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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Marina Silveira Arruda Uma análise do design em tempos de hipermodernismo: do contexto político às dimensões cognitivas e comunicativas MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA SÃO PAULO 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Marina Silveira Arruda

Uma análise do design em tempos de hipermodernismo:

do contexto político às dimensões cognitivas e comunicativas

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO

2012

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Marina Silveira Arruda

Uma análise do design em tempos de hipermodernismo:

do contexto político às dimensões cognitivas e comunicativas

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em

Comunicação e Semiótica, sob a orientação da Profa. Dra. Christine Greiner.

Área de concentração: Signo e significação nas mídias.

Linha de pesquisa: Cultura e ambientes midiáticos.

SÃO PAULO

2012

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos a reprodução total ou

parcial desta Dissertação por processos de fotocópia ou eletrônicos, desde que citada a

fonte.

Aos meus pais.

AGRADECIMENTOS

À minha família querida pelo apoio, amparo, parceria, presença (mesmo que a

distancia). A Márcio e Magali, meus pais, pela oportunidade de poder ser. E feliz. A

Márcia e Murilo, meus irmãos; contente, porque o convívio com vocês me faz pensar,

repensar e rir das coisas. Ao Bernardo, porque me tranquiliza ao mesmo tempo em que

me estimula. Conviver com você é especial, e seu apoio neste processo foi fundamental.

À Chris, minha orientadora querida, que desencadeou tantas transformações. O

processo de reformulação é intenso, por vezes sofrido, mas incrível. Sempre grata, lhe

admiro muito.

E agradeço a Deus, porque me sinto muito abençoada, a cada dia, a cada

experiência que vivo.

RESUMO

O tema desta dissertação é o design de produtos e ambientes em tempos de hipermodernismo (LIPOVETSKY, 2004). Neste contexto, o design afirma-se, à primeira vista, como um sintoma do mercado de consumo, cuja função é elaborar bens a serem comercializados, tendo como meta o crescimento constante dos lucros. No entanto, especialmente na última década, o design tem sido considerado também um dispositivo cada vez mais apto a implementar modos de vida e subjetividades. O objetivo desta pesquisa é reconhecê-lo nesta natureza processual, como um pensamento sistêmico expresso pela linguagem que o engendra. A hipótese principal é que as noções de corpomídia (KATZ & GREINER, 2005, 2010), juntamente com a de mente distendida (CLARK, 2011), podem redefinir o design para além da funcionalidade e comercialização de objetos, explicitando as relações dinâmicas e singulares entre corpos e ambientes, a cada vez que um novo produto é concebido e utilizado. Em termos metodológicos, trata-se de uma pesquisa bibliográfica que pontua e problematiza alguns aspectos da história e das diferentes concepções de design, aproximando-as de bibliografias voltadas para o estudo da percepção (FERRARA, 2001; REINERT, 2012), das discussões do trabalho imaterial (NEGRI & LAZZARATO, 2001) e da comunicação sensível que produz subjetividade (SODRÉ, 2006). Como corpus da pesquisa, serão exemplificadas situações relacionadas à prática do designer de interiores e os modos como estas são representadas pelas publicações especializadas. O resultado esperado é a apresentação preliminar de uma discussão que revigora o debate conceitual da natureza processual do design contemporâneo, vitalizando, ao mesmo tempo, a sua prática. Palavras-chave: Design, hipermodernismo, trabalho imaterial, corpomídia.

ABSTRACT

The theme of this dissertation is the design of products and environments in hypermodernism times (LIPOVETSKY, 2004). In this context, the design affirms itself, at first sight, as a symptom of the consumer market which function is to elaborate goods to be commercialized, aiming the constant growth of the profits. However, especially in the last decade, the design has been also considered an apparatus even more able to implement ways of life and subjectivities. The goal of this research is to recognize it in this procedural nature, as a systemic thought expressed by the language that engenders it. The main hypothesis is that the body-media notions (KATZ & GREINER, 2005, 2010) together with the distended mind ones (CLARK, 2011) can redefine the design to beyond the objects functionality and commercialization, explaining the dynamic and singular relations among bodies and environments, in each time that a new product is designed and used. In methodological terms, it is a bibliographic research that punctuates and problematizes some aspects of the history and different conceptions of design, approaching it of bibliographies focused on the study of perception (FERRARA, 2001; REINERT, 2012), of discussions about the immaterial labor (NEGRI & LAZZARATO, 2001) and of the sensitive communication that produces subjectivity (SODRÉ, 2006). As research’s corpus, will be exemplified situations related to the interior designer’s practice and the ways as its practice are represented by the specialized publications. The expected result is the preliminary presentation of a discussion which invigorates the conceptual debate of the procedural nature of the contemporaneous design, vitalizing at the same time its practice.

Key-words: Design, hypermodernism, immaterial labor, body-media.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO _____________________________________________________ 10

CAPÍTULO 1 � Algumas considerações sobre o processo evolutivo do design __ 12

1.1 A formalização da atividade e os primeiros estudos _______________________ 13

1.2 O design de interiores como nicho específico e o papel dos livros e revistas

especializadas ________________________________________________________ 33

1.3 O estado da arte ___________________________________________________ 52

CAPÍTULO 2 � Um contexto indisciplinar para repensar o design ___________ 62

2.1 O design como pensamento sistêmico __________________________________ 63

2.2 A reformulação de paradigmas que a teoria corpomídia desencadeia __________ 68

2.3 Uma rede de possibilidades __________________________________________ 83

CONSIDERAÇÕES FINAIS � O que seria um design para a vida ____________

88

BIBLIOGRAFIA ____________________________________________________ 90

10  

INTRODUÇÃO

Há cerca de uma década, venho trabalhando como designer de interiores e de

produtos. Ao observar os clientes e seus anseios, assim como o modo como os meios de

comunicação veiculam informações referentes ao assunto, tenho indagado do que se

trata o design hoje.

Assim como tantos outros setores da vida, as atividades relativas ao design

também estão mergulhadas nas redes de consumo, características do chamado

hipermodernismo, como observa Gilles Lipovetsky (2004). O que interessa a quem o

produz é vender objetos, serviços e, muitas vezes, impor estilos de vida. De certa forma,

os veículos especializados de comunicação colaboram com essa tendência, na medida

em que também estão inseridos na mesma rede. As páginas de anunciantes nas revistas

especializadas aumentaram significativamente. A padronização de estilos também é

cada vez mais evidente.

O objetivo desta dissertação é explicitar um modo de pensar e fazer design, que

não está submetido a esta lógica de mercado, mas que internaliza a singularidade de

seus usuários, ativando a produção de subjetividades e não apenas o consumo de

produtos. Neste sentido, o que chamo ao final de design para a vida tem a ver com uma

tentativa de vitalização do ofício, para torná-lo um dispositivo em função da vida e das

particularidades dos sujeitos.

Ajudar alguém a escolher seus objetos de uso cotidiano, a organizar sua vida

privada e a explicitar a singularidade de seus estilos no dia a dia (incluindo a criação de

objetos personalizados) faz parte do trabalho do designer.

Para valorizar essa proposta, crio uma aproximação entre estudos do design e

teorias não habitualmente usadas para analisá-lo, como é o caso da teoria corpomídia

(KATZ & GREINER, 2005, 2010), da hipótese da mente distendida (CLARK, 2011),

dos estudos do trabalho imaterial (NEGRI & LAZZARATO, 2001) e de algumas

pesquisas pontuais de arquitetura (LEACH, 2006) que repensam a relação entre corpo e

ambiente. O que estas bibliografias têm em comum é o fato de possibilitarem a análise

do design como um pensamento sistêmico e dinâmico, que ativa conexões entre corpo e

ambiente e que não produz só “produtos”, mas também subjetividades e modos de vida.

11  

Na área da comunicação e, especificamente, da semiótica, há algumas pesquisas

que colaboram com esta dissertação, uma vez que foram pioneiras no sentido de

apresentar novas possibilidades de pensar o design, como é o caso das discussões de

Lucrecia D’Alessio Ferrara e Décio Pignatari, desenvolvidas desde a década de 1980, e,

mais recentemente, de Leila Reinert (2012).

A dissertação foi organizada em dois capítulos. No primeiro, apresento

brevemente algumas informações sobre a profissão do designer, a formação do campo

de estudos e o estado da arte de como algumas revistas especializadas e bibliografias

têm lidado com a pesquisa em design. Nesse mesmo capítulo, já começo a introduzir

algumas questões propostas pelos semioticistas que, de certa forma, abriram novos

caminhos. No segundo capítulo, apresento as grades teóricas que escolhi para repensar o

design, tendo em vista demonstrar a hipótese principal desta dissertação:

A noção de mente distendida, proposta por Andy Clark, os pressupostos da

teoria corpomídia, de Katz e Greiner, assim como o reconhecimento da natureza

processual do design, embasados pelos estudos de trabalho imaterial de Lazzarato e

Negri são potencialmente capazes de reformular paradigmas e revitalizar a atuação

dos designers, conforme a relação corpo-objeto-ambiente que estabelecem. Isso

porque, nesse viés, o design é considerado como pensamento sistêmico.

Não há propriamente uma conclusão. Como já havia sido proposto no resumo e

no projeto inicial, esta dissertação é uma modesta contribuição para os estudos do

design, tendo em vista não apenas alimentar o debate teórico, mas criar uma ponte entre

estas reflexões e a prática no sentido de encontrarmos, como designers, modos de

vitalizar o cotidiano daqueles que buscam nossos serviços.

12  

CAPÍTULO 1

Algumas considerações sobre o processo evolutivo do design

13  

1.1 A formalização da atividade e os primeiros estudos

A origem imediata da palavra está na língua inglesa, na qual o substantivo design se refere tanto à ideia de plano, desígnio, intenção, quanto à de configuração, arranjo, estrutura (e não apenas de objetos de fabricação humana, pois é perfeitamente aceitável, em inglês, falar do design do universo ou de uma molécula). A origem mais remota da palavra está no latim designare, verbo que abrange ambos os sentidos, o de designar e o de desenhar. (...) A maioria das definições concorda que o design opera a junção desses dois níveis, atribuindo forma material a conceitos intelectuais (...) (CARDOSO, 2000, p. 16).

Para chegar à formulação da hipótese principal desta dissertação que entende o

design como pensamento sistêmico, pesquisei alguns aspectos da história do design,

desde a constituição da profissão e de seu respectivo campo de estudos. Não cabe aqui

apresentar um panorama exaustivo dessa história, mas vou apontar algumas

considerações relevantes para esclarecer o argumento a ser desenvolvido no decorrer

desta pesquisa.

Design não diz respeito apenas a idealizar, projetar ou concretizar bens a serem

consumidos. É provável que a sua história tenha, inclusive, começado antes da

formulação do termo. Vitruvius, artista e engenheiro-construtor romano, que viveu entre

80 e 10 a.C., era um designer; Leonardo da Vinci, cientista, matemático, engenheiro,

inventor, anatomista, pintor, escultor, arquiteto, que viveu entre 1452 e 1519, também

era um designer.

A especialização nomeada explicitamente pelo termo “designer” emerge de um

contexto histórico peculiar e muito decisivo, que é quando o projeto e a manufatura dos

bens de consumo são apartados, tornando-se diferentes especializações. A divisão do

trabalho, historicamente determinada pela Revolução Industrial, refere-se à “passagem

de um tipo de fabricação, em que o mesmo indivíduo concebe e executa o artefato, para

um outro, em que existe uma separação nítida entre projetar e fabricar, constitui um dos

marcos fundamentais para a caracterização do design” (CARDOSO, 2000, p. 17).

Quanto a sua procedência histórica enquanto área de atuação:

Aconteceu na Europa entre os séculos 18 e 19 uma série de transformações nos meios de fabricação, tão profundas e tão decisivas que costuma ser conceituada como o acontecimento econômico mais importante desde o desenvolvimento da agricultura. Essas mudanças acabaram ficando conhecidas como Revolução Industrial, justamente como forma de chamar

14  

atenção para o impacto tremendo que exerceram sobre a sociedade (...). Hoje em dia praticamente todos vivem neste sistema, em que quase tudo o que se consome é produzido por indústrias, e é justamente o longo processo de transição global do sistema anterior para o atual que se entende por industrialização (CARDOSO, 2000, p. 20).

A relação existente entre o sujeito e as coisas, utensílios, ferramentas, artefatos,

era bem distinta antes do advento das máquinas, que puderam aperfeiçoá-los, padronizá-

los e produzi-los numa escala maior, devido à mudança do tempo de produção, que

passou a ser otimizado. Isso implicou em instrumentos que eram caros e raros. Não

havia, ainda, tantas “especializações” dentre os objetos. A mesma “faquinha”, objeto

cortante e pontiagudo, servia para os mais infindáveis usos. Os objetos demoravam a

ficar prontos, dependiam da mão de obra manual, de força mecânica humana,

basicamente, além de outros requisitos, num contexto que era precário,

comparativamente.

Foi justamente a partir da Revolução Industrial que nossos antepassados

puderam se maravilhar com a possibilidade emergente de passar a se relacionar de

forma distinta com os objetos. A raiz dessa dinâmica expansionista foi a irrupção, em

fins do século XVIII, por volta de 1780, da Revolução Industrial. Esse surto inaugural

da economia industrializada foi baseado em três fatores básicos: o ferro, o carvão e as

máquinas a vapor, propiciando o surgimento das primeiras unidades produtivas, as

fábricas. Seu centro de origem e irradiação foi a Inglaterra e ele esteve voltado

sobretudo para a produção de tecidos manufaturados e algodão e lã, distribuídos em

escala mundial pelas novas ferrovias e navios a vapor. O momento seguinte da expansão

da economia mundial industrial, e aquele que mais diretamente nos interessa aqui, foi

desencadeado pelo advento da chamada Segunda Revolução Industrial, também

intitulada Revolução Científico-Tecnológica, ocorrida em meados do século à sua plena

configuração em 1870. Apesar de ser comumente denominada de “segundo momento da

industrialização”, a Revolução Científico-Tecnológica é muito mais complexa, ampla e

profunda do que um mero desdobramento da primeira, como o nome poderia sugerir.

Ela representa, de fato, um salto enorme, tanto em termos qualitativos quanto

quantitativos, em relação à primeira manifestação da economia mecanizada:

Resultando da aplicação das mais recentes descobertas científicas aos processos produtivos, ela possibilitou o desenvolvimento de novos potenciais energéticos, como a eletricidade e derivados do petróleo, dando assim origem a novos campos de exploração industrial, como os altos-fornos, as indústrias

15  

químicas, novos ramos metalúrgicos, como os do alumínio, do níquel, do cobre e dos aços especiais, além do desenvolvimento nas áreas de microbiologia, bacteriologia e da bioquímica, com efeitos dramáticos sobre a produção e conservação de alimentos, ou na farmacologia, medicina, higiene e profilaxia, com um impacto decisivo sobre o controle das moléstias, a natalidade e o prolongamento da vida (SEVCENKO, 1998, p. 8).

Com o aperfeiçoamento das máquinas, elas passaram a exercer não somente a

força física, mas a precisão, a agilidade, e, num momento mais adiantado, a inteligência.

Futuramente, os computadores foram inventados, pois era preciso cada vez mais

intensificar os processos produtivos, automatizando-os, visto que, se a produção

aumenta num mesmo espaço de tempo, isso faz com que os itens possam se tornar mais

baratos, logo, mais acessíveis. Com isso, a atividade tornou-se mais rentável para aquele

que a exerce.

(...) As máquinas do século passado, de tipo marcadamente mecânico, eram como que extensões multiplicadoras da força muscular do homem. Nossos bisavós ainda conviviam com objetos, o objeto-em-si ainda existia e durava; a indústria como que produzia objetos um a um, e cada qual diferente do outro, em mais variedade do que quantidade. Hoje, com a cibernética e automação, toda produção é programada e a questão não se coloca mais em termos musculares, mas antes em termos de sistema nervoso: as máquinas passam a ser complexos de organismos informacionais e as relações entre as coisas vão substituindo a visão da coisa-em-si. E quem fala relação, fala linguagem, uma vez que uma relação só pode ser explicitada sob alguma forma sígnica. Toda relação que se estabelece entre duas coisas estabelece um vínculo de alguma ordem que é expresso em termos de linguagem – e isto vale tanto para as realidades do mundo físico como para as do mundo social e cultural (PIGNATARI, 1993, p. 15). 

 

Dentro das fábricas restaram basicamente os operadores das máquinas e alguns

operários que complementam a produção das mesmas, dando acabamento aos produtos.

Acabaram sendo, cada vez mais, coadjuvantes.

Uma dinâmica intensa de produção se instaurou em poucas décadas e, em

decorrência desta, a diversidade de itens e de hábitos vinculados a estes que emergiram

foi muito significativa, sendo que:

(...) apenas para se ter uma breve ideia, os veículos automotores, os transatlânticos, os aviões, o telégrafo, o telefone, a iluminação elétrica e a ampla gama de utensílios domésticos, a fotografia, o cinema, a radiodifusão, a televisão, os arranha-céus e seus elevadores, as escadas rolantes e os sistemas metroviários, os parques de diversão elétricas, as rodas-gigantes, as montanhas-russas, a seringa hipodérmica, a anestesia, a penicilina, o estetoscópio, o medidor de pressão arterial, os processos de pasteurização e esterilização, os adubos artificiais, os vasos sanitários com descarga automática e o papel higiênico, a escova de dentes e o dentifrício, o sabão em

16  

pó, os refrigerantes gasosos, o fogão a gás, o aquecedor elétrico, o refrigerador e os sorvetes, as comidas enlatadas, as cervejas engarrafadas, a Coca-Cola, a aspirina, o Sonrisal e, mencionada por último mas não menos importante, a caixa registradora. E não era só uma questão de variedade de novos equipamentos, produtos e processos que entravam para o cotidiano, mas o mais perturbador era o ritmo com que essas inovações invadiam o dia a dia das pessoas, principalmente no contexto desse outro fenômeno derivado da revolução, as grandes metrópoles modernas (SEVCENKO, 1998, p. 10).

Cardoso (2000, p. 80) afirma que, com o barateamento de uma gama

considerável de bens de consumo através da mecanização e outros avanços industriais, o

consumo de supérfluos ficou ao alcance de um número cada vez maior de pessoas e as

instâncias de compra foram se multiplicando para atender às novas classes compradoras.

Como explica Pignatari:

Quando Ford realizou o “primeiro protótipo de desenho do tempo”, no dizer de Fuller, assestou o golpe definitivo no artesanato e no chamado tempo durável ou das coisas duráveis, inaugurando o tempo do consumo, o tempo da moda, que é o nosso tempo. E é nesse, com esse e através desse tempo que o passado e a tradição se vivificarão ciclicamente na mesma, aproximando-se cada vez mais dela – tornando-se úteis através de coisas consumíveis: uma roupa, um livro ou uma casa. Esse tempo-de-moda é a mais profunda e inerente qualidade dos novos valores que vão se formando; ele formará os grandes ciclos do consumo, que poderão ser facilmente traçados graças à pujança documental de hoje; contribuirá para a acuidade da consciência histórica de massa – acuidade crítica e dinâmica que não mais suportará esquemas fixos preestabelecidos, mas apenas estruturas abertas, móveis, mutáveis (PIGNATARI, 1993, p. 90).

A melhora na qualidade de vida, em termos da facilitação que o fenômeno da

indústria de massa gerou para a população, foi considerável, o que fez com que a

mesma aderisse ao consumo, algo que desencadeou o sucesso do sistema econômico

decorrente: o capitalismo.

Este sistema surgiu no final do século XIX e início do XX, e neste os meios de

produção são de propriedade privada, bem como a distribuição dos bens produzidos e

lucros gerados, que depende, portanto, da capacidade de vender estes produtos; e a

perpetuação deste ciclo, da capacidade de inovação.

De acordo com Forty (2007), o design é a estratégia que surgiu neste contexto

para promover a inovação, a diversificação, e desta forma intensificar a aceitação e

adesão, o que estimula a venda e move toda esta engrenagem. E é da responsabilidade

do designer conduzir tais processos no sentido da obtenção de resultados.

17  

Os primeiros designers, os quais têm permanecido geralmente anônimos,

tenderam a emergir de dentro do processo produtivo e eram aqueles operários

promovidos por quesitos de experiência ou habilidade a uma posição de controle e

concepção, em relação às outras etapas da divisão de trabalho. Contudo,

A transformação dessa figura de origens operárias em um profissional liberal, divorciado da experiência produtiva em uma indústria específica e habilitado a gerar projetos de maneira genérica, corresponde a um longo processo evolutivo que teve seu início na organização das primeiras escolas de design do século 19 e que continuou com a institucionalização do campo ao longo do século 20 (CARDOSO, 2000, p. 18).

Inicialmente, a competência do designer deu-se conforme o seu envolvimento e

o aprimoramento na área específica em que trabalhava cotidianamente, ou seja, o

designer era provavelmente aquele que se destacava dos demais, e isso em decorrência

de habilidades que desenvolvia. Emergia do contexto específico a figura de um

encarregado da concepção dos bens a serem produzidos. Com o tempo, conforme a

demanda da população crescia e as indústrias se desenvolviam (assim como a

concorrência) pela necessidade de manter a obtenção crescente de lucros, a

especialidade foi ganhando destaque, relevância e contorno.

