel Malagrida. Os jesuítas, simbolizados sob a figura de Malagrida,

serão taxados pelo iluminismo pombalino como obscurantistas, como a razão do atraso de

Portugal. É nesta perspectiva que este capítulo se justifica. De fato, quando os jesuítas chegam

ao Brasil, trazem consigo esta concepção humanística herdada da Idade Média. Por isso, sem

uma aproximação histórica, não é possível perceber os critérios de suas escolhas no processo

de evangelização do Brasil.

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Gabriel Malagrida viveu para as missões jesuíticas do Brasil Colonial. Seus biógrafos,

conterrâneos, situados no mesmo período histórico, é que, segundo a compreensão em vigor

do que se entende por “santidade”, farão as suas narrativas que além de apologéticas, buscam

atestar a santidade de vida de Magrida.

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CAPÍTULO II – LEITURAS ACERCA DO PADRE GABRIEL

MALAGRIDA

(...) o grande foco irradiador no Brasil... da

devoção ao Sagrado Coração de Jesus, tão querida do

povo, através do zelo do insigne missionário e

fundador de obras e institutos religiosos, o Padre

Gabriel Malagrida, que deixou marcas profundas de

sua ação apostólica em todo o norte e nordeste do

Brasil do século XVIII.74

Como é próprio de todo ser humano, a existência de Malagrida é circunscrita entre o

seu nascimento e sua morte. O que acontece entre estes dois pontos e o que é transmitido às

futuras gerações é parte do objeto deste estudo. Elementos concretos de sua vida, ao serem

narrados, ganham as cores da mão que os escrevem. Seu nascimento, sua primeira infância,

sua formação sacerdotal, seu apostolado entre os índios e colonos, sua missão pelo sertão

nordestino, suas empreitadas na construção de seminários, conventos e recolhimentos, sua

indisposição com poderes civis e eclesiásticos, sua relação com a corte e com a monarquia,

sua prisão, julgamento e suplício são elementos que estão presentes em seus biógrafos.

A partir destes elementos narrados, e apesar deles, é possível conhecer aspectos da

realidade do século XVIII que influenciam a formação humana de Malagrida. E mais do que

seu temperamento, ou outras características de sua personalidade, é possível conhecer a

relação que este personagem tinha com realidades setecentistas, como o Seminário, os

jesuítas, a administração pombalina, a Inquisição, enfim, realidades e suas máquinas de

administração, concepção de mundo, contrastes de ideias.

Para tanto, primeiro se faz necessário conhecer os biógrafos, seus contextos e

intenções. A partir daí, apresentar a relação entre alguns aspectos narrados da vida de

Malagrida e o seu contexto conhecido. Dentro de suas biografias, temas como escravidão,

formação sacerdotal, clero secular, abandono do interior aparecem como pano de fundo.

74

JOAO PAULO II. Homilia aos fieis do Maranhão, em Visita Apostólica ao Brasil.São Luís, 14 de outubro de

1991. http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/homilies/1991/documents/hf_jp-ii_hom_19911014_sao-

luis_po.html. acesso em 20 de março de 2013.

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2.1 As figuras de Malagrida

O Iluminismo foi um movimento intelectual que sacudiu a vida acadêmica na Europa,

e questionou as bases do absolutismo e algumas posturas eclesiásticas mancomunadas a este

poder. Se por um lado auxiliou na modernização do Estado e de sua máquina administrativa,

libertando-a da administração clericalizada, por outro, quando não assumido completamente,

gerou posturas políticas híbridas, chamadas de despotismo esclarecido. Tal modelo foi

adotado em muitos países europeus, inclusive por Portugal, na figura de seu primeiro-ministro

Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal. Embora tenha entrado para a

história como aquele que modernizou Portugal, carrega uma nódoa em seu currículo pelo caso

de Pe. Gabriel Malagrida.75

Dependendo do contexto, a figura de Malagrida pode ser entendida como um servo de

Cristo, taumaturgo, que a exemplo de seu Mestre, receberia a graça do Martírio, ou como

alguém que serviria de espelho, que refletiria as incoerências de um Estado dito iluminado,

mas que se servia de toda truculência para se fazer valer de seus objetivos. Há ainda a

possibilidade de se ver em Malagrida um personagem esquecido no passado, cuja reabilitação

à História seria, no mínimo, um ato de justiça, tanto a ele quanto à Companhia.

As biografias do Padre Gabriel Malagrida foram produzidas num arco de

aproximadamente trezentos anos, em contextos e motivações diferentes. A primeira que temos

é a do Padre Matias Rodriguez, terminada em 1762, um ano após a morte de Malagrida. A

outra é a do Padre Paul Mury, francês, publicada pouco depois do centenário de morte e do

cinquentenário da readmissão da Companhia de Jesus. Para o português, temos a tradução

desta obra pela pena de Camilo Castelo Branco. A partir destas obras, e de uma pesquisa feita

no epistolário da época, tem os textos de Ilário Govoni, entre o fim do século XX e primeira

dezena deste.

Com exceção de Camilo Castelo Branco, todos os outros são jesuítas. Este português,

que se põe a criticar o primeiro-ministro, oferece materiais importantes para reconstruir a

mentalidade e as correntes de pensamento da época. No entanto, apenas este fato não é

suficiente para fazer qualquer tipo de afirmação. Por isso, vamos ver estas obras mais de

perto, obedecendo à ordem cronológica na qual foram produzidos.

75

SROUR, A. C. Introdução. In MURY, P. História de Gabriel Malagrida. São Paulo: Loyola. 1992 p. XI –

XIX.

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2.1.1 Malagrida de Matias Rodriguez: o Missionário Taumaturgo.

Este autor, embora nascido em Portugal, realiza seus estudos formativos no Brasil.

Após os anos difíceis que se seguiram à expulsão dos jesuítas dos domínios portugueses, a

Companhia de Jesus precisa se apressa em apresentar textos apologéticos em forma de libelos,

aos moldes dos Padres Apologetas dos primórdios do Cristianismo. Matias Rodriguez nasce

em Portugal em 1729, entra na Companhia aos 19 anos e faz sua formação sacerdotal aqui no

Brasil, na Vice-Província do Maranhão e Grão Pará. É ordenado sacerdote entre 1757 e 1758,

na época da primeira expulsão dos jesuítas, dada em 28 de novembro de 1757. De sua vida e

seu apostolado, as informações que temos são de Serafim Leite, que diz ser ele um dos

organizadores do Arquivo Geral da Companhia.

A obra de Matias Rodriguez é constituída de quatro livros. Podemos perceber a tônica

de cada livro pelos assuntos abordados dentro da compreensão do autor. Dentro de uma

divisão compreendida por critérios objetivos, é possível perceber o enquadramento dos

assuntos da obra de Matias Rodriguez em alguns dos temas a seguir.

Livro Primeiro: 32 capítulos, dos quais 17 abordam diretamente a missão entre os

índios, como os Caicazes, Barbados76

, Guanarés, Gamelas, e Tobajaras, enquanto os outros se

distribuem entre a história da sua origem, vocação, estudos, chegada ao Brasil e

desenvolvimento de algumas atividades a serviço a Ordem. Neste livro, os milagres se dão

como libertação da mão dos povos bárbaros.

Livro Segundo: 34 capítulos, os quais se dedicam a descrição do apostolado

missionário entre os colonos sertanejos, dando ênfase a uma vida austera, de penitência, e

consequentemente de milagres. Neste livro ele percorre atuais regiões Norte e Nordeste,

desempenhando seu apostolado até mesmo na capital, Salvador.

Terceiro Livro: 39 capítulos, que narram suas construções entre o Maranhão e o Pará,

sua ida a Portugal para assistir a morte do rei d. João; no seu retorno ao Brasil, mais

construções, até o chamado da rainha para assisti-la na morte. Não volta mais ao Brasil. Narra

o terremoto de 1755, a destruição de Lisboa, a atuação de Malagrida. No capítulo 35 se relata

a edição do opúsculo de Malagrida que explicava de forma sobrenatural o terremoto como um

castigo divino e do combate de Pombal. Daí por diante vai falar da perseguição, prisão,

76

Segundo o próprio Matias, este nome é dado aos brancos abandonados por mais de duzentos anos no interior

da selva amazônica, vindos para as primeiras expedições de reconhecimento do solo. Estes, diferentemente dos

índios autóctones, eram barbados. Cf. RODRIGUEZ, M. Vida do Padre Gabriel Malagrida. Belém do Pará:

Centro de Cultura e Formação Cristã, 2010, p.105.

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julgamento e morte de Malagrida. No que dizem respeito aos milagres narrados neste livro,

eles se referem a sua sintonia com o mundo divino: premonições, curas e intervenções divinas

em favor daquele que será morto como mártir.

Quarto Livro: 19 capítulos dedicados, em forma de libelo, defender a boa fama de

Malagrida frente às acusações promovidas sob a orientação de Pombal. Além do mais, tenta

situar o leitor entre os personagens que promovem a perseguição contra os jesuítas,

personificados na figura de Malagrida.

Os livros escritos por Matias Rodriguez, nesta sinopse, se propõem a fazer justiça a

um homem que viveu nos moldes da imitação de Cristo. Num estilo carregado, próprio da

linguagem setecentista, o autor apresenta Malagrida como taumaturgo, cujos milagres são

possíveis devido a sua relação com Deus e sua forte penitência. Tal iniciativa não é

desmedida, visto que a truculência de Pombal repercutiu negativamente sobre a sua imagem e,

consequentemente, sobre o governo português. Isso torna compreensível a corrida por uma

versão oficial do caso Malagrida.

Depois do auto-de-fé, Pombal corre a lançar o processo de Malagrida em francês por

vários lugares da Europa. Os quatro livros de Matias Rodriguez estavam prontos no ano

seguinte, em 1762. Contudo, devido a problemas que desconhecemos, a primeira edição

desapareceu, que sabemos pelo prefácio da segunda edição, vindo o escrito a público somente

em 1799, e descoberto por Govoni, colocado na sua introdução:

A história da vida de Malagrida, defendida e ilustrada numa apropriada

Apologia de sua inocência, foi impressa, sem indicar o local, em 1762 e era

levada com todo segredo de Milão para Roma, por um viajante que se

interessou no mui delicado negócio daquelas circunstâncias no pontificado

de Clemente XIII, de feliz memória, quando ela foi saqueada no caminho

por mão desconhecida em todas as suas cópias, que trazia consigo, enquanto

ainda estava dentro dos limites da Lombardia. E, portanto, tornada pública,

antes do tempo, a ardilosa e inocente manobra, teve a supracitada Apologia

que ficar no escuro e sem a desejada divulgação 77

.

77

RODRIGUEZ, M. Vida do Padre Gabriel Malagrida. Tradução, prefácio, comentários e notas: Ilário Govoni.

Belém do Pará: Centro de Cultura e Formação Cristã, 2010, 582 p.37. No italiano de diz: “L’istoria della vita del

Malagrida, difesa, Ed illustrata in uma confacevole Apologia della di lui innocenza, e stampata senza data di

luogo nel 1762, era portata con tutta segretezza da Milano a Roma da viaggiatore interessatosi nell’in dette

circostanze delicatissimo affare, sotto il Pontificato di Clemente XIII, di fel. Mem. Allorchè, svaligiato questi per

istrada da incognta mano di tutte le copie, che seco portava, non per anche uscito dalla Lombardia, e fatta perciò

palese prima del tempo l’ardimentosa innocente manovra, ebbe La sudetta Apologia a rimanersi nel bujo, e senza

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O trabalho de Matias Rodriguez só veio à tona depois da morte de Pombal, que em

vida publicou obras rebatendo os jesuítas, como a Dedução Cronológica e Analítica, cujo

nome completo seria Dedução Cronológica e Analítica. Parte primeira, na qual se

manifestam pela sucessiva série cada um dos reinados da monarquia portuguesa, que

decorreram desde o governo do Senhor Rei D. João III até o presente, os horrorosos

estragos, que a Companhia denominada de Jesus fez em Portugal. Pelo tom do título, é

notório o pensamento que se tem pelos inacianos: são a causa de todos os males que Portugal

sofre.

Através da leitura da obra de Matias Rodriguez, percebemos que tanto ele quanto

Pombal viam em Malagrida um símbolo da Companhia, que, todavia na opinião de

Rodriguez, estava sendo vitimada. Ele vai apresentar Malagrida, assim como Pombal também

o fez, só que de lados opostos. A seleção de cartas feita por Matias Rodrigues segue este

critério: Malagrida é na Ordem o que a Companhia é no mundo, isto é, um instrumento de

Deus, um canal de sinais. A seguinte carta é um testemunho autógrafo do missionário, entre

tantos outros milagres presenciados por ele:

Anotações acerca do milagre improviso de certo mudo, pedindo a solução de

seu problema à Virgem Senhora das Missões e pela Beatificação do Ven. Pe.

José de Anchieta, neste dia de sexta feira, trinta e um de agosto de 1742, no

Colégio de Recife.(...) Saindo ontem, quinta feira, à tarde para a casa do

Procurador maior da Fazenda Real com o irmão Emanuel Lopes e por acaso

embatendo-me na praça próxima a sua casa, com um rapazinho tolhido nos

membros e se engatinhava pelo chão, feito um animalzinho, me senti

impelido de invocar a Padre [Anchieta] para este coitado, mas me

envergonhei e não fiz nada. Esta manhã, recomendei de novo a Deus o

coitadinho na oração habitual e acabada esta, pouco depois de um quarto de

hora, enquanto rezava o ofício divino, o dito irmão bateu à porta do meu

cubículo e me anunciava que havia aí um homem para me falar. Interrompi,

saí e perguntei ao homem o que queria. Não respondeu e nem podia, pois era

mudo e assim testemunhava o criado que ia com ele.(...) Vendo a imagem de

Nossa Senhora das Missões [no cubículo] foi se lançar aos seus pés. Então

eu também me ajoelhei desejoso de experimentar o bom sucesso invocando

La bramata voga” (De vita ven. P. Gabrielis Malagridae, par Le Père Mathia Rodriguez, Rome, 1762, Manuscrit

de La Bibliothéque Municipale d’ Ajaccio, n. 117), p 37.

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este taumaturgo brasileiro. (...) Falei-lhe deste modo: ‘ó Virgem, o

Venerável Padre [Anchieta] cuidou em sua vida com tanto esforço de sua

alma te glorificar não só com suas virtudes, mas também com suas

composições poéticas, assim tu também, cuida de glorificá-lo, fazendo que

em atenção a ele, este mudo fale. (...) Eis que no mesmo instante o mudo

exclama: Jesus. Repeti eu: Jesus. De novo digo: Jesus e repete igualmente o

mudo. (...)’. 78

O Pe. Thomas Costa, que era então ministro do Colégio de Recife, disse a Matias

Rodriguez que este relato de cura, tão relatado nos Evangelhos como sinais dos tempos

messiânicos, não ajudou em nada no processo de Beatificação de Anchieta, pois estando

envolvido Malagrida, ocorreu a dúvida a respeito de quem se deveria atribuir o milagre,79

tamanha era a fama de santidade deste padre, de sua taumaturgia.

Da mesma forma que nos Evangelhos, uma mulher com a filha desenganada pelos

médicos, já tendo gastado todos os seus poucos recursos. Chama Malagrida para “lhe prestar

forças em sua última batalha com suas exortações.” Malagrida pede um pouco de alimento

para a moça. Sua mãe diz que a menina nada come há dias. Então Malagrida, dando a ela um

pedaço de pão, num tom de ordem, diz: “Toma, Rita, toma o pão e come e levanta-te logo da

cama e vai dar graças no Colégio ao meu São [Francisco] Xavier.” No mesmo instante, a

menina comeu avidamente, levantou-se e foi dar graças a S. Francisco Xavier.80

Segundo

Matias Rodriguez, a veracidade deste testemunho está nas palavras dos Padres João de Veras,

Antonio de Carvalho, João de Mendonça, Francisco da Veiga e outros e assim constantemente

divulgou a fama.81

Na visão destes missionários, a presença de Deus na história é concreta, numa

compreensão de continuidade na vida dos fiéis “as maravilhas que do início da pregação do

Evangelho” 82

. O universo é o espaço da manifestação de Deus, um lugar onde consegue

interagir com o homem. Isso vai, praticamente, na contramão da corrente de pensamento

iluminista presente em toda Europa, que tem como princípio o mundo natural regido por leis

próprias, criando assim um abismo entre a Companhia e um mundo e uma razão cada vez

78

Ib. p 233ss. 79

Ib. p 235. 80

Cf. Ib. p 299. 81

Cf. Ib. p 300. 82

Oração da coleta na missa de Pentecostes.

