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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Sílvia Galesso Prosa de combate, amor à prova – contratempos de uma cidade aberta MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Psicologia Clínica , Núcleo de Estudos da Subjetividade, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação do Prof. Doutor Peter Pál Pelbart. SÃO PAULO 2009 1

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULOPUC-SP

Sílvia Galesso

Prosa de combate, amor à prova – contratempos de uma cidade aberta

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Psicologia Clínica , Núcleo de Estudos da Subjetividade, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação do Prof. Doutor Peter Pál Pelbart.

SÃO PAULO2009

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Banca Examinadora

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Agradecimentos

Ao Prof. Dr. Peter Pál Pelbart, por ter me incentivado a seguir por este tema, por me

por à prova e dar todo o apoio de que precisei.

Aos professores do Núcleo de Subjetividade que, com suas aulas, me contaminaram

de ideias.

Às Profas. Dras. Denise Sant'Anna e Eliane Robert, pelas orientações preciosas na

qualificação.

Às minhas queridas interlocutoras Cida, Paula e Marcia, que acompanharam de

perto a construção dessa escrita em mim.

À minha mãe, Eloisa, pela presença e pelo carinho em revisar todo o trabalho.

Aos meus familiares e companheiros Bruno, Ri, pai, Gil, Binha, Marcelo, Sílvio, por

me alegrarem.

À amiga Maggie, pelo cuidado com a translation.

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Resumo

Este trabalho é uma conversa com a prosa de Marçal Aquino, autor da literatura

brasileira contemporânea. Como toda conversa, dá-se num vai-e-vem de

experiência, memória e invenção. As histórias contadas por esse autor levam a

pensar os modos de vida contemporâneos: com a luta pela sobrevivência, como

estaríamos embrutecendo? Com a atenção retida à produtividade, por onde vão os

gestos inéditos? Com a preocupação voltada para a eficiência, qual a força da

escrita? Rastros em uma cidade asfaltada.

Ao rastrear nossas condições e variações de existência, uns interlocutores se

escondem, alguns aparecem, outros são convocados e, assim, esta pesquisa se

constrói nas relações de proximidade e distanciamento, nos encadeamentos e vãos,

nas entrelinhas de acontecimentos, leituras e escrita.

A intenção deste trabalho é perceber as possibilidades de vida que atravessam a

obra de Marçal Aquino. Portanto, o foco deste estudo está menos em encontrar

resoluções do que em ver mais pegadas, pois as primeiras fazem-nos reproduzir o

que já está dado, é caso encerrado, enquanto as últimas são indícios de que vidas

passam por ali e nos empurram a uma perseguição viva.

Palavras-chave: Literatura brasileira contemporânea; cidades; modos de vida

contemporâneos.

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Abstract

This work aims at establishing a conversation with the prose of Marçal Aquino, a

contemporary Brazilian author. As happens in all conversations, it involves the

exchanging of experiences, memories and inventions. The stories told by this author

lead us to reflect upon our current way of life: Are we hardened by the daily struggle

for survival? If the spotlight is on productivity, is there any room left for creativity?

With our minds focused on efficiency, what is the role of the written language? Pen

strokes in a city of concrete.

As we track down our existential conditions and differences, some people may hide,

others come forward, and still others are summoned. These are the building blocks of

this research, which entails relations of proximity and distancing, connections and

empty spaces, underlying facts, readings and texts.

The main objective of this work is to bring out the many possibilities of life present in

Marçal Aquino’s work. Thus, the focus is on discovering more pen strokes, rather

than giving answers, for answers make us reproduce the given model, whereas pen

lines are indications of the life found in his writings and which can impel us towards

our own pursuits.

Key words: Contemporary Brazilian Literature; cities; contemporary ways of life.

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IntroduçãoSerras e chapadões p.7

As cidades p.9

FronteirasInfiltrações e alagamentos p.14

Inferno em vida p.17

Entre trincheiras p.22

Besouros e vãos p.27

CombateCidades que agenciam, cidades que destróem, desejos que arruinam p.31

Armas de afeto p.38

Julgar, fracassar, combater p.40

De carne e osso p.44

DistraçãoCircuito fechado p.51

O tumulto tem forças p.54

Trânsito livre p.55

Alerta p.60

Considerações Finais p.64

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Introdução

Serras e chapadões

Há muitos estudos que relacionam a formação dos grandes centros (como o Rio de

Janeiro, São Paulo, Brasília, Porto Alegre, Curitiba) com a literatura produzida

nesses cenários. Nos dias atuais, os grandes centros já estão consolidados: não que

as formas de vida tenham parado de se desdobrar, nem que as construções tenham

parado de se erguer ou de desmoronar, mas há características identificáveis nessas

cidades, como o ritmo acelerado dos acontecimentos devido aos adventos

tecnológicos, o alto contingente populacional tornando-nos anônimos e suburbanos,

as aparições e medos públicos. Como funcionam essas características no estilo de

escritura de Marçal Aquino? Essa é a pergunta que o presente estudo persegue: as

subjetividades urbanas criando literatura, o encontro no metrô despertando a

vontade de contar uma história. Há uma tradição de uso da cidade para descrever a

situação do homem contemporâneo e sua subjetividade - a forma como isso aparece

na obra de Marçal Aquino será também objeto deste trabalho.

Num contexto de esvaziamento da vida pública nas grandes cidades, da pouca

convivência entre as pessoas, de empobrecimento da experiência cultural e afetiva,

da perda de sentido e de humanidade podem-se, ao contrário do que seria fácil

pensar, gerar histórias muito ricas. Como se dá esse paradoxo é outra indagação

que atravessa esta investigação. Com as transformações urbanísticas e

tecnológicas, os espaços comuns perdem o sentido de compartilhamento e dão

lugar a espaços de consumo (os shopping centers). Os espaços comuns, agora, são

lugares de passagem (os metrôs, trens, ônibus e calçadas): será que essa

característica determina relações passageiras?

Na literatura de Marçal Aquino, a miséria e a maravilha estão nas ruas, então

violência e amor convivem sem precisarem aparecer personificados em

personagens. O autor joga com essas forças – cria amores cruéis e violências

sedutoras – e desafia o leitor a deixar seu posto de juiz para ocupar o lugar de

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adversário, mas um adversário que sabe que bom mesmo é o jogo entre os

jogadores.

Essa é uma pesquisa que se deu entre mim, as cidades, a produção de Marçal

Aquino (que data de 1990 para frente), outras leituras, conversas, andanças... Ela

acompanhou e se fez ao mesmo tempo que meus encontros. Logo depois de eu

decidir, finalmente, que iria trabalhar com a obra literária de Marçal Aquino e a

questão das cidades, houve a pré-estreia, na PUC, de um filme na qual ele estaria

presente, pois era o roteirista. Lá Aquino falou que sua motivação a escrever vinha

de sua perambulação: não tinha carro, então andava a pé ou de ônibus, e isso

facilitava escutar conversa alheia. Entendi, só depois de alguns meses presa na

depreensão da obra do autor em questão, que esse ir e vir da rua para a escrita

contamina uma e outra. A cidade vem morar nas palavras - quer fazer um

“puxadinho” aqui, derrubar uma parede acolá – e as palavras vão cumprimentar a

cidade - reverenciam construções arquitetônicas e vitais e engasgam com erosões.

Dessa contaminação eu não poderia me furtar. Era preciso dar palavras ao que se

passava em mim nos meus contatos com a leitura de Marçal Aquino. Para isso, não

bastávamos eu e o autor, mas tudo o que pudesse me ajudar a expressar ideias,

sensações, indícios despertados nesse trânsito.

Por isso esta análise ambulante não se encaixa em linhas metodológicas específicas

– porque ela pede ventilação no pensamento e não se beneficia de apropriações -

nem se baseia na política da interdisciplinaridade – pois não está a serviço de algo

maior que ela mesma. Este é um estudo a partir daquilo que a leitura e a escrita

despertam no pensamento. Está entre antropologia urbana, crítica literária e análise

psicológica, mas não é uma coisa nem outra. Para um pensamento que não se traça

por pontos fixos, não há método possível, apenas pontilhados, entreatos,

relances1.Aproveita-se dos vãos: é tímido e ousado. Protege-se da superexposição

das cadeiras acadêmicas, mas se expõe aos perigos de lugares de passagem.

A intenção do trabalho não é tornar a obra em estudo maior do que ela é e a vida

mais miserável, mas perceber "a potência da vida que atravessa a obra", como

propõe Deleuze2. A tentativa é fazer menos crítica à vida e mais criação de vida3,

1 Deleuze, G. e Guattari, F. Mil Platôs- Capitalismo e esquizofrenia, vol 5 , São Paulo: Editora 34, 1997, p. 47.2 Deleuze, G. e Parnet, C. Diálogos, São Paulo: Editora Escuta, 1998, p. 62.3 Idem, p. 63.

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assim como faz o autor em pauta: não cair em lamentações ou lições morais, mas

levantar opiniões, suposições, conexões. Abandonaremos áreas uniformes e

contínuas para percorrer quebradas, vincos, fendas.

O capítulo Fronteiras foi aparecendo aos saltos, em momentos em que invasões,

perigos ou passagens e frestas se faziam em partes do enredo e do pensamento.

Pega por forças saídas das histórias, averiguei do que tratavam os atritos pela

sobrevivência em Combate. Entre vários acontecimentos que repetem a mesma

experiência e outros que a inovam, entre a monotonia e o trânsito se deu o

Distração.

Como o estudo se ateve mais aos três romances de Marçal Aquino, um breve

resumo faz-se necessário: O Invasor é a narração dos fatos ocorridos a partir da

decisão de dois amigos, Alaor e Ivan, mandarem matar seu sócio, e também amigo,

Estevão. Os mandantes do crime se veem nas mãos do pistoleiro. Cabeça a prêmio

conta a história de um matador de aluguel, Brito: suas ações vão sendo

entrecortadas por romances - seu por Marlene, uma cafetina, e de Dênis e Elaine, o

piloto e a filha dos Menezes, para quem Brito trabalha. Eu receberia as piores

notícias dos seus lindos lábios, para o qual usaremos a forma reduzida Eu

receberia, tem como enredo o amor de Cauby e Lavínia. Cauby é um fotógrafo que

vai a trabalho para uma cidade do Pará e se envolve, de modo bombástico, com

Lavínia, uma moça com uma história de vida difícil e casada com o pastor do local.

As cidades

A cidade, na obra de Marçal Aquino, é onde os acontecimentos se dão. Ela é mais

do que pano-de-fundo e menos que personagem. Mais do que pano-de-fundo

porque não é cenário, não aparece em função da ação que nela se passa. Menos do

que personagem porque não é sobre ela que se estende a história. É a partir d' “o

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que pode uma cidade” (parafraseando Espinosa, com a idéia de “o que pode um

corpo”4) que a narrativa começa. A surpresa com a cidade vem da grandiosidade de

suas construções ou de sua singeleza, de seu funcionamento caótico ou de sua

pacatez, mas o que mais surpreende é a capacidade de acontecer na cidade: as

confluências sem fim, em qualquer lugar e todo o tempo, produzem efeitos - desde

mais íntimos, como sentimentos, até os mais externos, como ações – e pipocam

mais prédios, mais serviços e mais sofrimentos e mais paixões. É dessa

perplexidade que a literatura em estudo se faz. Marçal Aquino fala do que o motiva a

escrever: “parto da realidade, mas não é realidade”. É a cidade com tempo, ritmo,

movimento, arquitetura. São os corpos com músculos, ossos, órgãos e sangue. É a

cidade ensanguentada, é o corpo asfaltado, "é a lama, é a lama". Aquino fala com

outros corpos, fala de outras cidades. Ele passa pela Avenida Paulista e faz imaginar

cidades invisíveis como as de Ítalo Calvino5 – reinos da fantasia tão humanos. Ele

escuta a conversa de um casal no ônibus e deixa inventar a intimidade de uma

rotina.

A palavra cidade, quando aparecer neste trabalho, trará menos o sentido de grandes

cidades ou cidades globais, e mais a referência urbana que marca a vida

contemporânea das terras mais recônditas do mundo. Ou seja, o foco não será a

mudança quantitativa da cidade, mas a transformação qualitativa imposta pelo poder

de difusão dos grandes poderes (mídia, capital, Estado) e pela força dos combates

por uma vida sobressaltada, em São Paulo ou no Oiapoque; e seus efeitos em

novos conceitos e novas práticas6. Essa noção, então, ao invés de ser definida, irá

se multiplicar.

A cidade não será dividida em centro e periferia. Primeiro, porque ela pode ser vista

como um imenso subúrbio, como supõe Jeudy7: um território genérico que se

transforma em função das contingências e necessidades; produz demolições sem

nostalgia e executa planos sem antecipar o futuro; sua configuração se dá

justamente por não ter preocupação em ser singular ou se basear em critérios.

4 Idem, p. 73-74. “Daí a força da questão de Espinoza: o que pode um corpo? De que afetos ele é capaz? Os afetos são devires: ora eles nos enfraquecem, quando diminuem nossa potência de agir e decompõem nossas relações (tristeza), ora nos tornam mais fortes, quando aumentam nossa potência e nos fazem entrar em um indivíduo mais vasto ou superior (alegria).” 5 Calvino, I. As cidades invisíveis, Sáo Paulo: Companhia das Letras, 1990.6 Silva, G. “Cidade e Metrópole: a lição da metrópole”, In: Lugar comum – Estudos de Mídia, Cultura e Democracia, n. 25-26, Rio de Janeiro: UFRJ, mai-dez 2008, p. 146.7 Jeudy, H. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005

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Segundo, porque, se, de um lado a mundialização homogeneíza formas de

funcionamentos, padrões de serviços e regras de distribuição, de outro, ela espalha

desigualdades, antes opostas em centro e periferia, agora “entre malhas urbanas

superequipadas tecnologicamente, e sobretudo informaticamente, e imensas zonas

de habitat de classes médias e de habitat subdesenvolvido."8

A cidade, neste estudo, não é a metrópole nem o distrito, não se separa em centro e

periferia. É aquela que se forma no encontro. Diante disso, a genealogia (a história,

a formação) das cidades não será o foco deste trabalho; interessam mais os

entrelaçamentos, as intersecções, as articulações que construirão este espaço de

reflexão. Assim, algumas indicações serão importantes para situar as experiências

geradas, como, por exemplo, a queda dos muros das cidades medievais, mas com a

intenção de contextualizar e enriquecer a análise das experiências, do que e como

se passa nesses encontros.

A cidade não é um simples amontoado de edificações ou uma soma de pessoas em

uma área delimitada. Ela é a complexidade que se dá entre a sensibilidade

instantânea de sua paisagem e a experiência social de habitar esse espaço, defende

Marcelo Oliveira9. Ela é confronto de olhares e batalha de sensações e atos.

A proliferação inesgotável de imagens poderia estancar a percepção da cidade,

fazer da cidade vitrine. Mas essa profusão carrega em si sentidos incomensuráveis,

impossíveis de serem sujeitados a um totalitarismo da representação: “Na aurora do

século XXI, quando a gestão tecnocrática tenta infligir uma configuração cada vez

mais racional à configuração arquitetônica urbana assim como às modalidades de

organização das atividades urbanas, nem por isso a apreensão intuitiva e

sentimental da cidade desaparece.”10. É na experiência cotidiana de nossos corpos

na cidade – suas aproximações e distanciamentos – que o inédito pode ser

garantido, já que a perturbação de hábitos de representação será suportada pelo

corpo primeiro, para depois tremer estruturas, instituições.

A exposição no espaço público urbano pode tanto esmagar as preferências e gostos

do citadino, quanto estimulá-lo a não ver mais nada e, pela cegueira, inventar outra

8 Guattari, F. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 171.9 Oliveira, M. “ Avenida Paulista: a produção de uma paisagem de poder “ In: Arantes, A.(org). O espaço da diferença. Campinas: Editora Papirus, 2000, p. 21510 Jeudy, op. cit, p. 84

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maneira de ver.11. Adotar esse novo ponto de vista é assumir um ponto cego da

percepção e, não, se tornar vidente. Do contrário, a cidade pode tornar-se lugar de

desencontro ou a ser evitado: “(...) os homens de bem clamam por refúgios, e os

fora-da-lei cuidam de seus esconderijos. (...)Todos os encontros foram

desmarcados, e todas as conversas, silenciadas.”12. Nessa cidade de impedimentos,

a fala é abortada: briga e perde para os ruídos ensurdecedores dos trânsitos e das

máquinas; as vontades e pensamentos são expressos por gemidos, gritos, tiros e

ausências.

Para problematizar a questão do urbano, o foco de análise do trabalho será menos a

cidade como espaço geográfico e mais “o fracasso de um projeto de modernização,

de uma concepção de progresso que passa pelas agruras da urbanização (...)”13. A

cidade é signo e reflexo desse projeto malfadado que, além da passagem do modelo

agrário para a criação das cidades, inflige consequências sociais, como

concentração de renda e exclusões. Hossne analisa o eixo que conduz Eles eram

muitos cavalos, livro de Luiz Ruffato14:

(...) ao focalizar a sociabilidade, ainda que profundamente vinculada à

cidade de São Paulo, a narrativa ultrapassa-a, dando conta do fracasso do

projeto de modernização do país. O enredo, portanto, não trata da vida da

cidade, mas da vida na cidade. É assim que, mais do que espaço, mais do

que personagem, mais do que tema, a cidade é antes de tudo as relações

que nela se estabelecem (…). 15

Esse não é o foco principal da escrita de Marçal Aquino, mas será o meu recorte da

produção literária dele.