Essa condição foi determinante para que a atuação desse profissional fosse

sempre norteada, em maior ou menor grau, pelos interesses da atividade industrial, seus

direcionamentos. Na medida em que cresceu a sua responsabilidade perante o sucesso

de vendas dos produtos gerados, aumentou a necessidade e especificidade de seu

preparo, tanto que hoje ser designer requer formação técnica e intelectual, pois, uma vez

formado, este supostamente deve estar apto a atuar nos mais diversos segmentos

vinculados à indústria.

É no contexto histórico do movimento moderno que se identifica a consolidação

desta especialidade como uma atividade profissional a ser ensinada academicamente,

sendo determinantemente caracterizada pelos ideais das principais instituições que a

legitimaram. A escola alemã Bauhaus, criada por Walter Gropius e inaugurada no ano

de 1919, foi fundamental para a consolidação do design.

No seu curto período de existência, agregou estudantes e profissionais

diversificados e engajados especialmente na inovação e no fazer artístico. Sua

18  

repercussão foi mundial e, de início, suas motivações e ações voltavam-se à

consolidação do entendimento de design:

(...) pensado como uma atividade unificada e global, desdobrando-se em muitas facetas mas atravessando ao mesmo tempo múltiplos aspectos da atividade humana. Essa feição totalizante derivava, em última instância, da velha filosofia Arts and Crafts, da arte como forma de viver e da vida como ofício artesanal (...) (CARDOSO, 2000, p. 120). 

O ideal cultuado na instituição era pautado na democracia, unindo técnica e arte

de modo a propiciar o viver “com arte” ao povo, popularizar outros modos de vida. O

conceito de função proveniente, muito popularizado e até hoje empregado, se referia

neste contexto a aliar condições técnicas de produção com as condições estéticas que

emergiam da sociedade, de modo a produzir para a mesma, e produtos acessíveis à

mesma.

Segundo Fiell e Fiell (2000, p. 6), “o alvo do design moderno iniciado e

ensinado na Bauhaus, era produzir trabalho que unisse aspectos intelectuais, práticos,

comerciais e estéticos através de um esforço artístico que explorasse novas tecnologias”,

movidos pela intenção de conciliar idealismo social, realidade comercial e tecnologia

emergente. Contudo, a lógica capitalista, que já vigorava na ocasião, reformulou tais

intenções conforme foi sendo conveniente, ordem que contribuiu gradativamente para o

enfraquecimento da instituição, de seus ideais e possibilidades de intervenção. Porém, a

interrupção definitiva de suas atividades se deu em 1933, quando fora fechada por Adolf

Hitler, logo após ter assumido o poder.

Após a II Guerra, um novo movimento foi gerado na Alemanha, a Escola

Superior da Forma de Ulm, que funcionou por 15 anos, tendo sido fundada em 1952.

Seu programa era orientado, de início, pelo modelo da Bauhaus, sendo que sua

motivação inicial era ser uma escola superior de base “técnico-humanística”. Foi a

instituição “que introduziu pela primeira vez sistematicamente, no sector do desenho

industrial, o estudo da semiótica, da teoria da informação, da ergonomia e da

cibernética” (DORFLES, 1990, p. 28). Este também foi um projeto que também não

prosseguiu. Assim,

(...) os aspectos que foram aproveitados posteriormente pelo campo do design refletem apenas o verniz desses ideais elevados. Contrariando a vontade de alguns dos seus idealizadores, a Bauhaus acabou contribuindo

19  

muito para a cristalização de uma estética e de um estilo específico de design: o chamado ‘alto’ Modernismo que teve como preceito máximo o Funcionalismo, ou seja, a ideia de que a forma ideal de qualquer objeto deve ser determinada pela sua função, atendo-se sempre a um vocabulário formal rigorosamente delimitado por uma série de convenções estéticas bastante rígidas. (...) Também contrariando as suas raízes nos movimentos de artes e ofícios e a sua prática de produção manual e artesanal, a experiência da Bauhaus acabou contribuindo para a consolidação de uma atitude de antagonismo dos designers com relação à arte e ao artesanato (CARDOSO, 2000, p. 120-121).

O entendimento majoritariamente disseminado quanto ao que seja design e qual

a incumbência do designer foi bem representado pela célebre afirmação “a forma segue

a função”. Trata-se de assumir a tarefa de solucionar problemas e sanar necessidades

por meio dos objetos funcionais concebidos. “Definido no seu sentido mais global como

concepção e planejamento de todos os produtos feitos pelo homem, o design pode ser

visto fundamentalmente como um instrumento para melhorar a qualidade de vida”

(FIELL; FIELL, 2000, p. 6).

Da ideologia Bauhaus é gerado um subproduto chamado de estilo Bauhaus, que

é a aparência superficial e generalizada semelhante ao que fora elaborado enquanto

existiu, adotada por alguns ao identificar ou produzir design. O mesmo ocorreu com a

Ulm, que deu origem a um estilo Ulm de projetar, bem cogitado comercialmente, mas

esvaziado da motivação de cunho social original. “O purismo Bauhaus-Ulm mostrava-

se visivelmente despreparado para o desenho de produtos de largo consumo”, diz

Pignatari (1993, p. 95). Aos poucos, o cenário começa a mudar:

Condicionado aos sistemas econômicos e às forças políticas vigentes, o designer passa a projetar mercadorias que visam o consumo da cultura de massa. (...)

Desse modo, os ideais progressistas da sociedade industrial, em sua ideologia-utopia original, foram substituídos por um consumismo que cria necessidades fictícias e sujeita a massa aos interesses do poder capitalista (Argan, 1995). Aquilo que era projeto para uma nova sociedade transforma-se em estratégias de venda – o valor de uso do objeto decai em favor do seu valor de troca e a obsolescência programada garante a reposição periódica da mercadoria. O problema é que o consumo compulsivo não gera o bem-estar prometido pelo progresso industrial pois, diz Argan (1995), os produtos adquiridos por impulsos inconscientes nem trazem nem devem trazer satisfação para que haja continuidade no processo. Comprar, descartar, comprar, acumular e novamente comprar. Um consumo irracional que as classes privilegiadas asseguram para si por meio da exploração inconsequente dos recursos naturais e das classes menos favorecidas (REINERT, 2012, p. 43-44).

20  

Lipovetsky, em sintonia com a visão de Reinert, afirma que:

(...) é com o aparecimento do consumismo de massa nos EUA, na década de 1920, que o hedonismo, até então apanágio de uma pequena minoria de artistas e intelectuais, vai se tornar o comportamento geral na vida corrente, e é aí que reside a grande revolução cultural das sociedades modernas. Se observarmos a cultura sob o ângulo do modo de vida, é o próprio capitalismo e não o modernismo artístico que vai ser o artesão principal da cultura hedonista. Com a difusão em larga escala de objetos considerados até então de luxo, com a publicidade, a moda, a mídia de massa e, principalmente, o crédito – cuja instituição solapa diretamente o principio da poupança –, a moral puritana cede lugar aos valores hedonistas encorajando a gastar, a aproveitar a vida, a ceder aos impulsos (...) (LIPOVETSKY, 2005, p. 63-64).

De acordo com Lipovetsky, hoje vivemos em tempos hipermodernos, sendo que

“a primeira modernidade era extrema por causa do ideológico-político; a que chega o é

aquém do político, pela via da tecnologia, da mídia, da economia, do urbanismo, do

consumo, das patologias individuais” (2004, p. 56).

É neste e para este contexto que o designer trabalha. É um estrategista. Atua em

grande parte no plano das análises, ideias e previsões.

Fazer design é, portanto, uma atividade complexa e sistêmica que abrange

projetar e viabilizar a fabricação, mas que pressupõe não ser o designer quem

propriamente coloca a “mão na massa” para reproduzir em larga escala o que concebe,

especialmente no caso dos envolvidos na produção de bens materiais, objetos

palpáveis1.

O designer atém-se especialmente a refletir e considerar os muitos momentos

envolvidos: aspirações do público-alvo, seu repertório cultural, suas condições

financeiras, o processo de fabricar um produto, como dinamizá-la e otimizá-la, como o

produto adquirido se apresenta, estratégias para cativar o público, a eficiência do mesmo

quando posto em ação, sua repercussão social etc. Levanta dados que o possibilitem

elaborar uma previsão e destas formulações concebe uma conclusão. Um algo, a se

materializar, ainda que não palpável.

Será conveniente repetir agora o que já dissemos várias vezes, ou seja, que o designer não deve ser considerado apenas um “desenhador”, no sentido que

                                                            1 Isso ocorre de forma um pouco diversa em se tratando de design gráfico, de interfaces, e mesmo no caso do design de interiores. Contudo, no geral, não é sempre que o profissional está no dia a dia da produção.

 

21  

esta palavra assume isoladamente em italiano ou em português, isto é, um indivíduo que possui particulares dotes de talento e de perícia no desenho. Precisamente para reforçar a distinção de “desenho” (no sentido inglês de design e no sentido espanhol de diseño, contrapomos a dibujo e a drawing, isto é, desenho artístico distinto de todo e qualquer elemento de um projeto), devemos considerar o designer como um projectista do objecto a produzir industrialmente, mas também como um planificador da mesma tarefa produtiva. Antes de se dedicar ao projecto e ao desenho de um determinado objecto, ele deverá de facto precisar o seu objectivo de criador do mesmo, no âmbito de toda a complexa cadeia produtiva.

Um dos seus primeiros objectivos será, pois, o de reagrupar sinteticamente os dados extraídos das informações recebidas dos diversos investigadores, técnicos, estatísticos, peritos do mercado e das técnicas de laboração, de modo a poder tirar as conclusões que lhe permitam descobrir o tipo de produto a projectar (DORFLES, 1990, p. 97-98).

No contexto globalizado em que vivemos, o consumo precisa ser incitado

constantemente, visto que daí advêm os lucros das empresas. O papel a que o designer e

o design se prestam é fundamental, na medida em que se constitui como um valioso

dispositivo de comunicação potencialmente capaz de implantar posturas coerentes com

a dinâmica de consumo em vigor. Dentre os produtos que o designer produz hoje para

serem comercializados, estão modos de vida. Esta é uma mudança radical e que está

contextualizada em transformações globais, como tem pontuado Lipovestky.

O design foi sendo refinado e se caracteriza justamente como a receita usada

para instaurar esta identificação, fazendo a mediação entre o objeto e o público-alvo.

Dando aos produtos a “cara” conveniente ao contexto histórico-cultural-social a que se

destinam, de modo a serem bem aceitos e, quando bem explorado, conseguir ainda

mais: fazer com que os objetos se tornem objetos de desejo. Como afirma Forty (2007,

p. 22): “a fim de compreender o design, devemos reconhecer que seus poderes de

disfarçar, esconder e transformar foram essenciais para o progresso das sociedades

industriais modernas”.

O design atua como um dispositivo comunicativo capaz de persuadir e implantar

posturas compatíveis com a dinâmica de consumo no nível em que se apresenta, devido

à estruturação de sentido que promove. É importante esclarecer como uso aqui a palavra

“dispositivo”. Trata-se de “um termo técnico decisivo na estratégia de pensamento do

Foucault”, como explica o filósofo Giorgio Agamben, que o usa com frequência quando

começa a se ocupar daquilo que chama de “governabilidade” (2009, p. 27-28).

Repensando a proposição de Michel Foucault, Agamben propõe que o dispositivo:

22  

a. É um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos.

b. O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação de poder.

c. Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber (AGAMBEN, 2009, p. 29).

Contudo, partindo da elaboração de Foucault, o autor desenvolve uma releitura

do termo e propõe “situar os dispositivos num novo contexto”,

Proponho-lhes nada menos que uma geral e maciça divisão do existente em dois grandes grupos ou classes: de um lado, os seres viventes (ou, as substâncias), e, de outro, os dispositivos em que estes são incessantemente capturados. Isto é, de um lado, para retomar a terminologia dos teólogos, a ontologia das criaturas, e, do outro, a oikonomia dos dispositivos que procuram governá-las e guiá-las para o bem.

Generalizando posteriormente a já bastante ampla classe dos dispositivos foucaultianos, chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – por que não – a própria linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata – provavelmente sem se dar conta das consequências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar capturar (AGAMBEN, 2009, p. 40-41).

A definição de dispositivo de Agamben, que abrange tantos elementos

cotidianos, é compatível com a proposta desta dissertação, sendo o design um

dispositivo de comunicação e de poder que nos faz aderir cada vez mais ao consumo, na

medida em que suscita o desejo. No entanto, a questão que ronda esta dissertação o

tempo inteiro é se o design poderia ser também um dispositivo de vitalidade que age em

função da vida particular e não necessariamente das tendências da moda e das redes de

consumo. Não é fácil.

A motivação primordial de quem trabalha o design está relacionada à

manipulação da subjetividade, na medida em que a grande maioria dos designers se

23  

submete a esta ordenação em vigor, pois trabalham para as indústrias direta ou

indiretamente.

As indústrias se expandiram em número, tamanho e abrangência, sendo que a

variedade de objetos destinados a resolver cada uma das necessidades e problemas do

ser humano hoje é enorme, muitos deles redundantes entre si, o que torna necessárias

estratégias muito eficientes de persuasão e convencimento, ou seja, requer designers

cada vez mais competentes, de repertório cada vez mais vasto. Apelos como qualidade,

durabilidade, preço justo, atributos concretos ligados à fisicalidade do produto, já não

surtem os mesmos resultados, pois vêm sendo exaustivamente explorados e é por conta

disso que, cada vez mais, é viável partir para o aspecto do objeto enquanto signo, para

poder se explorar as características e os benefícios mais “abstratos” do mesmo, sendo

que os concretos e práticos não os distinguem mais uns dos outros.

As motivações que nos fazem aderir aos objetos são das mais variadas ordens,

apesar do que acreditavam os funcionalistas, que seria possível conceber uma estética

única, um “Estilo Internacional”, nome dado ao estilo ligado ao modernismo a partir da

década de 1920, relacionado a:

(...) soluções formais ‘internacionais’, ou seja, que substituíssem as formas vernáculas (para eles ligadas a um passado arcaico de regionalismos e nacionalismos, de escolas e modas) por formas gerais e supostamente universais, de preferência redutíveis a módulos simples e abstratos que pudessem ser eternamente recompostos de acordo com necessidades funcionais. (...) Os proponentes do Estilo Internacional acreditavam que todo objeto podia ser reduzido e simplificado até atingir uma forma ideal e definitiva, a qual seria o reflexo estrutural e construtivo perfeito da sua função (CARDOSO, 2000, p. 154).

Proponentes deste estilo internacional acreditavam que a produção de objetos se

daria desta forma, a partir do momento que passa a se dar em série e padronizada nas

indústrias, processo irreversível.

Para os designers ligados a essa corrente de pensamento, era apenas uma questão de tempo até que todos os outros artefatos encontrassem sua forma típica e perfeita. Atingindo esse ponto, a produção em massa garantiria que aquele produto perfeito fosse produzido em quantidade suficiente para todos, por todo o sempre. Amém.

No entanto, a evolução da fabricação industrial, desde aquela época, comprovou justamente o contrário. Quanto mais se desenvolvem a tecnologia, o mercado e o design, maior a diversidade de formas oferecidas (CARDOSO, 2012, p. 106).

24  

O designer encontra aí um campo vasto de exercício das possibilidades, como

pontua Reinert:

Diferentemente de um design focado na produção de bens de consumo, orientado pelo produto industrial e “controlado” por uma economia de mercado, como estabelecido no decorrer do sec. XX, (Le Bot, op. cit., 2008), atualmente o design está focado no sujeito e no seu modo de existir, assim como nas relações que ele estabelece com o entorno projetado. Dito de outra forma e citando Klaus Krippendorff, “o paradigma de se projetar produtos funcionais para a produção em série morreu com a Ulm” (apud Montálvão; Damazio, 2008), pois os designers perceberam que não projetam somente “coisas” mas regimes de visibilidades que determinam práticas sociais, formas simbólicas, e afetividade (REINERT, 2012, p. 164).

Estes aspectos subjetivos implícitos passam a ser explorados marcadamente pelo

designer, o que origina demandas próprias de consumidores cada vez mais exigentes,

detentores de maiores possibilidades de consumir e ávidos por terem suas necessidades

(insaciáveis) saciadas, e necessidades de várias ordens, não mais somente as de

subsistência. As de representação também são relevantes:

(...) sendo as aparências dos objetos carregadas de significados, isso quer dizer que todo artefato material é também comunicação, informação, signo. Nenhuma cadeira pode ser apenas uma cadeira. Ela é uma cadeira específica, dentro de uma gama de possibilidades, e carrega informações sobre estilo, procedência, valor, uso, e assim por diante. Ou seja: todo artefato material possui também uma dimensão imaterial, de informação” (CARDOSO, 2012, p. 111). 

Como explica Pignatari:

Uma mensagem se consome e desgasta como qualquer produto e de acordo com o uso. Este é um dos aspectos da revolução de nosso tempo: de proprietários passamos a consumidores. Quanto mais fechado e imutável for o “sistema” ou a cooperativa de consumidores de signos, mais cresce a tendência dos usuários de se julgarem proprietários dos mesmos, mais redundantes se tornam os signos, mais se reduz o teor da informação desses mesmos signos. Passam eles a soar – para o grande público ou para uma nova faixa de consumidores – como aborrecidas garatujas ininteligíveis de eras mortas. É espantosa a capacidade social humana de condicionar aos signos poderosos e complexos sistemas de uso e comportamento, que se lhes grudam à existência como a pele ao corpo. Os significados de um conjunto de signos só não se alteram se se garantir a continuidade do mesmo contexto que os viu nascer e formar-se e do mesmo tipo de usuários (PIGNATARI, 1993, p. 108).

Na medida em que nos reformulamos, revisamos nossa relação com as coisas

incessantemente. Se atendo a isso é que se garante a progressão da “máquina de gerar

25  

consumo”, e esta é intensificada especialmente a partir de quando a ênfase produtiva

migra da necessidade para o desejo, sendo que desde o início do século XX, sugere

Sodré (2006), o poder é exercido e se incorpora nos sujeitos por meio do desejo. Mas

não o desejo de um produto em si, mas de algo inatingível que possivelmente não se

encontra em sua totalidade em nenhuma das coisas passíveis de se adquirir.

Lipovetsky complementa:

Definiu-se a sociedade pós-industrial como uma sociedade de serviços, porém, mais diretamente ainda, como o self-service que pulveriza inteiramente a antiga disposição disciplinar, e o faz não pelas forças da Revolução, mas, sim, pelas ondas radiantes da sedução. Longe de estar circunscrita às relações de interação entre as pessoas, a sedução se tornou um processo geral com tendência a regrar o consumo, as organizações, a informação, a educação, os costumes. Toda a vida das sociedades contemporâneas passou a ser comandada por uma nova estratégia que destronou a primazia das relações de produção em favor de uma apoteose das relações de sedução (LIPOVETSKY, 2005, p. 1).

Assim, ao designer se faz necessário analisar atentamente o comportamento do

consumidor, com enfoque no entretenimento, obtenção de prazer, aspectos oníricos etc.,

para se direcionar a produção. Como colocado, ele produz objetos, mas também modos

de vida compatíveis, a mediação entre nós e os objetos, e a instauração de tais modos de

vida, e é toda esta dinâmica (bem como sua obsolescência no tempo pré-estipulado) que

garante o sucesso de sua atuação. Com isso, segundo Lipovetsky, ocorreu:

(1) a passagem do capitalismo de produção para uma economia de consumo e de comunicação de massa; e (2) a substituição de uma sociedade rigorístico-disciplinar por uma “sociedade moda” completamente reestruturada pelas técnicas do efêmero, da renovação e da sedução permanentes. Dos objetos industriais ao ócio, dos esportes aos passatempos, da publicidade à informação, da higiene à educação, da beleza à alimentação, em toda a parte se exibem tanto a obsolescência acelerada dos modelos e produtos ofertados quanto os mecanismos multiformes de sedução (novidade, hiperescolha, self-erotismo, viagens, lazeres). O universo do consumo e da comunicação de massa aparece como um sonho jubiloso. Um mundo de sedução e de movimento incessante cujo modelo não é outro senão o sistema da moda. (LIPOVETSKY, 2004, p. 60).

No entanto, é ainda mais do que isso, como analisa Muniz Sodré:

Estabelece-se uma certa equivalência entre a noção de acesso aos bens de consumo por meio do mercado e a de democracia e ideal democrático. O que se tem chamado de “indústria cultural” ou “cultura de massa” é de fato um espaço, de natureza estética e moral, destinado a sustentar uma “forma de vida” (...), com suas organizações e suas práticas, necessária à organização dos afetos requerida pelo capitalismo de consumo, pós-fordista. (...) está aí implicada uma mutação capitalista, uma espécie de “nova economia”, em que a dimensão imaterial da mercadoria prevalece sobre sua materialidade, tornando o valor social ou estético maior do que o valor de uso e o valor de

26  

troca. Valores simbólicos e afetos ganham o primeiro plano tanto na economia quanto na cultura codificada (SODRÉ, 2006, p. 56).

Além de Sodré, que atua na área da comunicação e vem abordando o que chama

de estratégias “sensíveis”, repensando os próprios limites da comunicação, Lazzarato e

Negri (2001) colaboram com a discussão repropondo o debate sobre trabalho imaterial

embasado na subjetividade. Tais autores são indispensáveis à reflexão que desenvolvo a

partir daqui.