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mais secularizados.83

E neste aspecto, tudo que atrapalha o crescimento do mercantilismo

deve ser visto com maior cautela.

Embora haja a dificuldade de saber com exatidão a impressão que a Inquisição

causava nas pessoas do período setecentista, é certo que de alguma forma estava ligada a uma

aparência de justiça, de um bem que deveria ser feito. Ser vítima dela poderia parecer uma

desgraça enviada por Deus. Assim como na redação dos Evangelhos, o mesmo fenômeno se

apresenta aqui: justificar a morte de Malagrida, fazendo uma releitura de sua vida a partir do

Evangelho, como uma imitação de Cristo. Pois esta imagem da Inquisição portuguesa foi

construída em aproximadamente três séculos, tendo seu início em 1546 e terminando com

Malagrida em 1761.84

Daí se justificaria a necessidade e a urgência de defender a fama de um

padre morto de forma tão injusta.

2.1.2 O Malagrida de Camilo Castelo Branco

Camilo Castelo Branco foi um homem polêmico para seu tempo, ganhando inimizades

tanto no âmbito civil quanto no religioso. Tinha uma percepção da alma humana própria de

autores de seu século. Foi um oitocentista, assim como Eça de Queiroz. Na literatura, é

colocado vezes romântico, e vezes realista85

. Na leitura que faz de personagens, o que vê é o

homem que sempre existiu. Seus personagens não evoluem, no sentido que o homem de seu

tempo tem as mesmas vicissitudes de um homem que viveu no tempo das cavernas. Embora

de matriz cristã, apresenta temas anticlericais e, antes que alguém o interprete mal, também

escreve contra a maçonaria. Não se agremia a nenhum grupo. Com tais temas, sua crítica

atinge o contexto político e religioso do Portugal oitocentista.

É um período de antijesuitismo. Nomes como o de Vieira tinham caído no

esquecimento, graças à política educacional iniciada por Marquês de Pombal, pautada pelo

secularismo. Há duas obras de Camilo Castelo Branco que tocam ao tema do Malagrida e seu

83

RODRIGUES B. H. A Disputa Entre “Cientistas Jesuítas" e "Cientistas Iluministas" no Mundo Ibero-

Americano. Revista Numen, Juiz de Fora, v. 5, n. 2, p. 129-154 [s.d.] 84

Cf. FEITER, Bruno, SOUZA, Evergton S., A Igreja no Brasil, Normas e práticas durante a vigência das

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora Unifesp, 2011. p. 204. 85

LUCAS, Daniel Pires. Estudiosos discutem a vida e a obra do escritor Camilo Castelo Branco. In: Jornal

Estado de São Paulo/Caderno Cultura, de 20 de setembro de 2012. O Prof. Dr. Daniel Pires, do Centro de

Estudos Bocageanos de Setúbal, em entrevista, diz da relação de Camilo com a memória de Marquês de Pombal:

“Camilo era dos que o odiavam. Em 1882 saiu com Perfil do Marquês de Pombal, livro em 15 capítulos e escrito

em tempo recorde, que pretendia censurar os defensores do homem que reconstruiu Lisboa após o grande

terremoto de 1755. "A tarefa de escrever o Perfil do Marquês de Pombal em 20 dias deixou-me o cérebro em

lama", escreveu Camilo numa carta a um amigo, antes que a polêmica com o professor que amava o marquês

houvesse estourado.”

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contexto diretamente: História de Gabriel Malagrida e O Perfil de Marquês de Pombal.

Embora marcado pelo anticlericalismo, Malagrida caiu nas graças deste importante autor

português, provavelmente não por causa da piedade, mas como crítica à ideia de bem

apresentada por Pombal e seus seguidores.

Malagrida foi morto por Pombal mais pelo que significava do que pelo seu suposto

crime. O terremoto de primeiro de novembro de 1755 provocou distintas interpretações do

fenômeno: posições baseadas numa forma mais esclarecida, outras mais voltadas a uma forma

mais religiosa, cujo partido era bem maior. Em sua obra O Perfil de Marquês de Pombal,

Camilo Castelo Branco86

apresenta um discurso de d. Acciajuoli, cardeal e núncio apostólico

em Portugal naquele tempo, juntamente com sua opinião sobre o assunto:

E como se exprimia a Pastoral do patriarcha em 2 de dezembro de 1755 ? O

mesmo que disse o padre jesuita em 1756: «Bemdita seja a summa bondade

de Deus que com as enchentes da sua misericórdia foi servido visitar o povo

catholico desta cidade e patriarchado em o dia 1 do presente mez de

novembro com tantas tribulaçoens em que a sua divina justiça nos mostrou

os castigos que pelos nossos peccados merecíamos, movendo-se todos os

elementos e creaturas ainda insensíveis, como executoras da causa do

mesmo Deus que em tudo tínhamos ofendido, etc.» E Sebastião José de

Carvalho não desterrou, como ao padre Malagrida, esta cardinalícia besta.87

O escritor português, apesar de seu tom parcial, dá testemunho da postura de Pombal

em relação à figura do Malagrida. Isso apresenta as impressões que pairam nos anos que se

seguiram à morte do missionário. Na tentativa de divulgar sua versão da história, Matias

Rodriguez lança mão de testemunhos e documentos existentes em poder da Companhia para

reconstruir a imagem do mártir inaciano. Também pelo título da obra pode-se ver o seu teor

Vida do Venerável Padre Gabriel Malagrida, italiano de Menaggio, companheiro da

Companhia de Jesus da Vice-Província do Maranhão, insigne protótipo de Missionário

Apostólico.

O nome de Malagrida é reconhecido como Apóstolo do Brasil, tanto entre os Jesuítas

quanto para os seus conterrâneos. É de chamar a atenção a ausência de seu nome junto aos

manuais de História, junto aos nomes de outros jesuítas como Nóbrega, Anchieta e Vieira,

86

Ibidem. 87

BRANCO, Camilo Castelo. Perfil do Marques de Pombal. 2ª Ed. Porto: Lopes, 1900. p. 241-242.

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sobretudo por ter implantado aqui algumas devoções que vão marcar a identidade do povo

brasileiro, como a devoção ao Sagrado Coração de Jesus e a Nossa Senhora da Boa Morte. A

campanha anti-jesuítica foi deveras forte, sobretudo na historiografia brasileira, que num

processo de criação duma História Nacional, dentre as seleções de fatos e personagens, de

certa forma esquece a figura de Malagrida, que é elemento chave para a proposta espiritual

para o período que se segue.

A História de Gabriel Malagrida é traduzida por Camilo Castelo Branco do francês, da

pena de Paul Mury, também soldado de Cristo. A base desta história contada é a biografia

escrita por Matias Rodriguez, com correções e adaptações ao espírito oitocentista, escrito em

forma de romance, trazendo ainda nesta edição o livrinho que foi o estopim da perseguição

contra Malagrida: O juízo da verdadeira causa do terremoto, que padeceo a corte de Lisboa,

no primeiro de novembro de 1755. Nesta obra, de cunho panfletário, Padre Malagrida aponta

os crimes e pecados de Portugal como causa da tragédia. No livreto, alfineta os esclarecidos

quando diz: “Nem digam os que politicamente afirmam, que procedem de causas

naturais(...)”88

.

Como o Patriarca acima citado, outros pensam como Malagrida:

O antiquario Bento Morganti: Em diversos tempos experimentou esta cidade

os golpes de semelhante flagello com que Deus castigou os delictos que

commetiam os seus habitadores extendendo-se também a diversas partes do

reino, por que por todas brotavam com excesso as infames raizes dos vícios

de que o demonio fazia uma horrorosa colheita; mas não consta que a

Omnipotência divina se mostrasse tão excessivamente irada contra os

homens d'este afflicto continente... O certo é que d proporção que tinha

crescido a malícia parece que era preciso o castigo para a emenda; por que

não se vendo em Lisboa outra coisa mais que vaidade, luxo, desenvoltura...

etc.89

Um filósofo da época, no testemunho de Camilo Castelo branco, afirma:

Um que se assigna o ínfimo philosopho J. A. da S. encrava na sua opinião

umas asneiras especiaes : A grande actividade que o summo Archetypo deu

aos corpos assignados, foi instrumento da acção com que Deus flagellou

88

MURY, P. História de Gabriel Malagrida. São Paulo: Edições Loyola. 1992, p. 11 89

BRANCO, Camilo Castelo. Perfil do Marques de Pombal. 2ª Ed. Porto: Lopes, 1900. p. 242.

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neste reino os seus amados filhos. E supposto que a divina Justiça fulminasse

contra alguns iniquos, certamente não era a piíssima Lisboa nos olhos

humanos viva copia de Babylonia cuja subversão e incêndio vaticinou o

discípulo amado. Não escandalisava as creaturas com atheus e libertinos, por

que não produsia o ímpio apostolado de Vanini napolitano, nem o heroe dos

ímpios deste século Pedro Bayle francez, nem Linszynchi polaco, nem

Espinosa que foi nascer em Hollanda, negando-lhe a Presciencia a producção

em Portugal, nem o grande medico Boerhaave que algum tempo foi suspeito

de atheismo em Hollanda, e nem Hobbes, inglez.90

No campo da literatura, vaticinadores também não faltavam. Nicolao Mendo Osório é

transcrito aqui por Camilo,

Stava Lisboa em vidos submergida

Sem se lembrar que exemplo dar devia

De virtudes christans, de santa vida

A todo Portugal, ja que o regia.

A desordem da corte era seguida

Do desmancho de toda a monarchia,

Pois sempre foram os povos de tal sorte

Que não buscaram o bom, mas o da corte.91

Marquês de Pombal está entre estes homens da política. Como dito acima, outros

manifestavam o mesmo perfil de pensamento, mas era Malagrida que ele queria, por aquilo

que ele significava. Esta é a conclusão também de Camilo Castelo Branco, quando afirma:

Finalmente, na minha collecção de vinte e trez opusculos acerca do

Terramoto de 1755, todos os poetas e prosadores afinam pela theologia do

jesuita Malagrida, — e elle sómente foi desterrado por que punha nas mãos

de Deus o látego da vingança.92

Camilo Castelo Branco, interpretando a perseguição movida por Pombal e a morte de

Malagrida, diz conhecer a biografia de Mury, referindo-se a ela como “recente biografia”, e

90

Ib. p 243. 91

Ib. p 244. 92

Ib. p 247.

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toma a liberdade de interpretar o episódio com base em seu realismo literário, que é

perceptível no uso de adjetivos:

A sentença que o cumpliciava no attentado de 3 de setembro já estava

lavrada. Houve, ao que parece, o intento de o fazer garrotar no dia 13; mas o

ministro recuou deante da popularidade do padre — assim o presume um

biographo recente de Malagrida; porém, eu pendo a crer que Sebastião de

Carvalho o reservou para um supplicio mais significativo e estrondoso. Elle

não era homem que vergasse à opinião publica a sua inflexa perfídia que

ludibriava os remorsos.93

É notório que Camilo Castelo Branco não é um dos admiradores de Pombal. No

entanto, isso não tira dele o valor de seu testemunho. Dentro de seu espírito dado a conflitos

internos, não vê no Malagrida o mesmo santo de Matias Rodriguez e Paul Mury. Quando se

põe a descrever Malagrida, o faz com o mesmo realismo, deixando a atribuição de valores aos

seus leitores. O trecho a seguir é baseado na obra Memórias de um Bispo do Pará, páginas

200 e 201:

Teve sempre a mania de prophetisar; e, se no Pará o contrariavam na sua

balda de fazer seminários e conventos, levantava clamores entoados de

Ezequiel, e vaticinava desgraças. Estando elle a jantar em Odivellas, como

só comia ervas e fructa, quiz dar com o prato na cara d'outro jesuita que lhe

aconselhava comesse um bocado de peixe. Na America benzia uma agua que

chamava dos milagres; mas não a cedia, sem lhe darem uma libra de cacáo

para Nossa Senhora. Tinha uma imagem da Virgem coberta de jóias que

vendia em leilão pelo duplo do valor, e empregava o producto nos

seminários. Tinha um modo engenhoso de haver as jóias: mandava um

sacrista com uma bandeja e um menino Jesus ao meio do auditorio e dizia:—

«Ahi vai esse pobresinho pedir alguma coisa.» As ouvintes, com vontade ou

sem ella, davam anneis, cruzes e arrecadas. O padre retirou da America pela

segunda vez por que Francisco Xavier, o irmão do conde, lhe não concedeu

terrenos para edificar os conventos que D. João V lhe permittira. E os

jesuítas do paço não queriam que elle lá entrasse por que já o tinham em

93

Ib. p 250.

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conta de mentecapto. D. José recebeu-o com desagrado, á vontade do conde

de Oeiras.94

Na opinião de Camilo Castelo Branco, a maldade de Pombal se torna evidente por ter

em conta que Malagrida não passa de um sujeito velho e louco. Chega a chamar este

sentimento de Pombal em relação aos inacianos de “jesuitophobia”.95

A obra de Paul Mury é de 1864, publicada em Paris. É traduzida para o português por

Camilo Castelo Branco em 1875 e o Perfil do Marquês de Pombal “foi publicado em 1882,

pela comemoração do centenário do Marquês. Camilo escreveu esta obra de cariz histórico

porque odiava Sebastião José, Marquês de Pombal, e como censura aos defensores do

político. É um livro em quinze capítulos, escrito em tempo recorde, como refere o próprio

autor em carta a Joaquim de Araújo: ‘A tarefa de escrever o "Perfil do Marquês de Pombal"

em 20 dias deixou-me o cérebro em lama. Vou ver se os ares de Braga e a ausência de livros

me restauram’.”96

As duas obras de Castelo Branco tem valor pelos testemunhos indiretos

acerca de Malagrida, mesmo que a sua intenção primeira tenha sido a de desqualificar o

primeiro-ministro português.

Concluindo este raciocínio, Camilo percebe o perigo de um grupo que se diz arauto do

que é bom e do que é certo. Demonstra, através de sua leitura acerca destes dois personagens,

que os partidários do pombalismo, em nome do que achavam ser o bem, foram capazes de

usar de uma desmedida truculência, irracionais e antiéticos em tudo para alcançar seus

objetivos. O Iluminismo defendido por Pombal não passava de uma farsa, pois coloriu de

nobreza o valores mercantilistas de Portugal. A destruição de índios nas reduções jesuítas e a

morte de Malagrida, que para este autor não era mais do que um velho insano, servem de

sinais para mostrar os perigos de qualquer grupo que se diga como defensor do que é bom.

A contradição de Pombal foi muito grande. Muitos de maior expressão eclesiástica

tinham manifestado opiniões parecidas com a de Malagrida e não foram chamados a se

retratar. A perseguição contra Malagrida era política. Malagrida se tornaria símbolo do que

seria toda a Companhia. O destino de um simbolizaria o destino de todos. Tal postura, porém,

vai contra a idade da Razão, isto porque o Iluminismo é orientado para a formação de um

Estado democrático de direito. Tal estado pressupõe o contraditório em seu meio, o que não

94

Ib. p 223-224. 95

Ib. p.229. 96

CABRAL, A. Perfil do Marquês de Pombal. In: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Editorial

Caminho, 1988. p.487.

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aconteceu nem com a França após a Revolução, nem com Portugal, durante o governo de

Pombal.

2.1.3 O Malagrida de Ilário Govoni: Malagrida por ele mesmo e a partir dos seus

Ilário Govoni, SJ, é um estudioso sobre a presença de Malagrida no Brasil e sua

repercussão na Companhia e no mundo. Em seus estudos, apresenta uma riqueza em

particular: traz à tona um rico epistolário, que permite reconstruir em parte as relações e

paisagens da época de Malagrida. Ele apresenta as cartas em três obras, basicamente: a) Padre

Malagrida: missionário errante e antesignano della sopressione dei gesuiti, ; b) Malagrida no

Grão Pará, estudo crítico da atuação do Padre Gabriel Malagrida SJ no Pará do séc. XVIII,

com base na biografia inédita de Matias Rodriguez, da Companhia de Jesus, comparados com

outros documentos inéditos da mesma época, elaborado pelo Pe. Ilário Govoni, da mesma

Companhia, e c) Padre Malagrida - O missionário popular do Nordeste (1689 – 1761).

