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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Ana Elisa Madureira Padula Claude Bernard: Fisiologia e Filosofia MESTRADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA SÃO PAULO 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Ana Elisa Madureira Padula

Claude Bernard: Fisiologia e Filosofia

MESTRADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA

SÃO PAULO

2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Ana Elisa Madureira Padula

Claude Bernard: Fisiologia e Filosofia

MESTRADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção

do título de Mestre em História da

Ciência sob a orientação da Profa.

Doutora Ana Maria Alfonso-Goldfarb.

SÃO PAULO

2011

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Banca Examinadora

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Aos homens da minha vida: Meu pai e meu marido – homens que sabem o valor de uma paixão. ...e às mulheres da minha vida: Minha avó, que ainda hoje me ensina Minha mãe, a quem enlouqueço com essa mania de fazer o que não sei Minha filha, que me enlouquece e me ensina a amar Minhas amigas, que são mulheres cheias de vida Aos colegas e alunos homeopatas: Por fazerem valer esse esforço.

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Agradecimento

Aos que presenciaram essa etapa da minha vida e com seu

carinho, trabalho, incentivo ou pensamento fizeram com que eu não

desistisse de tentar.

À Ana Maria, uma orientadora, na melhor acepção da palavra.

À Silvia, que também mostrou paixão pela idéia.

Ao pessoal do Programa

À CAPES, pelo apoio financeiro

À família, pela paciência.

...e a tudo que me trouxe até aqui...

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“Há um olhar que sabe discernir o certo do errado e o errado do

certo.

Há um olhar que enxerga quando a obediência significa desrespeito

e a desobediência representa respeito.

Há um olhar que reconhece os curtos caminhos longos e os longos

caminhos curtos.

Há um olhar que desnuda, que não hesita em afirmar que existem

fidelidades perversas e traições de grande lealdade.

Este olhar é o da alma.”

Nilton Bonder

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Resumo

Este trabalho mostra, no tempo histórico, o desenvolvimento da fisiologia

experimental de Claude Bernard, abordando as continuidades e

descontinuidades em sua obra, através da análise do manuscrito Philosophie,

uma coletânea de reflexões do autor sobre um curso de filosofia.

Foi possível localizar, temporal e epistemologicamente, o pensamento

de Bernard em duas fases diferentes. A primeira corresponde a um período

“magendiano”, abrangendo sua formação e seus primeiros trabalhos; a

segunda, que se inicia por ocasião da convalescença de Bernard, e que se

expressa através da publicação, em 1865, de Introdução ao Estudo da

Medicina Experimental.

A análise da obra Philosophie permitiu identificar reflexões importantes

de Bernard sobre as bases ciência experimental, o determinismo e as

diferenças entre seu pensamento e aquele de Auguste Comte.

Palavras-chave:

Claude Bernard, Fisiologia experimental, Philosophie, Metodologia

científica

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Abstract

This research addresses the historical development of the experimental

physiology of Claude Bernard (1813-1878) by focusing on the continuities and

discontinuities of his thought through the analysis of a manuscript entitled

Philosophie, a compilation of reflections on a course on philosophy.

It was possible to temporally and epistemologically distinguish two

phases in this demarche. The first one corresponds to the years under the

influence of François Magendie, thus comprising Bernard´s medical education

and early research work. The second one begins by the time Bernard was

recovering from a disease and whose first product was Introduction to the Study

of Experimental Medicine, published in 1865.

Analysis of Philosophie allowed identifying reflections significant to

Bernard´s construction of the grounds of experimental science, leading to his

founding concept, namely determinism. Similarly, it shows important differences

between Bernard´s and Auguste Comte´s thought.

Keywords:

Claude Bernard, Experimental physiology, Philosophie, Scientific method

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Sumário

Introdução………………………………………………….……………...1

Capítulo I:

Claude Bernard, o Discípulo de Magendie…………….....................11

Magendie e a fisiologia em Paris na primeira metade do século XIX................11

Uma semente, um solo fértil..............................................................................22

Gerando os primeiros frutos..............................................................................23

Fazendo do limão uma limonada.......................................................................25

Tempo de plantar e de colher............................................................................29

Capítulo II:

Philosophie, o livro que fala.............................................................31

Estatuto epistemológico de “crença”, “raciocínio” e “demonstração”.................41

Teoria e experiência..........................................................................................50

Ultrapassando antinomias: o conceito de “relação”...........................................55

Bernard e Comte................................................................................................61

As anotações de Claude Bernard sobre as ideias de Comte............................61

As reflexões no Philosophie como a nova semente subjacente à Introdução

ao Estudo da Medicina Experimental...............................................................74

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Conclusões................................................................................................... ..82

Bibliografia......................................................................................................86

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1

INTRODUÇÃO

A notoriedade de um personagem histórico na ciência é algo que nos

intimida e que nos faz pensar.

Iniciantes, acostumados que somos à história construída através da

biografia de personagens célebres, desaprendemos a questionar os fatos, as

circunstâncias, as contingências que fazem de uma pessoa comum um

personagem histórico.

Nossa escolha sobre Claude Bernard (1813-1877), um autor muito

conhecido, com uma obra extensa e celebrada, veio do interesse em conhecer

os primórdios da “medicina experimental moderna”. O que teríamos nós ainda

por fazer, diante de um trabalho onde nada mais poderia parecer original?

O desejo de questionar e compreender as múltiplas faces do

pensamento do famoso “pai da Medicina Experimental” parecia inicialmente um

desafio quase herético à obra de um autor célebre, e, ao mesmo tempo, um

mergulho estimulante no túnel do tempo da história da ciência.

Nossa formação foi, aos poucos, nos convidando a ampliar nossos

horizontes. A História da Ciência nos instiga não só a pesquisar documentos,

mas também a observar o tempo, as circunstâncias. Pudemos nos sentir mais

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respaldados para tentar um vôo amplo, onde teríamos a possibilidade de

desmistificar aquilo que, numa simples biografia, se mostra como uma

sucessão de eventos surpreendentes, criando a oportunidade de observar que

em tudo há continuidade e descontinuidade. Através do exercício da análise

epistemológica, tudo adquiriu outro olhar, onde cada detalhe foi muito

importante: “Observar vilões e heróis, em seu próprio contexto, levando em

conta seus objetivos e proposições, quase sempre bem diferentes dos nossos,

os faz mudar de figura e muitas vezes mudar até de posição”1.

Ao nos apropriarmos deste olhar, para conhecer a “riqueza escondida

nessa dificuldade”2, nos deparamos com a possibilidade de compreender

melhor Claude Bernard, um autor e suas múltiplas facetas.

A partir de então, pudemos analisar e entender que parecia haver um

“ponto de virada” na carreira desse autor, que, contrariamente ao pensamento

de autores como M. Goldstein, não se localizava na “época em que Claude

Bernard se tornou préparateur oficial de Magendie, quando interno no Hôtel-

Dieu”3. O período dedicado à formação acadêmica de Claude Bernard parece

caracterizar a existência de um primeiro autor, que se instrumentaliza através

da formação no Hôtel-Dieu e desenvolve uma linha de trabalho experimental,

cujo melhor momento talvez seja seu estudo sobre a síntese do glicogênio pelo

fígado.

1 Alfonso-Goldfarb & Ferraz, “Enredos, Nós”, 34-5.

2 Alfonso-Goldfarb, Escrevendo a História da Ciência, 6.

3 Goldstein, “Influence of Claude Bernard”.

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3

Nesse ponto, em meio a um panorama onde a fisiologia experimental,

com muita dificuldade, ganhava mais e mais espaço entre as escolas de

medicina na França, e, ocupando a cátedra deixada por seu mestre no Collège

de France, a linearidade da carreira deste primeiro Claude Bernard é truncada

por um longo episódio de doença, que o leva a retirar-se para sua terra natal.

Essa descontinuidade no trabalho em fisiologia experimental, que seria,

em primeira análise, nociva para a sua carreira, apresenta-se como uma

oportunidade; Claude Bernard vai então se confrontar com suas próprias

idéias, buscando embasamento filosófico e epistemológico para a sua prática

experimental.

Gozando nesse período de afastamento, de “liberdade vigiada” por suas

próprias reflexões, Claude Bernard, de acôrdo as biografias existentes4,

compõe a obra Introdução ao estudo da Medicina Experimental, que aborda

temas polêmicos para a época, fazendo uma revisão de conceitos úteis à

ciência, e à medicina, tais como o determinismo nas ciências biológicas e

físico-químicas.

O resultado desse trabalho, ao que tudo indica, se configura na

documentação de um “segundo Claude Bernard”, um pesquisador mais

maduro, cujo trabalho pudesse ser definido dentro dos limites por ele

propostos:

4 Dados biográficos segundo vários autores estão em <www.claude-bernard.co.uk>. Há

também uma interessante biografia, escrita por Paul Bert, que apresenta a edição em língua

inglesa do An Introduction to the Study of Experimental Medicine.

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“Eu acredito, que o verdadeiro método científico confina a

mente sem sufocá-la, e a coloca, na medida do possível, face a face

com ela mesma, e a orienta, no que diz respeito à originalidade,

espontaneidade e criatividade, que são suas mais preciosas

qualidades”.5

Sobre este período, um quadro foi pintado, talvez para nós, no princípio,

uma mera alegoria (Figura 1).

Figura 1. Claude Bernard na Maison Natale (autor desconhecido)

Nosso trabalho, iniciado em 2009, com o intuito de desvendar as origens

do “mito” Claude Bernard, após a abertura de horizontes proposta pelo

5 Bernard, Introduction a l’étude de la Médecine Expérimentale, 395; doravante esta edição em

língua francesa da obra será mencionada como Introduction…

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5

Programa de Pós Graduação em História da Ciência, concentrou-se no período

de afastamento de Claude Bernard, por volta de 1865, e seu retorno à terra

natal, em busca das possíveis fontes utilizadas como “inspiração” para a

criação de Introdução ao estudo da Medicina Experimental.

A leitura da coletânea de cartas escritas por Claude Bernard em Saint

Julien à sua grande amiga Mme. Raffalovich, nos levou a compreender melhor

detalhes da vida de Claude Bernard e suas constantes idas e vindas entre

Paris e sua terra natal. Embora as referidas cartas tenham sido escritas entre

1869 e 1878, um período posterior ao escolhido em nosso estudo, elas

documentam o fato de Claude Bernard, a partir de 1865, ter criado um hábito

de usar essas idas ao campo para refletir sobre seu trabalho:

“Eu fico aqui, mas é como se eu estivesse viajando, de tanto

que minhas idéias mudam seu curso ordinário”.6

“De manhã, eu trabalho um tanto. À tarde, caminho pelas

pradarias e faço observações sobre as videiras, que também gostaria

de ver publicadas mais tarde”.7

Em outra carta à sua amiga e correspondente, relatando sua rotina no

campo, ele esclarece:

“Permita-me dizer, em duas palavras, qual é o meu hábito de

trabalho. Eu jamais formo uma opinião baseado naquela dos outros:

eu procuro sempre, ao contrário, compreender primeiramente, as

6 Bernard, Lettres à Mme. R, 14.

7 Ibid, 23.

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coisas da maneira como eu sinto e só então eu leio o que foi escrito

sobre aquele determinado assunto”.8

Em várias ocasiões Claude Bernard fala sobre o prazer de estar no

campo para que suas idéias ficassem em liberdade.

Desse modo, à medida que a pesquisa se desenrolava, a pintura, que

inicialmente parecia mera alegoria, adquiriu feições de verdadeiro documento,

um vestígio não verbal9, que nos deu acesso à realidade histórica do período

de reflexão e trabalho em Saint Julien. Nela, um Claude Bernard doente,

sentado ao ar livre, no pátio defronte à sua casa, dedicado ao estudo de

diversas obras, tomando notas apoiado numa escrivaninha móvel que,

coincidentemente, ainda é conservada no Musée Claude Bernard (Figura 2). A

fachada da casa, embora hoje restaurada, exibe o mesmo aspecto na pintura

em questão (Figura 3).

Figura 2. Escrivaninha portátil utilizada por Claude Bernard

(Musée Claude Bernard)

Figura 3. Fachada da Maison Natale (casa onde nasceu Claude Bernard)

8 Ibid, 20.

9 Alfonso-Goldfarb, Escrevendo a História da Ciência, 139.

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A convicção de que os “homens de ciência não são sempre seres

alucinados, que vivem em meio a fantasias a respeito da realidade”10, e de que

“há um mundo externo às suas mentes que influi sobre suas sensações,

percepções e concepções”11, fomos buscar, neste período de reflexão, fontes

sobre a somatória de influências à elaboração da obra Introdução ao Estudo da

Medicina Experimental.

Buscamos contato com o Museu Claude Bernard, quando nos foi

esclarecido que havia no acervo, muitas anotações dispersas, desenhos,

bilhetes, cartas, enfim, havia documentação que poderia contribuir à presente

pesquisa (Figura 4).

Figura 4. Fotografia feita no Museu Claude Bernard; dentro do círculo vermelho, o caderno Philosophie.

10

Ibid, 140. 11

Ibid.

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8

Dentre os documentos existentes no Musée Claude Bernard, chamou a

atenção um caderno de anotações de Claude Bernard sobre um curso de

filosofia. De capa preta, o caderno de anotações traz, de um lado (páginas

ímpares), as notas que Bernard fez sobre o curso e, na página oposta,

observações, comentários e reflexões próprias, na forma de glosas, sobre

vários pontos que chamaram sua atenção (Figura 4).

Esse documento inclui ainda um trabalho semelhante, que se refere a

idéias de Auguste Comte (1798-1857). O documento se intitula Philosophie, e

traz também vários bilhetes, contendo outras anotações de alguns

pensamentos.

As informações obtidas no Museu davam conta que o manuscrito

permanecera inédito, o que nos causou curiosidade e estranheza.

A pesquisa sobre esse documento revelou tratar-se de um manuscrito

pouco conhecido e pouco estudado, que teria sido editado por volta de 1937 e

cuja edição mais conhecida é de 1954. Segundo o editor e outros autores,12

essas anotações contidas no manuscrito datam da época em que Claude

Bernard convalescia em Saint Julien.13

12

Canguilhem, Études d’Histoire et de Philosophie,166. 13

Há, em nosso trabalho, um capítulo especial contendo informações mais detalhadas sobre o

manuscrito.

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Nossa proposta, a partir de então, foi estudar as observações contidas

em Philosophie e contrapô-las como uma espécie de “subtexto” na análise de

Introdução ao estudo da Medicina Experimental, considerando as discussões

científicas da época e os limites que Claude Bernard desejava transpor.

O estímulo final para tal proposta veio de uma observação, anotada de

próprio punho por Claude Bernard, no final do caderno (Figura 5):

Figura 5. Conclusão de Philosophie

“Il n’y a encore que dispute et contradiction dans toutes ces tentatives philosophiques produites par l’esprit humaine.”14

Assim, essa conclusão aos seus estudos de filosofia, contida no

manuscrito Philosophie, pareceria indicar fortemente, que Claude Bernard

refletira sobre o trabalho dos autores em busca de uma visão não contraditória

e que não estivesse atada aos antigos conceitos filosóficos. E foi, então,

14

“Não há senão disputa e contradição em todas essas tentativas filosóficas produzidas pelo

espírito humano.”

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possível vislumbrar as primeiras idéias de Claude Bernard que viriam abrir as

portas para uma maneira nova de pensar a medicina experimental.

Vale acrescentar que análise da documentação e a metodologia de

trabalho adquirida no decorrer no curso de mestrado nos permitiu desenhar o

perfil desse “segundo Claude Bernard”, um homem mais maduro e experiente,

um homem que pensa e trabalha por uma medicina científica,15 usando como

ferramentas a fisiologia experimental e a filosofia.

15

Bernard, Introduction..., 1.

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CAPÍTULO I

CLAUDE BERNARD, O DISCÍPULO DE MAGENDIE

Magendie e a fisiologia em Paris na primeira metade do século XIX

Fisiologia e experiência eram tópicos muito discutidos na época em que

Claude Bernard estudou medicina em Paris (1835-1839).