Em um trecho de EEMC 16, o narrador-personagem se pergunta:“são paulo é o lá

fora? É o aqui dentro?”. Lima, escrevendo sobre esse livro, responde: “São Paulo é

11 Idem, p. 118.12 Silva, H. R. “Do caráter nacional brasileiro à língua-geral da violência” In: Arantes, A.(org). O espaço da

diferença. Campinas: Editora Papirus, 2000, p. 302.13 Hossne, A. “Degradação e acumulação: considerações sobre algumas obras de Luiz Ruffato” In: Harrison, M.

(org.). Uma cidade em camadas. Vinhedo: Editora Horizonte, 2007, p. 19.14 Publicado em 2001, esse livro causou impacto no campo literário brasileiro por tratar um tema tão recorrente como a condição social do país de forma inovadora.15 Hossne, op. cit., p. 35-36.16 Ruffato, L. Eles eram muito cavalos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001, p 94

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o lá fora de sua multidão; é o aqui dentro de cada medo, esperança, desespero,

mesquinharia.”17. São Paulo, no presente estudo, é o entre – intervalo de relação

com pessoas, ambientes, idéias, sensações.

O trajeto se confunde não só com a subjetividade dos que percorrem um

meio, mas com a subjetividade do próprio meio, uma vez que este se

reflete naqueles que o percorrem. O mapa exprime a identidade entre o

percurso e o percorrido. Confunde-se com seu objeto quando o próprio

objeto é movimento.18

Deixaremos a cidade regrada e segura das certezas racionais e partiremos para a

exploração da sua paisagem esburacada e fugidia19. Este é um estudo de trajeto.

Nos trajetos não se sabe mais se o que se está perseguindo é o espaço/lugar ou as

coisas/os corpos/os seres ocupantes do espaço. E isso passa a não ser crucial

quando se desiste de seguir placas e crachás para acompanhar os movimentos

entre: os vestígios, as pegadas, as brisas, porque quando se está à procura de

singularidades de um material, somos arrastados por sua variação contínua e

forçados a abandonar fórmulas e constantes.

17 Lima, S. M. “Painel da condição humana” In: Harrison, M. (org.). Uma cidade em camadas. Vinhedo: Editora Horizonte, 2007, p. 145.

18 Deleuze, G. Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997, p.7319 Gagnebin, J. “Uma topografia espiritual” In: Aragon, L. O camponês de Paris . Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1996, p. 248.

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Fronteiras

Infiltrações e alagamentos

No século XVIII e início do século XIX, a cidade era caracterizada por se encerrar

num espaço murado, organizado militar, jurídica e administrativamente de forma

distinta de outros espaços. Com o crescimento do comércio e da população urbana,

as muralhas se tornaram obstáculo para intercâmbios econômicos e sociais. Surgia,

então, a necessidade de abrir a cidade para um campo de circulação: “Circulação

entendida, é claro, no sentido bem amplo, como deslocamento, como troca, como

contato, como forma de dispersão, como forma de distribuição também (…).”20. E

essa circulação não se restringia a mercadorias – ao contrário, abarcava ideias,

vontades e pessoas. A facilidade de trânsito propiciou a travessia de fronteiras

visíveis e invisíveis em busca de oportunidades e realização de sonhos.

Essa dinamicidade surtiu efeitos: o que antes distinguia os indivíduos, como sua

nacionalidade e seus costumes, já no século XX e XXI não se encontra fixado em

um território originário, mas acompanha deslocamentos materiais e simbólicos. As

fronteiras podem ser limites de um sistema, ou seja, o que dá forma a um sistema -

como é sua aparência, o que o constitui e como ele funciona, do que ele é capaz - ,

o que demarca o idêntico e estabiliza um conjunto de valores. Podem ser também a

linha que separa uma identificação com o que lhe é exterior - o que não se quer

como parte constituinte, seu fora, suas incapacidades, o que lhe é estranho. E além

disso, podem aparecer como um lugar instável, de passagem, de transição para o

diferente, de indiscernibilidade. As fronteiras, então, não são apenas uma linha que

compõe ou aparta territórios, mas um entre-territórios, uma zona de indiscriminação

e de articulação.

A distinção entre os seres humanos contemporâneos se dá por vias turvas, margens

embaçadas. Fronteiras tão bem demarcadas e que traziam sensação de alívio por

deixar cada coisa em seu lugar são apagadas e já não se sabe mais o que é aqui e

20 Foucault, M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 84.

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lá, centro e periferia, necessidade e vontade. Como observou Said, vivemos “uma

condição generalizada de sem-teto”21. A delimitação de fronteiras, a princípio, é

poderosa, na medida em que sua estrutura interna pode ser mais facilmente

controlada, estimulada e protegida. Porém, os contornos são vulneráveis: podem ser

empurrados, derrubados, engolidos e, assim, as experiências de um sistema podem

ser alteradas, atenta a antropóloga Mary Douglas22. Ainda mais quando expandimos

a noção geográfica de fronteiras e territórios para uma concepção existencial. O

território já não é imprescindível como solo comum, mas o sentimento de afiliação

precisa ser alimentado. A união das pessoas e o sentimento de pertença não está

mais numa demarcação de terras geográficas. Está num sentimento comum

imaginado. E com isso as fronteiras não são localizáveis apenas geograficamente,

mas imaginariamente e se remodelam a cada vez que o imaginário solicitar. O

agrupamento se constituirá por “uma trama onde atuam e circulam narrativas

midiatizadas, pessoas, discursos políticos que oferecem cotidianamente novos

expedientes para construção de si mesmos imaginados e de mundos imaginados”23.

Há uns que cruzam fronteiras com certa regularidade, parte das exigências de

negócios multinacionais, de empreitadas de bóias-frias ou de pensamentos flexíveis.

Outros as cruzam como recurso durável – os imigrantes, refugiados, exilados,

expatriados; reféns da sobrevivência. E há ainda aqueles que vivem nas fronteiras e

falam “oi” ao abrir a janela do quarto e “olá” ao sair pela porta da sala, ou pela janela

são vistos como loucos e são saudados na porta como salvadores. A procura por

modos de vida previsíveis é vã: “(...) as táticas tendem a prevalecer sobre as bem

planejadas estratégias de vida de médio e longo prazos.”24.

Os três romances de Aquino seguem rotas diferentes: O Invasor tem como território

São Paulo e percorre bairros nobres e pobres, grandes avenidas, metrô. Seus

personagens são donos de construtoras e puteiros chiques. Eu receberia as piores

notícias dos seus lindos lábios se ambienta no interior do Pará, em que a religião e o

garimpo são grandes forças da cidade. Cabeça a prêmio visita grandes centros,

como São Paulo, Campo Grande, Brasília, mas também conhece Porto Velho e

21 Apud Gupta e Ferguson, “Mais além da 'cultura': espaço, identidade e política da diferença” In: Arantes, A.(org). O espaço da diferença. Campinas: Editora Papirus, 2000, p. 35.

22 Douglas, M. Pureza e Perigo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976.23 França, A. Terras e Fronteiras no cinema contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003, p. 2624 Arantes, A.(org). O espaço da diferença. Campinas: Editora Papirus, 2000, p 7-8.

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Aripuanã, cidades-fronteiras. Esse nomadismo narrativo acompanha as manobras

dos personagens pela sobrevivência: a mulher que se torna cafetina para não ter

que depender de homem, o homem que aceita ser jagunço para ter dinheiro no

bolso, a moça que casa com um pastor para se afastar de suas fraquezas, os

amigos que mandam matar o sócio para crescerem no negócio.

A permeabilidade das fronteiras, portanto, não quer dizer desenvolvimento de

valores democráticos: nem sempre beneficia a todos e, por vezes, ergue outros

muros como garantia de diferenciação. Então, são os donos de construtora

encomendando trabalho para matador e o matador se impondo como segurança da

construtora, em O Invasor , ou somos nós, desencorajados a dar esmolas no metrô

por aquela voz de comando saída das caixas de som, mas impelidos a comprar

chocolate na banquinha da nestlé dentro da estação.

Vida, em “Carne-viva”, nome do segundo capítulo de Eu receberia as piores notícias

dos seus lindos lábios25, dá o teor dos arranjos dos personagens de Aquino para

escapar de impedimentos e resistir a imposições: a flexibilidade de fronteiras deixa a

vida mais arejada, aberta, exposta e frágil, porque essa exposição se dá a preço de

submissões e violências. “Para chegar onde deseja na vida, um homem sempre

acaba fazendo mais inimigos do que amigos.”, diz o provérbio montanhês, epígrafe

do livro O Invasor26. Nessa história, só se alcança o sucesso sozinho. Ter êxito

requer a competição com o outro e a derrota do outro. O outro é um rival e precisa

ser eliminado. Indivíduo é barreira para o que se espera como ascensão. O que não

é faroeste em Aquino (e fora dele)? Não há zona que não seja atingida por crimes e

violência de toda ordem. O bangue-bangue, antes confronto entre mocinho e

bandido, agora é rivalidade entre sobreviventes e sobressalentes. A disputa não é

mais pela instauração ou expulsão de uma condição fora-da-lei e, sim, pela defesa

da vida – quem desenvolve táticas tem mais chances num mundo que produz

sobras para sustentá-lo.

As infiltrações se dão nos interstícios e os alagamentos são violentos e abruptos.

Mas um pode virar o outro. Uma infiltração, aos poucos, pode derrubar uma parede

inteira e um alagamento pode provocar infiltrações em outra freguesia. Numa

25 Aquino, Marçal. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

26 Aquino, Marçal. O Invasor. São Paulo: Geração Editorial, 2002.

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infiltração, podemos passar umas duas demãos de tinta; num alagamento, um pasto

vira pântano para peixes, jacarés, tuiuiús. São formas distintas de ocupar um espaço

e transformá-lo em outra coisa.

Inferno em vida

Se o comportamento tático é uma preocupação, o corpo é requisitado. O foco do

sujeito desloca-se da intimidade psíquica para o próprio corpo. A subjetividade é

reduzida ao corpo: a sua aparência, a sua imagem, a sua performance, a sua

saúde, a sua longevidade. O medo de mudar, antes virtude, agora é desvalorizado.

O homem pode ser o que quiser e, com isso, o risco passa a ser valor. É preciso

arriscar-se quando a superação promete sucesso, mas, para tanto, o corpo, as

relações, os afetos devem ser provisórios. A possibilidade de ter um filho é uma

situação que aparece em vários momentos para os personagens de Marçal Aquino.

A concepção parece representar a baliza entre o homem provisório e o homem

permanente, porque um filho imporia confinamentos e responsabilidades que não

condizem com o que esses personagens ambicionam (eles não têm a intenção de

se perpetuar, querem apenas dar conta deles mesmos). Marlene, de Cabeça a

prêmio, queria ter um filho com Brito, mas ele não queria ser pai, porque podia

morrer a qualquer momento: “(...) vivia o tempo todo na condição de homem com os

dias contados.” 27.

É ilusória a ideia de que tudo é possível, pois o corpo não aguenta, o dinheiro não

dá. A resposta para essas impossibilidades, muitas vezes, inclusive nas histórias de

Aquino, não é abrir mão da ideia. Abre-se mão de seus limites para seguir adiante –

aceita-se qualquer coisa para ganhar dinheiro, transforma-se o corpo em objeto

inanimado.

A condição de possibilidade ilimitada é inerente à desordem. Para que haja ordem é

preciso restrição. De uma infinidade de possibilidades é selecionada uma gama

limitada. Dessa forma, é da desordem que a ordem pode acontecer, pois a primeira

27 Aquino, Marçal. Cabeça a prêmio. São Paulo: Cosac e Naify, 2003, p. 121.

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fornece o material para a última. Por isso, a desordem não é condenada:

“Reconhecemos que ela é nociva para os modelos existentes, como também que

tem potencialidade. Simboliza tanto perigo quanto poder.”28.

Foucault29 analisa que, com a expansão das cidades para fora de suas muralhas, no

século XVIII, ficou difícil controlar toda a movimentação de mercadorias e pessoas e,

com isso, o meio urbano se tornou mais vulnerável. Fazia-se necessário organizar

os fluxos de maneira que o que era indesejável, como doenças e criminalidade,

fosse minimizado, e o que era aspirado, como o desenvolvimento da economia e a

manutenção da ordem e dos bons costumes, fosse maximizado. O planejamento da

cidade deveria considerar suas múltiplas funções e seu potencial de acontecimentos

– sua desordem. Só assim a segurança seria alcançada: não se tratava de impedir

as circulações, mas de encontrar subterfúgios para que a própria circulação

anulasse seus perigos e riscos.

A desordem assinala o inferno, lugar sem contenções que acumula todo tipo de

idéias, crenças e valores. Ítalo Calvino fala disso, em seu As cidades invisíveis:

O inferno dos vivos não é algo que será, é aquele que já está aqui, o

inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos.

Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria

das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de

deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e

aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio

do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.30

Nas narrativas de Aquino há uma forte curiosidade pelo inferno do outro e a

tendência a se misturar nele: “Gente neurótica e infeliz pra caralho, gente que nunca

poderia ter se encontrado na vida – meu pai e minha mãe deveriam ter vivido em

países diferentes, um na Bahia e o outro esquimó, para evitar o risco de um

encontro.”31. Isso porque veem nele o perigo – e já que arriscar-se é valorizado, por

que não? – e o poder. Os personagens e tramas de Aquino, mais do que aceitar o

28 Douglas, op. cit., p. 11729 Foucault, op. cit.30 Calvino, I. op. cit .,p. 150.31 Aquino, Eu receberia, p. 21.

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inferno, se atraem pelo inferno e são por ele aniquilados (perdem-se na desordem

de tal forma, que não constroem nada), como é o caso de Brito e Marlene, em

Cabeça a Prêmio - um matador e uma cafetina se apaixonam, mas torna-se

infernal ter que conviver com mais o inferno do outro e, mesmo se gostando, não

conseguem ficar juntos.

Porém, no meio do inferno, outros se encorajam para criar passagem, como fez

Cauby, personagem de Eu receberia, ao se deparar com uma Lavínia

completamente enlouquecida e, mesmo assim, assumir o amor deles. E como faz

Marçal Aquino ao se arriscar num universo desconhecido em seus detalhes. É um

autor-invasor. A vida de um matador, a encomenda de uma morte ou até mesmo a

luta entre mineradores e garimpeiros só é vista pelo noticiário, com suas manchetes

sensacionalistas e suas reportagens especulativas. Luiz Ruffato, também escritor da

geração 90, expõe a diferença entre seu livro Eles eram muitos cavalos e o

jornalismo:

Talvez fosse possível que as histórias que narro no meu romance

estivessem mesmo no jornal, mas a linguagem é diferente. Ao contrário

do jornalismo, o que interessa não é o quem, mas o quê. A aproximação

com o jornalismo está presente, sim, na tentativa de mostrar o que

acontece no dia-a-dia. Mais do que isso, acho que EEMC reúne o que

ficaria de fora do jornal, o sangue do jornal, aquilo que ninguém daria

muito valor: o sangue humano, não o sangue da desgraça, mas as

experiências corriqueiras das pessoas32

Marçal Aquino joga mais com o corriqueiro e a desgraça, inverte um no outro, mas

em função de fazer correr “sangue humano” por suas páginas e no leitor. Além

disso, assume o ponto de vista de quem está na situação - como é o caso de alguns

contos e do romance Cabeça a Prêmio, em que o narrador-personagem é um

matador – o que é arriscado, porque é fácil cair num julgamento ou numa moral, o

que tornaria o livro uma fábula. Mas isso não acontece. O risco é o fôlego da

narração, o que a impulsiona. Em suas histórias, não há recurso capaz de nos livrar

32 Declaração de Ruffato em uma entrevista na PUC-Rio, em junho de 2003, citada em Harrison, M. (org.). Uma cidade em camadas. Vinhedo: Editora Horizonte, 2007, p. 138.

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ou salvar das aflições e perigos da vida. É a vida sem redenção final, demoníaca:

“Os demônios distinguem-se dos deuses, porque os deuses têm atributos,

propriedades e funções fixas, territórios e códigos: eles têm a ver com os eixos, com

os limites e com cadastros. É próprio do demônio saltar os intervalos, e de um

intervalo a outro.“33.

Na obra do autor em estudo é fácil pensar que há lamúria, queixume, pessimismo ou

mesmo a glorificação das maldades e feiúras da vida, porque é frequente o leitor se

deparar com frases como: “Deve ser horrível, pensei, envelhecer e continuar

acreditando que, no fim, as coisas podem acabar, de alguma maneira, dando

certo.”34. Difícil é ver possibilidades de vida em sua expressão crua e enxuta, em

seus personagens matadores-amadores e frios, em suas tramas entrecortadas e

sem final feliz. Mas há. Talvez Marçal Aquino seja um pensador amigo do risco, pois

vê no risco chance de acontecimentos. Aquele que corre o perigo de atravessar uma

circunscrição se depara com as forças que ameaçam as margens e pode aproveitar

de seu poder. Sem aventurar-se não há mudanças, acredita Douglas: “Toda vez que

um rígido modelo de pureza é imposto em nossas vidas, ou ele é muito

desconfortável ou, se rigidamente seguido, conduz à contradição ou à hipocrisia.”35.

A obra do autor em estudo tem como matéria-prima o que é recusado pela

sociedade – todas as suas raspas e restos. Sua literatura, então, rompe com as

exigências éticas e morais e não pretende ser pura.