A produção audiovisual e a publicidade, por exemplo, são atividades que sempre

se caracterizaram como imateriais, por fazerem uso de conteúdos sensíveis, processuais,

não necessariamente identificados como produtos, mas muitas vezes como ideias,

modos de vida, relacionamentos interpessoais. Pautam-se em anseios sociais, e o

produto que desenvolvem pode ou não ser tangível. Contudo, embora pensar na moda e

mais precisamente no design como sendo trabalhos imateriais possa parecer um

contrassenso, pois se destinam a dar origem a itens palpáveis e consumíveis, esta

afirmação procede na medida em que todos hoje são capazes de sentir e admitir a

dimensão subjetiva que acompanha os objetos, também os compondo.

O design se sofisticou e hoje a função de significar exercida pelos objetos é de

ordem básica, e mais do que nunca o designer deve ter competência para proporcionar

isso aos consumidores. No sentido do que veio sendo colocado, e segundo a definição

dos autores em questão, design pode ser classificado como sendo um trabalho imaterial.

Mais que isso, tais autores afirmam que, com a exploração desta estratégia,

percebe-se que se passou de uma produção de caráter “material” a uma de caráter

“estético”, pois os produtos são de ordem “ideológica”, no sentido de produzirem novas

estratificações de realidade, novas tecnologias que pedem por “novas formas de ver e de

sentir” (op. cit., p. 50):

Os produtos ideológicos se transformam em mercadorias, sem perder sua especificidade, ou melhor, sem perder a capacidade de estarem sempre voltados a alguém, de serem “idealmente significantes” e que, portanto, colocam o problema do sentido (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 50).

É com base nesta reflexão que parece mais coerente classificarmos o design

como sendo um trabalho primordialmente ideológico, e não necessariamente imaterial.

27  

De acordo com Negri e Lazzarato, o design lidaria o tempo todo com produtos, mas

também com suas imaterialidades2.

Os elementos criativos, de inovação, são estritamente ligados aos valores que somente as formas de vida produzem. A criatividade e a produtividade na sociedade pós-industrial residem, de um lado, na dialética entre as formas de vida e os valores que elas produzem; e de outro, na atividade dos sujeitos que as constituem (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 52).

O ciclo da produção imaterial caracteriza um modelo de empresa e de economia

que podem ser denominados de pós-industrial, e estão fundadas sobre o tratamento da

informação e a estratégia a ser implementada, voltada primordialmente para a

comercialização, para além de controle de gastos e produção. Seguindo o lema de que

um produto deve ser vendido antes mesmo de ser fabricado, mobilizam-se “importantes

estratégias de comunicação e de marketing para reapreender a informação (conhecer a

tendência do mercado) e fazê-la circular (construir um mercado)” (op. cit, p. 44).

Quanto ao “operário” que integra este modelo de trabalho ideológico, também

denominado de pós-fordista, as competências mais valorizadas são sua subjetividade e

personalidade, estas é que são interessantes de serem gerenciadas, e a quantidade e

qualidade do que fizer estarão relacionados ao seu repertório de conhecimento. Seja se

referindo aos mais qualificados, ou mesmo aos iniciantes, quando se levam em conta

ciclos sociais de produção, produções de caráter estético, produções difusas, trabalho

descentralizado, terceirização, a competência de ordem ideológica é que se torna visada,

estratégica. O meio constituído por esta força de trabalho social e autônoma cresce,

podendo um dia, como acreditam os estudiosos do tema, tornar-se hegemônico.

Nas fábricas pós-fordistas e na sociedade produtiva pós-industrial, os sujeitos produtivos se constituem, tendencialmente, primeiro e de modo independente

                                                            2 Embora não faça parte da discussão neste momento, gostaria de pontuar que a noção de imaterialidade tem sido criticada por alguns autores: “o reconhecimento de que todo pensamento, especificamente todo processo de criação, tem materialidade, pode vir a representar um passo importante para novos debates/ações. Paul Churchland (1998: 17) explica que as teorias materialistas da mente demonstram como processos e estados mentais são processos e estados de um sistema físico chamado cérebro que, por sua vez, só realiza as ações porque é incorporado. São apenas as teorias dualistas da mente que admitem os estados mentais como uma espécie distinta de fenômenos de natureza não física e não material. Portanto, considerar as ações de pensar, criar e conhecer como fenômenos imateriais é uma forma de deslocá-las do corpo e de seus contextos específicos, revelando uma posição cartesiana camuflada que ajuda a reafirmar dispositivos de poder ao invés de profaná-los”. (GREINER, 2010, p. 107)

 

28  

da atividade empreendedora capitalista. A cooperação social do trabalho social, na fábrica social, na atividade terciária, manifesta uma independência frente à qual a função empreendedora se adapta, ao invés de ser a fonte e a organização. Esta função empreendedora, “personificação do capital”, em vez de constituir uma premissa, deve, portanto reconhecer a articulação independente da cooperação social do trabalho na fábrica, na fábrica social e no terciário de ponta, e adaptar-se a eles (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 31).

Segundo os autores, a relação que esta nova força de trabalho tem com o capital

não é de antagonismo, é sim alternativa a ele, por constituir uma realidade social

potencialmente diferente. Eles afirmam que:

(...) quando, na sociedade pós-industrial, acompanhamos (mesmo empiricamente) os processos sociais de contestação e os processos alternativos, o que suscita o nosso interesse científico não são as contradições que opõem trabalhadores e patrões, mas os processos autônomos de constituição de subjetividade alternativa, de organização independente de trabalhadores (op. cit., p. 36-37).

Conforme o design foi se constituindo como trabalho ideológico, a sua produção

foi ganhando um caráter de evento devido à mobilização que gerava. Os produtos

tornaram-se eventos em si e os profissionais passaram a ser desencadeadores de

semioses infindáveis. Isso tem garantido à área uma inserção e importância econômica

evidentes.

O designer, a partir do século XX, surge em aliança cada vez mais estreita com o

marketing. Lida com a manipulação da subjetividade e para isso dirige esforços não

somente para assimilar as expectativas sociais e estéticas dos consumidores, mas

também para propor os valores e as atitudes que convém serem adotados, via

formulação e disseminação de modos de vida.

Tem sido fundamental produzir uma massa consumidora que corresponda aos

anseios do mercado na medida em que se reformulam, para que este não cesse de

multiplicar seus lucros:

Sendo destinada por definição a propor novidades, ela precisa eliminar as resistências. (...) Assim, de maneira branda e discreta, a publicidade modela a vida cotidiana de nossos contemporâneos. Cada qual tem a sensação de estar agindo à sua maneira, com toda a autonomia, e dessas decisões soberanas resulta o surgimento de um mercado cada vez maior para produtos feitos em série. Os gostos e as modas se uniformizam, enquanto cada qual julga que

29  

está se personalizando mais. A ilusão de independência alimenta o conformismo.

O paradoxo desse conformismo emancipado não se restringe aos modos de vida e objetos de consumo. Ele diz respeito a valores e às idéias. Os meios de comunicação sussurram aos ouvidos de cada um os grandes princípios do momento (PROST, 1992, p. 148).

Na medida em que o trabalho imaterial dá forma e materializa as necessidades, a

mercadoria passa a ter particularidades. O seu valor de uso consiste essencialmente no

seu conteúdo informativo e cultural. Assim a mercadoria não se destrói no ato do

consumo, mas alarga, transforma, cria o ambiente ideológico e cultural do consumidor.

Ela não reproduz a capacidade física da força de trabalho, mas transforma o seu

utilizador, como observam Lazzarato e Negri:

A “necessidade de consumir, a capacidade de consumir, a pulsão a consumir” não são mais produzidas indiretamente pelo objeto (produto), mas diretamente por dispositivos específicos que tendem a identificar-se com o processo de constituição da “comunicação social”. A publicidade e a produção da “capacidade de consumir, do impulso ao consumo, da necessidade de consumir” transformaram-se num “processo de trabalho”. (...)

Se a produção é hoje diretamente produção de relação social, a “matéria-prima” do trabalho imaterial é a subjetividade e o “ambiente ideológico” onde esta subjetividade vive e se reproduz. A produção de subjetividade cessa, então, de ser somente um instrumento de controle social (pela reprodução das relações mercantis) e torna-se diretamente produtiva, porque em nossa sociedade pós-industrial o seu objetivo é construir o consumidor/ comunicador. E construí-lo “ativo”. Os trabalhadores imateriais (aqueles que trabalham na publicidade, na moda, no marketing, na televisão, na informática etc.) satisfazem uma demanda do consumidor ao mesmo tempo que a constituem (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 46-47).

Visando desnaturalizar suposições disseminadas acerca do que seja necessidade,

Fry (2005) conceitua o “design para a necessidade”. Segundo esse autor, tal reflexão é

interessante aos que querem entender a posição assumida pelo design no processo de

criação de materialidades futuras, que é o de gerar demanda. Repensa, assim, o que

comumente se diz sobre a necessidade. De acordo com Fry, a “necessidade” (sempre

por ele colocada entre aspas) enquanto uma figura cultural mobilizada e à qual se apela,

pode ser um conceito extremamente importante para os interesses do design. E neste

sentido, afirma que:

(...) a “necessidade” não pode ser vista de modo viável, sob uma perspectiva, como um objeto único. Ela é em si não-discreta, sangra-se em muitas outras categorias – demandas, necessidade, desejo, querer, pobreza, e assim

30  

sucessivamente. Buscar uma essência de necessidade é, então, sair em uma jornada diminutiva que não terá fim.

Evocar a “necessidade” é racionalizar uma condição ontológica – a existência ou iminência de um vazio, sentido ou não (...) (FRY, 2005, p. 66).

Porém, ainda que “gerada-pelo-humano”, como classifica, não deve apenas estar

“centrada-no-humano”, com o mero intuito de propiciar “um modo pelo qual todas as

diferenças do “ser” sejam possíveis”. Um movimento ontológico de importância

ocorreria, sugere, quando o foco da “necessidade” do sujeito moderno da cultura

industrial recente se direcionasse para preocupações de cunho ambiental. “Em tal

movimento, a “necessidade” é deslocada saindo do eixo da “necessidade” do ser

humano para a “necessidade” da vida em si”. Mas afirma que “se continuarmos a tratar

a “necessidade” como se ela fosse um valor imutável e universal, a ser quantificado e

apelado de maneira simplista, não conseguiremos reconhecer e direcionar os problemas

mais graves da humanidade” (op. cit., p. 64-65).

Ficará então aparente que, o caminho da “necessidade” do Ser, para Ser de forma a “necessitar”, marca tanto a transição da cultura para uma economia política quanto do Eu para o sujeito. A mudança de lugar e recolocação da “necessidade” pelo mercado, como indicado pela transição mencionada ocorreu concomitantemente com a elevação do sujeito individual a ser denominado “consumidor”.

Relacionadas ao termo “design de necessidades” estão especializações recentes

que se manifestam neste mercado cada vez mais compartimentado, sendo elas a

Arquitetura de Escolhas e Design with Intent, traduzido como design de intenção por

Reinert (2012). Esta área, bem como a de Arquitetura de Escolhas, está vinculada:

(...) à práticas sociais, políticas e econômicas, que regulam a atividade humana em nosso época com o firme propósito de promover melhorias no comportamento e, consequentemente, na qualidade de vida das pessoas. Preocupações que fazem parte da busca atual por um mundo sustentável, contudo, parece-nos evidente que estas duas disciplinas apóiam seus discursos naquilo que elas identificam como deficiências humanas originárias: irracionalidade, desatenção, comodismo, impotência. Elas nos dizem que precisamos de sistemas de poder “inteligentes” que gerenciem nossas vidas diante de nossa própria incapacidade em fazê-lo (op. cit., p. 174).

31  

Desconsiderando as implicações decorrentes desta adesão incessante ao

consumo por parte da sociedade, o trabalho do designer prossegue requisitado e atuante

porque “produz ao mesmo tempo subjetividade e valor econômico”. Dessa forma:

(...) demonstra como a produção capitalista tem invadido toda a vida e superado todas as barreiras que não só separavam, mas também opunham economia, poder e saber. O processo de comunicação social (e o seu conteúdo principal: a produção de subjetividade) torna-se aqui diretamente produtivo porque em um certo modo ele “produz” a produção” (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 46-47).

Na medida em que “a massa vai consumindo e se comunicando”, a formação

desta cultura de massa, “através do gradativo desenvolvimento de sua própria

capacidade de escolha”, corresponde à formação da nova qualidade (nada a ver com

durabilidade) dos produtos fabricados em série e em massa. É neste contexto que o

designer deve inserir sua problemática mutável e o seu trabalho. E não a balela de

“levar a cultura às massas”, como (infelizmente) conclui Pignatari (1993, p. 95).

Bauman (2007) explica:

A sociedade de consumo tem por base a premissa de satisfazer os desejos humanos de uma forma que nenhuma sociedade do passado pôde realizar ou sonhar. A promessa de satisfação, no entanto, só permanecerá sedutora enquanto o desejo continuar irrealizado; o que é mais importante, enquanto houver uma suspeita de que o desejo não foi plena e totalmente satisfeito. Estabelecer alvos fáceis, garantir a facilidade de acesso a bens adequados aos alvos, assim como a crença na existência de limites objetivos aos desejos “legítimos” e “realistas” – isso seria como a morte anunciada na sociedade de consumo, da indústria de consumo e dos mercados de consumo (BAUMAN, 2007, p. 106).

É atender às necessidades na medida em que se criam novas, tão simples assim.

Como coloca Forty (2007):

“longe de ser uma atividade artística neutra e inofensiva, o design, por sua própria natureza, provoca efeitos muito mais duradouros do que os produtos efêmeros da mídia porque pode dar formas tangíveis e permanentes às ideias sobre quem somos e como devemos nos comportar” (FORTY, 2007, p. 12).

Não há muito espaço para ingenuidades. Ser designer implica em seguir as

diretrizes do mercado, tendo sido esta a dinâmica que delineou a área, a ponto de ser

enorme sua relevância na condução dos processos rumo ao alcance das metas

32  

(econômicas, em sua maioria). São as estratégias cada vez mais sofisticadas

desenvolvidas pelos designers que garantem o sucesso dos produtos e logo das

empresas, algo já comentado, sendo que, para aprimorá-las, deve-se focar os aspectos

subjetivos dos produtos. Com isso, eles conseguem desencadear a venda dos objetos e

dos modos de vida coerentes com estes, a serem substituídos no momento devido.

Há outras ciências que promovem soluções para o ser humano por meio de produtos, mas as abordagens divergem antes de se chegar à essência disciplinar. A distinção essencial está justamente no fato de que as funções a serem trabalhadas pelo projeto de design não dizem respeito exclusivamente aos aspectos técnicos dos produtos (...). Design trata fundamentalmente das questões da linguagem. “Designer deve ser conhecedor das funções práticas de um produto, mas deve ser um especialista nas funções de signo” (BÜRDEK, 1994, 179), pois busca, por meio da composição estético-formal, transmitir mensagens codificadas para os usuários e deles para com suas relações sociais (CARDOSO, T.; SANTAELLA, L.).

O design cria, assim, não somente objetos, mas subjetividades, alimentando uma

nova lógica econômica em ascensão. Seria possível continuar exercendo esta profissão

e, simultaneamente, abrir novos caminhos com aptidão a resistir aos excessos da lógica

capitalista?

33  

1.2 O design de interiores como nicho específico e o papel dos livros e revistas

especializadas

Essas estratégias sensíveis e as novas formas de entender o trabalho e a presença

dos sujeitos no mundo encontram uma série de constrangimentos na sua

implementação. A maioria deles está ligada aos modos como as informações são

veiculadas, por exemplo, em veículos de comunicação de massa e mesmo em

bibliografias mais tradicionais que partem de uma lógica determinista. Nestes contextos,

há uma separação clara e intransponível entre um dentro e um fora, a casa e o mundo.

Há também, cada vez mais, um estímulo à individuação no seu sentido mais narcísico,

do sujeito que quer seus desejos atendidos e está disposto a pagar por isso. De certa

forma, há todo um nicho do design que se alimenta destes sintomas do

hipermodernismo. A seguir, darei algumas exemplificações de como essas informações

vêm sendo veiculadas, fortalecendo-se em paradigmas do senso comum.

Segundo Prost (1992):

(...) a vida privada não é uma realidade natural, dada desde a origem dos tempos: é uma realidade histórica, construída de diversas maneiras por sociedades determinadas. Não existe uma vida privada de limites definidos para sempre, e sim um recorte variável da atividade humana entre a esfera privada e a esfera pública (PROST, 1992, p. 15).

A esfera privada também é produto da Revolução Industrial tal como o design, e,

na medida em que se sofistica ao longo do tempo, torna-se um contexto privilegiado

para onde se destinam os produtos e modos de vida elaborados.

A distinção bem demarcada entre vida privada e vida pública passou a ser uma

dualidade aplicada e presente no discurso de praticamente todos nós, sendo premissa

aos profissionais que propõem design, que se amparam fortemente nesta instância para

fundamentarem suas práticas. A especialidade “design de interiores” só pode existir

pautada nesta condição.

Não há unanimidade na definição do design de interiores. Para alguns, é

sinônimo de decoração; para outros, trata-se de uma ação mais complexa que vai além

disso. De todo modo, há, em regra, uma separação clara entre um âmbito de dentro e

outro de fora. Um antigo livro de decoração aponta para este entendimento quando

34  

afirma que “no refúgio doméstico é que nos libertamos fisicamente e damos expansão

aos sentidos embotados pelas refrações prismáticas urbanas” (SANTOS, 1963, p. 22).

Mas o curioso é que, muito embora esta ideia historicamente construída de casa

como refúgio, fortaleza, recanto, ninho e outras metáforas sejam amplamente

empregadas (vendidas) há muito tempo, e cuja intenção seja dar a conotação de

privativo, exclusivo, discreto, preservado, restrito, íntimo, é possível concluirmos, e

uma análise de alguns materiais teóricos a respeito confirma, que a construção deste

âmbito se dá em grande parte pautada na necessidade de correspondência a exigências

culturais e sociais de comportamento.

Estas exemplificações identificadas em livros e revistas especializadas embasam

a proposição de que o design é um potente dispositivo de comunicação, e que o nicho

do design que se atém à configuração dos interiores consegue usufruir deste potencial

com muita eficiência, pois de forma muito próxima, local.

Em geral, os designers de interiores e os decoradores podem ser considerados,

assim, operadores em potencial deste dispositivo, responsáveis por orientarem os seus

clientes quanto à relação dos bens materiais adequados de serem obtidos e sua correta

configuração no ambiente em questão, seguindo de alguma forma as tendências de

mercado na ocasião da deliberação. E a intenção de corresponder a uma tendência em

vigor parece muitas vezes se sobrepor à promoção de bem-estar àqueles que aí irão

conviver.

Muitos dos materiais escritos que guiam a prática dos mesmos se caracterizam

como manuais onde se sugere um passo a passo racional a ser seguido, e que parece

partir da escolha de um estilo de decoração predominante, de onde se tomam as

decisões (e fazem-se as aquisições).

Ensinar a conhecer e distinguir estilos, orientar na adaptação de acordo com a expressão que se quer dar ao ambiente, ajudar a utilizar e mesclar o clássico fazendo do lar moderno algo mais interessante, mais acolhedor... e belíssimo: eis a finalidade dêste livro.

Nêle fizemos o máximo para expor todos os estilos da maneira mais simples e compreensível, em todos os seus detalhes e características, de modo que se possa conhecer a fundo, e apreciar através dêle, tôda a beleza e o requinte de cada época. Pois é principalmente pela arquitetura e pela decoração que se conhece a maneira de viver, as condições sociais e os hábitos de um povo em uma determinada época (RODRIGUES, 1970, p. 9).

35  

Figura 1: “Qual estilo devo escolher?” (TERHUNE, 1944, p. 12).

No trecho abaixo, constam ambas as referências, a de refúgio e propriedade, bem

como a de correspondência às tendências e ao consumo:

E vamos ser sinceros: No ritmo acelerado e muitas vezes confuso de hoje, o ambiente pessoal é talvez mais importante do que em qualquer outra época. Cada pessoa, cada família anseia por um refúgio, um lugar para se sentir realmente "em casa", um lugar de consolo e também para diversão com os amigos. E para a maioria de nós, não é suficiente dizer que as aparências não contam. Quer queiramos ou não, nós vivemos em uma era sofisticada, que exige estarmos ciente de todas as comodidades domésticas. Nós ligamos para o que nossos amigos e vizinhos pensam da nossa maneira de viver e não de forma superficial, uma espécie de “status consciente”. É simplesmente uma questão de querer que os outros saibam que estamos conscientes da nossa cultura, parte da cena, como se fosse. Sabemos também que um ambiente compatível, contribui para nos fazer melhor, mais compreensivos (...). Uma casa ou apartamento de aparência interessante estimula nossa imaginação. Ela faz uma criança crescer mais brilhante, mais alerta. Torna as relações familiares mais gratificantes. Ele faz o entretenimento mais estimulante para anfitriões e convidados. Quer queiramos ou não, a nossa casa, pelo menos parcialmente, nos expressar para o mundo. E isso é uma grande e importante condição (HAGUE, 1976, p. 11-12).