De todas as obras, a que apresenta um grande volume de cartas referentes a Malagrida

é a terceira. As outras são biografias ou trechos traduzidos da última obra do Govoni, que é a

tradução do livro de Matias Rodriguez. Naquele epistolário é perceptível a visão de universo

que Malagrida e, por conseguinte, os inacianos, possuíam. E visão cosmológica aqui se

entende não só com relação à regência do mundo, mas como o papel da monarquia, da Igreja,

da Companhia e a origem e a finalidade de todos estes elementos na economia da Salvação.

Algumas destas cartas que Govoni traz à tona são escritas bem depois do período de

Malagrida, mas são testemunhos próximos, ainda que tencionados, pois as tendências de tais

escritos é fazer apologia à Companhia e aos inacianos num período de grande perseguição à

Ordem.

Como exemplo, a carta de um companheiro de estudos de Malagrida, Pe. Tamaso

Ceruti, 50 anos depois, lembrando do tempo de estudos em Milão. Seu testemunho a respeito

do irmão mostra que as qualidades de espírito cultivadas pelo infante Malagrida irão ser uma

constante na vida até mesmo para situações adversas da missão, colocando até uma pré-

disposição à coroa do martírio.

Eu afirmo que o conheci, ainda jovem, com muitos e grandes talentos

próprio de religiosos e concebi tanta estima dele, que não esperava chegar a

imita-lo nas muitas e árduas virtudes. Brilhava nele uma sólida piedade em

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tudo o que dizia respeito ao culto de Deus; um amor filial pela Bem-

aventurada Virgem; muita caridade para com todos; uma simplicidade não

afetada; uma candura no trato e um grande fervor espiritual, não falando

quase que de outras coisas que não fosse de Deus. Era muito exato na

obediência e na observância das regras da casa. Tomava todas as ocasiões

para se exercitar na humildade, procurando, especialmente, passar por

ignorante, embora entre os seus companheiros fosse dos mais instruídos, por

ter já freqüentado, com louvor, o curso das ciências maiores. Mas era

sobretudo admirável a austeridade com a qual tratava seu corpo, tanto assim,

que os Superiores tinham que vigiá-lo para frear tanto rigor, com o controle

da obediência. Baste dizer que, do pouco que se colocava na mesa apenas

tocava alguma coisa, apresentando vários pretextos para encobrir sua

mortificação. Lembro-me de uma vez que, tendo saído do refeitório apenas

beliscado as comidas, o Pe. Reitor, que o tinha observado, o obrigou a voltar

à mesa outra vez e comer tudo que lhe fosse posto diante, o que fez com

muita docilidade. Jejuava às vezes, por semanas a fio. 97

As características colocadas na infância vão dar o tom do comportamento de

Malagrida até o martírio. Estas características vão estar presentes em muitas das

representações literárias acerca dele. Se for possível colocar, através destas linhas, um traço

que resumisse tal orientação da vida deste inaciano, seria que ele era do sempre mais98

. Em

suas relações com a sociedade civil, com a coroa e com as diversas dioceses, este tom do

sempre mais nem sempre será compreendido. Por vezes, a própria Ordem tem que fazer o

papel de controlar o ímpeto de Malagrida. Notamos isso através de uma carta resposta de 07

de outubro de 1720, de um superior, Pe. Miguel Ângelo Tamburini, em relação ao pedido do

jovem missionário.

Guardei sempre com especial atenção a fervorosa e ampla instância que me

faz para ser enviado para qualquer missão, quer entre os heréticos, quer

infiéis. Irei lhe satisfazer quando o Senhor quiser. Por enquanto, procure se

abastecer em abundância das qualidades necessárias para um tão elevado

97

GOVONI, I. Padre Malagrida, o missionário popular do Nordeste (1689 – 1761). Porto Alegre:[s.ed.], 1992.

p 17-18. 98

N.B. Lema da ordem: Ad Maiorem Gloriam Dei.

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empreendimento, não descuidando, porém, do estudo da teologia e lembre-se

de mim em suas orações.99

Some-se a isso o significado de fazer missão no Novo Mundo. No imaginário

setecentista poderia não ter uma conotação tão favorável, como faz parecer o Pe. Tamburini

em carta ao pai de Gabriel, Giacomo Malagrida, revestindo de glória a separação do filho, o

que se confirmou, pois pelos registros, depois que Malagrida saiu da Itália, nunca mais

retornou.

A sua senhoria Giácomo Malagrida, médico de Sua Alteza o Príncipe de

Parma.

Venho, com muito gosto, satisfazer a piedade de V.S., permitindo que o Pe.

Cláudio Mariano o visite e esteja a seu serviço nos seus negócios espirituais,

quando, por ocasião de doença, venha a ser chamado por V.S.. Folgo de

poder, com esta minha decisão, trocar a obrigação que lhe devo pela

generosidade com a qual, não satisfeito de ter sacrificado um filho para

Deus, oferecendo-o à Companhia de Jesus, quis executar o holocausto

completo com o resignar-se à separação dolorosa que lhe adveio, em

oferecê-lo ao apostolado do Novo Mundo. Toda vez que queira contar com

os meus serviços, me terei honrado de comprovar, com os fatos, a

sinceridade dos meus sentimentos, e daquele devoto abséquio com que me

senti gratificado, com a sua carta de 18 passado.

Pe. Miguel Ângelo Tamburini

Prepósito Geral da Companhia de Jesus100

A relação entre monarquia e religião, no esquema de padroado, pode ser percebida em

cartas que mostram a relação entre o Padre Malagrida e os reis. A construção de prédios para

uso da Igreja é tratada ao mesmo tempo como uma obrigação da Coroa, e o volume da doação

expressa o tamanho da generosidade do monarca e do favor de que goza o missionário, tudo

ad maiorem gloriam Dei. A seguinte carta expressa bem isso.

Meu caro Cadolini Estou vivo sim, Meu muito querido Cadolini (deixe-

me falar assim, já que ainda agora está gravada a lembrança do passado

como se estivesse vivo aqui). Eu vivo, na verdade, e levo adiante a vida com

99

Ib. p. 19.

100 Ib., p. 20.

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todos os excessos. Tudo é um excesso para mim: excesso de viagens, de

ocupações, de trabalhos, de perseguições, de ousadias no empreender obras

tão fora do comum e desgastantes como construir igrejas, Seminários,

conventos, mosteiros Religiosas e recolhimentos. Excessos ainda nos favores

dos grandes do mundo presente e de Príncipes, especialmente do finado Rei

João V, Rei que, na verdade, achei tão piedoso, benigno e bem disposto para

este miserável e vil nada que sou eu, que, no mesmo dia em que me fez a

honra de ser chamado, me deu 100 “doppie” para gastar a meu talante, fora

daquilo tudo que me prometia. Para ajudar as minhas obras. Concedeu-me,

de todo o coração, o que era o ponto mais dificultoso (que me fora

contestado em tantos anos por estes tribunais): o da profissão solene de um

convento de religiosas recolhidas, muito virtuosas e exemplares, fundada por

minha Mãe e Protetora e senhora de minhas missões, utilizando um tão

pobre instrumento qual sou eu. E que mais? A devotíssima Rainha que então

governava mandou-se dar os exercícios Espirituais na Corte para ela e suas

damas. O bom Rei se esforçava por assistir em quanto podia, violentando a

sua própria mortal enfermidade. E todos os dias me chamava, chegava a

colocar as minhas mãos nas suas, convidando-me e insistindo a que lhe

dissesse tudo e pedisse quanto quisesse, que tudo me garantia. E o que mais?

Ele e a incomparável Rainha Augustíssima, fizeram tais excessos e me

concederam tais e tão grandes faculdades e fora do comum, que algumas,

especialmente após a morte dele, encontraram gravíssimas dificuldades nos

Conselhos e Ministérios. Ainda hoje se diz que um Rei não podia conceder

tudo aquilo. E para concluir: “sua grandeza o desgastou”. Que direi do seu

preciosíssimo anel e diamante tão grande e luminoso que vale, pelo que me

dizem, dois mil escudos. E o que me diz do vestido e manto real? E do

patrimônio e rendas anuais estabelecidas para tantos Seminários fundados

pela sua Senhoria? E o que dizer das ordens urgentes enviadas a Bispos e

Governadores? Mais o maior excesso é a grande ingratidão, que sempre

pratiquei e ainda agora pratico, aos meus bons e tão amorosos soberanos

Jesus e Maria. Ah, deixa, querido amigo, que para dor e vergonha, em lugar

de comparecer na minha pátria sempre doce, me vá esconder naquelas

solidões de feras. E tem piedade dos meus gemidos e dores, recomendando-

me continuamente a Deus para que seja qual deveria ser. Aos padres Andrea

Gambarana, Borio, Ceruti, Stela, Inviea e aos meus parentes muita saúde.

Tenho respondido a todos os que me escreveram. O Pe. Bovio nos envie

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algumas cópias dos seus volumes para os meus Seminários. Escreveria mais,

mas não tenho mais tempo que o sono aguarda. Lisboa, 16 de agosto 1750. O

mais indigno e o mais amante servo, Gabriel Malagrida101

Da mesma forma, uma oposição ao trabalho de Malagrida é entendida como um

bloqueio aos desígnios de Deus. Num processo de secularização do Estado empreendido pelo

Marquês de Pombal, obras como esta são vistas como um arremesso do Império para tempos

obscuros. Mas a interpretação negativa não está somente no meio de quem busca secularizar o

Estado, pois os Bispos da época entendiam que a construção de prédios como seminários e

conventos deveriam ser de sua responsabilidade, como reza o Concílio de Trento. A seguir,

uma carta de execução de uma obra. É um exemplo de como a atuação do missionário poderia

ocorrer em uma diocese devido a intervenção da Coroa, sem necessariamente estar em

concordância com as autoridades locais. O texto a seguir é uma ordem Régia para a fundação

do Seminário de Mariana, datada de 12 de setembro de 1748, determina que:

(...) o Padre Missionário Gabriel Malagrida, da Companhia de Jesus,

passasse a fazer missões neste Bispado, pois que a experiência tinha

mostrado em toda a América que as suas doutrinas e exemplos não só

moviam os ouvintes à emenda da vida, mas também a oferecerem esmolas

para obras pias, esperando que nem faltasse com minha Real Proteção e para

tudo mais que entendesse necessário o bom regime dessa Diocese.102

Nem sempre havia comunhão entre os projetos da população, da Igreja local, do

representante do governo e o missionário Malagrida. Neste testemunho acerca da construção

de um Seminário na Paraíba, esta relação, ou falta dela, fica clara.

Enquanto crescia o Mosteiro de Igarassu, empreendeu também a fundação de

um Seminário na cidade de Parayba, obra igualmente difícil e sumamente

salutar. Chamado, contudo, para o Maranhão, não pôde ver mais que o

começo e teve que deixar o cuidado e a glória a outros, de levá-lo a cabo.

Convém agora tomar a coisa do princípio, tendo que descrever alguns

episódios que lhe aconteceram naquela cidade. O Governador de Parayba,

cujo o nome por respeito se omite”... “Entre estes, julgava ele de grande

101

Ib., p.70-72. 102

Ib. p. 51.

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importância que se levantasse nesta cidade um Seminário para educação da

juventude, que teria acorrido de toda a Província, e que, pelo isolamento dos

lugares, precisava de uma boa educação. Comunicada a idéia foi

grandemente louvada e aprovada por todos. Para facilitar o empreendimento,

o Magistrado da cidade assegurou desde então um sítio oportuno, junto ao

colégio. Em que se construísse o Seminário. Para as despesas da construção

muitos dos principais ofereceram espontaneamente grande quantidade de

dinheiro e, um entre eles, chamado Teodósio Álvaro de Souza, designou o

fundo estável de um seu curral para manutenção dos alunos. Depois de tudo

isso, porém, sendo o Governador de parecer contrário, não se pôde, no

momento, fazer nada. Então Malagrida saiu da Parayba com o desgosto de

ver frustrada pela metade uma obra de tanta utilidade, mas não perdeu a

esperança de levá-la a cabo num tempo mais favorável. Com esta confiança,

após ter missionado pelas redondezas, voltou no verão de 1744 uma segunda

vez à Parayba, mas não encontrou disposições melhores no Governador.103

Como Camilo Castelo Branco faz menção do temperamento do missionário, em trecho

citado acima, nesta parte pode-se acrescentar uma carta do Malagrida enfurecido por perceber

manobras políticas no impedimento de seus trabalhos e, de certa forma, com a conivência ou

indiferença de seus superiores. Lembrando que no seu entendimento, manobrar contra essas

obras é justamente manobrar contra os desígnios de Deus.

Vejo pelas tuas cartas que te alegra pela minha chegada a esta cidade,

animando o santo desejo de uma casa de Exercícios como coisa nova.

Confesso e me envergonho que na tua grande conivência e paciência toleres

alguns padres impugnando com demasiada força a designação do local, feita

por ti e recomendada de viva voz a mim pela Rainha, sempre urgindo nas

tuas cartas, que não se pense em outro lugar que no noviciado de Cotovia.

Estou muito bem ciente como o Pe. Moreira [confessor do rei D. José]

discorde disso e quantos problemas levante por causa disso. Por que então

não o tiras de seu ofício? Ou para que apresse, para que, com toda razão,

some esforços e não destrua? Envergonho-me e sinto pena em dizer estas

coisas sobre isso... mas o meu saber está no céu.

103

Ib. p. 51-53.

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Parece que Malagrida intui, assim como d. Joaquim Ferreira de Carvalho, meio século

depois, que sem as letras não se pode ter ou esperar nem religião nem costumes. Daí que

passa a sua empreitada de construir Seminários, tendo em vista que um grande problema para

a colônia era a falta de sacerdotes oriundos desta terra, pois os que de longe vinham,

dificilmente o faziam por uma nobre motivação. No entanto, como se sabe, a missão de

Malagrida não se deu apenas entre construções de conventos, Seminários e igrejas. Seu desejo

de trabalhar entre os índios foi atendido, e através de seus relatos, podemos abstrair um

esboço de como era a paisagem por ele encontrada aqui. Logo no começo da missão entre os

povos da região amazônica, o jovem padre nos apresenta algumas de suas constatações. Entre

os testemunhos de Malagrida sobre as missões entre os índios, o soldado de Cristo percebe a

vulnerabilidade dos indígenas em relação a doenças de brancos, como relata ao Pe. Tamburini

em carta de 06 de julho de 1725:

Pouco tempo depois, ao partir da cidade do Maranhão, se propagou um

gênero de contágio, que, como entendo, maltrata os europeus mais

mansamente, um pouco mais gravemente os Etíopes, os Mamelucos e outros

tipos de mistura de cores. Quanto aos índios, no entanto, e, sobretudo, aos

que saíram mais recentemente daquela vida silvestre e brutal, os atormenta a

tal ponto e mata sem remédio, que quase nenhum dos Caicaizes sobreviveu,

se não preservassem intatos alguns, sobretudo os filhos, espalhando a nação

em vários grupinhos.104

Talvez seja possível estabelecer, didaticamente, uma fronteira entre dois universos do

Brasil Colônia: o campo da civilização (algo que gira em torno de um terreno burocrático,

herdado da metrópole) e o campo indígena. Malagrida transita entre os dois mundos no

começo de seu ministério no Brasil, passando com o tempo, a se dedicar mais aos colonos,

motivado, segundo Barbieri e Fenzl, pela ideia de deixar os índios viverem sua vida no estado

de pureza primitiva, deixando de domesticá-los, e evangelizar os colonos.

Embora tendo o apoio do rei, devido às distâncias entre colônia e metrópole e laços

entre bispos e governadores, o Pe. Malagrida encontra grande resistência para construir

Seminários, pois de acordo com o Concilio de Trento, a construção de Seminários deve ser

104

Ib. p. 24-27.

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responsabilidade do bispo diocesano, e devido ao esquema de padroado, o financiamento vem

do poder temporal.

O propósito inicial de Malagrida é de transmitir a fé aos povos selvagens. No entanto,

a selvageria vai se demonstrando lote comum dos habitantes da colônia. Embora seja

reconhecida a truculência dos índios, a falta de civilidade dos colonos não fica muito distante.