A noção de sujeira prescinde de um sistema puro, pois ela é os inconvenientes de

um conjunto ordenado. Portanto, ela não é algo por si só, ela surge da relação entre

uma ordem e elementos ilimitados - ela é o que é rechaçado, já que uma

organização requer critérios que não são obedecidos por todos os elementos e, em

decorrência disso, produz sobras. A autora citada acima aponta dois momentos

pelos quais a sujeira passa e é tratada de forma distinta: no primeiro é considerada

algo fora do lugar, uma ameaça ao estabelecido e deve ser banida. No segundo, a

sujeira já passou por um processo de decomposição, suas características já estão

pulverizadas e seu perigo já se dissipou: “Onde não há diferenciação, não há

contaminação.”36. Nesse segundo momento não ocorre de o sistema se fortalecer e

33 Deleuze, G. e Parnet, C., op. cit., p. 53.34 Aquino, M. Faroestes. São Paulo: Ciência do Acidente, 2001, p. 96.35 Douglas, op. cit., p. 198.36 Idem, p. 195.

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ficar imune, porém ele não provoca mais tanto terror, porque, como a sujeira está

difundida, todo mundo é um pouco sujo.

O cheiro do subterrâneo já está impregnado nas calçadas da cidade, e seus

personagens já não precisam se esconder. O subterrâneo é aqui, é o mundo

compartilhado por todos; a adaptação com o escuro, com a sujeira, com o escuso

não é mais necessária. Somos o esgoto a céu-aberto, as ratazanas farejadoras, as

conexões-gato.

Os negócios do submundo estão cada vez mais próximos dos modos de

funcionamento dos grandes negócios. A gama de situações possíveis, ao se viver

na rua, as decisões a todo momento, a adrenalina alimentando o corpo requer uma

versatilidade que é quase a mesma requisitada para grandes postos em grandes

empresas... Mas o contrário também é verdade, pois os grandes negócios também

têm funcionamentos “por baixo do pano”. É uma apropriação livre e perversa, em

que difícil é encontrar saída, pois os ralos e bocas-de-lobo estão entupidos,

transbordando.

Se os elementos-fora de um conjunto trazem desestabilizações, confusões,

contradições, porque têm outras referências, distanciar-se do que é exterior a uma

unidade dá a impressão de proteger a ordem de tal união. Desse modo, evitar a

sujeira é um esforço para dar sentido a uma experiência, relacionar a experiência a

referências que a tornem compreensível, assimilável. As vivências nos dão

impressões movediças e a tendência é, diante dessa instabilidade, procurar formas

reconhecíveis que as traduzam. Assim, cria-se um padrão ao qual referimos nossas

experiências e no qual tentamos encaixá-las. Se elas não couberem, ou são

rejeitadas e se tornam entulho em algum canto, ou são aceitas e, então, o padrão é

revisto37. Enquanto a confiança vier da conservação, reproduziremos um sistema de

rótulos. Se pudermos confiar no que as experiências nos provocam, produziremos

mais experiências – que nos acrescentem, que nos engrandeçam. “Devemos, por

isso, perguntar como a sujeira, que é normalmente destrutiva, algumas vezes se

torna criativa.”38. A sujeira, na sua fase de indeterminação, é criativa falta de forma,

tem a potência da desordem. Ela difere da pureza, que é inimiga da mudança e, até

por isso, leva à incoerência ou a fingimento. A sujeira se torna criativa quando o

37 Idem, ibidem.38 Idem, p. 193.

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que é rejeitado é reinvestido para inovação de vida.

Entre trincheiras

Em Uma cidade em camadas, Leila Lehnen39 define a cidade como um não-espaço,

demarcado por fluxos constantes de bens, informação e sujeitos que destroem o

sentimento de coletividade e os pontos de norteamento dos indivíduos;

esvaziamento de sentido histórico e cultural e discursos de produção e consumo de

bens materiais. Nos não-espaços da metrópole contemporânea, os indicadores

econômicos é que determinam o posicionamento social dos indivíduos. Sendo esses

indicadores fracos e ambíguos, a desorientação social no território urbano se instala

e gera conflitos de todos os tipos: individuais, familiares, étnicos, sexuais,

socioeconômicos. As pessoas não sentem culpa, não têm remorso, pois só

conhecem simulacros de valores. A mundialização tem como estratégia abolir o

dentro e o fora e incorporar variados domínios de vida, mas, ao mesmo tempo,

exclui massas inteiras com essa pretensão de universalidade. As fronteiras

geográficas são removidas, mas fronteiras mais sutis aparecem. A convivência é

inevitável, mas é precária e frágil.

A cidade é assim uma terra de ninguém, onde a comunicação e a

sociabilidade dão lugar, por um lado, aos muros dos condomínios fechados

e às arenas protegidas do consumo. E, por outro lado, aos territórios

'proibidos' da periferia. As duas zonas somente se encontram nas zonas de

transição (as soleiras urbanas) e, inevitavelmente, este contato está

marcado pela exclusão e suspeita mútuas.40

Um mundo viscoso. Um mundo em que o brilho e a maciez fascinam e enganam

nossos sentidos ao absorver nossas fronteiras e impor penetrar nas dele. Um

39 Lehnen, L. “Os não-espaços da metrópole: espaço urbano e violência social em Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato” In Harrison, M. (org.). Uma cidade em camadas. Vinhedo: Editora Horizonte, 2007, p. 78.

40 Idem, p. 89.

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mundo invasivo. Por um lado, a obrigatoriedade de se conviver ameniza o

sentimento de solidão na multidão da cidade. Por outro, assusta ou mesmo enoja,

criando ilhas de proteção.

Os esconderijos dos jurados de morte que aparecem em Aquino ficam em extremos:

fronteiras, divisas, interior. Lugares de difícil acesso, com baixa população, vida

pacata, que ninguém escolheria para viver, só aqueles que querem ou precisam ser

esquecidos. Terra de ninguém. Encontros escassos, "Afinal de contas, como

Alfredão dizia, havia duas coisas fáceis de fazer na região. Uma era cruzar a

fronteira. A outra era arrumar inimigos."41.

As extremidades são pontos em que o sistema fica mais frouxo, a desordem dorme

ali. Mas foi-se o tempo em que os abrigos ficavam restritos às bordas. O bordel,

zona do meretrício, continua nas beiras de estradas, mas se espalhou pelos bairros

mais renomados e habitados da cidade, e assim aparece em Aquino. Brito e Albano,

de Cabeça a prêmio, o frequentam, nas horas vagas de trabalho, da mesma forma

que Cauby, de Eu receberia, como fotógrafo, Alaor e Ivan, de O Invasor, para

esquecerem os negócios, como distração, e como diversificação de negócio, já que

Alaor era sócio de um. Mas o sexo por dinheiro nunca é só isso – ele vem

acompanhado de algum envolvimento, um diálogo que seja: “Quando entramos no

quarto e começamos a tirar a roupa, ela perguntou se tinha alguma coisa especial

que eu gostaria que ela fizesse. Eu disse: tem sim, quero que você me faça

esquecer uma mulher.”42. O puteiro faz as vezes de paradeiro para as putas e de

fortaleza para os frequentadores. É como se a desordem ali pudesse reinar, então

não importa o que cada um procure lá, irá encontrar - até mesmo o amor.

A ordem ideal de uma sociedade é garantida por perigos que ameaçam os

transgressores e quem com eles se relaciona. Alguns povos primitivos consideram

que qualquer contato de um adúltero, mesmo um olhar, provoca doença em seus

vizinhos ou filhos. Douglas43, em suas pesquisas sobre diferentes povos, percebeu

que as regras de poluição não coincidem com as regras morais, elas apenas se

relacionam indiretamente com o código moral, na medida em que reforçam os

valores de determinada sociedade, pois elas são evidentes: ou um contato proibido

41 Aquino, M. Famílias terrivelmente felizes. São Paulo: Cosac e Naify, 2003.42 Aquino, M. O amor e outros objetos pontiagudos. São Paulo: Geração Editorial, 1999.43 Douglas, op. cit.

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ocorreu ou não, ao contrário do código moral, que é complexo, inconstante,

alterável. Já a ideia de sujeira da sociedade contemporânea está relacionada com o

cuidado com higiene e o respeito por convenções. Os progressos do conhecimento

podem mudar as regras de higiene, enquanto as convenções podem ser colocadas

de lado, em nome da amizade, define a autora, dando um exemplo de um pastor

que chega numa comunidade e bebe cidra em um copo usado e sua atitude é bem-

vista pelos anfitriões, porque ele se mostrou um homem comum, sem pudores.

Porém, o que mais se vê na literatura de Aquino são as regras para se evitar a

sujeira serem abandonadas, caso envolvam dinheiro ou algum benefício pessoal.

Tudo aquilo feito às ocultas, tudo aquilo considerado ilegítimo ou ilícito seduz os

personagens aquinianos – eles precisam correr perigo para que a vida valha a pena.

Dênis, em Cabeça a Prêmio, é piloto dos Menezes - mandantes de crimes - e se

envolve afetivamente com a filha de um deles: “Ambos sabiam que jamais teriam a

aprovação de Mirão. E a clandestinidade aumentava ainda mais a voltagem erótica

entre os dois. Estavam só esperando para ver o que iria acontecer. Enquanto isso

trepavam.”44. Em Eu receberia, o protagonista é um forasteiro numa cidade do

interior do Pará e no amor de Lavínia com o Pastor da cidade.

Já em O Invasor, como o próprio nome diz, a trama é toda voltada a transgressões:

empresários que mandam matar sócio para não perderem dinheiro e, com isso,

entram no mundo dos matadores; matador que penetra na empresa dos mandantes

como segurança e se envolve amorosamente com a filha do morto.

Mary Douglas aponta tipos distintos de poluição social: “A primeira é o perigo

pressionando os limites externos; a segunda, o perigo que surge da transgressão

dos limites internos do sistema; a terceira, o perigo nas margens das linhas. A

quarta, o perigo de contradição interna(...).”45. Então, nem sempre o perigo vem de

fora, ele pode surgir de uma invasão, de uma evasão ou de uma implosão de

fronteiras. Aquino experimenta todos eles, seja com elementos da linguagem

narrativa, que se contrapõem ao foco principal narrado, como o humor e a ironia,

seja com componentes das tramas (fatos, personagens, relações), que trazem a

uma cena um aspecto inesperado, que não condiz com a atmosfera predominante e

a acentua, e, assim, suas histórias ganham mistério, perversidade, contratempo,

44 Aquino, M. Cabeça a prêmio, p. 76-77.45 Douglas, op. cit., p. 151.

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fragmentação.

Ataques feitos de fora, seja a uma sociedade, uma instituição ou até mesmo uma

relação geram solidariedade interna. Ataques internos por membros do alvo são

punidos e a punição reafirma a unidade da estrutura. Em ambos os casos a ameaça

pode ser contornada. O problema está no sistema autodestruidor, alerta a autora

acima referida: a ambiguidade interna é tamanha, seus indivíduos almejam fins tão

diferentes, que a convivência promove uma espécie de guerra – uma guerra do

sistema com ele mesmo46. Cruzar fronteiras sociais não desperta uma convivência

tranquila, porque, de certa forma, as separações espaciais são fronteiras morais.

Marçal Aquino escreve sobre essas zonas de transição e os conflitos de suas

histórias suspendem as ordens sociais estabelecidas: todos estão à procura de boas

condições financeiras e os meios para se atingir esse fim são mais próximos do que

parecem – essa proximidade assusta o leitor de Aquino, porque ele também é

convocado a inverter suas ordens e a ser cúmplice desses enredos.

Durante o período do ritual de iniciação em algumas tribos, os jovens não têm lugar

na sociedade. Isso os autoriza a comportar-se de forma criminal e perigosa. É

esperada essa conduta antissocial daqueles que estão em situação marginal, pois

"Ter estado nas margens é ter estado em contato com o perigo, é ter ido à fonte do

poder."47. Nesse sentido, a literatura de Marçal Aquino pode ser considerada

marginal: ela está em contato com o perigo e tira poder disso. O autor se desloca

dos centros hegemônicos, fala a partir das margens – das relações sociais, mas

também da literatura, ao se relacionar intimamente com a realidade e fazer ficção

sem cair em documentarismo e, ainda assim, transmitir ao leitor a experiência de

horror, de candura, de solidão, de silêncio. “Distancia-se da realidade para,

paradoxalmente, a ela se remeter e para dela nos aproximar.”48, comenta Renato

Gomes sobre a prosa de Marçal Aquino, Luiz Ruffato e outros escritores da geração

de 90.

“Existem igrejas nas quais mendigos não dormem nos bancos, porque o sacristão

chamará a polícia.”49. Seria de se esperar outra atitude de uma instituição como a

46 Idem, ibidem.47 Idem, p. 120.48 Gomes, R. C. “Móbiles urbanos: eles eram muitos...” In: Harrison, M. (org.). Uma cidade em camadas.

Vinhedo: Editora Horizonte, 2007, p. 135.49 Douglas, op. cit, p. 170.

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igreja, defensora da ascensão pela palavra. Mas é ao órgão de vigilância e punição

que ela recorre para manter a ordem e a limpeza. O sistema de castas na Índia é

mantido por sanções sociais, políticas e econômicas como essa. Nem sempre as

linhas demarcatórias são bem protegidas, abrindo brechas para o cruzamento

dessas barreiras sociais. Para sustentar essas barreiras, então, tem-se a idéia de

poluição: ”O poluidor torna-se um objeto de desaprovação duplamente nocivo,

primeiramente porque cruzou a linha e, em segundo lugar, porque colocou outras

pessoas em perigo.” 50. Aquino não liga de ser um poluidor, cruza barreiras com

desenvoltura e gosta de provocar seus leitores ao mostrar um matador que se

apaixona, uma filha que mata o pai, um pastor que casa com uma prostituta.

Deleuze51 distingue um sentido criador à traição. Trair-se seria desvencilhar-se de

características certeiras, romper com marcantes reconhecimentos, abandonar

padrões tão seguros. O processo de desapego dá lugar à clandestinidade: tornar-se

desconhecido, viver o inesperado, esparramar-se sem rastros. Aos personagens de

Aquino (e a nós, que de alguma forma somos eles também) falta subtrair outros

sentidos à traição – menos ligados a corromper regras, posto que correspondem a

expectativas do sistema ordinário/ordeiro; mais dispostos a surpreender normas, a

considerar a vastidão de possibilidades da desordem. Só assim, além de

transgredir, estar-se-ia criando. Só assim, a infidelidade seria valente.

Gupta e Ferguson defendem que as fronteiras não são mais zonas marginais, sem

importância, escanteios. São, hoje, o terreno mais pisado e, nem por isso, mais

firme, do sujeito contemporâneo. O estado transitório e confuso e as saídas

múltiplas são aceitos e até bem-vindos.

As fronteiras são justamente esses lugares de 'contradições

incomensuráveis'. O termo não indica um local topográfico fixo entre dois

outros locais fixos (nações, sociedades, culturas), mas uma zona

intersticial de deslocamento e desterritorialização, que conforma a

identidade do sujeito hibridizado. 52

Se a fronteira não for vista apenas como contraposição ao fora dela, mas também

50 Idem, p. 170.51 Deleuze e Parnet., op. cit., p. 58.52 Idem, p. 45.

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como elemento constituinte de um local, a penetração não será tão ameaçadora,

acredita Doreen Massey53. Se a percepção de que as margens estão por toda parte

e são constitutivas de todas as menores relações, a geografia social poderá mudar

seu desenho: não será mais necessária a extirpação dos que geram incerteza, ou

pela exclusão (os subúrbios, as favelas) ou pela devoração (inclui mas enfraquece o

que tinha de força ali).

Besouros e vãos

Douglas sugere que, em algumas sociedades, observa-se a crença de que, de suas

áreas, inarticuladas forças são originadas. Isso porque há pessoas que não

pertencem inteiramente ao sistema social (devido a regras) e os que estão

integrados acreditam que da insatisfação daqueles se produzam poderes

incontroláveis. Os indivíduos intersticiais são, então, acusados de bruxaria pelo resto

do povo, para que a ambiguidade dessas áreas seja amenizada, o que é uma forma

de exercer o controle sobre regiões marginais e, por isso, poderosas e perigosas.

As bruxas são os equivalentes sociais de besouros e aranhas que vivem

nas fendas das paredes e nos lambris. Elas atraem o medo e a aversão

que outras ambiguidades e contradições atraem em outras estruturas de

pensamento, e a espécie de poder a elas atribuído simboliza seu status

ambíguo e inarticulado54 .

Para que as barreiras fiquem firmes e para disfarçar as contradições fabricadas pelo

sistema, elegemos indivíduos e atos particulares que levem a culpa da nossa

fragilidade ou do nosso fracasso, mas escondemos que é por esses mesmos

motivos marginalizados que obtemos sucesso. Nesse jogo arbitrário, vale cuidar e

oferecer proteção aos eleitos, mas que isso seja feito bem longe de nossos fortes –

53 Massey, D. “Um sentido global de lugar” In: Arantes, A.(org). O espaço da diferença. Campinas: Editora Papirus, 2000, p. 184-185.54 Douglas, op. cit., p. 127.

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nossas famílias e residências, nossos bancos e restaurantes. Asilamos, então, os

loucos e seus manicômios, os pobres e suas favelas, os criminosos e suas prisões,

os medos e suas síndromes – nossas bruxas atuais. O que aproxima o asilo das

fortificações é a procura por vãos: drogas, reconhecimento, dinheiro, amor.