Já no século anterior, a abordagem experimental em fisiologia havia

adquirido um forte impulso, graças a trabalhos como os de Albrecht Von Haller

(1708-1777). Através de experimentos em animais, esse autor postulou a

presença de sensibilidade e irritabilidade como propriedades particulares à fibra

animal viva. A partir da visão de “anatomia animada” criada por Haller, os

fisiologistas passaram a admitir que o corpo animal reagia e esses movimentos

e suas causas passaram a ocupar o foco dos seus estudos.16

Na França, essa corrente que poderíamos chamar de “empírica” – pois

antecede ao estabelecimento de uma experimentação propriamente dita – se

configurou ideal para que o médico e anatomista Marie Françoise Xavier Bichat

(1771-1802) obtivesse destaque, com suas incontáveis dissecações de corpos

humanos, fazendo observações importantíssimas sobre os diferentes tecidos e

suas propriedades.17 Seu pensamento exerceu grande influência na formação

16

Rothschuh, History of Physiology, 166. 17

Xavier Bichat, em sua obra Recherches hysiologiques sur la vie et la mort, descreve as

propriedades inerentes a cada tecido (digestibilidade, contratibilidade, secrecionabilidade,

exalabilidade). 56-61.

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dos fisiologistas franceses.18 A fisiologia, através de Bichat, passou a utilizar

preferencialmente a via empírica , classificando os tecidos e evitando ir além o

que se acreditava ser uma simples, mas detalhada, descrição de fatos.19

Idéias sobre sensibilidade e irritabilidade como “modificações vitais

devidas à influência de fatores externos” aparecem em René Joachim Henri

Dutrochet (1776-1847) que, discutindo as observações de Bichat, afirma que

“vida é movimento”20. O foco central do trabalho de Dutrochet, no entanto, será

a fisiologia vegetal, onde ele realizará importantes observações sobre as

células.

De acordo com Paul Elliot, o termo “fisiologia” podia ter várias

conotações na primeira metade do século XIX. Poderia tanto significar a

fisiologia humana, primariamente abordada pelos médicos acadêmicos, como o

estudo das funções dos diversos órgãos dos animais superiores, usando

métodos de anatomia comparativa. Seu estudo abrangia a aplicação de

métodos considerados como científicos para a observação, experimentos em

plantas e animais e, até mesmo, a química fisiológica desenvolvida por

químicos.21

No solo fértil da sempre agitada Paris, com sua permanente difusão de

conhecimentos, a fisiologia ganhava espaço, pouco a pouco, através de nomes

18

Sobre a influência dos trabalhos de Bichat, vide Canguilhem, O Normal e o Patológico, 46-

49. 19

Rothschuh, 166; Foucault, O Nascimento da Clínica, é referência obrigatória para quem quer

abordar o trabalho de Bichat. 20

Dutrochet, Recherches Anatomiques et Physiologiques, 1- 6. 21

Elliot, “Vivisection and Emergence of Experimental Physiology”.

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como François Magendie (1783-1855), Julien Jean César Legallois (1770-

1840) e Jean Pierre Flourens (1794-1867). As diferenças entre o vivo e o bruto,

a atividade nervosa e cerebral e as propriedades dos tecidos ósseos

constituíam objeto de estudo de importantes pesquisadores como Flourens,

que ocupou a cátedra de História Natural do Collège de France em 1855.22

O pensamento em fisiologia percorria todas as áreas do conhecimento,

gerando obras das mais variadas.23

Thomas Neville Bonner relata que, a partir de 1820, em Paris, surgiram

cursos de fisiologia na Academia Francesa de Ciências, no Collége de France,

no Museu de História Natural, nas escolas de veterinária e outros, quase

sempre fora das escolas de medicina. Esse autor explica que o ensino da

fisiologia nas escolas médicas se desenvolveu mais lentamente. Havia pouco

espaço para trabalhar sob esse enfoque e nenhum suporte financeiro para

professores pesquisadores. Bonner ainda ilustra essa situação através do

comentário de um cirurgião britânico ao Parlamento, em 1834, dando conta de

que “Embora em cada escola de medicina de Paris haja um professor de

Fisiologia, eles não ensinam fisiologia experimental propriamente, pois não há

22

Para melhor compreensão sobre o trabalho de Flourens, ver Manuel, “Vivisection and

Development” in Vivisection in Historical Perspective. 23

Um bom exemplo dessa diversidade é o livro La Physiologie du Goût, lançado em 1825, uma

obra curiosa que aborda tanto observações sobre os sentidos e sua utilização, como receitas e

curiosidades gastronômicas. Seu autor, Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826), estudou

direito, química e medicina em Dijon e pretendia que a obra fizesse parte da fundação da

ciência da gastronomia. É dele o aforismo: “dize-me o que comes e dir-te-ei quem és”.

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14

experimentos”24. Havia, de fato, carência de laboratórios, o que tornava

insalubre o trabalho nos porões adaptados à pesquisa.25

Por outro lado, Karl Rothschuh aponta que, à diferença de outros países

europeus, na França houve uma “espécie de resistência ao uso de

microscópio, o que fez priorizar as observações fisiológicas”26.

Magendie, professor do Collège de France, encontrou,

excepcionalmente, um pequeno espaço para trabalhar e, junto com alguns

colegas, foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento da fisiologia

experimental na França na primeira metade do século XIX.

Em seu livro Précis élémentaire de physiologie, de 1817, Magendie

lamenta o estado do ensino da fisiologia “feito tão somente de maneira

sistemática” e “apartada das ciências exatas pelo preconceito, pela

repugnância aos experimentos nos animais vivos, [e] pelo apego aos antigos

métodos”27. O conteúdo das obras de autores consagrados “fundamentadas

em suposições e fantasias”, propondo-se, através da publicação desse

trabalho, a “relatar os fatos, tanto quanto possível, constatados diretamente da

realidade, seja pela observação do homem são ou doente, seja por experiência

nos animais vivos”28.

24

Bonner, Medical Education, 154. 25

Bernard, no Introduction..., vai falar sobre essa dificuldade afirmando “Meu mestre Magendie

devotou sua vida defendendo a experimentação no estudo dos fenômenos fisiológicos. Não

havia laboratórios adequados e ele teve todo tipo de dificuldades”, 157. 26

Rothschuh, 265. 27

Ibid, I: vi.

28

Magendie, Précis Élémentaires de Physiologie, I: iii.

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15

Essa obra foi publicada em dois volumes e teve cinco edições; a última

foi traduzida à língua inglesa por John Revere, em 1838. Consta de inúmeras

classificações dos corpos e suas propriedades, dos tecidos e sua composição.

Trata também das propriedades vitais de modo descritivo, abordando temas

como as capacidades ou habilidades dos corpos (nadar, andar, andar de lado,

correr, saltar) e o uso dos membros em cada situação. O segundo volume

descreve os tipos de alimentos e aborda a função digestiva assim como a

composição do sangue. O final da obra é dedicado ao estudo do embrião e do

feto e seu desenvolvimento intrauterino.

A maneira como Magendie aborda o tema da morte, ilustra bem o

caráter da obra:

“A existência de todos os corpos organizados é temporária;

ninguém escapa à dura necessidade de cessar de existir ou

morrer; o Homem está submetido a esta mesma sorte.

Começando nos primeiros tempos da velhice [...] os órgãos se

deterioram, até cessarem completamente de agir [...] na

decrepitude as funções estão reduzidas e [...] quando há perda

das funções indispensáveis [...] a morte chega, como o último

degrau da destruição dos órgãos e funções.” 29

De acordo com John E. Lesch, “duas instituições desempenharam um

papel importante para o desenvolvimento da Fisiologia na França: o Hôtel-Dieu.

de Paris, e a Primeira Classe do Institut de France”. Segundo esse autor,

29

Ibid, II: 466.

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16

“O forte viés cirúrgico da escola de Paris, proporcionou a

Magendie competências operacionais importantes, como a

introdução de secções e ligaduras que foram fundamentais tanto

para as investigações de Bichat, quanto para o método experimental

proposto por Magendie. O hospital servia também como um

ambiente de pesquisa, uma espécie de extensão do laboratório”.30

Com efeito, Magendie atuou tanto na clínica, que jamais desejou

abandonar, quanto no laboratório. Para seus experimentos, utilizava

preferencialmente o método da vivissecção, ou seja, a abertura dos corpos de

animais vivos para observação. Esse era um método bastante questionado na

época, tanto por sua eficácia,31 quanto pela crueldade de seus procedimentos.

No princípio, seus escritos evitavam tocar no tema das vivissecções,

ganhando, com isso, popularidade.32

Já em 1755, Haller havia-se referido a experimentos com animais como

“uma espécie de crueldade, que me fez relutar, mas que superei pelo desejo de

contribuir para o benefício da humanidade”33. Com efeito, as descrições dos

experimentos em gatos realizados por Cocteau e Leroy-D‟Étiolle e celebradas

por Magendie, parecem bastante cruéis, resultando bastante difíceis de ler para

o estudioso moderno.34

30

Lesch, Science and Medicine in France, 79. 31

Vitalistas questionavam a validade dos experimentos, alegando que a artificialidade do

processo comprometeria a qualidade das observações. Para um panorama mais completo,

vide Goldstein, 560. 32

Rupke, Vivisection in Historical Perspective, 61. 33

Apud Hall, Ideas of Life and Matter, II: 397. 34

Cocteau et Leroy D‟Étiolle, [Reproduction du Cristallin], Journal de Physiologie, 30.

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17

Roselyne Rey, em seu livro Histoire de la Douleur, afirma que, “embora

os experimentos em fisiologia significassem um avanço, havia uma falta de

sincronia entre os trabalhos clínicos, as pesquisas terapêuticas e a fisiologia

experimental”35. Segundo ela, havia pouca preocupação, no modelo

experimental, com o problema do sofrimento e da dor e muitas observações

foram consideradas interessantes, porém perigosas para a aplicação em seres

humanos.

Num exemplo, J. Leroy, em 1827, descreve um método rudimentar de

entubação em animais.36 Essa manobra foi julgada, na época, como

excessivamente violenta e só foi considerada clinicamente útil anos mais tarde,

em 1851, por Armand Trousseau (1801-1867), um famoso médico clínico, que

a utilizou primeiramente em um paciente terminal.37

O próprio Magendie, na introdução ao Précis élémentaire de physiologie,

afirma: “A Medicina é só um acúmulo de idéias fixas de sofrimento e de temor

da dor e da morte”, importando, portanto, mudar o estado da fisiologia, fazendo

dela uma ciência meramente experimental. “A Medicina, que não é mais do que

a fisiologia do homem enfermo, seguirá um caminho análogo, elevando-se em

breve ao mesmo grau de perfeição”.38

O trabalho de François Magendie tinha, como ele, um caráter crítico,

provavelmente estimulado pelas circunstâncias históricas sob as que obteve

35

Rey, Histoire de la Douleur, 132. 36

Leroy, “Recherches sur l‟Asphyxie”, 45. 37

Trousseau, Bulletin of the History of Medicine, 651-699 38

Ibid.

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18

sua formação. Aos dezesseis anos, muito jovem para ser admitido na École de

Santé, tornou-se aprendiz do cirurgião Alexis Boyer (1757-1833), que era um

bom amigo de seu pai, no Hôtel-Dieu de Paris. Mudança era, então, a palavra

de ordem na França incluindo a criação de um sistema público de ensino que

fosse aberto a todo cidadão interessado na aquisição de conhecimentos.39

Essas idéias fizeram com que fosse varrida a antiga ordem estabelecida.

Foi ordenada a venda de todas as possessões das Universidades e a

supressão das antigas faculdades de Teologia, Medicina, Leis e Artes. A

proposta era uma educação livre. E, de fato tornou-se tão livre, que nos anos

entre 1893 e 1895, não houve instrução médica formal. Quem quisesse tornar-

se médico teria que aprender como pudesse, observando um prático ou

trabalhando num hospital.

Foi nesse clima que Magendie, então com vinte e dois anos, começou

seus estudos em medicina. Dois anos mais tarde já havia um movimento

contrário nas escolas de Paris, Montpellier e Estrasburgo, no sentido de criar

escolas modelo em medicina e cirurgia, uma especialidade muito requisitada

nos tempos de guerra. Estimulado por seu pai, Magendie iniciou seus estudos

em cirurgia no Charité de Paris e, rapidamente, se tornou professor de outros

jovens como ele, ensinando anatomia e a arte da dissecação.

Isso era então comum entre os jovens talentosos, tanto que na mesma

época em que Magendie começou a dar suas primeiras aulas, Xavier Bichat,

39

Olmsted, François Magendie, 14.

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então com 27 anos, já se tornara um dos professores de anatomia mais

populares em toda a França. Suas aulas eram muito mais um intercâmbio de

idéias entre aluno e professor, estimulado por perguntas, do que um ensino

formal expositivo, criando um estilo que se tornou popular entre os professores

da época e muito elogiado pelos alunos. Bichat não viveu tempo suficiente para

se adequar à reforma de ensino proposta por Napoleão Bonaparte, que fez

abandonar de vez os ideais revolucionários e determinou a necessidade de

exames de qualificação para a obtenção do grau de doutor para poder ensinar

nas escolas médicas. Essa prática, segundo James Olmsted,40 provocou

profundas mudanças no ensino médico na França. Magendie, embora já

lecionasse, foi obrigado a se graduar doutor em medicina.

No pensamento de Magendie, a medicina era “uma ciência ainda por

fazer” e estivera, em seu modo de ver, presa a inúmeras teorias criadas para

explicar os fenômenos da vida, que seriam, segundo ele, “muito mais bem

explicados através do desenvolvimento da experimentação, a maneira ideal

para entender os fenômenos fisiológicos”.41 Esta, cabe lembrar, era a época de

ardentes debates acerca da distinção entre as assim chamadas ciências

“exatas”, como a física e a astronomia, e as “não tão perfeitas ciências

biológicas”. A formulação de Newton das leis do movimento e gravitacional

como “leis naturais” haviam colocado a física e a astronomia num patamar

estável. Magendie trabalhou para resolver sua insatisfação em relação à

fisiologia.42

40

Ibid,15-18. 41

Magendie, Précis élémentaire de physiologie, ii. 42

Waisse-Priven, em d & D duplo Dilema, elabora de maneira interessante a questão do

debate acerca do estatuto epistemológico da biologia.

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A tarefa de implantar as idéias de fisiologia experimental naquela época,

na escola de medicina de Paris, não era nada fácil. Segundo Paul Elliot, o

cenário estava ocupado por grandes estrelas, personagens teatrais que

dominavam as aulas clínicas na Faculdade.43 No entanto, Magendie, aos

poucos, foi ganhando espaço, e enriqueceu a fisiologia com inúmeros

experimentos em animais, especialmente cachorros e cavalos, realizando

importantes observações como a atividade motora e sensitiva do nervo

cérebro-espinal e a presença de açúcar no sangue. Suas observações práticas

parecem combinar com o pensamento de Napoleão, de que a educação

deveria ser prática e que a filosofia seria um passatempo para mulheres e

preguiçosos.44

Muito embora seus primeiros discípulos tivessem abandonado a

fisiologia e voltado à clínica, seu trabalho terá continuidade e exercerá grande

influência na obra de Claude Bernard. As vivisecções serão cada vez mais

utilizadas como aporte às observações fisiológicas experimentais. Sobre elas,

Bernard dirá que, apesar de considerado cruel, “sem este modo de

investigação, nem a fisiologia nem a medicina científica são possíveis”45.

Magendie publicou inúmeros trabalhos em fisiologia experimental

realizados na época no seu Journal de Physiologie Expérimentale et

Pathologique. Claude Bernard, mais tarde, irá também documentar o trabalho

de Magendie, relatando a clareza de seus experimentos para a diferenciação

43

Elliot, 60. 44

Olmsted, 15. 45

Bernard, Introduction…, 173.

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dos ramos sensitivo e motor do nervo cérebro espinal, através do uso de noz

vomica (Strychnos nux vomica L.).46

Nesse clima de discussões, a fisiologia de Magendie conservava bases

restritas, objetivando primordialmente os fenômenos em si mesmos e evitando

considerações biológicas mais amplas. Ele próprio, sarcasticamente, se

considerava muito mais um “coletor de fatos no campo da ciência”47.