A postura dos europeus diante dos índios dificultava a missão, pois estes não conseguiam ver

diferença entre os missionários e os colonos. Como os missionários adentravam mais na

selva, eram eles que sofriam de assalto os golpes de vingança dos índios. Na mesma carta ao

Pe. Tamburini citada acima, o missionário descreve a violência dos brancos e as

consequências para a missão.

No ano passado, aparecendo uma esperança, ainda que minguada, de se levar

ao conhecimento de Deus e ao culto divino a ferocíssima Nação Caicaizes,

me dirigi a esta missão (ainda que fosse destinado pelos superiores a cultivar

a Cidade). Em vão se opuseram os prudentes deste mundo, apelando para a

experimentada e notória perfídia da nação indígena e para o abominável

delito contra o venerável Pe. Villar, cometido há pouco pelos companheiros

e consangüíneos dos Caicaizes. Também viam perigo nos Caicazes por

terem sido violentados ultimamente pelos portugueses, contra todo o direito

das nações, e por sua revolta por terem que pagar o martírio do missionário

em lugar dos outros.105

Sua percepção da realidade motivará um estilo de evangelização revestido de

religiosidade popular. Aqui cabe a dúvida sobre o que Malagrida entendia por devoção

popular, dada a grande bagagem cultural que possuía. Isso não significa que devoções e

cultura elevada não se encontrem, mas, ao que parece, a espiritualidade de alguém como

Malagrida não se satisfaria com o modelo por ele incentivado. A este respeito, cautelas são

necessárias devido à falta de testemunhos contemporâneos. Contudo, estudando personagens

do século XVIII, a figura de d. Sebastião Monteiro da Vide, autor das Constituições

Primeiras do Arcebispado da Bahia, homem culto e preocupado com a retidão da fé

transmitida em sua diocese, segundo a pesquisa de Evergton Sales Souza106

, possuía “uma

relativa tolerância devocional”. Ele sugere que “a atitude de Monteiro da Vide seria

105

Ib. p. 24-27. 106

FEITER, Bruno; SOUZA, Evergton S. A Igreja no Brasil: Normas e práticas durante a vigência das

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora Unifesp, 2011. p. 61-84.

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reveladora da opção por um método de conversão marcado pela ideia de que importa

sobretudo atrair os fieis para a Igreja, tolerando, se preciso, alguns desvios”107

. É esta uma

possibilidade de interpretação que também poderia ser aplicada ao Pe. Malagrida, pelas

características de seu apostolado. Pois, assim como Malagrida, “o arcebispo estaria entre

aqueles que pensavam não ser factível a adoção de uma política mais rigorosa de

enquadramento religioso antes da sedimentação da fé cristã numa comunidade formada

majoritariamente por ‘recém-conversos’.”108

É neste contexto que Malagrida percebe a fertilidade do ambiente, pois a falta de zelo

pastoral dos poucos curas, cujos olhares se voltam mais para a capital do que para os sertões.

Haja vista os longos períodos de vacância da Sé que, somados, totalizam 63 anos. Nesta

situação de abandono, as pessoas interpretam o que vêem com a bagagem hermenêutica que

possuem. Uma vida marcada pela brutalidade, abandono das autoridades e a ameaça constante

de ataque indígena marcam o imaginário dos colonos. De certo modo, torna compreensível a

receptividade das devoções aqui por ele trazidas. A piedade popular, rica de elementos

folclóricos, numa forma rudimentar de religião, a mais das vezes beirando a heterodoxia, foi a

matéria que Malagrida escolheu para empreender sua evangelização: a piedade popular do

Sagrado Coração de Jesus e Nossa Senhora da Boa Morte foram estruturados por ele aqui no

Brasil. A primeira, levanta a questão da misericórdia de Deus em favor dos homens, uma

solidariedade que não cabe no peito e que, como a sarça ardente, queima e não destrói; já a

segunda, incute no coração sertanejo uma compreensão de que a vida tem uma meta, que deve

ser atingida antes da morte. Dentre as orações destinadas à Nossa Senhora da Boa Morte, um

dos pedidos é o livramento da morte repentina, entendido neste contexto como uma desgraça.

Em torno destas bandeiras é que são organizadas por Malagrida irmandades:

Aprouve a Deus, conceder-me frutos dos meus pobres esforços. E já esta

introduzida a Comunhão Eucarística geral de cada mês e além do mais a

Companhia da Boa Morte, que já tem 400 sócios, levando eu adiante toda a

prática sozinho, a fim de cuidar da alma deles uma vez por mês. Isso ocorre

no primeiro domingo, como se fossem advertidos para morrer em tal dia.

Como prelúdio, antecipo no sábado anterior uma preparação com um

107

Ib. p. 62. 108

Ib.

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62

exemplo de nossa Senhora, rezando publicamente o terço, para tê-la

favorável para tal preparação e para aquele ponto.109

O trabalho de Malagrida junto aos colonos e aos índios caicazes causou certo

desconforto para a sociedade de então. Não por ser transeunte de dois universos, mas devido à

relação que os jesuítas tinham com os índios. Os jesuítas eram organizados com estrutura

estatal, além de jurídica e canonicamente se reportarem somente ao Romano Pontífice. Com

as isenções e permissões obtidas junto à Coroa, possuíam uma competitividade comercial

vantajosa em relação a qualquer concorrente, sejam estes membros da sociedade civil, de

outras ordens religiosas ou representantes do Estado. Nesta época, é sabido que os jesuítas

isolavam os índios de contato com os colonos o mais que podiam, na intenção de preservá-los

dos trabalhos de escravo ou exploratórios por parte dos brancos, pondo-se muitas vezes como

mediadores entre colonos e índios. Neste testemunho de Julio César Cordara, percebe-se a

causa da celeuma.

O nosso governador, Francisco Xavier, tinha espalhado a notícia que viriam

em breve cartas do Rei, pelas quais não seriam mais permitido aos

portugueses conservar os índios como escravos e, quem os tivesse, ainda que

pago a dinheiro, devia deixa-los em liberdade. Fazia crer também que tudo

isso era uma armação de Malagrida em Lisboa, para que se descarregasse

sobre ele toda a odiosidade de inovação, cujo autor era o seu irmão, o

Marquês de Pombal. Nenhuma coisa poderia alarmar mais os portugueses

daquelas colônias do que uma noticia deste gênero. Com efeito, todos se

tornaram ricos as custas destes pobres índios, nem tinham outro modo de

enricar, se não fosse os braços daqueles infelizes que faziam trabalhar em

suas terras sem salários. A acusação ainda que falsa, não era absolutamente

inacreditável; antes, parecia ter bastante de verdade. Era notório que

Malagrida desaprovava altamente a liberdade que se tomavam os

portugueses em escravizar os índios, mesmo contra as prescrições legais.110

Neste ponto, cabe um comentário sobre o ponto de vista jesuíta acerca da liberdade

indígena. O tema da liberdade não começa apenas no século XVIII no seio do cristianismo. Já

em seus primeiros escritos, S. Paulo se debruça sobre esta problemática. No entanto, a palavra

109

GOVONI, I. Padre Malagrida: o missionário popular do Nordeste (1689 – 1761); Porto Alegre [s.ed.], 1992.

p. 24-27. 110

Ib. p. 77-78.

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“liberdade” apresenta um gama de conotações, dependendo do grupo que a invoca: em

Palmares, numa Redução ou num Tribunal Eclesiástico. Visto que ter escravos está dentro do

direito natural, como um item da propriedade privada, o Magistério exorta, assim como S.

Paulo, que as relações entre senhor e escravo se deem pelo vínculo da fraternidade baseada na

fé, não no título de posse.

Não se pode negar, contudo, que a escravidão que se dá no Brasil Colonial não é a

mesma que acontece nos anos do Apóstolo. A resposta da Igreja já não pode ser a mesma

dada nos tempos primitivos. Assim, em 25 de janeiro de 1585, Gregório XIII se pronuncia

sobre a escravidão nos domínios portugueses em relação à liberdade. Escreve a bula Populis

ac Nationibus. Não obstante, a liberdade adjetivada: a liberdade sacramental. Escravos,

negros ou índios, poderiam ou não se casar com outros cônjuges depois do Batismo? Na

Sagrada Escritura, o tema é proposto por S. Paulo e chamado na Tradição de “privilégio

paulino”111

, mas é abordado de forma muito vaga em relação à uma sociedade tão complexa e

com tantos conflitos de interesses como a colonial.

O reconhecimento papal da existência da escravidão abre a brecha para o uso

indiscriminado de tal prática. A bula trabalha o tema da liberdade sacramental do escravo,

seja ele negro ou índio, autorizando-o a contrair matrimônio independentemente da vontade

de seus donos. Mesmo que adjetivada, a liberdade indígena se torna tema amplamente

debatido pela sociedade, sendo clara a posição dos jesuítas:

Os Jesuítas tinham sempre defendido a liberdade dos índios contra a

opressão dos portugueses (não tinham pretendido, porém, que não se

pudesse ter escravos legitimamente adquiridos e, muito menos os que os

tivessem comprados, os precisassem deixar sem ter seu dinheiro

recuperado). Ultimamente aparecera uma bula do Papa Bento XIV que

proibia, sob pena de excomunhão, a quem quer que fosse fazer escravos os

índios em toda a America Portuguesa. Sabia-se que esta bula tinha sido pedia

ao Papa pelo Rei João V, por influência dos Jesuítas. Por todos estes

antecedentes, tomando-se por verdadeiro que era mais próximo da verdade,

excitou-se tal indignação contra Malagrida que, qualquer outro, que não

tivesse gozado de um tal crédito de santidade, teria sido apedrejado pelo

povo. O Bispo Bulhões e o Governador Francisco Xavier, que se tinham

ligado em misteriosa e grande amizade, e não aprovarem em nada o projeto

111

Cf. I Coríntios 7, 16.

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do mosteiro, não viam mal esta fermentação popular; antes de apagá-la,

fomentavam-na. O certo é que Malagrida, vendo muito forte o vento

contrário, como bom piloto em mar agitado, sem tratar mais com gente

semelhante, voltou ao Maranhão.112

Os colonos viam os índios como uma mão-de-obra ociosa devido à atuação da

Companhia de Jesus. Isto atrapalhava os planos de enriquecimento dos colonos. Num lugar

em que as pessoas estão para tirar o máximo de proveito da terra, longe das autoridades

metropolitanas e de vínculos morais familiares, vítimas de uma burocracia sem sentido,

qualquer elemento que cheire prejuízo se torna uma séria ameaça de aumento de permanência

nesta terra. A difamação sobre Malagrida se dá por causar incômodo a quem tem algo. Isso

demonstra que discussões iluministas sobre o valor do homem, da razão, sobre direitos

universais, etc. não tinham um terreno fértil na colônia, pois a sobrevivência numa terra sem

lei exige mesmo outro tipo de discurso.

Numa de suas cartas, Malagrida também dá uma visão do ambiente que encontra nesta

macro-região. No entanto, seu testemunho é de meio século antes:

Faz um ano que passei do Maranhão para o Pará com o nosso padre

Superior. Vejo nesta cidade como que um nojo pelos sacramentos,

seguimento de Deus e pouco cuidado com a salvação, a ponto tal que os

nossos padres, nas festas, ainda que maiores, não se preocupam de deixar o

Colégio nas mãos de um irmão e retiram-se para algumas aldeiazinhas

nossas para rezar Missa. E isso, não é por negligência nossa, mas por não

conseguir audiência e fruto na cidade, a tal ponto que nas nossas igrejas não

se ouviam senão alguns sermões panegíricos e nada mais.

Não é exagero lembrar novamente que a paisagem pouco ou nada mudou ao

longo do século. Essa precariedade acerca dos habitantes do Norte do Brasil vai influenciar a

postura dos missionários na sua tentativa de evangelização. A leitura que eles fazem da

realidade não é otimista. Fatores como a rejeição aos jesuítas por parte da população, a falta

de instrução, o abandono do estado na formação da sociedade, entre outros elementos,

justificam o seguinte relato:

112

GOVONI, I. Padre Malagrida: o missionário popular do Nordeste (1689 – 1761); Porto Alegre [s.ed.], 1992.

p. 77-78

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Para fazer frente e freio a tamanho descaso fazem dessa cidade de Belém

uma verdadeira Babilônia, procurei administrar a palavra de Deus, na

quaresma. Foi ouvida a pregações graças a Deus, com paciência por estes

cidadãos duas vezes por semana, cuidando de incentivar a frequência aos

santos sacramentos, totalmente descuidada, ainda que tivesse ocorrido

recentemente uma Missão113

.

É neste universo que Malagrida está inserido. Diferentemente da metrópole, onde cada

qual tem o seu papel definido na sociedade, os elementos novos das etnias negras e indígenas,

com ampla variedade dentro de seus próprios grupos, são somados a este universo peculiar

colonial, pois trazem consigo não só sua diferença física, como também o seu imaginário e

seus valores culturais. A distância da metrópole e o desconhecimento desta em relação a sua

colônia trazem a marca da burocracia, que serve de eixo para a corrupção colonial. Malagrida

tem este campo a sua frente.

O que talvez Ilário Govoni consiga demonstrar, através deste vasto epistolário, é que o

que Malagrida vê no sertão é uma população abandonada à própria sorte, e em grande parte,

uma ausência absoluta do Estado de direito. O que parece claro é que não havia, por parte do

Estado Iluminado de Pombal, a preocupação com políticas de infra-estrutura da colônia, mas

apenas mercantilista. As pessoas se veem na necessidade de se organizar com os rudimentos

culturais recebidos da Europa e os que receberam dos antepassados, que não foram apagados

pela miscigenação. É por essa população que Malagrida opta, independentemente de sua

personalidade aparentemente difícil e das disposições políticas e eclesiásticas de seu tempo.

É diante desta opção que Malagrida faz que sua condenação se torna uma aberração.

Para mostrar que isso era evidente, não eram necessárias grandes apologias. O processo da

Inquisição, por exemplo, acontecido sob a presidência do irmão do Marquês, são apresentados

tanto por Matias quanto por Govoni. A obra de Malagrida sobre o terremoto de 1755 abre a

obra de Mury, mostrando o quão descabido foi sua sentença. Estes adendos em suas obras

servem de uma moldura estranha ao quadro que deveriam adornar. As leituras do processo e

do opúsculo não justificam as atrocidades sofridas pelo velho Malagrida, que já no seu século

tinha o epíteto de Apóstolo do Brasil.

113

Ib. p 77-78.

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CAPÍTULO III – A HISTÓRIA COMO INSTRUMENTO DA TEOLOGIA

NA LITERATURA HAGIOGRÁFICA

A vida da cristandade medieval é, em todos os

aspectos, permeada de imagens religiosas. Não há coisa ou

ação em que não se procure estabelecer constantemente

uma relação com Cristo e com a fé114

.

A Antropologia Teológica oferece elementos importantes para a compreensão da

relação entre a teologia, propriamente dita e a literatura hagiográfica. De fato, esta abordagem

sobre a Hagiografia cristã, de sobremaneira a Medieval, entendida em seu aspecto literário,

uma vez que assumimos a hagiografia como um tipo distinto de literatura, em relação à

teologia só pode ocorrer por via da antropologia. O homem e a mulher pensados a partir da fé,

ao longo de pelo menos dois mil anos, fornecem o caminho das pedras para que se possa

afirmar alguma coisa.

Para Manzatto, por exemplo, “mesmo se a literatura é uma arte e a teologia uma

ciência, elas tocam-se em vários sentidos e em vários pontos, sendo o nível cultural um

exemplo, o interesse antropológico um outro” 115

. Ora, tendo-se em conta que estamos

aludindo a uma literatura hagiográfica, ou seja, cristã, por si só, a questão em relação ao

diálogo entre teologia e literatura, nesse caso, já é um pressuposto esperado. Assim também,

podemos compreender essa natural aproximação no que diz respeito à cultura e esse tipo de

literatura. De fato, qualquer literatura colonial, ou seja, qualquer literatura produzida no

período colonial brasileiro irremediavelmente trás consigo os traços da cultura e por

consequência da sociedade que respira ares de cristandade, ou seja, no âmbito cultural, esse

diálogo entre teologia e literatura via cultura, nesse caso, também é naturalmente esperado,

sobretudo por uma literatura hagiográfica. Entretanto, o que pretendemos demonstrar é

justamente o segundo ponto apontado por Manzatto onde teologia e literatura se encontram,

através da antropologia116

.