A cidade e toda sua gente, em Eu receberia, são movidas pelo garimpo. A fonte de

riqueza se extrai da terra: “(...) estão liberando o rio para mineração outra vez. A

cidade à beira de um novo surto de prosperidade. É só ver como aumentou o

número de putas que circulam pelo centro e pelos lados da rodoviária. Noite e dia.

São as primeiras a farejar o ouro."55. A mineração, para a cidade, é sinônimo de

prosperidade, esperança de uma vida melhor, porque, mesmo sendo controlada por

uma mineradora, seu modo de funcionar propicia explorações clandestinas. Cheiro

de ouro, sonho de riqueza. O ouro é a passagem para outro destino, é o passaporte

para uma nova vida.

Ao deixar de seguir um padrão (padrão-ouro), o dinheiro, na passagem do séc. XIX

para o XX, pôde equivaler a qualquer coisa. Mary Douglas compara o dinheiro com o

ritual e tal é a proximidade dessa comparação, que ela chega a declarar ser o

dinheiro um tipo de ritual, já que ele representa um padrão externo e reconhecível

para operações confusas e contraditórias e faz a mediação de transações. Porém,

as sociedades primitivas lidam de forma direta com sua realidade econômica, sem a

intervenção do dinheiro, “enquanto nós estamos sendo sempre desviados de nosso

curso pelo comportamento complicado, imprevisível e independente do dinheiro”56.

Porém, se os rituais primitivos têm como base a exposição de passagens que se

dão no âmbito interno pessoal ou no transcendental do ambiente e, com isso,

discernem as posições sociais e as dos elementos naturais, o ritual-dinheiro tem

como princípio a imprevisibilidade, então sua transação não tem como fim uma

definição clara, mas um constante desvio.

Sharon Zukin aponta “(...) três amplos processos de mudança que atravessam o

século XX: a crescente globalização do investimento e da produção, a abstração

contínua do valor cultural em relação ao trabalho material e a mudança do

significado social – que era extraído da produção e hoje deriva do consumo.”57. Ou

55 Aquino, Eu receberia, p. 12.56 Douglas, op. cit., p. 115.57 Zukin, S. “Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder” In: Arantes, A.(org). O espaço da

diferença. Campinas: Editora Papirus, 2000, p. 82.

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seja, a obtenção de dinheiro se dá mais por investir e produzir do que pelo poupar; o

valor de um produto não está associado ao trabalho que o gerou e o status de um

indivíduo na sociedade é definido pelo que consome e, não, pelo que produz. A

equivalência que o dinheiro estabelece, portanto, não é direta nem precisa. Essa

facilidade de mobilidade e adaptação pode obstruir ou abrir passagens. O dinheiro

aparece nas narrativas de Aquino como solução para situações indesejadas, como

justificativa para escolhas duvidosas, como substituto de afeto. Só não substitui a

felicidade e o amor.

Porém, há uma desconfiança em relação a esses sentimentos: “Será que, como eu,

ela achava que a felicidade é um negócio que inventaram para enganar os pobres,

os feios e os esperançosos?”58.

Felicidade sem garantias é validada nas narrativas de Marçal Aquino. Felicidade

como obrigação, ideal, parâmetro, adultera seu princípio de potência: “Nada

corrompe mais que a felicidade”, afirma Peter Hoeg na epígrafe do livro Famílias

Terrivelmente Felizes, de Marçal Aquino.

A felicidade, nessa obra, não está no grau zero de tensão, mas em situações em

que há forças em luta, despertando potências para a vida prosseguir.

Os personagens procuram frestas, rasgos por onde possam arejar a vida – a mesma

procura do leitor em um livro. Na leitura da produção de Marçal Aquino, as brechas

se formam no incômodo alívio que ela provoca: aquilo que é lido não aconteceu na

realidade, mas a vida real nos diz que poderia acontecer.

A felicidade é sentida por poucos. Vem para quem vive na calmaria dos sedativos e

da poesia acabada, como afirma Aquino. Gente que aguenta a realidade, se tiver ar

em movimento, e que tem, no sonho, a arma para combater o amargo, o grosseiro, o

desassossego que é a vida na maior parte do tempo.

Uma vez, ela fugiu de casa e, de carona em carona, foi parar em Vitória.

Perambulou três dias pela cidade, até ser apanhada pelo juizado de

menores e reconduzida a Linhares. Tinha treze anos na ocasião. Tivera

oportunidade de descobrir que os vapores da cola de sapateiro podiam

afastá-la, ainda que por instantes, das unhas afiadas da realidade.59

58 Aquino, O amor e outro objetos pontiagudos, p. 31.59 Aquino, Eu receberia, p. 118

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O amor é o mais próximo que se pode chegar da felicidade. “Havia muito tesão

entre os dois. E amor também, que cada um chamava por um nome diferente, mas

que, no fundo, significava a mesma coisa. Confiança. A um passo da

cumplicidade.”60. Porém ele não é isolante do inferno cotidiano. O narrador-

personagem de Eu receberia diz que seu amor por Lavínia “já começou doente”. Em

Cabeça a Prêmio, o narrador também usa o termo “doença” para a relação de

Marlene e Brito. Talvez doença pelo intensivo, pela força que invade, contamina.

Uma doença que não quer ser curada, uma obsessão que não quer ser removida,

mas que tem efeitos devastadores.

Se o amor é o mais próximo que se pode chegar da felicidade, e se “o amor é

sexualmente transmissível”, como o título que apresenta um capítulo de Eu

receberia, o sexo tem papel definitivo na felicidade dos personagens das tramas do

autor em questão. O que não quer dizer que o sexo esteja restrito à felicidade, como

bem lembrou um escritor-personagem de Marçal Aquino:

No fundo, Elsa tinha uma visão romântica do embate sexual,

enxergando-o como o momento mais elevado de uma relação amorosa.

Para ela, o sexo sempre devia acontecer de forma delicada e lenta, à

meia-luz, de preferência em camas limpas, como a mais profunda

declaração de amor que uma pessoa pode fazer a outra. (...). Tenho

consciência de que em nenhum de meus livros se pode dizer que os

personagens 'fazem amor'. Afinal, pessoas infelizes fazem sexo por

inúmeras razões – hábito, tédio, rancor, piedade. Menos por amor.61

O amor é fronteiriço e, por isso, combatente. Ele é o pior perigo – traz comodismo,

adequação, sofrimento - e a única salvação – carrega possibilidade de invenção,

arma mais forte que o dinheiro e a guerra, segundo Aquino62. Nas tramas desse

autor há sempre espaço para o amor, por mais que nem sempre ele seja vencedor.

60 Idem, p. 140-141.61 Aquino, O amor e outros objetos pontiagudos, p. 84.62 Aquino em entrevista no programa Provocações da TV Cultura, nov/2008.

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Combate

Cidades que agenciam, cidades que destroem, desejos que arruínam

Numa época de dissolução de fronteiras, em que a troca de informação e bens

materiais e simbólicos é facilitada, expandem-se cercas de intolerância e gramas de

homogeneização; abafam-se pensamentos com a construção de tetos –

dispositivos de uma batalha disfarçada e cruel, comandada por valores econômicos.

A sobrevivência alicia a todos. Trincheiras de muitos tipos são cavadas e nós,

recrutas, estamos de prontidão, sempre esperando a invasão, cada um com sua

arma – muitas de fogo, poucas de artifício.

O momento de sobreviver é o momento do poder. O espanto diante da

visão da morte se dissolve em satisfação, pois não se é morto. (...). Na

sobrevivência cada qual é inimigo do outro (...). Ele se vê só, se sente só,

e, quando se fala do poder que este momento lhe confere, jamais se

deve esquecer que ele deriva da sua unicidade e somente dela.(...). A

forma mais baixa de sobrevivência é a de matar. Assim como o homem

mata o animal que lhe serve de alimento (...) assim também deseja matar

quem se interpõe no seu caminho, quem se opõe a ele, quem se ergue

diante dele como um inimigo.63

O dualismo entre a desculpa de não ter outra saída e o peso de que é você quem

decide seu caminho é resolvido sem subterfúgios: a sobrevivência se impõe às

escolhas e disso ninguém escapa. “É, não tem jeito, viver não permite escolhas. Não

se esqueça.”64. A salvação não está além dos meios de sobrevivência. Viver do que

se gosta parece uma afronta diante da realidade, afirmou Aquino65. Brito,

protagonista de Cabeça a prêmio, começou a ser pistoleiro porque era um trabalho

63 Canetti, E. Massa e Poder. São Paulo: Melhoramentos, 1983, p. 251.64 Aquino, Famílias terrivelmente felizes, p. 35.65 Aquino em entrevista no programa Provocações da TV Cultura, nov/2008.

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bem remunerado; diante de sua situação instável, sem emprego fixo havia algum

tempo, aceitou. Não gostava de gente e isso facilitava seu trabalho. “Brito, em geral,

achava os cães e os gatos, e até os ratos, mais interessantes do que as pessoas.

Ele gostava de animais. ”66.

No momento em que a vida depende da competição incessante, a violência torna-se

recurso cotidiano para a sobrevivência, seja no trânsito, no trabalho ou nas relações

familiares. ”Uma sociedade que não dá valor à vida não pode pretender que os

excluídos, do emprego, da escola, da vida familiar, considerem a vida um valor.

Violência é, também, resultado da progressão avassaladora do individualismo de

massas.”, sustentam João Manuel Cardoso de Mello e Fernando Novais67. A

violência não avançou apenas por causa das dificuldades econômicas ou das

privações materiais, mas também pela invisibilidade imposta aos excluídos, pela

vontade de que eles desapareçam, não existam, por se depositar neles o fracasso

da sociedade.

Rubem Fonseca, em seu primeiro livro, Os prisioneiros, escreve contos que têm em

comum personagens prisioneiras de si mesmas – desde prisões estéticas, como a

de uma moça que depende de uma plástica no nariz para ser feliz, até clausuras

existenciais, como a de um homem que acompanha a autópsia de uma amiga

assassinada e não se dá a liberdade de sentir-se completamente aterrorizado:

Na porta da rua o sol bateu em cheio no seu rosto. Ele fechou os olhos e

cobriu-os com as duas mãos. Disse: 'Putaquepariu', ainda com as mãos no

rosto. Abriu a boca como se estivesse com falta de ar. Isso por poucos

segundos. Logo em seguida descobriu o rosto, olhou para os lados para

ver se alguém o obsevava e compôs sua fisionomia.68

Rubem Fonseca, nos anos 60 e 70, trouxe à ficção o universo da criminalidade e

renovou a narrativa urbana. Tornou-se, com isso, referência para a prosa urbana

contemporânea. É possível perceber essa influência nas personagens de Marçal

Aquino, marcadas também por aprisionamentos: a impossibilidade de se livrar das

66 Aquino, Cabeça a prêmio, p. 49.67 Apud Hossne, A. “Degradação e acumulação: considerações sobre algumas obras de Luiz Ruffato” In:

Harrison, M. (org.). Uma cidade em camadas. Vinhedo: Editora Horizonte, 2007, p. 26.68 Fonseca, R. Os prisioneiros. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 29.

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grandes dores da vida, posto que não há fuga possível nem perdão de si, além de

estar no ódio a força da vida: “E havia coisas que eu não queria esquecer. Em

especial, as que me deixavam com ódio e me mantinham vivo.”69

A vida é pesada e cruel, mas o autor persegue resíduos de humanismo em seus

enredos. E o leitor acompanha o autor nessa perseguição, às vezes descrente

diante das barbaridades de que o humano é capaz, outras vezes desconfiado de

que os atos desumanos retratados tenham algo dele. Essa desconfiança é que tem

o poder de resgatar a comoção com o outro e consigo e que pode mudar

configurações espaciais e existenciais para habitá-las de forma diferente.

Guattari propõe a restauração de uma 'Cidade Subjetiva', onde os desenvolvimentos

técnicos, científicos, urbanos e estéticos possam estar a serviço da criação e

escapem da oposição derrota/conquista, da redução à conservação, do acúmulo de

riquezas. Então, a subjetividade não será um depósito do meio que a modelará, mas

uma subjetividade que se afeta pelo meio e um meio que tem o poder de afetar – a

“Cidade Subjetiva” é uma relação que mobiliza impulsos afetivos e cognitivos70.

Há, nas histórias de Aquino, personagens que se levam pelas errâncias do desejo,

restaurando uma 'Cidade Subjetiva'? Ou as cidades que se desenham em suas

tramas são como Anastácia?

(...)cidade enganosa, tem um poder, que às vezes se diz maligno e outras

vezes benigno: se você trabalha oito horas por dia como minerador de

ágatas ônix crisóprasos, a fadiga que dá forma aos seus desejos toma

dos desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo em

Anastácia, quando não passa de seu escravo.71

E acrescenta Calvino: “Não faz sentido dividir as cidades nessas duas categorias

(felizes ou infelizes), mas em outras duas: aquelas que continuam ao longo dos anos

e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem

cancelar ou são por esta cancelados.”72.

Deparamo-nos com três possibilidades nas rotas de Marçal Aquino - cidades que

69 Aquino, M. Faroestes, p. 32.70 Guattari, F. , op. cit., p. 170.71 Calvino, I. , op. cit., p. 16.72 Idem, p. 37.

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agenciam desejo, que destroem desejo, desejos que arruínam cidades.

A cidade-matadora – de afetos, de sonhos, de convivênca – não se transforma em

função das pessoas, as pessoas é que vivem em função dela. Uma cidade com vida

própria, com mais vida do que seus habitantes – sua arquitetura e estrutura de

organização regem os modos de existência: "Brito não gostava do bando de

burocratas engravatados que comia nas mesas ao seu redor, mas adorava Brasília.

Em sua opinião, a cidade parecia existir sem levar em conta as pessoas. Uma

cidade em que a presença humana tinha jeito de provisória."73. Edifícios com

faxadas extravagantes mas com interiores inóspitos ou construções para automóveis

como prioridade anulam a presença humana.

A divisão socioeconômica caracteriza os territórios urbanos brasileiros

contemporâneos e transforma-os em lugares de conflito, pois a coexistência não é

vista como compartilhamento de um espaço comum e, sim, como disputa de espaço

e existência. A simultaneidade de formas de ser tão díspares em um mesmo espaço

físico faz com que a interação humana tenda a ser passageira, superficial, tensa. A

falta de comunicação rompe ou mesmo não estabelece relações pessoais e sociais

significativas. Investe-se na acumulação material e no ritmo urbano acelerado e

eficiente e evitam-se contatos íntimos, com os outros e consigo, que possam

ameaçar essa ordem, afirma Leila Lehnen.74

O afeto não cabe nesse campo de batalha, portanto. Na maioria das vezes,

atrapalha. Brito, personagem de Cabeça a prêmio, não sentiu nada ao executar o

primeiro serviço como matador - nem medo, nem pena, nem prazer, como alguns

diziam sentir. O medo não é um sentimento muito presente nesse mundo. Ou

nenhum sentimento é muito presente. As histórias são como a descrição de Lavínia,

personagem de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios: “Criada num

ambiente rarefeito de afetos, tinha dificuldade na hora de identificar e nomear suas

emoções com precisão.“75. O amor aparece mais nas histórias de Aquino do que o

medo, porque é frequente o ponto de vista da narrativa ser o de quem provoca a

ameaça. O medo vem de arriscar-se e é indício para proteger-se. Mas, quando o

perigo está encarnado, não há espaço para o medo e a sensação de segurança já

73 Aquino, Cabeça a prêmio, p. 164.74 Lehnen, L. , op. cit., p. 77. 75 Aquino, Eu receberia, p. 127.

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não é mais possível: “Na rua, ao lado do cortiço, existia um boteco com mesas de

metal na calçada. Os dois homens que bebiam cerveja numa delas me olharam com

interesse. Sustentei o olhar e pensei no revólver que me apertava a cintura da calça.

Mas isso não fez com que eu me sentisse mais seguro.”76. Por outro lado, se não

existe mais diferenciação entre o indivíduo e o perigo, retomando a ideia de fronteira

do capítulo anterior, penetra-se no poder, pois quem habita as margens entra em

contato com a desordem que, mais do que falta de ordem, é a potência das

possibilidades.

O mundo provoca reações, mas elas não são externadas. Só há alguns indícios,

como um frio na espinha, um embrulho no estômago, um rosto pálido. Os

sentimentos são velados, freados, armados, derrotados: “Foi uma boa oportunidade

para Brito dizer que Marlene era a primeira mulher por quem se apaixonava. Mas ele

deixou passar. Preferiu beijá-la na testa, um prêmio de consolação.”77. O título do

livro Cabeça a Prêmio e a expressão “prêmio de consolação” mostram o paradoxo

vivido nessa história: matar tem valor alto, amor é consolo. De um lado, a vida vale

muito pouco, menos que um pacote de drogas, menos que matar alguém e o

dinheiro recebido por isso. De outro, isso é o que faz dela carne-viva, pois, do

contrário, é desbotada, morna como defunto fresco.

Nesse contexto, amar é suavizar o ordinário da vida – as contas, os compromissos

– e realçar o emocionante dela. Faz-se com coisas tolas e essenciais, belas e sujas.