Segundo J. Fulton,

“A vida de Magendie ilustra algumas das qualidades

peculiares aos homens de ciência – curiosidade universal,

tenacidade de propósitos, trabalho incessante e dificuldade em

admitir seus erros - acrescida de inquietude e impetuosidade, que

muitas vezes trouxe conflito com seus contemporâneos”.48

Ainda segundo esse autor, “Magendie personifica o espírito inquisitivo e

liberal da França, o mesmo que criou Bernard, Pasteur e tantos outros que o

mundo olha com profunda reverência”.

A influência de Magendie se fez sentir, no século XIX, nas escolas

experimentais da América do Norte. Muitos estudantes e professores iam a

Paris buscar novas idéias. Com a morte de Magendie, o pensamento das

escolas germânicas passou a predominar.

46

Bernard, Rapport sur les progrès et la marche de la physiologie générale en France, 14. 47

Magendie, Journal de physiologie éxperimentale,13. 48

Fulton, prefácio para François Magendie, vii.

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Uma semente, um solo fértil...

Ao concluir seus estudos na Faculdade de Medicina de Paris, Claude

Bernard tornou-se assistente de Magendie, graças à sua habilidade em

preparar peças de laboratório. Magendie ensinou a Bernard o uso da

vivisecção animal e o despertou para sua real vocação. Bernard era hábil nas

dissecações, gostava de observar e aprendeu com seu mestre a duvidar das

teorias e doutrinas médicas, aceitando, assim, o convite a se dedicar à

fisiologia experimental e suas comprovações.49

Desde sempre, o laboratório foi seu campo de atuação. No princípio,

ainda atuava como médico no Hôtel-Dieu, mas, com o passar dos anos,

abandonou completamente a clínica, dedicando-se apenas ao laboratório. Essa

disposição é muito bem explicada na citação:

“Considero o Hospital como a antecâmara da medicina

científica; ele é o primeiro campo de observação onde o médico

penetra; mas o verdadeiro santuário da ciência médica é o

laboratório; só ali ele [o médico] pode procurar explicações sobre a

vida em seu estado normal e patológico, por meio da análise

experimental. [...] Em minha opinião, a medicina não termina nos

hospitais, como é frequentemente aceito, mas meramente começa

ali. Ao sair do hospital, o médico, cioso de seu título em seu sentido

49

Claude Bernard, na aula inaugural ao Curso de Medicina do Collège de France, em 29 de

fevereiro de 1856, 7, descreve Magendie como “um homem cujo primeiro movimento era

sempre duvidar [...] não se deixando jamais carregar pelo turbilhão comum”.

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científico, deve ir para seu laboratório; ali, realizando experimentos

em animais ele vai procurar avaliar aquilo que ele havia observado

em seus pacientes, tanto no que se refere à ação das drogas,

quanto sobre a origem de lesões mórbidas em órgãos ou tecidos.

Ali, em uma palavra, ele vai conquistar a verdadeira ciência médica.

Todo médico científico50 deve portanto, ter um laboratório fisiológico;

e esse trabalho tem o intuito especial de dar aos médicos regras e

princípios de experimentação para guiar seus estudos de medicina

experimental”.51

Seus primeiros trabalhos são, em sua maioria, de natureza empírica,

longas descrições de observações sobre os constituintes do corpo e suas

funções, talvez um exercício necessário para a formação de um investigador

consciente.52

Gerando os Primeiros Frutos

Magendie e Claude Bernard trabalharam juntos de 1839 a 1844. A partir

de então, Claude Bernard começa a desenvolver sua própria linha de pesquisa,

com a ajuda do amigo e químico, Théophile-Jules Pelouze (1807-1867),53.

Esse primeiro esforço para individualizar seu trabalho visava, apesar de utilizar

os mesmos métodos controvertidos, pesquisas apoiadas em experimentos

mais bem definidos, desenvolvendo conceitos éticos para a pesquisa, que

50

Aqui, no sentido de que todo médico que quer fazer da medicina uma ciência. 51

Bernard, Introduction..., 258. 52

Textos completos de trabalhos de todas as épocas estão disponíveis em <www.claude-

bernard.co.uk> 53

Pelouze foi professor de química da Escola Politécnica e padrinho de casamento de Claude

Bernard.

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serão expressos mais claramente na Introdução ao Estudo da Medicina

Experimental:

“Dentre os experimentos que podem ser feitos no homem,

aqueles que são certamente prejudiciais são proibidos, aqueles

inocentes são permissíveis e os que podem trazer benefícios são

obrigatórios. Então, se é imoral fazer experimentos em humanos

quando é perigoso para eles, embora os resultados possam

beneficiar a outros, é essencial que seja moral realizar experimentos

num animal, embora seja doloroso e perigoso para ele, se pode ser

útil para o homem.” 54

Até seus 30 anos, Claude Bernard havia publicado apenas poucas

coisas: um estudo sobre a chorda tympani e a sua dissertação de mestrado

sobre a função do suco gástrico na nutrição. Após alguns anos, Bernard produz

trabalhos com observações que, quando publicadas, causaram espanto entre

os colegas. Eles traziam a descrição de técnicas cirúrgicas mais aperfeiçoadas

para a obtenção de informações importantes sobre a fisiologia da digestão,

particularmente sobre o papel do pâncreas exócrino, do suco gástrico e dos

intestinos. Essas observações lhe valeram um prêmio da Academia de

Ciências. De fato, o estudo do metabolismo foi um dos seus principais campos

de pesquisa, tendo Bernard contribuído para a compreensão do mecanismo da

glicogênese no fígado. Aos poucos, através da fisiologia experimental, ele

comprovava a existência de mais de uma função para um mesmo órgão, um

fato pouco conhecido em sua época. Essas observações lhe valeram novas

54

Bernard, Introduction…, 178.

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premiações da Academia de Ciências e da Sociedade de Biologia, e o

Doutorado em Ciências Naturais.

Assim, Claude Bernard foi ganhando credibilidade por suas descobertas

no campo da fisiologia até, depois da morte de Magendie, assumir a cátedra

deixada por ele no Collège de France, em 1855. Havia muito mais exposição

pública e alguns opositores, como Frederick William Pavy (1829-1911), um

jovem médico e fisiologista inglês que, após uma visita a Paris, passou a

publicar artigos questionando os achados experimentais de Bernard.55

Além disso, sua vida pessoal também era motivo de stress constante.56

Pouco a pouco, sua saúde começa a se deteriorar, possivelmente devido a

uma colite nervosa. Resfriados constantes, enxaquecas diárias e dores ciáticas

impediam muitas vezes dar continuidade ao seu trabalho experimental.

Fazendo do limão uma limonada

Em 1865, Claude Bernard começa a apresentar problemas de saúde.

Uma “afecção mal definida, uma espécie de enterite crônica, o faz sucumbir”.57

Resolve então, com o apoio de amigos, pedir um período de licença e retirar-

55

Vide, por exemplo, “A New Line of Research Bearing on the Physiology of Sugar in the

Animal System”, publicado anos mais tarde em Proceedings of the Royal Society of London, 32

(1881): 418. 56

Bernard havia se casado com Fanny Martin, que se opunha fortemente ao seu trabalho com

animais. Nessa época, Bernard perdeu também um filho, aos 6 meses de idade. 57

Godart, prefácio a Philosophie, xi

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se, por 18 meses, para St. Julien en Beaujolais, sua terra natal, para se tratar

junto às vinícolas de sua família.

Afastado do meio acadêmico, mantendo contato por cartas com alguns

amigos e convalescendo entre as videiras de sua terra natal, Bernard começa a

elaborar uma nova obra. Considerada uma obra prima literária e filosófica, o

livro Introdução ao Estudo da Medicina Experimental tem pouco ou nada a ver

com os trabalhos que Bernard escrevera até então.

Seu conteúdo, numa linguagem totalmente inovadora, traz preceitos

filosóficos que foram, e ainda são seguidos por muitas gerações de

pesquisadores. “Bernard criou um estilo”, diria Henri Patin (1793-1876), em seu

discurso de boas vindas à Academia Francesa, nada parecido com suas

antigas narrativas de impressões e experimentos de laboratório.58 “Ninguém

nunca fez descobertas com maior simplicidade”, relata seu pupilo Paul Bert em

sua biografia. Publicado em 1865, o livro ganhou popularidade, recebendo

várias traduções, entre elas uma tradução ao inglês em 1927 (reeditada em

1949).

Quase noventa anos mais tarde, Frank Harrison, numa revisão para o

National Center of Biotechnology Information, à edição de 1949, comenta: “Há

tantos assuntos diferentes abordados neste pequeno livro que é impossível não

se tocado por algum deles” e considera, a partir de sua revisão, que o livro é

58

Paul Bert, “Claude Bernard”, p. xvi.

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“altamente recomendado para aqueles que se preocupam com as ciências

experimentais, principalmente no campo das ciências biológicas”.59

O livro é elogiado também pelo historiador estadunidense I. Bernard

Cohen, no prefácio à edição em inglês de 1957,60 comentando a linguagem

clara e acessível, que faz da obra o oposto dos clássicos científicos, que “são

venerados, citados, mas nunca lidos” e “que propicia ao leitor uma visão clara e

penetrante da natureza da ciência e um insight das idéias de um dos grandes

nomes da ciência”. Cohen comenta a grande influência de Introdução ao

Estudo da Fisiologia Experimental no trabalho de fisiologistas tão reputados

como L. J. Henderson,61 Walter B. Cannon62 e Sir Joseph Barcroft.63

Henry Bergson (1859-1941),64 Prêmio Nobel de Literatura em 1927, no

discurso pronunciado na cerimônia do Centenário de Claude Bernard, no

Collège de France, em 30 de dezembro de 1913, observou:

“Quando Claude Bernard descreve o método experimental,

quando ele fornece exemplos disso, quando ele relembra as

aplicações que fez dele, tudo aquilo que ele expõe nos parece tão

simples e tão natural que mal se tem necessidade, parece, de dizê-lo:

acreditamos havê-lo sabido sempre. É assim que o retrato pintado por 59

Harrison, “Review to Introduction”, 239. 60

Cohen, Prefácio para Introduction to the Study of Experimental Medicine. 61

Lawrence Joseph Henderson (1878-1942) foi um fisiologista, químico, biólogo, filósofo e

sociólogo. Graduou-se em Harvard, onde criou o Laboratório da Fadiga, para estudos em

fisiologia e sociologia. Foi diretor da Escola Medica de Harvard.

62 Walter Bradford Cannon (1871–1945): médico e chefe do Departamento de Fisiologia da

Harvard Medical School. Seu livro The Wisdom of the Body, publicado em 1932, ajudou na

difusão de suas idéias. 63

Joseph Barcroft (1872-1947): médico e fisiologista britânico, reconhecido por seus trabalhos

em oxigenação do sangue. 64

Bergson, La pensée et le mouvant, 229-37.

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um grande mestre pode nos dar a ilusão de haver conhecido o

modelo”.

Acrescenta ainda que, ao escrever Introdução ao Estudo da Medicina

Experimental, Claude Bernard teria,

“aportado a fórmula de seu método, como outrora Descartes,

às ciências abstratas da matéria. Nesse sentido, a obra é um pouco

para nós aquilo que foi, para os séculos XVII e XVIII, o Discurso do

Método”.65

Georges Canguilhem (1904-1995), em seu livro Études d’histoire et de

philosophie des sciences concernant les vivants et la vie,66 comenta:

“Se a Introdução de Claude Bernard é um livro pleno de senso

atual, ativo, que entusiasma, é porque ele é reativado o tempo todo.

Um livro não é lido apenas porque ele existe. e sim como depositário

de um sentido, e porque ele continua a ser lido [...] Ele traz uma

contribuição à história da ciência, pois contém um resumo da história

da medicina e da biologia, que Claude Bernard utilizou para melhor

fazer sensível aos olhos de todos, o seu projeto de médico

fisiologista.”

Na tradução para o inglês, de 1999, o livro de Claude Bernard ganha

uma nova introdução escrita por Stuart Wolf, que enfatiza a atitude e a postura

claramente didáticas da obra: “Primeiro ele oferece um modo de pensar.

65

René Descartes, Discurso do Método ou Discours de La méthode pour bien conduire as

raison, et chercherla verité dans les sciences,1637. 66

Canguilhem, Études d’Histoire et de Philosophie, 128.

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Depois enfatiza a importância da observação como estimulo ao

questionamento, um padrão que, meio século depois, guiaria as explorações

de Pavlov”67.

Os conceitos contidos em Introdução ao Estudo da Medicina

Experimental extrapolaram os limites propostos por seu próprio autor. A obra

serviu de modelo para um novo estilo literário para autores como Émile Zola

(1840-1902), que a utilizou para compor seu Roman expérimentale, em 1779.68

Leão Chestov (1866-1938), filósofo ucraniano, também usa as idéias de Claude

Bernard como exemplo na obra As Revelações da Morte.69

Tempo de plantar e de colher

Mas, o que teria acontecido para provocar essa descontinuidade, tanto

na maneira de pensar quanto na forma de expressar suas idéias?

De início, chama atenção a maior complexidade metodológica e

epistemológica da abordagem experimental. Ao escrever a Introdução ao

Estudo da Medicina Experimental, Claude Bernard dá um salto em qualidade,

usando uma abordagem mais didática, embasada em princípios mais bem

determinados. Afasta-se então do “primeiro Bernard”, o discípulo de Magendie,

67

Wolf, Prefacio para An Introduction to the Study of Experimental Medicine, viii. 68

O artigo “Romance expérimental” foi publicado em setembro de 1879 na revista russa O

Mensageiro da Europa e, em seguida, no diário Le Voltaire. Nele Zola apresenta um novo

desenvolvimento de sua doutrina. 69

Lev Isaákovich Shestov, conhecido nos países de língua latina como Leão ou Léon Chestov,

As Revelações da Morte, 59.

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para assumir e evidenciar seu próprio modo de pensar em fisiologia. Dali para

frente, sua obra irá incorporar esses novos conceitos, valorizados e trazidos à

luz através da reflexão e da experiência, obrigando Claude Bernard a rever

seus próprios escritos.70 Talvez o valor maior da obra seja fazer com que

Claude Bernard pudesse reconhecer o valor de seus próprios pensamentos e

não mais os manter incógnitos.

70

O que ele fez inúmeras vezes e pôde ser constatado ao visitar o Museu Claude Bernard e

examinar os muitos manuscritos publicados, com várias anotações e correções diferentes.

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31

CAPÍTULO II

PHILOSOPHIE, O LIVRO QUE FALA

“Quem olha para fora, sonha.

Quem olha para dentro, desperta”.

Carl G. Jung

“Eu admito a ignorância: ali está a minha filosofia.

Eu tenho a tranqüilidade da ignorância e a fé da ciência.”

Claude Bernard

A carreira de Claude Bernard, como um talentoso discípulo de

Magendie, já havia chegado a um ponto importante. O tão esperado posto de

professor no Collège de France lhe trouxe muitas oportunidades de debates e

até alguns adversários.71 Porém sua natureza era muito diferente daquela de

seu intempestivo mestre. Mais calado, mais introspectivo, mais metódico,

embora evitasse fazer críticas aos métodos utilizados por Magendie em seus

experimentos, a maneira como Bernard se coloca diante dos novos fatos,

determina uma clara transformação, que vai se configurando à medida em que

vai conseguindo um espaço próprio para colocar em prática suas reflexões.72

71

Dentre os franceses, Louis Filguier (1819 -1894) tentou demonstrar, contrariamente às idéias

de Bernard, que o fígado meramente concentrava o açúcar contido no sangue. 72

Pasteur, em 1866 diria sobre Bernard: “A distinção de sua pessoa, a beleza nobre de sua

fisionomia, impregnada de grande doçura, a bondade amável, cativam ao pr imeiro contato”.

Lettres Parisiennes.

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Como já foi mencionado, a oportunidade para uma revisão de conceitos,

surge no período entre 1865 e 1866, quando Bernard desenvolve uma “espécie

de enterite crônica”73, que o obriga a retirar-se de Paris, afastando-se, com

isso, do ensino e do laboratório, e passar um longo período de convalescença

em Saint Julien, sua cidade natal.

Nessa época, Claude Bernard retoma um antigo caderno seu (Figuras 6

e 7), uma coletânea de notas manuscritas extraídas da tradução francesa do

Manual de História da Filosofia de Wilhelm Gottlieb Tennemann (1761-1819),

um professor de história da filosofia na Universidade de Jena.