36  

E como a frase abaixo complementa, é uma atividade que requer dispêndio de

dinheiro, pois está intrinsecamente ligada a consumo:

Você deve preparar-se e sua família para gastar de uma maneira diferente, para gastar mais e ter a longo prazo qualidade e conforto, em vez de prazer a curto prazo. Se você analisar o seu orçamento sem medo e descobrir que você não pode se dar ao luxo de fazer o quarto ou a casa inteira bem, então você deve esperar até que você tenha acumulado o suficiente (HAGUE, 1976, p. 12).

No que diz respeito à história do design no Ocidente, ele é disseminado

sobretudo nos séculos XVIII, XIX e XX na Europa. Os países onde o design foi mais

praticado e discutido foram a França e os Estados Unidos. Com a propagação dos meios

de comunicação de massa, o design expandiu-se e quanto mais cresceu a rede de

consumo, maior se tornou a área de atuação dos designers. Sobre a constituição dos

estilos consagrados:

Você pode muito bem pensar em cada período como uma época em que as casas, móveis e mobiliário de atendimento foram desenvolvidos ao longo de certas linhas, sob a liderança de designers e artesãos eminentes, até que estes projetos atingiram sua maior perfeição e maior aceitação. Enquanto isso, havia sempre a iminência de um contemporâneo inspirado em desenvolver uma outra ideia e fazer aquele estilo ter sucesso, fazendo esta contínua sobreposição de estilos.

Aprendendo as características de vários estilos você pode facilmente rastrear influências de design de uma geração para a outra, e de um país para outro, embora uma variação de gosto nacional influencie, bem como os toques individuais de um artesão nativo ao tentar imitar os desenhos do seu mestre original. (TERHUNE, 1944, p. 15)

37  

Figura 2: Arranjos nos estilos Clássico, Século XVIII, Moderno, dados conforme muda a estamparia da poltrona (TERHUNE, 1944, p. 109).

Estilo Gótico, Tudor, Jacobino, Elizabeth, Cromwell, Renascimento, Barroco,

Estilos Ingleses (cujas subdivisões são Guilherme e Maria, Rainha Ana, Chippendale,

Robert Adam, Hepplewhite, Sheraton), Estilos “Luízes” (Luiz XIII, XIV, XV e XVI),

Diretório, Regência, Francês Provincial, Império, Biedermeier, Vitoriano, Estilos da

América (Primitivo, Espanhol, Português, Brasileiro, Marajoara), Estilo Moderno. Estes

seriam alguns dos exemplos que surgem entre as sugestões apresentadas no livro “Os

móveis e seus estilos através os tempos”, de 1954. Thomas Chippendale, Thomas

Sheraton e George Hepplewhite, por exemplo, foram influentes marceneiros britânicos

do século XVIII, de cuja produção derivou-se um estilo de decoração. Thomas

Chippendale elaborou até mesmo um guia onde constava sua produção, o que colaborou

evidentemente com a disseminação do estilo a que deu origem.

Tradicionalmente, a história do design entende as diferentes experiências como

provenientes de um período político-cultural específico ou de uma dada localização

geográfica. Elas davam origem a um estilo, que em geral se configura como uma

receita, um modelo a ser implementado e sem grandes possibilidades de adaptação, o

que os descaracterizam:

38  

Como você estudou esses estilos de períodos você provavelmente já se perguntou, "O que fazer quanto a todos os móveis se vê e que são muito diferentes de qualquer coisa mostrada aqui? Onde ele pertence e o que posso fazer sobre isso?" Francamente, na maioria dos casos, nada. Na adaptação de móveis para o conforto moderno, cadeiras estofadas, por exemplo, muitas peças incorporam novas características, sem perder suas características originais e boas proporções gerais. São ativos de boas-vindas à vida moderna e contabilizadas numa boa decoração. Há muitos outros, no entanto, que tornaram-se tão distorcidos e híbridos que lhes falta todo o sentido de um bom design, e raramente merecem a sua consideração. Não é porque eles não têm qualquer carimbo de qualquer período determinado, mas por causa do fato de que eles são em si mesmos estranhos (TERHUNE, 1944, p. 55).

Muitas vezes estes estilos são mesclados, na medida em que seguir à risca um

deles requer, como dito, alto investimento de dinheiro e de dedicação, tanto em sua

organização quanto em sua manutenção. Mas a impressão é que se fazem presentes

compondo a decoração, seja em maior ou menor grau, tais estilos consagrados, e que

quanto mais “pura” uma decoração, mais esta é enaltecida:

Já não se decoram apartamentos, mesmo que grandes, num só estilo. Já não se decoram casas, mesmo que suntuosas, num estilo único. Há variedade de estilos numa mesma decoração de interiores. É claro que, em ocasiões especialíssimas (decoração de residências palacianas, de embaixadas, ou residências presidenciais), ainda é possível usar-se apenas um estilo único, sem contudo permitir o vetusto das cores, que devem ser um tanto modernas, mas claras. Deve-se não permitir a entrada daquele toque de velharia; mas sim o toque de distinção e “finesse” (RODRIGUES, 1970, p. 181).

Esta orientação de obedecer às diretrizes postuladas por estilos, caracterizados

por serem tendências “inabaláveis”, fixadas, ainda é encontrada sendo veiculada nos

tempos atuais, sendo sugerido que o processo deva partir destas certezas:

Quanto ao estilo, ele pode variar de acordo com seu criador e o cliente. Um decorador parece um estilista de moda, porque imprime seu gosto ao ambiente. A opinião do cliente, seus sonhos de casa ideal e como ele pretende viver no espaço combinam com o estilo do decorador ou do arquiteto, de comum acordo (TERRA; RODRIGUES, 2000, p. 14).

O que a existência destes estilos e os manuais que os sistematizam evidenciam é

que a constituição da casa, fator determinante para o desencadeamento de modos de

vida relacionados, é muito influenciada por diretrizes que não partem de uma

organização própria, local. A partir dessas descrições, parece que tudo se pauta pela

padronização de estilos, escolas, norteadores de comportamentos.

39  

As revistas de decoração são as que mais colaboram com isso. O que se nota é a

propagação de tendências. São elas que correspondem à proliferação de modos de vida,

fundamentados mais por comportamentos compatíveis do que por estilos rigidamente

constituídos. Com uma regularidade que pode ser anual, semestral ou orientada pelas

estações do ano, em geral, tais tendências são de antemão provisórias e previamente são

estabelecidos o seu início e seu fim.

“A liberdade é a grande aposta”3, sugere uma destas revistas, e na sequência nos

informa sobre as quatro tendências de se morar, ou melhor, de se viver, em voga no ano

que vem: “refúgio bucólico”, “casa-ateliê”, “romântico profundo” e “intimista

orgânico”. E, obviamente, para se viver desta forma, só estando cercado pelo cenário

coerente, compostos por itens específicos e numa disposição válida.

A palavra cenário é, inclusive, muitas vezes aplicada, como em afirmações tais

como “sem dúvidas esse mix de elementos servem de base para a construção do cenário

de vida de seus clientes”4. E isso pressupõe a substituição dos componentes deste

ambiente na medida em que se queira “encenar” algo diferente.

Neste mesmo número da revista comentada, lemos “da casa-contêiner ao

apartamento neoconcretista, uma seleção de projetos que falam sobre a nova estética

urbana de morar” (p. 97). E sobre esta, lemos mais adiante que “apartamento paulistano

arquitetado por (...) traduz a estética contemporânea de morar: rigor modernista, sotaque

cosmopolita, pimenta vintage e os dois pés no futuro” (p. 116), ou seja, são dadas pistas

sobre do que se trataria esta “estética” hoje em vigor (ou isso torna ainda mais

complicada a questão). O que podemos concluir é que não se tratam mais de estilos

fechados.

                                                            3 Revista Casa Cláudia, Editora Abril, novembro de 2012.

4 Revista Kaza, Editora Ação, novembro de 2012, p. 135. 

40  

Figura 3: Foto do apartamento descrito anteriormente. Mais descrições dadas: “O apartamento (...) é uma nesga de seu estilo pop e sui generis que cabe em qualquer lugar do mundo”, “com sede de espaço, os moradores encomendaram ambientes mais amplos, com materiais atemporais e efeito impactante (...)”, e “espaços generosos e poucas setorizações deixam o layout mais dinâmico, uma releitura da integração que é a cara da nova estética da vida urbana, marcada por matéria-prima tecnológica (cimento queimado, corian, limestone).”

Ainda que o termo “atemporal” seja encontrado em muitas das descrições de

ambientes projetados hoje em dia, e que isso pareça ser um dos fundamentos da nova

“estética de morar”, é interessante analisar e concluir que estas tendências que

delineiam a nova estética são praticamente sempre constituídas por fragmentos de

estilos expressos pelos objetos escolhidos, ou seja, são atemporais possivelmente

porque são híbridos, ainda que cada item em si possa ser conotado como emergente de

um contexto específico (logo, nunca atemporal).

“Assentada sobre as rochas da Joatinga, no Rio de Janeiro, a casa (...) exibe

formas modernas e conteúdo atemporal rasgados para a paisagem desconcertante” (p.

123). “(...) concordamos em elencar materiais multifuncionais e estabelecer uma

decoração minimalista, apenas com peças curingas” (p. 125). Estas são descrições de

41  

outra casa de decoração atemporal, contida no mesmo número da revista citada, o que

supostamente significa que é uma casa que não “cai de moda” fácil.

Figura 4: Foto da casa descrita anteriormente.

De fato, há sempre uma correspondência com estilos em alguma medida devido

aos itens que os compõem e à procedência destes, combinados muitas vezes de uma

maneira já prevista. Lemos ainda sobre a casa em questão acima: “(...) buscamos

inspiração no japonismo, a exemplo dos painéis e dos espaços livres, e na arquitetura

parisiense Haussmaniana, expoente do século 20, que reforça a amplitude do recinto

como seu ponto máximo (...)” (p. 126). A decoração, e mesmo o design de interiores, se

apegam ainda hoje ao termo “estilo” de forma marcante para conduzir suas práticas.

42  

Figura 5: Foto da decoração de uma casa pautada num estilo específico. Revista Kaza, Editora Ação, novembro de 2012, p. 135.

“(...) Para decorar esse paraíso particular, sinta-se livre”, lemos numa destas

publicações5. “Não temos mais de escolher: é permitido ser retrô e futurista, homem e

mulher, minimalista e barroco... A ideia é transformar suas referências em um estilo”,

sendo que “os espaços serão cada vez mais flexíveis, e os móveis, multiuso”. São

afirmações da pesquisadora holandesa Li Edelkoort, nesta mesma reportagem (p. 96).

Depoimentos como estes mostram que a noção de “estilos” ainda prevalece, embora

estes sejam dispostos de forma a incitar modos de vida que se alternam.

O design dos produtos e o dos ambientes que os reúnem se mostram enquanto

dispositivos de comunicação potentes para a incitação destes modos de vida, algo que se

verifica por meio da consulta a estes materiais de divulgação em massa. Se os estilos

fossem empregados com rigor, não permitiriam inserções frequentes, ou seja,

reformulações e a troca dos objetos que as sustentam. Logo, nada mais viável do que

                                                            5 Revista Casa Cláudia, Editora Abril, novembro de 2012.

43  

estimular a liberdade e personalização na constituição destes contextos, ainda que o que

se queira, na realidade, seja movimentar a economia via venda de produtos.

“O apartamento do designer e stylist italiano (...), em Milão, é um daqueles

lugares ecléticos, em que a mistura dos estilos clássico e contemporâneo resulta em

ambientes estimulantes ao olhar”, é a descrição presente na página 110 de outro volume

de uma influente revista de decoração6. Existe um mercado para decorações feitas em

um estilo único e puro (como a descrita abaixo), mas no geral o hibridismo é a

tendência, o que, como posto, não extingue os estilos consagrados, pilares convenientes,

apenas os ressignifica.

Figura 6: Foto da decoração de uma casa pautada num estilo específico. Revista Casa Vogue, Editora Globo Condé Nast, novembro de 2012, p. 185.

                                                            6 Revista Casa Vogue, Editora Globo Condé Nast, novembro de 2012.

44  

Quanto à descrição da decoração executada na casa acima retratada:

O arquiteto (...) valeu-se de ricos materiais, móveis e adornos antigos e uma boiserie do século 18 para dar alma a esta casa. Nesse imponente tributo ao neoclássico francês, há espaço para um toque de Brasil – na arte e no jardim (p. 180).

O arquiteto (...) se diverte enquanto trabalha. Principalmente quando viaja à Europa com seus clientes fiéis para fazer as compras de móveis e objetos: “É uma curtição!”. Desta vez, a “brincadeira” foi longe. A bagagem que trouxe para decorar uma de suas recentes casas palacianas – uma construção de 2.500 m2 no Jardim Europa, em São Paulo – veio ainda mais recheada. Nos contêineres, lotados de antiguidades dos séculos 18 e 19 (e peças de meados de século 20), chegou a boiserie original de um hôtel particulier, também do século 18, localizado no 7º arrondissement, em Paris. E que veio revestir inteiramente toda a casa que leva sua assinatura, erguida no lugar da que foi demolida. Do projeto arquitetônico, dentro do mais puro neoclassicismo francês urbano, como ele gosta, aos interiores totalmente tradicionais, o arquiteto cuidou de tudo.

“Elaborei um ‘programa janseniano’ (refere-se a Maison Jansen, um renomado fabricante francês de móveis que existiu por cerca de cem anos a partir de 1880), com espaços absolutamente estabelecidos para cada atividade”, afirma (...). Assim, a propalada integração contemporânea dos diversos ambientes, aqui, não tem vez (...) (p. 187).

Os estilos, ou o que se desdobra deles, podem ser identificados pelos

comentários de arquitetos, designers e decoradores selecionados por uma rede de

móveis planejados para aparecerem com destaque em revistas7 especializadas. Assim,

quando questionados a respeito do estilo que seguem, observamos respostas do tipo:

“identifico-me mais com o contemporâneo pois sou partidária das linhas retas e também

procuro integrar ao máximo os ambientes dos meus projetos”; “priorizar a estética com

as melhores soluções técnicas e funcionais para cada ambiente”; “contemporâneo e

minimalista. Elaboro projetos funcionais, criativos e personalizados”; “eclético e

moderno sem abrir mão de atender o sonho e o desejo do cliente”; “contemporâneo”;

“linhas retas e ambientes limpos sem deixar de priorizar a identidade do cliente”; “a

nossa experiência profissional demonstra que o grande desafio é conciliar o mix de

estilos e deixar cada projeto com a cara do cliente”; “contemporâneo e sofisticado”;

“misturo os vários tipos de estilo e principalmente procuro passar o lifestyle dos clientes

para o projeto. Os clientes são a minha maior fonte de inspiração”; “arquitetura

contemporânea com pinceladas clássicas”.

                                                            7 Revista Kaza, Editora Ação, novembro de 2012, p. 160-169.

45  

Como se vê, parece não existir muita precisão entre os próprios profissionais

sobre o que seria cada estilo e a função do design. Este processo ocorre, literalmente,

“de fora para dentro” e sem qualquer dinamicidade:

Livros e artigos de revistas costumam seguir um de dois caminhos: eles enfatizam a abordagem esteticamente elevada com palavras como "elegância", "sabor" e "ambiente" cogitadas por descuido ou eles seguem um caminho inferior, ou seja, de que decoração é simplesmente uma questão de colocar os ingredientes juntos, como fazer um bolo. Como na maioria dos empreendimentos, a abordagem sensata de sucesso está em algum lugar entre esses extremos. Não há dúvida de que nas mãos de poucos, os designers de decoração verdadeiramente talentosos podem representar uma forma de arte. Para o resto de nós, continua a ser um ofício, e um ofício pode ser aprendido. Este será o objetivo deste livro para explorar, com você, todas as ramificações deste ofício com a esperança de que, uma vez que seus princípios são compreendidos, você pode trazer a sua própria personalidade em jogo e chegar a um ambiente que expressa você e sua família, se você tem uma, de um modo distinto, atraente e confortável (HAGUE, 1976 p. 11).

Figura 7: “Decorando para você”, exemplos de combinações certas (right) e erradas (wrong) (TERHUNE, 1944, p. 220).

46  

Sugere-se que é preciso estar sempre amparado por este profissional para dar

coerência aos objetos na sua casa:

O mundo das fibras sintéticas e plásticos vai expandir enormemente com o passar do tempo e, também aqui, eles vão trazer um novo estímulo para a sua imaginação. Usando o que você vislumbrou nestas páginas, juntamente com as novas descobertas, você pode aumentar a emoção no seu ambiente.

Ao todo, a maior satisfação que este livro pode trazer é ajudar você a criar um estilo de vida mais estimulante e gratificante para você e sua família. Essa é a verdadeira recompensa de uma casa bem desenhada e decorada, que aglutina todas as facetas que fazem de uma vida serena e produtiva, que se torna o centro e o fim de tudo, por momentos felizes e atividades significativas (HAGUE, 1976, p. 501).

A introdução do manual de onde saiu a citação acima esclarece ainda:

Este livro de decoração, ao contrário de muitos outros, foi planejado para servir como um compêndio atemporal, um resumo de informações básicas sobre todos os assuntos de decoração. Para o amador, um estudo de todas as suas páginas serviria, em certo sentido, como um curso de decoração. Para os mais experientes, ele pode servir como uma fonte sobre um determinado assunto. (...) Esperamos que cada página seja uma aventura no assunto fascinante da decoração e também um caminho para uma vida mais enriquecedora. Então lembre-se, quanto mais imaginação você exerce na sua casa, mais interessantes você e seu estilo de vida serão (HAGUE, 1976, p. 14).

Afirmações como “o sucesso da decoração parte de um plano” (TERHUNE,

1944, p. 15) sintetizam com clareza esta condição:

No fazer, no entanto, se pairar mil perguntas inerentes à realização. Você quer as melhores soluções para os seus problemas específicos e você quer elas rapidamente. São bem-vindas as vantagens da técnica e orientação profissional, mantendo a sua casa, como deve ser, o produto de seu próprio pensamento.

Para você eu dediquei este livro - uma referência pronta de uma mão experiente para o seu encorajamento e confiança (p. 5).

47  

Figura 8: “Como pregar um quadro”: “faça isso” (do this) e “não faça isso” (not this) (TERHUNE, 1944, p. 218).

Uma decoração bem sucedida nunca cresce de adivinhação casual, mas se desenvolve a partir de premeditação e de um plano de procedimento prático. Toda a superação de obstáculos é feita em casa com antecedência, para remover todos os obstáculos de indecisão. Desenvolver um plano, traçar uma lista de cada sala, todos os móveis que podem ser comprados, juntamente com o seu custo aproximado (...).

Esta é a única forma de trabalhar de forma vantajosa. É o único caminho para o iniciante (e da mão experiente, também) para evitar o nervosismo na seleção de móveis no showroom quando perguntando como uma determinada peça vai caber (...) (p. 59).

Figura 9: Exemplos de composições certas (right) e erradas (wrong) (TERHUNE, 1944, p. 217).

48  

Enquanto traça, trabalhe contra todas as probabilidades de arquitetura, mas ao mesmo tempo, organize as suas salas para melhor servir a família. Cada sala deve ser planejada para servir a sua função e as pessoas que estão a usá-la. Os móveis devem ser organizados por conveniência da vida, para a restauração de passatempos da família, como música ou livros, e para entretenimento gracioso. Para estes objetivos, os agrupamentos funcionam de forma mais eficaz do que qualquer dispersão quer queira quer não a esmo de mobiliário (p. 76).

Figura 10: Um exemplo de um “arranjo pobre” (TERHUNE, 1944, p. 78).

As preferências parecem sempre estar em algum grau condicionadas às

tendências em circulação. Assim, mesmo quando ouvimos “a personalidade de quem

vive ali é de verdade, sem forçar a barra, já que muitos elementos foram sugeridos pelos

próprios cientes”8, ficamos surpresos porque parece que tudo se deu sem a presença dos

moradores. Em outra revista9, algo que também vai neste sentido: “sempre que viaja, o

empresário (...) traz lembranças que incorpora à decoração de sua casa, na Zona Sul

carioca. “Como sabíamos dessa característica e imaginamos que o quarto logo se

                                                            8 Revista Casa Vogue, Editora Globo Condé Nast, novembro de 2012, p. 121.

9 Revista Casa Cláudia, Editora Abril, novembro de 2012, p. 86. 

49  

encheria de objetos, preferimos apostar em uma base simples, com marrons, cáquis e

beges”, explica a arquiteta (...)”.

No entanto, existem “designers e designers”, vale completar, diferenciados pelos

paradigmas e valores que norteiam suas atuações.

No momento em que proliferam no país faculdades e escolas técnicas de design de interiores, temos motivos para prever mudanças profundas na prática “decorativa”. Discute-se desde a denominação (decorador, designer de interiores) até as fronteiras e atribuições menos cosméticas e mais conceituais do novo profissional (LESLIE, 2001, p. 14).

Figura 11: Esta imagem encontrada num dos manuais em discussão é muito representativa, pois mostra uma mulher sentada em sua sala, decorada segundo um estilo específico, mas esta aparece representada sem a boca no desenho, o que é algo inexplicável mas muito curioso. Esta omissão a torna inexpressiva e sugere, mesmo que de forma indireta, que existem situações onde não é adequado se manifestar nem durante o processo de constituição de um ambiente por um profissional, e nem depois, quando se for usufruir deste, devendo se enquadrar (RODRIGUES, 1970, p. 150).