É sonho barato, mas torna-se recurso de luta contra outros instrumentos de guerra –

o individualismo, o isolamento. Aquino mostra, em suas narrativas, que o ser

humano foi feito para o amor e, no entanto, não sabe amar. “Podia não amá-lo, mas

sentia-se amada, o que é bom, como sabe até mesmo o mais sarnento dos

cachorros de rua.”78. O amor vira-lata não é dado a muitos sentimentalismos nem a

grandes entregas - o que é possível sem que atrapalhe a virada das latas. O amor

vira-lata é vivido solitário; as dores e dificuldades não são partilhadas, são vividas no

silêncio. É um amor triste. O que se passa no corpo não é colocado no jogo da

relação, então não afeta o outro, é abafado. Parece haver a ilusão de que assim se

será poupado de sofrimentos.

76 Aquino, O invasor, p. 103.77 Aquino, Cabeça a prêmio, p. 140.78 Aquino, Eu receberia, p. 127.

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Sentir é desagradável porque não se compreende o que se sente. A falta de

intimidade não se vê só com sentimentos, mas com tudo o que remete à

proximidade: “Cecília nunca deixava a porta aberta quando usava o banheiro.

Estávamos casados havia mais de 15 anos e eu não conhecia o ruído que minha

mulher produzia ao urinar. “79.

Bem como nos territórios urbanos, nas histórias de Aquino os personagens evitam o

contato íntimo com outras pessoas: “Mais de quinze anos da minha vida iriam

terminar naquele telefonema. Melhor assim, pensei. Era mais higiênico.”80. Um

casamento é terminado por telefone, um problema é resolvido com encomenda de

morte, um amor é declarado por bilhete. As tramas, então, forçam aproximações;

acasos perversos que perturbam a tentativa de regulação pela distância: um

comparsa pode desfrutar da única mulher que o outro amou, já que ela é dona de

um puteiro; um jagunço pode se envolver com a filha das suas vítimas. O isolamento

pode poupar da contaminação pelo outro, mas não impede aproximações violentas.

Isso porque essa reserva ultrapassa a indiferença, ela provém de um

estranhamento, de uma aversão, de uma repulsa mútua dos ocupantes desse

espaço heterogêneo que é a cidade. E no momento em que entram em relação mais

próxima, podem disparar execração e luta.

São homens solitários os personagens de Aquino. Brito, o matador de Cabeça a

Prêmio, não conseguia estabelecer relações duradouras, porque vivia de tocaia e a

única mulher por quem fora apaixonado não aguentou saber que ele matava gente.

Ivan, de O Invasor, que já não se comunicava com a mulher e tinha casos

esporádicos com prostitutas, depois de encomendar a morte do sócio, passa a

desconfiar de todos. Lavínia, amante de Cauby em Eu receberia, fez da solidão sua

sobrevivência desde cedo, pois sua mãe bebia e seu padrasto abusava dela. Os

personagens não vivem de amparo, sustentam-se no movimento próprio de a vida

continuar. Porém, suas façanhas são glórias solitárias, com pouco poder de

mudança na forma de existir.

A desestabilização gerada pela coexistência com outros é insuportável. Com isso,

armaduras são requisitadas para afastar a afetividade.

79 Aquino, O Invasor, p. 21.80 Idem, p. 98.

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A dissimulação é uma delas: “Foi difícil fingir dor onde existia nojo. ”81. Mas disfarçar

os sentimentos não é tarefa fácil, e o corpo é convocado a mostrar sua face

barragem: “Eu estava à beira de um esgotamento. Tinha dormido pouco nos últimos

dias, não conseguia raciocinar direito. E levava um susto cada vez que o telefone

tocava. Achava que era a polícia avisando que vinha me apanhar.”82.

A desterritorialização é outra defesa. Os personagens não têm raízes fixas. Seus

deslocamentos são definidos pela necessidade que a sobrevivência lhes impõe.

O ser humano contemporâneo é fundamentalmente desterritorializado.

Com isso quero dizer que seus territórios etológicos originários – corpo,

clã, aldeia, culto, corporação... – não estão mais dispostos em um ponto

preciso da terra, mas se incrustam, no essencial, em universos

incorporais. A subjetividade entrou no reino de um nomadismo

generalizado.83

A desterritorialização está presente nos personagens de Marçal Aquino. Em O

Invasor, o narrador-personagem Ivan sempre morou em São Paulo, mas ao estar

transtornado por ter mandado matar seu sócio e ser pressionado pelo capanga, vê

como solução ir embora para bem longe de lá. Já em Eu receberia, o narrador-

personagem Cauby era de São Paulo e foi a uma cidade no interior do Pará

desenvolver um projeto profissional. Ficou lá por algum tempo e depois cansou da

vida que levava e quis ir embora. Mas não pôde. Em Cabeça a prêmio, Brito resolve

se instalar em São Paulo só depois de manter um romance com Marlene, uma

cafetina, mas quando a relação acaba, ele não vê mais sentido em voltar para casa

depois de suas viagens pelo Brasil atrás das encomendas de morte. Não há, para

esses personagens, nada que os prenda em algum lugar, não há suprimentos que

só se consigam em um determinado local. Eles não precisam de um porto-seguro,

vivem um nomadismo pela sobrevivência e pelo provisório – a vida deve prosseguir,

independente de como. Então, a desterritorialização não se caracteriza apenas pelo

81 Idem, p. 59.82 Idem, p. 58.83 Guattari, F. op. cit., p. 169.

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desapego a um território geográfico, defende Rolnik84, diz respeito também a um

modo de viver mais solto, em que são os encontros que dão a toada, ou seja, o

encontro entre corpos (objetos, pessoas, ideias) produz intensidades imprevistas

que, se forem aguentadas, podem tornar-se novas matérias de expressão, outras

formas de existência, mas se forem somente renegadas ou adaptadas, um mesmo

modo de ser persistirá. E é a última possibilidade que observamos acontecer nas

histórias de Aquino: a desterritorialização territorial não alcança a desterritorialização

existencial, ela só garante a manutenção da vida.

Num front como esse, a sensibilidade se embrutece, passa por um processo de

normatização: o que é lei se torna norma, primeiro pelo medo – não há mudança de

vontade – mas depois vira prazer.

Armas de afeto

Segundo Foucault, da Idade Média ao século XVI, a soberania era exercida sobre

um território e, por consequência, sobre os habitantes. A partir do século XVIII, a

população deixa de ser só a espécie humana e agrega em sua compreensão suas

opiniões, seus comportamentos, seus temores, suas exigências; e tudo isso pode ser

influenciado por meio de convencimentos, com campanhas, discursos, educação.

Não é mais uma circunscrição territorial que é governada, são os homens e seus

vínculos – as riquezas e os recursos de um território, ou seus acidentes e

calamidades. Se a população era feita de indivíduos cujo comportamento não se

podia prever, com essa mudança, porém, a população passa a ser um conjunto de

elementos no qual se notam constantes e regularidades. Uma delas é o desejo, que

depende de certo número de variáveis e, se identificadas, são capazes de modificá-

lo. Portanto, torna-se possível controlar o desejo por meio do conhecimento de suas

variáveis constituintes. O desejo, então, é percebido como o elemento unificador do

conjunto e fundamental à técnica governamental para estabelecer regras e

monitorar comportamentos, porque, ao descobrir um interesse individual (o desejo

particular de cada indivíduo), é possível produzir um interesse coletivo: “Produção do

84 Rolnik, S. “À sombra da cidadania: alteridade, homem da ética e reinvenção da democracia” In: Boletim de Novidades, Pulsional – Centro de Psicanálise. São Paulo: Livraria Pulsional, , n.41: 33-42, setembro de 1992.

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interesse coletivo pelo jogo do desejo: é o que marca ao mesmo tempo a

naturalidade da população e a artificialidade possível dos meios criados para geri-

la.”85. A gestão da população não estará baseada em impedir ou obrigar, mas em

entender como as coisas vão se produzir para, daí, usar a proibição ou a prescrição

como instrumentos que reconduzam essa produção. Além disso, a guerra econômica

produz formas de vida padronizadas. O que se pensa e o que se deseja está

estabelecido, pois “Com os meios de produção tão concentrados e os meios de

consumo tão difusos, a comunicação dessas imagens torna-se um meio de controle

tanto do conhecimento quanto da imaginação: uma forma de controle social.”86.

Portanto, quando a concepção de população se instala e o desejo se torna engenho

para governar a massa, as possibilidades de vida se reduzem a um concerto

orquestrado. Estamos sitiados. Os desejos artificiais transformam cidades em ruínas.

“Resta saber em que medida, diante disso, todos e qualquer um, por mais anônimo

que seja, ou precário, é também, virtualmente, criador de mundo, na medida em que

inventa ou toma posse de sua maneira singular de ser, sentir, desejar, crer, habitar,

locomover-se, falar, afetar e ser afetado.“, afirma Peter Pál Pelbart87. É preciso lançar

mão de um espírito inventivo e artesanal, porque é nas ações mais peculiares,

arraigadas de funcionamentos caducos, que o improviso produzirá diferença:

nuances de fala, de leitura, de andar. Poucos são os que sabem usar os afetos como

arma de guerra. Para isso, eles precisariam sair da interioridade dos indivíduos e ir

para a frente de batalha, com a ' força de catapulta', como bem designaram Deleuze

e Guattari88, impulsionando transições e atingindo sentinelas. Os afetos são revides

inesperados, são descargas de emoção impulsivas, sem tempo de avaliações

defensivas e, justamente por isso, são tão potentes, pois são respostas de uma força

à outra que fogem do previsível. Só assim a cidade-desejante persistirá em aparecer.

Um território promovido por desejo; desejo que não se explica por relações causais

não é efeito de algo, não tem razões. Ele está em toda parte, é o incorpóreo, é um

estado de experimentação no qual não se sabe onde se vai parar. É estar junto por

ausência de liame necessário. 85 Foucault, M., op. cit., p. 95.86 Zukin, S., op. cit., p. 96. 87Pelbart, P “Estética e política” in: http://www.cultura.gov.br/programas_e_acoes/cultura_e_pensamento/acervo/

textos/index.php?p=31360&more=1&c=1&pb=1

88 Deleuze, G. e Guattari, F. , op. cit., p. 47.

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Julgar, fracassar, combater

As ilegalidades não se dão por uma mera vontade de subverter a lei; elas são

resultado de um processo de urbanização excludente, baseado na reprodução da

força de trabalho por vias informais e expedientes de subsistência que vigoram até

hoje, defende Andrea Hossne89. O que quer dizer que o próprio desenvolvimento de

mercado põe para funcionar ilegalidades e se aproveita delas para prosperar.

Além disso, o direito de escolha, pressuposto da lógica de mercado, não se constitui

no Brasil, porque o indivíduo não tem renda suficiente que o sustente para ter

autonomia. No ideário liberal, a autonomia é mais importante que a mercadoria. Isso

porque esse sistema faz uma simetria entre indivíduo e autonomia, entre cidadania

e democracia e o mercado é o lugar onde se exercita o direito de escolha. Se não

são formados mercados, não há como formar a autonomia – é o caso das

periferias.90

Portanto, a percepção social, principalmente a dos excluídos do mercado, precisa

ser menos da ordem da lei e mais da lógica da sobrevivência – autonomia é

sobreviver. Há um código de ética entre os matadores?

E freira?

Albano refletiu por um instante. Ele havia falado que existiam duas

espécies que não aceitava matar: padres e mulheres grávidas. Daí, riu.

Diacho, Brito, por que alguém ia querer matar uma freira?

Sei lá. Você faria?

Acho que não. 91

Os matadores, em Cabeça a prêmio, não aceitam matar padre, mulher grávida,

freira e criança. Mas tem quem faça. A inocência é predefinida, baseada no que se

89 Hossne, A., op. cit, p. 24.90 “Vintém. Teatro e cultura brasileira. Companhia do Latão.” In: Harrison, M. (org.). Uma cidade em camadas.

Vinhedo: Editora Horizonte, 2007, p. 40.91 Aquino, Cabeça a prêmio, p. 95.

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espera desses representantes sociais e, talvez, matar inocente seja sinônimo de

sentir culpa, o que é inaceitável para quem mata com profissionalismo, isto é, sem

contaminações, sem se envolver pela história de sua mira.

“O sindicalista Josué, naquele momento, teve sua vida poupada. Involuntariamente.

Ganhou uma sobrevida de mais três meses, depois do que outro pistoleiro o

matou.”92. Vida e morte controladas por traficantes e seus capangas e, quando não,

pela população. Aos olhos dela a ação de matar não é primordial, o que importa é o

que causou a ação, é o julgamento. Se for justificável, o assassino é absolvido.

Suspeitos viram culpados e o juízo final é do povo.

Naquele momento, eu já fora declarado inocente de forma oficial. Punido,

mas inocente. (...)Mas de que adiantava ser absolvido àquela altura?

Como reparação, ganhei apenas o salvo-conduto da indiferença dos

demais.(...). O apedrejamento ungiu-me com um halo de santo, tornou-

me uma espécie de animal sagrado da aldeia.93

A punição não está relacionada à inocência confirmada pela lei. O que provoca

medo na população – o anormal, o inesperado, o sem-razão – pede justiça. Julgar é

instrumento de ataque para aquilo que nos pega de assalto e nos tira o norte. Faz-

se necessário condenar, sentenciar, punir, para nossa tranquilidade voltar.

Àquele que nada mais quer que julgar a vida, Deleuze intitula “homem verídico”.

Esse homem percebe a vida como um mal a ser condenado e busca uma verdade

moral na qual baseará o julgamento. Além dele há o “homem de vingança”, homens

cansados de viver, que sentenciam a vida pelo seu esgotamento. Porém, ao

contrário dos homens verídicos que julgam a vida em nome de valores superiores,

os homens de vingança pretendem julgar a vida por conta própria; superiores são

eles e, não, os valores. O autor acima citado supõe que opor à morte a vida, mesmo

essa vida definhada, seja melhor que lhe opor valores superiores. Isso porque, ele

garante: “(...) não existe valor superior à vida, a vida não tem de ser julgada, nem

justificada, ela é inocente, tem a 'inocência do devir', para além do bem e do

92 Idem, p. 133.93 Aquino, Eu receberia, p. 216

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mal...”94. Trata-se, então, de avaliar as situações, as pessoas, os sentimentos pela

configuração de vida que elas produzem ao invés de julgá-las por uma instância

superior, distante da experiência. No lugar de condenar ou inocentar, gostar ou

detestar, fortalecer ou enfraquecer.

A obra de Marçal Aquino é um combate contra o juízo. Não há uma disputa entre

bem e mal e, no final, alguma dessas forças vence, nem se referencia a experiência

a uma transcendência, pois é baseado na própria experiência, e não fora dela, que é

possível afirmar se ela faz produzir ou reproduzir. O combate é pela vida, para a vida

prosseguir, embora os próprios personagens fiquem entre combater e julgar: em O

Invasor, o julgamento é predominante e leva o personagem principal à loucura, pois

torna-se insuportável o fato de ter mandado matar o sócio e conviver com o

criminoso como segurança de sua empresa; recorre à delação como saída. Em

Cabeça a Prêmio, o julgamento se dá em atos de eliminação. Nada sobra: o

matador fica sem a mulher que ama, o piloto que se envolve com a filha de seus

chefes traficantes é morto pelos jagunços deles, e a narrativa termina com a filha de

um dos traficantes prestes a matar o pai. Por fim, em Eu receberia, o julgamento

acontece com a população apedrejando Cauby por achar que ele era o assassino do

pastor da cidade, mas o combate aparece em sua forma mais positiva – um

combate-devir. “Não tem ideia mas fala do fim. Todos falam, é fácil. Quero saber

quantos tiveram a coragem de ir até lá. De encontro ao fim. Eu tive.”95. Ir de encontro

ao fim é combatê-lo e colher seus efeitos. Não é “vamos acabar com quem nos julga

para, a partir daí, alcançar a paz”, mas, pelo contrário, é aí que começa outra guerra

– o combate.

Em O Invasor, a oportunidade é individual, não é transmissível. A apropriação

depende da desapropriação de alguém: “No fundo, esse povo quer o seu carro, Ivan,

Alaor disse. Querem o seu cargo, o seu dinheiro, as suas roupas. Querem comer a

sua mulher, entendeu? É só surgir uma chance.”96. A única solução para acabar com

concorrências e divergências é acabar com a vida de quem as está causando. A

ideia de que quanto mais linhas se veem numa situação, mais saídas se encontram,

94 Deleuze, G. A imagem-tempo: cinema 2. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 168.95 Aquino, Eu receberia, p. 30.96 Aquino, O Invasor, p. 48.

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não funciona aqui. A linha perseguida é sempre pessoal, identitária. Se um negócio

precisa crescer, mas seu desenvolvimento está atrelado a convênios ilícitos e um

sócio não topa essa possibilidade, mata-se o sócio ao invés de procurar alternativas

que mudem o próprio negócio, como desfazer a sociedade, procurar outros meios de

divulgação do seu produto, arranjar modos de barateamento da produção. As

possibilidades parecem estar atreladas às pessoas e, não, a mecanismos. Falta

flexibilidade diante de um obstáculo. Exterminá-lo indica pobreza de criação, pois se

é incapaz de lidar com um problema e resolvê-lo inventando uma nova forma para

alcançar o que se quer. Porém, não há maneira mais certeira de acabar com ele do

que tirando-lhe a existência. O combate, nesse caso, é sentença de morte.