114

HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos

XIV e XV na França e nos países baixos. São Paulo: Cosacnaify, 2010, p. 248. 115

MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: Reflexão teológica a partir da antropologia contida nos

romances de Jorge Amado. São Paulo: Edições Loyola, 1994. p. 14. 116

Cf. Ibidem.

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Contudo, é necessário fazer algumas escolhas, propor um certame. Na pergunta do

Salmo 8 sobre o que é o homem117

, as pistas escolhidas dentro do cristianismo são Agostinho,

Pascal, Chesterton, tidos como pensadores de cunho pessimista, num sentido que extrapola o

senso comum, colocando o homem como aquele que só possui salvação pela graça de Deus. É

neste contexto do pensamento cristão que veremos a hagiografia como gênero literário e seus

desdobramentos com a Teologia, a Literatura e a História.

Chesterton, numa crítica ao cientificismo do início do século XX118

, apresenta, com

seu humor britânico, que em seu tempo os antropólogos cunharam o termo “homem da

caverna” como uma figura – no sentido próprio da palavra, como se verá – de um homem que

tivesse como atividade caçar mulheres, destruir semelhantes, enfim, um ser primitivo, do qual

a maioria das pessoas não consegue se reconhecer como descendente, ao mesmo tempo em

que não questionam a validade de tais afirmações. Em sua exposição, ele apresenta que por

mais que se vasculhem sítios arqueológicos, fora elementos manufaturados para uma vida

silvícola, com rudimentos de vida social, o que mais marca a sua visão é a representatividade

pictográfica do homem da caverna. A arte, segundo ele, dá testemunho que mesmo diante da

violência, o homem possuía uma abertura para a representatividade criativa, gastava tempo

para observar e criar, assim como homens e mulheres dotados da mesma qualidade em

qualquer tempo ou espaço do orbe119

.

O que se quer afirmar aqui, é que o homem é perene. Não se nega aqui os dados

levantados por Darwin, acerca da evolução. O que se quer dizer é, nas palavras de Chesterton,

“o homem é diferente das outras criaturas em espécie, não em grau”120

. Segundo Chesterton, o

homem é perene. A abertura para o transcendente está presente no ser humano desde que o

primeiro de nós pisou a terra.

Neste aspecto, antes de seguir a diante com os outros pensadores citados acima, no

campo da própria teologia, Queiruga, em sua obra Repesar a Ressurreição121

, também levanta

questionamentos e os reorganiza a ponto de poder fazer também algumas afirmações: Deus é

perene. É manifesto isso em toda a tradição religiosa judaico-cristã. As características de Deus

não mudaram ao longo do tempo. Seus atos revelam o que Ele é desde sempre. Assim,

quando Deus cria, cria desde sempre122

. Quando ilumina, ilumina desde sempre123

. Quando

117

Cf. Salmo 8, 5: “Que é um mortal, para dele te lembrares, e um filho de Adão, que venha visitá-lo?”. 118

Referimo-nos aqui a obra O Homem Eterno. São Paulo: Mundo Cristão, 2010. 119

CHESTERTON, G.K. O Homem Eterno. São Paulo: Mundo Cristão, 2010, p. 29-35. 120

CHESTERTON, G.K. O Homem Eterno. São Paulo: Mundo Cristão, 2010, p. 46. 121

QUEIRUGA, André Torres. Repensar a Ressurreição. São Paulo: Paulinas, 2010. 122

Cf. Ib. p. 114.

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ressuscita, ressuscita desde sempre124

. Quando salva, salva desde sempre125

. E essas

afirmações que ele faz sem medo, encontram-se na lex orandi da Igreja.

Caso se procure estes elementos em outras tradições religiosas fora das religiões

monoteístas, facilmente se encontrará vestígios de anseios do homem na vida depois da morte,

em ritos de iniciação em várias fases ou ocasiões da vida, construções como pirâmides,

círculos de pedra, imagens de deusas com seios fartos, tudo isso como fruto da abertura para o

transcendente. O questionamento organizado de Queiruga, quando reflete sobre a

ressurreição126

, vai dar uma brecha para o raciocínio acerca do termo figura, pois aponta para

uma chave de leitura que torna mais acessível ao mundo contemporâneo os significados e os

desdobramentos da ressurreição de Cristo como sua primogenitura dos mortos. O subproduto

desta reflexão nos ajuda a entender o conceito de figura para a literatura cristã. O tema de

figura é trabalhado por Auerbach num ensaio de mesmo nome127

, como também por Guido

Gargano128

, no seu estudo sobre a metodologia de interpretação dos Padres da Igreja.

Assim, figura poder ser visto como uma marca concreta, plástica, que imprime as

características daquilo que representa; como uma estampa, que deixa a sua marca de molde

em tudo o que toca, independente do tempo e lugar da impressão. Deste modo, o homem

sendo perene em suas características antropológicas, e Deus sendo eterno e imutável em suas

opções em relação ao homem, formam os elementos de que dão substrato para entender o que

é entendido por figura quando se relê as ações de Deus na História e como esta compreensão

se torna literatura e no nosso caso, hagiográfica.

3.1. Hagiografia como gênero literário

Cássio Murilo Dias da Silva129

, em sua metodologia de exegese bíblica, descreve o

que é gênero literário e sua importância para a interpretação dos textos. Cada gênero possui

um conjunto de características que permite agrupar os textos sob sua nomenclatura: poesia,

salmo, cântico, profecia, evangelho, narrativa, atos, histórico, etc. Contudo, afirmar que

hagiografia constitui um gênero em si não é tarefa tão simples, visto que não há consenso.

123

Cf. Ib. p. 185. 124

Cf. Ib. p. 207. 125

Cf. Ib. p. 239. 126

Cf. Ib. p. 281. 127

AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Editora Ática, 1997. 128

GARGANO, Guido. Il formarsi dell'identità cristiana. L'esegesi biblica dei primi Padri della Chiesa.

Roma: San Paolo Edizioni, 2010. 129

SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São Paulo: Paulinas, 2000.

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Claudia Rapp130

, por exemplo, afirma que a hagiografia não pode ser um gênero literário por

se utilizar de vários outros gêneros na sua composição. Mas como ressalta Thiago Maerki de

Oliveira, esta opinião parece não levar em conta que o estilo hagiográfico já era utilizado na

tradição greco-romana, como a obra Vidas dos Filósofos Ilustres, de Diógenes Laércio, e a

vida de governantes, cultivado por Plutarco. E continua dizendo sobre

Autores versados nas letras profanas e sagradas, como Jerônimo e

Boaventura, seguiram regras predeterminadas na escrita de suas

hagiografias, recorrendo a elementos retórico-literários específicos para

narrar a vida de suas personagens. Isso não significa que a forma textual não

seja variável, pois o texto pode se apresentar tanto em prosa quanto em

verso, pode ser uma Legenda ou um poema biográfico.131

Apesar de Rapp evidenciar que os textos hagiográficos possuem vários estilos

literários em si, desconsidera a intenção do hagiógrafo, que se utiliza das ferramentas que tem

para compor a vida do santo. Neste ínterim, há ainda a possibilidade de considerar a literatura

hagiográfica como dentro do gênero da biografia, como propõe Adele Castagno132

, que

evidencia as semelhanças das biografias antigas com as Vidas dos Santos. Thomas Head133

,

ao contrário, argumenta que ao se escrever um texto hagiográfico, não se tenta encontrar ali

dados biográficos do santo, mas apresentá-lo como um exemplo, num propósito de edificar o

leitor. Desta forma, apesar de tantos pontos de vista, há como se entender hagiografia como

gênero literário mesmo, que possui uma lógica própria.

Tal gênero, existente desde o século II entre os cristãos, vai ganhando corpo na Igreja

principalmente a partir do século IV, com a disseminação do culto aos mártires, tidos como

verdadeiros exempla. Num primeiro momento, são escritos no estilo de Acta, enaltecendo a

coragem diante do anti-Cristo. Os Acta mostram, de modo privilegiado, a contradição deste

130

Cf. RAPP, Claudia. “For next to God, you are salvation: reflections on the rise of holy man in late antiquity”.

In: HOWARD-JOHNSTON, James (Edit.); HAYWARD, Paul A. (Edit.). The cult of saints in Late Antiquity and

the Early Middle Ages: Essays on the Contribution of Peter Brown. New York: Oxford University Press, 2002.

p. 63-81. 131

OLIVEIRA, Thiago Maerki. Hagiografia e literatura: um estudo da Legenda Maior Sancti Francisci, de

Boaventura de Bagnoregio. Campinas: [s.n.], 2013, p. 16. 132

Cf. CASTAGNO, Adele Monaci. L’agiografia cristiana antica: testi, contesti, pubblico. Brescia: Editrice

Morcelliana, 2010, p. 98. 133

Cf. HEAD, Thomas. “Hagiography”. In: On-line reference book for Medieval Studies. Disponível em:

http://www.the-orb.net/encyclop/religion/hagiography/hagio.htm. Acesso em 10 de fevereiro de 2013.

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mundo: ao invés de promover suplícios para que os condenados assumam suas culpas, o

promovem para que renunciem o motivo de sua prisão. É o caso do Martírio de S. Policarpo,

uma narrativa feita com riqueza de detalhes, enaltecendo a coragem de um ancião frente à

crueldade de seus algozes. Este tipo de redação hagiográfica enaltece o valor do martírio,

entendido como uma identificação do fiel a Cristo.

Eusébio de Cesareia também vai se dedicar a este tipo de literatura, mas num outro

contexto. Com o desenvolvimento da vida monacal, a ascensão do cristianismo à religião

imperial, o valor dos mártires é atribuída também a homens e mulheres que combatem, por

meio da ascese, contra os inimigos interiores e invisíveis, através de exercícios espirituais que

cultivem as virtudes: a ascese. Quando se relata este modelo cristão, a narrativa já não é mais

tencionada por um duelo de forças entre o cristão e os senhores deste mundo, mas através de

modelos de vida, que tem como certame o cotidiano. Este último tem grande influência de

escritos vindos de tradições cristãs orientais, como a copta e a siríaca, com as obras

Apophthegmata Patrum e a Vida de Pacômio. São textos ricos em anedotas curtas cuja

intenção é auxiliar o leitor a lembrar de seu exemplo na hora das tribulações diárias. Assim,

são dois modelos hagiográficos que coexistem, os Acta e as Vitae.

A hagiografia por muitas vezes é colocada ao lado de textos de valor históricos, traindo,

de certo modo, sua vocação original. Tendo em vista que os hagiógrafos visavam enaltecer,

notabilizar a personagem tema de sua obra, agia de liberdade em relação à contextualização

histórica ou qualquer outra referência. Colocar o santo em situações, como que numa peça de

teatro, e a partir daí, mostrar a sua reação, consistia no papel pedagógico da obra, que deveria

ser lida (legenda) numa ocasião de reunião, para a comemoração da personagem e,

consequentemente, para a edificação da comunidade. Por isso, tais obras devem ser tratadas

como obras literárias, não históricas.

Os textos hagiográficos são distintos, de fato, a partir de uma biografia ou

reconstruções narrativas, como eles não são escritos para contar a vida de um

homem ou de uma mulher, desde o nascimento até a morte - o que eles

fazem de forma sumária ou incompleta - mas em primeiro lugar para

encorajar seus ouvintes ou leitores a levar uma vida melhor, apresentando-

lhes um modelo de perfeição cristã. Neste sentido, a lenda medieval é mais

próxima da canção épica dos feitos que o registro, uma vez que tem a

intenção de produzir um efeito de entretenimento: ele lembra atos ou

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palavras, inscritos em um tempo que é o da história da salvação, pretende

fazer presente e ativa a santidade de um homem de Deus e ajudar a

prolongar os efeitos da sua criatividade dinâmica134

.

Com efeito, não se deve procurar na hagiografia fatos reais, embora muitas vezes eles

estejam presentes. Isso é o que aponta Claudio Moreschini e Enrico Norelli ao citarem

Delehaye.

(...) para bem compreender a composição hagiográfica, é necessário levar em

conta a recomendação de um grande especialista do gênero, H. Delehaye:

não se pode “espoliar um relato hagiográfico daquilo que ele possa oferecer

de inaceitável, eliminar os anacronismos, amortecer o elemento maravilhoso

e teatral e considerar que o que sobra tem validade histórica. Trata-se de um

erro grosseiro: a ilusão de que é verdadeiro o que não é verossímil135

.

Este gênero literário visa contar histórias curtas, divertidas ao mesmo tempo que

edificantes, sem o compromisso de informar sobre o contexto histórico do seu personagem

principal. Há histórias mais fantasiosas que outras, mas não por estes critérios que deveriam

ser classificados, mas pelo objetivo do autor. A composição deve ser entendida no seu

complexo,como sintetiza Maerki:

A literatura hagiográfica possui seu próprio processo de formação, no qual

há o entrecruzamento de três níveis: o subjetivo, aquilo que realmente possui

inspiração na vida do santo; o coletivo, aquilo que provém da imaginação

popular e daqueles que, muitas vezes, conviveram com o santo; e o literário,

134

“I testi agiografici si distinguono, infatti, dalle biografie o dalle ricostruzioni narrative, in quanto sono scritti

non per raccontare l’esistenza di un uomo o di una donna dalla nascita alla morte – cosa che fanno in maniera

sommaria o lacunosa – bensí innanzitutto per incitare i propri uditori o i propri lettori a condurre una vita

migliore, presentando loro un modello di perfezione cristiana. In tal senso, la leggenda medievale è piú vicina

all’epopea o allá canzone di gesta che alla cronaca, poichè intende produrre un effetto di intrattenimento: essa

ricorda atti o parole che, inscritti in un tempo che è quello della storia della salvezza, rendono presente e

operante la santità di un uomo di Dio e consentono di prolungare gli effetti del suo dinamismo creatore.”

(Tradução nossa). VAUCHEZ, Andre. Sainthood in the Later Middle Ages. Cambridge: Cambridge University

Press. 2005, p. 202-203. 135 MORESCHINI, Claudio; NORELLI, Enrico. História da Literatura Cristã antiga e latina – do Concílio de

Nicéia ao início da Idade Média. São Paulo: Edições Loyola. 2000, p. 433.

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que é fruto da imaginação do hagiógrafo, que se utiliza de uma tradição

literária hagiográfica como método composicional do texto136

.

Por se tratar de um gênero, como defendido por muitos, possui uma finalidade própria:

convencer o seu leitor ou ouvinte a imitar a Cristo. O tema da imitação é central, seja no estilo

de Acta quanto no de Vitae. E, para convencer, utilizava-se a técnica da retórica, uma das

matérias do Trivium medieval, que ajudava na formação liberal dos homens. Embora a

retórica seja conhecida como arte desde meio milênio antes de Cristo, na época clássica ganha

notoriedade por favorecer a ascensão social, política e jurídica no mundo grego e,

consequentemente, no mundo latino. Aristóteles já se dedica sobre o tema137

. Cícero é um

expoente no mundo latino138

. Quando os cristãos se apropriam da cultura clássica, a retórica

passa a ser dividida em pelo menos três categorias, de acordo com o estudo de James Murphy:

a Ars predicandi (arte da pregação), a Ars poetriae (arte poética) e a Ars dictamis (arte

epistolar). Nos textos hagiográficos, os três recursos são utilizados na Idade Média139

.

Tal variedade se explica diante da necessidade de convencimento. Cabe ilustrar neste

ponto a importância da obra de Jacopo de Varezze, seguidor de Domingos de Guzmán (1170-

1221), que, assim como seus confrades, tinha como lugar de pregação ambientes leigos,

distantes do latim e mais próximos das línguas românicas, com uma população mais afeita às

imagens folclóricas do que argumentos teológicos comuns às escolas catedrais ou assuntos de

ordem espiritual, próprios de monastérios. Levar à imitação de Cristo através de textos que

estivessem livres de heresia, sobretudo a cátara, era a missão destes autores. Convencer pela

palavra era importante.