Obviamente são identificadas outras formas de conduzir tais processos, seguindo

outras metodologias desenvolvidas por profissionais cujas intenções variam, mas nota-

se uma grande dificuldade em se superar estes paradigmas tão instaurados no contexto

em discussão, como nos suscita a frase:

Quando falamos em decoração, logicamente existem tendências, porém, assim como na moda-vestuário, você não pode usar uma cor que não lhe cai bem só por que está no auge. Ao contrário, ninguém deve deixar de usar sua

50  

cor preferida, porque ela não estava nas passarelas. O importante é que você se sinta bem e confortável. O mesmo vale para a casa: ela deve ter a sua cara e, portanto, quem decide as cores de paredes, pisos, tetos, sofás, poltronas e almofadas é você e sua família. Afinal, são as pessoas que estarão naqueles ambientes diariamente e as cores devem, antes de tudo, causar bem estar, além de refletir o estilo de vida das pessoas. Há apenas algumas dicas que você deve considerar (...) (LEAL, 2002, p. 14).

Sempre existem dicas a serem consideradas, tais como:

Cartão de visitas de uma residência, o hall deve ser decorado de acordo com o estilo dos demais ambientes. Porém, com uma vantagem: você pode criar um cenário, com iluminação especial, cores ousadas e materiais diferenciados (LEAL, 2002, p. 17).

Figura 12: O texto que acompanha a imagem diz: “um bengaleiro ou uma chapeleira são peças úteis e decorativas no hall de entrada”. Esta fora extraída de uma publicação de 2000 (TERRA; RODRIGUES, p. 30), e nos suscita um questionamento: será mesmo que no século XXI um bengaleiro, ou uma chapeleira, podem mesmo ser ainda considerados como sendo peças úteis, a ponto de constarem nas entradas das casas? Úteis em que sentido?

51  

“Ambiente principal de uma residência, a sala de estar é sempre o local onde a

família se reúne e recebe os amigos. E, por isso, deve apresentar conforto, elegância e

personalidade para refletir o seu estilo” (LEAL, 2002, p. 25). E estas dicas sempre

apresentam, mesmo que bem diluída, uma iniciativa de correspondência a modos de

vida veiculados em massa e nem sempre revisados (a sala de estar é mesmo SEMPRE o

local privilegiado da casa, em todas as casas?). Essas orientações apontam para a

tentativa de, na medida do possível, neutralizar a potência criativa que geraria uma

possível discussão destes comportamentos convenientes:

Depois de completo, o layout deve ser aprovado pelo cliente. A partir desta aprovação, não podem ser feitas modificações, porque qualquer mudança significará um novo projeto. O tamanho e a posição dos móveis também não podem mudar. Seus desenhos e estilos, sim, desde que não fujam da proposta inicial e não quebrem a harmonia (TERRA; RODRIGUES, 2000, p. 20).

Verifico que, enquanto estratégia de mercado que visa à venda de produtos

(dentre eles, modos de vida), o design estabeleceu um nicho onde esta meta se dá de

forma intensificada, que é o design de interiores, sendo que as ações desencadeadas no

âmbito privado, que passam inclusive pela configuração e arranjo dos elementos que o

compõem, surtem evidente resultado na instauração dos modos de vida considerados

adequados.

Contudo, acredito que o ofício do designer possa ser discutido e repensado, pois

o processo fica empobrecido se pautado prioritariamente nas premissas convenientes à

economia, como as descritas ao longo deste subcapítulo. A forma de condução destes

processos pode mudar, e é conveniente que mude, que se construam alternativas, que

podem partir de mudanças de perspectiva. Não mais considerados como processos

fechados, simplesmente pelo fato de que o processo de constituição de qualquer

instância da vida, ainda que hipoteticamente privada, nunca é fechada, é sempre aberta.

E é, desta forma, construída socialmente.

52  

1.3 O estado da arte

É evidente a competência adquirida pelos profissionais que trabalham com

produção ideológica, aqui especificamente destacados os designers de produto e de

ambientes, no sentido de conseguir manipular a subjetividade do público-alvo,

elaborando bens capazes de significar quando dispostos num arranjo adequado,

instaurando assim modos de vida (os verdadeiros produtos que estão sendo

comercializados, em suma).

Como sugere Lipovetsky, chegamos a um estado de coisas que podemos

denominar de Revolução do Consumo, que só se intensifica há, em média, meio século.

A revolução do consumismo, que só chegará a seu pleno regime após a Segunda Guerra Mundial, tem, de fato, a nosso ver, um alcance mais profundo, que reside essencialmente na realização definitiva do objetivo secular das sociedades modernas, a saber, o controle total da sociedade e, por outro lado, a liberação cada vez mais ampla da esfera particular, agora entregue a um self-service generalizado, à velocidade da moda, à flutuação dos princípios, dos papéis e status (...).

É a revolução do cotidiano que toma vulto, depois das revoluções econômicas e políticas dos séculos XVIII e XIX, depois da revolução artística na virada do século XIX para o XX. Agora o homem moderno está aberto às novidades, apto a mudar seu modo de vida sem resistência – ele se tornou cinético: “O consumo de massa significava que se aceitava, no importante domínio do modo de vida, a ideia de mudança social e de transformação pessoal” (LIPOVETSKY, 2005, p. 84-85).

E, em decorrência desta tendência:

A res publica se desvitalizou, as grandes questões “filosóficas”, econômicas, políticas ou militares despertam uma curiosidade semelhante àquela despertada por qualquer acontecimento comum, todas as “superioridades” vão minguando aos poucos, arrebatadas que são pela vasta operação de neutralização e banalização sociais. Apenas a esfera privada parece sair vitoriosa dessa maré de apatia; cuidar da saúde, preservar a própria situação material, desembaraçar-se dos “complexos”, esperar pelas férias (...) (LIPOVETSKY, 2005, p. 32-33).

Mello e Novais (1998) discutem o papel historicamente desempenhado pela

publicidade na instauração desta tendência de grande adesão ao consumo em nosso país,

e como isso se deu:

Nos anos 60, a publicidade no Brasil muda de natureza e se sofistica. Os “criadores” tomam o lugar dos redatores, e a concepção dos anúncios passa a envolver uma noção global, isto é, a unidade criativa, pois o “título” passa a ser subordinado à “arte”. O apelo à emoção e a mobilização do inconsciente

53  

desalojam a argumentação racional. A americanização da publicidade brasileira tem um papel fundamental na difusão dos padrões de consumo moderno e dos novos estilos de vida. Destrói rapidamente o valor da vida sóbria e sem ostentação. Numa sociedade em que a grande maioria é constituída de pobres, passa a fabricar ininterruptamente falsas necessidades, promove uma corrida ao consumo que não acaba nunca, mantém o consumidor perpetuamente insatisfeito, intranquilo, ansioso. Numa sociedade em que os verdadeiros valores modernos ainda não estavam enraizados, trata de vender a sensação de que o consumo pode preencher o doloroso vazio da vida, trazido pelas agruras do trabalho subalterno e pelas misérias morais e espirituais que preenchem parte do cotidiano. Numa sociedade marcada pelo privilégio e pela desigualdade, proclama alto e bom som que o homem vale o que vale apenas pelo que consome. Se o mercado educa para a busca calculada do interesse próprio, convertendo o homem em escravo do dinheiro, a publicidade educa para um apetite inesgotável por bens e satisfação pessoal imediata, tornando as massas em servas dos objetos, máquinas de consumo (...).

O efeito deste impacto é tanto maior quanto mais a televisão se integra à vida privada dos brasileiros como a principal forma de lazer, de entretenimento e de informação, nos estratos “inferiores” quase a única (...) (MELLO; NOVAIS, 1998, p. 640-643).

Identificar que houve gradativo aumento dos esforços neste sentido do

apresentado acima confirma a suposição de que o que se visa é predominantemente a

obtenção de lucro e seu crescimento contínuo, metas impostas pelas corporações, de

caráter predominantemente multinacional. Especialmente nós, que vivemos num país

onde, embora a escravidão e a colonização tenham oficialmente acabado, prosseguimos

explorados na medida em que sediamos tais empresas, que inibem nossa emancipação.

Os autores, sobre este aspecto, contextualizam:

No século XIX, por força de um regime social obsoleto, o escravismo, não pudemos incorporar os resultados básicos da “primeira revolução industrial” (1760-1830), a da indústria têxtil, do ferro, da máquina a vapor. Nem, muito menos, fomos capazes de avançar na trilha da “segunda revolução industrial” (1870-1900), a do aço, da química de soda e do cloro, da eletricidade, do petróleo, da indústria de bens de capital, do motor a combustão interna, que está na base do automóvel e do avião. No século XX, graças à relativa estabilidade dos padrões tecnológicos e de produção nos países desenvolvidos, pudemos desfrutar das facilidades da cópia. Até 1930, consolidamos a indústria de bens de consumo mais simples e, nos cinquenta anos subsequentes (1930-80), copiamos o aço, a eletricidade, a química básica, o petróleo, o automóvel, as maravilhas eletrodomésticas, chegando até maquinas e equipamentos mais sofisticados. Quando tudo levava a crer no nosso êxito, eis que vemos impotentes diante da reestruturação do capitalismo internacional, da “terceira revolução industrial”, comandada pelo complexo eletrônico, e da “globalização financeira” (...).

(...) Copiamos tudo, menos o que é essencial: formas de organização capitalista capazes de assegurar um mínimo de capacidade autônoma de financiamento e inovação (MELLO; NOVAIS, 1998, p. 645-646).

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Houve, por certo, uma política ativa de desenvolvimento econômico posta em prática pelo Estado brasileiro saído da Revolução de 30. Mas esta “vontade nacional” de industrialização, para se completar, exigia transformações econômicas e sociais de uma profundidade extraordinária (...).

(...) Como não podemos, “optamos” por avançar pela linha de menor resistência e recorrer à intervenção milagrosa da empresa multinacional, que vem para o Brasil, na segunda metade dos anos 50, trazida por incentivos generosos e pela concorrência, no âmbito mundial, entre as empresas norte-americanas e europeias (MELLO; NOVAIS, 1998, p. 647).

Esta dinâmica capitalista é o que impulsiona a engrenagem da produção de bens

de consumo destinados à massa, e observa-se que pode ser o que justifica hoje,

lamentavelmente, o trabalho do designer, que deve se aprimorar para que possa

corresponder ao máximo, na medida em que cabe a ele o sucesso ou fracasso não

propriamente dos produtos que cria, mas das metas estipuladas. E a inovação é o lema,

pois apostam na necessidade do consumidor de ser surpreendido frequentemente, o que

gera demanda.

Efectivamente, sucedeu que, sob o impulso incessante da hiperprodução, sobretudo nos países neocapitalistas e de industrialização mais avançada, se chegou a uma verdadeira inflação na sucessão dos objectos de design.

O consumismo – esta perigosa condição entrópica que tende a dominar a economia e a mentalidade do homem ocidental – fez que, por parte do próprio utente, os valores intrínsecos dos objectos fossem menosprezados em relação aos valores meramente hedonistas e formais, com a imediata consequência de uma decadência da qualidade estrutural e técnica dos objectos. Chegou-se mesmo a falar de uma “crise do objecto”, e alguns até vislumbraram um futuro próximo em que se verificaria o desaparecimento do objecto e a sua integração em circuitos e sistemas mais complexos.

Na realidade, estamos longe do desaparecimento do objecto e – embora muitos dos actuais elementos objectuais tivessem sido englobados em mecanismos unitários mais complexos (telefones, iluminação, electrodomésticos, etc.) – tal não impede que a civilização do consumo se mantenha vigilante e disposta a criar novas “necessidades induzidas” e novos objectos para essas necessidades.

As tentativas dos próprios designers mais conscientes e maduros de se oporem à maré consumista, de se revoltarem contra a busca desenfreada do novo pelo novo, foram geralmente frustradas pela situação do mercado que, obviamente, está sempre mais ferreamente ligado ao establishment dominante (DORFLES, 1990, p. 109).

Assim:

Não mais existiria um lugar específico para a velha dialética entre capital e trabalho, já que a dominação se exerce sobre a própria capacidade abstrata de se produzir. Trata-se do “trabalho imaterial”, que demanda uma mobilização inaudita das capacidades intelectuais e afetivas (...) (SODRÉ, 2006, p. 62).

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Essa colocação apenas reforça a ideia de que a nomenclatura mais apropriada

não seria trabalho imaterial, mas ideológico, no caso especialmente do design, pela

estruturação de sentido que se presta a desencadear, mais enaltecida do que o próprio

processo de constituição do produto a ser gerado. Quanto a estes, originários de

processos produtivos desta ordem:

No que diz respeito ao desenho industrial, não há dúvida que o objecto de uso corrente está sujeito, como nenhum outro, a uma grande rapidez de consumo e de obsolescência e, por isso mesmo, a uma constante instabilidade formal; será, portanto, esta instabilidade formal que traz consigo transformações das formas dos objectos que poderão ser consideradas totalmente gratuitas, podendo, assim, ser atribuídas com segurança a um fenómeno de “moda” (DORFLES, 1990, p. 63).

Geralmente divulgados como sendo a mais nova maravilha capaz de solucionar

qualquer problema que bloqueie o desfrute de uma felicidade plena, e para além das

reais inovações que traga; o objetivo de um produto lançado que se percebe como

primordial é despertar sentimentos como curiosidade, euforia, desejo, ambição,

superação, e parece-nos que tanto faz se for um automóvel ou uma colher, por exemplo.

Todos parecem vender a sensação, a experiência, sendo o atendimento a uma tarefa

prática específica um atributo secundário.

Segue-se então que outro atributo do “objeto de consumo” deve ser uma cláusula em seu registro de nascimento – “destino final: lata de lixo” – escrita em letras menores, mas numa grafia certamente legível. O lixo é o produto final de toda ação de consumo. A percepção da ordem das coisas na atual sociedade de consumo é diametralmente oposta à que era característica da agora já ultrapassada sociedade de produtores. Então, era a parte útil, extraída de matérias-primas adequadamente reprocessadas, que deveria ser sólida e permanente, enquanto os restos e dejetos redundantes eram destinados à remoção e ao esquecimento instantâneos. Agora é a vez das partes úteis terem vida curta, volátil e efêmera, a fim de abrir caminho para a próxima geração de produtos úteis. Só o lixo tende a ser (infelizmente) sólido e durável (BAUMAN, 2007, p. 117-118).

Dorfles (1990, p. 110) afirma que, tendo “em conta o lado oposto do fenómeno,

aquele que diz respeito ao imbatível (...) desejo do homem de se diferenciar, de vencer a

padronização, de vencer o anonimato da sua existência e do produto de que se serve”,

“este desejo poderá facilmente ser concretizado, precisamente através da persistência de

alguns produtos feitos à mão”. Contudo, ainda que o design e as técnicas se

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complexifiquem, como vemos ocorrer, o produto, suas qualidades intrínsecas, não. Este

deve se esvair no período de tempo já previamente calculado.

Quanto aos consumidores convenientemente moldados para corresponder:

Os consumidores experientes não se incomodam em destinar as coisas para o lixo; (...) aceitam a curta duração das coisas e seu desaparecimento predeterminado com tranquilidade, ou por vezes com uma satisfação mal disfarçada. Os adeptos mais habilidosos e sagazes da arte consumista sabem como se regozijar por se livrar de coisas que ultrapassam o tempo de uso (...); Para os mestres dessa arte, o valor de cada objeto está igualmente em suas virtudes e limitações (...) (BAUMAN, 2007, p. 111).

Este autor usa a expressão “sociedade de consumidores” para nos designar,

sendo que, segundo ele, dizer desta forma:

(...) é dizer mais, muito mais, do que apenas verbalizar a observação trivial de que, tendo considerado agradável o consumo, seus membros gastam a maior parte de seu tempo e de esforços tentando ampliar tais prazeres. É dizer, além disso, que a percepção e o tratamento de praticamente todas as partes do ambiente social e das ações que evocam e estruturam tendem a ser orientados pela “síndrome consumista” de predisposições cognitivas e avaliativas (BAUMAN, 2007, p. 109).

Desde que nascemos estamos imersos nesta ordem, e, portanto, manifestamos as

mencionadas “predisposições cognitivas”, o que faz com que para a grande maioria

fique difícil vislumbrar outra possibilidade de ser e agir sociais. Sodré (2006) cita Negri

para tratar da experiência de exploração do homem num sistema em que a produção

também é de si, em que “a alma é posta a trabalhar”, em prol de uma mercantilização

que é das “singularidades” (“o autêntico, o étnico, o simpático, etc.”).

Nesta nova configuração capitalista, a força de trabalho passa do nível da natural energia humana para o da representação ou dos signos (da “siderurgia” para a semiurgia), convertendo-se em estrutura de obediência ao código.

Isto implica uma individuação conformada por padrões (coletivos) de subjetividade, operacionalmente afins à nova estrutura. E por meio desta estrutura profunda de sentido, em que se interpenetram elementos econômicos, políticos, culturais e a própria vida humana em sua nua substância biológica (...), numa verdadeira biopolítica total, o homem se submete, em toda a extensão de sua existência, à determinação do valor de troca capitalista (SODRÉ, 2006, p. 57-58).

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Este “processo de personalização”, citado por Lipovetsky, “impulsionado pela

aceleração das técnicas, pela administração, pelo consumismo de massa, pela mídia,

pelo desenvolvimento da ideologia individualista e pelo psicologismo, leva ao ponto

culminante o reinado do indivíduo” (2005, p. 8).

Mas, segundo ele, “nesse contexto, o que mais deve nos preocupar não é nem a

desensualização nem a ‘ditadura’ do prazer, mas a fragilização das personalidades”

(2004, p. 83), ou seja, a gravidade é expressa não pelas condutas, mas pela intensidade

com que se sucedem, sendo que cada hábito requer diferentes subsídios materiais como

pano de fundo. “Na verdade o que nutre a escala consumista é indubitavelmente tanto a

angústia existencial quanto o prazer associado às mudanças, o desejo de intensificar ou

reintensificar o cotidiano” (p. 79).

Sodré (2006) cita um fenômeno social descrito por Benjamim denominado

“fantasmagoria”:

(...) o germe de um novo tipo de espetáculo, inerente à idealização do valor de troca das mercadorias pelas exposições universais. A identificação divertida e prazerosa das massas com esse valor de troca abre caminho para o advento do consumo como uma nova forma, “fantasmagórica” e fetichista de relação social (SODRÉ, 2006, p. 80). 

Suscetíveis à publicidade contemporânea, cedemos aos dispositivos de

comunicação de um mercado que estimula o fetichismo da mercadoria, provavelmente

porque buscamos diferenciação, constituir alguma autenticidade, ainda que pareça

contraditório acreditar que podemos comprá-la. Angustiados, e cronicamente

insatisfeitos, elevamos o consumo e a substituição dos bens materiais a um grau nunca

visto na história.

Quanto às implicações desta postura no meio ambiente, mesmo que as pesquisas

de cientistas como ecologistas e ambientalistas nos informem de que o preço deste

comportamento é alto, pois as reservas de matéria-prima são finitas e não se tem

respeitado o tempo necessário para que se recuperem antes de nova extração, que um

“colapso natural” ocorrerá mais cedo ou mais tarde, nós negligenciamos os alertas. Na

medida em que a emergência não atinge concretamente cada um de nós, no sentido de

nos privar efetivamente de nossos prazeres e conforto, a mudança de conduta não se dá.

A mudança na realidade é cognitiva, o que exigiria um grande empenho.

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Enquanto o mercado estende sua “ditadura” do curto prazo, as preocupações relativas ao porvir planetário e aos riscos ambientais assumem posição primordial no debate coletivo. Ante as ameaças da poluição atmosférica, da mudança climática, da erosão da biodiversidade, da contaminação dos solos, afirmam-se as ideias de “desenvolvimento sustentável” e de ecologia industrial, com o encargo de transmitir um ambiente viável às gerações que nos sucederem. Multiplicam-se igualmente os modelos de simulação de cataclismos, as análises de risco em escala nacional e planetária, os cálculos probabilísticos destinados a discernir, avaliar e controlar os perigos. Morrem as utopias coletivas, mas intensificam-se as atitudes pragmáticas de previsão e prevenção técnico-científicas (LIPOVETSKY, 2004, p. 68-69).

Porém, o mercado é capaz de manipular estas informações, fazendo com que

empresas que, de alguma forma, conseguem amenizar os impactos decorrentes de suas

atividades se destaquem, mesmo que tais ações não surtam efeitos muito relevantes. É

evidente que o que querem não é salvar o planeta, mas é, primordialmente, vender mais

produtos via este apelo ambiental e ecologicamente correto que fazem, o que, de forma

paradoxal, requererá aumentar o nível de extração.

Discorrer e deliberar sobre os impactos ambientais resultantes da atividade das

indústrias, porém, não é objetivo deste trabalho. Outras consequências, consideradas da

mesma gravidade, são os efeitos da conduta consumista tal como ocorre na relação

destes consumidores com seu meio social. Pois as relações entre este e os objetos,

acredita-se, potencialmente determinam a relação entre este e seus semelhantes.