Figura 6. Folha de rosto de Philosophie, caderno de anotações de Claude Bernard

73

Bellesme, Notes et souvenirs sur Claude Bernard.

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33

Figura 7. Referências bibliográficas da obra utilizada por Bernard

A obra original, escrita em língua alemã por Tennemann em 1812,

recebeu sua primeira tradução para o francês em 1825, por Victor Cousin

(1792-1867).

Cousin, ocupava então a cadeira número 5 da Academia Francesa,

cargo que ocupou de 1830 a 1867. Foi professor da Universidade de Sorbonne,

em Paris, de 1815 a 1820. Afastado por suas idéias liberais, refugiou-se em

território germânico, dedicando-se a trabalhos em filosofia. Reintegrado às

suas funções docentes na monarquia de Luís Filipe, foi reitor da Universidade

de Paris e ministro da Instrução Pública em 1840. Suas conferências

produziam, segundo testemunho da época, discípulos mais ardentes e

motivados do que qualquer outro professor de filosofia.74 Até mesmo Sir

74

Linberg, Prefacio para Introduction to the History of Philosophy.

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34

William Hamilton (1788-1856), um dos seus adversários mais resolutos,75

descreve Cousin como

“Um pensador profundo e original, um escritor lúcido, um

estudioso igualmente familiarizado, na antiga e na aprendizagem

moderna, um filósofo superior a todos os preconceitos da época ou

país, partido ou profissão, e cujo elevado ecletismo, buscando a

verdade sob todas as formas de ver, consegue encontrar unidade,

mesmo através dos sistemas mais hostis." 76

O fato da obra de Tennemann ter chamado a atenção de Cousin,

poderia ser razão suficiente para que alguém como Bernard também quisesse

utilizá-la como fonte para rever alguns conceitos. O livro de Tennemann tornou-

se popular e recebeu também tradução à língua inglesa, além de ser

“recomendado para todos aqueles que querem estudar filosofia”, tanto em

obras americanas quanto inglesas.77

Como mencionado na Introdução desta dissertação, o manuscrito

Philosophie foi encontrado entre os pertences de Bernard em sua residência

em St Julien en Beaujolais, após a sua morte. Na atualidade, o original

pertence ao acervo do Museu Claude Bernard, nessa cidade. A primeira parte

do manuscrito contém, nas páginas pares, algumas transcrições feitas por

Bernard de trechos selecionados da obra de Tennemann. A correspondente

75

Hamilton iniciou sua carreira em 1829 e seu primeiro trabalho de destaque foi o ensaio

"Philosophy of the Unconditioned" - uma crítica ao Cours de philosophie de Victor Cousin - o

primeiro de uma série de artigos para o Edinburgh Review. 76

Veja o artigo sobre o impacto de suas conferências no Selection from the Edimburgh

Rewiew,1835, 310. 77

Ver Pycroft, Course of English Reading, 170.

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página esquerda traz as reflexões do próprio Bernard às anotações na página

contralateral, colocadas na forma de glosas. A presença das glosas no

documento demonstra claramente o trabalho de reflexão de seu autor (Figura

8).

Figura 8: Manuscrito Philosophie, Museu Claude Bernard. A seta indica a marcação das glosas do texto.

O manuscrito Philosophie, traz, nas primeiras páginas, a referência

“traduzido do alemão por Victor Cousin, 1882, Landrage, éditeur”, indicando

que a edição traduzida de 1882 foi a referência utilizada por Claude Bernard

em seus estudos. Uma confrontação feita por nós de algumas referências

contidas no manuscrito a páginas da referida edição, mostrou exatidão nas

anotações de Claude Bernard.

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A segunda parte do documento traz um trabalho similar, realizado, desta

vez, sobre o Curso de Filosofia Positiva de Auguste Comte, na edição de Paris,

1830, por Ruen frères (Figura 9).

Figura 9. Anotações sobre o curso de filosofia de Auguste Comte

O Curso de Filosofia Positiva, uma obra em 6 volumes, foi escrito entre

1830 e 1842. Bernard utilizou apenas o primeiro volume para fazer suas

observações. Conforme veremos, um ponto importante de reflexão em

Philosophie, é a “Lei dos Três Estados”, quando Bernard expõe idéias que

divergem do pensamento comteano.

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Apesar de sua importância como fonte para a compreensão, não só do

pensamento de Bernard, em geral, mas da fase de preparação de Introdução...

surpreendentemente, o documento Philosophie, permaneceu virtualmente

desconhecido. Só em 1937, foi publicada uma edição, com a transcrição das

notas de Claude Bernard, acompanhada dos principais trechos do curso de

filosofia de Tennemann. Apresentado por Jacques Chevalier (1882-1962),

professor da Faculdade de Letras de Grenoble e autor de livros de história da

filosofia, o livro recebeu um prefácio de Justin Godard (1871-1956), doutor em

direito, que foi deputado e senador da República por Rhône (distrito onde se

situa a cidade de Saint Julien) e prefeito de Lyon. No prefácio à obra, Godard

apresenta o manuscrito como uma das relíquias de Claude Bernard. O senador

também publicou, no Almanaque de Beaujolais de 1936, um artigo explicando o

lugar e a época onde foram escritas as “preciosas páginas de Claude

Bernard”.78

Mesmo assim, o documento foi muito pouco estudado. Georges

Canguilhem o menciona uma única vez,79 ao comentar a possível influência da

obra de Michel Eugene Chevreul (1786-1889) sobre o conceito de método, que

aparece em Introdução ao estudo da Medicina Experimental. Assim, o

documento parece ter sido mais utilizado como foco para desdobrar algumas

discussões em filosofia. Note-se, por exemplo, que esta obra fez parte do

acervo das bibliotecas de algumas universidades católicas, como a de Louvain,

78

Bernard, Philosophie, nota 1 do prefacio. 79

Canguilhem, Études d’histoire et de Philosophie, 166.

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na Bélgica e a Universidade de Sudbury, no Canadá, possivelmente pela

discussão do estatuto da religião, no recente contexto positivista. 80

As observações mais interessantes, em nossa opinião, são as feitas por

Joseph Dopp, num artigo de revisão, publicado em 1954:

“As considerações que o autor esboça são fortes e

interessantes. Vê-se Bernard se afastar do positivismo doutrinário de

Comte, que não é para ele senão uma metafísica imperfeita,

elaborada por um espírito que jamais praticou a pesquisa científica e

se contenta com visões muito gerais, baseadas em resultados obtidos

por outros. Sem dúvida, a experiência é a única fonte de nossos

conhecimentos; Bernard se esforça em dar a conhecer o que é a

experiência e insiste sobre a necessidade, para o homem, de apoiar-

se sobre convicções que não sejam diretamente controladas pela

experiência. A ciência é movida por um desejo incoercível de buscar

as causas primeiras e finais, mas o homem de ciência sabe que deve

passar por uma infinidade de causas próximas e não se deterá até

que chegue à causa primeira ...mas então será o fim do mundo.

Essas idéias não são naturalmente muito elaboradas; elas tem

muito mais o caráter de um testemunho”.81

Essa revisão, que merecerá ainda a nossa análise, reforça a tese de que

o caderno testemunha as reflexões de Claude Bernard no período de

preparação da Introdução ao Estudo da Medicina Experimental.

80

Bernard faz afirmações interessantes do ponto de vista teológico como: “o estado positivo

jamais destruirá o estado teológico, como pensa Comte” ou “a imortalidade da alma é uma

idéia experimental”, ou ainda ”a crença religiosa é indiscutível”, ou “somente pela caridade,

pelo cristianismo, os homens poderão suportar uns aos outros”. Estas idéias vindas de um

pensador em ciência experimental certamente causaram impacto nas universidades católicas. 81

Grifo nosso.

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Com efeito, em Philosophie, de acordo com a nossa análise, Bernard

procura validar suas idéias, como era seu hábito,82 através da leitura de

diversos autores e, naturalmente, encontra concordâncias e discordâncias em

relação a seu modo de pensar. Estas continuidades e descontinuidades serão,

então melhor elaboradas e mais amadurecidas e podem ser encontradas em

Introdução ao Estudo da Medicina Experimental. Portanto, as notas contidas

em Philosophie devem ser entendidas como sementes que permitem ao

estudioso moderno acompanhar o amadurecimento das idéias de Claude

Bernard.

Para ilustrar sua maneira de trabalhar, Bernard compara a elaboração

do método experimental em medicina com a escalada de uma montanha, uma

figura já utilizada pelo matemático Carl Gustav Jacob Jacobi (1804-1851):

“Para dominar este colosso (a ciência experimental)83 não

pode haver descanso ou paz até que se alcance o topo e se consiga

visualizar o trabalho em toda sua inteireza. Só então, quando se

alcançou o espírito, ou a idéia pretendida, é possível trabalhar

efetivamente para o seu acabamento em todos os seus detalhes.”84

Uma perspectiva global de Philosophie nos revela um Claude Bernard

preocupado em aprofundar o conceito de “medicina experimental”. Observa-se

uma intensa busca para alcançar algum consenso no oceano de opiniões

conflituosas que Bernard identifica na obra dos filósofos. E assim, em tempo,

82

Ver, na Introdução deste trabalho, a carta a Mme Raffalovich. 83 No caso da citação de Jacobi, o colosso a que se refere seria a Matemática. 84

Bernard, Philosophie, 24.

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ele virá a reconhecer que o método experimental não é algo novo, mas apenas

o fruto do “raciocínio auxiliado por uma submissão metódica de nossas idéias à

experiência dos fatos”85.

Essa síntese do método experimental, apresentada com aparente

simplicidade em Introdução ao Estudo da Medicina Experimental86, exigiu, na

verdade, como parece indicar o documento Philosophie, estudo e reflexão

profundos.

Nossa análise indica que, gradualmente, Bernard vai entendendo,

através do texto de Tennemann, que as influências do tempo, o interesse, a

cultura, tudo pode contribuir na forma de pensar, originando as teorias que

regem a ciência. Isso lhe permite concluir, em Introdução... que

“Essas idéias devem ser preservadas, pois elas evidenciam o

estado presente da ciência. Obviamente as idéias estão destinadas

a mudar. Talvez essa seja a diferença entre as ciências matemáticas

e as experimentais [...] as verdades em ciência experimental são

relativas”.87

Como Philosophie consiste, em essência, de anotações sem ilação, para

descrever seu conteúdo, optamos por agrupá-las de modo temático. Essa

abordagem oferece a vantagem de nos permitir identificar os tópicos que mais

preocupavam Bernard nessa fase de seu pensamento. Mostraremos também,

85

Bernard, Introduction..., 7. 86

Como daqui por diante a obra será citada com freqüência no texto, passaremos a denominá-

la simplesmente Introdução... 87

Ibid, 72.

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para ilustrar o caminho tomado pelas primeiras reflexões, alguns exemplos do

“pensamento acabado” na Introdução...

1. Estatuto epistemológico de “crença”, “raciocínio” e

“demonstração”

Bernard parece manter, durante todo o texto do Philosophie, a

proposta de delimitar quais são as idéias úteis para compor o estatuto

epistemológico da medicina experimental:

“Hoje em dia, não se discute mais se nossas idéias pertencem

ou não a esta ou aquela filosofia. Precisamos provar, demonstrar

experimentalmente88 a verdadeira filosofia, que não é senão a

fisiologia, porque são as funções do nosso corpo e dos nossos

órgãos que estão em jogo.” 89

Utilizando como ponto de partida um trecho da introdução geral

destinada a explicar o que se entende por história da filosofia, extraída do livro

de Tennemann e transcrito abaixo, Bernard inicia suas reflexões, fazendo as

primeiras delimitações importantes:

“Em virtude de sua razão, o homem tende ao conhecimento

das condições de qualidade, quantidade, relação e modalidade; além

disso, aspira a uma ciência de princípios últimos e de leis últimas da

natureza e da liberdade, bem como suas relações recíprocas. Então

ele não faz mais do que obedecer a uma necessidade cega, sem se

dar conta dos movimentos instintivos de sua razão, e sem saber qual

caminho a seguir, nem a distância que o separa de seu objeto.

88

Grifo do autor 89 Bernard, Philosophie, citação 22, 15.

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Insensivelmente, esse movimento se torna mais refletido e se rege

pelo progresso da razão, que aprende dia a dia a se conhecer melhor.

Este movimento refletido é o que denominamos de filosofia.”

Bernard inicia suas reflexões utilizando uma base comteana para

explicar que, diferentemente de Tenneman, entende haver um movimento da

razão numa certa ordem:

“A Filosofia é a ciência da razão, ou por assim dizer, a ciência do

raciocínio.

Todas as ciências respondem a esta sensação e à necessidade que

o homem tem de saber, de conhecer.

Podemos distinguir 3 graus no conhecimento humano.

Primeiro ele faz para ele uma representação das coisas nas quais

ele crê.

Em seguida, ele deseja saber por que ele crê. Então ele raciocina

sobre suas crenças.

Enfim, ele deseja uma comprovação de sua maneira de raciocinar, e

ele então demonstra, ele experimenta.

De onde se deriva, assim, os três ramos fundamentais do

conhecimento humano:

1º A ciência das crenças - Religião.

2º A ciência dos raciocínios - Filosofia.

3º A ciência das demonstrações, das provas - Ciência propriamente

dita.

Em todo o conhecimento humano e em todas as épocas, há uma

mistura, em maior ou menor proporção, destas três coisas: Religião,

Filosofia e Ciência. Porém essas três noções não devem destruir

uma à outra. Elas se depuram e se aperfeiçoam mutuamente.90 O

Homem terá sempre a necessidade de crer, de raciocinar e de

comprovar e concluir. Pela razão, ele adquire uma crença refletida;

90

É justamente neste ponto que Claude Bernard vai discordar do pensamento de Auguste

Comte, que afirma que os estados religioso e filosóficos serão banidos pelo positivismo, o

verdadeiro estado científico.

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pelas provas experimentais ele tem uma crença que assume um

caráter de certeza.

Tudo isso constitui a maneira de raciocinar da humanidade que é

igual em cada homem. Quando não conhecemos as coisas e

queremos conhecê-las lançamos sobre elas uma hipótese, uma

crença; supomos que as coisas devem ser de uma determinada

maneira. Se nos mantemos assim, temos uma crença religiosa para

a humanidade, e uma hipótese para o estudioso. Em seguida o

raciocínio intervém, ainda sem a experiência, e enfim a experiência.

Há ciências que podemos chamar de ciências do raciocínio, como as

matemáticas: embora elas sejam também experimentais, no sentido

a demonstração sempre pode ser feita.

A experiência é, portanto, a demonstração do princípio de partida,

seja pelo cálculo, seja pela experiência física.” 91

Nota-se, portanto, que apesar de usar uma base comtiana,

diferentemente de Comte, Bernard acrescenta que todos os três ramos são

essenciais ao intelecto humano e não se excluem ou ultrapassam um ao outro,

mas, ao contrário, se complementam mutuamente. Esse é apenas o primeiro

de muitos momentos onde Claude Bernard vai discordar do que entende ser o

positivismo de Comte.92

Assim, no Introdução..., vemos novamente o mesmo pensamento, agora

mais elaborado:

“O espírito humano, nos diversos períodos de sua evolução,

passou sucessivamente pelo sentimento, razão e experiência. No

91

Bernard, Philosophie, 3-4; grifos do autor. 92

Mais adiante serão discutidos outros pontos de divergência entre os autores.

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princípio, o sentimento, impondo-se à razão, cria as verdades da fé ou

teologia.

A razão ou filosofia, a próxima mestra da mente, faz vir à luz o

escolasticismo.

Por último, o experimento, o estudo dos fenômenos naturais,

ensina ao homem que as verdades do mundo exterior não se

encontram formuladas nem pelo sentimento, nem pela razão. Elas

são somente nossos guias indispensáveis, mas, para obter a verdade

das coisas é necessário descer à realidade objetiva das coisas onde

elas se encontram escondidas em forma de fenômenos.” 93

Essa abordagem pode ter ajudado Claude Bernard a expor suas idéias,

através de um modelo de interação onde religião, filosofia e ciência

(principalmente ciência experimental) fazem interfaces, que permitem ao nosso

autor ampliar suas discussões. Segundo Bernard, à medida que as idéias

filosóficas pudessem ser comprovadas experimentalmente, passariam a ser

consideradas fatos, e, por consequência, pertencentes à ciência propriamente

dita. Porém, novos fatos sempre acontecem para que o homem possa

novamente crer, raciocinar e experimentar.