Concluindo esta parte do estudo, Hilário Franco Junior escreve:

Para essa pregação mais eficiente, passou-se a recorrer ao exemplum, ‘relato

breve dado como verídico e destinado a ser inserido em um discurso para

convencer um auditório através de uma lição salutar’. Esse tipo de narrativa,

existente desde a Antiguidade, ganhara novos contornos e desenvolvera-se

nos meios monásticos dos séculos XI e XII, sobretudo entre os cistercienses,

136 OLIVEIRA, Thiago Maerki. Hagiografia e literatura: um estudo da Legenda Maior Sancti Francisci, de

Boaventura de Bagnoregio. Campinas: [s.n.], 2013, p. 22. 137

ARISTÓTELES. Retórica.Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2011. 138

Cf.“Cicerón, Séneca y los escritores latinos fueron las fuentes principales por las cuales el occidente de

Europa alcanzó en la Edad Media algún conocimiento del pensamiento moral estoico”. LONG, Anthony. La

filosofia helenística: estóicos, epicúreos, escépticos. Madri: Alianza Editorial, 1984. p. 230. 139

Cf. MURPHY, James. Rhetoric in the Middle Ages: a history oh rhetorical theory from St. Augustine to the

Renaissance. London: University of California Press, 1981.

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para a seguir difundir-se largamente nos ambientes urbanos. Ou seja, em

locais onde a predominância dos interesses econômicos e a convivência de

pessoas de diversas procedências estimulavam a contestação ou mesmo a

indiferença religiosa. E nisso residia a importante função do exemplum,

‘instrumento de persuasão’ que tira sua lição da descrição de um

comportamento negativo que gera conseqüências nefastas para o seu

protagonista. Daí ter sido o principal elemento da estrutura narrativa da

Legenda Aurea 140

.

Portanto, além de considerar que hagiografia cristã seja um gênero literário no sentido

próprio do termo, não um elemento ligado a outro, como o biográfico ou o histórico, que

também possui características associadas à retórica antiga, até mesmo por se ver como

herdeira de uma grande civilização como a greco-romana, tendo como objetivo conquistar

pessoas para Cristo, através da persuasão, utilizando-se de meios folclóricos e mitológicos,

numa linguagem vernácula, não erudita, livre de heresias, as não de exageros e anacronismos.

3.1.1 Hagiografia e Teologia

Retomando a posição de Chesterton, jornalista inglês que atuou no início do século

XX, de que o ser humano é o mesmo desde a sua criação, é que se encontra o ponto de partida

para esta parte do estudo. Chesterton não entra na polêmica entre evolucionistas e

criacionistas, apenas rebate a tendência cientificista que marca a academia de sua época141

. A

base epistemológica desta afirmação encontra nos únicos registros encontrados sobre os

ancestrais humanos: as pinturas rupestres.

O pessimismo apontado aqui por Chesterton não se trata daquele que é da

compreensão vulgar, mas uma corrente de pensamento que não vê neste universo um sentido

para o qual todas as coisas convergem. O mundo em si não caminha para uma evolução

retilínea. As pessoas de hoje não são melhores que as de ontem. O que entreteria um índio

tupinambá de doze anos hoje seria o mesmo que entreteria um hitita há cinco mil anos atrás. É

140

FRANCO, Hilário Jr. Apresentação In: VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: Vidas de Santos. São Paulo:

Companhia das Letras, 2003, p. 13-14. 141

CHESTERTON, G.K. O Homem Eterno. São Paulo: Mundo Cristão, 2010, p. 29-35.

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o que Chesterton entende como aquilo que diferencia o homem dos outros animais está no

nível da espécie, não de grau142

.

Este tipo de pessimismo, quando pensado no campo da fé, só consegue iluminação na

vida por meio da graça divina. Esta teoria da graça como sendo a única coisa capaz de livrar o

homem de seu esquema natural é desenvolvida por Agostinho de Hipona. De suas obras, a

Cidade de Deus pode nos ajudar a entender o que o Bispo de Hipona entende acerca do

homem e a sua sociedade. Como é sabido, o livro escrito por Agostinho é uma apologia aos

cristãos contra a acusação de que o cristianismo seria o verdadeiro responsável pela

desestabilização e ruína do Império Romano143

. Na visão de Santo Agostinho, o homem tem

uma ferida que o impede de ser bom. O homem é naturalmente inclinado ao pecado144

. Não

pecador na sua essência, mas inclinado ao pecado. É a concupiscência da carne. E, por

consequência, tudo que do homem é gerado, carrega em si a mesma marca da

corruptibilidade.

Assim foi com todos os impérios, inclusive o romano. Caiu não apenas por uma

influência da Igreja, mas por ser expressão, ou melhor, por carregar em si a estrutura que há

em cada ser humano. Neste aspecto, o papel da graça é fundamental para Agostinho, pois à

imagem de um sol que brilha sobre um pântano, não por merecimento, mas pela gratuidade, é

que se compreende quem é Deus em relação ao universo, em relação ao homem. O homem é

salvo pela graça quando se deixa invadir pela mesma lógica que a rege: a da generosidade, da

gratuidade.

Esta percepção de Agostinho acerca da graça divina não é somente para o seu

contexto. Não está ligada a uma época determinada da história. Sempre existiu. Assim,

levando em conta a postura de Chesterton acerca do homem como um ser que também sempre

teve esta abertura para o transcendente e, neste caso, para a graça divina, podemos inferir que

sempre houve esta percepção por parte de algumas pessoas a respeito desta gratuidade que,

assim como hoje, também não e percebida por todos. E, assim como os homens da caverna,

homens de todos os tempos que foram capazes de perceber esta graça tentaram, de uma forma

ou de outra, comunicá-la aos seus. Neste caminho, a linguagem mais sublime é a da arte145

.

142

CHESTERTON, G.K. O Homem Eterno. São Paulo: Mundo Cristão, 2010, p. 46. 143

Cf. SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 46. 144

Cf. Ib. p. 70. 145

A título de exemplo, de como que esta transmissão transcende a linguagem, José Marcos Macedo Mariani, em

sua pesquisa intitulada Palavra Ofertada, apresenta um estudo sobre a estrutura poética existente no indo-

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Pois se Deus é o mesmo desde sempre, seus atributos também o são. Salvador desde

sempre, etc. como ressalta Queiruga146

, todas as ações de Deus em relação à humanidade são

para a salvação do homem. Ele afirma, por exemplo, que a ressurreição não é uma atitude que

começa cronologicamente a partir de Cristo, mas sim a partir de Adão147

. As ações de

libertação ocasionadas por Deus se tornam claras a partir de Cristo. Isto quer dizer que as

ações salvíficas de Deus sempre existiram, e que permaneciam como figura do Redentor. As

experiências vividas pelo homem no âmbito da salvação são figuras daquilo que seria a

plenitude em Jesus de Nazaré.

Deste modo, Figura passa a ser um termo técnico, do qual Auerbach descobre o sentido

cristão que aparece nas obras dos Padres da Igreja, encontrado primeiramente em Tertuliano,

em que “Figura” incorpora o sentido de algo real, concreto, que irá acontecer no futuro,

sentido esse que o autor denomina “estranho e novo”. Perceber a Figura de algo significa

perceber a marca de algo que não muda ao longo de tempo e imprime, como uma prensa, o

seu logo por toda a História.

Através desse significado foi que os Pais da Igreja puderam dizer que o Antigo

Testamento é prefiguração do Novo Testamento e que os Evangelhos são profecias reais,

históricas, que possuem vínculo com a realidade. Com base nisso, pode-se afirmar que, se

tratando de “Figura”, um acontecimento é representado, ou seja, é Mimesis de outro primeiro

que lhe explica e dá sentido. Dessa forma é que a patrística pôde interpretar Cristo como o

novo Adão e o sono do homem do Jardim do Éden como a morte de Cristo e Eva como figura

da Igreja, formada por homens pecadores. Por isso, há a resistência, em Tertuliano, de se

apresentar a relação entre Velho e Novo Testamento como mera profecia, sem vínculo com a

realidade. É o que defende Auerbach, quando explicita o significado do termo para o já citado

Padre da Igreja:

Esse tipo de interpretação tinha como objetivo mostrar que todas as pessoas

e acontecimentos do Velho Testamento eram prefigurações do Novo

Testamento e de sua história de redenção (...). A figura profética, em seu

europeu, fazendo uma comparação entre a poesia grega e a poesia sânscrita. No primeiro capítulo, apresentando

a forma que os gregos antigos entendiam a aproximação da divindade por meio dos hinos, descreve que os hinos

possuíam uma estrutura verbal que era coerente com a oração, num sentido da divindade que sai do mundo

celeste e adentra no cosmo. Isso se dá na oposição verbal entre tempos e modos verbais finitos, infinitos e

aoristos. A Oração Eucarística III, com base em tetos gregos, segue este padrão helênico de estrutura. 146

Cf. QUEIRUGA, André Torres. Repensar a Ressurreição. São Paulo: Paulinas, 2010. p. 16. 147

Cf. Ibidem.

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entendimento, era um fato histórico concreto, preenchida por fatos históricos

concretos148

.

A percepção de algo desta magnitude é expressa na literatura através de imagens, de

uma forma plástica. Esta é a ponte com a hagiografia. Gestos de salvação de Deus estão

presentes em toda a história. Mas para transmitir, somente através da força da narração. O

elemento narrativo possui uma força própria na transmissão de Figuras, de Tipos (em grego).

É algo que, na linguagem comum, seria introduzido por um “como se fosse...” somado à

narração. Este tipo de mecanismo é estudado por Paul Ricoeur149

e por Umberto Eco150

, que

demonstram que a carga simbólica de um conceito é transmitida de forma mais clara por meio

de uma narração.

Os evangelhos estão repletos deste mecanismo de transmissão. Como explicar a

alguém o sentido de um conceito abstrato? Como demonstrar a outro a compreensão de um

mistério como o da graça? O elemento narrativo é fundamental para tamanha empreitada.

Desta forma, a narrativa está a serviço da Teologia, campo da fé. Assim, entendendo, como

ensina Milton Santos, que alguém só pode falar a partir do ponto de onde vê, uma pessoa de

fé fala a partir desta postura de transcendência em relação ao mundo, sobretudo por meio de

narrativas, por meio da linguagem de seu interlocutor. Com o cristianismo foi assim ao longo

dos séculos: entre judeus, linguagem e métodos judaicos; entre gregos, linguagem e métodos

helênicos, e assim por diante. Este discurso acerca de Deus e suas realidades divinas são

objeto de estudo da Teologia. Neste sentido, este dado da linguagem toca diretamente a

comunicação da fé.

Portanto, a Hagiografia, como gênero literário, dialoga com a Teologia, ciência de

Deus e das coisas celestes, e com a História, dado que os eventos possuem uma localização no

tempo e no espaço, pois narrando a vida de um santo, com a intenção de evidenciar a presença

salvífica de Deus naquele contexto, usa-se de imagens e recursos literários que tem à mão, de

modo privilegiado a narrativa, transmitindo, assim, a percepção de realidades infinitas no

finito, deixando claro para o interlocutor que o Deus que falava no passado pelos profetas é o

mesmo que continua a falar aos seus contemporâneos.

148

AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Editora Ática, 1997, p. 28. 149

RICOEUR, Paul. A hermenêutica bíblica. Trad. Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 2006. 150

ECO, Umberto. A literatura. Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2011.

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3.1.2 Legenda Áurea: modelo hagiográfico medieval

A Legenda Áurea é editada na Idade Média. O contexto medieval, comumente

chamado de Idade das Trevas, é apresentado de modo diferente por J. Huizinga151

, J.

Leclerq152

e J. LeGoff153

: um período de fertilidade devido a coexistência de contradições no

qual o monolitismo não é entendido como sinal de unidade. Com isso, antes de falar da obra

em si, é necessário situá-la em seu contexto.

Diferentemente do período antigo da Igreja, no qual a luta era diante de um inimigo

claro e concreto, isto é, o Império e suas instituições, no medievo a peleja se dava entre

inimigos, ortodoxia versus heresia, para arrebatar almas indecisas ou, quiçá, converter infiéis.

A heresia pululava por várias regiões da Europa, ao lado da peste e das guerras da Cruzada.

Este ambiente fomentou, curtiu por anos a fio, uma mentalidade, uma forma de interpretar o

mundo. De fato, no fim da Idade Média, o pensamento tende a se deslocar de concepções

puramente abstratas para a concretude do que é pictórico. Nessa perspectiva, há uma

necessidade de dar formas às coisas, às ideias. Mesmo as concepções religiosas são revestidas

como que de uma materialidade que irá se traduzir em uma profunda manifestação de

devoção popular, ou seja, num amalgamar-se sem igual entre o que é tido como sagrado e o

que é traço próprio da cultura medieval154

.

A hagiografia estudada nesta parte se refere à medieval, que diferentemente daquela

do cristianismo primitivo, possuía como marca a tentativa mais de converter hereges,

indiferentes ou indecisos do que fortalecer a fé de neófitos propriamente ditos. Por ser a

referência deste estudo, é mister que se faça uma visão sinótica da obra. A versão apresentada

por Hilário Franco Jr. é composta de 175 capítulos, dos quais 22 são destinados a

comemorações litúrgicas, como Natal, Epifania, entre outros.

Dos 153 capítulos que falam sobre santos, 91 são dedicados a narrar a trajetória de

mártires, que deram sua vida em oblação de 81 formas diferentes; enquanto o restante se

distribui entre monges, confessores e clérigos que não sofreram o martírio. Com isso, boa

parte dos acontecimentos narrados acontece nos primeiros trezentos anos do cristianismo,

151

HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos

XIV e XV na França e nos países baixos. São Paulo: Cosacnaify, 2010. 152

LECLERCQ, J. O amor às Letras e o desejo de Deus. São Paulo: Paulus. 2012. 153

LEGOFF, J. Entrevista. In: HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e

de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos países baixos. São Paulo: Cosacnaify, 2010. 154

HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos

XIV e XV na França e nos países baixos. São Paulo: Cosacnaify, 2010, p. 247.

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num contexto de perseguição, numa valorização da teologia do martírio. As narrativas

referentes aos séculos subsequentes colocam a ascese como ponto alto da espiritualidade

cristã. Contudo, há na obra de Jacopo de Varezze uma preferência pelo tema do martírio.

Em sua apresentação do livro, Hilário chama a atenção para quatro fatores que

permeiam a obra auxiliam na hermenêutica dos textos, a saber:

a) uma tendência de universalizar o conteúdo das narrativas; isto significa que algumas

características, tanto de caráter quanto geográficas ou históricas se apresentam quase

que da mesma maneira. Mesmo indicando referências a lugares, o desenrolar da

história mostra que o cenário é circunstancial.

b) a atemporalidade dos fatos relatados; a existência das poucas datas não tem o papel de

individuar o fato ou a personagem. Apenas funciona como um fixador num tempo e

num espaço que desenrolam para o fim dos tempos.

c) a forte presença do simbolismo em toda a obra; num contexto marcado pela

simbologia, os símbolos são eficazes. O autor coloca o demônio atuando sob as mais

diversas formas simbólicas: mulher, freira, mendigo, menino negro, fera, gigante,

mouro, anjo, gato preto, maçã, vômito de sangue etc.

d) o belicismo e o contratualismo existentes na mentalidade medieval. A estrutura da

sociedade e suas referências de trocas simbólicas entram na tratativa com o

transcendente: o ideal do combate e a tentativa do diabo de estabelecer contratos cujo

penhor fosse a alma.

3.1.3 O estilo Hagiográfico de Legenda Áurea presente na obra de Matias

Rodriguez

Uma vez que já estabelecemos os pressupostos para a compreensão da relação

dialógica entre a literatura hagiográfica e a teologia a partir da história. Referendando-se na

obra de Jacopo, Legenda Áurea, que nos apresenta por meio de suas narrativas como que um

modelo de vida de santos que podemos entrever pelos diferentes relatos da obra de literatura

hagiográfica, queremos mostrar que, fruto do Brasil colonial, a obra de Matias Rodriguez

parece conter inúmeros elementos que se identificam com os elementos propostos pela

Legenda Áurea ao relatar a vida dos santos, de modo que nos é possível afirmar a existência

desse modelo medieval e, por consequência colonial, brasileiro e que a vida ou a santidade do

padre Malagrida por feita por Matias nessa mesma concepção.