Verificamos que nossa conduta social se configurou de maneira bem própria

conforme continuamos imersos na lógica que vigora. Num momento histórico em que

“o consumo atingiu a ocupação total da vida social”, segundo Debord, citado por Sodré:

Configura-se, assim, o espetáculo como uma verdadeira relação social, constituída pela objetivação da vida interior dos indivíduos (desejo, imaginação, afeto), graças a imagens orquestradas por organizações industriais, dentre as quais se impõe contemporaneamente a mídia. A imagem-espetáculo resulta dessa operação como uma espécie de forma final da mercadoria, que investe de forma difusa ou generalizada a trama do relacionamento social, reorientando hábitos, percepções e sensações. Uma grande diversidade de aspectos da vida social – da alimentação à política e ao entretenimento – é ressignificada ou “colonizada” pela lógica do espetáculo, graças a essa reorientação intelectiva e afetiva (DEBORD apud SODRÉ, 2006, p. 81).

A exacerbação do consumo atinge, ainda, a qualquer nível social, sendo que:

(...) a ação dos meios de comunicação social foi decisiva. Jornais e revistas, que formam a opinião das elites e da classe média, martelaram todos os dias

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na tecla do neoliberalismo. Os meios de comunicação de massa, que modelam a opinião popular, também. Mas, por certo, sua ação não parou por aí. A difusão do individualismo de massa, especialmente pela televisão, acelerou-se muito, nas novelas, nos filmes, nos programas infantis etc. E a identificação do valor do homem à quantidade e à qualidade do consumo se impõe esmagadoramente, entre ricos, remediados e pobres (MELLO; NOVAIS, 1998, p. 656).

Podemos inferir que princípios hoje são passíveis de serem obtidos/comprados,

por serem componentes dos produtos que manipulamos. Fazemos as escolhas conforme

tendências às quais queremos corresponder, estilo e comportamento, o que está

vinculado aos grupos aos quais queremos pertencer. A novidade é que migrar de esferas

hoje é extremamente prático, basta ir às compras.

A era do consumismo “dessocializa” os indivíduos e correlativamente os socializa pela lógica das necessidades e da informação; trata-se, entretanto, de uma socialização sem conteúdo pesado, de uma socialização com mobilidade. O processo de personalização faz aparecer um indivíduo informado e responsabilizado, despachante constante de si mesmo (LIPOVETSKY, 2005, p. 88).

Assim, as aproximações se dão por compatibilidades materiais. E como a

dinâmica de renovação é intensamente estimulada, o desapego parece viável de ser

cultivado. Isso nos treina para nos desapegarmos com facilidade também das pessoas,

na medida em que possam não mais corresponder ao comportamento que valorizamos

circunstancialmente.

O mercado agora atua como intermediário nas cansativas atividades de estabelecer e cortar relações interpessoais, aproximar e separar pessoas, conectá-las e desconectá-las, datá-las e deletá-las do diretório de texto. Altera as relações humanas no trabalho e no lar, no domínio público assim como nos mais íntimos domínios privados. Reorienta e redistribui os destinos e itinerários das buscas existenciais de modo que nenhuma delas possa evitar a passagem pelos shopping centers. Narra o viver como uma sucessão de problemas quase sempre “solucionáveis”, que no entanto precisam e podem ser resolvidos somente por meios que estão disponíveis apenas nas prateleiras das lojas. Oferece atalhos tecnológicos vendidos em lojas para todos os tipos de objetivos que antes podiam ser atingidos principalmente pelo uso de habilidades pessoais e de personalidade, da cooperação amigável e de negociações conduzidas com base na camaradagem. Fornece engenhocas e serviços sem os quais, na ausência de “relacionar-se” com outras pessoas e desenvolver um modus convivendi duradouro seriam, para um número crescente de pessoas, tarefas assustadoras, além do seu alcance, talvez até inalcançáveis. (...) Incansavelmente, transmite aos lares a mensagem de que tudo é ou poderia ser uma mercadoria e como tal deve ser tratado. Isso implica que as coisas deveriam ser “como mercadorias”, devendo ser encaradas com suspeita ou, melhor ainda, rejeitadas ou evitadas, caso se recusem a se enquadrar no padrão do objeto de consumo (BAUMAN, 2007, p. 116-117).

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O autor afirma ainda que:

(...) entre as preocupações humanas, a síndrome consumista coloca as precauções em relação à chance de as coisas (animadas ou inanimadas) durarem mais que o desejado no lugar da técnica de abraçá-las rapidamente e no longo prazo (para não dizer interminável) da ligação e do compromisso (BAUMAN, 2007, p. 110-111).

O resultado, visto dentro das próprias casas, é que:

Estamos diante de uma família sitiada (...). Sitiada pela vida cada vez mais competitiva, ameaçada pelo desemprego, pela mobilidade social descendente, pelo rebaixamento do consumo, enfim, pela falta de perspectivas de futuro. Sitiada pelos falsos valores que brotam tanto do mercado desregulado e selvagem como dos meios de comunicação de massas – o êxito a qualquer custo, o consumismo exacerbado, a liberdade “negativa”. Sitiada, finalmente, pela difusão crescente das drogas, um meio cada vez mais empregado para escapar de um mundo sem sentido, sem futuro, insuportável. Esta é a origem social das patologias da vida privada (MELLO; NOVAIS, 1998, p. 654).

O nível de adesão a esta lógica que hoje rege tantos aspectos de nossas vidas

varia, claro, de pessoa para pessoa, mas, por mais “desprendidos” e conscientizados que

possamos nos achar, somos influenciados, de uma forma ou de outra, por esta onda de

euforia. Tamanha é a inserção das mídias em nosso cotidiano, não cessando de sugerir

padrões aconselháveis de conduta, acabamos acometidos pelo alvoroço e, ainda que sem

percebermos, iremos seguir o fluxo, na medida em que não é possível estarmos

vigilantes a todo o momento quanto ao que convém ou não fazer.

O design é um dispositivo de comunicação (na medida em que é a própria

linguagem) e, provavelmente, um dos mais eficientes para desencadear a euforia por

consumir almejada. Tendo sido explanado seu potencial comunicativo, apontamos o

entendimento explorado historicamente pelo mercado, pelos donos de indústrias e

grandes corporações, que, via comunicação de massas, nos persuadem a lhes garantir os

lucros almejados.

As estratégias só têm sido aperfeiçoadas com o talento e a competência dos

designers envolvidos (que criam produtos, propagandas, táticas de venda etc.). Eles

apelam cada vez mais para a questão dos desejos mais intrínsecos do ser humano que,

inebriados pela rede de desejos e consumos, correspondem. O resultado é que hoje

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vivemos em meio a montanhas de objetos redundantes, lixo em potencial, com os quais

não estreitamos os laços, não nos aprofundamos em termos de experiência. O mesmo

parece valer para as relações humanas, tendo em vista o efeito narcísico que é gerado

em meio a este turbilhão de novidades (novos objetos, novos modos de vida, novos

comportamentos).

Na contramão disso tudo, apresento no próximo capítulo, algumas

fundamentações para repensar o design, tendo em vista promover o bem-estar do

sujeito.

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CAPÍTULO 2

Um contexto indisciplinar para repensar o design

63  

2.1 O design como pensamento sistêmico

Pensar no design ontologicamente é considerá-lo como pensamento sistêmico

expresso pela linguagem que o engendra. E é deste nível de descrição que o

consideramos como desencadeador de mediação para além de dispositivo de

comunicação e controle.

De modo a conceituar a noção de pensamento sistêmico recorremos a Santaella e

Vieira (2008), que apresentam “uma visão sistêmica de realidade, apoiada em uma

teoria geral de sistemas”, cujas raízes consideram ontológicas.

Segundo a filosofia clássica (Vita 1964: 24), a ontologia pode ser definida como “outro nome da metafísica”, o estudo do ser enquanto ser, com independência de suas determinações particulares. Embora a rigor haja diferença entre as duas áreas, é nesse sentido que estaremos adotando aqui certa identificação entre uma “teoria da realidade” (metafísica) com uma “teoria do ser ou dos objetos” (ontologia) (...).

Estaremos seguindo ainda aproximadamente a proposta de Mário Bunge (1977: 5) como sendo a ontologia (ou metafísica) uma cosmologia geral ou ciência geral, ou seja, como “a ciência concernente à totalidade da realidade – o que não é o mesmo que a realidade como um todo”. Nesse sentido, ainda segundo Bunge, a ontologia/metafísica estuda os traços de todo modo de ser e vir-a-ser, assim como as características peculiares da maior parte dos existentes. Segundo Peirce (apud Bunge 1977, vol. 3: 5), “seu objetivo é estudar as características mais gerais da realidade e dos objetos reais.” (SANTAELLA; VIEIRA, 2008, p. 26).

Sobre a visão sistêmica de realidade que abordam:

Admitiremos assim que a realidade é formada por sistemas abertos, tal que a conectividade entre seus subsistemas, com o consequente transporte de informação, gera a condição, em que cada subsistema, de ser mediado ou vir a mediar outros, comportando-se como signo, de acordo com a proposta de Peirce. Dessa forma, temos a possibilidade de conciliar a visão sistêmica com a semiótica peirciana, o que nos parece uma dilatação ontológica fértil para o estudo da complexidade (SANTAELLA; VIEIRA, 2008, p. 30).

Para que possamos visualizar melhor no que consiste este pensamento, um

exemplo bem esclarecedor é dado pelos autores quando usam o sistema humano como

referência, sendo que podemos transportar o entendimento para outros sistemas, como

os objetos.

É a ontologia que pode facilitar isso, com seu enfoque em busca do geral e do completo. Por exemplo, se um sistema humano necessita ser estudado, as ontologias regionais, as ciências, podem ser convidadas para tal gerando um

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conjunto de descrições e/ou representações com certa autonomia. Assim, um ser humano pode ser descrito e representado pela física, pela química, pela biologia, pela psicologia, pela sociologia. Uma visão dada pela bioquímica terá uma autonomia diversa daquela dada pela biofísica, ou ainda pela sociobiologia. Ou seja, mesmo a tentativa de estudos conjugando planos diversos da realidade, contíguos ou não, ainda apresentam imagens ou representações, ou ainda explicações, diversas e praticamente autônomas. Mas o que nos interessa conhecer é o ser humano além de suas facetas ou perspectivas, em sua totalidade e plenitude (SANTAELLA; VIEIRA, 2008, p. 28).

Fica evidente que o conceito de linguagem adotado aqui não se refere à

linguagem verbal. Admitimos que:

(...) existe uma linguagem verbal, linguagem de sons que veiculam conceitos e que se articulam no aparelho fonador, (...) mas existe simultaneamente uma enorme variedade de outras linguagens que também se constituem em sistemas sociais e históricos de representação do mundo.

Portanto, quando dizemos linguagem, queremos nos referir a uma gama incrivelmente intrincada de formas sociais de comunicação e de significação que inclui a linguagem verbal articulada, mas absorve também, inclusive, a linguagem dos surdos-mudos, o sistema codificado da moda, da culinária, e tantos outros. Enfim: todos os sistemas de produção de sentido aos quais o desenvolvimento dos meios de reprodução de linguagem propiciam hoje uma enorme difusão. (...)

Iremos, contudo, mais além: de todas as aparências sensíveis, o homem – na sua inquieta indagação para a compreensão dos fenômenos – desvela significações. É no homem e pelo homem que se opera o processo de alteração dos sinais (qualquer estímulo emitido pelos objetos do mundo) em signos ou linguagens (produtos da consciência). Nessa medida, o termo linguagem se estende aos sistemas aparentemente mais inumanos como as linguagens binárias de que as máquinas se utilizam para se comunicar entre si e com o homem (a linguagem do computador, por exemplo), até tudo aquilo que, na natureza, fala ao homem e é sentido como linguagem (SANTAELLA, 2011, p.16).

“As linguagens estão no mundo e nós estamos na linguagem”, complementa.

Imersos na linguagem, sem que possamos nos dar conta disso. Imersos em design,

conforme a relação íntima travada com os objetos do mundo.

É tal a distração que a aparente dominância da língua provoca em nós que, na maior parte das vezes, não chegamos a tomar consciência de que o nosso estar no mundo, como indivíduos sociais que somos, é mediado por uma rede intrincada e plural de linguagem, isto é, que nos comunicamos também por meio da leitura e/ou produção de formas, volumes, massas, interações de forças, movimentos; que somos também leitores e/ ou produtores de dimensões e direções de linhas, traços, cores... Enfim, também nos comunicamos e nos orientamos por meio de imagens, gráficos, sinais, setas, números, luzes... Por meio de objetos, sons musicais, gestos, expressões, cheiro e tato, através do olhar, do sentir e do apalpar. Somos uma espécie animal tão complexa quanto são complexas e plurais as linguagens que nos

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constituem como seres simbólicos, isto é, seres de linguagem (SANTAELLA, 2005, p. 14).

Ferrara (2001) também aponta que a noção de linguagem não se restringe à

linguagem verbal:

A estrutura informacional não precisa ser, nem é exclusivamente verbal. O traje usado para cobrir o corpo, o meio de transporte adotado não são de ordem estritamente funcional, ao contrário, dizem sem palavras, nossas preferências explicitam nossos gostos. Escolher cores, modelos, tecidos, marcas significa expectativas sócio-econômicas, mas sobretudo revela o que queremos que pensem de nós; aquelas escolhas representam, são signos da auto-imagem que queremos comunicar. Estes signos falam sem palavras, são linguagens não-verbais altamente eficientes no mundo da comunicação humana (FERRARA, 2001, p. 6).

Traduzimos ininterruptamente as mensagens embutidas nos produtos que

compramos, sendo estas constituídas por outro tipo de signo que não os compostos por

letras, e nessa dinâmica seguimos, decodificando-os e elaborando resoluções sobre a

vida, deliberando e acionando.

No dia a dia, contudo, diante de qualquer artefato, todos nós formulamos juízos altamente complexos de modo instantâneo, decodificando em um único golpe de vista a natureza física do objeto, o conceito por trás dele, sua serventia, sua origem, seu valor, suas relações com outros objetos, e assim por diante. O mais extraordinário é que praticamente todo esse reconhecimento independe do raciocínio verbal, o que se atesta pela frequência com que recorremos a palavras como “coisa”, “troço”, “treco”, “trem”, “bagulho” e tantas outras, no momento em que somos instados a falar do objeto (CARDOSO, 2012, p. 140).

Pignatari expressa ainda a possibilidade de dar a conotação de signo aos objetos,

inclusive aqueles advindos de processos de industrialização, “projetos significantes”:

Mas o que me parecem tentadoras são as relações que se podem estabelecer entre desenho, desígnio (tão patentes na palavra inglesa “design”) e significado, pois essas relações parecem confluir para o entendimento de “signo” como “projeto significante”, como “projeto que visa a um fim significante”. Considere-se, por exemplo, no campo do desenho industrial, o protótipo como signo (desenho, propósito, significação), para se constatar que não é arbitrário estender ao mundo dos produtos industrializados a visão da linguagem, ainda mais que desenho, propósito e significado podem emparelhar-se, pela ordem, aos níveis sintático, semântico e pragmático do signo (...) (PIGNATARI, 1993, p. 23).

66  

Estes signos que compõem os textos não verbais, no caso de produtos

decorrentes de processos de design, seriam ainda decorrentes de uma “gramática

elementar”, como propõe Pignatari (2004), gramática “de todo processo de

representação espaciotemporal num espaço bidimensional”, ou seja, “a linguagem do

desenho”, ou “semiótica do desenho, do design e do projeto”.

Assim, um ponto ampliado gera o círculo e a esfera: as ampliações do plano e do volume geram os limites de possibilidades do próprio sistema, que passa a abrir-se para outros sistemas especulativos e concebíveis e a fechar-se para sistemas, por isso mesmo, inimagináveis. Um evento perceptível ou detectável numa dimensão pode tornar-se imperceptível em outra.

Depois de estabelecidas as constantes, variáveis podem ser concebidas ou acrescidas, de forma a qualificarem especificamente os elementos e as suas articulações sistemáticas. Assim, cor, textura, alta e baixa definição (geometria e topologia), formal e informal, transparências e opacidades, ou translucidez, combinações de passagem (uma linha pontilhada, por exemplo), vão qualificando as articulações básicas, vão propiciando pele, carne, ossos, nervos, sensibilidade e inteligência ao sistema, de modo a constituírem a escritura do ambiente urbano que do pensamento, da imaginação ou da prancheta saltam para a realidade espacial e histórica, reciclando-se incessantemente, de retorno à prancheta, à imaginação, ao pensamento.

É do interpretante generalizar, concebendo sistemas e críticas de sistema. Mesmo sem qualquer pronunciamento verbal a seu respeito, um planejamento urbano é interpretante de outro ou outros. O desenho de uma cadeira pressupõe cadeiras anteriores e cadeiras possíveis (...).

O mundo das formas – visuais, sonoras, palativas, hápticas, olfativas – é um mundo icônico. Nas relações dialéticas entre o qualis e o quantum, aqui, sobreleva o qualis, ou a “qualidade de um sentimento”, como quer Pierce (PIGNATARI, 2004, p. 150-151).

Todo artefato passa a ser funcional, a partir desta perspectiva ontológica, até

mesmo o mais tolo enfeite, pois sempre atendem a funções de várias ordens. Assim, são

as funções que determinariam a forma, ainda que design não seja simplesmente a forma,

mas sim a formulação. Não é a coisa em si, meramente como se mostra, mas o discurso

que suscita pela linguagem expressa. É, pois, um mapa de pensamento, para além dos

procedimentos de uso.

(...) como foram constituídos, que tecnologia foi utilizada, de que contexto cultural têm origem. Eles nos contam também algo sobre os usuários, suas formas de vida, sobre se pertencem de verdade ou fingem pertencer a certos grupos, sobre atitude perante valores. O designer necessita por um lado, entender esta linguagem, por outro deve fazer as coisas falarem por si sós. Nas formas dos objetos pode se ver e reconhecer as diversas formas de vida (BÜRDEK, 2010, p. 231).

67  

O papel dos designers hoje parece ser o de contar boas histórias, além de

resolver problemas formais e funcionais, segundo Sudjic (2010):

Essas mensagens vão desde o que um objeto faz, e quanto vale, até o modo de ligá-lo. São questões que estão longe de serem triviais, mas transformam o designer em narrador. E, embora sem dúvida seja verdade que o design é uma linguagem, só quem tem uma história convincente para contar sabe como usar essa linguagem de maneira fluente e eficaz (SUDJIC, 2010, p. 34).

Enquanto designers, reconhecendo a potencialidade desta “ferramenta” de

representar linguagem que traduz um pensamento sistêmico, na medida do (im)possível

podemos passar a dar outra conotação ao design, reconhecendo-o como um pensamento

sistêmico que promove experiências e não gera apenas produtos. Esta mudança de

atitude só se torna possível a partir de uma mudança radical de entendimento da relação

entre corpo e ambiente.

68  

2.2 A reformulação de paradigmas que a teoria corpomídia desencadeia

Tendo sido reconhecida a potencialidade do design de desencadear relações

sistêmicas e, com isso, a instauração de modos de vida, busco identificar uma forma

distinta de atuação que se construa junto e no fluxo. Neste sentido, outras premissas

passam a ser norteadoras do processo de se fazer design.

Concepções de sujeito, objeto, contexto, dentro, fora, público, privado, corpo,

mente, mediação, evolução, inevitavelmente sofrem desestabilizações e assim passam a

ser reformulados. Considera-se uma teoria em especial como propiciadora destas

mudanças nos pontos de vista normalmente aceitos e que dizem respeito a este assunto.

A teoria corpomídia, proposta por Katz e Greiner (2005), abrange corpo e comunicação

de uma forma muito peculiar, e com isso se mostra como sendo providencial para

desencadear questionamentos como os citados, segundo os conteúdos que relaciona e as

proposições que faz.

Segundo Katz (2010):

O contexto não é um recipiente povoado por coisas que o transformam; o contexto está sempre mudando porque o conjunto de coisas que o forma também se transforma. As atualizações são contínuas, articulatórias e descentradas, uma vez que o trânsito permanente instabiliza as noções de dentro e fora. Assim, o contexto e tudo que o forma passam a ser lidos como estados transitórios em um fluxo permanente de mudanças (KATZ, 2010, p. 124).

É basicamente este o entendimento de contexto coerente com a iniciativa de se

pensar outra forma de propor design. O que se almeja não é desmerecer os

designers/decoradores em geral e a forma com que atuam, negligenciar estes manuais

que apresentam os estilos e os elementos compatíveis (que, aliás, são importantes

registros historiográficos) nem mesmo os resultados de processos deste tipo, que são

requisitadíssimos tais como se dão. Está em jogo aqui apenas uma questão de

preferência, de escolha. Quando passam a não fazer sentido as diretrizes habituais de

condução de trabalhos, há de se buscar alternativas e concepções que as fundamentem.

A noção de contexto apresentada é coerente com a proposta do semioticista

Thomas Sebeok, denominada contexto-sensitivo, sendo que, partindo desta, faz-se

possível superar a ideia dicotômica entre um “fora”, objetos do mundo, e um “dentro”,

sujeito, cuja finalidade é ser preenchido pelo acúmulo das informações provenientes do

69  

“fora”, como se estivessem realmente apartados, e sendo inclusive possível adquiri-las,

comprá-las. Essa perspectiva desestabiliza hierarquias e dinamiza as experiências.