Bernard afirma que é inerente ao espírito humano procurar pelas causas

primeiras:

“O homem começa sempre por querer encontrar a causa

primeira das coisas e, naturalmente isto o leva a um domínio

teológico. Mas, à medida que ele estuda, ele compreende que isso

não o leva a nada efetivo, e ele então concebe os fatos em

decorrência de uma natureza, ou uma força ou uma lei. Mas tudo

93

Bernard, Introduction..., 50.

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isso é um resultado necessário do conhecimento humano que

responde sempre a estas três coisas, crer raciocinar e

experimentar.” 94

Explica que, ao fazer ciência, o sujeito deve renunciar às suas

tendências naturais, pois a ciência não é natural ao espírito humano.

Aconselha então a nos atermos ao que é importante, no caso, a ciência. Nesse

sentido, as causas primeiras e últimas são úteis apenas para delimitar a área

de atuação das ciências, separando filosofia e ciência, ou ciência e religião:

“A ciência não é natural ao espírito do homem, no sentido de

que ele é obrigado a aprender a conhecer a essência para renunciar à

procura das causas primeiras e finais. Mas isso leva simplesmente à

separação entre a ciência e a religião, como houve a separação entre

a filosofia e a religião.” 95

Acrescenta ainda que, “Toda vez que o homem quiser retornar às

causas primeiras, terá que entrar no domínio teológico.” Que não é algo que se

possa evitar: “Eu não penso que se possa suprimir essa tendência da mente do

ser humano, pois isso para ele será sempre pertencente ao desconhecido.” 96

Embora admita que tudo tem, necessariamente, um começo e um final,

alerta que não podemos formar qualquer concepção sobre o início e o fim, só

podemos apreender a parte intermediária – isso é a ciência:

“Na verdade a ciência é como o espírito, mas a divisão de

trabalho é necessária para a execução. Portanto a especialidade não

94

Bernard, Philosophie, 25. 95

Ibid, 26. 96

Bernard coloca o fato como uma questão básica do ser humano, portanto, relativa ao

“coração” e não à mente.

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deve jamais estar na cabeça ou na porção especulativa; deve estar na

mão, ou na parte ativa.”97

A questão da delimitação entre a filosofia e a ciência é um dos pontos

importantes de reflexão do Philosophie e uma questão central no entendimento

do processo experimental: “A filosofia é a ciência da razão, do raciocínio. Ela

deve pesquisar a lei e a teoria do raciocínio”98. Ou, em outro momento:

“A Filosofia é a ciência do raciocínio. Quando raciocinamos

sobre seus conhecimentos, é a metafísica. Quando pensamos sobre

suas ações, é a moral. Quando raciocinamos sobre as belas artes é a

estética. Quando raciocinamos sobre a ciência é a física e outras

ciências que são divisões da física.”99

“Encontramos, desde o princípio dos tempos, todos os

sistemas filosóficos imagináveis. É praticamente impossível se ter

uma idéia nova [...]

O único a fazer é reverter essas idéias a uma forma que

represente os fatos, uma forma a posteriori, em vez da primitiva forma

a priori.

Este será o destino da filosofia, cujos pensamentos ou

sistemas a priori, que constituem o conhecimento humano, terão a

tendência a ser substituídos por sistemas a posteriori ou teorias.”100

Ao diferenciar filosofia e ciência, Bernard nos apresenta a idéia de que a

filosofia coloca formas que representam os fatos a priori, enquanto que a

ciência trabalha com fatos a posteriori. Afirma ele que a procura pela

causalidade primeira e final é inerente à natureza humana – e assim, jamais o

ser humano deixará de perguntar pelo “por que” e o “para que” das coisas.

97

Bernard, Philosophie, 33. Nesta frase, deixa bem claro o valor do trabalho experimental para

a comprovação das idéias, sem o qual, a ciência é mera especulação. 98

Ibid, citação 11, 7. 99

Ibid, citação 18, 12. 100

Ibid, citação 13, 8 (grifo do autor).

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Porém o conhecimento, entendido como acréscimo do saber, será sempre uma

coisa a posteriori: “Não há conhecimento racional a priori. O conhecimento é

sempre uma coisa a posteriori.” 101

Segundo a reflexão de Bernard, “não há idéias inatas”102, “O Homem

aprendeu tudo o que ele sabe. Não recebeu nenhum conhecimento inato e sim

a aptidão a conhecer”103.

Ainda a respeito do conhecimento e das formas de conhecer percebe-

se, em suas considerações finais sobre a filosofia de Comte e os sistemas

filosóficos em geral, algumas anotações extremamente indignadas. Neste caso,

Claude Bernard não parece negar sua formação magendiana, abandonando

em alguns momentos sua habitual tranqüilidade e mostrando-se até mesmo

irritado com a filosofia e os filósofos. Se pensarmos no panorama descrito no

primeiro capítulo, uma leitura possível será que: um dos grandes entraves à

compreensão do processo científico, talvez a maior dificuldade naquele

momento, era o excesso de teorias sem comprovação. Para Bernard, a filosofia

é o resultado do conhecimento e não o inverso.104 Nas anotações que se

seguem, podemos apreciar a intensidade de suas convicções:

“Quanto a mim, penso que devemos simplificar: a filosofia não

existe como uma ciência especial. Nada como os práticos, que são

verdadeiros filósofos. Um homem que encontra um fato, o mais

101

Ibid, citação 40, 21 (grifo do autor). 102

Ibid, citação 40, 22. 103

Ibid, citação 5, 5. 104

Ibid, citação 59, item 3, 35.

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simples fato a mais na pesquisa da verdade faz mais do que o maior

filósofo do mundo.”105

“Eu aprecio muito a filosofia e os filósofos: são homens de

grande inteligência. Mas eu não creio que a filosofia seja mesmo uma

ciência. É uma distração útil ao espírito, falar sobre filosofia após o

trabalho. Como é também uma distração fazer uma caminhada depois

de estar muitas horas no laboratório.”106

“Mas será um grande erro se ficarmos apenas nisso; não

conseguiremos nada, seremos estéreis. Devemos então adentrar uma

especialidade científica e buscas compreender ao mesmo tempo, as

outras ciências.”107

“Em uma palavra, só existe a ciência experimental e fora da

experiência não sabemos nada. A filosofia não explica nada e não

pode ensinar nada de novo por ela mesma, pois ela não experimenta

e não observa. Os filósofos nunca aprenderam nada, eles apenas

raciocinaram sobre o que os outros fizeram. Excetuando-se

Descartes, Leibniz, Newton, Galileu: eis aqui os verdadeiros filósofos

ativos; são grandes sábios. Mas Kant, Haegel, Schelling, etc. Tudo

isso é oco e eles, todos eles, não introduziram a mínima verdade

sobre a terra. Só existem os sábios que podem. Quanto a Bacon, é

um trompete e um gritador público: ele só repetiu as verdades

científicas que reinavam em sua época sobre Galileu, Torricelli, etc.

Mas, ele, por ele mesmo não fez nada, senão repetir todo tempo para

deixarmos a escolástica e adotarmos a experiência. Tudo o que

outros haviam dito, ele falou mais alto. Porém ele não deixou

nenhuma verdade para a ciência.”108

105

Ibid. 106

Ibdem, item 7, 37. 107

Ibid, item 5, 36. 108

Ibid, citação 59, item 8, 37.

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Bernard poderia ter se deixado levar pela indignação de suas reflexões,

mas, pelo resultado no Introdução..., vemos expressa sua maturidade, quando

então, afirma não se furtar ao uso de bases filosóficas.

Esses pensamentos, que expressam a profunda indignação contra o que

considera ser discurso vazio, após as primeiras reflexões solitárias em

Philosophie, enquanto observações feitas para si próprio, aparecem no

Introdução..., elaborados de uma maneira mais madura, racional e didática,

mostrando que houve um tempo certo para colher os frutos de sua formação.

Bernard já era, então, um conhecido homem de ciência e poderia ter usado o

peso de sua autoridade. Porém, como resultado de suas reflexões, expresso

em Introdução, opta por um caminho onde reconhece, clara e respeitosamente,

os limites e a utilidade da filosofia como fonte de novas idéias, inclusive e

principalmente para a ciência experimental. Afinal,

“O homem de ciência que quer encontrar a verdade, precisa

manter sua mente livre e calma, e se for possível, nunca ter seus

olhos turvados pelas paixões humanas.” 109

“A filosofia, agitando sem cessar a massa infindável de

questões não resolvidas,110 estimula e entretém movimento salutar

da ciência. Eu não admito a filosofia impondo limites à ciência, como

também a ciência que pretende suprimir as verdades filosóficas que

estão sob seu próprio domínio.”111

109

Bernard, Introduction..., 69 (grifo nosso). 110

E, de fato, pela violência do discurso no Philosophie, Bernard talvez estivesse se referindo a

ele mesmo. 111

Bernard, Introduction ..., 390.

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“A filosofia, que eu considero como um excelente exercício do

espírito, traz consigo, infelizmente, tendências sistemáticas e

escolásticas que a tornam desvantajosas para o estudioso.” 112

“Como experimentador, eu evito os sistemas filosóficos,

embora respeitando o espírito filosófico, como inspiração eterna da

razão humana em direção ao conhecimento do desconhecido.”113

2. Teoria e experiência

Sobre a teoria, Bernard inicia refletindo:

“Isto é uma verdade: o homem tem sempre necessidade de uma teoria e

esta teoria reflete sempre o estado de seus conhecimentos”114.

Por diversas vezes, nosso autor ia salientar o valor da teoria, como no

trecho do manuscrito abaixo (Fig. 9)

Figura 9. Citação do manuscrito Philosophie “Em effet une science quelconque se formule em une théorie”

“Com efeito, qualquer ciência se formula em uma teoria.”

De acordo com Bernard – aqui seguindo Tennemann – todo estudo com

vistas à ciência requer teorias. Isso é válido para disciplinas como a história,

que requer a ordenação dos eventos, um encadeamento racional e a

112

Ibid, 386. 113

Ibid, 387. 114

Bernard, Philosophie, citação 46, 27.

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postulação de relações de causa e efeito, sem os quais seria mero relato de

acontecimentos ou memórias.

“A ciência da história deve fornecer a teoria dos fatos

históricos que ela relata. Esta teoria é a causa de todas as ações

dos personagens e vai reger os acontecimentos. Apenas a

demonstração experimental não é fácil de fazer”.115

Quanto ao estatuto da teoria nas ciências da matéria bruta e dos seres

vivos, o nosso autor indica:

“A história natural nos fornece não só a descrição, mas também

a teoria dos animais, vegetais e minerais. A física e a química, além

das propriedades dos corpos, e também a teoria dessas

propriedades. Esta teoria é quem mostra a causa que anima a matéria

e que explica seus fenômenos.”116

Afirma, mais adiante que “só graças a uma teoria podemos progredir”117.

As teorias, que representam o conjunto das idéias científicas, são

indispensáveis como demonstração do estado da ciência, servindo de apoio

para novas investigações. Elas têm um caráter mutável: podem e devem ser

abandonadas sempre que não possam mais representar a realidade. Segundo

Bernard: “Podemos fazer grandes progressos com teorias falsas”118 (Figura 10).

115

Ibid. 116

Ibid, citação 2, 4. 117

Ibid, citação 19,12. 118

Ibid, citação contida num pequeno pedaço de papel, inserido na p.13.

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Figura 10. Anotação num pedaço de papel. “On peux faire des grands progrès avec une théorie fausse.”

Uma explicação mais elaborada é oferecida em Introdução...:

“Sempre que fazemos uma teoria geral para a ciência, a

única coisa que podemos ter certeza é de que ela é falsa, em termos

absolutos. Ela será uma verdade parcial ou provisória, necessária ao

avanço das investigações. Ela representa apenas o estado de nosso

conhecimento naquele momento e pode ser modificada.” 119

“Uma teoria é uma idéia científica controlada pela

experiência.” 120

Mais uma vez voltando ao Philosophie, encontramos Bernard

comentando sua leitura sobre Leibniz :

“Leibniz pensa que a filosofia deve ser tratada racionalmente,

pela demonstração, como a matemática. O racionalismo não existe,

tudo é experimental. A razão ou o raciocínio são a fonte de todos os

nossos erros. O sentimento é um guia mais seguro.”121

119

Bernard, Introduction..., 47. 120

Ibid. 121

Bernard, Philosophie, citação 33, 19.

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“Aqui está o que eu penso:

1º A única fonte de nosso conhecimento é a experiência. Na

matemática, a demonstração, a prova é sempre redutível a uma

experiência.”122 (Figura 11)

Figura 11. « 1º La Source unique de notre connaissance est l’expérience – Dans les mathématiques, la

démonstration, la preuve est toujours réductible à une expérience. »

“Não há racionalismo, tudo é experimental, até os teoremas.”123

“Na matemática, o sentimento de evidência é sempre o ponto

de partida, mas podemos fazer a experiência, se quisermos.”124

Bernard considera que, na ciência experimental,o ponto de

partida é a coisa mais difícil de encontrar.

“Entre todas as coisas, a mais difícil de encontrar é o ponto de

partida, porque depois, a lógica faz o resto.” 125

Bernard ressalta que o início de tudo é uma hipótese, um

sentimento, uma sensação que temos de que algo acontece de

determinada maneira, para depois seguir adiante, até a

experiência.Afirma que:

“A razão sozinha é a fonte de todos nossos erros. O sentimento é um

guia mais certo.”126

O sentimento é o ponto de partida, mas devemos avançar, sempre

que possível.

122

Ibid, citação 40, 22 ( ver a citação na íntegra no final do capítulo). 123

Ibid, citação 33, 19. 124

Ibid, citação 35, 19. 125 Ibid, citação 39, 20. 126

Ibid, citação 34, 19.

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“Devemos ser inimigos da hipótese como conclusão, mas devemos

começar por lá, e concluir experimentalmente quando possível.”

Na sua defesa do sentimento, como ponto de partida, chega a citar

Jacobi, que baseia todo conhecimento filosófico em um sentimento, uma

crença.127 No texto de Philosophie não há muitas explicações a respeito128,

porém em Introdução..., essas idéias aparecem mais elaboradas:

“A idéia experimental é resultado de uma espécie de

pressentimento da mente, que pensa que as coisas acontecem de

uma determinada maneira. Nessa conexão podemos dizer que há em

nossa mente uma intuição ou sentimento sobre as leis da natureza,

mas nós não conhecemos a forma. Podemos aprender (ter certeza)

somente através da experimentação.” 129

3. Ultrapassando antinomias: o conceito de “relação”

Novamente, o ponto de partida , no texto de Tennemann, é a frase: “A

filosofia é a obra da razão, aplicada à necessidade de conhecer. Todo

127

Friedrich Heinrich Jacobi (1743-1819). Seus escritos são caracterizados por fantasia poética

e religiosa, mais do que por necessidade lógica. Sustentava que o entendimento poderia

apenas unir e desunir fatos, sem explicá-los, e que o conhecimento deduzido desta forma não

teria valor porque estaria relacionado a uma experiência passada. Todo conhecimento

demonstrável seria, para ele, relativo e condicionado, não atingindo as causas finais, às quais

se teria acesso através da fé. Tenneman, Manual of the History of Philosophy, 454, afirma que

a obra de Jacobi foi mal compreendida, mas tem seus melhores momentos ao afirmar a

inexistência de provas sem demonstração e ao afirmar que “o fundamento de todo

conhecimento filosófico é a crença – uma espécie de instinto ou pressentimento da razão”. 128 No Lettres a MMe R., Bernard se reporta a suas leituras sobre Pascal para explicar esse

fato: “as coisas que não compreendemos bem e que não podemos definir são precisamente aquelas sobre as quais estamos mais seguros, e é baseado nelas que estabelecemos a

certeza de todas as outras”., 44. 129

Bernard, Introduction..., 34.

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55

conhecimento tem dois termos, o sujeito e o objeto”130. Que suscita, em

Bernard, a reflexão:

“O dualismo é a concepção mais natural ao espírito humano.