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Para começar essa aproximação, colhendo dos testemunhos de Ilário Govoni155

e de

Victor Leonardi156

que afirmam de antemão o constante contato de Pe. Malagrida com grupos

diferentes, sejam eles de indígenas ou de colonos, feitos em diversos locais do país, essa

atitude nos revela um homem que vai ao encontro do povo e se deixa moldar pelo mesmo. De

fato, o que parece ser feito por Malagrida é um verdadeiro incorporar-se à experiência

espiritual do povo157

de modo que ele desperta para a prática da piedade popular, como por

exemplo, à devoção a Nossa Senhora da Boa Morte158

. Desde o período colonial e ainda hoje

a América Latina reconhece o valor da piedade popular159

. Não só a ausência do Estado de

direito, mas também das estruturas da Igreja que permitissem a organização do trabalho

jesuítico, e ao mesmo tempo, o imperioso apelo por anunciar a fé católica entre os colonos e

gentios, faz com que missionários como Malagrida vejam nas devoções populares um eficaz

método de evangelização.

Em Legenda Áurea, Jacopo apresenta uma preocupação com a etimologia dos nomes

dos santos do qual se propõe a relatar a vida. Essa preocupação reflete uma tentativa de

aproximar o leitor das personagens narradas. A técnica de dar um significa para o nome do

santo, muito embora em Legenda Áurea esse significado nem sempre corresponda de fato, à

etimologia do termo, tem como objetivo justamente facilitar a memorização, de modo a

manter viva entre os ouvintes a narrativa da vida do santo. É quase que regra geral que todas

as narrativas do Legenda Áurea comecem dessa forma160

. Todavia, na obra de Matias

Rodrigues, a narrativa da vida de Malagrida não começa assim. Aliás, nem é preocupação de

Rodrigues aludir ao significa do nome de Gabriel Malagrida. Isso ocorre, sobretudo porque,

como afirmamos, dar significado ao nome é trazer à memória a vida do santo. No caso de

Malagrida, tal artifício não se fazia necessário uma vez que para Matias, a vida de Malagrida

ainda era um fato recente, uma narrativa que ainda pertencia ao cotidiano.

O texto da obra Legenda Áurea foi, no início,

155

Cf. GOVONI, Ilário. Prefácio. In: RODRIGUES, Matias. Vida do padre Gabriel Malagrida. Belém do Pará:

Centro de Cultura e Formação Cristã, 2010. pp. 14-15. 156

Cf. LEONARDI, Victor. Apresentação. In: RODRIGUES, Matias. Vida do padre Gabriel Malagrida. Belém

do Pará: Centro de Cultura e Formação Cristã, 2010. pp.17-27. 157

Cf. GUTIÉRREZ, Gustavo. Beber em seu próprio poço: Itinerário espiritual de um povo. São Paulo: Edições

Loyola, 2000. p. 44. 158

Cf. RODRIGUES, Matias. Vida do padre Gabriel Malagrida. Belém do Pará: Centro de Cultura e Formação

Cristã, 2010. pp. 126. 175-177. 159 Cf. CELAM. Documento de Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-

Americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2013. §258-265. 160

São exemplo: VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: Vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

pp. 162;177;480;778; entre muitos outros.

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Uma coletânea hagiográfica que ficaria conhecida por Legenda áurea. Isto é,

um conjunto de textos (legenda, literalmente “aquilo que deve ser lido”,

também tinha o sentido de “leitura da vida de santos”) de grande valor (daí

áurea, “de ouro”) moral e pedagógico 161

.

Ora, tal valor moral e pedagógico refere-se justamente a finalidade do texto. Havia

por parte de Jacopo duas preocupações: fornecer material teologicamente correto, ou seja,

sem o contágio de heresias para os sermões de seus confrades e, ao mesmo tempo,

proporcionar um acervo que fosse também compreendido pelo povo, de forma agradável162

,

preocupação que Matias também tem. Vida do Padre Gabriel Malagrida possui linguagem

acessível e está dividida em diversos e pequenos capítulos, como que pequenas perícopes da

vida do lusitano.

Dessa forma, Matias Rodrigues parecia preocupado em narrar a vida de Malagrida nos

moldes das narrativas hagiográficas que se ocupavam em instruir o povo a partir dos relatos,

extraordinários ou não, da vida do santo. A hagiografia busca incutir os valores ou princípios

cristãos da fé católica na medida em que quem tem contato com a literatura, vê uma cena

cotidiana sendo convertida em um ensejo de aprendizado. É a transmissão de uma mensagem

que impele à conversão cristã, à mudança de atitude, daí, portanto, seu valor moral e

pedagógico.

Matias Rodrigues conta que, certa vez, em Recife,

Foram ao encontro a Malagrida que chegava, ainda fora da cidade, beijando

a mão e as vestes e no meio das aclamações o conduzem ao templo principal

chamado de Corpo Santo. Aqui o Ex.mo aguardava Malagrida, que feita a

reverência, Malagrida de pés descalços ajoelhou-se ao altar, do lado do

Evangelho, e o Bispo sentado no sólio, fez a pregação por uma meia hora ao

povo que afluía. Com aquela singular eloquência de que era dotado, exortou

que não desprezassem esta visitação de Deus, acorressem a ouvir a Palavra

de Deus, amolecessem mais os endurecidos corações. (...) Feita a exortação e

dirigindo-se a Malagrida ajoelhado, para que o ouvissem mais avidamente o

cumulou com grandes louvores, e deu-lhe todo o poder sobre todos os

161

FRANCO, Hilário Jr. Apresentação In: VARAZZA, Jacopo. Legenda Áurea: Vidas de santos. São Paulo:

Companhia das Letras, 2003. p. 12. 162

Cf. Ibidem.

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pecados, para destruir a corrupção do povo, para chamar as ovelhas errantes

ao caminho da salvação e inflamasse toda a virtude.

Como conclusão entregou-lhe a imagem de Cristo pendente da cruz com

aquelas ardorosas palavras: “Apregoa o Cristo e o Cristo crucificado” 163

.

Nesse trecho em que Malagrida é situado como um peregrino itinerante, aquele que

vem em nome de Deus, e, portanto, já possuí fama de santidade 164

, um fato comum que é a

chegada em uma cidade, ganha novas cores. Embora ainda não milagreiro, o relato contém os

recorrentes elementos do modelo hagiográfico que podem ser encontrados no Legenda Áurea,

tais como a radical austeridade do santo que, viaja descalço e o reconhecimento da autoridade

eclesiástica. Ora, sobre esse tema, Jacopo nos seus diversos relatos, nem sempre o trás de

forma positiva. Muitas vezes a Igreja não reconhece as santas intenções ou a vontade de Deus

nas atitudes do santo. Todavia, por várias vezes, também, a autoridade eclesiástica volta atrás,

mesmo o papa, como foi no caso de São Domingos:

(...) Foi a Roma junto com Fulcro, bispo de Toulouse. Ali solicitou ao sumo

pontífice Inocêncio que autorizasse a ele e seus sucessores instituir uma

Ordem que se chamaria dos Pregadores. O pontífice mostrava-se reticente,

quando de noite teve um sonho (...). Ao acordar, ele entendeu a visão e

aceitou com alegria o pedido do homem de Deus165

.

Em Legenda Áurea o santo é o homem de Deus, da mesma forma, o gesto de

Malagrida de visitar Recife é visto pelo Bispo como uma “visitação de Deus166

”, ou seja,

irremediavelmente o santo do modelo hagiográfico é alguém tão intimo de Deus que sabe e

faz a Sua vontade.

Entretanto, nem mesmo para Malagrida a relação com a Igreja, enquanto instituição e

representação em seus superiores, foi fácil. Mesmo porque, como veremos, o martírio de

Malagrida se deu por meio de uma instituição que, pelo menos em tese, está ligada à Igreja de

Roma, embora saibamos que não é assim no caso de Portugal e Espanha. De qualquer forma,

o fato é que Malagrida, logo que se deu conta de sua vocação à vida religiosa, recebeu como

163

RODRIGUES, Matias. Vida do padre Gabriel Malagrida. Belém do Pará: Centro de Cultura e Formação

Cristã, 2010. pp. 222,223. 164

Cf. Ibidem. 165

VARAZZA, Jacopo. Legenda Áurea: Vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. pp. 616, 617. 166

Cf. RODRIGUES, Matias. Vida do padre Gabriel Malagrida. Belém do Pará: Centro de Cultura e Formação

Cristã, 2010. p. 223.

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resposta ao seu pedido de entrar na Congregação dos Padres Somacos a seguinte resposta: “Só

posso responder com igual sinceridade. Devendo fazer grandes gastos para entrar na nossa

ordem, não querendo acrescentar à tua família nova despesas, aconselho-te a procurar outra

ordem religiosa167

”. Só então, é que Malagrida irá decidir-se pela Companhia de Jesus. Matias

diz que depois o padre superior que recusou-o arrependeu-se do que havia feito168

.

Outro elemento e talvez um dos mais importantes que apareceram no trecho da obra de

Matias supracitada em relação à chegada de Malagrida a Recife, é o povo. De fato, em todas

as narrativas eles são as testemunhas oculares e muitas vezes os beneficiados ou os castigados

pela ação de Deus e do santo.

Assim sendo, torna-se possível elencar alguns elementos básicos ou fundamentais

presentes na maior parte das narrativas hagiográficas da Legenda, ou seja, o que compõe o

modelo hagiográfico medieval-colonial. São eles:

a) Em primeiro lugar, o homem de Deus, o santo ou santa. A figura do santo é

enaltecida não por elogios ou louvores ou mesmo pelos seus ditos, mas pelos seus

gestos e atitudes. A narrativa hagiográfica é um relato onde as coisas acontecem,

há ação constante onde o santo ou santa de Deus é quem “ocupa o papel

principal”;

b) Depois, o que caracteriza o relato como hagiográfico é justamente a presença do

extraordinário, milagroso ou não, ou seja, é aquele elemento que surpreende ou

extrapola a realidade cotidiana, mas que se manifesta ou se dá a partir dela. Esses

acontecimentos podem ocorrer com os santos, como por exemplo, quando são

salvos milagrosamente da morte 169

; mas também podem ocorrer com outros170

.

Podem ser feitos ou ocorridos bons, de benefício e salvação171

, mas também

podem ser de castigo e perdição172

;

c) Segue-se como elemento fundamental na literatura hagiográfica a figura de uma

autoridade ou instituição normalmente religiosa ou do estado que de alguma

maneira, interagindo, corrobora ou opõe-se à atitude do santo;

d) O povo. Muito embora eles constituam elemento básico de uma narrativa

hagiográfica, normalmente, o povo é tão somente aquele que presencia os fatos e a

167

RODRIGUES, Matias. Vida do padre Gabriel Malagrida. Belém do Pará: Centro de Cultura e Formação

Cristã, 2010. p. 68. 168

Cf. Ibidem. 169

Cf. VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: Vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 368. 170

Cf. Ib. p. 765. 171

Cf. Ib. p. 623. 172

Cf. Ib. p. 130.

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interação entre o santo e a figura da autoridade ou instituição que se relaciona com

ele. Em geral, o povo é aquele que sofre uma ação benéfica que os salva, orienta,

ou é penalizado pela sua conduta pecadora.

Poderíamos até apontar outros elementos constituintes da literatura da vida de santos,

mas aqueles que são recorrentes e relevantes na maior parte dos relatos, já foram aqui

apontados.

Jacopo era frade dominicano, uma das ordens mendicantes do século XII e XIII. Isso

significa que no cotidiano da vida, em contato direto com os leigos, utilizava-se mais das

línguas vulgares do que do latim, e também de narrativas de fundo folclórico do que textos

teológicos 173

. A narrativa da vida de Malagrida é marcada pelo mesmo estilo. Aliás, como

vimos, não há nesse período, nenhum discurso religioso para o povo que não seja de fundo

devocional folclórico, ou seja, não há teologia.

Nessa perspectiva é que a necessidade da Legenda Áurea ser de fácil compreensão é

justamente para combater as heresias de modo que a mensagem que os dominicanos e, de

modo especial, Jacopo se preocupava em comunicar, fosse pelo povo, compreendida.174

. De

fato, as narrativas sobre a vida de Malagrida nascem na mesma necessidade “combativa”,

tratam-se, portanto, de textos apologéticos de combate as “heresias”, ou ao menos aos erros

que pudessem ser ditos da vida do padre Gabriel que o fizeram ficar esquecido na história, por

assim dizer, oficial do Brasil175

.

A Legenda Áurea está repleta de “exemplum”, que são relatos breves, dados como

verídicos e feitos para serem inseridos em sermões de modo a transmitir uma lição, um

ensinamento176

. A história de Malagrida não pode ser considerada um exemplum, até por seu

caráter longo, no entanto, seu relato biográfico está repleto de vários “exemplum” que

permeiam sua narrativa e que poderiam ser utilizados com a mesma finalidade que os relatos

de Jacopo:

(...) Certo homem muito pervertido a tal ponto se perdera loucamente de

amor pela mulher que nem as frequentes admoestações dos párocos, nem

avisos de amigos Enem as veementes vozes de pregadores puderam chamar

173

Cf. FRANCO, Hilário Jr. Apresentação In: VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: Vidas de santos. São Paulo:

Companhia das Letras, 2003. p. 13. 174

Cf. Ibidem. 175

GOVONI, Ilário. Prefácio.In: RODRIGUES, Matias. Vida do padre Gabriel Malagrida. Belém do Pará:

Centro de Cultura e Formação Cristã, 2010. pp.14, 15. 176

Cf. FRANCO, Hilário Jr. Apresentação In: VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: Vidas de santos. São Paulo:

Companhia das Letras, 2003. p.13.

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à razão e colocá-lo na linha, acerca de um costume muito perverso. (...)

Morreu enfim a mui infeliz mulher (Até onde não leva os corações mortais,

o ardor descontrolado da concupiscência!) ele, cego e com o amor louco que

lhe restava exerceu sua luxúria e comunicação torpe e muito ardente com o

cadáver da mulherzinha, antes que fosse enterrada. (...) Nem parou aí a

invencível concupiscência do homem pervertido. Depois que o corpo foi

enterrado, o ímpeto fez com que ela a arrancasse do túmulo para satisfazer

sua concupiscência. Não realizou esta ignomínia somente uma vez, mas,

para perpetrar mais vezes, depois disso. (...) Tinha-se passado um ano inteiro

e quando abriram a urna sepulcral onde enterraram a mui infeliz mulher,

para enterrar aí um novo cadáver, se precipitou ao triste espetáculo o torpe

homem, em cujo peito ainda não se apagaram as chamas do fogo fátuo.

Então, ao ser retirada da cova a horrível, amarelada e espantosa caveira,

morada de vermes vorazes, espelho da vaidade e triste resto e espelho aos

mortais, quem não choraria diante desta triste espetáculo? Quem não se

espantaria? (...) O cego e torpe amante não se dobrou, não se espantou e nem

se acalmou, mas ao contrário (ó coisa, nunca antes ouvida e que nem em

futuro se haverá de ouvir!) ao se reacender a torpe chama arranca a terrível

caveira e a leva pra casa e a guarda a seu prazer como um ídolo e com ela, de

maneira que pode, renova por longo tempo o mui torpe e primeiro

costume.(...) Por estes tempos Malagrida tomou conhecimento e falou tão

pesadamente contra a luxúria e tão brilhantemente colocou diante dos olhos

a monstruosidade do pecado que aquela pedra se deixou triturar. Apagou-se

o vulcão e aquele cego iluminado pela Luz superior, lavou toda aquela

torpeza endurecida por muitos anos com o sacramento da penitência e

espontaneamente assumiu a penitência de acompanhar Malagrida nas suas

expedições apostólicas e de se penitenciar para sempre. (...) Fez isso por seis

meses, mas passado estes, caiu doente e entregou sua alma com não poucos

indícios de eterna salvação177

.

Nesse exemplum da obra de Matias Rodrigues, por exemplo, o tema da lição que é

transmitida refere-se a prática da luxúria.

Ilario afirma que a hagiografia é um elemento cultural comum tanto para a elite

quanto para o vulgo, diz que ela constitui-se em elo de união e cria a identidade de uma

177

RODRIGUES, Matias. Vida do padre Gabriel Malagrida. Belém do Pará: Centro de Cultura e Formação

Cristã, 2010. pp. 240-241.

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sociedade, embora possam co-existir diferentes maneiras de compreender e interpretar os

relatos por ela apresentada 178

. De fato, um dado cultural, muitas vezes quase que folclórico é

assumido como parte integrante da identidade de uma sociedade, por isso é conhecido, quanto

narrativa, por todos.