Em Cabeça a Prêmio, o combate é a rejeição pelo deixar-se afetar. O encontro não

é visto como possibilidade de fortalecimento. "(...) Brito jamais concordaria em viver

à custa de uma mulher. Fizera coisa pior para não ter de passar por isso. E nem

Marlene aceitaria que um homem a sustentasse. Fizera coisas pavorosas para não

ter de aturar isso.”97. Depender do outro, financeiramente, é considerada a pior

sujeição. Trava-se uma batalha pelo pavor de fracassar. A estabilidade almejada é

financeira e, não, garantia de duração de vida. O fracasso é mais temido que a

morte.

Assim como a poluição transmite perigo pelo contato, o sucesso é, para algumas

sociedades primitivas, contagioso. Mas, ao contrário daquele, essa força assegura

êxito e pode quebrar a rigidez das estruturas sociais, segundo Mary Douglas98. O

sucesso seria, então, a oportunidade de ter melhores condições de vida, de ter

acesso a privilégios concernentes a determinada casta. Apesar de nesta sociedade

haver o sonho de obter sucesso pela fama, de aparecer na televisão e se tornar

alguém reconhecido nas ruas, ou de ser um anônimo que é descoberto por alguma

excentricidade ou aberração, o que mais se vê é um sucesso relâmpago – nesses

casos descritos anteriormente - ou um sucesso obtido às custas de submissões e

resignações.

97 Aquino, Cabeça a prêmio, p. 117. 98 Douglas, M. Pureza e Perigo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976, p. 138-139.

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De carne e osso

A partir dos séculos XVI-XVII as relações entre os Estados não estavam mais sob a

forma da rivalidade, mas da concorrência. Essa mudança, analisa Foucault99, faz

com que a força do Estado não provenha mais do sistema de aliança de sangue,

predeterminado e ad eternum do príncipe e, sim, de uma combinação provisória de

interesses. O enfrentamento via concorrência requer, assim, uma mobilidade, para

que, a cada vez que ocorrer um desajuste, encontre-se um sistema que limite a

ampliação e o fortalecimento dos outros Estados sem que essa limitação acarrete

perdas e enfraquecimento para o seu Estado. Com a concorrência, a guerra não

está restrita a uma razão jurídica. Ela pode ser deflagrada por qualquer razão

diplomática, isto é, por qualquer comprometimento de equilíbrio entre os Estados.

Fazendo um deslocamento para o âmbito pessoal, as relações estão cada vez

menos marcadas por laços fraternais e perenes e abrem-se para interesses

momentâneos. Seria um ganho se isso sinalizasse composição, mas a tendência é

ser sinal de concorrência, competição em que a derrota do outro significa não

fracassar. Entre julgar e concorrer, a guerra se afirma. Manuel da Costa Pinto

sustenta que nos livros do autor em estudo há mais vítimas do que réus, porque são

incapazes de ação própria e procedem por comando de um mundo que arrasta a

vida: “(...) até o capanga obrigado a expropriar o bar de um amigo de infância,

terminando por assassiná-lo (no pungente “A Face Esquerda”, do livro Famílias

Terrivelmente Felizes, 2003), é uma marionete desse mundo em que toda vida

pertence à crônica de uma morte anunciada.”100

O crime e a polícia de Estado são regimes de violência distintos, certificam Deleuze

e Guattari101. O primeiro está ligado à ilegalidade, é a apropriação de algo que não

se tem o direito de possuir. O segundo, além de se apropriar, constitui a apropriação

um direito e incorpora, assim, a violência à estrutura social, contribuindo para

propagar mais violência. Mas, apoiado na premissa de que a violência é inerente ao

homem, o Estado não se responsabiliza pela violência, não assume que seu

99 Foucault, op. cit., p. 395.100Costa Pinto, M. da. Literatura Brasileira Hoje. São Paulo: Publifolha, 2005, p. 128.101Deleuze e Guattari, op. cit., p. 144.

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procedimento é violento e gera violência e discursa que somente usa de violência

contra os violentos, para reinar a paz. É difícil, então, saber quem não é criminoso.

Não há justiça divina nem justiça dos tribunais. Aqui, o lema é “fazer justiça com as

próprias mãos”. Mas tem-se outro recurso “Para dar um fim ao juízo”, como propõe

Deleuze102: combater com as próprias mãos, escrever, violentar a escrita.

Deleuze103 desenvolve a ideia da “narração falsificante”, aquela que escapa do

sistema de julgamento e se beneficia da potência do falso. Essa potência advém das

modificações e conexões que podem ser feitas pelos elementos da narrativa, como

o tempo e o espaço. A preocupação não está na verdade unificante nem na

identidade estatuária, mas na exploração de inúmeras possibilidades de

combinações. Não há uma verdade que precisa ser encontrada ou reproduzida. No

falso cria-se a verdade, o autor é criador de verdade. E a potência última da

falsidade é a generosidade. Marçal Aquino e outros autores da geração de 90, como

Luiz Ruffato, João Carrascoza e Sérgio Fantini, são generosos, saem de suas vidas

para a vida dos outros em sua mais funda intimidade, nos pormenores de cada

modo de viver. E não escrevem no lugar dessas vozes emudecidas, escrevem por

as escutarem.

Quando Aquino escreve sobre esses jagunços de gentes e de delicadezas, ele se

torna um pouco matador, porque é desse processo inventivo que podem sair novas

armas, novas forças de combate, novos combatentes.

Nessa nova configuração bélica, a ilusão não é uma força resistente, ela enfraquece

os combatentes porque os engana com promessas e poderes que não podem se

cumprir, a não ser pela amputação dos sentidos, como se vê em Eu receberia, na

figura do pastor em quem se poderia depositar confiança, pelo saber, pelo

discernimento, personagem fundamental para aquele cenário. Tudo o que era feito

poderia encontrar acolhimento e explicação ao final do dia. Não sem o pagamento

do dízimo, pedrinhas preciosas para a perpetuação da irmandade, elemento que

tornava a lógica daquele lugar mais perversa: ”Homens, mulheres e crianças, umas

duzentas almas. Gente simples e fervorosa. Eu soube depois que não era incomum

usarem pepitas para dar sua contribuição à igreja. O dízimo de um Deus à beira de

102Deleuze, G., Crítica e Clínica, p. 143-153.103Deleuze, A imagem-tempo, p. 163.

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um garimpo."104. Encontra-se um povo necessitado de absolvição, muito simples e

pobre, à espera de um milagre; e um pastor serviçal a Deus, propagador do milagre

e merecedor de uma vida tranquila, numa casa muito boa, num "bairro nobre, onde

os endinheirados da cidade viviam em chácaras"105, com empregados e conforto.

Personagens-salvadores: aplacam sofrimento na história, mas dão tom perverso na

narrativa. É um ilusionista num campo sedento de ilusão, mas o escritor não é

iludido e nem ilude o leitor.

O enfrentamento mais eficaz é feito por guerrilheiros de carne e osso. A vida, em

Aquino, aparece sem espaço para amenidades, mas delas tira humor – o que não

deixa de ser uma força narrativa:

Depois de um longo tempo sem fumar, acendi um cigarro e traguei

longamente, o que me deu até uma certa vertigem. Um velho que estava

sentado próximo perguntou se eu não sabia que fumar faz mal. Olhei

para o seu rosto enrugado, seus olhos pequenos, brilhantes, e para o

chapéu em suas mãos. Tive vontade de dizer a ele que viver também faz

mal. Mas fiquei com receio de estragar as possíveis ilusões que ele ainda

tinha. E fui embora.106

Quando não é pela via do humor, a falta de suavidade atinge o leitor pela

verossimilhança: “O fato é que, nem bem Lavínia se deitou, ele apareceu no quarto,

mais bêbado que de hábito. E mais violento. Possuído. Arrancou as roupas dela,

espancou-a quando ela mordeu seu braço, e a teve na marra. Violou-a.(...) Seu

primeiro homem. Assim que as coisas são.”107

Marçal Aquino não atenua as situações, a não ser por um toque de comicidade e

ironia que tornam ambíguas as tragédias e as comédias. Não há a pretensão de dar

esperança ou consolo. A vida está na narração, de alta voltagem (velocidade

acelerada e tensa) e com deslocamentos de personagens (segue a linha do tempo

dos acontecimentos, na ordem da emoção e, não, cronológica) e do pensamento do

leitor (convocado a olhar no olho desses renegados, a sentir seu bafo, seu suor e

104Aquino, Eu receberia, p. 54. 105Idem, p. 69.106Aquino, Famílias terrivelmente felizes, p. 32.107Aquino, Eu receberia, p. 123-124.

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sua coragem de confrontar-se com a existência).

O que é confronto nas narrativas de Marçal Aquino, quando se fala em personagens

que delegam suas forças e diferenças para outros resolverem e, por outro lado,

personagens que aceitam essa determinação? “Um cara que não conheciam, de

quem não sentiam raiva. Mas que iriam matar.”108. A raiva é terceirizada, a morte é

delivery. As deserções eram práticas correntes nos exércitos do século XVII e XVIII.

Porém, a partir do momento em que ser soldado se tornou não apenas um destino

ou uma profissão, mas uma conduta, recusar-se a servir a uma guerra passou a ser

uma rejeição dos valores impostos pela sociedade. Isso porque empunhar armas

transformou-se em conduta de sacrifício a uma causa comum e negá-la demonstra

uma contraconduta moral, pois rompe-se com um pacto considerado pela

sociedade como inerente a ela, que é a relação da nação com a salvação da nação.

(Foulcault). Às deserções, que partem do exército e se espalham por muitas outras

instituições e segmentos, soma-se a força da contraconduta: “(...) busca de outra

conduta: ser conduzido de outro modo, por outros homens, na direção de outros

objetivos que não o proposto pela governamentalidade oficial, aparente e visível da

sociedade. E a clandestinidade é sem dúvida uma das dimensões necessárias

nessa ação política.” (Foucault p262)

Mas quando uma contraconduta funciona como a conduta contra a qual se opôs, ou

seja, segue a mesma estrutura mas com seus elementos – os seus líderes, as suas

regras – ela só reproduz a mesma fórmula, ao invés de criar formas de resistência

para se contrapor à condução. É o que faz o crime organizado, por exemplo:

reproduz os funcionamentos de grandes empresas, a hierarquia de velhas

instituições e continua vendo seus comparsas morrerem – antes de fome e, agora,

de bala. É o que vemos nos pistoleiros de Aquino: a desistência de lutar pela vida.

No conto “O cobrador”, de Rubem Fonseca, o narrador-personagem acredita que,

por ele levar uma vida miserável, todos devem a ele e é preciso um acerto de

contas: “Quando não se tem dinheiro, é bom ter músculos e ódio”109. Já no escritor

em foco, a arma não é usada por ódio, amor ou algum sentimento próprio. As cenas

em que os pistoleiros matam suas vítimas são de ação, mas só de um lado. A vítima

não tem tempo de agir, não há um embate. Além disso, não há pensamentos ou

108Aquino, Cabeça a prêmio, p. 180109Fonseca, R. O Cobrador. São Paulo: Companhia das Letras, 1979, p.18.

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sentimentos dos matadores, só das vítimas, e é o ambiente retratado que dá a

atmosfera do momento.

O combate não é corpo a corpo, mas exige um estado de vigília constante, pois os

afetos não podem conduzir as relações - no máximo, são o alerta de que algo está

para acontecer. O que é sentido entre mundo e corpo não ganha mundo, mas

parece fortalecer corpo, aumentar a disposição para enfrentar situações adversas

ou, por vezes, sair delas.

É preciso distinguir o combate contra o Outro e o combate entre Si. O

combate-contra procura destruir ou repelir uma força (...), mas o

combate-entre, ao contrário, trata de apossar-se de uma força para fazê-

la sua. O combate-entre é o processo pelo qual uma força se enriquece

ao se apossar de outras forças somando-se a elas num novo conjunto,

num devir. 110

A vida está em jogo, mas não para ser julgada nem para não fracassar e, sim, para

combater. Mas, para mais vida circular, o combate contra os afetos e contra os rivais

deve dar espaço ao combate-entre. “Ao invés de cair fora, (...) resolvi ficar e

enfrentar a tempestade que o vento da peste soprava na minha direção.”111. Deleuze

e Guattari112 diferem mecanismos de relação do homem: chamam de “grupos

sociais” os que se concentram em centros de poder estáveis e hierárquicos pela lei

do mais forte, e de “grupos mundanos” os que procedem por difusão de poder, pelo

questionamento da hierarquia, pela inibição de poderes estáveis e a favor da luta

contra procedimentos para conduzir indivíduos – características de um guerreiro. O

homem de guerra desamarra laços e quebra juramentos que o fazem prisioneiro e,

por isso, pode ser visto como cruel. Mas ele trai o que está inerte, o que paralisa os

movimentos vitais e propõe uma guerrilha: uma guerra de minoria, que combate ao

mesmo tempo que cria e dá consistência à vida, diferente da guerra maioral que

destrói ou domina a vida. Já aquele que não morreu, mas foi reduzido a

funcionamentos biológicos, é o sobrevivente. Ele está entre o humano e o inumano.

110Deleuze, Crítica e Clínica, p. 150.111Aquino, Eu receberia, p. 195.112Deleuze e Guattari, op. cit., p. 20-21.

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Essa seria a “vida nua” de que fala Peter Pál Pelbart, a vida subtraída de

sentimentos, de excitações. E ela não está restrita aos miseráveis que não têm

condições de se sustentar, ela está em todos nós, quando evitamos que qualquer

coisa aconteça que nos faça sentir estranhamento, que nos faça sair do previsto, do

planejado. Somos mortos-vivos ao desejarmos uma existência asséptica, indolor e

sem relevo, ao acreditamos ser possível uma vida sem sofrimento, sem tédio, sem

despedidas. O desnudamento não deve ser o abandono da existência sensível, mas

dos códigos e ordenações: “seria preciso retomar o corpo naquilo que lhe é mais

próprio, sua dor no encontro com a exterioridade, sua condição de corpo afetado

pelas forças do mundo e capaz de ser afetado por elas: sua afectibilidade”113.

Portanto, a vida deve ser o campo de batalha e o sobrevivente, alguém em eterno

combate – em prontidão para afetar e ser afetado e sair de cada batalha fortalecido.

“Não temos por que julgar os demais existentes, mas sentir se eles nos convêm ou

desconvêm, isto é, se nos trazem forças ou então nos remetem às misérias da

guerra, às pobrezas do sonho, aos rigores da organização.”114.

Ao analisar a produção literária contemporânea, Resende identificou o presente

como uma preocupação comum. Diante das novas configurações do espaço de

convivência, da simultaneidade de acontecimentos e suas seduções e ameaças,

escorar-se no passado ou idealizar o futuro não dá conta das questões atuais. A

convivência com o intolerável pede ação imediata.115 Numa cidade aberta, sem

fortificações e sem objetivos bélicos, “Restam os corpos, que são forças, nada mais

que forças.”116. E as forças não se reportam a nada para além delas, não seguem

um objetivo, não respondem a um fim. Elas se chocam com outras forças e sua

potência está nisso: encontros que fazem nascer ou morrer forças. A relação de

forças não se dá na ordem da quantidade, não ganha quem tem o maior número de

forças. Isso porque elas podem ser muitas, mas estão esgotadas por não variarem

as respostas que dão a outras forças. São forças que não sabem se transformar e

insistem em se apoiar na dominação e na destruição de outras forças para se

fortalecerem. Esse equívoco leva à morte a vida, quando se torna ela mesma

113Palbart, P. “Vida nua, vida besta, uma vida.” In: http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2792,1.shl114Deleuze, Crítica e Clínica, p. 153115Resende, B. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da

Palavra, 2008, p. 27.116Deleuze, A imagem-tempo, p. 74.

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esgotada, ou as forças minguadas, quando forças vivazes se sobrepõem. A vida que

emerge se transforma de acordo com as forças que encontra, sempre aumentando a

potência de criação. Numa guerra sem afrontamento nem retaguarda, pura

estratégia, é viável depor armas e o combate se dar entre formas de vida.

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Distração

Circuito fechado

As estratégias para sobreviver podem ser de criação, se desvios e irregularidades

forem estímulos; de imitação, que se limitam à reprodução de um ideal; de

neutralização, pois parte-se do princípio de que as diferenças são ameaçadoras.

Quando a luta pela sobrevivência não abre passagens para novas fabulações, caso

das últimas duas estratégias, ela é travada (tanto no sentido de impedida como de

oposição) por movimentos monótonos. Mas, por outro lado, é essa espécie de

clausura que estimula a escrita de alguns autores. Pinto compara a linguagem de

Dalton Trevisan, escritor da geração de 70 e inspirador de muitos escritores da de

90, à cidade em colapso: “(...) um espaço em que a história e os homens se

reproduzem numa monotonia violenta e sem transcendência”117

Nesse circuito, as relações sociais estão marcadas pelo silêncio. Há um desconforto

em falar, em pronunciar o que se pensa e o que se sente. Cada personagem o

expressa de uma maneira: com a falta de palavras ou dizendo o pior que se tinha a

dizer. O não dizer vem acompanhado de uma vontade, uma expectativa, uma

especulação por dizer. Porém, a simulação não se torna enunciação:

A fala, a linguagem, parece ter desertado esses seres carentes. Raros

são os que se exprimem, e o fazem de forma tímida, entrecortada,

sabendo, talvez, que não serão ouvidos. (...) esses seres desventurados

parecem ter abdicado também da linguagem verbal como possibilidade

de exprimir desconcertos, revoltas, medos, angústias. São outros os

códigos que utilizam, como um certo gesto descomposto, uma postura

estranha do corpo, um olhar de viés, um gemido ou mesmo um grito.118

117Costa Pinto, M. da. , op. cit, p. 89.118Oliveira, V. L. “Eles eram tantos corações, corpos, consciências” In: Harrison, M. (org.). Uma cidade em

camadas. Vinhedo: Editora Horizonte, 2007, p. 150.