O semioticista Thomas Sebeok (1991) salienta a importância do contexto e, diferindo do que habitualmente se pensa, afirma que o “onde” tudo ocorre nunca é passivo. O ambiente no qual uma informação é produzida, transmitida e interpretada, nunca é estático, mas uma espécie de contexto-sensitivo – por isso, as trocas entre corpos e ambientes são possíveis, e o corpo, que está sempre transitando por vários ambientes/contextos, vai trocando informações que tanto o modificam como modificam os ambientes. Evidentemente há uma taxa de preservação que garante a unidade e a sobrevivência de cada ser vivo, nesse processo de cotransformações que nunca estanca entre corpo e ambiente (KATZ, 2010, p. 123).

Este conceito é relevante à teoria corpomídia, proposta por Greiner e Katz

(2005), que pressupõe um processo de coevolução ocorrendo entre seres animados e

inanimados, que nos faz acreditar que a relação entre os seres existentes no mundo,

neste nível de análise, é sempre democrática, na medida em que nenhum pode exercer

um nível de influência maior do que outro, todos são determinantes. Vale informar que

o “fluxo de transformação inestancável e permanente em curso na vida”, caracterizado

como evolução para a autora, “não é direcional e tampouco cumulativo (o que o impede

de ser associado à noção de progresso)” (2010).

Sobre a teoria em questão:

O desejo de permanecer leva à necessidade de fazer outro a partir de si mesmo, e só pode se realizar porque no mundo onde vivemos, as informações tendem a operar dentro de um processo permanente de comunicação. As informações encostam-se, umas nas outras, e assim se modificam e também ao meio onde estão. Vale destacar a singularidade desse processo, pois transforma todos os nele envolvidos, seja a própria informação, o corpo onde ela encostou e do qual passou a fazer parte, as outras informações que constituíam o corpo até o momento específico do contato com a nova informação, e também o ambiente onde esse corpo (agora transformado) continua a atuar. E, estando já transformado, tende a se relacionar com a nova coleção de informações que passou a o constituir. Então, também altera o seu relacionamento com o ambiente, transformando-o. Contágios simultâneos em todas as direções, agindo em tempo real (KATZ, 2010).

Tratar do design enquanto fenômeno da comunicação é extremamente coerente,

especialmente quando se adota a perspectiva apresentada, de que todo corpo é um

corpomídia. Katz (2006) diz que “consegue-se deduzir a natureza do propósito de um

objeto a partir de sua organização. Essa organização é o seu design, o modo como as

informações tomam forma”, sendo:

70  

(...) que cada corpo é sempre um design da sua própria e exclusiva coleção de informações de cada momento de seu percurso no mundo. Dizendo de outro modo, todo corpo é sempre um corpomídia, uma mídia de si mesmo. Ele é mídia de si mesmo, e não um veículo por onde passam as informações. O corpo não é um meio por onde as informações são expressadas, mas um laboratório permanente de processos que vão desenhando a sua forma a cada situação que se apresenta (KATZ, 2006).

Essa ideia é compatível com o entendimento do design como pensamento

sistêmico, como a própria organização e como esta se dá, o que difere do entendimento

de design como estratégia de mercado. Isso torna esta teoria e suas fundamentações de

suma relevância à proposta em construção neste trabalho.

Vale salientar que o termo corpo nesta teoria não se restringe a corpo humano;

refere-se a qualquer corpo existente (objetos inanimados também), todos

correlacionados. Isso implica que estamos nos transformando continuamente neste

processo de mediação e troca. Não existe uma primazia do ser humano na constituição

de contextos, “as relações entre corpo e ambiente se dão por processos co-evolutivos

que produzem uma rede de pré-disposições perceptuais, motoras, de aprendizado e

emocionais” (GREINER; KATZ, 2005).

Adotada esta condição, torna-se inviável pensar em uma casa como algo pronto,

acabado e sem brechas para novas incursões. Um sistema que assim se apresenta, como

um sistema fechado, é um sistema morto, uma casa sem vida, na medida em que não se

concebem ressignificações.

Pensar em ressignificações é pensar em mudanças, é pensar em movimento. “O

movimento, presente como padrão já no embrião, precisa da relação com o espaço para

acontecer como movimento, para se atualizar. Ou seja, é o movimento quem favorece a

existência da comunicação”, afirma Katz (2010). Quando o meio não o viabiliza, ficam

inibidas as possibilidades de ocorrência de experiências, de reformulações, sendo que:

Significado, pensamento e linguagem emergem das dimensões estéticas de atividades corporais e são inseparáveis das imagens, dos padrões de processos sensório-motores e das emoções. (...) No entanto, o corpo está sempre interagindo com os aspectos do ambiente em um processo de troca de experiência. Por isso, o que chamamos de corpo e mente, explica Johnson, são aspectos abstratos do fluxo organismo e ambiente, uma vez que a noção de organismo já envolve corpo e mente inseparavelmente (GREINER, 2010, p. 89-90).

71  

Mark Johnson é um filósofo e cientista cognitivo que, com base nesta ideia de

fluxo entre corpo e ambiente, propõe um conceito de mente encarnada, sendo que “para

começar a estudar a emergência da ação de significar, é importante reconhecer que

mente e corpo não são duas coisas separadas, mas aspectos de um único processo

orgânico” (GREINER, 2010, p. 89), uma continuidade.

Em seu livro The body in the mind, o autor trata da questão de “como pode

qualquer coisa (um evento, objeto, pessoa, palavra, frase etc.) ser significativa para uma

pessoa?” (1992, p. 1), sendo que trata do "significado linguístico" apenas “como um

subcaso de significado em seu sentido mais amplo”. E seu argumento será de que:

(...) o movimento corporal humano, a manipulação de objetos e as interações perceptivas envolvem padrões recorrentes, sem o qual a nossa experiência seria caótica e incompreensível. Eu chamo esses padrões de "esquemas de imagens", porque funcionam principalmente como estruturas abstratas de imagens (JOHNSON, 1992, p. XIX).

Podemos inferir, assim, que quando trata neste livro de temas como significado,

imaginação, razão, entendimento, o autor em suma está se referindo à experiência, ou

seja, ao desenvolvimento cognitivo desencadeado, e potencialmente intensificado,

conforme o tipo de relação/interação que temos com o mundo. Quando se refere ao

entendimento como possibilidade de “have a world”, podemos traduzir como “estar no

mundo” ou mesmo “ter um mundo”, ou seja, a experiência reconhecida de mundo.

Um ponto crucial aqui é que o entendimento não é apenas uma questão de reflexão (...). Em vez disso, o entendimento é a forma de “termos o mundo", a forma como vivemos o nosso mundo como uma realidade compreensível. Tal entendimento, portanto, envolve todo o nosso ser � as nossas capacidades físicas e habilidades, nossos valores, nossos humores e atitudes, toda a nossa tradição cultural, a maneira em que estamos ligados a uma comunidade linguística, nossas sensibilidades estéticas, e assim por diante. Em suma, o nosso entendimento é um "estar no mundo". Esta é a forma de estarmos significativamente situados no nosso mundo através de nossas interações corporais, nossas instituições culturais, nossa tradição linguística, e nosso contexto histórico. Nossos mais abstratos atos reflexivos de entendimento (...) são simplesmente uma extensão do nosso entendimento neste sentido mais básico de "ter um mundo" (JOHNSON, 1992, p. 102).

Ao tratar de imaginação, segundo a citação abaixo, também notamos que a

reformulação do entendimento comum do termo ocasiona a reformulação de outros

entendimentos e dicotomias e o que está em jogo é a questão da experiência.

72  

Além disso, defendo que é importante revitalizar e enriquecer a nossa noção de imaginação, se quisermos superar certos efeitos indesejáveis de um arraigado conjunto de dicotomias que têm dominado a filosofia ocidental (por exemplo, mente / corpo, razão / imaginação, ciência / arte, cognição / emoção, verdade / valor, e assim por diante) e que têm influenciado a nossa compreensão comum. Precisamos explorar o papel da imaginação (no meu sentido adequadamente enriquecido) de significado, compreensão, comunicação e raciocínio. Só desta forma poderemos compreender como é possível para nós "ter um mundo" ao qual podemos dar sentido e razão (JOHNSON, 1992, p. 140).

Pensar num contexto aberto e dinâmico, com o qual se admitem trocas e

coevolução, e cujas experiências decorrentes visem gerar desenvolvimento cognitivo é,

invariavelmente, admitir outras diretrizes para o trabalho de se fazer design.

As questões apresentadas desestabilizam a hierarquia mente-corpo-ambiente,

que passam a se construir simultaneamente, o que reforça a ideia de que o design nunca

está pronto, nunca acaba. Por isso faz sentido pensar que, em algum momento, o

designer encerra a etapa formal de criação, o produto fica pronto, mas o design nunca se

encerra. A cada instante, novas significações surgem, pois estão no mundo e nos

processos cognitivos aí engendrados. Além disso, torna-se possível questionar a autoria

do design. Se ao encerrar o seu trabalho, o design continua ativando novas relações, a

ação de criar design torna-se compartilhada (por quem vive e usa a casa, por exemplo).

Neste sentido, é importante assumir as instabilidades e a efemeridade latente como

potência de transformação e geração de movimento, e daí tecer redes possíveis, que

podem ser refeitas (e serão), o que revitalizará os produtos decorrentes e não os

condenará.

A postura de um designer “consciente” deveria ser pensar sistematicamente,

sendo supostamente impossível negligenciar tal complexidade ao atuar. É capaz, assim,

de subverter, na medida do possível, a lógica de mercado.

73  

Figura 13: Os elementos e os arranjos comumente previstos nem sempre poderão ser aplicados. Hoje, quantas são as pessoas que têm, dentre seus objetos, um piano de cauda (baby grand piano)?

74  

Podemos considerar que a teoria corpomídia dá início a uma série de

reformulações interessantes que contribuem para a elaboração de uma nova forma de

pensar e fazer design. As consequências são, inclusive, políticas, como coloca Katz

(2010), sendo que “a primeira delas pode ser identificada na proposta que tal

entendimento de corpo traz: o corpo não é, o corpo está. Não se trata de uma

substituição meramente retórica de verbos. A troca do verbo ser pelo verbo estar

instaura a transitividade no lugar anteriormente ocupado pela noção de identidade”. 

Adotar o fluxo e a instabilidade como premissas básicas do processo de trabalho

pode parecer problemático para alguns, devido à necessidade de revisão de

metodologias que esta postura acarreta. Pode, porém, para outros representar uma

motivação especial, quando abandonadas algumas convenções e convicções, revistas as

condições, reconsideradas as finalidades.

Na medida em que “o que está fora adentra e as noções de dentro e fora deixam

de designar espaços não conectos para identificar situações geográficas propícias ao

intercâmbio de informação”, e sendo que “as informações do meio se instalam no corpo;

o corpo, alterado por elas, continua a se relacionar com o meio, mas agora de outra

maneira, o que o leva a propor novas formas de troca”, ou seja, “meio e corpo se

ajustam permanentemente num fluxo inestancável de transformações e mudanças”

(KATZ & GREINER, 2001, citado por KATZ, 2010), a dicotomia público-privado

passa a ser enfraquecida. Os processos referem-se tanto à casa quanto ao corpo, aos

vários corpos.

Quanto à desestabilização da dicotomia corpo-mente, a concepção de contexto

de Sebeok (1991) explicita:

O cenário em que qualquer mensagem é emitida, transmitida, e admitida sempre influencia decisivamente a sua interpretação, e vice-versa: o contexto de transação ele mesmo continuamente sofre modificações por parte das mensagens que estão sendo interpretadas. As mensagens são, em resumo, contexto-sensitivo. Isso é muito bem reconhecido, mas justamente como um organismo leva em conta o ambiente ainda não está claro. O movimento do "contexto" tem sido empregado de forma diferente por vários investigadores, mas, de modo geral, o termo se refere ao conhecimento do organismo de condições e o modo de utilização adequada e eficaz das mensagens. Contexto inclui toda a gama de sistemas cognitivos do animal (isto é, "mente"), mensagens que circulam em paralelo, bem como a memória de mensagens anteriores que tenham sido processadas ou experimentadas e, sem dúvida, a antecipação de futuras mensagens que deverão ser postas em jogo (SEBEOK, 1991, p. 29).

75  

Para levar esta discussão adiante, parece-me apropriado apresentar a hipótese da

mente distendida, proposta por Andy Clark:

A importante moral da história para nossos propósitos é que, nesses casos, os aparatos da cognição se adaptam sozinhos para melhor prosperar no nicho proporcionado pelos cérebros humanos. A complementaridade entre o cérebro biológico e seus artefatos, apoios e suportes é então imposta por forças co-evolutivas que unem usuários e artefatos em um círculo virtuoso de mútua modulação (CLARK apud MOLINA, 2007, p. 68).

Clark (2011) afirma que as operações reais de cognição humana incluem

emaranhados inextrincáveis de relações que promiscuamente cruzam as fronteiras do

cérebro, do corpo e do mundo, e é justamente na construção de nosso mundo físico e

social que vamos construindo nossas mentes e nossas capacidades de pensamento e

razão (que é o que, supomos, caracteriza a experiência). A este entendimento o autor dá

o nome de extended mind, traduzido aqui como mente distendida10.

Neste sentido, o contexto no qual estamos imersos e os elementos que o

constituem não apenas dão pistas de quem somos, são o que somos. Aprendizagem,

pensamento e sentimento são características humanas que se estruturam em nosso corpo

conforme se dão as interações deste com o mundo, configurando a matriz em que

memória, emoção, linguagem e todos os demais aspectos da vida se constituem

(CLARK, 2011).

A perspectiva deste autor vai de encontro ao questionamento proposto, de que

não somos agentes fechados, ou seja, dotados de habilidades já fixadas e aptos, assim, a

servir somente de suporte para as tecnologias (como aquele alguém que contrata os

serviços de um decorador cuja metodologia seja tradicional, e que não possibilite

problematizações), propondo, ao contrário, que somos essencialmente abertos e

passíveis de reestruturações profundas, somos “negociáveis”, nos construindo

fundamentalmente na relação com o meio. Isso já derruba outra dicotomia, a da

natureza versus a cultura.

                                                            10 Embora a tradução do termo “extended mind” em português fosse “mente estendida”, as autoras Katz e Greiner sugerem usar a versão “mente distendida” para deixar clara a diferença com a proposta anterior de Marshall McLuhan que via os meios de comunicação como extensões do homem. Em Clark, mais do que uma extensão, trata-se de uma distensão que inclui os objetos na noção de mente.

76  

Estes processos de modulação são de ordem cognitiva e se dão na mediação,

logo, são imprevisíveis, caracterizando-nos como agentes cognitivamente permeáveis,

inacabados, instáveis, precários, portanto, potentes. Quando admitimos isso,

teoricamente estabelecemos outra consideração com relação às coisas (e pessoas) com

as quais interagimos, relação que vá além da de usufruto, que passa a ser de coevolução,

pondo em xeque a postura de superioridade humana. Isso pode mudar a relação sujeito-

objeto normalmente existente, portanto.

Como resultado, a suposição é de que, na medida em que se intensificam estes

fluxos, conforme a qualidade das relações entre nós e os objetos do mundo, a mente se

expande, partindo do entendimento de mente do autor. A cognição está em jogo e, na

medida em que a mente avança, amplia-se. A partir disso, podemos inferir que ocorre

seu desenvolvimento.

Clark (2011) acredita que a característica da mente de sistemas complexos,

humanos, e que classifica como naturalmente ciborgues, está sempre a explorar e testar

possibilidades de incorporação de novos recursos e regimes de resolução de problemas,

e para tanto promiscuamente cruza fronteiras entre o corpo e o mundo. Neste sentido,

ocorre que se dão outra finalidade e diretrizes para o design, que redefine-se na intenção

de servir efetivamente para a promoção de desenvolvimento cognitivo, ao estreitar os

laços entre nós e os objetos.

Ao adotarmos um conceito de mente dessa característica, que continuamente

renegocia seus próprios limites, componentes, armazenamento de dados e interface

(CLARK, 2011), embora seja um “orgão” encarnado de controle, passamos a entender o

corpo não mais como sendo um mero decodificador de problemas a serem solucionados,

que são informados a um “motor interior da razão”, esta sim desencarnada.

Em vez disso, muito do nosso desempenho bem sucedido depende da constante e sutil troca entre a morfologia, a ação do mundo real e as oportunidades e estratégias de controle neural. Mas este corpo capaz é constantemente negociável, momento a momento construído a partir do fluxo da ação desejada e resultando estimulação sensorial (CLARK, 2011, p. 42-43).

Dependente, assim, das experiências às quais se submete.

77  

Clark (2011) lembra John Haugeland, ao afirmar que se quisermos compreender

a mente como o locus da inteligência, não podemos seguir Descartes em considerá-la

um princípio separável do corpo e do mundo. Assim, a mente nunca deveria ser

considerada como algo essencialmente interior, situado no cérebro e no sistema nervoso

central, como notamos ocorrer no senso comum, e que origina um modelo denominado

pelo autor de “brainbound”.

Segundo esta perspectiva, o corpo neuronal corresponde ao sensor e efetor do

cérebro e o resto do mundo é a arena onde se dão problemas adaptativos, e onde o

sistema corpo-mente age. O corpo em si seria só o instrumento onde estímulos são

capturados e ações são geradas com esta intenção. Neste modelo, toda a cognição

humana de fato ocorre no cérebro (CLARK, 2011).

Outro autor que tem discutido reiteradamente a relação entre corpo e cérebro e a

constituição da mente é António Damásio. Ao trabalhar com conceitos de imagens

cerebrais (não só visuais, mas sons, texturas, cheiros, sabores, dores e prazeres são

imagens cerebrais), padrões que são mapeados incessantemente e de forma dinâmica,

Damásio sugere que “o processo de mente é um fluxo contínuo de imagens” (2010, p.

98).

Trazer a concepção deste autor e relacioná-la à de Clark não tem como objetivo

sugerir que está equivocada nem menosprezar este entendimento de alguma forma,

sendo que este, aliás, é muito coerente e válido. A intenção é, com a relação

estabelecida, identificar o quão radical é a proposição de Clark no sentido de conotar a

mente como algo extra-organismo, que abrange não só o corpo como o ambiente, logo

os elementos que o compõem.

Prosseguindo nesta relação, Damásio diz que “as imagens nas nossas mentes são

os mapas instantâneos do cérebro para tudo e mais alguma coisa, dentro do corpo e à

sua volta, tanto concreto como abstrato, do presente ou daquilo que foi anteriormente

gravado na memória” (p. 97), e “concluindo, as imagens baseiam-se em alterações que

ocorrem no corpo e no cérebro durante a interação física entre um objeto e o corpo”

(op.cit., p. 99). Com isso percebemos que o autor de fato coloca a mente junto ao corpo,

no cérebro, mas que esta prossegue de certa forma apartada do corpo, mais um dos

objetos apreendidos pelo processo de mente, como os outros aspectos usados como

exemplos, o “tudo” e o “mais alguma coisa”.

78  

Ao tratar da neurologia da mente, Damásio questiona se “será razoável

perguntarmo-nos sobre quais são as partes do cérebro com aptidão para a mente e quais

são aquelas que a não têm? Trata-se de uma pergunta complicada mas legítima”.

(op.cit., p. 100). De acordo com as pesquisas que fez, na sequência vai apontando

porções mais ou menos “relevantes” do cérebro, neste aspecto da elaboração da mente,

como a medula espinhal, não essencial, pois, ainda que a perda desta ocasione graves

danos motores e de percepção, envolvendo sentimentos e emoções, a possibilidade da

manutenção da mente ocorre. O mesmo diz respeito ao cerebelo, que, danificado,

implicará em danos na coordenação motora e defasagens na aprendizagem, mas não

necessariamente afetará a preservação da mente.

Contudo, considera o córtex cerebral diretamente envolvido na criação das

imagens mentais, sendo que as primeiras manifestações da mente, tal como elabora, se

dão no tronco cerebral, em especial os sentimentos, incluindo aí dor e prazer (op.cit., p.

100-103). Uma lição do autor que sintetiza bem o colocado é que: “por outras palavras,

existe uma especificidade anatômica por trás da criação da mente, uma diferenciação

funcional refinada no meio do caos da complexidade global” (DAMÁSIO, 2010, p.

118).

A teoria da mente distendida de Clark não desconsidera a fundamental

relevância do cérebro na questão da estruturação da mente, como expressa o trecho:

Para esse filósofo, nós estamos onde está nossa ação controlada. E esse controle é dado pelo fluxo de influência de duas mãos, entre cérebro, corpo e mundo. Mas, como o cérebro atua como um fator mediador na variedade do complexo e repetido processo que continuamente circula entre cérebro, corpo e envoltório, então estamos onde está o nosso cérebro, embora nossa mente possa ser estendida, por exemplo, nos limites de um telefone celular, a quilômetros de distância. Afinal, humanos nunca são inteligências sem corpo, ou seja, essa função de fator mediador do cérebro é o que nos torna realmente humanos (MOLINA, 2007, p. 95).

Ao nos misturarmos às coisas do mundo e, especificamente, às tecnologias em

geral (somente os aparatos computacionais), forma-se um sistema de informações

corpo-mundo tão intrincado que desloca a mente dos limites do corpo, da pele. Portanto,

os mecanismos da mente não estão todos na cabeça, a cognição vaza para o corpo e o

mundo (CLARK, 2011), ou seja, podemos concluir que os mapas estão no cérebro e

fora dele.