Quando nomeamos sujeito, objeto; idealismo, realismo;

espiritualismo, materialismo, etc., é sempre a mesma coisa.

Enquanto o espírito do homem tem, igualmente, o sentimento de

unidade, este que faz com que os filósofos tenham sempre vontade

de suprimir um dos termos para fazer dominar o outro. De onde

então nascem os espiritualistas e os materialistas puros.” 131

Para Bernard, porém, a pedra de toque de toda filosofia e de todo

sistema de conhecimento é a incerteza quanto ao ponto de partida. O ponto de

partida é sempre o mais difícil, porque depois de achado, a lógica faz o resto.

Considerando, então, “a incerteza como ponto de partida” para a ciência e

admitindo que só haveria, o objeto externo e a razão, para Bernard, há três

tipos de filósofos (não cientistas): aqueles que afirmam que a certeza está na

razão – a saber, os racionalistas (tradição platônica); aqueles que afirmam que

a certeza está nas coisas exteriores – os empiristas (tradição aristotélica); e

aqueles que acreditam que não está em nenhum dos dois – os céticos:

“O que é e será sempre a pedra fundamental para todos os

filósofos e todos os sistemas de conhecimento, é a incerteza do

ponto de partida. Há somente duas coisas, o objeto exterior e a

razão. Encontraremos sempre pessoas que acreditam que a certeza

está na razão (racionalistas: Platão). Outros que a certeza está no

130

Bernard, Philosophie, 7. 131

Ibid, citação 12, 7.

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objeto exterior (empiristas: Aristóteles). E enfim há outro que não

tem certeza nem de um lado, nem de outro. São os céticos.

Estes três pontos de vista podem ser discutidos igualmente

em todas as ciências. Podemos dizer que a realidade das coisas

está na força (dinamistas espiritualistas). Podemos dizer que ela

está na matéria (materialistas). Podemos dizer que não há nenhuma

certeza absoluta.”132

O motivo aduzido por Bernard para tanto é taxativo: o único ponto

relevante é a relação, “Ambas as concepções são falsas. A única coisa que

existe é a relação que une os dois termos.”133

Assim, de acordo com ele, não existem nem matéria nem força per se: o

único que existe é a relação da matéria com o fenômeno, vale dizer, a matéria

como condição de existência do fenômeno. E isso lhe permite colocar uma

afirmação epistemológica fundamental, à própria base do projeto descrito em

Introdução à Medicina Experimental, o objeto da ciência é o determinismo

da relação da matéria ao fenômeno:

“A ciência não é senão o determinismo da relação da matéria

ao fenômeno, ou seja, a condição de existência do fenômeno. A

idéia de força não é, portanto mais que uma aparência, uma

personificação do fenômeno.”134

Para Claude Bernard o absoluto se encontra na relação, que tem o

estatuto de axioma ou de “sensação de evidência”:

132

Ibid, citação 17, 11-2. 133

Ibid, 7. 134

Ibid, citação 12, 8.

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“É na relação que se encontra o absoluto. Ali está o ponto de

partida filosófico e científico. Ou esta relação pode ser expressa por

um nome, e teremos então uma certeza. O absoluto dessa relação

se torna um axioma, ou uma sensação de evidência à qual

poderemos sempre nos reportar.” 135

E assim ele elabora os conceitos em Introdução... :

“Quando se trata de medicina e de ciências fisiológicas, o que

importa é determinar bem sobre qual ponto colocamos a dúvida, a fim

de distinguir ceticismo de dúvida científica. O cético é aquele que não

acredita na ciência e acredita nele mesmo;136 ele crê demais em si e,

para ousar negar a ciência, afirma que esta não está submissa a leis

fixas e determinadas. Aquele que duvida é o verdadeiro sábio; ele não

duvida senão de si mesmo e de suas interpretações, mas crê na

ciência e admite haver nas ciências experimentais um critério ou

princípio científico absoluto. Este princípio é o determinismo dos

fenômenos, que é o mesmo nos corpos vivos ou na matéria bruta.”

Já em seu Philosophie, Claude Bernard critica Kant por ter colocado

como ponto de partida a razão pura – referida ao universal e necessário (o

empírico se opõe como não universal nem necessário) – i.e., conhecimento a

priori:

“Dentre todas as coisas , o mais difícil de se achar o ponto de

partida. A filosofia será rigorosa sempre que tiver um ponto de partida

absoluto. Kant coloca esse ponto de partida na razão pura, separando

a crítica da razão de tudo mais, sentimento religioso ou outro,

135

Ibid, 12. 136

Estaria ele se referindo ao ceticismo terapêutico, peculiar à “Escola de Paris” e a seu

mestre Magendie? Vide Erwin Ackerknecht, La médecine Hospitalière, 102-104.

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traçando o domínio exclusivo da filosofia na razão pura. Um

conhecimento é racional quando a razão o apreende, e o concebe

como necessário ou universal. Ele é empírico quando não tem essa

característica (Os conhecimentos racionais são ainda chamados de

conhecimentos a priori, mas não porque sejam inatos, mas porque

podem servir de ponto de partida para a dedução).”137

Bernard é enfático: não há conhecimento racional ou a priori, o

conhecimento é sempre a posteriori. Tampouco há conhecimento necessário;

o universal e necessário é apenas uma coisa incerta e, em última instância,

vazia:

“Não há conhecimento racional a priori. O conhecimento é

sempre qualquer coisa a posteriori. Mas haverá o conhecimento

necessário? Chamamos de conhecimento necessário aquele que

nossa razão não pode conceber de outra maneira (axioma).”138

Em síntese, a única fonte de nosso conhecimento é a experiência. O

conhecimento do objeto é inconsciente e empírico – referido à matéria -, mas o

conhecimento da relação é consciente e é o único conhecimento racional e

absoluto:

“1º A única fonte de nosso conhecimento é a experiência.

[inclusive] Na matemática, a demonstração, a prova é sempre

redutível a uma experiência

2º Todo conhecimento objetivo é inconsciente e, portanto,

empírico. O conhecimento da relação é consciente e o único racional

e absoluto. A matemática nos dá apenas o conhecimento da relação e

137

Bernard, Philosophie, citação 39, 20. 138

Ibid, citação 40, 21.

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é, por causa disso, considerada racional. O mesmo se passa com a

mecânica e a física racionais.

O conhecimento experimental é empírico porque se refere à

matéria, que sendo desconhecida para nós, não podemos jamais

supor que seja absolutamente simples. Mas se fazemos essa

suposição, o conhecimento torna-se imediatamente racional e

necessário; ou, se ainda supusermos que as condições são

constantes (não mudam): o conhecimento então se torna racional e

necessário ao invés de empírico, como era antes de ter uma base

absoluta.” 139

Desta maneira vemos Bernard articulando e delimitando suas reflexões

através do estudo da filosofia. Afirmando que conhecemos o mundo através da

crença, do raciocínio e da demonstração, todos eles métodos considerados

válidos para ampliar a compreensão. E aprendendo a controlar nosso impulso

natural de entender a origem e a finalidade de tudo, colocando o foco sobre o

intermediário, o lugar da ciência.

Ao agregar um embasamento teórico à técnica e às observações

experimentais, Bernard consegue, então, transformar o empirismo magendiano

em metodologia experimental. O processo se estabelece no sentido de não

passar simplesmente pela experiência, mas sim pelo que confere à experiência

um caráter epistemológico, que Bernard postula ser o determinismo dos

fenômenos, que, por sua vez, só pode ser abordado através da experiência.

A resultante dessas reflexões, a medicina experimental, – produto de

uma fase já madura de seu pensamento – transforma-se, então, em uma

139

Ibid,citação 40, 22.

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ciência que não está “atrelada a nenhum sistema” e utiliza essa liberdade para

aproveitar de toda uma vasta gama de saberes e pensares, aqueles mais úteis

à sua proposta:

“A medicina experimental, como todas as ciências

experimentais, não deve ir além dos fenômenos; não precisa se

apoiar em nenhum sistema; ela não é materialista nem vitalista, nem

animista, nem organicista, ela é simplesmente a ciência em busca

das causas próximas dos fenômenos da vida nos estados de saúde

e de doença. Ela não precisa se complicar com essas idéias que não

conseguirão jamais exprimir a verdade.”140

“Se estivermos bem imbuídos dos princípios do método

experimental, não haverá nada a temer; quando uma idéia é

pertinente, continuaremos a desenvolvê-la; quando ela é errônea, e

experiência está lá para retificá-la.”141

Bernard e Comte

As reflexões sobre o trabalho de Auguste Comte têm um lugar especial

em Philosophie; o trabalho sobre o texto desse proeminente autor suscita

grande parte das reflexões contidas no manuscrito estudado.

140

Bernard, Introduction..., 384. 141

Ibid, 70.

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Optamos também por transcrevê-las, já que a discordância ou a medida

efetiva da convergência dos pontos de vista entre os dois autores não é um

fato muito conhecido, nem muito estudado.

As anotações de Claude Bernard sobre as ideias de Comte

1ª. Lei fundamental da filosofia positivista – “Eu acredito ter descoberto uma lei

evolutiva fundamental do conhecimento humano”, disse A. Comte, p.3. “Esta lei

consiste em que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de

nossos conhecimentos transcorre sucessivamente por três estados teóricos

distintos: o estado teológico ou fictício, o estado metafísico ou abstrato, o

estado científico ou positivista.... Decorrendo três tipos de filosofias (44).”

(44). Existe alguma coisa de verdadeiro nesta ideia de A. Comte. Mas isto, eu

acredito que possa ser concebido como exposto a seguir.

O homem começa sempre querendo encontrar a causa primeira das

coisas e, naturalmente, isto o leva imediatamente ao domínio da teologia. Mas

à medida que o homem estuda, ele compreende que isto não o conduz a nada

de efetivo, e ele chega a conceber os fatos ao reduzi-los a uma natureza, a

uma força ou a uma lei. Mas tudo isto é o resultado necessário do

conhecimento humano que responde a estas três coisas, crer, refletir,

experimentar. – A ciência não é natural ao espírito humano, no sentido que ele

se vê obrigado a aprender a constranger sua essência para renunciar à busca

das causas primeiras ou finais. Mas isto leva simplesmente à separação da

ciência e da religião, da mesma forma como ocorreu no transcorrer dos tempos

a separação entre a filosofia e a religião. – Mas o estado positivo não destruirá

o estado teológico, como pensa Comte: eles estarão separados, e isto é tudo.

Mas todas as vezes que quisermos remontar às causas primeiras, temos que

entrar no estado teológico. Portanto eu não acho que se possa suprimir esta

tendência da mente humana, por isto apenas de que haverá sempre o

desconhecido. Nós nunca conduziremos a humanidade a renunciar destas

ideias que são as que levam ao fundo. Não é a mente, é o coração, quer dizer

o vago, o desconhecido que conduzem o mundo.

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Veja Sentimento e razão pura.142 Para o estudioso, a ciência desenvolve a mente e mata o coração, da mesma maneira que ela sufoca o sentido teológico ao se fazer renunciar às causas primeiras e desenvolve por isso mesmo o sentido positivista. Hoje em dia estamos no estado teológico para as faculdades cerebrais.˜

*** Filosofia teológica: reduz tudo a uma ação providencial única (Deus). Filosofia

metafísica: reduz tudo a uma só entidade geral (Natureza). Filosofia positiva:

reduz tudo a um só fato geral (gravitação universal).

(45) Isto não é nem ao menos metafísico, pois o próprio fato é uma abstração.

***

Esta lei fundamental do espírito humano, acrescenta A. Comte, é fundada

sobre a natureza, no sentido em que ela resulta da necessidade, em todas as

épocas, de uma teoria qualquer para fazer a ligação dos fatos e se entregar às

observações subsequentes.

(46) Isto é verdade; o homem tem sempre a necessidade de uma teoria e esta

teoria reflete sempre o estado de seus conhecimentos.

***

O estado teológico oferece grande atração ao homem, exalta sua importância

sobre a terra e é um estímulo para impulsioná-lo em direção à ciência (47). A

filosofia positiva destruirá essas ideias quiméricas (48).

(47) Esta condição foi sentida por Kepler, Bertholet ... Na nota de Bertrand,

Kepler fazia hipóteses sobre a bondade de Deus e a providência para

pesquisar as verdades astronômicas.

(48). De fato, o estado positivista da forma compreendida por Comte, será o

reino do racionalismo puro, o reino da mente e a morte do coração. Isso não é

possível. Os homens feitos desta forma pela ciência são verdadeiros monstros

morais. Eles atrofiaram o coração às custas da mente.

***

2º Natureza da filosofia positivista. – A característica fundamental da filosofia

positivista é a de observar todos os fenômenos como sujeitos às leis naturais

invariáveis, nas quais a descoberta precisa e a redução ao menor número

possível são o objetivo de todos nossos esforços ao considerar como

142

Aparentemente, Bernard tencionava redigir, ou já tinha escrito, um texto intitulado “Sentimento e Razão Pura”, daí a reiterada indicação “Veja Sentimento e razão pura”.

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absolutamente inacessíveis e vazios de sentido para nós a pesquisa do que

denominamos como causas, sejam primeiras ou finais (49).

(49). O homem é naturalmente levado a buscar as causas primeiras e finais.

Somente pela educação científica é que se chega ao ponto de vista positivista

expresso por Comte e que é exatamente o mesmo de Newton. Mas o fato de

excluir da ciência a pesquisa das causas primárias e finais, não significa que

devemos excluir o sentimento e a natureza humana. É o lado sentimental que é

o lado fundamental do homem: ele não será destruído jamais, felizmente. É o

que denominamos de fé, coração.

Tudo deve ter necessariamente um início e um fim. Portanto, nós não podemos

conceber nem o início nem o final. Nós só podemos apreender o meio das

coisas, aí se encontra o domínio científico. (Postulado de Chambéry.) Mas isto

não impede que o início e o final nos atormentem com frequência e que

principalmente nos atormentem. É por isso que Lamennais disse no início das

Palavras de um crente: Jovem, de onde você vem? Jovem, onde você vai?

A religião vive sobre estes sentimentos eternos da humanidade, que nós

reencontramos sempre, sem que se enfraqueça, desde a antiguidade até

nossos dias. A religião de Comte é também mística e mais absurda que as

outras.

***

Tudo é então constituído em filosofia positivista, exceto a física social ou

sociologia. Portanto, o fundamento da física social é o objetivo capital da

filosofia positivista. Então todas as revoluções terão terminado. Os governos

serão perfeitos (50).

(50). Que ilusão estranha, como se os sentimentos do homem seguissem sua

ciência! Nós observamos homens muito sábios, injustos e ambiciosos; homens

muito ignorantes, justos e benevolentes.

¹Eu considero que Auguste Comte tem razão quando se refere à ciência

pura. Mas a grande objeção que eu faço a ele, é que ele imagina que vai

suprimir o lado moral² e sentimental do ser humano. Seria necessário que a

ciência excluísse o sentimento e a liberdade humana; jamais tal coisa ocorrerá

na prática. Isto remete aos químicos que querem fazer uma flor ou um animal

por síntese. O que seria justo³ dentro de certos limites, se torna falso por

excesso e então tudo se torna absurdo.

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1. <Minha grande objeção a Auguste Comte>

2. < religioso>

3. <como ciência>

Tudo isso se encontra desenvolvido no meu Sentimento e razão pura.

***

Todos os trabalhos intelectuais começaram juntos, sobre todo o conhecimento.

Mas nem todos avançaram com a mesma rapidez e houve mais tarde uma

separação e divisão do trabalho intelectual analítico, empurrando para mais e

mais longe. Mas esta divisão em especialidades, que é eminentemente útil

para a cultura de cada ciência em particular é eminentemente nociva ao

espírito de conjunto. Há, portanto, um obstáculo para a filosofia positiva que

deve ser enciclopédica e abranger as generalidades da ciência. Para sair

dessa dificuldade, eu proponho que se faça uma nova especialidade das

generalidades científicas. (51) Esta será então a filosofia positiva.