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Essa atmosfera silenciosa torna as relações repetitivas, porque o que está

instaurado assim fica sem a entrada de novos elementos.

Entretanto, o silêncio dá a vez para a ação e o tempo das movimentações na cidade

impõe uma aceleração ao agir. E é essa proatividade incansável que faz com que as

linhas da narrativa se embaracem num grande nó em que não se vê mais saída.

Uma ação se sobrepõe à outra, anulando o sentido de cada uma delas e de seu

conjunto. Caso houvesse intervalos, respiros, suspiros ou bufos entre elas, sobraria

alguma linha frouxa pela qual fugir – não para desistir, mas para resistir .

As reações dos personagens aquinianos mostram isso: são imediatas e, em grande

parte das vezes, violentas. Isso é perceptível não só no desenrolar da ação como

também no ritmo e na agressão das frases curtas e falas sem retoques: “Os

cadáveres estavam jogados num monte de lixo. Três caras. Tinham usado munição

pesada neles. Principalmente na cabeça. Um negócio feio. Clica os presuntos aí, o

delegado disse.”119.

Esse imediatismo deixa a vida mais exposta, sem proteção, já que as respostas se

dão no calor dos acontecimentos, em que tendem a ser mais violentas e refratárias e

são propensas a se repetir, pois busca-se num repertório conhecido uma solução

que tenha sido eficaz.

E essa rotina, essa frequência, essa repetição, produz tipos urbanos insólitos. O

personagem do matador é recorrente na obra de Aquino. São homens que ganham

a vida matando pessoas por encomenda, mas são pegos de surpresa por paixões.

Os casos de amor, embora aconteçam intensamente, parecem sentidos por esses

homens com um certo desconforto, ao contrário da frieza e da certeza que

apresentam em seus crimes. O amor é momento de desarme, de "baixar a guarda"

para esses vigilantes, mas vem em segundo plano, pois é a vida (individual, pessoal)

que deve perseverar. A relação dos matadores com mulheres é paradoxal, porque

não vivem sem, mas não é duradoura. Talvez seja praticamente impossível manter

uma relação permanente sendo um matador, pois não há planejamento - até o plano

de matar é feito em cima da hora, porque trabalham com o elemento surpresa - nem

paradeiro - ficam tempos longe, à procura dos jurados de morte. Qualquer

estabilidade pode ser fatal. Então, ao mesmo tempo em que os matadores são

119Aquino, Eu receberia, p. 30.

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homens que vivem em alerta e a distração pode gerar descuido fatal, eles distraem

suas vítimas ao se deslocarem sem parar. Vivem a transitoriedade como mesmice,

condição na qual estão presos, “afinal certas coisas têm de se mover para poder

permanecer realmente em repouso”120.

Se a vida em carne-viva não tiver movimento de cicatrização, ela pode se tornar

gangrena, ou seja, se nada mais de vivo correr ali, o andamento é para a morte.

Esse apodrecimento é silencioso, inodoro, sorrateiro: “Houve um momento em que

eu e Cecília percebemos que nossa relação estava morta. Mas nenhum de nós

reagiu. Há certos cadáveres que, por razões que ignoramos, não se decompõem. E

não havendo mau cheiro que incomode os vizinhos, não há necessidade de chamar

o IML.”121.

A emoção liga-se ao que é ilícito ou vivido como contravenção nas histórias de

Aquino, e muitos dos acontecimentos são sem propósito: “Eu me vesti e, antes de

sair do quarto, olhei mais uma vez para o corpo seminu de Cecília. E, para minha

surpresa, tive uma ereção. Uma ereção inesperada, estranha, inútil. Porque, naquele

instante, eu não sentia nenhum desejo. Nem sono, nem fome. Só medo.”122. O

dinheiro e o medo parecem ser motivadores de atitudes nos personagens de Aquino.

O dinheiro coloca as pessoas, as ideias e os bens em trânsito, o que não seria ruim

se ele não se transformasse na motivação em si, ao invés de engendrar

pensamentos, projetos, invenções.

E o medo transforma o indivíduo em “(...)um nervo que precisa da pancada como

prova de que existe, que só toma consciência de si quando em estado de alerta, em

sobressalto: ou o outro me sobressalta, ou não sou mais eu mesmo.”123.

120Foucault, M., op. cit., p. 342.121Aquino, O Invasor, p. 32.122Idem, ibidem.123Silva, H. R. S. “Do caráter nacional brasileiro à língua-geral da violência” In: Arantes, A.(org). O espaço da

diferença. Campinas: Editora Papirus, 2000, p. 303.

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O tumulto tem forças

A multidão do espaço público metropolitano pode ser refúgio contra a solidão do

espaço privado, sustenta Resende124. Portanto, a sensação de isolamento se atenua

não pela convivência íntima entre as pessoas, mas pela impressão de se estar

acompanhado, ao imergir em um engarrafamento, nos barulhos dos múltiplos

movimentos da cidade ou nos esbarrões de braços e ombros.

Na multidão, as identidades tanto podem se esgarçar, pois são misturadas aos

fluxos de acontecimentos, quanto podem se afirmar, porque em algum lugar dela

cabe a diferenciação. Mas não se está falando de uma multidão em que o anonimato

é a perda do rosto ou uma massa débil e, sim, da multidão múltipla em que ser

anônimo é se associar a uma pluralidade de outros nomes, outras histórias, outras

forças, defende Maria Zilda Cury125. Nesse mesmo sentido, Negri relaciona a

metrópole à multidão: “A metrópole é mundo comum. Ela é o produto de todos – não

vontade geral, mas aleatoriedade comum”126.

“A palavra vem do latim anonymus. Trata-se de um empréstimo do grego nomos que

quer dizer nome e lei ao mesmo tempo. O a privativo poderia então enviar tanto à

ausência de patrimônio quanto a um estatuto de fora-do-jogo.”, define Castillo-

Durante127. O anônimo escapa das relações opressoras de filiação e abala as

representações imóveis da ordem e pode, assim, circular com maior liberdade, sem

a preocupação de desempenhar funções predeterminadas. A proximidade de uma

pessoa com um desconhecido e a falta de referências de um e do outro, marcas da

multidão, viabilizam a experiência de ser outrem, de se diferenciar de si mesmo.

A ausência de nome das personagens, como em Eles eram muitos cavalos, de Luiz

Ruffato, ou o uso de codinomes, em Cabeça a prêmio, de Marçal Aquino, são

resistência ao cotidiano feroz das grandes cidades. Um nome pode ser uma

condenação, uma sentença, na maioria dos casos, de morte ou de fracasso. A

124Resende, B., op. cit., p. 56.125Cury, M.Z.F., “Ética e simpatia: o olhar do narrador em contos de Luiz Ruffato” In: Harrison, M. (org.). Uma

cidade em camadas. Vinhedo: Editora Horizonte, 2007, p. 110.126Negri, A. “A multidão e a metrópole” In: Lugar comum – Estudos de Mídia, Cultura e Democracia, n. 25-26,

Rio de Janeiro: UFRJ, mai-dez 2008, p. 202.127Apud Walty, I. “Anonimato e resistência em Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato” In: Harrison, M. (org.).

Uma cidade em camadas. Vinhedo: Editora Horizonte, 2007, p. 58.

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mudança ou falta de nome serve de artifício de batalha, é a chance de a vida

prosseguir. O disfarce ou a indistinção são proteção e arma: “Eles eram muitos, mas

ninguém mais sabe sua origem ou identifica seu pelame, igualados na sua exclusão,

mas forçando sua presença repetida para o leitor.”128.

A maioria é um conjunto sempre numerável, enquanto a minoria, qualquer que seja o

número de seus elementos, não é numerável. Isso quer dizer que a minoria não se

define por seu pequeno número de elementos, mas pelas conexões que seus

elementos produzem, porque são elas que tornam possível a criação, na medida em

que já não são nem um elemento nem outro, destacam-se de seus elementos

constituintes. “A potência das minorias não se mede por sua capacidade de entrar e

de se impor no sistema majoritário, (...) mas de fazer valer uma força dos conjuntos

não numeráveis”129. A força da minoria é falar sem comício e ser escutada e produzir

ações, falas, pensamentos e até mesmo comícios, posto que não pretende controlar

e, sim, produzir desdobramentos. A minoria é a força da multidão.

Trânsito livre

O que levou Cauby, de Eu receberia, para uma pequena cidade no Pará, cenário do

livro, foi o trabalho, mas o que o fez ficar foi a eletricidade no ar, a iminência de que

algo iria acontecer e ele queria acompanhar. Cauby se interessa pelo

acontecimento e se move por afeto – ficou um tempo em Paris, São Paulo e ia se

mudando conforme sentia que o lugar ainda tinha algo a oferecer. A cidade é

promessa e aposta. Seus sinais vitais, se em pleno funcionamento, prometem uma

infinidade de possibilidades; trazem esperança para sonhos e fantasias, alimentam

medos e fantasmagorias. Ao mesmo tempo, para que a possibilidade se viabilize é

necessário apostar: arrisca-se no incerto e disputam-se oportunidades.

O ritmo acelerado marca a experiência nas cidades. Os passageiros de ônibus,

metrô, carro e mesmo os passantes enxergam fragmentos da paisagem que, por

sua vez, também é dinâmica – um conforto para quem tem pressa em desviar o

128 Cury, M.Z.F.,op. cit., p111. 129 Deleuze, G. e Guattari, F., op. cit., p. 175.

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olhar daquilo que causa repulsa, mas uma estratégia àqueles que, em pequenas

doses, mostram sua indignação, como é o caso de vários autores da geração de 90,

da qual Aquino faz parte.

Os meios de comunicação também provocam uma aceleração e um enquadramento

das experiências. Ao recontarem com continuidade os acontecimentos cotidianos

isolados, reforçam uma aparente homogeneidade e manipulam a imagem que lhes

convém – uma forma de dominação, sustenta Muniz Sodré130. Porém, da mesma

forma que controlam, são capazes de aguçar imaginações, como bem coloca

Nelson Oliveira sobre os escritores da geração de 90:

Vale a pena ressaltar que esta é a primeira geração de escritores cuja

infância foi bombardeada pelo veículo de comunicação mais agressivo do

planeta: a televisão. Se o leitor procurar com cuidado vai encontrar no

imaginário dessa moçada, e consequentemente nos seus textos, as

pinceladas rupestres aplicadas pela tela da tevê (...).131

Dirigir pelas ruas aparece mais de uma vez nas histórias de Aquino como forma de

tirar uma idéia da cabeça, acalmar as sensações. O movimento, o vento, a visão

entrecortada que o carro proporciona podem compor um bom terreno para um

momento de tensão. Os meios de locomoção, com a velocidade que lhes é comum,

"oferecem novas maneiras de vivenciar a paisagem urbana?", indaga Sharon

Zukin132. A janela e a velocidade colocam privações: não há mais tempo para a

contemplação. Porém, abrem possibilidades de a percepção oscilar entre a imersão

e o afastamento, o que provoca trânsito entre interiores e exteriores (da cidade, da

rua, do transporte, do indivíduo transportado, do pensamento transportado).

O empenho para que tudo ganhe visibilidade e a sobreposição de arquitetura,

outdoors, vídeos de vigilância e vitrines disputam o olhar do transeunte e fazem com

que a capacidade de atenção não seja mais exigida. A expectativa de que algo pode

acontecer é substituída pelo acontecimento em si, sustenta Jeudy133. As imagens

saltam, piscam e até choram, se for preciso, enquanto o olho passa a ser de vidro.

130Apud França, A. Terras e Fronteiras no cinema contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003, p. 27.131Oliveira, N.(org.). Geração 90: manuscritos de computador. São Paulo: Boitempo editorial, 2001, p. 9.132Zukin, S., op. cit., p. 189.133Jeudy, H., op. cit., p. 91.

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Rubens Figueiredo, escritor da Geração 90, escreveu em seu conto “Os distraídos”:

Ainda que eu feche os olhos, mesmo que eu tape os ouvidos e comprima

com força as mãos sobre as orelhas, percebo na pele, sinto nos ossos

que o mundo trepida e bufa, agitado, à minha volta. Sempre me admira

que tudo se esforce tanto em se mostrar, sempre me espanta que com

tamanha sofreguidão todos queiram aparecer. Para mim, esconder-se é a

habilidade suprema e manter-se oculto constitui o talento mais precioso

de todos.134

Esse trecho aponta para a impossibilidade de alheamento da cidade; ela nos

atravessa, ela se faz sentir em nosso corpo. Essa movimentação desenfreada

necessita de gestos de destaque – sejam eles de realce ou de afastamento. O ritmo

incessante de mudança na cidade faz nela tudo ser possível, mas “mais ainda, o

possível está fundamentalmente ligado à emergência constante do casual.”135. É no

imprevisível, no indeterminado que a possibilidade está – é da desordem que o

acontecimento se dá. Corre-se o risco de, com o ataque fulminante de imagens no

espaço público, trocar a distração como potência de acontecimento, pela intoxicação

e, com isso, transformar-se de distraídos a tolos que esquecem de si mesmos,

sustenta Victor Fournel136. Em um mundo de espaços cultural, social e

economicamente interdependentes, exploram-se processos de produção de

diferença ou para se sobressair nele ou dele fazer atalho.

O espaço da cidade, ao mesmo tempo que oferece esconderijos e segregações,

provoca encontros inesperados entre pessoas díspares. Dispersão é a força mais

marcante da cidade. As ruas e os transportes coletivos são meios de

heterogeneização e espaço de contato. As cidades surgem da dissipação e, não, da

concentração. “O trânsito urbano é uma figura desse movimento próprio das cidades

porque produz um grande espaço de exterioridade – em relação ao espaço privado

do sujeito e da família (…).”137. A cidade se desdobra pela multiplicação de

134Figueiredo, R. As palavras secretas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 109.135Jeudy, op. cit., p. 108.136Apud Featherstone, M. "O flâneur, a cidade e a vida pública virtual" In: Arantes, A.(org). O espaço da

diferença. Campinas: Editora Papirus, 2000, p. 194.137Caiafa, J. Jornadas urbanas: exclusão, trabalho e subjetividade nas viagens de ônibus na cidade do Rio de

Janeiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 19.

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trajetórias. Ela não consegue ser capturada pelo Estado (é o caso de Brasília, com

seu plano-piloto setorizado, onde é preciso mover-se o mínimo, e suas cidades-

satélites), sempre está escapando em sua inquietude e é capaz de agregar esses

escapes e produzir mais escapes. “A recomposição capitalística da metrópole deixa

pistas de recomposição para a multidão.”138.

A cidade é uma espacialidade de acúmulo de corpos, ruas, prédios, carros com

características de sertão: vastidão, amplidão de horizonte, mas com formas ásperas,

secas, fechadas. A cidade institui uma existência conflituosa e pede dos citadinos

persistência para vingar e eles encontram formas as mais impensáveis de sustentá-

la – seja fazendo crescer raízes no subterrâneo ilícito; seja reduzindo folhas a

espinhos, para transpirar menos, sentir pouco; ou até fazendo brotar flores de muitas

cores, atraindo a afirmação da vida.

Para os nômades, os trajetos determinam os pontos de parada e os pontos são

apenas alternância para um próximo trajeto. Não é em função dos pontos que o

trajeto se dá. O trajeto nômade distribui os homens num espaço aberto, sem

partilhas nem fronteiras. Já o caminho sedentário atribui aos homens partes de um

espaço fechado e regulado.“(...) o espaço sedentário é estriado, por muros,

cercados e caminhos entre os cercados, enquanto o espaço nômade é liso, marcado

apenas por traços que se apagam e se deslocam com o trajeto.”139. O espaço liso é

ocupado por acontecimentos e forças, enquanto o espaço estriado é habitado por

formas e previsões. O espaço liso é um espaço de contato, mas não se faz por vias

asfaltadas para a conexão e, sim, por picadas abertas na medida em que se fazem

necessárias. E as ações de contato são táteis mais do que visuais (mais do que ver,

o que impõe distância, pegar, sentir na pele). O espaço estriado, por pretender-se

unidade, freia os espaços lisos contidos nele, colocando-os a serviço dele. Ou os

deixa de fora. Porém, o espaço liso pode voltar-se contra as segmentações e

direções do espaço estriado.

A cidade é o espaço estriado por excelência, mas tem a capacidade de restituir

espaço liso o tempo todo:

Mesmo a cidade mais estriada secreta espaços lisos: habitar a cidade

138Negri, A., op. cit., p. 206.139Deleuze e Guattari, op. cit., p. 52.

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como nômade ou troglodita. (...) Evidentemente, os espaços lisos por si

só não são liberadores. Mas é neles que a luta muda, se desloca, e que a

vida reconstitui seus desafios, afronta novos obstáculos, inventa novos

andamentos, modifica os adversários. Jamais acreditar que um espaço

liso basta para nos salvar.140

É ao nomadismo, esse modo de viver de espaço liso, que devemos recorrer, numa

situação de redução da vida, a silhuetas letárgicas – tanto as da desnutrição

biológica quanto as da desnutrição intelectual. Mas é a maneira de estar no espaço

que distingue se se vive de modo liso ou estriado e, não, o espaço em si, por isso há

reviravoltas de um no outro, porque num momento pensamos liso e, em outro,

estriado; numa relação somos lisos, em outra, somos estriados.