79  

(...) Com o uso de caneta, papel, livros, diagramas, linguagem e cultura, por exemplo, o cérebro individual executa operações que, sem a utilização desses recursos, muitas vezes não seria possível. Na verdade, o cérebro humano executa parte das operações e delega outra para essas mídias externas. Entre os dois, cérebro e características externas, há um sistema casado, de forma tal que também as características externas são tão causalmente relevantes quanto as características internas do cérebro (...) (MOLINA, 2007, p. 79).

Clark (2011) defende que a falta do âmbito externo comprometeria o “sistema

mente” assim como a falta do órgão, caso isso ocorresse. O organismo humano está

ligado com a entidade externa numa interação de mão-dupla que o autor denomina

externalismo ativo, e que defende o papel ativo do ambiente na condução dos

processos cognitivos (CLARK, 2011).

Um fenômeno denominado “oportunismo neural”, proposto por Clark,

comentado por Molina (2007, p. 83), demonstra a ocorrência do externalismo ativo:

Oportunismo neural (Clark, 2003: 62-69) refere-se à capacidade do cérebro humano em utilizar como memória externa algumas características duráveis do mundo, que podem ser consultadas quando necessário. É próprio do cérebro não conseguir manter o mesmo nível de foco para todos os estímulos percebidos, então ele “ilumina” um ponto, depois outro, alternadamente, sendo o responsável pelo controle do que trazer à cena (...) (MOLINA, 2007, p. 83).

Verificar que “o cérebro está menos relacionado à memória do que à sua

capacidade de gerir uma enorme base de dados fora dele” (p. 84) aponta a favor do

posicionamento de que, sozinho, é insuficientemente capaz de conceber mente, sendo

que

As capacidades cognitivas maduras, identificadas como mente e intelecto, e tidas como capacidades mentais humanas, na realidade podem ser propriedades dos sistemas mais amplos e estendidos no entorno, de cujos sistemas os cérebros humanos são apenas uma parte importante (1997: 214) (MOLINA, 2007, p. 71).

Ainda de acordo com Molina (2007):

Uma vez nascido, o homem é inserido na linguagem, que é a primeira tecnologia de cognição, e vai se tornando, paulatinamente, um ciborgue. A partir daí, a cada tecnologia que ele incorpora, mais aumenta sua capacidade de criação de novas tecnologias e, na mesma proporção, sua capacidade cognitiva (MOLINA, 2007, p. 97).

80  

Os signos crescem e na mesma medida cresce a complexidade.

Segundo Clark:

Nós não podemos nos ver corretamente até que nos vejamos como de natureza ciborgue: híbridos cognitivos, que ocupam regiões planejadas no espaço, radicalmente diferentes daquelas de nossos antepassados biológicos. A dura tarefa, é claro, é agora transformar tudo isso de (mero) esboço impressionista em uma equilibrada explicação científica da mente estendida (CLARK apud MOLINA, 2007, p. 74-75).

Por isso, autores como Molina concluem:

A partir da linguagem – já declarada, por Clark, como a primeira tecnologia e como instrumento que propicia ao homem um “atalho cognitivo” – uma série de revoluções cognitivas vem ocorrendo, revoluções estas que vêm modificando ambos, homem e tecnologias. Dessa forma, o homem vem, cada vez mais, acoplando a si as tecnologias e a elas se adaptando. No caminho inverso, as tecnologias também, cada vez mais, vêm se adaptando ao homem. (...) O início desse processo de revoluções cognitivas foi dado pela linguagem, a começar pela fala, e, na sequência, a escrita, a imprensa e, nos dias atuais, a codificação digital. Essas poderosas tecnologias cognitivas possibilitaram grandes atualizações da mente (...) (MOLINA, 2007, p. 86-87).

Construtivistas neurais como Steve Quartz e Terry Sejnowski sugerem que:

(...) o crescimento neural não seria apenas o ajuste fino de um circuito neural (sinapses, axônios e dendritos) com formas e perfis fixados, mas sim, um crescimento envolvendo a construção de novos circuitos neurais, dependendo do aprendizado. Ou seja, as interações organismo-ambiente alteram o próprio equipamento de aprendizagem. A flexibilidade neural também se adapta aos ambientes linguísticos e tecnológicos nos quais os cérebros humanos crescem e se desenvolvem. Nas palavras de Clark (2003: 84), “o aprendizado não apenas altera a base de conhecimento para um motor computacional fixo; ele altera a própria arquitetura computacional interna” (MOLINA, 2007, p. 85-86).

É conforme as relações com o meio e os contextos que integramos que as

experiências decorrentes deste fluxo entre nós e o mundo constituem uma expansão da

mente. Se as relações são potencialmente ativadas, nossa cognição prospera numa

intensidade equivalente.

Segundo o próprio Clark:

Enquanto tudo isso acontece, se os construtivistas neurais estão corretos, nós permanecemos abertos a tais tipos profundos de crescimento neural (cortical) e religação [novos circuitos neurais]. Em todas essas formas nós somos

81  

transformados pelos quase inimagináveis efeitos de nossas próprias tecnologias de transições primárias. A maior transformação de todas, entretanto, foi aquela que ocorreu quando nossos pensamentos e ideias tornaram-se objeto de nossa própria atenção crítica. Ao transformar nossos próprios pensamentos em objetos estáveis para nós mesmos (...), nossas habilidades com a linguagem abriram as comportas da razão auto-reflexiva. Nós começamos a pensar sobre nossos próprios pensamentos e sobre como construir melhores ferramentas para pensar. (...) A cognição humana estava destinada a ir indefinidamente além de sua origem animal (CLARK apud MOLINA, 2007, p. 87-88).

De tudo que foi exposto até aqui, o que mais interessa a esta dissertação é a

conclusão de Clark de que lidar com a nossa natureza cognitiva exige levar muito a

sério a realidade material da mesma, enquanto estrutura criada e ativamente mantida

pelos fluxos entre o âmbito interno e externo, o ambiente. “De sons no ar para

inscrições na página impressa, ambas as estruturas materiais da linguagem refletem, e

sistematicamente transformam, nosso pensamento e raciocínio sobre o mundo” (Clark,

2011, p. 59).

O autor explicita uma complexidade realmente impressionante, sugerindo que

nós não apenas criamos mundos melhores nos quais pensamos em estar (via design),

mas nos recriamos para pensar e atuar melhor no contexto onde estamos inseridos. Nós

criamos ferramentas melhores e as usamos para criar outras ainda melhores, afinando a

forma como as usamos, através da construção de práticas educacionais que podem nos

habilitar para isso.

Algumas dessas modificações são epistemológicas e afetam as estruturas

informacionais e as oportunidades apresentadas a cada geração subsequente. Assim,

embora outros animais claramente se engajem na construção de nichos, é apenas na

espécie humana que vemos este potente processo de engenharia epistêmica, que

descreve como um tipo de mecanismo de herança adicional que trabalha ao lado e

interagindo com a herança genética.

Esta forma de pensar cognição, enquanto decorrente da dinâmica entre corpo e

ambiente, é totalmente compatível com a perspectiva de design proposta, ou seja, um

design voltado para intensificar redes cognitivas. A dinâmica que se instaura nestes

contextos, entre seus elementos, pode delimitar o tipo de experiências a serem vividas e

o que delas se extrai. O conteúdo/ mensagem expresso pelo design/ linguagem dos

produtos e dos ambientes interferirá na qualidade das experiências passíveis de serem

82  

vivenciadas pelos componentes do contexto. Para pensar em processos de design que

intensifiquem as experiências, precisamos necessariamente abandonar algumas

dicotomias (sujeito-objeto, sujeito-contexto, corpo-mente, público-privado, natureza-

cultura), que ainda assombram convicções e premissas. O passo seguinte é propor um

design de possibilidades.

83  

2.3 Uma rede de possibilidades

Fazer um design que se defina mais como pensamento sistêmico de organização,

cuja proposição é promover desenvolvimento cognitivo e bem-estar aos envolvidos, do

que como estratégia de mercado aplicada para intensificar o consumo e mover a

economia, o que nos tem causado uma espécie de insatisfação crônica, pode ser possível

a partir das reformulações suscitadas, capazes de gerar um gradativo

“descongelamento” das condições de um contexto específico.

A respeito de representação, Greiner (2010) expõe que:

(...) pode ser considerada como um estado primário da comunicação. Costuma-se representar objetos específicos concretos, conjuntos, propriedades, eventos, estados de ser no mundo, mundos possíveis, fictícios, objetos abstratos como universais, números, qualidades, aspectos ou traços de algo ou alguém (GREINER, 2010, p. 50).

Cientistas, filósofos e semioticistas sempre estiveram interessados não apenas no conteúdo dessas representações mentais, mas em indagar também de onde vem esse conteúdo, o que o torna uma representação e como se dá a conexão com os respectivos objetos como uma espécie de insistência do real.

Há muitas maneiras de descrever como um conteúdo é incorporado. Ao afirmar que toda performance corporal carrega e reinventa o tempo e os processos comunicacionais, Joseph Roach (1996) é um dos autores que observa os modos como a representação pode (e muitas vezes é) um modelo ou modo de ser da coisa que ela representa. Isso quer dizer que a maneira como representamos o mundo é o modo como a informação externa tem possibilidade de ser internalizada nas determinadas circunstâncias em que a ação se desenvolve. A cognição é sempre “situada”. Neste assunto tudo é específico e singular, dizendo respeito a relações que não estão fora do tempo. Isso significa que a cognição não é a representação de um mundo independente, mas um tipo de relação corporificada do mundo e da mente (GREINER, 2010, p. 50-51).

Ou seja, isso sugere o quanto não é possível ao homem se constituir senão nesta

relação com o meio, o que invalida uma argumentação que priorize a natureza ou a

cultura. O que existe é uma aliança indispensável, e o que nos interessa nesta discussão

é dar a devida relevância ao contexto e suas possibilidades de ressignificação, um fator

determinante.

Suspensas formas triviais de se conduzir um processo de design de ambientes,

que poderíamos até mesmo nomear a partir de agora de “design de um sistema”, cuja

ênfase nesta discussão será dada na casa. Abandonados os manuais de se fazer

decoração partindo de estilos consagrados e que cristalizam os locais onde se dão (o que

parece muito conveniente quando a proposta é a instalação de cenários, por exemplo,

84  

para peças de teatro ou espetáculos de dança). O design passa agora a ser encarado

como processual e deve seguir mais lento, próximo e conjunto, sendo que parte,

fundamentalmente, da observação e requer sensibilidade.

Pensar que um estranho possa entrar em uma casa e inescrupulosamente ir

determinando “num só golpe” o que fica e o que sai, sem abrir possibilidade de

discussão e reconsideração, isso está fora de cogitação. Se o fazer design de interiores

deve partir de uma situação semelhante, então estaremos fazendo qualquer outra coisa

que leve outro nome, não sendo possível seguir numa linha de trabalho como esta.

Estilo, beleza e bem-estar não estão, necessariamente, ligados às condições econômicas e sociais. É claro que administrar a opulência e o luxo é bem melhor, mas pode ser um desastre. O objeto único, a vila romana, as estatuetas etruscas, os castelos neoclássicos existem para poucos mortais ou estão nos museus e nos arquivos da nossa memória cultural e afetiva. E lá devem ficar.

Só podemos possuí-los simbolicamente ou ironicamente em nossos apartamentos sem sótãos e porões. Usar réplicas de armas e brasões no hall de entrada de um prédio em Moema [bairro da cidade de São Paulo], não confere àquele edifício a nobreza ou dignidade desejada. Colunas gregas, estatuária bizantina ou cortinas drapeadas não embelezam ou dão status àquela casinha de arquitetura singela na periferia da cidade (LESLIE, 2001, p. 20).

É preciso haver coerência entre o que se insere numa casa, o contexto da mesma,

seus moradores e a conexão entre todos. Na casa existe uma rede construída de

informações vivas. As coisas não significam somente em si, mas como componentes

desta rede, na correlação. E a cada reformulação sofrida, quando outras informações

entram ou saem da jogada, esta rede se reorganiza e sobre isso não se pode exercer

controle. O que passa a interessar é admitir esse fluxo e partir dele para propor soluções

locais e não padronizadas.

Ao percorrer o interior de uma casa podemos acompanhar o enraizamento pessoal, material e afetivo que singulariza cada residência como um microcosmo familiar. A maneira de organizar o espaço disponível que se revela pelo jogo das exclusões e preferências, pela ordem e desordem, pelo visível e invisível, pela harmonia e discordâncias, e a distribuição das diferentes funções diárias (refeições, toalete, recepção, conversação, estudo, lazer e repouso) compõem um relato da vida e um teatro de operações no qual se entrecruzam objetos, pessoas, palavras e ideias (SCHAPOCHNIK, 1998, p. 494).

85  

A proposta apresentada por Neil Leach, teórico e arquiteto, em seu livro

Camouflage (2006), está sintonizada com as discussões propostas. Segundo ele:

Da mesma forma a noção de "casa" estende-se a incluir perguntas sobre mobilidade e práticas espaciais. "Casa" pode igualmente ser constituída por um conjunto de ações familiares. A maneira em que podemos subir uma escada, por exemplo, ou executar determinadas tarefas diárias, como limpar os dentes ou dobrar roupas, pode ser absorvido ao nosso mundo familiar, até o ponto onde eles assumem o status de altamente carregados de estruturas simbólicas. Como tal, estas ações assumem um papel profundamente significativo, operando como um horizonte fixo contra o qual medimos nossas vidas. Através da experiência de não apenas imagens familiares, cheiros, sons e texturas, mas também através de fazer certos movimentos e gestos familiares, vamos conseguir certa estabilidade simbólica. Interrompa esse mundo familiar, e nosso equilíbrio psíquico é perturbado. A partir disso, pode-se supor que a casa e as operações realizadas em casa, estão ligadas intimamente com a identidade humana.

O processo envolve uma interação bidirecional. Não apenas crescemos e nos tornamos parte do nosso meio ambiente, mas o nosso meio ambiente torna-se parte de nós (LEACH, 2006, p. 6-7).

Embora Leach (2006) tenha discutido sobre a capacidade de nos adaptarmos a

qualquer ambiente de modo a nos sentirmos em casa neste, afirma que isso não confere

pouca importância ao design:

(...) O argumento de Adorno é, antes, um apelo para um bom design – design é o que poderia abrir a possibilidade de um envolvimento sensual com o mundo. Design � de acordo com os princípios da mimese � deve servir como uma forma de mediação. A mimese opera tanto na concepção do produto quanto no relacionamento entre o utilizador e o próprio objeto. Assim, um item que foi concebido com vista a um entendimento mimético do mundo se prestará a ser absorvido mimeticamente. Servirá, portanto, como uma forma de mediação entre os indivíduos e o mundo (LEACH, 2006, p. 46).

A imaginação seria um dos ingredientes principais do design enquanto atividade

processual. Em processos desta natureza, nenhum item seria menos relevante na

construção do todo, permanecendo como parte integrante desta trama, fazendo razão,

mas isso de forma espontânea. Não delimitado por padrões de estilo ou pela tendência

de consumo e comportamento em vigor, conforme se tem coesão segundo a moda em

voga, mas segundo parâmetros construídos localmente e no decorrer da interlocução

proposta pelo designer. E é por isso que, conjuntamente:

Partir do princípio de que todos nós temos uma tendência a se adaptar ao nosso entorno, apesar do quão alienante possa parecer, não significa que o design não seja importante. Pelo contrário, sugere-se precisamente o contrário - que o desenho em si pode facilitar o processo de assimilação. Sem

86  

recorrer à nostalgia ou conforto físico simples, o design pode oferecer um mecanismo para se envolver com o mundo, que supera os sentimentos de alienação. A este respeito, o projeto pode oferecer uma forma de conectividade, uma mediação entre as pessoas e seu meio ambiente. O projeto pode contribuir para um sentimento de "pertencimento" (...).

Isso aponta para uma preocupação mais ampla. O impulso de identidade com nosso ambiente físico é apenas uma manifestação de um maior desejo de estabelecer alguma conexão com a cultura como um todo, e para superar a ameaça de alienação. Assim, poderíamos postular que o papel do design não é forjar uma ligação entre nós mesmos e nosso ambiente imediato, mas, sim, nos permitir sentir "ligados" com o mundo da vida em geral (LEACH, 2006, p. 9-10).

O design, servindo enquanto mecanismo que ativa um envolvimento maior com

o mundo, tal como a citação acima nos inspira a acreditar, parece o tipo de design que

se busca agora. É o instaurador de mediação, desencadeador de mimese e de sentido de

pertencimento, mas não a padrões de comportamento pura e simplesmente, e sim a

estados de existência e de experiência com este mundo, estados estes os quais se almeja

ampliar.

O designer, ou até o decorador, deve ser visto como um propositor e não como

um “ditador” de tendências e procedimentos. Ele trabalha com a perspectiva de que

também vai sair transformado da experiência, e não só vai transformar a tudo e a todos.

Neste sentido, a ideia da autora Vera Fraga Leslie é conveniente; ela se autoproclamou

antidecoradora, atua segundo concepções que elabora, como o que expressa a seguir:

Adornar a casa, assim como nosso corpo, é uma necessidade pré-histórica. É também uma forma de nos comunicarmos com o mundo. A luta pela moradia está carregada de símbolos que suplantam as funções de abrigo e sobrevivência.

Uma casa é um espaço-útero, cheio de segredos e emoções. Um decorador deve entrar com respeito e delicadeza e funcionar como um orientador. Não há modas, não há objeto bonito ou feio, cor quente ou fria. O que há é um arranjo, no qual cada coisa (objetos, móveis, paredes, pisos) adquire um sentido e um valor estético em relação às outras e ao espaço em que estão inseridas. É um jogo, um grande quebra-cabeças. Os objetos entram na dança, percorrem a casa à procura de seu lugar. Uma parede ganha cor e vibra. Aquela estatueta de gesso assume sua precariedade e se expõe irônica. Tudo se transforma e o papel do profissional é o de um maestro ou de um antropólogo que invadiu um território desconhecido mas sabe que os objetos falam (LESLIE, 2001, p. 20).

A descoberta é o caminho. O inesperado, o previsto. É preciso partir de um

plano, seguindo uma orientação, mas, se estivermos de antemão prontos para flexibilizá-

87  

lo em prol de resultados impensados, porém autênticos e honestos, tanto melhor. Porque

nada diferente disso se sustenta por muito tempo. É encarar a imprevisibilidade do

processo como a graça da situação, como a inspiração que indica espontaneamente as

melhores soluções e alternativas viáveis de serem implementadas.

A conversa entre o profissional e o cliente é fundamental e incessante, e o

ambiente se constrói em decorrência da troca. Isso (infelizmente, pensariam alguns)

causa atrasos em cronogramas, dispêndio de energia e tempo não previstos, retrabalho

(o temor dos designers), vários tipos de contratempos. Contudo, pode dar origem a

resultados não programados, mas que podem surpreender pela eficiência e

correspondência, resultados muitas vezes sentidos em longo prazo. E, estes sim, de certa

forma permanentes.

Quando se admite que a vida, tal como a constituição da casa, não obedecem a

contento a projetos, o decorrer é menos conturbado. Quero propor um modo de pensar e

criar design que apenas dê início a um processo de constituição de um produto, e que

este não tenha fim.

88  

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que seria um design para a vida

89  

Em termos cognitivos, estamos habilitados a usufruir dos recursos

disponibilizados pelo planeta (englobando nestes objetos, pessoas, espaços etc.) na

expectativa de resolver problemas de ordem prática. Esta condição traz dificuldades

para adotar padrões alternativos de postura e relacionamento, uma vez que a ação de

quebrar padrões sempre envolve um risco.

Este trabalho destinou-se a relacionar teorias que considero capazes de desenhar

um mapa de pensamentos que fogem ao escopo das teorias já estabelecidas e aceitas

pelo mercado profissional, na expectativa de que possamos desmontar padrões de

atuação sacramentados. A minha expectativa é que essas discussões possam

desencadear outras posturas, tanto daqueles que criam como daqueles que consomem.

Trata-se, ao mesmo tempo, de uma mudança cognitiva e política. Como

profissional da área, posso testemunhar que o processo de mudança é penoso. Toda

pesquisa implica em sofrimento, mas, quando se trata de mudanças profundas de

padrões cognitivos e crenças, as consequências podem ser avassaladoras.

António Damásio tem explicado que todo ser vivo busca homeostase para

sobreviver. Este seria um equilíbrio interno que garantiria a estabilidade do ser e o seu

bem-estar.

Em termos biológicos (e éticos), o mundo tem dado sinais de esgotamento em

vários aspectos, o que dificulta a conquista da homeostase. Se pensarmos o design como

um ativador de bem-estar, a sua finalidade estaria em encontrar um equilíbrio entre

sistemas, de modo a não sacrificar as particularidades de cada um. Poderia ser assim

considerado um dispositivo de criação de mundos possíveis. De certa forma, esta

proposta aproxima-o mais da arte do que das redes cotidianas de consumo. A sua

habilidade estaria também em fazer cada um descobrir seu próprio lugar nos contextos

onde vive, sem perder a dimensão do coletivo. Afinal, não podemos esquecer que, a

partir das teorias apresentadas, a autoria do design torna-se compartilhada e contínua.

90  

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