(51) A necessidade de generalização para todas as concepções filosóficas é

exatamente como observa Comte, mas a maneira que ele propõe fazer andar

juntas as duas coisas é absurda. De fato os homens que fazem das

generalidades sua especialidade são os seres mais perniciosos a toda

verdadeira ciência. Comte critica os filósofos por nada saberem e quer fazer

com que os homens sejam semelhantes. Para ser um generalista, é preciso ser

especial em uma ciência: como um homem que quer chefiar bem um trabalho

qualquer deve ter sido um trabalhador ou já ter tido este trabalho. Por outro

lado, o verdadeiro estudioso que faz pesquisas especiais, e que , ao mesmo

tempo tem o senso de generalidade que a ciência deve manter é o único capaz

de fazer avançar a ciência nas generalidades. Aprofundando um ponto mais e

mais, nos aproximamos mais da essência desse mesmo fenômeno e a

essência de um fenômeno sendo conhecida, por menor que seja, dará a

conhecer imediatamente essência de tudo. Desta forma, só a especialidade

bem compreendida pode conduzir à generalidade. Esta experiência de detalhe,

a mais ínfima, fará mais avançar a generalidade do que as considerações

gerais mais importantes. A ideia de Comte de considerar a filosofia positiva

como generalidade científica é ruim. Devemos certamente ir até os detalhes. O

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estudioso é como um homem que quisesse ver o que há no alto de uma torre.

Ele faria bem em treinar salto e dizer que acabará saltando alto o suficiente,

mas ele jamais conseguirá. Será após ter se fatigado de tanto exercício que ele

irá se aproximar da torre e colocar estacas ou degraus para subir pouco a

pouco. Mas ele terá que verificar, a cada passo, se os seus degraus são

sólidos. Pode ocorrer, na divisão do trabalho, (que seja ruim filosoficamente)

um homem que coloque uma estaca, um que a enterre no chão, etc. Esta

especialização é útil para as mãos, mas ela será daninha para o espírito e

nunca a especialidade deve estar na cabeça. O espírito não deve perder de

vista a noção do conjunto da torre, que se regula, de tempos em tempos, pela

visão de seu conjunto a fim de ver se os trabalhos especiais executados são

bem dirigidos de acordo com o objetivo a atingir, que é chegar ao alto da torre.

***

O espírito não pode se observar, dizem, assim como o olho não pode se

observar funcionar ... Se podemos observar alguma coisa sobre nós mesmos,

a condição que se impõe é que o órgão que observa e o que é observado

sejam diferentes.(52)

(52) Há alguma verdade nisso. O órgão que tem a consciência dos outros é

inconsciente dele mesmo. (minha experiência). Se um órgão tivesse

consciência dele mesmo, a matéria teria também a mesma consciência ela

poderia se colocar no estado que ela quisesse. Ninguém tem esse poder no

mundo, nem mesmo o homem. Os membros só caminham porque eles são

convidados por alguma coisa que lhes é exterior. O cérebro se agita apenas

porque é excitado. É aí que se encontra a dificuldade da iniciativa voluntária (é

uma inação). Na verdade, não há movimentos voluntários. Nós queremos,

então uma função acontece.

***

A segunda consequência que terá a filosofia positiva será presidir a reforma

geral de nosso ensino, perseguir tudo que há de teológico e de metafísico na

instrução, para substituir pelas generalidades científicas.(53)

(53) O erro de Comte nesse assunto é o de crer que há nisso alguma coisa de

positivo. Ele crê banir a metafísica ao admitir as generalidades filosóficas que

ele chama de positivas: nada disso. Todas as teorias científicas são abstrações

metafísicas. Os fatos são apenas abstrações. (Chevreul)

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66

***

A terceira propriedade fundamental da filosofia positiva será contribuir também

para o progresso das diversas ciências positivas. Ela fará, ao considerar todas

as ciências com que elas se sirvam mutuamente para aclarar problemas que

não seriam solucionados se elas fossem consideradas isoladamente. Isto

porque a ciência é uma só.(54)

(54) Com efeito a ciência é como o espírito, mas a divisão do trabalho é

necessária à execução. Portanto a especialidade não pode jamais estar na

cabeça ou na porção especulativa; ela deve estar na mão, ou na parte ativa.

***

Nosso mal, diz Comte, vem da profunda divergência que existe hoje entre os

espíritos, relativa a todas as máximas fundamentais do estado social.(55) O

mal vem da existência simultânea das três ordens de filosofia: Teológica,

metafísica e positiva.

(55) Esta é uma verdade de La Palisse. Está claro que devemos procurar estar

todos de acordo, e é o que todos procuram desde o começo do mundo. Como

jamais chegaremos a isso, fazemos leis que expressem o que diz a maioria, e

sua força está na sanção pelos outros. É claro que podemos estar de acordo

quanto a coisas simples, como os três ângulos de um triângulo são iguais a

dois ângulos retos. Mas não estaremos jamais de acordo sobre coisas

complexas, ou quando estivermos de acordo pela evidência, isto será o fim do

mundo.

***

Não há portanto nada senão constituir a física social e as crises revolucionárias

de todos os povos terminarão.(56)

(56) Tudo isso está misturado. Não se pode chegar à ciência social pela física

ou pela química. Somente as ciências e seu desenvolvimento terão influência

sobre a marcha e o desenvolvimento da civilização, mas os princípios dessa

civilização não serão modificados.

***

Considerando que a filosofia deve abarcar todo o conhecimento humano, diz

Comte, eu desejaria que soubessem que eu não pretendo que eles se

reportem todos a um único princípio em suas explicações. Eu considero essas

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explicações universais de todos os fenômenos como quiméricas, se não para

hoje, ao menos para esse momento (57).

(57) Isto é verdade. ***

Fim da primeira lição de filosofia positiva (58).

(58) Alma – Espírito

Sentimento – Razão

Coração – Cabeça

***

Reflexões sobre a primeira lição de filosofia positiva (59).

(59) [1] A. Comte cai no mesmo inconveniente que todos os filósofos, ou seja,

ao negar ao nome da ciência a filosofia, ele mesmo faz dela uma filosofia.

[2] O que é um filósofo positivista? É um homem que faz uma filosofia com

todas as generalidades das ciências, quer dizer, que raciocina sobre aquilo que

fizeram os estudiosos para se apropriar disso. É um homem, como diz Comte,

que faz sua especialidade das generalidades. Ou ele não é um espírito pior do

que qualquer estudante brilhante que tenha havido no passado, sob o ponto de

vista da ciência. Essa raça de homens nasceu particularmente durante a

escolástica da Idade Média e são o que restou dela. São homens que têm por

hábito raciocinar sobre tudo em geral e sobre nada em particular, porque eles

não sabem nada de especial. Este tipo de homem não existia entre os gregos.

Arquimedes, Tales e Platão eram todos sábios. Mas o filósofo que não é um

sábio é estéril e orgulhoso: ele quer se apropriar de todo o progresso do

espírito humano e se mostra provocador, é ele que faz vir à luz todas as

descobertas, pelas ideias que emite a cada ocasião. A filosofia é, portanto, o

resultado dos conhecimentos e não os conhecimentos o resultado da filosofia.

[3] Quanto a mim, penso que se deve simplificar: A filosofia não existe como

ciência especial. Existe a filosofia em tudo e é como a prosa de Monsieur

Jordain, todo mundo faz sem saber. Feuerbach diz que o caráter particular de

um filósofo é aquele de não professar a filosofia. Não há senão práticos que

sejam verdadeiros filósofos. Um homem que encontra o fato mais simples faz

mais pela busca da verdade do que o maior filósofo do mundo.

[4] Eu considero que os filósofos propriamente ditos não são mais que ginastas

intelectuais e que o ensino da filosofia não pode ser mais que pura ginástica

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intelectual. Isto não é ruim para o espírito e é melhor que a bifurcação que

esgota as jovens inteligências sobre o pretexto de lhes desenvolver. A filosofia

desenvolve melhor o espírito oco, ela não atrapalha o espírito, mas o faz agir. A

filosofia deve dirigir o espírito, eliminando suas más tendências, seja em termos

morais ou intelectuais, da mesma forma que a ginástica embeleza o corpo.

[5] Mas seria um grande erro se quiséssemos ficar ali; Não seriamos nada,

seriamos estéreis. É necessário então adentrar uma especialidade cientifica e

procurar compreende-la ao mesmo tempo que as outras ciências.

[6] As generalidades das ciências são úteis às discussões para o avanço das

mesmas, porque elas fazem nascer ideias que servem para fazer experiências;

Mas, ao contrário, elas seriam estéreis se as examinássemos sob o ponto de

vista puramente filosófico ou por elas mesmas.

[7] Eu aprecio muito a filosofia e os filósofos: são homens de grande

inteligência. Mas eu não creio que a filosofia seja mesmo uma ciência. É uma

distração útil ao espírito, falar sobre filosofia após o trabalho. Como é também

uma distração fazer uma caminhada depois de estar muitas horas no

laboratório.

[8] Em uma palavra, só existe a ciência experimental e fora da experiência não

sabemos nada. A filosofia não explica nada e não pode ensinar nada de novo

por ela mesma, pois ela não experimenta e não observa. Os filósofos nunca

aprenderam nada, eles apenas raciocinaram sobre o que os outros fizeram.

Excetuando-se Descartes, Leibniz, Newton, Galileu: eis aqui os verdadeiros

filósofos ativos; são grandes sábios. Mas Kant, Hegel, Schelling, etc. Tudo isso

é oco e eles, todos eles, não introduziram a mínima verdade sobre a terra. Só

existem os sábios que podem. Quanto a Bacon, é um trompete e um gritador

público: ele só repetiu as verdades científicas que reinavam em sua época

sobre Galileu, Torricelli, etc. Mas, ele, por ele mesmo não fez nada, senão

repetir todo tempo para deixarmos a escolástica e adotarmos a experiência.

Tudo o que outros haviam dito, ele falou mais alto. Porém ele não deixou

nenhuma verdade para a ciência.

[9] Comte repete que se deve deixar para filosofia positiva as causas primeiras

e finais; Que devemos suprimi-las como também os estados teológicos e

metafísicos. Tudo isso é falação. Nada pode ser suprimido, somente

transformado. Ou que os conhecimentos exatos fizessem desaparecer as

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ideias imaginárias que alguém fez sobre coisas que ele chama de teológicas,

essa ideia esteve ai todo o tempo e Comte não poderia crer ter inventado tal

banalidade.

[10] Quanto a influência que Comte atribui a filosofia sobre a educação e o

desenvolvimento das ciências, ela é ridícula.

[11] Quanto à física social, que não é outra coisa se não a civilização, Comte

nos anuncia que ela vai se aperfeiçoar e que as descobertas da ciência lhe

darão impulso. Eu penso que não há nada de novo nisso e que isto seria feito

sem a filosofia positiva, porque tem sido feito muito antes dela. A filosofia não

fornece, portanto, nenhum preceito se não o de dizer o que ela vê acontecer

em todas as filosofias.

[12] A física social ou a civilização, que é a vida em sociedade não será

resultante nem da união de uma ciência simples. É uma resultante geral,

resultando em contradição. Existem leis do espírito humano. Mas como há

espontaneidade individual, através do raciocínio ela se coloca em oposição à

lei que suprime de alguma maneira o indivíduo. Nos corpos brutos a lei, sendo

conhecida, é rigorosamente seguida. Nos outros seres vivos que não o homem,

a lei é ainda seguida pelas influências exteriores e pela fixidez das existências.

Mas entre os homens progressivos, nos quais a razão é perfectível e suscetível

de se elevar, mas também de cair, a individualidade traz problemas

incomparavelmente maiores. Os animais lutam pelo amor e pelo abrigo, o

homem luta por tudo.

[13] É apenas pela caridade, pelo cristianismo, que podemos chegar a nos

suportar uns aos outros; Pelo contrário, não poderíamos jamais esta

individualidade que impede o cumprimento absoluto da lei que faz suprimir o

indivíduo.

[14] Agora eu vou dizer como eu concebo a filosofia.

[15]. Tudo é experimental e tudo deriva da natureza das coisas as quais nós

não podemos modificar. Inicialmente todas as ciências nasceram do desejo

que o homem tem pelo saber e do instinto que ele tem de buscar o saber. É um

fato da natureza do homem de onde ele deve partir. O homem é feito para a

busca da verdade ou, antes, para o conhecimento do que ele não sabe, quer

dizer, para a busca das causas primeiras e finais. O homem, sobre a terra,

enxerga onde ele se encontra, mas em seguida ele se pergunta por que, de

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onde ele vem e onde ele vai¹. Ele não² sabe isso, mas ele não pode se isentar

de sabê-lo, e por isso ele supõe que o sabe e faz a este respeito algumas

hipóteses que acalmam sua sede pelo saber. O homem vive desta forma, mas

a dúvida vem a seu encontro; ele permanentemente busca, trata-se do infinito

atormentar, como disse de Musset. O homem procurou a solução de seus

questionamentos na filosofia durante séculos e perdeu seu tempo, ... até que

enfim os homens vieram a dizer³ : mas ao invés de buscar saber de onde nós

viemos e onde nós iremos, examinemos um pouco onde nós estamos.

1. <ele não se preocupa>

2. <não pode sabê-lo>

3. <Galileu, Descartes, etc.>

-- Daí então é que veio o período verdadeiramente científico que pôs de lado a

busca das causas primeiras e finais. Mas apenas os sábios souberam

flexibilizar seus espíritos a

uma busca que força o impulso natural que quer nos fazer saltar no primeiro

salto às verdades que nós só podemos adquirir lentamente. Dessa forma há

uma contradição no homem, a necessidade imperativa de uma crença¹ e a

impossibilidade de tê-la imediatamente. Se os sábios se contentassem com

estas crenças provisórias e dispensassem a religião, a maioria dos homens

não pode e não poderá prescindir de forma distinta à que a crença se

apresenta. Tudo o que podemos fazer é conduzi-los ao estado de indiferença

dos sábios misturado ao espírito do conhecimento, pois nós não iremos

suprimir este lado do homem.

1. <e a crítica que a destruiu>.

[16]. Veja aqui a suposição que faz o meu pensamento.

[17]. O homem ao chegar sobre a terra encontra-se numa encruzilhada próxima

a uma torre enorme cujo topo se perde pelos céus. Ele não enxerga nada nesta

profundidade. Ele é atormentado pelo desejo de enxergar claramente, de saber

o que existe sobre esta torre. Ele faz toda espécie de evoluções em torno desta

torre, ele tenta saltar, ele se distancia, ele se aproxima, ele não vê, mas

acredita ver as coisas mais estonteantes umas que as outras. Ele briga sobre o

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que ele acredita ver, mas é necessário que ele veja alguma coisa; ele não fica

tranquilo sem isso.

[18]. Após séculos passados nestas evoluções estéreis, vieram os homens

dizendo: é

Absolutamente¹ necessário subir no muro desta torre colocando sucessivas

escadas, assegurando-se que uma escada está bem sólida antes de colocar

uma segunda: e assim por diante; é necessário renunciar momentaneamente

de se querer enxergar acima, nós não podemos ver nada. Apenas partindo

daqui que nós podemos chegar a alguma coisa.

[19]. Então os homens se põem a trabalhar, eles veem a terra, a natureza, e as

ciências experimentais nascem. Mas² nesta via não é necessário esperar que

estejamos no alto da torre para termos resultados. Quando chegamos a certas

escadarias, nós podemos aproveitar para já olhar em torno de nós, em seguida

ver o conjunto do que nós percorremos e ver se nós estamos indo bem na

direção do topo da torre onde queremos chegar. À medida que nós subirmos,

nós enxergaremos cada vez com maior clareza e poderemos utilizar o que

vemos mesmo que não conheçamos tudo.

1. <entrar nesta torre>.

2. <esperando que nós>.

[20]. Dizemos que a ciência objetiva a busca das causas. Nada disto. O sábio

busca sempre as causas primeiras e as causas finais. Apenas ele sabe que

deve passar por uma infinidade de causas próximas, mas ele não persegue

cada vez menos as causas, e, indo de proximidade em proximidade, ele só irá

parar quando ele alcançar a causa primeira, quer dizer, quando ele estiver no

alto da torre. Mas então seria o fim do mundo porque o homem saberia tudo, e

que se ele necessita saber, não tem menos necessidade de ignorar¹ para

buscar saber. Quando o homem souber tudo, estará destruído. Como disse

Pascal², o homem foi feito para buscar a verdade e não para possuí-la.

1. <para ser empurrado a pesquisar>.

2. <Deus>.