A fuga, então, pode ser um movimento de retirada, a fim de evitar que as próprias

forças sejam destruídas ou aprisionadas pelo que é considerado nocivo, recurso

para proteger uma suposta integridade de ser devastada por forças estranhas a ela.

Mas a fuga também pode ser um movimento de ataque, quando muda a direção do

combate e o atrai para um local mais proveitoso no qual desfaz antagonismos e

coloca em jogo forças de criação.

A escrita de Aquino e de outros companheiros seus da Geração 90, como Luiz

Ruffato e Fernando Bonassi, ressalta dimensões perceptíveis aos que se deixam

distrair pela cidade – o sonho, a mentira, a ferida – e é por essa espécie de

desprendimento que o leitor é capturado - não por ser alertado, numa tentativa de

chamar a atenção para os problemas sociais, mas por sua atenção ser desviada de

pontos fixos estéreis para imaginações explosivas, “E a curiosidade não decorre

mais do enigma provocado, buscado como algo que nunca se deixa ver, mas da

própria replicação da vida urbana.”141.

140Idem, p. 214141Jeudy, op. cit., p. 91

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Alerta

Seja com zoom, quando parte da cena ganha destaque, seja com grande-angular,

em que um acontecimento tem vista panorâmica, a perseguição da escrita de Aquino

é sempre pelo relevo, pelas diferenças de superfícies. A tensão sentida pelo

personagem se expressa no ambiente, então é como se o leitor pegasse a

atmosfera da situação não pela relação direta com o personagem, mas através do

olhar dos afetos dele.

Um galo cantou na vizinhança, outro replicou de um quintal mais

afastado. Bichos descalibrados. A luz do relógio latejava sobre o criado-

mudo, manchando de vermelho as sombras do quarto: era cedo, ainda

estava escuro o meu último dia no Pará. E quente. E úmido, muito úmido.

Perdi o sono. Existia naquele momento uma bala com meu nome na

cidade. Talvez mais de uma. Você não ficaria tenso?142

Ao invés de partir de um fato corriqueiro para mergulhar em pensamentos,

sensações, percepções, isto é, de forma introspectiva, a narrativa de Aquino se

passa no plano da ação e do diálogo. Assim, as malhas nas quais as tramas se

sustentam são rasteiras e, não, profundas, pela opção de se espalharem por muitos

lados, e nos passam rasteiras, por, de supetão, darmos de encontro com uma terra

árida e, por vezes, fértil. As histórias carregam o peso da evidência, então não há

um sentido profundo esperando por ser desvendado, pois seu impacto é forte o

suficiente só pela sua existência: “(...) não há dimensão profunda para além dos

dados sensíveis”143.

Porém, as rasteiras da linguagem narrativa têm o intuito de trair potências fixas

(sentido do qual falei mais demoradamente no capítulo Fronteiras), e as das tramas

são trapaças. Os personagens são habilidosos em fazer o outro tropeçar, cair, tentar

detê-lo e, para isso, contam com alguns aliados, como a fidelidade ao dinheiro, o

envolvimento do outro com a ilegalidade: “Albano contou a Abílio que Nicanor tinha

142Aquino, Eu receberia, p.175.143Gomes, R. C., op. cit., p. 136.

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encomendado sua morte. (...) Abílio se propôs a cobrir a oferta do irmão. Albano

pediu o triplo, uma soma considerável, explicou que só era fiel ao dinheiro. Abílio

topou. E os dois mataram Nicanor Menezes.”144. Diferente dos traidores, então, os

trapaceiros se apropriam de códigos dominantes ou instauram novas ordens para

assegurarem seu futuro, para garantirem suas intenções, sem que sejam desviados

por experimentações, define Deleuze145.

A traição considera o erro porque é o movimento mesmo da produção de

pensamento, de ação: hesitante, incoerente, abrupto. A trapaça, por sua vez, é estar

à espreita, camuflado para dar o bote arquitetado na surdina. Para o traidor, então, a

errância é poder tirar proveito do desconhecido para dar passagem à vida. Para o

trapaceiro, o itinerário deve ser certeiro: só estancando a vida é que ela está

assegurada.

Aquino se deixa afetar pelos personagens e é entre ele e sua criação que a narrativa

se constrói. É um autor sensível a suas percepções e delas exala sentidos que

inebriam o leitor: “Múcio abriu um botão da camisa e tocou o peito molhado de suor.

Estava preocupado e era capaz até de sentir o cheiro do seu medo. Em breve seria

um homem morto.”146.

São as sensações, mais do que os sentimentos, que têm prioridade nas situações

descritas. Então os movimentos corporais dos personagens – o suor, o enjoo, a dor

– ou o contraste entre eles e a situação é que dão ao leitor o clima e o sentido da

cena. É uma escrita silenciosa, sem alarde, sem enfeites nem adornos, na qual os

sentimentos são supérfluos tanto para os personagens como para a narração.

A polícia já está no caso, o doutor Araújo deu queixa, eu disse, logo que

me sentei à mesa ocupada por Alaor./ Tô sabendo./ Ele passava

manteiga numa fatia de pão e aparentava calma./ Não estou gostando

disso, vão acabar descobrindo.../ Alaor colocou o pão no prato à sua

frente e pousou a faca na mesa. E me encarou./ Ninguém vai descobrir

coisa nenhuma, Ivan.(...)Se você ficar apavorado, aí, sim, vai acabar

fodendo tudo (...) Alaor comia pão com apetite.147

144Aquino, Cabeça a prêmio, p. 159.145Deleuze, G. e Parnet, C., op. cit., p. 55.146Aquino, Famílias terrivelmente felizes, p. 126-127.147Aquino, O Invasor, p. 54-55.

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A linguagem aquiniana, enxuta, rápida e brusca, apropria-se de um estilo jornalístico,

com intenção de incluir o leitor na esfera da criminalidade. Mas seu conteúdo se

diferencia do que vemos nos noticiários televisivos, sem apelar a psicologismos ou

entradas na vida pessoal do protagonista como forma de entender suas ações ou de

instruir o espectador. A introspecção, quando aparece, ao invés de ser simbólica ou

analítica, torna mais real uma experiência, porque sempre se refere aos fatos e, não,

à repercussão deles.

A crítica ou análise, quando presentes, revelam-se de forma irônica, perspicaz,

lacônica, fugaz. “Entrei na viatura roendo um pedaço de pão velho. Naquele

momento, me preocupava mais o sumiço de Lavínia do que a minha situação. Eu

era inocente, e isso me deixava confiante. Me dava uma sensação confortável de

segurança. Confortável e bem ingênua.”148. O humor de Aquino é espontâneo, bem

próximo do coloquial: “O pastor Ernani cantava de olhos fechados.(...) Um sessentão

charmoso e conservado. Sua voz vigorosa se destacava das demais no início de

cada estrofe do hino. Satanás que se cuidasse.”149. As associações são originais e

simples: “A notícia da prisão do assassino do pastor já era servida fazia horas nos

botecos, junto com aguardentes de procedência suspeita.”150.

A narração de Aquino, portanto, na maior parte do tempo é um “é assim”, não toma

partido, não tem tom de indignação, é uma constatação. Ela se dá, portanto, no

campo extensivo dos acontecimentos visíveis a olho nu. Porém, é na leitura que o

campo intensivo acorda, com todos os sentidos a postos para captar o invisível dos

acontecimentos - as vibrações dos encontros entre os corpos envolvidos em

determinada situação do enredo e os arrepios, lágrimas e pensamentos que

suscitam a leitura no leitor. Daí, então, é possível o inconformismo, a indignação, a

criação. Ao se mudar a ordem das palavras, despertam-se novos sentidos e esses

sentidos produzem efeitos inéditos.

Alguns veem com receio o excesso de realidade na literatura, por perder o impacto e

produzir, com isso, indiferença. É o caso de Resende: ”O foco excessivamente

fechado do mundo do crime termina por recortá-lo do espaço social e político, da

148Aquino, Eu receberia, p. 199.149Idem, p. 54-55.150Idem, p. 208.

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vida pública. Torna-se, então, ação passada em uma espécie de espaço neutro, que

não tem mais nada a ver com o leitor. “151. Depreende-se daí que o campo de

debate, que poderia se dar entre obra e leitor, fica intimidado pela violência como

diversão.

Aquino é um autor traiçoeiro (não trapaceiro!), porque abusa da estética da violência

e chega perto de banalizá-la, mas é por esse exagero que ele toca no que de mais

humano tem em suas histórias e em nós, leitores – nossas fraquezas e franquezas.

Ele faz do entretenimento um ato violento: azeda o leitor com suas histórias, arrepia

o repouso do leitor com seus personagens e ambientes. Mas não o amedronta.

Quem lê Aquino estranhamente é encorajado. Não a sair atirando em quem interpõe

seu caminho nem a passar a vida à espreita, como fazem seus personagens, mas a

enfrentar os encontros com o que eles e nós temos de cruel e de delicado, como a

própria escrita do autor.

151Resende, B., op. cit., p. 38.

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Considerações finais

Os rastros me levaram às fronteiras, ao combate e à distração – atalhos que

serviram para encurtar, em algumas horas, e aumentar, em outras, a distância entre

as leituras que compõem este material e minha escrita. O primeiro fez o estudo se

soltar de amarras tão confortantes quanto trapaceiras e contaminar-se por

pensamentos fronteiriços, arriscando-se, mas sem ameaça de morte. O seguinte

colocou o trabalho, já sem armaduras, em pé, não com palavras de ordem, mas com

palavras vivas para delas tomar força. O último evitou que a pesquisa caísse em

estagnação, pois seguiu desfocada, tateando desvios e possibilidades de

acontecimentos.

Os modos de percorrer o espaço podem criar territórios de pureza em que o

diferente é extraditado e só se convive com semelhantes; delinear relações de

subordinação pela inevitabilidade da convivência e apostar em vínculos cambiantes,

ligações imediatas que se fazem e desfazem na cadência dos encontros. Então o

que interessa são as passagens e as combinações entre esses modos, porque é

pela variação que algo se confecciona e a insistência, mesmo em vínculos flexíveis,

leva-nos à repetição.

Vicissitudes da existência, contratempos da escrita. A palavra pede um outro tempo

– a escrita e a leitura não têm o mesmo ritmo da cidade, mas deixam-se levar por

ele e desviam-no ao se espalharem . É o som do tempo fraco. Sua fragilidade não é

covardia nem desânimo, é afirmação de um outro tempo, um tempo sem rumo,

solto, à deriva.

Marçal Aquino escreve porque é sacudido pela realidade, pelo tempo forte da

cidade, senão dormiria, seria dono de estacionamento, cobrador de ônibus, gerente

de compras de uma multinacional, editor da revista Veja... Há uma vertente da crítica

literária que insiste em ver na violência de enredos com capangas e mortes por

encomenda uma anestesia ao sensível, uma acentuação de barreiras sociais já tão

bem demarcadas e um aproveitamento de uma onda de mercado. Porém, não se

pode esquecer de que, nas duas últimas décadas do século XX, vimos crescer nas

cidades as taxas de crime violento, o fortalecimento do crime organizado, a

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ineficiência da polícia e do judiciário e o contingente populacional em situação de

miséria absoluta152; e a geração de 90 passa por esse registro e deve ser lida

levando isso em consideração. A sensibilidade não pode abrir mão de nenhum dos

órgãos dos sentidos, e anestesiados estão aqueles que querem ler sem serem

convocados pelos seus. A denúncia não precisa ser gritada, ela pode ser uma

batalha sutil; e se o dinheiro puder sustentar esse confronto sem achatá-lo, bom

para todos – escritores e leitores. “Mesmo quando estiliza seus matadores,

provocando um misto de fascínio e repulsa, a escrita de Marçal Aquino é sincera,

porque a realidade que ele denuncia resiste a qualquer maneirismo – e porque o

estranho, o sinistro, de algum modo também está em nós.”153. Aquino abre buracos à

bala para nos mostrar os invisíveis que, de alguma forma, somos nós, nossos

destroços.

Estamos povoados por ratos de laboratório, de estimação, de rua. Os primeiros são

confinados em lugares em que tudo é controlado de forma artificial, expostos

exclusivamente a experimentos devidos a uma necessidade externa a eles. Os

segundos têm como única diversão uma roda que leva ao mesmo lugar e sua

clausura é justificada por amor. A liberdade é quem guia os terceiros. Seu

compromisso é só um: a continuidade da vida. O rato de rua é irrequieto, não se

acomoda, está sempre procurando um lugar em que as condições sejam favoráveis

ao desenvolvimento da vida. Torna-se boca de estômago que usa de uma sedução

escorregadia para conseguir seu sustento. Ele tem a capacidade de se proliferar

rapidamente – estratégia funcional para uma época em que não há mais duas

frentes de ataque, mas pontos dispersos de guerrilha. Sobrevive às agruras e aos

confinamentos da vida porque saqueia as forças da metrópole. Na escrita de Aquino,

o rato de rua prepondera. Rói palavras e faz ruir construções. Corrói sentidos para

construir chão.

A prosa de Marçal Aquino não se recusa ao combate. Opõe-se, contesta e extingue

tudo aquilo que está morto, mas não exala mau cheiro – faz feder. Sua escrita é

combativa por amor à humanidade. E amar é combater, não só por destruir ou ir

contra forças egoístas, mas, acima de tudo, por resistir às pobrezas e feridas da vida

152Sussekind, F. “Desterritorialização e forma literária: literatura brasileira contemporânea e experiência urbana.” Literatura e Sociedade. 2005, n. 8, p. 65.

153Costa Pinto, M. da., op. cit., p. 128.

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e construir outra força. O amor à prova de bala e o embate armado por palavras são

acontecimentos imprevistos, mesmo em uma cidade sem fortificações, porque os

corpos se tornam fortalezas e suas forças, dominação. Na vida asséptica não se

pode suar, não se pode sentir medo nem muita alegria. Nos enredos do autor em

questão é como se ele criasse personagens blindados e fosse, ao longo da escrita,

à procura de pele.

A sensação de sobrevivência vem de se viver nas fronteiras do presente, um

presente que não é ruptura ou vínculo com passado e futuro, mas as

descontinuidades, as desigualdades, as minorias. Um presente que não tem nome

próprio “(...) além do atual e controvertido deslizamento do prefixo 'pós': pós-

modernismo, pós-colonialismo, pós feminismo...”154. Para produzir subjetividade nas

articulações, nos intervalos – espaços vazios de fixações e endurecimentos e feitos

por ligamentos, encontros – não é possível ater-se às subjetividades originárias,

geracionais. Para tanto, é preciso negociação. O direito à expressão nessas

periferias não está na tradição (sobrenomes e distintivos), mas na possibilidade “de

se reinscrever através das condições de contingência e contrariedade que presidem

as vidas dos que estão 'na minoria' (…).”155

Então, se a subjetividade se desenha por incertezas e obstáculos e se a metrópole é

espaço de descontinuidades, desigualdades, minorias, as relações de uma com

outra têm potencial para escapar de amortecedores sociais e de pancadas do

desenvolvimento capitalístico:

Nós pensamos que a metrópole é um recurso, recurso excepcional e

excessivo, mesmo quando a cidade está constituída por favelas, barracos,

caos. À metrópole não podem ser impostos nem esquemas de ordem,

prefigurados por um controle onipotente (pela terra e pelo céu através de

guerra e de polícia), nem estruturas de neutralização (repressão,

amortecimento, etc.) que se querem internas ao tecido social. A metrópole

é livre. A liberdade da metrópole nasce da construção e reconstrução que

a cada dia ela opera sobre si mesma e de si mesma.156

154Bhabha, H. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p. 19.155Idem, p. 21.156Negri, A., op. cit., p. 208.

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A cidade nos chama a desertar. A escrita de Aquino nos faz recusar servir a uma

guerra de destruição, de aplanações, para criar outro modo de viver, de combater

que agencie nossos desejos. Nas cidades aquinianas não é preciso fronteiras fixas

para se proteger, para se distinguir, para ser parte, só fronteiras móveis – recusa-se

o juízo, a classificação Bem e Mal, pautada em valores transcendentais; e combate-

se, transita-se pelos bons e maus encontros, fica-se atento à experiência para o que

faz ficar junto e o que faz se afastar. Formam-se alianças menos de contrato e mais

de contato.

Deleuze e Guattari estabelecem uma diferença conceitual entre o 'limite' e o 'limiar':

“o limite designando o penúltimo, que marca um recomeço necessário, e o limiar o

último, que marca uma mudança inevitável.”157. O limite assinala que, para além

dele, é necessário modificar a estrutura, seja de um sistema ou de um

comportamento. O limiar, por sua vez, é a passagem de um modo de

funcionamento para outro. Então, o limite seria um alerta para que um modo de

funcionamento continue funcionando da mesma forma e o limiar seria a certeza de

que, dali para frente, haverá mudanças. O limite se preocupa com a proteção, a

contenção e a perpetuação, enquanto o limiar se baseia na inovação, na abertura e

no risco. A literatura de Aquino é limiar porque não se apoia em exclusões para se

levantar e faz da coexistência, ela sim, a vencedora. Com isso, nós, leitores,

ganhamos, pois somos expostos a zonas limiares. A ficção é tão reconhecível no

cenário urbano e o cotidiano é tão inacreditável. Não há inocentes, todos somos

culpados. Esses entremeios dão a chance de relação com o estranho – nossa vala

comum.

157 Deleuze, G. e Guattari, F., op. cit., p. 130.

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