Diante das narrativas que podemos classificar de pertencentes à literatura hagiográfica,

impõe uma questão que é justamente em relação aos relatos milagrosos, extraordinários ou,

pelo menos, não ordinários da vida cotidiana da época. Em princípio, poderíamos classificar

todos eles como fantasiosos ou mentirosos e reduzir toda a riqueza da literatura hagiográfica

em lendas ou fábulas folclóricas. Todavia, não aceitar como verdade histórica os fatos

narradas tanto na Legenda Áurea quanto na Vida do padre Gabriel Malagrida, não significa

absolutamente não aceitar que há um certo tipo de verdade nessas narrativas. “Para Jacopo de

Varazze, ‘verdadeiro’ não era a correspondência com a realidade externa, objetiva e concreta,

e sim com tudo aquilo que escapava à esfera humana, que revelava o magnífico destino do

santo simbolicamente anunciado por seu nome” 179

. A narrativa da vida de Malagrida precisa

ser compreendida nessa mesma perspectiva, pois,

A verdade literária não se situa em sua exatidão histórica, mas na busca e

compreensão do sentido da vida e do homem: isso não nega o belo, mas o

integra (...) Na literatura, verdade e beleza não se excluem, mas integram-se

e completam-se, em uma relação de afinidade (...) Isso não significa que é

suficiente ser belo para ser verdadeiro. O que queremos afirmar é que, na

literatura, a beleza e a verdade podem conviver, de tal maneira que uma não

exclua a outra180

.

De fato,

A obra de Jacopo de Varazze registrava a nova harmonia da dupla

perspectiva, verbal e gestual. Com efeito, o Universo nascera através da

palavra (‘faça-se a luz’ Gn 1,3; ‘no princípio era o Verbo’ Jo1,1), mas o

ponto culminante da Criação dera-se com o trabalho manual de Deus

(‘modelou o homem com terra’ Gn 1,7). O mundo conhecera a verdade

178

Cf. FRANCO, Hilário Jr. Apresentação In: VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: Vidas de santos. São Paulo:

Companhia das Letras, 2003. pp.14-15. 179

Ibidem. pp. 17. 180

MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: Reflexão teológica a partir da antropologia contida nos

romances de Jorge Amado. São Paulo: Edições Loyola, 1994, p. 26-27.

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através da pregação de Cristo, mas tão importante quanto ela para definir a

sociedade cristã foi seu gesto da divisão do pão entre os apóstolos e o rito

decorrente de seu pedido para que aquilo fosse sempre repetido “em minha

memória” Lc 22,19; 1 Cor 11, 24-25. Foi através de palavras e gestos que

Deus encarnado propôs novos comportamentos e curou os homens

individual (milagres) e coletivamente (salvação graças ao sacrifício da

Cruz). Palavras e gestos multiplicados pelos verdadeiros seguidores de Deus,

os santos, que pela sua própria pregação e seu próprio martírio reatualizavam

palavras e gestos arquétipos181

.

Malagrida não é uma exceção.

3.1.4 O Martírio em Vida do padre Gabriel Malagrida a partir do modelo

hagiográfico em Legenda Áurea

Como vimos até aqui, há diversos elementos do modelo de santidade medieval-

colonial presente na Legenda Áurea que está também contemplado na obra de Matias

Rodrigues.

De fato, ele chega a afirmar que Malagrida

Empreendeu jejuns três vezes por semana e outros gêneros de mortificações

(...). Às vezes, quando à mesa com os outros alunos de Retórica, era trazido

algo de mais delicado recusava as trutas fluviais e peixes agraveis ao paladar

que lhe eram apresentados. (...) Nas missões muito apropriadas para exercer

seus ardores, conduzia sempre uma vida muito austera beirando até a morte,

o que todos admiravam. Ninguém o podia imitar (...) 182

.

181

Cf. FRANCO, Hilário Jr. Apresentação In: VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: Vidas de santos. São Paulo:

Companhia das Letras, 2003. p. 21. 182

RODRIGUES, Matias. Vida do padre Gabriel Malagrida. Belém do Pará: Centro de Cultura e Formação

Cristã, 2010. p. 441.

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Quase sempre ia de pé descalço em qualquer estação ou caminho que

enfrentasse, o que na América são, pelo comum, muito longos e repletos de

toda a fadiga 183

.

Essa vida austera, descrita por Matias, que Malagrida levava também o é pelos santos

da Legenda. Das mais diversas formas, os santos demonstram o desapego aos bens materiais e

a austeridade no estilo de vida.

Gregório,

(...) por fim, quando perdeu seu pai, mandou construir seis mosteiros na

Sicília e um sétimo em Roma, este em homenagem ao apóstolo Santo André,

utilizando para tanto sua própria herança. Desfez-se então de seus trajes de

seda, carregados de ouro e pedrarias, para vestir o humilde hábito de monge.

Em pouco tempo alcançou tão elevada perfeição, que desde o início de sua

conversão estava entre os melhores do mosteiro 184

.

Quanto aos seus feitos, Rodrigues afirma:

Era tão industrioso e ardente o zelo de Malagrida que não só convertia os

pecadores por um momento ao justo caminho da salvação, mas inventava

para o futuro vários e muito úteis caminhos para que não caíssem de novo

nos vícios quando ele saísse ou morresse de uma vida sem pecado quando

não fossem tocados pelo veneno do pecado mortal 185

.

E elenca: “Na Vila de Camutá, não longe do rio Amazonas, iniciou um seminário186

”,

“fundou um seminário também no Maranhão187

”, “elevou desde as fundações, no mesmo

Maranhão, um convento em que se recolhiam honestas mulheres cuidando de sua salvação188

entre muitas outras. Correspondentes em Legenda Áurea é o que mais se tem: “Enquanto

183

Ibidem p. 443. 184

VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: Vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.280-281. 185

RODRIGUES, Matias. Vida do padre Gabriel Malagrida. Belém do Pará: Centro de Cultura e Formação

Cristã, 2010. p.431 186

Cf. Ibidem. p. 433. 187

Cf. Ibidem. 188

Cf. Ibidem.

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permaneceu em Acaia, o beato André fundou numerosas igrejas e converteu muita gente à fé

de Cristo”189

.

Entretanto, nosso olhar se volta agora para aquele ponto em que as duas obras, para

além das correspondências possíveis que já demonstramos, falam-nos daquilo que é um

elemento fundamental para que um homem ou uma mulher, na maioria das vezes, seja

considerado santo ou santa: o seu Martírio.

Narra-se que já em Portugal,

O agente régio (...) ordenou que Malagrida e os (...) Padres fossem colocados

em coches cercados de soldados armados e daí conduzidos no cárcere, como

se fossem os autores da célebre conjuração: crime totalmente falso. (...) A

verdadeira causa foi outra: o ódio implacável que tinham alguns potentados

do Palácio contra a Companhia por suas razões particulares, pelas quais

como para se vingar contra a Companhia se enfureciam para expulsá-la de

Portugal, com os principais luminares da mesma Companhia, como o Padre

Malagrida. Desejavam vexá-la com vergonhosas calúnias, denegrir e

extinguir. Só assim poderiam conseguir suas vantagens, honrarias e

satisfazer livre e tranquilamente sua cobiça190

.

Malagrida é preso injustamente pelo Estado. De fato, sua narrativa possuí muitos

elementos históricos verdadeiros visto que quando foi escrito, faziam poucos anos que esses

fatos tinham ocorrido. Da mesma forma foi preso São Longino191

, São Jorge192

, São Cosme e

São Damião193

e muitos outros.

O fato é que Malagrida acaba por ser transferido para o Tribunal da Inquisição, lá,

Os justíssimos Ministros do Tribunal da Fé ao conhecerem a acusação contra

Malagrida (elaboradas pelos seus adversários) ficaram atemorizados pelo

castigo não merecido, e (embora alguns Inquisidores e todos os das outras

ordens religiosas entendessem corretamente e os juízes fossem bem

dispostos) quando ouviram tantas testemunhas gritando contra Malagrida,

189

VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: Vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 62. 190

RODRIGUES, Matias. Vida do padre Gabriel Malagrida. Belém do Pará: Centro de Cultura e Formação

Cristã, 2010. p.400. 191

Cf. VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: Vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.296. 192

Cf. ibidem p. 365. 193

Cf. Ibidem. p. 795.

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pronunciaram a sentença de “autor e mestre de heresias” e o rebaixaram do

estado eclesiástico, vestiram-no com “grande herege” e o entregaram ao

braço secular. (...) Os seculares do Palácio e os Ministros da Suprema Corte

seguindo os passos dos Inquisidores e levada e submetida a causa aos cumes

do direito, condenaram falsamente Malagrida com morte ignominiosa,

vestido com hábito de réu; precedido por um pregoeiro nas públicas praças

da cidade de Lisboa; levaram-no até o Largo do Rossio, para ser

estrangulado, seu cadáver queimado e reduzido a pó e cinzas, a fim de que

não sobrasse alguma lembrança dele e de sua sepultura 194

.

A morte injusta e trágica é o que cela a narrativa hagiográfica do padre Malagrida,

muito embora Matias passe a dedicar vários capítulos ainda a mostrar que padre Gabriel

morreu injustamente, resultado de falsas acusações e de calúnias. Naturalmente, como jesuíta,

Rodrigues pretende mostrar o quanto sua Companhia foi percebida no regime pombalino e o

quanto isso está ligado a condenação de Malagrida.

Porém, é inegável que sua narrativa situe a vida e os feitos de Malagrida dignos de

veneração e que a partir do seu estilo de escrita hagiográfica que segue o modelo de santidade

estabelecido para a época, Padre Gabriel Malagrida, deva ser chamado de santo.

194

RODRIGUEZ, Matias. Vida do padre Gabriel Malagrida. Belém do Pará: Centro de Cultura e Formação

Cristã, 2010. p.401.

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CONCLUSÃO

A pesquisa apresentada envolveu longo tempo de trabalho. Todavia, depois de tudo

isso, o que temos é a certeza de que foi dada apenas uma palavra em relação ao resgate

histórico da figura do padre Gabriel Malagrida. De fato, o primeiro passo consiste em

compreender de forma crítica o contexto cultural da época colonial brasileira de modo a

identificar na raiz de muitas das práticas econômicas, culturais e religiosas vigentes entre os

colonos, aquilo que de alguma maneira provinha da Coroa portuguesa. Tal época histórica

destaca-se como um período peculiar em que em 300 anos, o distanciamento físico da

Metrópole, contribuiu para que o Brasil pouco ou nada mudasse em sua maneira de

organização.

Na ausência de grandes estruturas de controle eficiente do Estado e com grande

presença de missionários jesuítas, a Companhia destacou-se em sua atuação em terras

brasileiras na medida em que, por muito tempo, era tão somente ela, a Igreja, a única, por

assim dizer, “fonte” de civilização, ou melhor, a única instituição organizada. Não que o

Estado não tivesse uma organização, mas a tinha no sentido de exploração, de controle para

que a riqueza não se perdesse por aqui.

A presença de Malagrida, de odores de santidade, pelas terras brasileiras não passou

despercebida. Logo depois de sua morte, narrativas de sua vida como santo foram escritas.

Quando, no segundo capítulo, investigamos as diversas biografias que existem sobre a sua

vida, não tencionamos defender ou não a sua santidade. Buscamos compreender o conceito de

santidade por trás das narrativas. De fato, essa concepção ao longo dos anos possa por um

processo de maturação, em que o paradigma de santidade se modifica.

Nessa perspectiva, nossa discussão em torno da problemática da santidade, o terceiro

capítulo, nos leva a crer que há um modelo de santidade medieval colonial vigente na época,

em que as narrativas de Malagrida foram constituídas, sobretudo a de Matias Rodrigues, em

que esse modelo está em função de uma ideia que se quer propor. Diante da perseguição

contra os jesuítas e a paixão de Malagrida, a pintura do fato com as cores da causa apologética

torna-se consequência lógica diante dos últimos acontecimentos. Com estas referências é que

percebemos a formação da mentalidade religiosa do século XVIII, suas referências de

santidade herdadas da Idade Média, a relação Igreja-Estado em Portugal e Brasil face ao

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fenômeno Iluminista que estão presentes também nos aspectos da vida e sobretudo, na figura

de Malagrida.

A partir da investigação de suas biografias, sobretudo da obra Vida do padre Gabriel

Malagrida de Matias Rodrigues, é que encontramos um esquema narrativo proposto pelos

seus biógrafos que em muito se enquadra com o estilo hagiográfico, um estilo modelo da

literatura hagiográfica medieval existente na obra de Varazze, Legenda Áurea.

Esse esquema de modelo de santidade da literatura hagiográfica é formado pelo santo

propriamente, pelo fato extraordinário, ou seja, aquele que foge do que é o ordinário, do

cotidiano da vida, mas se manifesta a partir dele, uma autoridade, instituição ou outro

elemento que interagem, normalmente com o santo ou santa e, por fim, o povo que

testemunha o desenrolar narrativo. A ideia não é destruir as biografias já existentes, nem

desmitificá-las, mas demonstrar a interpretação dos fatos por parte dos seus contemporâneos e

aproximar tais narrativas para entrever que é possível uma interpretação a partir da

hagiografia que permita situar a história de Malagrida de modo a compreendê-la na

perspectiva de homem santo do período colonial. O relato de um personagem que possibilita

uma interdisciplinaridade.

A figura de Malagrida e a de Marquês de Pombal, assim como a da Coroa e da Igreja,

da forma como relata Matias Rodrigues, sintetizam em si elementos da Revelação presentes

no Evangelho, sobretudo no desenrolar das escolhas feitas pelos personagens: Jesus Cristo,

Império e Templo, Pilatos e a Igreja nascente. E tal representação não se pode entender como

uma cópia ou um plágio, mas como leituras a partir de um paradigma, que é a Revelação, pois

se o homem é um ser que sai em busca, é por não ter as respostas em si mesmo. E a resposta é

dada, desde sempre, pois Deus não muda.

Utilizando o termo “figura” se entende algo como uma marca impressa, um “tipo”

(typos), nuança já percebida nas escolas exegéticas de Alexandria e de Antioquia. Esta

categoria teológica está presente nos personagens da narrativa. Malagrida segue o padrão de

Cristo, enquanto Pombal, do Anticristo, no palco que é o mundo. Nos texto, há personagens

dos quais ninguém pode ficar sem tomar partido. Ninguém é neutro. O Cristo ou o Inimigo.

Tais características são presentes na leitura da História. Os mártires são typoi de Cristo.

A ênfase de mostrar o nível de formação de Malagrida ilustra que ele não era um tolo,

alguém incapaz de tomar partido ou decisões, de se posicionar diante do cenário eclesial. Sua

postura diante da Igreja, tanto em favor de indígenas quanto de colonos abandonados à

própria sorte, e diante do primeiro-ministro, não foram acidentais.

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Isto nos ajuda a compreender o modelo antropológico presente num sistema de

pensamento tipológico. O homem, não sendo compreendido um ser dividido em corpo e alma,

mas numa tensão entre pecado e graça, precisa se posicionar no mundo. Seu posicionamento é

externado em atitudes: missão, Inquisição, humanismo, acepção, diálogo, intolerância. Neste

aspecto, evangelizar é ajudar a se posicionar num mundo sempre em conflito de mudanças.

Nisto, Malagrida foi coerente em suas opções. Neste ponto se entende que o ser humano não

muda. Sempre precisa de salvação. Neste ponto se entende também a imutabilidade de Deus:

ele sempre oferece salvação.

Tudo isto nos leva a compreender uma dimensão da Teologia, num diálogo constante

com as outras áreas do conhecimento, num sentido de alargamento da compreensão de si

mesma. Ler uma obra como a de Matias Rodrigues, que por seu estilo setecentista pode

parecer um pouco carregada aos leitores do século XXI, abre um leque para a investigação

teológica: a interpretação da hagiografia como gênero literário próprio possibilita ver a

continuidade da tradição interpretativa da Revelação na história da Igreja, isto é, ler um texto

religioso como literatura trouxe elementos que ajudam a entender melhor a própria Teologia.

Deus não muda seu desejo de salvação. O homem não muda em sua necessidade de ser salvo.

São dois paradigmas impressos e projetados em tudo o que fazem, pelo fato de tais obras

projetam as estruturas de seus criadores: as atividades do homem, neste caso, manifestam o

desejo de salvação (às vezes às apalpadelas, como quem anda no escuro) e, ainda, a salvação

oferecida por Deus de forma gratuita, refletida na história.

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