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Assim, analisando as idéias de Comte, Claude Bernard afirma que a

ciência requer generalidades, por definição: o verdadeiro cientista faz

pesquisas particulares e ao mesmo tempo, tem o sentido da generalidade; por

isso é o único que pode fazer avançar a ciência em suas generalidades.

Através do particular, o cientista vai se aproximando, passo a passo, da

essência de um fenômeno e quando tiver conhecimento da essência desse

fenômeno, terá a de todos os demais.

No entanto, Bernard critica Comte, afirmando que o filósofo positivista

(filosofia derivada das generalidades da ciência) é um “especialista em

generalidades” e que não pode haver nada pior, pois este é um pensamento

que, em última instância, tem suas raízes na escolástica. Afirma, então, que

Comte cai no mesmo inconveniente de todos os filósofos, ou seja, ao negar a

filosofia em nome da ciência, ele mesmo criou uma nova filosofia.143

As reflexões no Philosophie como a nova semente subjacente à

Introdução ao Estudo da Medicina Experimental

O estudo da história para entender o homem e o mundo já havia sido

enfatizado por Johann Georg Zimmermann (1728-1795) – autor citado por

Bernard em Introdução... – que valorizava o aprendizado derivado do estudo do

que os médicos antigos pensaram e observaram: “A instrução nos dá o

143

Ibid, 34.

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conhecimento histórico, o espírito de observação nos ensina a ver e o gênio

nos conduz a conclusões”144.

No manuscrito Philosophie, encontramos documentada essa preocupação

de Claude Bernard com a história das teorias: “A ciência da história deve

fornecer a teoria dos fatos históricos que ela conta. Esta teoria é a causa das

ações dos personagens e regula os eventos”145.

Assim, conhecendo a “historia das teorias e suas transformações

segundo a forma de enxergar a natureza”, Claude Bernard observou:

“Na ciência experimental, grandes homens jamais encontram

verdades absolutas. Cada grande homem pertence a seu próprio

tempo, e aparece num momento determinado trazendo à luz um

novo e inesperado fenômeno que abre novos horizontes para o

conhecimento.”146

No novo caminho que Bernard iria propor, já existem, inclusive, reflexões

sobre as descontinuidades a que estão sujeitas as formas de pensamento:

“As idéias são um pouco como em fisiologia: há uma sucessão

de fatos evolutivos, mas que não se engendram necessariamente

uns com os outros. É uma corrente, onde cada elo não tem

necessariamente relação de causa e efeito com o elo que o precede

nem com o que sucede.”147

144

Temkim, Double Face of Janus, 241. 145

Bernard, Philosophie, citação 2, 3. 146

Bernard, Introduction…, 41. 147

Ibid, 14.

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Provavelmente a semente de inquietação plantada em seu espírito por

seu mestre Magendie, que pensava que em medicina “tudo ainda estava por

fazer”148, levou Claude Bernard à busca dessas bases no raciocínio filosófico.

Numa pequena nota ao pensamento de Kant, Claude Bernard assinala: “Kant

começa pela crítica das fontes do conhecimento” 149, comentando que “dentre

as coisas difíceis de encontrar, o ponto de partida é a mais importante pois, a

partir de então, a lógica faz o restante. A filosofia será rigorosa sempre que

tiver um ponto de partida absoluto”150.

Claude Bernard, durante sua formação havia entrado em contato com

uma infinidade de idéias para explicar a vida, o funcionamento, e a atividade do

corpo humano. Idéias que, segundo ele, “respondem à necessidade que o

Homem experimenta de saber, de conhecer”151.

Mas, segundo nosso autor, a medicina estava “destinada a abandonar

pouco a pouco a região dos sistemas e a tornar-se cada vez mais analítica”152,

assumindo novas formas de investigação, em seu papel de ciência

experimental. Traçar o caminho da metodologia experimental era, para

Bernard, uma atividade complexa, devido à própria complexidade do ser

148

Ver capítulo sobre Magendie, nesta obra. 149

Bernard, Philosophie, 20. 150

Ibid, citação 39, 20. 151

Ibid, 1. 152

Bernard, Introduction…, 6.

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humano, mas o único possível para fundamentar as observações e comprovar

as idéias.153

Assim, partindo do princípio de que “o raciocínio estará sempre correto,

quando aplicado a noções acuradas e fatos precisos”154, seria necessário

apenas distinguir quais as melhores idéias para testar através da

experimentação. Desta sorte, Bernard procura, na análise de diversos autores,

dar nome ou identificar que espécie de idéia ou pensamento seria adequada

para o trabalho experimental, convencido de que “os grandes

experimentadores apareceram antes dos preceitos da experimentação”155.

Segundo Georges Canguilhem (1904-1995), “não se pode duvidar que Claude

Bernard teria aplicado esta máxima a ele mesmo”156.

Manter a liberdade da mente, a dúvida, e desafiar tanto os preconceitos

quanto o conhecimento mantido através da autoridade, são, segundo Bernard,

práticas indispensáveis para quem quer trabalhar para o desenvolvimento da

ciência, em todas as áreas.

O ponto de partida, para ele seria, então, “uma hipótese ou teoria mais

ou menos imperfeita”157, acrescida de muitas dúvidas. Assim, a ignorância seria

um ponto de partida mais seguro do que o excesso de convicção, porque esta

produz um viés na observação experimental: “É melhor não saber nada do que

153

Ibid, 62. 154

Ibid, 8. 155

Canguilhem, Études d’histoire et de philosophie, 144. 156

Ibid, 145. 157

Bernard, Introduction…, 36.

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manter na mente idéias fixas ou baseadas em teorias com as quais se deseja

concordar”158.

Duvidar também é um ponto importante, mas não a ponto de se tornar

cético:

“O cético não crê em nada, e não tem portanto base para

estabelecer seu critério, e por consequência se encontra na

impossibilidade de edificar a ciência; a esterilidade de seu triste

espírito resulta das falhas de seu sentimento e da imperfeição de sua

razão.”159

Para Claude Bernard, um obstáculo ao desenvolvimento da ciência

aparece quando há confusão entre princípios e teorias:

“Princípios são idéias absolutas e teorias são relativas e tem

um valor provisório na busca da verdade. Não é possível ensinar

uma teoria como se fosse um dogma, mantido pela fé. A crença

exagerada nas teorias leva a uma falsa idéia de ciência, tirando dela

a espontaneidade e estimulando o gosto pelos sistemas.”160

Assim, ele indica que um passo importante para o diálogo em ciência

seria a convicção de que as teorias teriam um caráter mutável, representando a

realidade num determinado tempo, sob certas circunstâncias. As teorias podem

ser adaptadas, alteradas, através de novos achados científicos.

158

Ibid, 39. 159

Ibid, 92. 160

Ibid, 69.

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Como discutido no Capítulo I, o contexto em que se desenvolve o

trabalho de Bernard tem significado fundamental para localizar o percurso de

seu pensamento. Lembrando brevemente, é um período em que a fisiologia

experimental estava começando a se difundir na França. Como toda proposta

nova, naturalmente, encontrou tanto simpatia quanto antipatia no meio

científico contemporâneo. O constante questionamento sobre seu trabalho,

tanto como autocrítica, quanto por seus alunos e contemporâneos no Collège

de France, pode ser uma justificativa plausível para que o autor tenha buscado

nos filósofos uma maneira de entender as divergências e apaziguar essas

discussões, encarando-as como uma tendência natural do ser humano.161

Essas reflexões, oriundas do contato mais íntimo consigo mesmo e com

a filosofia, aparecem em Introdução ao Estudo da Medicina Experimental,

sobretudo quando seu autor trata de assuntos polêmicos. Por exemplo, quando

tenta explicar que ao fisiologista nada devem, no fundo, importar materialismo

e espiritualismo, porquanto são conceitos pertencentes ao pensamento da

filosofia natural, e que levariam o experimentador fisiologista a muitas

inconsistências científicas e considerações excessiva e desnecessariamente

abstratas. O importante para o fisiologista, ao contrário, é a análise do

fenômeno em si, através do crivo determinista:

“Uma vez que a busca do determinismo dos fenômenos se

coloca como princípio fundamental do método experimental, não

haverá nem materialismo, nem espiritualismo, nem matéria bruta,

nem matéria viva, há apenas os fenômenos sob os quais devemos

161

Bernard, Philosophie, 7.

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determinar as condições, ou seja, as circunstâncias que concorrem a

esses fenômenos.”162

O determinismo é condição dos fenômenos tanto nos seres vivos quanto

nos corpos brutos:

“Devemos admitir como axioma experimental que tanto entre

os seres vivos como entre os corpos brutos as condições de

existência de todos os fenômenos são determinadas de maneira

absoluta. Isto quer dizer que, uma vez que tenhamos conhecido

totalmente as condições para que um fenômeno ocorra, ele deve

ocorrer toda vez e necessariamente, à vontade do experimentador.”

163

Dessa maneira, o experimentador treinado poderia, segundo sua

experiência, manipular as condições físico-químicas e alterar ou favorecer a

manifestação de determinados fenômenos.

Seu objetivo era difundir a existência do determinismo como princípio,

para que os médicos experimentadores “pudessem excluir de suas explicações

todo fenômeno sobrenatural, adquirindo um critério seguro para julgar as

aparências tão variáveis e contraditórias dos princípios vitais.”164

Experimentos simples, para a busca de verdades parciais, vem então

em seu auxílio:

162

Bernard, Introduction…, 383-4. 163

Ibid, 116 (grifo do autor). 164

Ibid, 119.

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“Quando enfrentamos questões complexas, devemos dividir o

problema total em partes menores e cada vez mais simples e

problemas parciais mais e mais bem definidos. Assim a aplicação do

método experimental se torna mais fácil e mais segura.”165

A convicção de que há um determinismo orgânico, através das

condições físico-químicas não permite, no entanto, que seja colocado no rol

dos materialistas. Bernard procurou deixar claro que é inerente ao espírito

humano procurar pelas causas primeiras e últimas e tem que aprender, ao

pensar em ciência experimental, a renunciar momentaneamente a elas: através

desse exercício consegue separar religião/filosofia e ciência, sem substituir

uma pela outra. Porém, o lado humano, o religioso, o sentimental, o moral são

parte essencial da nossa natureza. O cientista que desenvolve somente a

cabeça, para Bernard, mata o coração. O lado do sentimento é o lado

fundamental do ser humano “e ele não se destruirá jamais, felizmente. É o que

chamamos de fé, de coração”166:

“Dizem que a ciência sai em busca das causas. Não é verdade.

O estudioso procura sempre as causas primeiras e as causas finais.

Apenas ele sabe que deve passar por uma infinidade de causas

próximas, e seguirá de próxima em próxima, não se detendo até

chegar à causa primeira, quando então ele estará no alto da torre.

Mas então será o fim do mundo porque o homem saberá tudo, e que,

se ele tem a necessidade de saber, não tem mais condição de ignorar

para procurar saber. Quando o homem souber de tudo, ele será

165

Ibid, 124. 166

A citação na íntegra está no capítulo Bernard-Comte.

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aniquilado. Como diz Pascal, o homem é feito para a busca da

verdade, não para sua posse.”167

167

Bernard, Philosophie, citação 59, item 20, 43.

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CONCLUSÕES

''A verdade não se impacienta, porque é eterna.

Seus frutos podem ser tardios, mas são certos.

Uns plantam a semente da couve para o prato de amanhã;

outros a semente do carvalho para o abrigo do futuro.”

Rui Barbosa

Henry Bergson, no discurso pronunciado durante o centenário de

Claude Bernard, no Collège de France, em 30 de setembro de 1913, inicia

dizendo: “Aquilo que a filosofia deve a Claude Bernard é, sobretudo, a teoria do

método experimental”168. Porém, Claude Bernard, certamente, não daria todo

esse crédito à filosofia.

O trabalho Philosophie nos mostra claramente que há muito mais do que

filosofia no método experimental. Num tempo histórico onde a fisiologia fazia

seus primeiros acertos, Bernard vem nos mostrar, através de suas reflexões, a

indispensabilidade da prática aliada a uma base epistemológica resistente e ao

mesmo tempo flexível.

Para essa abertura ampla e inovadora na ciência médica admite a

pulsão, presente em todo ser humano, de entender sua própria natureza e seu

papel no universo; esse “desejo de ver claramente”169, encontra , sob a ótica de

168

Bergson, Filosofia de Claude Bernard, 1. 169

Bernard,Philosophie, 41.

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Bernard, a colimação precisa, o foco exato na ciência médica, sem perder a

relação com o todo.

Bernard admite o estatuto da crença como forma de conhecimento.

Afasta-se então das causas primeiras (por que) e das causas finais (para que),

e coloca seus esforços de reflexão na área útil à ciência experimental: o que

está no meio. Trabalhar com a realidade presente, mantendo a liberdade de

idéias, sem cercear o movimento criativo, mas ponderando sempre, para evitar

a sedução das idéias fáceis, das teorias não comprovadas. É preciso cuidar da

metodologia como educação para o conhecimento.

As reflexões abandonam o dualismo. Nem matéria, nem força, nem

materialismo nem espiritualismo, o foco faz revelar a relação. Cabeça e mãos

se unem, a teoria e a visão do experimento, a relação e “o que está no meio” e

Bernard chega ao determinismo biológico.

Como diz G. Canguilhem “A fisiologia de Bernard não foi criada, ela é

experimental, não deixará jamais de se recriar, e nem tampouco será fechada

sistematicamente”170.

Nesse caminho, demonstra experimentalmente, através de sua própria

história, documentada pelas reflexões em Philosophie e ratificada em

Introdução ao Estudo da Medicina Experimental, a história do método

experimental.

170

Canguilhem, Études D’Histoire et de Philosophie, 141.

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Faz sentido, então, a afirmação de seu aluno, não como mera adulação,

mas como constatação de um sentido de realidade: “Bernard não é um

fisiologista, ele é a própria fisiologia”171.

Como discípulo de Magendie, Bernard aprende a técnica, o trabalho, a

duvidar, a não se subordinar às dificuldades nem aos padrões estabelecidos.

Como pesquisador maduro, aprende a trabalhar com a dúvida, como

matéria viva, como semente para a constante reinvenção. Pode então

maduramente, exercer a crítica ao ceticismo e seus limites, entendendo que o

confronto só tem valor quando baseado em fatos palpáveis através da

experiência: “A fisiologia sob sua orientação, por seu senso de pesquisa, em

seu conteúdo, não é mais a fisiologia de Magendie”172.

Evitando conflitos inúteis, ou a limitação dos sistemas, procurou pautar-

se por Pascal,173 deixando claro que as hipóteses mudam com o avanço da

ciência, e as verdades são relativas. A única certeza é a dúvida, e ela deve nos

aproximar.

Ao entender o que seriam experimentos bem desenhados, o novo

Bernard consegue provar que, em fisiologia, um mesmo fato, ocorrendo em

condições idênticas, levaria sempre aos mesmos resultados, criando

possibilidades infindáveis para a pesquisa fisiológica.

171

Paul Bert, “Claude Bernard” xix. 172

Ibid, 141. 173

Bernard, Philosophie, 43: “O Homem é feito para a busca da verdade e não para sua

possessão”

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Através da seleção adequada das hipóteses, procurou evitar

experimentos desnecessários, ao mesmo tempo em que fez reflexões éticas

sobre a experimentação com animais: “O método experimental segundo

Claude Bernard é mais do que um código para uma técnica de laboratório, é

uma idéia para uma ética”174.

O trabalho de análise das reflexões contidas no manuscrito Philosophie,

nos apresentou, semelhante às videiras de sua terra natal, a brotação de

vigorosa gema, um Claude Bernard que assume a posse de suas habilidades

como experimentador, trabalha minuciosamente a crítica e a reflexão, um autor

que sabe colocar os limites entre o que é e o que não é “ciência”, embora

respeitando todos os campos do saber humano. Desta forma, surge, com vigor

apical, o Introdução ao Estudo da Medicina Experimental, a obra que

definitivamente documenta um “segundo Claude Bernard”.

Já não seria mais possível reduzir a fisiologia à química ou à física.

Claude Bernard, através do trabalho experimental, da fisiologia, e das reflexões

filosóficas, antevê os dourados frutos da biologia, como ciência autônoma.

174

Canguilhem, Études d’Histoire, 154.

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